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Luiz Franco
Luiz FrancoPA
RE
IDO
LIA
Pareidolia é o primeiro livro de contos do poeta, técnico gráfico, produtor cultural, professor e ar-queólogo, entre outras coisas, Luiz Franco. Ecos de cada uma destas profissões que o autor exerce ou já exerceu se encontram nos textos aqui selecionados. A preocupação com a beleza e o ritmo do textosão fruto da cancha como poeta. A ironia, o humore o gosto pela polêmica são indissociáveis da per-sona do autor, e aqueles que já acompanharamo blog S.O.S. Nave Mãe (sosnavemae.com.br) estão familiarizados com o estilo inciso e polêmico de Luiz ao tratar os mais diversos assuntos. O produtor cultural exigente, solidário e guerrilheiro, com seu estilo de produção punk rococó, é o responsável pe-la edição do livro independente de editoras e jabás, mas com editoração cuidadosa e caprichada, soli-dificada pelo trabalho talentoso do amigo e artista Gustavo Lambreta. O professor é uma das muitas faces do contista, preocupado em fazer divertir, mas fazer pensar e tratar de assuntos sérios sem inte-lectualismos. O arqueólogo dialoga com o poetae escava as várias camadas da terra literária, em busca da raiz dos sentimentos. Boa leitura!
Por Guilherme Castro
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capa_final.pdf 1 22/04/16 13:25
Copyright © Luiz Franco, 2016
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriado ou estocado em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização do autor.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Projeto gráfico, ilustrações e capa
Gustavo Lambreta
Revisão
Gabrielle Navarro
Coletivo Escape HQE-mail: [email protected]/escape.hqwww.escapehq.com.br
Fale com o autorE-mail: [email protected]
Catálogo na Publicação CIPFicha Catalográfica feita pelo autor
F825p Franco, Luiz Pareidolia / Luiz Franco. São Paulo: edição do autor, 2016. 120 p. ISBN: 978-85-920768-0-1 1. Ficção. 2.Ficção Nacional. 3. Contos I. Título. II. Autor. CDD: B869.3 CDU: 821.134.3(81)
Sinto-me no dever de registrar em papel e tinta o no-
me das pessoas irresponsáveis que me fizeram publicar
estes contos. Meus iguais e sinceros agradecimentos pela
paciência, força e carinho que foram dados por Bianca
Helena, Guilherme Castro, Gustavo Lambreta, Raquel Mar-
ques, Régis Nogueira e Ricardo Sena.
Neusa e Carlos, mãe e pai, não há mensuração para
a gratidão que tenho por vocês. Sem o apoio e a dedicação
que me deram, nada disso existiria. Para agradecê-los, uma
página ou uma vida seria pouco.
Tudo ainda me inspira, mas nem tudo me aflige mais.
Luiz Franco
Janeiro de 2016
Para Tarsila, Betina e GustavoVocês continuam sendo as minhas melhores
criações, mas sigam seus sonhos.
11
Beto caminhava pela rua como sempre fazia quando
saía da agência de publicidade, mas dessa vez tinha passos
diferentes que conduziam aquele andar numa dança conten-
te. Naquela sexta-feira, recebera fi nalmente uma promoção
após ter participado exaustivamente de uma campanha que
a empresa tinha conquistado, tratava-se da conta de uma
grande empresa de telefonia. Os diretores deram ouvidos
a uma ideia que ele havia criado, apresentaram ao importante
cliente e a peça fora aprovada.
Tudo estava realmente bom naquele fi m de tarde
de sexta-feira. Caminhava entre a estação do metrô e a fa-
culdade, onde beberia algumas cervejas e comemoraria com
os colegas a promoção de estagiário para assistente de
criação júnior. Seria efetivado na agência e nem tinha
ainda 20 anos completos, provavelmente poderia reduzir
a quantidade de trabalhos como freelancer.
Foi nesse caminhar de regozijo em que Beto peram-
bulava como criança, chutando tampas de garrafas, britas de
asfalto e o que mais visse pela frente. Tabelava com craques
de sua imaginação e estava sempre fazendo gols, até que se
deparou com uma pomba extremamente gorda a sua fren-
te. Nunca vira uma pomba tão gorda como aquela, se não
fosse pela plumagem acinzentada e o brilho esverdeado
do pescoço, diria que era uma bela bola de futebol ali
Beto e as pombas
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perdida. Calculou a distância para aquela cobrança de fal-
ta imaginária, a pomba alçaria voo, formando assim, no
conjunto da cena digna de Canal 100, um lindo cruzamento
em que a bola é lançada para a área e num momento sublime
seria preciosamente cabeceada pelo atacante diretamente
ao gol, sem chance de defesa.
Deu a paradinha, olhou a pomba, sua bola, correu
quatro passos largos e pronto. Um chute que deixaria
Rivelino, Neto, Rogério Ceni e tantos outros grandes
batedores de falta com orgulho. Movimento perfeito por
parte do cobrador, a bola imaginária voaria e seria mais um
momento mágico. Acontece que ele não combinou com
a pomba e ela não fez a parte dela.
Ao contrário do que Beto sempre acreditou, de que
as pombas possuem uma espécie de radar ou terceiro
olho escondido entre as penas, o que propicia a elas uma
capacidade de fuga quando nos aproximamos, aquela ave em
específi co não se mexeu pouco mais que alguns centímetros
com suas patas pelo concreto da calçada antes do chute
fatal. O golpe foi certeiro e, diferentemente de uma linda
bola, subiu apenas alguns metros ao ar numa mistura de
arremesso com voo desajeitado para logo cair como um
abacate mais do que maduro no chão.
O rosto de Beto se transfi gurou, a alegria de quem ti-
nha participado de uma jogada de gol de fi nal de campeonato
se transformou na expressão comum aos atletas que perdem
de lavada uma clássica decisão. Ao ver aquela pomba ainda
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bater pelas últimas vezes as asas ali, tombada ao chão,
descobriu que desferira não um chute, mas um tiro fatal.
Aquele “rato com asas”, como costumava se referir a aquela
espécie, já nem mais agonizava, estava morta a pomba
a seus pés.
Assustado e com medo de que alguém tivesse assistido
a tal ato criminoso, olhou a sua volta e saiu em passos
rápidos cruzando a rua. Não se conformava com o que tinha
acontecido, em toda a sua vida, nunca conseguiu chegar tão
perto de uma bicha como aquela, sempre que se aproximava
de uma pomba, a mesma batia asas e o deixava em terra.
Pensava como aquele animal tinha sido tão estúpido em não
voar, será que era tão mais obesa que as demais e por isso
não voava? A situação arranhou a alegria de seu dia.
Na faculdade, contou aos colegas sobre a conquista
profi ssional, mas não com aquela mesma euforia que estava
antes do ‘avicídio’. Assistiu a primeira parte da aula, mas
logo no intervalo foi com os colegas ao Zeppelim, um bar
de esquina que frequentavam. Estava ali de corpo presente
entre bitucas, amigos, garrafas e uma porção de calabresa
com pão francês fatiado e molho tártaro. No começo daquela
comemoração, ainda estava meio alheio a tudo e se intrigou
com duas pombas que estavam paradas sobre a guia do
outro lado da rua.
— Xô! Saiam daí! – disse ele não provocando a menor
reação nas representantes da Columba livia.
— O que foi? – perguntou Daniela, uma amiga.
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— Nada, é só que aquelas pombas ali... Estão me
incomodando.
— Relaxa, elas só vem pra cá se cair comida no chão.
— Sei lá, não gosto de pomba.
— Ah, Beto. E quem gosta? Melhor elas lá do que
voando e mirando a nossa cabeça.
— É, voando. Sei.
Percebendo que algo o incomodava, Daniela se apro-
ximou curvando um pouco mais o corpo e deixando o con-
torno dos seios mais visíveis a ele. Ela sabia que isso
atrairia a atenção dele. Logo, ele abriu um leve sorriso
e começou a perguntar a ela sobre o fi m de semana pro-
longado, se aproveitaria o feriado de segunda-feira para
viajar e tudo mais.
A conversa animada da mesa de bar se estendeu por
uma rua escura ali mesmo do Brás, onde, junto com os amigos,
fumou um cigarro de maconha. Saiu de lá mais leve do que
chegara e com tudo agendado para encontrar novamente
Daniela na noite seguinte, num bar da Vila. Embarcou na
Estação Bresser, desceu na Barra Funda e entrou no último
trem que passaria pela Lapa. Já estava sentado e inebriado
quando pouco antes das portas se fecharem duas pombas
voaram para dentro do vagão.
— Xô! Sai daqui suas fi lhas da puta! – gritou irritado
para as aves que nem se mexeram.
Se não fosse pelo horário, desceria na Estação Água
Branca e aguardaria pelo próximo trem. Contrariado, con-
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tinuou a viagem mesmo sendo acompanhado daquelas
nojentas criaturas. Considerava aquilo um tanto quanto
surreal, embora não soubesse precisar o quanto sua mente
estava entorpecida.
Já estava de pé na porta e saiu em passos rápidos
quando o trem estacionou na plataforma da Lapa. Olhou
para trás, procurando ver se as aves o seguiam. Elas saíram
voando e sumiram de sua vista. Caminhou irritado enquanto
fumava mais um cigarro até chegar na porta do velho edifício.
Subiu as escadas, entrou em casa, deu um beijo na mãe que
assistia a um fi lme na televisão e, sem escovar os dentes, se
jogou na cama.
O prédio em que morava com a mãe não tinha mais
que três andares incrustrados entre alguns galpões. Seu
quarto era de fundos e possuía uma pequena varanda por
onde entravam os poucos raios de sol do dia. Acordou com
aquele leve gosto de ressaca e foi se lavar na pia. Pegou um
pouco de café que a mãe havia deixado na garrafa térmica
e voltou para o quarto. Acendeu um cigarro e foi fumar na
sacada, abriu a porta e se deparou com aquelas cinco pombas
prostradas sobre a mureta da varanda.
— Xô! Sai daqui bicho fedido! – esbravejou gesticu-
lando com os braços.
As aves até que se mexeram, aparentemente apenas
para se acomodarem melhor. Ele permaneceu ainda na porta
e fez menção de jogar o café quente nelas, mas a ameaça
não cumprida não foi entendida.
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Voltou para o quarto, fechou a porta e foi até a sala.
Ligou a TV para se distrair um pouco, acontece que, nas
manhãs de sábado, nada de interessante se via. Pouco mais
de uma hora depois recebeu uma ligação da mãe, dizendo
que não voltaria e que iria dormir na casa de uma prima
durante todo o fi nal de semana, retornando somente na
noite de terça-feira após o feriado. Ouviu as recomendações
e as observações quanto à comida congelada no freezer.
Desligou e, sem fome nem ânimo, decidiu que dormiria mais
um pouco.
Já era fi m de tarde quando fi nalmente acordou. Piscou
os olhos e viu que horas eram pelo celular. Se espreguiçou
ainda que deitado, mas foi saindo daquela posição espalhada
na cama que foi arrebatado por uma imagem que o assustou.
O quarto estava infestado de pombas. Elas estavam
sobre a mesa de desenho, na cabeceira da cama, em cima
do armário e no chão. Não conseguia contar quantas eram.
Gesticulou os braços na esperança de afugentá-las, mas de
nada adiantou.
— Saiam daqui! Saiam daqui! – gritou ele sentando-se
no meio da cama e encostando-se na cabeceira.
Algumas pombas passaram por cima de sua cabeça
e ele até se curvou. Da mesa, uma pomba de penugem
levemente amarronzada saiu de trás das demais e disse:
— Olá Sr. Roberto.
Não acreditando em seus olhos e ouvidos, perguntou:
— O que é isso? Que porra é essa que está acontecendo?
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— Creio que não é o senhor quem deve fazer as
perguntas no momento. – disse a pomba e continuou
caminhando sobre a mesa. – Deixe que eu me apresente,
meu nome é Vidigal e falo como representante legal indicado
pelos meus amigos de gênero.
— Sai daqui! Que piração é essa? – se perguntou Beto,
esfregando as palmas das mãos nos olhos.
Vidigal deu um pequeno salto e voou até o colchão,
e começou a andar de um lado para o outro.
— Sr. Roberto, o que é isso? Não creio que o senhor
esteja em condições de ditar as regras para a tramitação
desta audiência. O senhor terá direito a manifestar-se quan-
do lhe for cedida a palavra, no entanto, peço que use termos
mais adequados, há senhoras e crianças presentes aqui, as
quais não estão acostumadas com palavras de baixo calão.
— Como?
— Sim, palavras torpes, rasteiras. Bem que eu deveria
imaginar que um indivíduo como o senhor, que não preza
a vida de fato, não iria conseguir se comportar de outra
forma. Esqueçamos isso, vamos nos concentrar aos fatos
que constam nos autos.
— Que autos? Que fatos? Pombas não falam! Isso é um
pesadelo, o que é que tinha naquela paranga que eu fumei
ontem?
— Peço que a escrivã lavre nos autos que o réu
assume o uso de entorpecentes. Sr. Roberto, eu não deveria
lhe ajudar, mas devo informar que a sua situação não é das
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melhores e admitir publicamente o consumo de substâncias
ilícitas no dia do crime é algo que somente o prejudicará.
— Que crime? O que é isso? Eu estou dando satisfação
para uma pomba. – disse Beto, enquanto se movimentava
para sair da cama.
Nesse momento, várias pombas pousaram sobre ele
impedindo-o de fi car em pé pouco mais que alguns segundos.
Sentou-se na mesma posição que estava anteriormente,
tentando afastá-las com as mãos e os braços. Somente
quando já estava novamente com os pés sobre a cama é que
as aves se afastaram. Vidigal se aproximou e disse:
— Roberto, posso lhe chamar assim? Enfi m, você
é jovem ainda e tem muito a aprender sobre o respeito às
hierarquias e às diferentes ideologias, se bem que eu espero
que não lhe sobre tempo para isso, enfi m, por sorte sou um
dos melhores em meu ramo, estudei na Faculdade de Direito
do Largo São Francisco e preciso avisá-lo que temos, aqui,
diferentes representantes de nossa sociedade. Se continuar
a agir de forma agressiva, teremos que reagir com a força
compatível. Talvez não saiba, mas alguns membros de minha
espécie que aqui estão foram treinados no Batalhão de
Tobias de Aguiar e estão preparados para o enfrentamento.
Se preferir sentar-se na cadeia não criarei objeções junto
à corte para que lhe seja autorizado tal pedido, entretanto
eu preciso repetir novamente que gestos bruscos serão
interpretados como ameaças. Podemos continuar?
— Sim, – respondeu Beto com o olhar perdido – eu não
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estou entendendo nada.
— Essa é uma estratégia de defesa que não irá lhe
ajudar muito, já tem um tempo que o tribunal não reconhece
a alegação de insanidade temporária como uma boa escusa
para os atos que vocês cometem contra nós. Particularmente,
eu acredito que vocês são portadores de alguma disfunção
psicológica inata a sua espécie. Veja, esta é uma opinião
particular baseada nas teorias de doutora Amarilis. Você
não a deve conhecer, mas fez seus estudos na Universidade
Federal Fluminense e agora está lecionando na Pontifícia
Universidade Católica, é uma das sumidades na análise do
comportamento humano. Não há ave que estude sociologia
que já não tenha lido algum artigo dela. – Vidigal virou-se
para a mesa e continuou – Peço encarecidamente que a es-
crivã não inclua estas minhas últimas frases nos autos, foi
apenas um devaneio de minha parte.
— Escuta, o que está acontecendo aqui? – indagou
Beto olhando diretamente na direção de Vidigal.
— Roberto Castrini Montóquio, o senhor é acusado
pelo assassinato de Ataliba Albumnigrum da Mooca.
— Como? Eu sou o que?
— O senhor está sendo acusado pela morte de Ataliba
Albumnigrum da Mooca. O senhor deseja se manifestar ou
prefere chamar seu advogado?
— Que advogado? Eu não matei ninguém!
— O senhor foi visto ontem na Rua do Hipódromo,
caminhando em direção à Rua Frei Gaspar e, na altura do
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número 1024 da mesma Rua do Hipódromo, o senhor
desferiu um golpe violento na vítima, o aposentado Ataliba
Albumnigrum da Mooca, enquanto este fazia sua caminhada
em direção à casa dos netos!
— Do que é que você está falando? Eu só chutei uma
pomba!
A frase de Beto provocou um alvoroço, as pombas
começaram a voar e gorjear de um lado para outro. O jovem
se encolheu e se protegia de medo com os braços sobre
a cabeça e as pernas junto ao corpo, ao mesmo tempo em
que tentava ver o que estava acontecendo.
— Silêncio! Ordem no recinto! – bradou do alto do
armário uma pomba. – Como magistrado deste caso, eu exijo
ordem no recinto!
As pombas se acomodaram em silêncio e a ave do alto
do armário se apresentou:
— Roberto Castrini Montóquio, creio que omitimos um
importante rito desde processo. Sou o magistrado Aurélio
Nigrumviridem de Butantã e devo conduzir um julgamento
justo e ordeiro deste vil caso. Peço aos demais presentes que
se comportem ou terei que pedir que se retirem. Por favor,
continuemos.
Beto não sabia para onde olhar e o que fazer, estava
em partes tomando noção de tudo que estava acontecendo,
aquilo ainda lhe parecia totalmente incompreensível.
— Isso é um pesadelo, eu quero acordar – disse Beto.
— Garanto que não é um pesadelo – respondeu o juiz.
número 1024 da mesma Rua do Hipódromo, o senhor
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— Bom, se todos estiverem de acordo, posso continuar?
– questionou o pombo promotor do caso – Vejamos, onde
parei? Ah, sim! O senhor confi rma então ter desferido um
golpe fatal sem possibilidade de defesa na vítima, o senhor
Ataliba Albumnigrum da Mooca?
— Espere, eu não sei. Eu não tinha intenção de
machucar ninguém – respondeu Beto.
— Responda! Foi ou não foi o senhor quem chutou
o senhor Ataliba Albumnigrum da Mooca?
— Meritíssimo! – interveio uma pomba branca no meio
das demais, antes que Beto respondesse qualquer outra
coisa – Peço a palavra.
— Ah, não! Ela de novo não! – reclamou Vidigal.
— Sim, com a palavra, a advogada Lucélia Amurusalbum
de Sumaré, representante da Anistia Internacional.
— Meritíssimo Doutor Vidigal, Sr. Roberto e demais
presentes. Gostaria de pedir que esta audiência fosse
suspensa uma vez que o réu não possui ainda advogado
constituído para a sua defesa, contrariando assim as leis
as quais tanto defendemos. Não podemos impedir este
indivíduo do pleno direito de defesa devidamente garantido
em nossa constituição.
— Não, espera aí, minha jovem, você ainda precisa
pousar em muito fi o para poder querer nos ensinar os ritos
de um julgamento honesto, – interveio Vidigal – além disso,
acho que você não deve estar familiarizada com as leis
e jurisprudências existentes que impedem um representante
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da família Columbidae em defender qualquer indivíduo de
outra espécie que tenha cometido o crime de columbicídio.
Finalmente iremos julgar um humano pelos seus atos contra
a nossa espécie. Já há decisão no Supremo Tribunal que
estabeleceu a nós o direito desse tipo de julgamento. Vocês
dos direitos columbídeos já deveriam saber disso. Hoje,
iniciamos o primeiro de muitos julgamentos.
— Nobre colega, gostaria de informar-lhe que estou
a par das decisões proferidas na última semana pelo Su-
premo Tribunal e é por este motivo que peço a indicação da
Doutora Madalena Caeruleusviridem de Santana, que está
aqui presente comigo, para esta audiência.
— Mas ela é uma maritaca! Isso é um absurdo! –
argumentava rispidamente Vidigal!
— A corte se opõe? – inquiriu Lucélia.
— Não há objeção desde que o réu aceite a indicação
da advogada. Sr. Roberto, o senhor concorda com a indicação
da Doutora Madalena como sua advogada perante este júri?
— Que loucura isso, – sussurrou Beto – de onde vieram
esses pássaros todos?
— Nós entramos pela janela do banheiro, mas isso não
é importante agora. O senhor aceita a indicação? – perguntou
novamente o juiz.
— Sim, se essa for a forma para acabar com esse
pesadelo, eu aceito qualquer coisa. – respondeu Beto balan-
çando a cabeça.
Eis que a maritaca saiu debaixo da mesa e falou:
da família Columbidae
23
— Prezadas e prezados companheiros de penas. Não
podemos continuar com este julgamento, meu cliente não
está ciente da legislação a qual se aplica a ele. Peço o adi-
amento deste júri até que estabeleçamos um acordo com
a espécie humana, quanto à correlação de nossas leis com as
leis deles.
— Isso é um absurdo! Esta maritaca não é nem
membro de nossa família! Ela desconhece por completo
a nossa história de sofrimento! Passamos anos tentando nos
defender desta espécie assassina e agora isso? Temos de dar
uma punição exemplar a este indivíduo! Columbicídio doloso
e com requintes de crueldade! Foi um membro de nossa
comunidade ontem, será necessário mais quantos amanhã?
A vítima já estava com idade avançada e ainda era portadora
de defi ciência visual! – retrucou Vidigal
— Espera! Como assim? Ele era cego? – perguntou Beto.
— Sim, mas não creio que isso o ajudará. – disse
Madalena.
— Sim, sim! Escuta, eu não sabia que ele era cego! Eu
chutei o pombo sim, mas não tinha essa intenção! Eu imaginei
que ele iria sair voando antes de acertá-lo!
— Ora! O senhor admite que teve intenção de atingi-
-lo então? – raivosamente disse Vidigal
— Não, eu queria assustá-lo! Eu pensei nele como uma
bola, num ia ser um pombo sem asa, mas sim um lançamento
pro cabeceio.
As pombas e os pombos naquele quarto gorjearam ab-
24
surdamente quando ele, Beto, disse a expressão futebolística.
— Sr. Roberto, – interferiu o juiz – gostaria de lem-
brá-lo que esta expressão que utilizou agora há pouco
é considerada uma ofensa gravíssima para a nossa espécie.
O senhor consegue imaginar como nos sentimos quando
escutamos “pombo sem asas”? É como se alguém de nossa
espécie dissesse a outro “vou me sentar naquela pedra que
é mais agradável, é como um humano sem braços”. Por favor,
evite este tipo de comportamento.
— Perdão senhor juiz. Eu não quis ofender ninguém.
Acontece que eu não queria machucar o pombo.
— Mas machucou! Se não foi um columbicídio doloso,
temos então, aqui, neste momento, a declaração do próprio
réu que assume um columbicídio culposo. Sem contar que
ainda lhe devem ser imputadas as acusações de ameaça
a outros dois indivíduos que o seguiram na noite de ontem.
— Espere, – interrompeu Madalena – como assim?
Quem o seguia e com que autorização?
— Não, veja bem. Não disse que alguém o seguia, era
uma espécie de investigação particular. Ninguém o seguia,
veja só, não é esse o caso em questão. – Vidigal tropeçava
desconcertado em suas palavras.
— Sim! Duas pombas ou pombos, sei lá! Elas me
seguiram ontem na faculdade e no trem! Eu me senti
ameaçado por elas! – gritava Beto.
— E o senhor pode nos dar uma descrição das mesmas
ou nos indicar se elas estão presentes? – disse Vidigal com
surdamente quando ele, Beto, disse a expressão futebolística.
25
um tom maliciosamente cruel.
Beto percebeu que se tivesse que descrever uma
pomba não conseguiria dizer nada além da cor das suas asas.
Para ele, eram todas iguais. Não sabia quase nada sobre
pombas, lembrou-se apenas de uma aula de biologia na
época de colegial.
— Espécies invasoras. – falou Beto ao se lembrar da
única coisa que aprendeu nas aulas de biologia na escola, de
cabeça baixa. Foi então que olhou para Vidigal e continuou –
Vocês são espécies invasoras!
— Meritíssimo, retiro meu pedido de adiamento do
júri e peço a anulação de todas as acusações que são feitas
ao meu cliente! – disse a maritaca.
O quarto fi cou em polvorosa, as pombas se mexiam de
um lado ao outro e gorjeavam entre si. Vidigal se aproximou
de outras pombas, parecia que perguntava a seus colegas
sobre o que fazer. O juiz pedia silêncio até que, cansado
de não ser escutado, bateu asas e sobrevoou o cômodo
esbravejando palavras de ordem. Finalmente as pombas se
aquietaram e o juiz então pôde falar.
— A situação é delicada. Não podemos arquivar mais
um processo. Ele assumiu que realmente tentou contra
a vida de um membro de nossa espécie.
— Sim meritíssimo, mas como bem colocado pelo meu
cliente, a sua espécie é uma espécie invasora ao habitat dele.
— Veja, não é bem assim. Nós fomos trazidos à força
pelos antepassados dele, – respondeu o juiz – este também
26
é nosso habitat.
— Meritíssimo, se há alguém nessa sala que não
é invasora desse habitat sou eu, uma Pionus menstruus,
e nem por isso estou aqui pedindo a condenação dele ou
a retirada de sua espécie de nossa comunidade. Busco
apenas uma saída harmoniosa para tal situação e que seja de
bom contento a todos. – defendia Madalena.
— Meritíssimo, vamos voltar ao caso. O que a minha
colega de profi ssão pretende é causar um alvoroço des-
necessário. – retrucou Vidigal.
— A situação é complexa, eu compreendo a colocação
da defesa, de que nossa espécie é considerada como
invasora, mas não podemos também aqui nos esquecer
que, ao longo dos anos, temos sido caçados e exterminados
de forma impiedosa. Não vamos, agora, iniciar uma guerra
entre as espécies.
— Na hora de cagar na gente vocês não pensam nisso
– disse Beto provocando risadas nos presentes.
— Silêncio! – gritou o juiz – Vamos manter a ordem!
Sr. Roberto, este é um caso que muito nos incomoda em
nossa fi siologia, compreenda que não é de forma proposital.
Pedimos desculpas por isso. Voltemos a nos concentrar no
caso. Temos que ter uma solução que atenda aos anseios de
todos os membros de nossa comunidade, sejam maritacas,
pombas ou humanos. Sim, somos uma espécie invasora,
tanto quanto a espécie humana e, nesse sentido, não posso
considerar válido o pedido de arquivamento do processo.
é nosso habitat.
27
O que a acusação tem a dizer?
— Meritíssimo, a promotoria pede a aplicação da
condenação máxima, ou seja, que o réu seja bicado, aqui
e agora, até a morte!
— Isso é um absurdo! – gritou Beto.
— A defesa, o que propõe? – perguntou o juiz.
A maritaca voou até próximo de Beto e falou algumas
palavras em seu ouvido. Ele escutava e concordava com
a cabeça, parando e realizando perguntas para a maritaca
também sussurrando próximo de sua cabeça. Quando
pareceu haver entre eles um consenso a maritaca se dirigiu
ao juiz.
— Meritíssimo, considerando que, caso meu cliente
seja condenado pelas leis columbianas e, deste modo, leis de
uma espécie invasora, eu, como única representante de uma
espécie legitimamente nativa terei de levar o caso ao Tribunal
dos Andes, e como o magistrado bem entende, os condores
possuem uma visão ampla destes assuntos internacionais.
Eu e meu cliente compreendemos a gravidade dos atos
cometidos por ele e, desta forma, pedimos a adoção do
castigo de complacência prístina, ou Lei de Jubileu, e que, se
proferida por esta corte, represente assim também um sinal
para que todas as nossas espécies possam conviver de forma
pacífi ca, na qual incluo, aqui, que abro mão da prerrogativa
que tenho de levar a acusação de invasão de território por
parte das pombas aos domínios das maritacas.
— Mas o que a advogada pede já caiu em desuso! –
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retrucou Vidigal – ninguém cumpre essa lei.
— Coloco-me à disposição para que, junto com
meus pares, possamos vigiar o réu pelo período designado
a cumprir a sentença com a condicionante de que, caso haja
descumprimento da parte dele na execução da mesma,
iremos cantar todas as manhãs em sua janela pelo resto de
seus dias. – completou Madalena.
O juiz olhou para os lados, deu um sobrevoo rápido
sobre o quarto e voltou para a sua posição inicial.
— Considerando as colocações feitas por ambas partes
e objetivando uma melhor convivência entre as espécies,
condeno o réu Roberto Castrini Montóquio a quinze anos
de complacência prístina a serem cumpridas ao menos uma
vez por semana. No descumprimento de tal condenação, fi ca
o réu sujeito a ouvir o canto das maritacas diariamente, pelo
resto de sua vida. Declaro o caso encerrado.
O juiz proferiu as últimas palavras e saiu voando
escoltado por outros quatro pombos. Vidigal reclamava
alegando que aquilo era um absurdo, que se não fosse por
aquela pombinha branca metida a pacifi sta, a justiça teria
sido feita, que ela era uma corrompida pelos humanos, pois
era bem vista pelos homens e mulheres, só por conta de
sua cor. Que ele pessoalmente iriar levar o caso a instâncias
superiores e, lamuriando, saiu batendo asas.
Aos poucos, todas as pombas foram embora e a mari-
taca disse que esperava que Beto cumprisse com o acordo.
Ele disse que sim, pois além de ter medo de morrer, preferia
29
cumprir a sentença a ter que acordar todos os dias com um
bando de maritacas gritando em seus ouvidos pelo resto da
vida. Ela riu e disse que sabia o quanto aquilo era incômodo
aos humanos. Combinaram de se ver no próximo sábado
e despediram-se.
E assim, por quinze anos, semanalmente, Beto se
dirigia até o Parque da Água Branca, ou algum outro parque
ou praça que pudesse ir. Sentava-se ao lado de algum idoso,
abria um saco de papel, mostrava o conteúdo e muitas vezes
estabelecia um diálogo mais ou menos assim:
— De quanto tempo é a sua pena?
— Quinze anos, e o senhor?
— A vida toda.
— Nossa, não quero nem saber o que você fez então.
— Pois é. E quem te vigia?
— Aquela maritaca ali no alto da árvore. E você?
— Já estou na terceira geração de uma família de
sabiás. Até me acostumei. O que você trouxe hoje?
— Um pouco de milho e farelo de pão de forma.
— Ah, bom. Eles gostam.
E assim enchia um punhado nas mãos e jogava ao chão,
satisfeito com a punição que cumpria. Não foram poucas
as vezes que era chamado de nojento por transeuntes que
passavam por ele. Não gostava quando o chamavam de
louco, se soubessem o que ele viveu naquelas horas preso
naquele quarto, aí sim, diriam que ele era insano.
31
Eram 11:35 da noite de mais um sábado que se
encerrava, e no qual eu estava em frente ao computador,
pensando em como continuar meu trabalho. Não considero
uma das atividades mais reconfortantes trabalhar nas
noites de sábado, em geral, as pessoas que conheço
buscam descansar, se divertir ou aproveitar as horas dos
fi nais de semana com momentos de prazer. Pra mim, era
só mais um dia, ou noite, e já me faltavam horas para
terminar aquela tarefa. Sei que se eu fosse um pouco mais
responsável, teria preparado aquela encomenda durante
a semana, acontece que o calor pelo qual eu e toda a cidade
passamos naqueles dias me impedia de executar qualquer
coisa. Dormia durante o dia e tentava sobreviver durante
a noite. As janelas do meu quarto e sala não são das mais
arejadas, são assim nos prédios pequenos e antigos, sem
portaria, sem vento, sem luz.
Indo contra as regras que estabeleci em meu modo
de trabalhar, coloquei um disco para tocar e passei a me
distanciar de tudo ao meu redor. Isso não estava certo, não
no meu tipo de trabalho. A música serve para alterar as
minhas ideias e me deixar desatento, não são os versos que
me fazem refl etir e sim as melodias, a harmonia. A música
é como uma droga na minha vida e chego a desconfi ar que
se eu pudesse colocar certos LPs ou CDs debaixo da língua,
com certeza teria alucinações reconfortantes. Eu estava
realmente fazendo tudo errado.
Procura-se um novo domingo
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Fiquei olhando para a tela, passeando com o mouse
e deixando o cigarro queimar sozinho entre o teclado e mi-
nha caneca de água gelada. Foi quando tocou o interfone
que percebi que realmente estava alheio a tudo e que
era hora de me concentrar. Esqueci a música, a fumaça
e acordei de meus devaneios, achando que tinha o controle
sobre todas as coisas da minha vida. Joguei meu corpo para
trás, empurrando a cadeira para poder me levantar e ir em
direção ao interfone.
— Alô. – disse tentando me manter em meus
pensamentos.
— Alô. É da casa do Luizinho?
Luizinho? Há muito tempo não me chamam assim!
Não me parecia ser a voz de nenhuma parenta ou antiga
amiga. A única pessoa a me chamar assim era minha prima
mais velha. Era uma voz feminina, que praticamente parou
o meu tempo.
— Sim, é o Luiz quem está falando.
— Aloísio?
— É, Luiz.
— Ah! Luiz!
— Isso, quem é?
— É a Fernanda.
Poucos segundos e eu sentia aquela voz suave atra-
vessando minha noite como uma lufada de ar que por muito
eu desejava. Acontece que eu não fazia ideia de quem era
essa Fernanda que estava três andares abaixo do meu, de
pé, na porta do meu prédio. No curto hiato de segundos,
33
me lembrei de uma ex-namorada que deixei no interior,
mas não, não podia ser ela. A voz da Fernanda que conheci
era muito infantil e sem sensualidade. Ela era toda infantil
no comportamento, apesar do corpo de mulher formada.
Senti que precisava matar minha curiosidade e fazê-la
subir, ou então descer para ver quem era.
— Fernanda, quem você está procurando?
Precisava manter aquela conversa. O que eu precisava
mesmo era vestir algo mais apropriado do que apenas uma
bermuda velha e rasgada. Eu já estava acostumado a me
vestir com trapos quando fi cava em casa, mas a possibilidade
que a moça do outro lado quisesse me ver exigia um pouco
mais de modos da minha parte. Se existisse um aparelho
de interfone sem fi o, com certeza eu me trocaria enquanto
falava com ela. Quem era ela? Quem sabe ela fosse uma
antiga amiga de quem não me lembrava ou uma ex-aluna
da Faculdade em que lecionei. Por que nunca reparei em
minhas alunas como mulheres também?
— Eu tô procurando o Aloísio.
A resposta em tom suave foi um golpe para abafar
ainda mais a minha noite. Fiquei imaginando todo um
cenário de cumprimentos, troca de lembranças, de fatos,
sentados no sofá, enquanto beberíamos algo. Respondi
enfraquecido por uma leve gagueira que me toma quando
sou surpreendido por notícias bruscas.
— Aqui não mora nenhum Aloísio.
— Não é o Luiz que mora com o Aloísio?
O vazio me tomou a mente. Maldita falta de cria-
34
tividade! Para prolongar aquela conversa eu tentei apelar
através da realidade que me incomodava.
— Não, aqui não mora nenhum Aloísio, eu moro sozinho.
Há anos eu moro sozinho. Desde que nos separamos
na ponte da antiga usina. Me pergunto por que mesmo nos
separamos? O motivo real me machucava mais que uma
farsa descarada. Optei por me dedicar ao meio acadêmico
e queria me concentrar nos títulos e nos trabalhos cien-
tífi cos. Rompi com o afeto para alimentar o ego. Na época,
também me escorei num incidente entre ela e a família de
meu irmão. Somente anos depois vim a descobrir que, na
verdade, tudo não passava de uma mentira.
— Você não é o Luiz afi nal?
— Sou sim, mas não conheço nenhum Aloísio.
— Sabe em que apartamento ele mora?
— Não, me desculpe.
— Eu que peço desculpas, tchau!
— Por nada.
Enquanto colocava o interfone no gancho, pude
ouvir ainda aquela voz doce dizer que tinha chamado pelo
número errado. Talvez ela estivesse com alguma amiga,
não sei. Senti-me mais sozinho do que antes, apaguei a luz
do corredor e voltei a sentar em frente ao computador.
A noite seria longa e eu ainda tinha muito trabalho a fazer,
mas não conseguia tirar os olhos do interfone próximo à
porta de entrada do apartamento. Joguei meu corpo para
trás, empurrando a cadeira para poder me levantar e ir em
direção ao interfone.
35
— Alô! – falei sem paciência.
— Alô. É da casa do Luizinho?
Luizinho? Ninguém mais me chama assim.
— Aqui é o Luiz quem está falando.
— Aloísio?
Odeio quando confundem meu nome. Não acho
que tenho problemas de dicção e nem acho meu nome
complicado. Não há semelhança entre Luiz e Aloísio. Será
que não fui claro quando falei Luiz. Por que certas pessoas
nunca entendem o que eu falo?
— Luiz, entendeu?
— Ah! Luiz!
A burrice e a desatenção das pessoas não me sur-
preendem mais, apenas me irritam. Por que ela estranhou
em descobrir que me chamo Luiz, se me chamara de
Luizinho?
— Isso, Luiz. Quem é?
— É a Fernanda.
— Fernanda, quem você está procurando?
— Eu tô procurando o Aloísio.
Se nem ela sabe quem procura não serei eu quem
irá ajudá-la. Primeiro Luizinho e depois Aloísio. O que ela
quer? Tenho muito mais com o que me preocupar do que
com pessoas perdidas no meio da noite.
— Olha, aqui não mora nenhum Aloísio.
— Não é o Luiz que mora com o Aloísio?
— Escuta, acho que você ligou errado, eu moro sozinho.
Pronto! Espero ter sido claro o sufi ciente para me
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livrar desse contratempo.
— Você não é o Luiz afi nal?
— Sou e não conheço nenhum Aloísio.
— Sabe em que apartamento ele mora?
— Não, desculpe não poder ajudar. Tchau!
— Eu que peço desculpas, tchau!
— Passar bem.
Enquanto colocava o interfone no gancho pude ouvir
ainda ela dizer que tinha chamado pelo número errado.
Era uma voz suave, talvez estivesse levemente bêbada.
Por que as pessoas não se programam direito para fazer as
coisas? Eu, quando saio de casa, sempre me programo, sei
exatamente aonde vou e com quem quero falar. Não fi co
em pé no meio da rua, em frente aos botões de interfones,
apertando qualquer um e incomodando os outros no meio
da noite. Esse tipo de comportamento me enerva mais
do que o normal. Se bem que meu desgosto maior era
o trabalho que tinha para concluir. Apaguei a luz do
corredor e voltei a sentar em frente ao computador.
A noite seria longa e eu ainda tinha muito trabalho a fazer,
mas não conseguia tirar os olhos do interfone próximo
à porta de entrada do apartamento. Fiquei alguns segundos
assim até jogar meu corpo para trás, empurrando a cadeira
para poder levantar.
— Alô? – perguntei sem esconder meus pensamentos
distantes.
— Alô. É da casa do Luizinho?
Luizinho? Muitos anos já haviam se passado desde
37
a última vez que alguém me chamou assim. Quando ainda
era criança, sempre escutava minha mãe me chamando
assim pela janela para que fosse almoçar. Subia as escadas
correndo, dando passadas que pulavam degraus. Sabia que
ela assim me chamava por carinho, como se quisesse que
eu fosse o primeiro a chegar na cozinha de mãos lavadas
para poder me servir melhor. Era mais uma forma de ela
me agradar naqueles tempos difíceis. Como eu gostava de
ouvi-la me chamando assim. Acontece que a moça no outro
lado do interfone tinha uma voz carinhosa também, suave,
mas diferente da voz materna, era um frescor que vinha
pelos fi os e me chegava ao corpo através da audição, era
um som que me trazia aos olhos uma mulher bonita.
— Sim, é o Luiz quem está falando.
— Aloísio?
Eu não conheço nenhum Aloísio. Pelo visto, mais um
engano, um desencontro em minha vida. Eu já até pensava
que a pessoa do outro lado da linha, na porta de meu
prédio, fosse alguém que quisesse me rever. Aquele tom
tão suave e bonito não era pra mim. Com certeza deveria
ser uma bela mulher.
— Não, desculpe. Meu nome é Luiz.
— Ah! Luiz!
Eu conseguia ver a roupa que ela usava. As poucas
palavras me traziam a imagem dela ali com um uma saia
comprida de tecido leve, uma blusinha de alça, sem mangas,
um colar no pescoço. Acho que não era uma mulher muito
alta, talvez com 1,65 e cabelos não muito compridos.
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A pele tinha um bronzeado de quem anda muito a pé e com
os braços expostos.
— Isso, quem está falando?
— É a Fernanda.
Fernanda? Me recordo de poucas Fernanda. Tive
uma amiga do tempo de colégio, mas a voz dela era
completamente outra e, além disso, aquela colega de
escola tinha um corpo diferente do que eu imaginava.
Não, não era a Fernanda do colegial, ela não teria motivos
para vir aqui me procurar. Namorei uma Fernanda, uma
garota um tanto quanto infantil e que também não tinha
essa voz tão limpa, adulta. Alguma ex-aluna da faculdade
onde lecionei? Não me recordo de uma voz doce e tão rica
como aquela. Seria alguém que conhece o meu trabalho?
Quem sabe algum amigo ou amiga falou de mim e ela veio
me conhecer? Talvez ela tenha perguntado se eu era o tal
Aloísio porque confundiu o que disse. Interfones mudam as
vozes e podem dar estas impressões erradas.
— Fernanda, desculpa perguntar, mas quem você
está procurando?
— Eu tô procurando o Aloísio.
Aloísio? Defi nitivamente não é comigo com que ela
quer falar, se bem que isso não prova nada, mesmo que
ela não me conheça eu poderia descobrir mais sobre essa
mulher de voz tão agradável e que fi nalmente estava
transformando o meu sábado. A minha maior vontade
é descer as escadas correndo e ver o rosto dela. Poderia
me apresentar, dizer quem sou, talvez ela já tivesse ouvido
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falar de mim, trocaríamos cumprimentos, eu a convidaria
para irmos até um bar próximo de casa e que fi ca aberto
durante a madrugada. Era um ambiente com música boa,
bem arrumado. A noite estava quente e poderíamos nos
refrescar com uma boa bebida gelada entre uma boa
conversa. Estava sem saber o que fazer e respondi com
palavras que saíram meio gagas.
— Desculpa, infelizmente aqui não mora nenhum
Aloísio.
— Não é o Luiz que mora com o Aloísio?
— Não, perdão, aqui não mora nenhum Aloísio, eu
moro sozinho.
Há anos eu moro sozinho. Nenhum Aloísio, nem
Fernanda, nem ninguém divide esse quarto e sala comigo.
Desde que me separei dela, desde o dia em que saí da
usina e a deixei chorando na outra margem do rio. Eu vivo
sozinho. Éramos felizes, íamos ao teatro, nadávamos nus
na cachoeira no meio da semana, fi cávamos por horas na
ponte observando a correnteza, falando de futuro. A ponte
e o futuro. Acho que havia alguma ligação entre as duas
coisas. Nos separamos na ponte que ligava a cidade com
a velha usina. A mesma ponte em que trocamos tantos
beijos. Eu acreditava na obrigação moral de me empenhar
mais ao trabalho e ao meio acadêmico, fui muito imaturo,
ou maduro demais, não sei. Ela logo se tornaria engenheira
e eu, como professor, tentava me concentrar nos títulos
e nos trabalhos científi cos. Decidi romper com qualquer
laço afetivo que tinha por ela. Era mais fi rme que um forte
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laço, foi um rompimento difícil para ambos, mas logo
o trabalho ocupou minha vida, assim como as pessoas a
quem passei a educar, atender em consultas, conversas
informais. Tantas pessoas se passaram e nenhuma delas
preencheu aquele vazio.
— Você não é o Luiz afi nal?
— Sou sim, mas não conheço nenhum Aloísio.
— Sabe em que apartamento ele mora?
— Não, me desculpe, queria poder ajudar, mas não
conheço nenhum Aloísio aqui no prédio.
Que voz! É o tom mais carinhoso, delicado e presente
que eu escutara em minha vida! Eu tinha de conhecê-la,
confi rmar as minhas impressões. Os três andares que nos
separavam não impediam que eu tivesse certeza de que
aquela era a voz que eu buscava, ela era como eu queria que
fosse, com certeza era uma mulher inteligente, decidida,
bonita. Eu a ajudaria a encontrar o Aloísio, seja ele quem
fosse, mesmo que fosse um ex-namorado, um inimigo, um
grande amigo. Bastava eu me trocar rapidamente e descer
aquelas escadas. Que se danem as imposições da sociedade!
Não foi contra certas imposições que eu apresentei uma
peça de teatro no meio da rua? Não foi contra as imposições
da Fundação que mandei os diretores para os quintos dos
infernos com suas regras ultrapassadas? Não foi contra
as imposições de retrógrados que eu dedicava todas as
minhas capacidades ao trabalho? Eu me preparava para
dizer que iria descer quando fui interrompido por mais uma
frase sutil e penetrante.
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— Eu que peço desculpas, tchau!
— Não tem problema, tchau.
Enquanto colocava o interfone no gancho, pude ou-
vir ainda aquela voz doce dizer que tinha chamado pelo
número errado. A voz dela manteve-se como um carinho
em meus ouvidos o tempo todo. Devia estar sozinha, talvez
com vergonha por ter interrompido um estranho a essa
hora da noite. Apaguei a luz do corredor e não consegui
me sentar em frente ao computador. A noite seria longa
e eu ainda tinha muito trabalho a fazer, mas não conseguia
tirar os olhos do interfone próximo à porta de entrada do
apartamento. Calcei meus chinelos, peguei uma camisa
jogada sobre a cama e saí correndo em direção à porta.
Desci as escadas como fazia quando criança, pulando
degraus. Abri o portão do prédio e gritei:
— Fernanda!
43
O dia já havia se iniciado quando o primeiro indivíduo se
deparou com aquela torre de concreto, que brotara
próxima da estrada por onde andava. Seu tamanho
impressionava pelo vazio a sua volta, de fato não era
baixa, pois tinha a mesma altura de uma árvore comum, porém,
muito mais larga. Estava no descampado entre as indústrias e as
casas da cidade e não muito longe da via. O caminhante que a obser-
vava estranhou aquela construção de concreto. Era seu caminho
Perlavado
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diário e nunca a avistara, pensou se era possível que
tivesse sido erguida durante a noite. Uma curiosidade intrínseca
aos homens o fez desviar seu caminho e dirigir-se a ela.
O mato em volta ia se tornando cada vez mais rarefeito até
que somente a poeira de uma terra vermelha se fazia manto
entorno daquele cilindro cinzento. Aproximou-se mais e viu que,
em volta daquela coluna, a terra estava preta, dura, compacta.
Tinha um aspecto queimado. Não havia uma única ferramenta
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ou sobra de material de construção. Riu de si mesmo
ao pensar que talvez aquilo tivesse brotado do nada
e sentiu-se confuso, as construções de concreto eram praticamente
inexistentes naquela cidade. Deu a volta e, numa iniciativa até
infantil, bateu com os dedos do punho fechado naquela estranha
construção.
— Por favor, me ajude! – soluçou uma voz envergonhada de dentro
da coluna.
O caminhante deu passos assustados para trás. Seus olhos se
45
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arregalaram, um frio lhe subiu a pele e num movimento
agressivo foi à frente novamente, colocando seu ouvido
sobre o frio do cimento e gritou por mais informações.
— Quem está aí? Como você foi parar aí?
— Eu não sei! Eu não sei de nada. Por favor, tire-me daqui.
– respondeu a voz úmida após um curto silêncio.
— Calma, calma! Eu vou tirar você daí.
Ele se afastou da coluna e começou a procurar por algo que
pudesse utilizar para bater e quebrar aquela peça de concreto.
Não havia nada a sua volta além do mato baixo. Caminhou
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47
em diversas direções e não sabia o que fazer. Decidiu
que era melhor retomar o trajeto de volta à estrada,
não sem antes se aproximar daquela obra soturna
e dizer que iria voltar com ajuda e para que não tivesse medo.
Correu em direção à via e encontrou com o carro da Companhia
Empresarial de Mercadorias. Dele, desceu um homem com sua
camisa por dentro das calças vincadas e uma gravata que não
escondia a farta alimentação a qual estava acostumado. Ríspido,
se dirigiu ao homem que corria e disse:
— Eu estava a sua procura lanterneiro! Onde estava você para se
atrasar tanto assim?
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— Senhor, preciso de sua ajuda! Uma pessoa na coluna!
Preciso ajudá-lo!
— Não encoste em minha camisa! Por que está com as
mãos sujas de terra? Qual é a justificativa para o atraso?
— Senhor gerente, precisamos ajudar a pessoa que está
presa na coluna!
— Que insanidade é essa homem? Está se entregando ao licor
logo pela manhã?
— Ali, ali! A coluna! Tem uma pessoa presa nela.
Foi então que o gerente viu a coluna que estava do outro lado da
estrada.
— O que é aquilo? – sussurrou o gerente com um espanto que lhe
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saltava pelos poros – Estão invadindo nossa propriedade.
Temos que fazer algo.
— Sim senhor gerente, eu estava a caminho da empresa.
— Não! – interrompeu o gerente – Você deve continuar
aqui. Não deixe que ninguém se aproxime daquilo.
— Mas e a pessoa que está presa lá?
— Tem uma pessoa amarrada lá? Homem ou mulher?
— Eu não sei se homem ou mulher. Não tem ninguém por fora,
a pessoa está dentro da coluna.
— É pior do que imaginei. – disse o gerente com a mão protegendo
os olhos dos raios de sol e, dirigindo-se ao carro, falou ao lan-
terneiro – Fique aqui, tome este revólver e atire em qualquer um
que tentar se aproximar daquilo. Esta é uma área que pertence aos
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50
planos de expansão da Companhia. Irei até a cidade para
resolver este caso. Não se aproxime mais daquilo. Não dê
ouvidos a quem o chamar. Não sabemos se é alguém em
quem podemos confiar.
— Sim senhor.
O lanterneiro esperou o carro sair em disparada, sentou-
-se na beira da estrada de terra e ficou a olhar aquela
coluna, que agora lhe parecia um pouco maior do que antes. Ficou
assim por alguns minutos até ter o fôlego reestabelecido. Seus
pensamentos agora estavam mais pesados, confundindo-o mais
do que no primeiro momento que tinha avistado aquela bisonha
protuberância na paisagem. Mantinha ainda um desejo de tentar
socorrer imediatamente quem quer que seja que estivesse ali
preso, mas também estava incomodado com a possibilidade de
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ter encontrado uma pessoa transgressora, alguém que
estivesse tentando causar algum distúrbio aos bons
moradores da cidade.
Ergueu-se e foi em direção da peça e confirmou o que
apenas aparentava aos olhos distantes, de fato ela havia
crescido um pouco mais e agora a mancha no solo já
era maior, com raios e trincas que saiam em diferentes
direções. Não se aproximou mais e, de onde estava, gritou:
— Qual é o seu nome, quem é você?
— Me ajude, por favor.
— Me diga quem é você e como foi parar aí dentro! Eu posso ajudá-
-lo, mas preciso saber com quem estou falando.
Não obteve resposta e isso o irritou.
— Olhe, se você não quer me dizer qual é o seu nome é porque
boa coisa não fez para estar aí. Eu não vou ajudar alguém que está
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querendo causar problemas. – e voltou em direção da
pista de terra.
Viu o carro de emergências da Companhia Empresarial se
aproximando, escondeu o revólver e manteve-se em pé,
junto à borda da pista. Quando o veículo parou, desceram
alguns homens, todos paramentados com capacetes,
cordas, machados e outras ferramentas.
— Que bom que vocês apareceram. Agora poderemos
tirar quem quer que seja que está lá dentro.
— Você é o lanterneiro, certo? – disse o passageiro que vinha no
banco da frente do carro ao descer. Ainda sem esperar a resposta
continuou a falar – Me dê o revólver que o gerente lhe passou.
A situação vai sair do controle em breve e precisamos manter
a boa imagem da Companhia. Me dê a arma e vá embora.
— Mas eu quero ajudar.
— Escute, – interrompeu o homem – eu cuidarei de tudo a partir
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de agora. Se você quer saber então escute, o gerente
está vindo com um carro do Departamento de Saúde
e Ordem da cidade, você quer estar aqui quando os oficiais
começarem a fazer perguntas? Vá embora, nós vamos
tomar conta de tudo. Não se esqueça que, como chefe de
emergências da Companhia, eu sou seu superior e aqui
é uma área pública que está nos planos de expansão
da Companhia. Dessa forma, aqui se valem as regras da
Companhia.
Sem responder e agora um pouco receoso, mesmo
sabendo que não fizera nada de errado, o lanterneiro resolveu
entregar a arma. Timidamente perguntou:
— Eu devo ir pra onde?
— Vá para a Companhia, você é mais importante lá do que em
qualquer outro lugar.
O lanterneiro olhou uma última vez para a coluna, virou-se e foi
embora. Os homens que desceram do carro já estavam em volta
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da torre armando mesas, cadeiras e uma tenda para se
proteger do sol. O chefe de emergências dirigiu-se ao
motorista do carro e ordenou que não saísse dali e que,
ao menor sinal de aproximação de alguém avisasse a ele.
Terminou de dar as ordens e viu que alguns carros vinham
da cidade em direção a eles.
Os carros foram parando e obstruíram a pista por completo.
O primeiro carro a estacionar bruscamente pertencia ao
Jornal de Comunicações da Cidade. Dois homens foram
descendo e já começaram a caminhar em direção à torre,
quando foram impedidos pelo chefe de emergências da
Companhia. Na sequência, o carro do Departamento de Saúde
e Ordem parou e dele saíram cinco homens, sendo que dois destes
foram em direção dos jornalistas e os obrigaram a voltar para o meio
da pista. Os demais se juntaram aos empregados da Companhia
que montavam o acampamento. O terceiro carro trazia o gerente
da Companhia e o comissário de assuntos públicos da cidade,
o motorista desceu do veículo e disse ao chefe de emergências
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que ambas autoridades queriam falar com ele.
— Senhor gerente, senhor comissário. Estou aqui para
servi-los.
— Disso sempre soubemos. – disse o gerente – O que
nós queremos é saber se já tem informações sobre essa
confusão.
— Nada ainda senhor, estou iniciando os trabalhos.
— Pois corra, esses inconvenientes do Jornal de Comu-
nicações não perdem por uma chance de espalhar medo
e confusão no povo.
— Sim senhor, farei o que for possível para afastá-los.
— Pois bem, agora vá e resolva essa bagunça! – disse
o comissário, interrompendo o diálogo dos dois.
O chefe de emergências então caminhou até a barraca e começou
a conversar com os homens da Companhia e do Departamento
de Saúde e Ordem, entre eles estava o interventor, autoridade
máxima do departamento. Trocaram cumprimentos e perguntaram
aos homens que já estavam lá se ouviram ou viram algo. Todos
disseram que nada havia acontecido com exceção da mancha
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escura no solo, que parecia crescer aos poucos. O chefe
e o interventor então começaram a debater sobre o que
fazer. Primeiramente, iriam fazer uma inspeção no entor-
no para ver se encontravam vestígios de quem fizera
aquela obra e como ela fora feita. Ordenaram que um dos
funcionários da Companhia buscasse uma escada para que
subisse no alto da torre. Todos começaram a tomar suas
posições quando ouviram a voz de dentro da construção.
— Por favor, eu quero sair. Me ajudem a sair daqui.
Imediatamente, o interventor direcionou-se à torre e co-
meçou a falar.
— Quem está aí? Como você fez essa torre? Pra que você
fez isso?
— Por favor, tire-me daqui, – respondeu a voz – me ajude.
— Quem é você? Como e por que você fez essa torre?
— Que torre? Tire-me daqui, por favor.
— Como você foi parar aí dentro?
— Eu não sei.
— Quem é você?
— Por favor, eu estou cansado – disse a voz e se silenciou, não
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respondendo mais nada que o interventor perguntava.
O interventor chamou seus homens e também os fun-
cionários da companhia, deu ordem a eles que pegassem
picaretas e marretas para começarem a quebrar as pa-
redes daquele cilindro de concreto. Imediatamente, os
homens se colocaram em volta da construção e, assim
que desferiram os primeiros movimentos na tentativa de
quebrar aquela peça, um grito seco e estrondoso de dor
saiu, ecoando repentina e initerruptamente de dentro
dela. As pessoas na pista que observavam tudo com certa
tranquilidade correram para se proteger atrás dos carros,
como se fugissem do estouro de uma manada de bois.
Os homens com as ferramentas perderam o equilíbrio
e caíram ao mesmo tempo em que a torre claramente
soerguia mais em direção ao céu e o chão se tornava mais duro,
seco e de aspecto queimado, como um grande piso de carvão.
Todos se assustaram, nunca viram ou ouviram falar de algo como
aquilo. A coluna que se levantava rasgando o solo parecia mais
alta agora do que os postes de eletricidade e luz da cidade, na
verdade, agora já parecia tão alta quanto o prédio da Associação
de Mercadores e Monetaristas, que era a mais elevada construção
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urbana com seus três amplos andares, sem contar os
galpões principais e as chaminés da Companhia.
— Corram, voltem para os carros! – ordenou o interventor.
— Vamos, temos que noticiar isso! – disse o jornalista ao
seu colega e, assim que entraram no carro, deram meia-
-volta e foram para a cidade.
— Essa desgraça vai assustar o povo! – falou o comissário
ao gerente – Eu não vou sofrer as consequências disso,
o senhor é quem vai!
Quando o barulho cessou os homens ficaram de pé,
olhando para aquela estrutura de concreto. Estavam
todos desconcertados e intrigados com o que viram e ou-
viram. O comissário desceu do carro e passou a dar
ordens ao interventor e ao chefe de emergências. Queria
saber o que tinham feito ali para que aquilo acontecesse,
precisava de uma solução rápida, pois os jornalistas estavam
voltando para a cidade e logo iriam espalhar a notícia de que uma
torre de concreto com uma pessoa dentro havia surgido naquela
área e que, para piorar, parecia algo vivo e incontrolável.
Os dois não sabiam o que responder, estavam assustados e tam-
bém acuados pelos gritos do comissário. Pediam desculpas,
mas não sabiam explicar o que estava acontecendo. Tentavam
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justificar que eram apenas técnicos subordinados de seus
departamentos e que nunca haviam visto algo como
aquilo, e que de nenhuma forma eram responsáveis
pelo ocorrido. Aos poucos, o comissário foi se acalmando
e caminhava de um lado para o outro, enquanto lamuriava
sobre os riscos aos quais estava correndo, uma vez que
era autoridade máxima daquela comunidade pacífica,
e também ordenava que pensassem em algo para resolver
o problema. O chefe de emergências então se prontificou
a ir novamente em direção à coluna de concreto e tentar
obter mais informações com o encarcerado. Todos con-
cordaram que apenas ele assim o fizesse para que não
houvesse riscos aos demais.
Enquanto todos os outros estavam posicionados em pé
junto à pista, o chefe de emergências se aproximou da
construção e disse:
— Escute, quem quer que seja você, estou aqui para resolver este
problema que está nos causando. Eu preciso saber o que fazer,
mas você não está colaborando. Você pode me explicar como fez
isso agora há pouco conosco?
— Por favor, me ajude – respondeu a voz.
— Olhe, eu não posso ajudar alguém que não está me ajudando.
Você não me disse quem é, como foi parar aí, porque fez isso
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e ainda por cima tentou nos atacar agora há pouco.
— Eu não quero incomodar ninguém, por favor, me ajude.
— Vamos fazer assim, me diga o que está fazendo aí dentro.
— Eu estou quieto, vendo as luzes, só quero sair.
— Você pode me dizer como é aí dentro?
— Eu vejo o dia, distante, no alto. Só quero sair.
— Você vê o dia, é isso?
— Sim.
— Então há uma saída no topo?
— Por favor me ajude, estou cansado.
— Há um buraco no topo, é isso? Me diga se foi por ele
que você entrou?
O chefe repetiu essas perguntas mais algumas vezes,
mas não obteve respostas. A voz se calou e o membro
da Companhia então decidiu voltar em direção
aos homens na pista. Ele percebeu que a mancha
carbonífera do solo estava maior que antes e já atingia
o mato que circundava a torre. Ao se juntar aos demais, contou
tudo o que havia visto e escutado. Sugeriu que utilizassem
uma escada para chegar ao topo da coluna e então ver quem
estava ali dentro. Talvez, desta forma, pudessem resolver
pelo menos o problema do cárcere. No entanto, a escada
que trouxeram não era suficiente, teriam que buscar uma
outra maior e, por fim, decidiram buscar as duas escadas que
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a Companhia possuía para a limpeza das antigas cha-
minés, também trariam cordas e mais equipamentos.
O carro da Companhia então foi em sua missão. Agora
teriam de aguardar.
O problema da espera é o tempo. Um caminhão maior teria
de trazer as escadas, isso gastaria minutos preciosos que
seriam aproveitados pelo jornalista e quem quer que seja
que viesse com ele. Quanto mais tempo aquele agouro
não fosse resolvido, mais material a ser processado pelo
Jornal de Comunicações para o consumo das pessoas.
O comissário e o gerente sabiam que as pessoas da cidade
eram estranhamente curiosas e também temerosas
quanto ao novo. O sol já estava a pino enquanto todos
aguardavam, olhando nas direções dos dois destinos que
aquela estrada ligava, de um lado a cidade e do outro,
a Companhia.
Passado algum tempo, o carro do Jornal de Comunicações
apareceu no horizonte seguido por outros veículos.
O comissário imediatamente ordenou que o interventor e os
seus subalternos impedissem a aproximação de curiosos junto
à edificação. O gerente, por sua vez, determinou ao chefe de
emergências que ele e seus funcionários fossem em direção à
coluna e reorganizassem a situação. Era bom que ao menos
simulassem algum tipo de ação para que as pessoas pensassem
que algo estava sendo feito.
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Os carros chegaram e estacionaram na lateral da
pista. À frente de um bando de curiosos, formados por
diferentes membros da comunidade, vinha o jornalista.
Estavam lá o clérigo da cidade, os dois médicos mais
velhos do hospital, o juiz aposentado proprietário da
maior biblioteca particular de toda a região, o professor
de ciências, que era muito amigo do juiz e fazia questão
de enfatizar que estava ali apenas para analisar
cientificamente os fatos e desmistificar os boatos que
ouvira, mais alguns homens e mulheres que a todo
momento diziam estar prontos para ajudar, mas o fato
é que, no íntimo, estavam ali para saciar o vício da cu-
riosidade humana.
O jornalista logo começou a fazer perguntas ao comis-
sário e este, por sua vez, passou a argumentar que ele,
como mandatário escolhido por seus pares, estava ali
para garantir que nada de ruim aconteceria para a cidade
e que, sendo ele o mantenedor dos recursos públicos,
iria prover o que fosse necessário para que este
problema em local da Companhia não chegasse à área urbana.
O gerente interpelou o comissário de forma educada, pedindo-
-lhe a palavra, e ressaltou que aquela era uma área pública
a qual a Companhia não tinha propriedade e que, desta forma, era
o poder público responsável por descobrir a origem do ocorrido,
mas que, mesmo sendo uma área pública, a Companhia não iria
medir esforços para ajudar a cidade na solução do problema, uma
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vez que entendia que o que interessava à Companhia era
atender aos desejos do povo para uma cidade melhor.
O comissário e o gerente se contradiziam em definir as
responsabilidades, mas ambos garantiam que a ordem
e o equilíbrio da comunidade não seriam abalados.
Afastaram-se dizendo que não tinham mais informações
para passar ao jornalista, pois necessitavam definir as
estratégias junto aos subordinados encarregados pela
solução dos problemas.
Um debate começou logo após o jornalista dizer que am-
bos estavam se esquivando, mas o juiz aposentado frisou
que era dever do comissário manter-se em silêncio nos
casos de segurança. Os médicos então alertaram que, sen-
do um assunto de segurança, era necessário estabelecer
um plano de quarentena, caso aquilo representasse al-
gum risco à saúde dos habitantes. O professor de ciên-
cias e o clérigo diziam, cada um dentro de suas con-
vicções, que nada havia a se temer, pois aquilo seria
explicado pela ciência ou pela fé. Não importava mais,
o debate estava acalorado entre os presentes. Um grupo
dizia que aquilo era responsabilidade da Companhia, outros da
Governança Pública, alguns com medo e outros com raiva. Todos,
no entanto, queriam saber o que estava acontecendo.
O interventor e seus imediatos formaram uma linha para
impedir que as pessoas saíssem em direção à torre. Entre eles
e a estrutura, caminhando por aquele campo, estavam o gerente
e o comissário aparentemente conversando, mas o que havia
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entre eles era uma discussão de medos e egos. Sabiam
que ali acontecia algo fora de seus conhecimentos e aos
quais não estavam acostumados. Precisavam de uma
solução rápida, mas o receio de que algo viesse
a prejudicar os seus planos pessoais era maior do que
a capacidade de se unirem em prol de uma ação coerente
e eficiente, de uma ação que de fato se atentasse ao
problema em si. Esqueciam que alguém estava ali
e precisava de socorro, estavam mais preocupados em
não serem acusados de omissão ou de contribuição para
o surgimento daquela situação.
Os ânimos não ficaram mais exaltados e nem também
mais calmos, instalou-se um ambiente de discussões
diversas sobre a origem daquela obra. As divergências
não faltavam, embora o ambiente num todo parecesse
mais controlado. Passado algum tempo, o sol tomava os
rumos do poente, muito embora é verdade que algumas
horas ainda faltavam para o início da noite. O debate
estava cedendo espaço para as reclamações quanto
à falta de preparo da Companhia e da Governança Pública
em não preparar o local com uma barraca que oferecesse
sombra e água aos visitantes. O chefe de emergências não
conseguia deixar sua insatisfação quanto ao caso, estava irritado
e não conseguia pensar em como aquilo acontecera sem que
ninguém tivesse visto. Seus pensamentos não permitiram que
ele visse a mancha escura se alastrar por uma área ainda maior.
O cilindro não emitia nenhum som. Foi nesse clima que dois
caminhões da Companhia Empresarial de Mercadorias surgiram
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no horizonte pela estrada. Aproximaram-se e dele des-
ceram mais homens, que imediatamente levaram as duas
escadas mais compridas que encontraram nos galpões.
As escadas foram colocadas uma de cada lado, formando
assim um grande V, invertido, tendo o ápice da coluna
como vértice. O chefe de emergências, o interventor,
o gerente e o comissário se reuniram para decidir
quem subiria primeiro. A verdade é que apenas
o chefe de emergências se prontificou a realizar
tal ação, mas foi desaconselhado pelos demais.
Argumentaram que os riscos de um acidente com
ele não eram aconselháveis. Contrariado, ele en-
tão concordou e decidiu que iria escolher alguns de seus
subordinados que tivesse relativa experiência com tra-
balhos em altura.
O funcionário escolhido subiu devidamente aparamenta-
do. Ao chegar no topo, encontrou um orifício com diâme-
tro menor que dois palmos abertos, algo bem menor que
o diâmetro total da coluna, agora tão larga que precisava
de quatro pessoas de braços esticados para abraçá-la.
O funcionário, se aproximou daquele buraco e tentou
olhar para dentro da coluna. Tentou por algumas vezes,
mas lhe parecia muito escuro, decidiu iluminar com
a lanterna. Na base da coluna, ninguém sabia o que estava
acontecendo. A orientação era de que nenhuma informação fosse
dita a distância, para que os expectadores não descobrissem
o que estava acontecendo. Quando a luz da lanterna se acendeu,
a voz de dentro daquela obra voltou a falar.
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— Por quê?
Por que fa-
zem isso co-
migo?
— Escute, – res-
pondeu o inter-
ventor – estamos
tentando ajudar.
— Mas por que me ti-
ram o pouco que tenho?
— Ouça, nós não fi zemos
nada, – retrucou o chefe
de emergências – apenas
mandamos um de nossos
melhores homens para ver a si-
tuação. Me diga o que está acon-
tecendo.
— Eu não sei. As luzes se apagaram.
— Nós vamos resgatá-lo, nós temos
as melhores técnicas e sabemos o que
estamos fazendo.
Após descer da torre, o funcionário então
explicou que não conseguira ver o fundo,
o breu era tamanho que até mesmo a luz
da lanterna parecia se perder nele. Explicou
também que achava difícil alguém passar por
aquele orifício, que o tamanho era de certa forma
exíguo, talvez se fosse uma criança ou uma pessoa
bem magra.
Tanto o chefe quanto o interventor não entenderam.
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A voz havia dito que as luzes se apagaram, mas o que
acontecera era justamente o contrário. Voltaram-se para
a torre e iniciaram um diálogo.
— Explique-nos, como assim, as luzes se apagaram? Nós
tentamos observar com uma lanterna e nosso funcionário
não conseguiu ver nada.
— Vocês deixaram aqui tudo escuro. Agora eu vejo a luz
de novo. Não apaguem a luz, sem ela não sei o que acon-
tecerá comigo.
— Escute, como você foi parar aí dentro?
— Por favor, me ajudem.
— Nós iremos.
Decidiram então descer uma corda pelo orifício para
que a pessoa enclausurada pudesse ser içada. Os
homens da Companhia e do Departamento de Saúde
e Ordem puxariam a vítima do cárcere com a ajuda de
um conjunto de roldanas pelo qual a corda passava e que
fora preso no topo da torre. Assim fizeram e desceram
a corda. A voz respondeu que havia encontrado a pon-
ta na qual deveria se segurar e confirmou que já a tinha
em suas mãos. A voz disse que sentia medo, que pre-
feria que alguém descesse junto com a corda pois
aquilo não parecia uma coisa natural. O interventor e o chefe
de emergências responderam que aquilo se tratava de um
procedimento padrão e deram ordens aos homens para que
começassem a puxar aquele cabo. Mesmo com toda a tensão
aplicada, nem um milímetro ela se moveu e, para piorar, a voz
começou a gritar fortemente um urro de dor. A coluna começou
a engordar e a crescer mais. As escadas tombaram e o fun-
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cionário que estava no alto da torre deitou-se sobre
o topo e parte de seu corpo cobria o orifício. As rol-
danas começaram a ranger, os gritos aumentavam. Os
expectadores próximos dali ficaram assustados com o que
viam e ouviam. A coluna subia e o chão se escurecia mais.
Somente quando os homens soltaram a corda a confusão
se desfez. Com amargor e raiva a voz gritou:
— Por quê? Por que me machucam? O que eu fiz para
vocês?
A situação saiu do controle e as proeminentes figuras
da cidade romperam com a barreira formada pelos
oficiais do Departamento de Saúde e Ordem, e se diri-
giram ao comissário e ao gerente, cercando-os com
corpos e palavras. O juiz aposentado dizia que deveriam
conclamar as forças públicas de maior envergadura para
solucionar aquele caso, o professor alertava quanto ao
risco do desconhecido e de que as ações deveriam ser,
primeiramente, decididas com uma junta de doutos e tes-
tada em laboratório, o clérigo salivava ao gritar suas
palavras coléricas e inteligíveis, os médicos, por sua vez,
exigiam que outros profissionais de melhor formação
fossem chamados para agir, pois o amadorismo dos
que ali estavam era provavelmente o causador daquela
confusão e, por fim, o jornalista perguntava ao comissário se o que
estava acontecendo não era uma demonstração clara do conluio
entre a Governança Pública e os interesses da Companhia em
esconder a verdade da população.
A discussão estava acalorada e os mandatários acuados. O chefe
de emergências e o interventor então correram em direção
da aglomeração e rispidamente afastaram os demais daquele
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local. Os imediatos do Departamento de Saúde de Ordem
conduziram as importantes figuras da cidade novamente
junto aos demais expectadores.
Enfim reunidos, os quatro que ali estavam para resolver
aquela situação começaram a conversar. Cobranças, argu-
mentos, críticas, desculpas e muitas falas perdidas. O tem-
po passava e o problema, além de persistir, piorava. Por
fim, chegaram a um acordo e estabeleceram um plano que
encerraria aquela situação.
O comissário e o gerente se dirigiram junto aos populares
que ali estavam, dariam suas explicações sobre tudo o que
estava acontecendo. O chefe de emergências e o inter-
ventor voltaram para a torre, que já havia parado de
emergir. Sob suas ordens, os funcionários da Companhia
prenderam uma escada a outra, formando assim uma única
escada mais alta. O funcionário que estava no topo daquela
coluna pôde então descer em segurança e passou a ouvir os
comandos dos dois encarregados. Minutos depois, dirigiu-
-se junto a um dos imediatos do Departamento de Saúde
e Ordem ao carro que os levou rapidamente de volta para
a Companhia.
A voz, mais fraca, continuava a pedir ajuda. Dizia não
entender os motivos de tudo aquilo. Questionava a falta de
compreensão de seus ouvintes, da dureza de seus atos. O chefe
de emergências disse que muito em breve aquilo seria resolvido.
A voz respondera que estava ficando sem energia, que sentia
suas forças esvaírem e que somente aguentara toda a situação
graças à luz que vinha do alto e que, sem ela, não sabia o que
o poderia acontecer.
Enquanto o tempo passava, os funcionários esticavam cordas,
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olhavam em direção ao céu, gesticulavam. Todos agiam sob
a coordenação do interventor. Junto à plateia que ali estava,
o gerente e o comissário começaram a dar suas explicações.
Informaram que já sabiam as causas do ocorrido e que,
agora, a Companhia traria um equipamento moderno que
permitiria a retirada daquela pessoa enclausurada. Fizeram
questão de informar que não poderiam dar mais detalhes
quanto ao gênero, idade e procedência da mesma por
questões de segurança. Informaram que se tratava apenas
de uma vítima de pessoas alheias à comunidade e que
estavam tentando corromper não somente a cidade como
a boa imagem da Companhia. O gerente informou que ele
próprio se responsabilizaria pela condução da vítima de tais
manipuladores da mente humana ao hospital de feridos,
localizado dentro da Companhia e que, provavelmente,
os médicos ali presentes concordariam com tal atitude,
pois ainda não se sabia se a vítima havia contraído alguma
infecção contagiosa e, nesse sentido, a quarentena se faria
necessária.
O comissário, por sua vez, fez elogios ao professor ali
presente e sabia da compreensão do mesmo quanto ao sigilo
das informações, afinal, questões altamente científicas
precisavam ser desvendadas e somente a Companhia pode-
ria ajudar a cidade nessas descobertas, graças à extensa rede de
contatos que a mesma possuía com as entidades do mais alto
conhecimento. O comissário ainda garantiu que o professor seria
convidado em momento oportuno a fazer parte de uma banca de
pesquisadores, desde que isso não prejudicasse seus trabalhos
futuros junto à Governança Pública. Ao clérigo, o comissário
pediu que intercedesse por aqueles homens que ali estavam
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trabalhando, para salvar a pobre alma ali enclausurada. O co-
missário fez elogios à discrição do sacerdote quanto aos
assuntos de ordem pública e de negócios e que, isso por si só,
já justificava as benfeitorias que a Governança vinha fazendo
no entorno da sede religiosa, nunca interferindo nas decisões
e opiniões da mesma. Por fim, o gerente informou que a origem
daquela coluna, que estava a condenar aquela pobre vida, era
originária de uma ação de uma organização estrangeira que
tinha interesse em desmoralizar a Companhia e a Governança
Pública. Ele repetidamente disse que tal ato não abalaria
as boas relações já existentes e que a Companhia arcaria
com todos os custos para a solução do caso, entretanto, era
importante que aquela área e outras da cercania tivessem
seu título de propriedade repassados para a Companhia pela
Governança Pública como medida de segurança, para que
novos invasores não adentrassem a cidade. O gerente então
pediu ao juiz aposentado a sua contribuição na elaboração de
tal acordo que havia se estabelecido entre o interesse público
e o privado, para que os cidadãos não ficassem a mercê das
interferências de indivíduos provenientes de localidades
desconhecidas das atuais fronteiras.
Os homens que ali estavam concordavam com cada frase
dita pelo comissário e o gerente, exaltando a prudência
das ações tomadas. O jornalista tentou fazer novas perguntas,
mas fora rechaçado por aqueles impolutos homens que do-
minavam diferentes ramos do conhecimento humano. Por fim,
concordaram em sair daquela área que agora pertenceria à Com-
panhia, e passaram a colaborar com os imediatos do Depar-
tamento de Saúde e Ordem para acomodar todos de volta aos
carros. O jornalista se viu sozinho e sem apoio dos demais. Foi
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quando o interventor apareceu e lhe disse, de forma sigilosa,
que o comissário e o gerente sabiam que a ação toda havia sido
orquestrada por membros opositores da Governança Pública
e que proprietários de outro jornal da cidade vizinha estavam
envolvidos. Imediatamente, o cronista de notícias decidiu então
ir investigar aquela acusação, pois, sendo verdade, era uma clara
tentativa da oposição em cercear a liberdade de expressão que
existia na cidade.
Já sem espectadores daquele fenômeno, o chefe de emergências
e o interventor deram ordens aos funcionários e imediatos para
que desmontassem a barraca e recolhessem todos os materiais
junto aos veículos, com exceção apenas da escada que estava
ali montada. Com todos os equipamentos desmontados e o sol
mais próximo do poente, os homens que ali estavam receberam
ordens para que fossem embora, os imediatos deveriam retornar
ao Departamento de Saúde e Ordem e os funcionários para
a Companhia, sendo que alguns destes deveriam retornar
andando, pois um dos caminhões deveria ficar ali para uso do
chefe de emergências. Pouco tempo depois, retornaram o ime-
diato e o funcionário da Companhia que haviam saído mais cedo.
Traziam um pesado objeto embrulhado em papelão, uma longa
corda e uma maleta de ferramentas. Depositaram o material ao
pé da escada e receberam ordens para se retirarem.
Estavam ali agora somente o comissário, o gerente, o interventor
e o chefe de emergências parados na estrada, olhando para
aquela misteriosa obra que tanto os espantava. Sabiam o que
iriam fazer e precisavam fazer isso juntos. Sem nenhuma outra
pessoa por perto, foram em direção da torre, um deles subiu
ao topo da escada levando consigo uma das pontas da corda
e sentou-se na beirada da coluna. Outros dois subiram também
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e se acomodaram no alto daquela construção bizarra. Juntos
içaram o estranho objeto e a caixa de ferramentas. O quarto
e último deles manteve-se ao pé da escada segurando-a para que
não caísse.
De dentro da mala de ferramentas, retiraram uma lata de cola
selante, martelos e pregos de aço. Do embrulho, uma pesada
chapa de aço circular com lanterna presa no centro de uma de suas
faces. Acenderam a iluminação artificial e posicionaram a pla-
ca sobre o orifício, cobrindo-o completamente, com a luz voltada
para dentro da torre. Na sequência, começaram então a selar
o buraco, de forma que aquela tampa nunca mais pudesse ser
retirada.
A voz gritava, suplicava por ajuda. Pedia que não fizessem aquilo,
pois confiava neles. Perguntava quais as razões daquela atitude,
tiravam-lhe o pouco que via do mundo. Suas falas eram encobertas
pouco a pouco pelo som das batidas dos martelos nos pregos
e no metal. Os quatro que ali estavam permaneciam em silencio,
não eram mais suas funções conhecidas pelas pessoas da cidade
e da Companhia, eram o que se tornaram ao longo dos anos de
dedicação, não tinham mais nomes ou cargos. Ali, os quatro eram
o mesmo desejo consciente de ver o fim daquilo tudo.
Terminada a ação, com as ferramentas na maleta, se juntaram ao
pé da escada, derrubaram-na e depois a levaram para o caminhão.
Nessa etapa, ainda ouviam a voz que, a cada instante, se tornava
mais fraca e úmida. Com todos os seus pertences no veículo,
olharam uma última vez para aquela estrutura que abalou os
alicerces daquela comunidade. Quando o silêncio se tornou
firme, ligaram o motor e foram embora em direção à cidade.
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Na manhã seguinte, o lanterneiro voltava de sua jornada na Com-
panhia e caminhava em direção à cidade, quando chegou próximo
ao local onde toda aquela confusão acontecera e viu que já não
havia mais uma torre ali, apenas uma mureta circular de pedras,
da altura de uma criança, recoberta por folhagens extremamente
verdes. O medo do desconhecido não o incomodou e dirigiu-se até
o local.
Chegando perto, viu que se tratava de um poço, aproximou-se
mais e viu uma límpida e refletiva lâmina d’água. Uma sede que
nunca sentira na vida se apoderou de seu corpo. Pegou o balde
que estava preso a uma corda amarrada na borda do poço, retirou
uma porção da água e bebeu.
Sorriu enquanto uma lágrima escorria de seus olhos. Via e escutava
coisas que até então desconhecia.
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I n s t a n t e No carro, a tia de duas lindas crianças
acende mais um cigarro Classe I, enquanto
escuta música no rádio. Não faria diferença
se fosse MPB, Blues ou Rock, não importa
qual a canção, contanto que a ajudasse
a relaxar do estresse diário de atravessar
a cidade. Música transmitida por antenas,
sem perder a harmonia, sem perder
o tempo. É nessa mesma exatidão de
tempo, na mesma precisão que só
a televisão consegue nos dar com suas
ondas, que um jornalista clama por justiça
e valores morais. Anuncia, com direito
a imagens ao vivo, a prisão de traficantes
que plantavam maconha numa chácara de
uma cidade dormitório da metrópole. Pai
e filho, dez pés de maconha plantados.
Não, não há tempo para informar sobre
o pai, um funcionário público aposentado,
e o filho, um gerente de banco. Tudo em rede
78
nacional, visto inclusive lá no cartão-postal
do país, onde um garoto divide seus olhos
entre a notícia e a fresta da porta pela qual
vê um advogado e seu colega de escritório
se apossando dos papelotes de cocaína
que acabam de comprar. Compreensível,
tudo é válido para quem precisa determinar
as estratégias finais para a audiência do
dia seguinte, dia em que defenderão um
importante cliente acusado de sonegação
fiscal. Atenção, é tudo que ambos querem
numa noite tão quente e escura como a que
estavam passando, quente e escura como
o café. Igual ao café sem açúcar no copo
americano do motorista de ônibus. Café de
posto, de estrada, de quem tem mais de
onze horas no asfalto e ainda vai cruzar mais
cinco. Café com rebite pra não fechar os
olhos. Seus olhos têm de estar na pista, no
fundo dos carros que estarão a sua frente.
Como a moça rica e bronzeada do último
79
carnaval que estava frente a frente com
o psicólogo. Lágrimas dela brotavam pelas
inúmeras vezes que fez sexo com o rapaz que
nunca a amou, apenas desejou seus seios
e coxas. Soluços salpicavam de sua garganta
por se lembrar de quantas vezes desprezou
outros meninos. O renomado psicólogo,
aquele das paredes com artigos de jornais
emoldurados, diplomas, certificados
e a cópia de uma gravura de Andy Warhol
na sala de espera agora lhe recomendava
procurar um psiquiatra de sua confiança.
Bons calmantes a ajudariam a atravessar
esse longo processo. Se ela conhecesse
o jovem estudante de Ciências Sociais de uma
universidade católica, saberia que naquele
mesmo momento o futuro formador de
opiniões carregava consigo, em sua bolsa,
alguns comprimidos de psicotrópicos.
Agora são quinze comprimidos pegos no
laboratório farmacêutico em que trabalha
80
para pagar a faculdade, depois serão menos,
estarão na boca de diferentes pessoas, se
espalharão com o vinho no sarau. Agora
ele só pensa nos seios da colega de sala.
Pensa, mas seus lábios somente dizem que
é contra a reforma no ensino proposta
pela reitoria. Enquanto isso, na bolsa, os
comprimidos. Mais tarde, ele beijará os
seios da colega, antes disso, os dois ainda
discutirão sobre a vida dos indígenas na
floresta equatorial. Aquela onde no mesmo
instante, num ritual, o senhor com seus
cinquenta e três anos, ao lado de sua esposa
de quarenta e nove, toma o chá revelador
da nova seita que surgiu. Um chá que lhe
permite entrar em sintonia com a natureza,
com o dentista, o engenheiro, a cozinheira,
o mestre e tantas outras pessoas que estão
no mesmo templo. Cinquenta e três anos
e só agora aderiu ao chá em sua busca
pelos que já não estão mais encarnados,
81
procura o irmão que morrera atropelado
dois anos antes, se outros conseguiram, ele
também conseguirá. Na capital do país, um
analista financeiro abre uma lata de cerveja,
a primeira e única do dia em que arruinará
sua vida. Raros foram os dias em que
pegou uma cerveja na geladeira da loja de
conveniência, mas sempre há uma exceção,
hoje está muito quente no país inteiro. Bebe
sozinho uma cerveja para espantar o calor
e comemorar a promoção na multinacional.
Finalmente poderá quitar o financiamento
do carro. É a primeira e única cerveja do
dia. Agora, ele só está levantando o anel
da lata de cerveja que comprou, a última
que beberá por todos os anos que ainda
terá em sua vida. É pela cerveja que não
podem comprar que três jovens infratores
perante a lei, W., S. e R., internados numa
instituição governamental comprometida
em assisti-los na sua reeducação, estão
81
82
no banheiro cheirando um pouco do tíner
que surrupiaram do pessoal que estava
pintando a quadra de esportes. W. de
olhos arregalados, S. de cócoras rindo e R.
de pé, com os olhos fechados. Juntos ali,
entre os chuveiros e os vasos sanitários.
Chegaram em momentos diferentes, não
sabem quando vão sair, mas se lembram
do passado. Agora já se sentem homens,
nunca mais serão como antes, quando eram
crianças e bebiam refrigerante gelado.
O mesmo refresco, da mesma marca que
o camelô cansado tomou e agora colocava
o copo ao balcão. Seus braços se movem
enquanto observa pela televisão o replay
do gol feito pelo seu time no último final de
semana, no importante jogo de estreia de
um dos craques mais importantes do país
e que agora jogava em seu amado time.
Não longe dali, o morador de um cortiço do
centro da cidade dá mais uma tragada no
8383
crack barato que comprara minutos antes.
Ele ainda não sabe que seu vizinho camelô
irá atear fogo no quarto ao lado. Ninguém
ainda sabe da fúria que se apossará daquele
vendedor de rua ao descobrir a traição
da mulher. Não terão tempo de fugir,
o vendedor morrerá no mesmo quarto com
a esposa e o amante dela. O homem que
fuma crack não vai conseguir abrir a porta,
a maçaneta vai emperrar e será vitimado
pela mistura de amor e ódio que moram ao
lado. O fogo atingirá seu quarto, agora ele
somente dá uma de suas últimas baforadas
enquanto olha pela janela e vê sua vida
parada como a avenida congestionada,
sente-se entre os carros, as faixas, os
semáforos e a tia de duas lindas crianças que
acende um cigarro. Todos ali engarrafados,
pensando no trânsito que não anda, no
tempo que não passa, nas voltas que
o mundo dá nesse círculo viciado.
85
O r e l ó g i o d a e s t a ç ã o
Nasper aproximou-se do guichê e, curvando-
-se, falou pela janela com o fiscal que ali
estava:
— A que horas parte o próximo trem para a Praça
do Centenário?
— O próximo irá parar somente na Central Urbana
e na Junção Noroeste.
Nasper já sabia disso, inclusive sabia mais,
sabia que nos dias de descanso, os trens não
passavam na mesma quantidade que durante os
dias de trabalho. A Seccional de Transportes
diminuía o número de carros de todas as linhas,
indiferente se pertencessem ao conjunto dos Arcos
ou das Radiais. Era de seu conhecimento também
que algumas estações permaneciam fechadas nos
dias de descanso, tanto que estava na Estação
das Moradias Sul, localizada no Setor Sul,
o que o obrigou a caminhar seis blocos de curvas
residenciais a mais do que se fosse um dia de
atividades laborais.
86
— Sim, mas quando passará o trem para o Complexo
Urbano?
O fiscal desviou seu olhar do livro que lia,
inclinou-se um pouco para a esquerda e com uma
expressão de puro desprazer consultou uma folha
colada no vidro. Respondeu seco ao mesmo tempo
que voltava os olhos ao seu livro:
— 20:07
Nasper agradeceu com um gesto com a cabeça, ficou
ereto e olhou para o relógio em seu pulso, eram
19:35, estava no horário e a viagem não seria
muito demorada. Não lhe incomodava também ter que
andar por dois quadrantes entre a Estação Central
Urbana e a Praça do Centenário pois sobrava-
-lhe tempo. Colocou a mão nos bolsos e viu que
ainda tinha algumas Moedas de Trocas no bolso do
sobretudo. Sempre deixava as moedas no console de
madeira do hall de entrada do apartamento, quando
saía de casa, as colocava no bolso esquerdo do
paletó ou do sobretudo para que utilizasse em
casos de emergência. Talvez as utilizasse para
pegar um carro de carona, talvez não.
Passou pelo túnel de acesso e viu que
a estação estava vazia e, apesar dos raios cor
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de laranja do sol, o frio ainda persistia na
cidade. Em outros tempos, a plataforma estaria
tomada de pessoas com destino ao Complexo Urbano
para desfrutarem o dia de descanso após o almoço.
Caminhou até encontrar um dos bancos de madeira
que haviam no fim da plataforma e se sentou. Era
de seu costume entrar sempre no último vagão,
sabia que as saídas da Estação Central eram nas
extremidades da plataforma.
Podia ver o outro lado da rua, via as casas com
os vidros das janelas fechadas. Viu um senhor
de calças e paletós marrons, usando um cachecol
bege, caminhando com uma sacola nas mãos.
Conseguia ver um dos cantos da praça que beirava
a estação. Na praça, haviam instalado alguns
bancos de pedra, haviam inaugurado um chafariz
junto com a chegada da estação, mas o chafariz
já não funcionava mais. Já haviam se passado
alguns bons anos desde que desligaram as bombas
d’água que o faziam funcionar, resultado da
crise energética que ainda não fora solucionada.
Tornara-se uma peça sem significado, com o tempo,
o piso azul-claro do chafariz se escureceu, era
necessária uma boa limpeza para que voltasse
a ter o charme que tinha antigamente.
Olhou para o relógio da plataforma e depois
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consultou o próprio relógio. Os ponteiros dos
minutos estavam diferentes, ao menos é o que lhe
parecia daquela distância. Se levantou e foi até
mais próximo do relógio pendurado no teto. Viu
que estava marcado 19:33. Consultou novamente
o relógio de pulso e verificou uma diferença de
dois minutos, abriu o fecho e colocou
a máquina próxima ao ouvido, estava funcionando
normalmente. Adiantou o próprio relógio para ficar
no mesmo tempo que o da plataforma, não queria se
equivocar. Pronto, agora ambos marcavam 19:33.
Com os ponteiros já ajustados, deitou novamente
o relógio no pulso e voltou-se ao banco. Ficou
a pensar no que poderia ser o atraso no relógio,
nunca ocorrera isso, sempre dava corda no
relógio. Era antigo, sabia disso, ganhou quando
entrou como estudante da Academia de Ciências.
Foi um presente dado pela Secretaria Geral
de Alunos de Artes, prêmio em reconhecimento
pelas melhores notas na prova classificatória
do curso. Tinha uma pulseira de couro preta e
o mostrador tinha um painel cinza chumbo com
os números em azul anil, no verso, o escudo da
Academia Nacional de Ciências e as iniciais de
seu nome gravadas. Era como todos os relógios
que existiam no país, dividido em 36 horas.
Nasper não gostava dos relógios estrangeiros que
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marcavam apenas 24 horas, achava o sistema de
cronometragem dos outros países uma falha aos
princípios da natureza. Um círculo tem 360 graus
e um dia significa um giro completo da Terra em
seu próprio eixo. Era uma questão de lógica que o
tempo também fosse dividido em 36 partes iguais,
cada uma delas com 40 minutos
e cada minuto com 90 segundos. Quando ganhou de
Lorena um relógio montanhês, um daqueles que
ainda era dividido pelo antigo sistema de 24
partes, até que tentou usá-lo por alguns meses,
era um presente importando de Terras Altas. Não
se acostumou e o guardou numa gaveta junto com
a caixa, o recibo de importação e a carta da ex-
-namorada. Agora, pensava que talvez tivesse de
arrumar o relógio, procuraria alguém de confiança
para isso. Desviou seu olhar para os trilhos,
para a outra plataforma e viu uma senhora
varrendo o chão. Não tinha mais ninguém por ali.
Veio-lhe à mente que nem se lembrava mais da
última vez que não aproveitou um dia de descanso
para ir ao Centro Urbano, tentava coordenar suas
atividades para que raramente precisasse sair
de sua casa e da Academia de Ciências. Tudo que
precisava estava no circuito em que morava. Era
bem criança quando o pai o levou para um passeio
na linha Eixo A, foi a primeira a ser inaugurada
90
e, na época, era formada por apenas cinco
estações que cortavam o centro da cidade, isso
foi logo no começo do programa de revitalização
urbana. Quando assumiu a vaga no curso de artes,
ficou incumbido de escolher as peças decorativas
da Estação Industrial N 1. Mesmo que quisesse,
não conseguiria ver as obras que escolhera no
passado, atualmente aquela era mais uma das
estações que não funcionava nos dias de descanso.
Mexeu as pernas e olhou para o relógio da
estação, não tinha como não olhar, era a única
coisa que se movimentava além da vassoura na
outra plataforma. Os ponteiros marcavam 19:37,
baixou os olhos, arregaçou a manga do velho
sobretudo e no seu pulso as horas eram outras,
estavam marcados 20:02. Estranhou e novamente
se aproximou do relógio pendurado no teto.
Realmente, havia uma diferença entre eles. Voltou
ao banco e acompanhando o ponteiro de segundo
contou até noventa. Estava exato, e de uma coisa
tinha orgulho, Nasper tinha uma noção de segundos
muito precisa, seu conhecimento musical era muito
bom, foi um dos melhores alunos de teoria musical
no curso de Artes, a tal ponto que até ocupou
a cadeira de Tempo, Precisão e Álgebra Musical
por dois anos, na Academia Nacional de Ciências
durante a enfermidade que acometeu o Professor
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Bisner. Foram dois longos anos, em que conciliou
as aulas de Perspectiva e Ótica no Desenho,
disciplina da qual sempre foi mestre, e a vaga
deixada pelo colega Bisner.
Ergueu-se e foi até a outra ponta da plataforma,
chamou pela senhora que varria o chão.
— Senhora.
Ela não lhe deu ouvidos.
— Por favor, senhora!
— Sim senhor.
— A senhora sabe se o relógio da estação está
errado?
— Senhor, minha função aqui é varrer o chão,
as escadas e as demais áreas de fluxo. É melhor
consultar alguém da Seccional que tenha algum
conhecimento maior que o meu.
— Sim, eu entendo a senhora, mas é que, como
a senhora trabalha aqui, pensei que pudesse me
dizer se o relógio está certo.
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— Eu não trabalho para ver se o tempo passa.
Ela se virou de costas e continuou
o serviço. Nasper não conseguiria tirar mais
nada dela. Voltou pelo túnel de acesso e foi até
a guarita do fiscal. Polidamente se dirigiu ao
funcionário:
— Senhor.
O homem não tirou os olhos do livro.
— Senhor fiscal! – falou em tom mais alto, sem
gritar. – Por favor.
Sem tirar o livro da frente, o homem perguntou:
— O que deseja?
— O senhor sabe se o relógio está certo?
— Os trens passam na hora certa, se é isso que
deseja saber.
— Sim, mas...
— Os trens passam na hora certa. Quando for
20:07, seu trem passará. – interrompendo as
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perguntas e insatisfações de Nasper e, por fim,
virando-se de costas a ele.
Nasper voltou para a plataforma e olhou para
o relógio da estação que agora marcava 19:39
enquanto o seu registrava 20:06.
— Senhor fiscal, peço desculpas pelo incômodo,
mas há algo errado.
O fiscal girou o corpo impaciente, fechou o livro
e, colocando-o sob o pequeno balcão dentro da
guarita, perguntou:
— O que deseja, afinal?
— Há algo errado, meu relógio está marcando 20:06
e o relógio da plataforma marca 19:39. Eu sei
que o senhor não é o responsável, mas tenho um
compromisso importante hoje.
— Escute, eu já o informei do horário que
o trem passa, certo?
— Sim, mas o problema agora é outro.
— Não há problema, quando for 20:07, o trem
passará pela estação.
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— Mas está quase no horário, o relógio deve estar
errado.
— O relógio da estação? – perguntou com certa
indignação o fiscal.
— Não sei, talvez o relógio da estação, ou o meu
relógio. É isso que quero saber.
— Senhor, ambos já temos idade para não mais
brincarmos. A Seccional de Transportes não erra
em seus horários. O programado para o próximo
trem é que ele chegue aqui exatamente às 20:07,
todos os equipamentos elétricos da Seccional são
inspecionados semanalmente. O senhor realmente
acredita que este seu relógio antigo é mais
preciso que um moderno relógio elétrico? Por
favor, aguarde na plataforma.
Nasper baixou a cabeça, não adiantava discutir
com o fiscal. Ficou impaciente, começou a andar
pela plataforma, nem as pombas sobre os trilhos
o chamavam a atenção. Iria se atrasar para
o encontro, detestava isso. Era conhecido por sua
pontualidade e até mesmo por sempre chegar antes
em seus compromissos. Andava de um lado para o
outro, agora estava sozinho
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e nem a faxineira mais estava ali para lhe fazer
companhia. Sentou-se de novo. Olhou para o grande
relógio da estação, estava marcando 20:03, em seu
pulso eram 20:12.
Começou a coçar as pernas, a pensar no que diria,
como justificaria o seu atraso. Colocou as mãos
no bolso, mexeu as moedas que ainda lhe restavam,
procurou no bolso de dentro algumas balas de goma
que costumeiramente mastigava quando ficava tenso.
Saiu de casa sabendo que hoje ficaria nervoso,
desde que acordou sabia disso, um encontro
importante estava agendado e era, há muito tempo,
por ele aguardado. Achou uma bala e a colocou na
boca, levantou-se, foi até o meio da plataforma,
olhou novamente os ponteiros, já marcavam 20:04.
Olhou paro relógio do pulso, eram 20:14.
Voltou-se para o banco, não se sentou, encostou
na mureta, caminhou novamente até o meio da
plataforma e viu o trem surgir a uma certa
distância de uns oitocentos metros. Olhou
o relógio pendurado e viu que, conforme aquele
trem se aproximava, os ponteiros se aceleravam
mais rápido que o normal e que algumas luzes da
plataforma estranhamente se acendiam. Assim que
o trem parou na plataforma, o relógio da estação
marcava precisamente 20:07. Andou rapidamente
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para a ponta em que se encontravam os últimos
vagões, entrou e se sentou junto à janela. Não
havia ninguém no vagão.
Enquanto aguardava as portas se fecharem, ouviu
uma voz pelo alto-falante:
— Atenção passageiros. A Seccional de
Transporte informa que, de acordo com as normas
estabelecidas para a economia de energia
elétrica, definidas pelas diretrizes do Decreto
597-22, os trens devem aguardar por cinco minutos
para embarque e desembarque de passageiros.
Partiremos em instantes.
Nasper estava extremamente incomodado. Não havia
ninguém na estação para embarcar ou desembarcar
e mesmo que fosse necessário reduzir o consumo
de energia elétrica, aquilo não fazia sentido.
Entretanto, por mais que tentasse se enganar,
algo o perturbava mais: era o fato de saber que
já não tinha certeza do quanto estava atrasado.
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I
O despertador do celular continuava tocando na me-sinha improvisada ao lado da cama de Maurício, era apenas uma velha cadeira sem encosto que ele aproveitou como criado-mudo quando se mudou para o apartamento. Era onde costumava jogar sua carteira e o celular, às vezes também alguns pares de meia ou uma camisa. O tilintar estridente daquele aparelho tocando a mesma melodia a cada cinco minutos era o suficiente para irritar profundamente qualquer um em sã consciência, depois de mais de 30 minutos. O problema não era a consciência, era a ressaca.
Não foi o som, mas o sol atravessando a janela que despertou Maurício. Com a cabeça enfiada embaixo do travesseiro, esticou o braço até a cadeira, pegou o celular e, mesmo sem enxergar direito, vendo as coisas ainda mais fora de foco do que o normal, interrompeu aquele zumbido definitivamente. Puxou pra si o celular e com ele veio uma roupa íntima feminina junto, o que lhe causou espanto, mas este seria ainda um dos menores que estava por vir.
Os olhos foram se abrindo aos poucos e as imagens se desembaralhando, até que reconheceu que aquilo entre seus dedos era um sutiã. O que o chocou mais foram as mãos com marcas de idade desconhecidas. O espanto ficou ainda maior quando empurrou o lençol pra fora da cama e não viu sua iniciante barriga proeminente, mas um corpo mais esguio que o que tinha adquirido nos últimos anos.
— Que porra é essa! – exclamou colocando a mão na
Uma dose de rum a menos
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cabeça, momento em que descobriu os cabelos compridos e que lhe fizeram soltar palavrões impronunciáveis. Saltou da cama e com a mão no rosto seu espanto se tornou maior ao sentir um cavanhaque em seu rosto.
Nada lhe parecia palatável naquele momento. Estava em outro corpo, isso era claro, um pesadelo. Teria vivido em coma por anos e agora acordado em seu corpo real ou o contrário, estava num coma e aquele era seu pesadelo? Não sabia ainda. Precisava de respostas, precisava se ver por completo, saber quem era. Saiu nu do quarto e foi em direção ao banheiro no meio do corredor. A porta estava fechada e ouviu o som do chuveiro. Bateu na porta e disse:
— Rodrigo, me deixa entrar.Aquela não era a sua voz, não ao menos a que estava
acostumado a ouvir. Aquilo o fez dar um passo pra trás, mas o que o derrubou foi a resposta que veio lá de dentro.
— Se eu soubesse que você vinha tomar banho comigo, eu tinha deixado a porta aberta meu pernambucano lindo.
“Quem é ela? Quem está ali? Que pernambucano?” Foram esses os novos tiros que tomou em seu peito enquanto seu corpo escorria pela parede do corredor. Voltou até o quarto e se trancou. Pegou o celular, buscou o aplicativo de fotos e colocou em modo de câmera frontal. Foi quando se descobriu no corpo de Alceu Valença.
“Que diabos é isso que está acontecendo comigo?” Pensou em voz alta, ao se sentar na cama. Era um pesadelo, óbvio. Não que acordar como Alceu Valença lhe parecesse uma ideia ruim, nada disso. Acontece que aquilo era incom-preensível demais. Como arcar com a vida e o corpo de outra pessoa? Foi quando teve uma ideia para acordar de tudo aquilo. Se ele se aproximasse demais da morte, o seu sistema nervoso reagiria, é assim que os pesadelos funcionam. Foi
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até a janela e, ainda nu, sentou-se no parapeito, era só se jogar e pronto: despertaria do sono terrível. Acontece que lhe faltou coragem para dar sequência ao plano e, talvez por conta destas coisas que chamam de acaso ou destino, a mulher que antes estava no banheiro agora batia na porta do quarto e pedia para entrar. Voltou seu corpo para dentro do quarto, pegou uma bermuda da gaveta para cobrir suas partes e abriu a porta.
— O que foi? Você tá nervoso comigo? – disse ela entrando envolvida pela toalha e tocando-lhe o rosto.
— Não, não. É que eu acordei assustado. – respondeu Maurício, sem graça e confuso.
— Você deve me achar uma boba, é isso. É que eu sou sua fã e nunca imaginei que você estaria por aqui. – E soltou a toalha ficando totalmente nua em sua frente.
— Fã? Eu aqui? Como assim?— Ai, desculpa, é que eu nunca imaginei que encontraria
Alceu Valença em pessoa bebendo uma cerveja. Eu tinha que falar com você ontem. – ela vinha em sua direção com um olhar sedento.
— Olha, me desculpa, você não tá entendendo. — Eu ultrapassei os limites né? Eu sou fã, ai, sei lá,
você deve ter passado por isso milhões de vezes, eu me sin-to ridícula agora. – falou a moça se virando e começando a procurar as suas roupas.
— Eu? Milhões de vezes? – disse ele espantado – Não, não! É que eu realmente tive um pesadelo, me desculpa.
— Eu vou embora. Me desculpa. — Não espera, é que eu estou um pouco confuso. Só
me explica direito isso de ontem.— Você não se lembra de nada?— Não é isso, é que eu estou um pouco confuso.
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— Você foi fantástico. Me tirou o ar.Pronto. Agora o último tiro parecia ter sido disparado
em sua testa. Maurício sabia que era um cara simpático, edu-cado e até que não era tão ruim assim o seu desempenho se- xual, mas aquele suspiro entre as últimas palavras dela o fizeram perceber que, pelo visto, tinha agido realmente de forma única na cama.
— Obrigado. – falou encabulado.Ficaram os dois olhando para o chão sem saber o que
fazer até que ela se virou e, pegando suas roupas, voltou a conversar.
— Sabe, é melhor eu ir. Vou pra casa da minha mãe hoje. Você deve ter seus compromissos e não vai querer ser visto com uma fã por aí.
— Ahn? Ah, sim. Não, esse não é problema, mas é que sim, é, eu tenho compromissos.
— Você mora aqui?— Moro, não, sim, espera. Aqui mora um amigo meu,
eu só estou de passagem mesmo. Ele me emprestou o apar-tamento. É um cara bem legal, chama Maurício. Ele é bem mais novo, ele é bem legal. Escuta, quantos anos você tem?
— Vinte e três. Você deve estar me achando uma louca né?— Não, não é isso. Faz o seguinte, me deixa o seu
telefone, a gente conversa outra hora com calma.— Ui! Minha mãe não vai acreditar. Ela é sua fã também. — Que coisa, poxa.E então Maurício a acompanhou até a porta e se des-
pediu, com um beijo na boca que ela lhe roubou. Antes de o elevador chegar, ainda teve tempo de pedir que não contasse nada a ninguém, o que ele concordou, pois sabia que isso traria problemas a sua carreira. Ela foi embora e, enquanto fechava a porta, Maurício pensava com o olhar
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perdido. Deu-lhe um estalo e saiu correndo até a porta do quarto de Rodrigo, amigo com quem dividia apartamento.
— Rodrigo, por favor, eu preciso falar com você.— Quem está aí?— Sou eu, Maurício.— Não, não é.A voz de Rodrigo também estava diferente. Que di-
ferença isso fazia agora? Tudo estava diferente desde que abriu os olhos naquela manhã.
— Rodrigo, eu sei que pode não parecer, mas sou eu. Abra a porta, preciso falar com você.
O apartamento ficou em silêncio por algum tempo. Rodrigo estava perto da porta e disse:
— Escute, eu vou abrir a porta. Eu posso explicar, mas peço que fique longe por enquanto. Você se incomoda em esperar na sala?
— Rodrigo, eu não posso esperar, eu tô com um pro-blema gigante.
— Você não sabe o que é problema ainda. – respondeu Rodrigo e abriu a porta.
Se Maurício não estava entendendo nada sobre si mes- mo, a imagem que surgiu aos olhos quando a porta se abriu foi ainda mais enlouquecedora.
— Você não é o Rodrigo!— E você não é o Maurício.— Rodrigo, é você mesmo?— Escuta, eu sou eu, você é que não é o Maurício.— Você é você quem, porra? Você é o Chico Buarque!— E você é o Alceu Valença!Pronto, o dois não se reconheciam e desconfiavam um
do outro. Estavam assustados demais para ainda compre-ender o que estava acontecendo. Foram para a sala soltando
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palavras ao vento. Sentaram-se um de frente pro outro, balançavam a cabeça e se encararam.
— Eu preciso de um cigarro! – disse Maurício.— Me dá um também vai! – retrucou Rodrigo.— Você nem fuma! — Ah, me deixa! Nem sei quem eu sou.— Você agora é o Chico Buarque ué.— E você é o Alceu Valença, vai que eu tenho os há-
bitos do Chico agora.— E ele fuma?— Sei lá, mas já fumou. Não me enche.Continuaram na sala, ambos exalando fumaça enquan-
to tentavam captar pela memória tudo que acontecera no dia anterior. A rotina no escritório, as conversas, as pessoas que encontraram, a ida ao bar com os amigos. Todo o roteiro se encaixava no script cotidiano de suas vidas, o vácuo apenas era que, após algumas horas de bebedeira, eles já não se lembravam do que tinha acontecido e de como eles voltaram para casa.
— Você lembra de eu ter saído com uma mulher de lá ontem, Rodrigo?
— Não, por quê?— Nada.— Como nada? Você lembrou de algo?— Não, não é isso. É que hoje eu acordei e tinha uma
mulher tomando banho, depois ela veio pro quarto e con-versamos.
— Tinha uma mulher com você? Como assim?— Sei lá porra, ela disse que era minha fã, que a gente
ficou junto, que transamos e tudo mais.— Você o que?— Eu não, que saco! O Alceu Valença!
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— Você é o Alceu Valença!— Escuta, o que foi? Por que isso agora? Está bravo
com o que?— Você sabe se o Alceu é casado? E se ela sair por aí
falando que dormiu com o Alceu? Você tem ideia do problema que pode causar pra ele?
— Porra, eu não escolhi ser ele, está claro isso pra você?— Eu sei, mas... Ah, sei lá! Eu já tenho tanto problema
que nem sei mais por onde começar.Continuaram a buscar pela memória tudo o que fizeram
na noite anterior, até que perceberam que a última coisa da qual se recordavam era de um brinde que fizeram no bar do Sêo Dedé no meio da noite, quando já estavam bem animados.
— Isso! É isso! Foi alguma coisa na bebida! – gritou Maurício.
— O que tem a bebida?— Sei lá! Alguma coisa na bebida! É isso! — Tá, mas então por que o Renato e a Sandra não es-
tão que nem a gente?— Quem disse que não? Você falou ou os viu? Então.— Eu vou ligar pra eles.— Não Rodrigo, você vai até a casa da Sandra. Ligar
não vai resolver nada.— Eu não posso, a advogada da minha ex-mulher vem
aqui para me entregar os papéis do divórcio.— Como assim? Por que você não marcou no escritório
dela?— Ah, sei lá. Eu não queria aparecer lá, ué. Aí ela disse
que vinha aqui. É uma chata!— E como você vai explicar pra ela que você não
é o Chico Buarque?Não havia resposta para essa pergunta e por isso de-
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cidiram que Maurício permaneceria no apartamento e daria alguma desculpa. Rodrigo tomou um banho e se arrumou, saiu pela porta da frente do prédio somente quando o táxi já o aguardava. Pouco tempo depois, o interfone tocou e o porteiro avisou que havia uma moça querendo falar com Rodrigo. A entrada dela foi autorizada e Maurício a recebeu com um discreto sorriso.
— Você deve ser Mariana.— E você é... Alceu Valença? É isso? Eu acho que estou
no apartamento errado.— Não, não. O Rodrigo é um amigo, ele não está. Teve
de dar uma saída, eu peço desculpas. Se quiser aguardar um pouco. Eu vou fazer um café.
— Ah, sim. Ok, eu aguardo.Era nítida a surpresa de Mariana. Ela era viajada, ati-
vista política, conhecia muitas pessoas, mas era a primeira vez que via um de seus ídolos da música brasileira assim de perto. Maurício fez o café e assobiava alguma coisa inteligível na cozinha. Quando perguntou se ela preferia açúcar ou adoçante, teve como resposta que apenas três gotas de adoçante eram suficientes. O café estava servido e, sentados na mesa da cozinha, começaram a conversar.
— Eu peço desculpas pela bagunça, o Rodrigo me dei-xou ficar aqui uns dias e eu sou meio desorganizado.
— E cadê o amigo dele, o Maurício, é isso?— Viajando, não sei quando volta.— Você conhece ele? — Sim, é uma pessoa muito legal. Foi ele que me apre-
sentou o Rodrigo, aliás, o Rodrigo também é uma grande figura.
— Olha, desculpa, eu não sei se compartilho da mesma opinião que você.
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— Sabe Mariana, eu já viajei tanto, conheci diversas pessoas. Nem sempre as pessoas são o que parecem ou o que nos contam.
— Sim, mas...— Mas você conhece apenas a versão da ex-mulher
dele, certo?— Sim, e como mulher eu tenho de estar do lado dela.— Eu não discordo. Aliás, eu concordo. Mas eu con-
cordo ainda mais que a gente tem de conhecer as pessoas. As pessoas se esquecem que nem todo beijo é pecado, nem toda fruta é maçã, nem todo réu é culpado e nem toda culpa é cristã.
— Te amo! – docemente disse Mariana pulando sobre Maurício, que não teve tempo de se desvencilhar dos beijos e do abraço da advogada.
II
Rodrigo estava calado no táxi, tenso, balançando as pernas e pensando em como iria explicar quem ele era pa- ra Sandra, o que estava acontecendo. O taxista então final-mente falou:
— Você não é aquele cantor famoso?— Oi? – retorquiu Rodrigo – Ah, sim. Eu canto um pouco.— Canta, né? Não é você o que mora em Paris?— Ah, sim. Moro lá, moro cá, eu acho.— Não é você que é o petista?— Ah, sim. É, eu votei no PT. Um monte de gente votou
no PT.O taxista se virou para trás e disse:— Eu odeio o PT.Rodrigo sentiu o ódio daquelas palavras entrando por
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seus ouvidos enquanto um frio lhe subia a espinha. Real-mente, ele precisava aprender a prestar mais atenção ao que dizia e pensar antes de usar as palavras.
— Acho que eu vou descer aqui.— Não, eu acho que não.
III
Maurício se levantou da cama. Mariana estava sob os lençóis o observando. Ele foi até a sala, trouxe o maço de cigar- ros e o cinzeiro. Perguntou para a advogada:
— Você fuma?— Eu? Sim. Eu não sabia que você fumava. — Eu estou parando, acontece que o dia hoje não está
colaborando. – e se deitou do lado dela, colocando-a em seus braços. – Sabe, acho que vou vir mais vezes para São Paulo.
— Se você precisar de uma advogada, eu posso te dar o meu cartão.
— Não, eu não preciso de uma advogada. Ainda mais uma que esteja processando um amigo meu.
— Quanto o Rodrigo é seu amigo?— Muito.— Isso é um problema.— Por quê?— Eu não posso defender a minha cliente sabendo que
transei com um amigo do ex-marido dela. Mesmo ele sendo o Alceu Valença.
— Olha, eu não quero te influenciar em nada. Eu nem sei direito os problemas dele com a ex-mulher. Só sei que ele estava bem chateado com tudo isso. As pessoas precisam pensar com calma nas coisas que acontecem, eu agora penso que a estrada da vida tem ida e volta, ninguém foge do
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destino, esse trem que nos transporta.— Me beija! – disse Mariana com os olhos brilhando
enquanto pulava sobre ele.
IV
Rodrigo percebeu que seus problemas só estavam piorando quando o taxista já estava na Marginal Tietê e de on- de ele provavelmente não conseguiria descer do carro.
— E então? Me explica isso? Como você pode defender um pessoal que roubou tanto o nosso país?
— Olha, escuta, eu não quero discutir política. Não era melhor termos ido pela Avenida Tiradentes e depois pegar a Nove de Julho?
— Não. Vamos por aqui mesmo. O senhor acha que eu estou roubando o senhor? Eu não sou petista não.
— Escuta, eu não disse isso, eu só quero ir até a casa de uns amigos.
— De quem? Do Lulinha dono da Friboi?— Escuta, eu não sei de nada disso. – a voz de Rodrigo
estava desesperada.— Sabe Sêo Caetano, é muito fácil pra vocês artistas
ficarem defendendo esses bandidos, vocês vivem lá na Globo, vocês não estão aí na rua com a gente, se ferrando.
— Olha, escuta, eu... Espera. Você me chamou de Caetano?
— Escuta aqui Sêo Caetano Veloso, quer que lhe chame de doutor, é? Só porque é artista acha que é diferente? Eu conheço esse seu tipo, seu petralha.
— Espera, tá tendo um mal entendido. Eu sou o Chico Buarque.
— Chico Buarque? Ai meu Deus, me desculpa.
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— Oi?— Você não é o Caetano Veloso?— Não, eu sou o Chico Buarque.— Desculpa Sêo Chico, é que eu me confundi. É que
a gente estava conversando no ponto um dia desses sobre esses artistas que defendem o PT, aí me falaram do Caetano Veloso, que ele mora lá em Paris, que ele só vem aqui pra fazer show e que ele defende o PT.
— Tudo bem, acontece. — Mas o senhor disse que votou no PT.— Sim, eu disse isso. É que você me entende, petista
é chato pra caramba, eu não queria discutir política. Eu votei no Aécio.
— Aí sim! Me desculpa Sêo Chico se te assustei. — Tudo bem, podemos ir pra onde eu quero ir agora?— Sim, sim. Vou pegar o retorno ali, depois desconto
esse pedaço da corrida, pode deixar. Mas me diga, como é a vida de artista?
— Mais confusa do que você imagina.
V
Maurício havia perdido a noção do tempo que passara com Mariana. É preciso considerar que ele vivia uma vida tão repetitiva nos últimos anos, sem namorada, sem ninguém com quem partilhar momentos íntimos. Sentado na cama ao lado da linda advogada, que agora dormia, pensou se o que fizera foi errado. Sentiu-se péssimo por ter enganado aquela mulher e queria falar a ela toda a verdade. Se aproximou dela e sussurrou seu nome.
— Mariana, precisamos conversar.— Oi, meu pernambucano lindo.
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— Mariana, eu preciso falar uma coisa.Ela se arrumou na cama, virou-se para ele e disse:— Fique tranquilo. Eu não vou contar a ninguém que
estive com você. Se bem que, minhas amigas morreriam de inveja se eu contasse.
— Não, não é isso. — O que é então?— Eu sinto que agi errado com você.— Agiu errado? Você não sabe é como agiu bem!— Não, não é isso. Eu me sinto um pouco mal, como se
eu tivesse me aproveitado de você.— Desculpa, mas eu não estou entendendo.— É que eu não sou assim.— Escuta, você não vai agir como um babaca machista
agora e me achar uma vadia, né?— Não, não é nada disso. É que eu sinto que eu não sou
quem você pensa que eu sou. Se você soubesse quem eu sou, talvez nem prestaria atenção em mim.
— Escuta, eu não sei como você é na vida particular, e nem você me conhece. Melhor, eu sei que você é o artista Alceu Valença, mas não a pessoa Alceu Valença. Eu queria conhecer uma parte disso, e consegui. Se bem que eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer um dia.
— Tá, mas e se você descobrisse que eu não sou isso que você conhece do artista.
— O que eu conhecia era o artista, agora eu conheci um pouco do homem. Acontece que isso não importa, eu faço só o que eu quero. Se eu tivesse a sorte de conhecer o Chico Buarque, provavelmente eu teria agarrado ele tam-bém. Se bem que acho que isso nunca vai acontecer, já foi bom demais eu te conhecer.
— Nunca diga nunca.
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— Pois é. Bom, será que o Rodrigo já chegou?— Rodrigo! – gritou Maurício, se lembrando que havia
algo importante a se resolver.Maurício saiu correndo do quarto e não encontrou Ro-
drigo pelo apartamento, voltou ao cômodo e pegou seu celular, haviam inúmeras chamadas dele não atendidas e mais uma infinidade de mensagens de texto.
— Escuta Mariana, eu acho que o Rodrigo não vai vol-tar tão cedo e agora eu preciso sair.
— Tudo bem. Eu também vou embora. Acho que não vou poder mais continuar nesse caso. Eu não deveria me envolver com um amigo da outra parte.
— Nossa, do jeito que você fala...— É sério. É uma questão profissional. Eu vou ter que
avisar a minha cliente que vou substabelecer o caso pra outra advogada. Não vai dar certo assim. Quando eu te vi, e depois do que eu vi, percebi que tinha que fazer uma escolha. E fiz.
— Bom, só espero que isso não prejudique meu amigo.— Não, prejudicar não vai, mas também não é porque
ele é amigo de Alceu Valença que eu vou ajudar. Ela se levantou e, enquanto se arrumava, Maurício ia len-
do as mensagens de texto, ele descreditava e ria das novidades.
VI
— Dona Sandra, tem um senhor aqui na porta pro-curando a senhora.
— Quem é que está aí?— Ele disse que se chama Rodrigo.— Pede para ele subir.Rodrigo entrou no prédio com a cabeça baixa e correu
em direção ao elevador. Tudo que ele queria evitar era ser
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reconhecido por mais alguém como Chico Buarque. Passou por algumas crianças pelo saguão de entrada que nem per-ceberam quem era aquela figura. Ao chegar no décimo- -segundo andar, foi direto até o apartamento de Sandra que nem esperou a campainha ser tocada para abrir a porta. Sorridente ela disse:
— Então você é o Chico Buarque?— Puta que pariu! Você também?Sandra deu uma gargalhada que ecoou por todo o an-
dar e desceu pelas escadas do edifício. A expressão de es-panto de Rodrigo fazia que seus olhos saltassem as órbitas. Ela o puxou para dentro e fechou a porta.
— E então, prefere que eu te chame de Rodrigo ou de Chico.
— Sei lá! Eu te chamo de que? Sandra ou Paula Lima?— Me chama de Sandra.— Cacetada! O que está acontecendo?— Eu não sei, mas eu e o Renato estamos adorando.— O Renato! Cadê ele? Como ele reagiu?— Ué meu querido, ele adorou! E eu também. Gostei
dele ruivo.— Ruivo? Como assim?
VII
Depois que Mariana foi embora e que as notícias pare- ciam estar, a princípio, melhores do que imaginava, Maurício decidiu tomar um banho e se arrumar. Passavam-se muitas coisas em sua cabeça, remorso, prazer, dúvidas e também certezas. Se havia algo de bom em se tornar alguém famoso, por que não aproveitar um pouco? A vida tinha sido um compêndio de aborrecimentos com ele nos últimos anos,
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ninguém lhe dava muita atenção na empresa, sentia-se um tanto quanto questionado por um monte de gente. Quantas vezes ele percebeu que as pessoas impunham a ele uma imagem a qual não correspondia. A verdade é que Maurício sentia-se muito infeliz nos últimos anos por não se encaixar num mundo que ele dizia ser de aparências. Se havia algo bom naquilo tudo que estava passando, por que não aproveitar um pouco?
Vestiu uma calça qualquer, uma camiseta e decidiu sair para se encontrar com os amigos na casa de Sandra, onde tudo parecia estar bem. Pegou o metrô e não foi importunado em nenhum momento. Talvez as pessoas não o incomodassem por não saber se de fato aquele era Alceu Valença ou apenas alguém que se parecia com o cantor. Desceu na estação Trianon-MASP e de lá iria a pé até a Nove de Julho. Passou em frente ao café onde se separou da única namorada que realmente amou. Por coincidência, um cantor de rua tocava e cantava uma música de Alceu Valença. A música lhe entrou pelos poros e tomou-lhe aqueles sentimentos guardados por tanto tempo. O risco era grande, sua voz podia desafinar, ele podia atravessar o tempo da música, enfim, ele podia fazer Alceu Valença passar um papelão, afinal de contas, Maurício sabia muito bem que não tinha nenhum dote musical, mas por que não arriscar? Tudo em segundos na sua mente se desfez quando foi até o microfone e ali, sem saber se daria certo ou errado, acompanhou aquele violeiro das ruas cantando a “La Belle de Jour”.
VIII
Estavam enfim reunidos ali no apartamento de Sandra e Renato. Tomavam uma cerveja e comiam alguns petis-
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cos preparados improvisadamente para aquele momento. O papo estava animado, Renato contou que saíra na rua um pouco e fora interrompido diversas vezes por pessoas desconhecidas.
— Mas Renato, pelo menos você agora é torcedor do tricolor? – disse Rodrigo.
— Cara, eu posso ser o Nando Reis, mas aqui ainda bate um coração palestrino. – respondeu Renato.
As gargalhadas não paravam, Rodrigo, que tinha pas-sado toda a manhã tenso e confuso, estava se sentindo tão bem que agora dava risadas do ocorrido dentro do táxi.
— O pior é que eu votei no PT mesmo, mas naquela hora eu fiquei com um medo danado! Vai que ele começa um quebra-pau no carro. Tá maluco!
— E ele confundir Caetano com Chico, vai entender isso. – interpelou Sandra.
— É, mas sei lá, as pessoas confundem tudo mesmo, ninguém mais pensa sobre o que ouve ou vê, fazem das imagens e sons, ideias que elas querem e que nem sempre são a realidade.
Maurício estava calado, algumas vezes ria para não parecer distante, comentava com pequenas frases. Sentia-se incomodado com o que ocorrera no apartamento, as duas mulheres num único dia. Aquilo nunca acontecera em sua vida. Sentia-se um mentiroso.
— Pessoal, isso não está certo. – disse Maurício repentinamente.
— Como assim Maurício? Se isso aconteceu é por algo de bom. – respondeu Sandra.
— Não, não está certo. A gente acorda de repente e está vivendo a vida de outra pessoa. Não é certo.
— Mas cara, se isso aconteceu é por alguma boa razão.
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— Não sei Renato, é confuso. A gente pode prejudicar pessoas que não têm culpa de nossos atos. Pensem, es-sas pessoas as quais nós nos tornamos, elas têm seus compromissos, suas vidas. A gente não pode interferir nisso. Vocês já pensaram no que pode acontecer se amanhã alguém vê vocês dois andando na rua de mãos dadas? A gente nem sabe se eles são casados, têm filhos.
— Mas Maurício, e se agora eles não existirem mais, ou seja, se a gente se transformou neles e eles sumiram? – perguntou Rodrigo.
— Não, se fosse assim eu não ia acordar na mesma ca- sa que você ué! Eu acho que a gente tinha que descobrir como isso aconteceu e mudar de volta.
— Por que essa irritação toda Maurício, tenta relaxar um pouco. – pediu Sandra.
Olhando diretamente para Sandra e com uma expres- são angustiada, remoendo-se de culpa e também de frus-trações, o falso pernambucano então decantou sua angústia.
— Porque eu conheci duas mulheres, uma delas eu nem sei o nome. Eu fiquei com elas e, em menos de 12 horas, eu tive mais prazer do que no último ano inteiro. Só que elas não estavam comigo, elas estavam com o Alceu Valença. Vocês acham que é fácil um assistente financeiro, solteiro, frustrado com os rumos da vida acordar um dia e se descobrir Alceu Valença?
O apartamento ficou em silêncio. Eles se entreolhavam e não emitiam nenhuma palavra. O vazio estava preenchido pelas angústias de Maurício. Renato se levantou, foi até a ja- nela e olhava para o horizonte de prédios da região da Bela Vista. Rodrigo batucava com os dedos na garrafa de cer-veja tentando distanciar o silêncio. Sandra se levantou, aproximou-se de Maurício, sentou-se e colocou a mão em um
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de seus ombros.— Maurício, você não tem culpa. Não se sinta assim.— É, mas eu queria que isso acabasse. – e dizendo isso
se levantou.— Onde você vai cara? – perguntou Rodrigo.— Vou pro último lugar que eu sei quem eu era.
– e saiu pela porta do apartamento.
IX
Maurício estava no mesmo bar ao qual tinha ido na noi-te anterior. Apesar de ser um sábado, o movimento estava fraco. Os músicos estavam se arrumando no pequeno palco. Eles riam alegremente enquanto mais um copo de chope era posto na mesa. Os três amigos apareceram juntos, sentaram--se com ele e Rodrigo foi o primeiro a falar.
— É, você estava certo.— A gente sabia que você ia estar aqui, por isso nós
viemos te ver. A gente vai te ajudar a descobrir como voltar tudo isso pra como estava. – disse Sandra.
— Mas antes, vamos tomar um chope! – falou Renato e logo assobiou para que o garçom viesse atendê-lo.
O garçom veio tirar os pedidos e enquanto anotava, Maurício lançava sobre ele um olhar cheio de perguntas e inquietações. Algo lhe parecia suspeito. Antes que ele se afastasse, Maurício perguntou:
— Escuta amigo, você trabalha aqui há pouco tempo né?— Já tem algumas semanas. – respondeu o garçom.— A sua cara não me é estranha.— Eu tenho um rosto comum. Vou trazer as bebidas.— Aproveita e me traz uma dose do seu melhor whisky,
daquele que só você sabe onde está a garrafa.
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O garçom segurou o passo e congelou. Passados al-guns segundos, sem se virar respondeu:
— Eu trarei um da nossa reserva particular.Assim que o garçom se afastou, os outros três cer-
caram Maurício de perguntas. Se ele não queria chamar a atenção não era hora de começar a fazer perguntas para o garçom. Eles estavam ali para pensar em como resolver aquela situação. Ele apenas respondia que já sabia quem era o atendente, e o que lhe faltava eram apenas duas coisas para comprovar. Quando o garçom retornou e colocou os copos na mesa Maurício indagou:
— Por que você fez a barba?— Eu nunca tive barba. – balbuciou o garçom – Eu
sempre tive o rosto limpo.— Bom, se isso é verdade então, um brinde a você! Por
favor, beba um gole desse whisky primeiro!— Eu não posso, isso não ficaria bem perto dos de-
mais clientes. – respondeu o atendente de forma nada con-vincente.
— Eu duvido que você consiga dizer não. Ficar sem barba é uma coisa, mas negar um gole desse belo destilado. Vamos fazer assim, se você não beber eu jogo ele no chão e fica tudo resolvido.
— Você tem ideia do sacrilégio que você está dizendo! Me dá logo esse copo! – disse o garçom pegando o copo e já desfrutando a bebida.
— É Miele, você pode até tentar enganar sem a barba, mas a um verdadeiro single malt você não trairia.
Todos ficaram espantados na mesa, exceto por Mau-rício, que tinha um leve sorriso nos lábios. Luiz Carlos Miele então pegou uma cadeira e sentou-se com eles à mesa, enquanto explicava que a morte dele foi um grande engano,
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a verdade é que de fato sim, ele tinha desencarnado e seu corpo tinha sido enterrado. O fato era que depois de alguns dias ele acordou num pequeno quarto e sala do centro da cidade, estranhou tudo aquilo, não se lembrava de como havia chegado ali e nem porque havia terra em seus bolsos e na sola de seus sapatos. Só começou a entender as coisas quando encontrou o envelope que estava na mesa da cozinha, o qual ele tirou do bolso e mostrou a todos para comprovar a autenticidade. Era uma carta de Vinícius de Moraes, pedindo desculpas pelos transtornos, e que, em breve, resolveriam tudo. O poeta explicava em seu texto que eram apenas questões burocráticas que estavam atrapalhando tudo, pelo visto, faltava o reconhecimento em cartório da assinatura de um superior que autorizasse a sua morte. Tratava-se apenas de uma questão de procedimentos e tecnocracias, não podiam simplesmente recebê-lo e nem também ressuscitá--lo na frente de todos, e isso já envolvia questões políticas sensíveis, podendo causar diversas desavenças diplomáticas entre os representantes das religiões, e que finalmente viviam em paz, diferente de seus “representantes” na Terra. A recomendação era de que aguardasse a solução dos problemas e que, enquanto tudo isso não era resolvido, raspasse a barba e fosse trabalhar no bar do Sêo Dedé, que com aquela carta saberia o que fazer e por quem Vinícius tinha muita estima.
— Você está aqui por causa de uma assinatura? É isso? – perguntou um embasbacado Rodrigo.
— É, é isso. O Vinícius agora está lá numa função diplomática, sei lá, deve ser alguma confusão que ele causou. Enquanto isso, eu recebo meus amigos, faço meus drinks, tomo um whisky com o Sêo Dedé. Tem sempre alguém precisando de um drink especial. Igual o que vocês
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me pediram ontem. — Mas que drink é esse? – perguntou Rodrigo.— É o Coquetel Especial. Vocês estavam reclamando
tanto da vida ontem, quando eu disse que tinha uma bebida que resolveria tudo isso e vocês pediram quatro copos. Vo- cês não lembram?
— Não! – responderam em uníssono.— Eu acho que é rum, preciso diminuir a dose do rum,
– disse Miele pra si mesmo e com o olhar distante – bem que o Belchior me falou pra colocar uma dose de rum a menos. Enfim, esse coquetel transforma vocês em pessoas que não são, para que isso os ajude a ver a vida diferente. O Maurício, se sentia todo rejeitado, mas pelo que eu vi ontem à noite, até que se saiu bem. Era um galanteador nato.
— Mas isso é porque eu estou de Alceu Valença.— Não Maurício, você apenas confiou em você mes-
mo. Cada um de vocês precisa descobrir o que vocês querem mudar nas próprias vidas. O problema é que o efeito só du-ra dois dias. Na segunda-feira, quando acordarem, vocês estarão com os mesmos corpos que tinham antes. Os pen-samentos, a memória, os desejos, os sentimentos serão os mesmos. É por isso que eu lhes digo para aproveitar o que puderem para se encontrarem, se entenderem.
Os quatro ficaram em silêncio, se olhando por alguns instantes, até que Maurício começou a rir e foi logo seguido pelos outros que ali estavam.
— Mais alguma coisa, pessoal? – perguntou Miele.— O que você faria agora, aqui, se estivesse no nosso
lugar? – perguntou Renato.— Bom, eu não perderia a chance de subir ao palco
e tocar com o conjunto. – respondeu o garçom.— Você tá de brincadeira, né? – retrucou Maurício.
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— Não, é sério. Gente, tem um monte de artista que tá na mesma situação que eu, que foi mais não foi, que acabou ficando por aqui também. Esse negócio de morrer virou uma confusão, vocês não fazem ideia. Subam lá e vocês terão uma noite inesquecível com grandes artistas da música brasileira.
— Mas a gente não canta de verdade! – disse Rodrigo.— Pode confiar, vão lá. Deixem a coisa acontecer,
vocês vão ver. Os quatro amigos se olharam, ergueram os copos,
brindaram e foram pro palco. Antes de subir, Maurício se aproximou de Miele e perguntou:
— Escuta, você é um cara que viveu tanto, sempre parecia estar de bem com a vida. Parece que você acertou em tudo que fez. Tem algum outro conselho, algo que seja muito importante, algo que você sabe que pode mudar ainda mais a nossa vida, que pode me fazer viver bem?
— Sim, cuidado com melancias, elas podem te matar.
Este livro, composto com a família tipográfica Ubuntu, foi impresso em Pólen Soft 90g na Grafnorte Gráfica e Editora.
São Paulo, Brasil. Abril de 2016.
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Luiz FrancoLuiz Franco
PAR
EID
OLIA
Pareidolia é o primeiro livro de contos do poeta, técnico gráfico, produtor cultural, professor e ar-queólogo, entre outras coisas, Luiz Franco. Ecos de cada uma destas profissões que o autor exerce ou já exerceu se encontram nos textos aqui selecionados. A preocupação com a beleza e o ritmo do textosão fruto da cancha como poeta. A ironia, o humore o gosto pela polêmica são indissociáveis da per-sona do autor, e aqueles que já acompanharamo blog S.O.S. Nave Mãe (sosnavemae.com.br) estão familiarizados com o estilo inciso e polêmico de Luiz ao tratar os mais diversos assuntos. O produtor cultural exigente, solidário e guerrilheiro, com seu estilo de produção punk rococó, é o responsável pe-la edição do livro independente de editoras e jabás, mas com editoração cuidadosa e caprichada, soli-dificada pelo trabalho talentoso do amigo e artista Gustavo Lambreta. O professor é uma das muitas faces do contista, preocupado em fazer divertir, mas fazer pensar e tratar de assuntos sérios sem inte-lectualismos. O arqueólogo dialoga com o poetae escava as várias camadas da terra literária, em busca da raiz dos sentimentos. Boa leitura!
Por Guilherme Castro
lectualismos. O arqueólogo dialoga com o poetae escava as várias camadas da terra literária, em
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