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PERCURSOS DA PATRIMONIALIZAÇÃO: Paisagem Urbana e o Conjunto Histórico e Arquitetônico da Cidade de Viçosa do Ceará (1999-2012) VIANA, MONALISA F. (1); SILVA, MARCO AURÉLIO F. DA (2) 1. Universidade Estadual do Ceará UECE. Discente do Mestrado Acadêmico em História MAHIS / Bolsista CAPES. Rua Antônio Arruda, 750, Barra do Ceará. CEP: 60.347-255. Fortaleza-CE. Brasil [email protected] 2. Universidade Estadual do Ceará UECE. Docente do Mestrado Acadêmico em História MAHIS. Av. Paranjana, 1700, Campus do Itaperi - MAHIS. CEP: 60.740-000. Fortaleza-CE. Brasil [email protected] RESUMO A pesquisa em curso busca relacionar paisagem e patrimônio cultural, trazendo, como objeto de investigação, o processo de patrimonialização de trecho urbano de Viçosa do Ceará CE, tombado em 2003, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN. Assim, serão nossas problemáticas: a percepção da perspectiva de paisagem ali salvaguardada; o processo de patrimonialização e suas influências sobre a configuração da paisagem urbana; o processo de atribuição de valores àquele trecho, implicando seu reconhecimento oficial enquanto patrimônio nacional. Todavia, por meio da utilização de fontes orais, voltamos nosso olhar também para os habitantes da cidade, em suas formas de apropriação daquele conjunto. Partindo daí, pretendemos compreender a paisagem, não apenas como uma composição de elementos estáticos, mas ressaltando seu aspecto dinâmico o movimento cotidiano. Práticas, memórias e usos aparecem como parte do bem patrimonializado. Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Paisagem Urbana; Viçosa do Ceará.

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PERCURSOS DA PATRIMONIALIZAÇÃO: Paisagem Urbana e o Conjunto Histórico e Arquitetônico da Cidade de Viçosa do Ceará

(1999-2012)

VIANA, MONALISA F. (1); SILVA, MARCO AURÉLIO F. DA (2)

1. Universidade Estadual do Ceará – UECE.

Discente do Mestrado Acadêmico em História – MAHIS / Bolsista CAPES. Rua Antônio Arruda, 750, Barra do Ceará. CEP: 60.347-255. Fortaleza-CE. Brasil

[email protected]

2. Universidade Estadual do Ceará – UECE. Docente do Mestrado Acadêmico em História – MAHIS.

Av. Paranjana, 1700, Campus do Itaperi - MAHIS. CEP: 60.740-000. Fortaleza-CE. Brasil [email protected]

RESUMO

A pesquisa em curso busca relacionar paisagem e patrimônio cultural, trazendo, como objeto de investigação, o processo de patrimonialização de trecho urbano de Viçosa do Ceará – CE, tombado em 2003, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Assim, serão nossas problemáticas: a percepção da perspectiva de paisagem ali salvaguardada; o processo de patrimonialização e suas influências sobre a configuração da paisagem urbana; o processo de atribuição de valores àquele trecho, implicando seu reconhecimento oficial enquanto patrimônio nacional. Todavia, por meio da utilização de fontes orais, voltamos nosso olhar também para os habitantes da cidade, em suas formas de apropriação daquele conjunto. Partindo daí, pretendemos compreender a paisagem, não apenas como uma composição de elementos “estáticos”, mas ressaltando seu aspecto dinâmico – o movimento cotidiano. Práticas, memórias e usos aparecem como parte do bem patrimonializado.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Paisagem Urbana; Viçosa do Ceará.

3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro

Ao discutir acerca da produção historiográfica vinculada à História Cultural, Sandra Pesavento

aponta a cidade como um dos campos temáticos de pesquisa, ao redor do qual muitos

trabalhos investigativos vêm se agregando e adotando uma nova abordagem. Atentando para

a reflexão trazida pela historiadora, temos:

[...] ela [a cidade] não é mais considerada só como locus, seja da realização da

produção ou da ação social, mas sobretudo como um problema e um objeto de reflexão. Não se estudam apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade [...] o que implica resgatar discursos e imagens de representações da cidade que incidem sobre espaços, atores e práticas sociais (PESAVENTO, 2008, p.77-78).

Diante de tal colocação, trazemos o interesse por aqui perceber a cidade de Viçosa do Ceará,

a partir da reflexão sobre algumas práticas e representações, seguindo a via que nos leva ao

processo de patrimonialização do trecho urbano localizado nas cercanias de sua Igreja Matriz.

Viçosa do Ceará é cidade-sede do município homônimo situado na Microrregião da Ibiapaba,

distando 348,8 km da capital cearense, Fortaleza (Figura 1). O município integra, ainda, a

Área de Proteção Ambiental Serra da Ibiapaba (APA Serra da Ibiapaba), criada em 1996, com

o objetivo de, entre outros: “I. garantir a conservação de remanescentes de cerrado, caatinga

e mata atlântica” 1. Além da sede, o município viçosense apresenta os distritos “General

Tibúrcio, Lambedouro, Manhoso, Padre Vieira, Juá dos Vieiras, Passagem da Onça e

Quatiguaba” 2.

Historicamente, a atual cidade de Viçosa do Ceará foi se forjando no sítio onde se configurou,

como parte do projeto colonizador, a Aldeia de Nossa Senhora da Assunção, a qual reuniu

diferentes grupos indígenas, entre os quais é destacada a presença dos Tabajara. Desse

período, foi legado à posteridade o templo católico, elemento dorsal daquela organização

social implementada pelos padres da Companhia de Jesus. Em 1999, ele (Figura 2) figurou

como matéria de solicitação para tombamento federal, elaborada pelo arquiteto José Liberal

de Castro. Assim, em 2002, foi reconhecida como Monumento Nacional, “[...] ficando

tombados a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção e seu acervo móveI integrado,

observada a condição de destaque conferida aos painéis pintados no teto da Capela-mor,

assim como a de exclusão das imagens de gesso [...]”.3

1 Art. 1º. Inciso I. Decreto/96, de 26 de novembro de 1996.

2 Prefeitura Municipal de Viçosa do Ceará. http://www.vicosa.ce.gov.br/?page_id=63.

3 Ata 34ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, 16 de maio de 2002, p.10. Fonte:

Superintendência do IPHAN no Ceará.

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Figura 1: Viçosa do Ceará-CE. Foto: Monalisa Viana.

Figura 2: Igreja Matriz. Foto: Monalisa Viana.

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Em 2003, seguiu-se o tombamento do já mencionado perímetro da cidade. Sobre ele, em seu

parecer técnico, o então Conselheiro Relator do processo explicita: “O pedido de tombamento

revela o intuito de preservar o quadro paisagístico que envolve a Igreja Matriz [...], tombada

por este Conselho Consultivo em 16 de maio de 2002” (CASTRO, 2002, p.46).

A partir de tal afirmação, desvela-se a possibilidade de pensar acerca de uma abordagem

dialógica entre o estudo do patrimônio cultural, oficialmente reconhecido, e os processos que

envolvem permanências e rupturas inerentes à paisagem urbana. Assim, com o

estabelecimento de um “quadro paisagístico” a ser salvaguardado, posicionamo-nos diante da

problemática da patrimonialização de uma dada paisagem. E quais seriam as implicações

provocadas por essa ação? E as especificidades do caso viçosense?

De início, vejamos o que Milton Santos enuncia. “Tudo que nós vemos, o que a visão alcança,

é a paisagem. Esta pode ser definida como domínio do visível, aquilo que a vista abarca. É

formada não apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons etc.”.

(SANTOS, 2014, p. 67-68). As palavras do geógrafo induzem-nos a perceber a paisagem para

além da feição material. E ao ser patrimonializada, qual seria o tratamento a ela dispensado?

Entendemos que esse processo de patrimonialização não se encerra com a instituição do

tombamento, mas a ultrapassa, por meio de seus efeitos, envolvendo posteriores processos

de desapropriação de imóveis; reformas e restaurações de edificações; projetos de

requalificação dos bens; reformulação e elaboração de dispositivos legais de gestão urbana;

programas de educação patrimonial. Nesse sentido, as ações que o compõem acabam por se

imiscuir no cotidiano de moradores da cidade e, às vezes, também gerando tensões.

Mas do que estamos tratando ao nos referirmos à patrimonialização?

Em seus trajetos pela sobrevivência, os homens interagem com o ambiente do qual fazem

parte e, na interferência sobre esse meio, desenvolvem saberes, práticas e imbricadas teias

de comunicação entre si. Expressos sob as mais diversas formas, esses modos de viver, em

suas dimensões materiais e simbólicas, são chamados de culturas. Dinâmicas, elas

acompanham as mutações implementadas pelos vários grupos sociais, cujas experiências

fecundam o decorrer dos tempos, desdobrando-se por meio de vínculos existentes entre as

diversas gerações envolvidas, e aos quais a contemporaneidade denomina patrimônio

cultural.

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Dito isso, acreditamos ser relevante lembrar que o próprio conceito de patrimônio cultural se

apresenta como resultado de um percurso histórico. Um percurso rico em inflexões e sobre o

qual diversos autores já se debruçaram, nele identificando intencionalidades díspares e em

conflito pela produção e perpetuação de uma dada memória. Diante disso, o patrimônio

adquire abrangência, tornando-se contenedor de perspectivas não só do passado, mas

também do presente e do futuro, pois a sociedade que o produz lê os sinais do passado sob a

influência do presente que a cerca, com o intuito de sensibilizar gerações futuras, a partir das

imagens que produz de si mesma. Relacionado a isso, em suas reflexões, Jacques Le Goff

discorre sobre os embates em torno da memória:

Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2003, p. 422).

Tendo como base a produção de memória, podemos compreender o processo de produção

patrimonial também como espaço político, onde são travadas lutas entre os diferentes grupos

sociais. Voltando-nos para o Brasil, a partir do art. 216 da Constituição Federal de 1988,

temos:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos sociais formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (EC nº 42/2003) I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Título VIII, Capítulo III, Seção II, art. 216).

Inferimos dessa leitura a amplitude do conceito em questão o qual, em sua historicidade, nem

sempre apreendeu a pluralidade dos “diferentes grupos sociais formadores da sociedade

brasileira”. Nessa perspectiva, por muito tempo, vários sujeitos históricos não figuraram no

“acervo” do patrimônio nacional, seja pela inexistência de instrumentos capazes de

reconhecer, documentar, proteger e promover as várias expressões de culturas populares e

tradicionais, seja pelo interesse por uma proteção restrita à prática de um tombamento que

privilegiasse determinados bens culturais em “pedra e cal”, referentes a segmentos sociais

privilegiados de tradição luso-brasileira. Com relação a isso, Gilberto Nogueira (2008, p. 322)

exemplifica:

Uma gama enorme de bens significativos não foram preservados por não se encaixarem nesta categorização engessada de patrimônio. Ficaram de fora ou foram destruídos ou relegados ao esquecimento as senzalas, os quilombos e os terreiros, as primeiras fábricas, os cortiços e as vilas operárias, só para ficar nestes exemplos.

Com essa breve exposição, procuramos reforçar o caráter não “natural” do conceito de

patrimônio cultural, como se dá a pensar pela sua larga utilização atual. E o que dizer acerca

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dos processos que produzem patrimônios? E por que protegê-los institucionalmente? Em sua

obra, “O Patrimônio em processo”, Maria Cecília L. Fonseca nos apresenta uma importante

discussão acerca das estratégias de reconhecimento oficial de bens culturais no Brasil,

desenvolvidas ao longo do século XX. Suas palavras, a seguir, levam-nos a perceber a

patrimonialização, inicialmente, enquanto estratégia de afirmação de poder do Estado, não se

referindo ainda a “patrimônio cultural”, mas a “patrimônio histórico e artístico nacional”:

No Brasil, a temática do patrimônio – expressa como preocupação com a salvaguarda dos vestígios do passado da Nação, e, mais especificamente, com a proteção de monumentos e objetos de valor histórico e artístico – começa a ser considerado politicamente relevante, implicando o envolvimento do Estado, a partir da década de 20. (FONSECA, 2009, p. 81).

Complementando o pensamento da autora acima citada, Márcia Chuva expõe:

A noção de patrimônio cultural – categoria-chave para a orientação das políticas públicas de preservação cultural – é historicamente constituída e tem se transformado no tempo. No Brasil, as singularidades da trajetória de formação do campo de patrimônio levaram a uma configuração dicotômica dessa categoria, dividida entre material e imaterial (CHUVA, 2012, p. 147).

Se a própria noção de patrimônio cultural já foi sendo moldada sobre uma base bipartida, o

que dizer sobre o tratamento dado aos bens salvaguardados, às referências culturais? E,

ainda, sobre que bases se desenrolam os processos de patrimonialização? Diante disso,

trazemos a proposta de problematizar um deles: o reconhecimento institucional de um dado

“quadro paisagístico” da cidade de Viçosa do Ceará, por meio do tombamento.

Retornando ao conceito de paisagem apresentado por Milton Santos, depreendemos a

complexidade a ela incorporada, na qual materialidade e imaterialidade se imbricam, em meio

a “volumes”, “odores”, “sons”, “cores”, “movimentos”. Nesse sentido, indagamos sobre quais

aspectos aquele “quadro paisagístico” salvaguardado incide.

Patrimonializando a paisagem: a composição do Conjunto Histórico e

Arquitetônico da Cidade de Viçosa do Ceará

Inferimos que a salvaguarda do “quadro paisagístico” de Viçosa do Ceará foi

instrumentalizada por meio da elaboração de um Conjunto Histórico e Arquitetônico, cuja

tessitura implicou também um processo de escrita de uma história da cidade, em que se

entrelaçam lembranças e esquecimentos, registrados em dada perspectiva da paisagem

urbana. Para Ana Fani A. Carlos: “A paisagem não só é produto da história como também

reproduz a história, a concepção que o homem tem e teve do morar, do habitar, do trabalhar,

do comer e do beber, enfim, do viver” (CARLOS, 2005, p. 38). Assim, qual seria essa

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concepção ali selecionada para alcançar a posteridade? Em suas “Motivações e Justificativas

de Tombamento”, o Estudo realizado pela 4ªSR/IPHAN descreve a “fração espacial” de

interesse:

O centro histórico de Viçosa do Ceará do final do século XIX e início do XX exibe um conjunto de edificações de aspecto uniforme, harmônico, íntegro e de singela beleza, pleno de referências histórico-sociais da cultura brasileira. Se o tomarmos no curso da história e na associação com o esplendor da natureza circundante, manteremos contato com a ambiência indígena pré-colonial praticamente intocada, a organização espacial missioneira da antiga vila, o gosto barroco presente nas pinturas dos painéis da capela-mor da Igreja Matriz, os longos lotes ocupados por edificações extensas com muros laterais vazados, frontões valorizados e vãos encimados por tímpanos de desenhos diversos dos períodos colonial e imperial, a sisudez neoclássica, a variedade de ornatos e motivos decorativos do ecletismo, dentre outros momentos da arquitetura, da arte e do urbanismo brasileiro, o que torna a cidade um rico documento de nossa história e testemunha do processo de ocupação do território nacional [...].

4

Da citação depreendemos uma série de questões, as quais poderão ser analisadas no intuito

de perceber o processo interpretativo do “quadro paisagístico” elaborado: a) o destaque para

o aspecto “uniforme”, característica que parece bastante significativa quando da composição

de um conjunto a ser reconhecido; b) a referência à organização espacial desse conjunto,

buscando nela identificar delineamentos de ocupações pretéritas e com destaque para o

aldeamento colonial, de forma a realçar uma “antiguidade” do traçado urbano; c) a

apropriação, de forma simbólica, da “natureza circundante praticamente intocada”, como

mediadora da conexão com o passado pré-colonial indígena; d) a identificação de estilos

arquitetônicos – neoclássico e ecletismo, ressaltando características formais.

Percebemos que existem intencionalidades perpassando esses pontos. Alguns deles, como o

traçado e a “natureza circundante”, parecem formulados com o intuito de imbuir, ao Conjunto,

peculiares valores urbanísticos. Em outros, destacam-se valores arquitetônicos. E permeando

boa parte deles, desvelam-se valores “históricos”. Esse trajeto interpretativo é perceptível nas

duas denominações atribuídas ao núcleo urbano, pela documentação produzida ao longo do

processo de reconhecimento. Enquanto o Estudo para Tombamento o intitula Conjunto

Arquitetônico e Urbanístico, ele foi inscrito sob a denominação de Conjunto Histórico e

Arquitetônico. Nesses meandros da “ressemantização”, portanto, valores são ponderados na

formulação da interpretação oficial dos bens culturais.

Consideramos que tal interpretação nos lança diante de uma determinada concepção do

“viver”, do “morar”, do “trabalhar”. Nesse sentido, os marcos físicos são revestidos de

representações, saltando-nos, aos olhos, formas e estilos como “o gosto barroco”, “frontões

valorizados”, “a sisudez neoclássica”, “motivos decorativos do ecletismo”. Nessa cidade, cuja

4 Estudo para Tombamento Federal do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de Viçosa do Ceará. 2002.

Fonte: Superintendência do IPHAN no Ceará.

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historicidade remete também a um aldeamento indígena e, posteriormente, a uma vila de

índios, quais sujeitos históricos se encontrariam aí referenciados? Retornando a nossa

discussão acerca da patrimonialização, Henri-Pierre Jeudy nos apresenta a seguinte reflexão:

As estratégias de conservação caracterizam-se por um processo de reflexividade que lhes dá sentido e finalidade. [...] Para que exista patrimônio reconhecível, é preciso que ele possa ser gerado, que uma sociedade se veja o espelho de si mesma, que considere seus locais, seus objetos, seus monumentos reflexos inteligíveis de sua história, de sua cultura (JEUDY, 2005, p. 19).

Na metáfora de Jeudy, o patrimônio seria esse espelho no qual a sociedade se vê, refletindo

partes do processo que a fez ser o que ela é no presente. Diante disso, indagamos se os

viçosenses se veem, de fato, nesse “espelho”, nesse Conjunto Histórico e Arquitetônico. Isso,

sé eles poderão responder! Nessa perspectiva é que nos propomos a buscar outras

interpretações para o bem cultural em questão. Interpretações construídas cotidianamente,

resultantes de práticas diárias, da apropriação por parte de quem habita a cidade.

Relacionando-se a isso, Carlos (2005, p.40) chama a atenção:

Da observação da paisagem urbana depreendem-se dois elementos fundamentais: o primeiro diz respeito ao ‘espaço construído’, imobilizado nas construções; o segundo diz respeito ao movimento da vida.

É a esse movimento que nos referimos ao nos depararmos, por exemplo, com o “vai e vem” de

caminhonetes “pau-de-arara” ao redor da Praça Clóvis Beviláqua, trazendo os católicos à

Igreja Matriz. Algumas delas estacionam e aguardam a saída dos fiéis ao final da missa,

quando retomam a circulação, reconduzindo-os de volta aos seus destinos (talvez, vindos

também de outros distritos!). E a autora referida ressalta:

As construções poderiam ser tomadas como elementos estáticos da paisagem. Se observarmos seu tipo, grau de conservação, arquitetura, perceberemos o movimento “escondido” na forma. Dependendo da hora do dia, ou dia da semana, a observação de um determinado lugar vai mostrar um determinado momento do cotidiano da vida das pessoas que aí moram, trabalham e se locomovem (CARLO, 2005, p.39).

Se o patrimônio cultural tem como referências processos do passado, é a sociedade atual que

dele se apropria, (re) criando suas próprias interpretações, basiladas sobre suas práticas e

memórias. Desse modo, tomemos a leitura de Meneses (1992, p.11):

[...] a memória enquanto processo subordinado à dinâmica social desautoriza, seja a ideia de construção no passado, seja a de uma função de almoxarifado desse passado. A elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar.

Nessa perspectiva, a fim de perceber as formas de apropriação do Conjunto patrimonializado,

recorremos ao uso metodológico da História Oral. Acreditamos que, à interpretação de cunho

acadêmico produzida a fim de patrimonializar o trecho urbano viçosense, poderemos

acrescentar as vozes de quem vivencia a cidade. De acordo com Thompson (1998, 25-16): “A

realidade é complexa e multifacetada; e um mérito principal da história oral é que, em muito

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maior amplitude do que a maioria das fontes, permite que se recrie a multiplicidade original de

pontos de vista”. Nesse sentido, quando um dos depoentes 5 é questionado a respeito de qual

história e quais pessoas consegue visualizar ao olhar aquele núcleo tombado, ele revela:

Pronto! Começando aqui, no Gabinete [Viçosense de Leitura] aqui, eu me lembro [...] mais pelas histórias dos bailes. O meu tio era um ótimo dançador, dançava muito bem! Desse aqui, atrás do secador, jogava bola aqui, menino [...]. Eles usavam como secador de café. Essas calçadas, se você observar, essa calçada todinha da frente, o pessoal plantava café, onde secava o café. E a gente saia chutando os “cafezim”, sabe? No chão. Então, a gente jogava bola na rua. Essa casa aqui dos Pinho, do Dr. Pinho [...]. Aquela, vizinha da minha casa, que agora é um prédio, que destruíram, era da Dona Emília, que eu pulava a janela pra comer biscoito de champanhe, que ela fazia [...]. O Patronato, onde eu estudei, né! As praças, onde a gente brincava. A praça ali, do Marechal Bezerril, que chama praça do cupido, aquela a gente não chegava nem perto! Por que chamava a praça do cupido? Que era onde os casais iam! [...] Festa junina! Outra coisa boa, que eu me lembro! Eu tinha onze anos. Sua casa, você tinha só o milho, aí você ia fazer o bolo de milho. Mas o vizinho, ele já fazia o bolo de macaxeira. O outro já fazia o cauim. Mas cada um mandava um pouco de cada coisa. Então sua festa tinha tudo! Nas calçadas! Tinha as fogueiras. As fogueiras eram nas calçadas. Todo mundo festejava a fogueira! Inclusive, eu tenho madrinha de fogueira, que até hoje eu tomo benção. Quer dizer, as coisas simples, da vida, mas que marcam! (Entrevista. G.B., Viçosa do Ceará – CE, 14 ago. 2014).

Nessa fala, não são as formas das edificações que se destacam, mas as práticas desveladas

nas expressões, como: “dançava muito bem”, “festejava a fogueira”, “pulava a janela pra

comer biscoito”, “chutando os ‘cafezim”, “jogava bola”, “a gente brincava”. Despontam

também lugares que já não mais existem fisicamente, como a casa “que destruíram” e “que

agora é um prédio”. Outros, ele nem chegava a frequentar, mas dos quais se apropria por

meio das representações criadas: “a praça do cupido”, “que era onde os casais iam”. Diante

disso, a versão da história apresentada aparece recoberta por experiências, muitas, do tempo

de “menino”.

A natureza dinâmica da paisagem também se deixa transparecer na fala do Sr. Chiquinho

Carneiro, ao destacar suas vivências circunscrevendo a Praça General Tibúrcio, localizada na

zona de transição do perímetro tombado:

[...] quando já ficando rapazinho da cidade, tinha uma turma de amigos. Aos domingos, a gente vestia a melhor roupa. Geralmente, era todo mundo de paletó, todo mundo na gravata, na missa de nove horas. [...] Era rapazinho, já de doze anos, né! Todo mundo era engravatado, “empaletozado”, ficava passeando pelas praças. À noite, na Praça General Tibúrcio, que é a outra praça [...], tinha dois passeios. E existia uma divisão naqueles passeios, tinha os brancos e os caboclos. Num andavam juntos, era um num passeio e não se misturavam. Era os “caboco”. Era tudo descendente de índio e misturado.

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Essa passagem nos conduziu a questionar acerca das referências indígenas na paisagem

urbana viçosense. Se não se apresentam nos marcos materialmente construídos ou, quando

5 G.B. nasceu em 1972, na casa onde vive atualmente, que é um dos imóveis integrantes do conjunto tombado,

localizado na Praça Clóvis Beviláqua. 6 Entrevista. Francisco Carneiro da Cunha. Realizada por Oswald Barroso. Fonte: Museu da Imagem e do Som

(MIS-CE). O Sr. Chiquinho Carneiro nasceu em 1939, no Sítio Jaguaribe.

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muito, são identificadas na “natureza circundante, [por meio da qual] manteremos contato com

a ambiência indígena pré-colonial praticamente intocada”, na memória do entrevistado, elas

ganham espaço, mesmo sob a alcunha de “caboclo”. Dessa maneira, nos passeios da Praça

General Tibúrcio, aos domingos, a historicidade da presença indígena ganhava marcha,

movimentando-se na composição da paisagem.

Mencionando, ainda, outras categorias classificatórias, os “de primeira” e os “de segundo”, o

Sr. Alfredo Leocádio também narra como, em suas lembranças, aparece a dinâmica daquela

mesma praça, onde a divisão em “duas pistas de andar” dava vazão à divisão social.

[...] na Praça General Tibúrcio, hoje o desenho da praça já modificaram tudo, tinha duas pistas de andar: o pessoal que chamava de primeira, os “branco”. Que tinha aquele racismo danado naquela época! Pois é, eles andava por dentro. E o pessoal, que falava naquela época, que chamava de segundo, andava por fora. Eles não se cruzavam. Tinha duas pista. Pois é, então era isso, então [...].

7

Abaixo, o Sr. Chiquinho Carneiro volta a falar, desvelando o Cine Theatro Pedro II como um

lugar da infância, apontando os filmes assistidos (de onde viriam?), o caminho percorrido e de

que modo (quantos mais rumavam à cidade nos dias de sessão?).

E vinha pra cá, ou de pé ou montado num cavalo, tá certo? Final de semana eu vinha assistir um filme, só tinha cinema só na sexta-feira, realmente era um seriado [...]. Os Três Mosqueteiros [...]. O que eu guardei mais esse aí. Foi esse seriado, Os Três Mosqueteiros, que marcou bastante na minha vida. Os outros demais era tudo [...] era mudo! Quando o índio fazia assim com a flecha você se abaixava com medo de levar uma flechada. E a primeira vez que eu assisti um filme, era um futuro cunhado meu que era o porteiro, eu cheguei e botei a cabecinha assim na portaria e ele disse: tu quer ir menino, entrar? Ai eu fui assistir o filme lá, e era um de índios, né? Fiquei sentado, quando o índio puxou a flecha pro meu, em direção a mim eu digo: eita, essa aqui num dá pra mim não. E era mudo, só via o gesto [...].

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Nas vozes acima apresentadas, identificamos alguns dos bens materiais que fazem parte da

composição do Conjunto Histórico e Arquitetônico, alguns integrando a poligonal de

tombamento, outros, situados na zona de transição: a Praça Clóvis Beviláqua, o Gabinete

Viçosense de Leitura, o Theatro Pedro II, a Praça General Tibúrcio, a Praça Marechal Bezerril

(a praça do cupido!). Todavia, apresentaram-se também mostras de concepções do habitar,

perpassadas por práticas e representações, configurando interpretações diversas referentes

àquele “quadro paisagístico”.

7 Entrevista. Alfredo Nogueira Magalhães. Realizada por Oswald Barroso. Fonte: Museu da Imagem e do Som

(MIS-CE). O Sr. Alfredo Leocádio nasceu em 1941 e morou, durante a infância e a adolescência, em casa localizada em frente à Praça General Tibúrcio. 8 Entrevista. Francisco Carneiro da Cunha. Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS-CE).

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Conjunto Histórico e Arquitetônico da Cidade de Viçosa do Ceará: sobre

permanências e rupturas na paisagem urbana

De acordo como o Conselheiro Relator do processo em questão: “O trecho da cidade, para o

qual é pleiteado tombamento, cobre área limitada, contando, pois, com um número

relativamente reduzido de edificações” (CASTRO, 2002, p. 55). A poligonal que o define

contempla imóveis erguidos por volta de 1850 a 1930 e, de uma forma geral, contorna a Praça

Clóvis Beviláqua (Praça da Matriz), passando por trechos das ruas Felizardo de Pinho

Pessoa, Antônio Honório Passos, Lamartine Nogueira, Silva Jardim, José Joaquim de

Carvalho, Fontenele Sobrinho, Dr. Omar de Paiva e Francisco Caldas da Silveira. Já a

poligonal de transição, estende-se pelas ruas Vicente de Paula, Prof. Dr. João Viana e José

Beviláqua, contornando as praças Gel. Tibúrcio e Mal. Bezerril Fontenele. Apresentando

parecer favorável ao encaminhamento do processo à análise do Conselho Consultivo do

Patrimônio Cultural, a Coordenação de Proteção do IPHAN redigiu a seguinte descrição:

Não é um conjunto monolítico. Irrompem em volumes diversos e mais ou menos agressivos, como em toda a cidade – ginásios, casas de novos ricos, galpões comerciais insossos, etc. Mas, apesar das interrupções e intervenções que maculam a visão, e mesmo a ideia, prevalece um conjunto. E ao compararmos Viçosa às tantas cidades brasileiras que, sem outros desdouros, vão levando aos trancos e barrancos, ressalta um conjunto vernácula excepcional e que deve ser preservado para herança cultural dos brasileiros.

9

Portanto, na paisagem urbana viçosense, de um modo geral, mesclam-se às edificações do

final do século XIX e início do XX construções recentes, as quais assumem modelos

construtivos mais contemporâneos, utilizando-se de materiais e volumes diferenciados

daqueles de períodos anteriores. São edificações em duplex, algumas fachadas revestidas de

azulejos ou pedras e, ainda, despontam algumas construções mais altas, adotando três a

cinco pavimentos (Figura 3). Partindo da supracitada colocação, percebemos que a noção de

conjunto apresentada carrega um olhar à procura por certa homogeneidade paisagística, ao

passo que identifica certas construções enquanto “volumes agressivos” e “interrupções que

maculam a visão”. Diante dessa ótica, é que percebemos uma das propostas de intervenções

trazidas pelo Estudo para Tombamento, em suas “Recomendações”:

O posicionamento do ginásio esportivo nas mediações da Igreja Matriz constitui forte interferência na continuidade da leitura espacial do sítio histórico, que se caracteriza por uma sequência bastante uniforme de edificações térreas inseridas em lotes estreitos e profundo. O volume construído discrepa completamente de sua vizinhança imediata, impedindo a comunicação entre paramentos das ruas Antônio Honório Passos, Lamartine Nogueira e José Joaquim de Carvalho, alguns dos mais destacados e interessantes do conjunto. Como se trata de edificação modulada em estrutura metálica e telhas de fibrocimento, o que facilita a sua desmontagem e recomposição em outro local com pleno aproveitamento do material existente, propomos a sua demolição com a transformação da área remanescente em praça

9 Memorando nº 180/2002 – PROTEC/DEPROT. Brasília-DF, 25 de agosto de 2002. Fonte: Superintendência do

IPHAN no Ceará.

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pública, com extensão a este local dos mesmos tratamentos devidos à praça da Matriz.

10

A partir dessa proposta, ao sugerir a “demolição com a transformação da área remanescente

em praça”, recomendando o deslocamento do ginásio esportivo para outro local, visualizamos

a estratégia de salvaguarda, enquanto instrumento modelador da paisagem urbana. Silva

(1997) nos ajuda a perceber isso quando apresenta a paisagem resultando de dois conjuntos

de fatores: técnicas e direito. Enquanto o primeiro – as possibilidades técnicas – diz respeito à

capacidade de sobrevivência do homem; o direito traz suas normas e leis definidoras da

apropriação, divisão e uso do solo, e dos produtos provenientes da utilização das técnicas.

[...] dos antigos códigos de posturas aos modernos projetos urbanos, com seus critérios de zoneamento, a paisagem urbana aparece como um espaço construído a partir de normas. Ainda uma vez, são as tensões e os enfrentamentos sociais e políticos, e não os critérios de funcionalidade, que definem projetos e sua implementação (SILVA, 1997, p. 2013).

Figura 3: Imóvel com cinco pavimentos. Foto: Monalisa Viana.

A ação de salvaguarda adotada teve, como ferramenta, a instituição do tombamento, ainda

regida pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o qual “organiza a proteção do

patrimônio histórico e artístico nacional”. Parte da metodologia e tratamento dispensados aos

bens patrimonializados estão contemplados nos artigos:

Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas [...] Art.18. Sem prévia autorização do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe

10

Estudo para Tombamento Federal do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de Viçosa do Ceará. 2002. Fonte: Superintendência do IPHAN no Ceará.

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impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto [...].

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Tais informações dialogam com o que é exposto em parecer técnico, no qual são indicados

“efeitos colaterais” irradiando-se pela área denominada “zona de transição”:

Os efeitos colaterais do tombamento também contemplam a zona de transição, indicada no processo, para a qual será proposta legislação específica. E, porque o processo trata de preservação de paisagem urbana, tanto a área especificamente definida como a respectiva zona de transição devem ser registradas no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (CASTRO, 2002, p.66).

A leitura dos trechos acima nos proporciona a ideia de como o tombamento se torna uma

estratégia de produção espacial ou, ainda, de configuração da paisagem urbana, lançando

mão de práticas que delineiam projetos tanto de permanências, quanto de rupturas naquele

“quadro paisagístico”. Ao passo que as “coisas tombadas” não poderão ser “destruídas,

demolidas ou mutiladas”, submetendo restaurações, pinturas e reparos à aprovação do

IPHAN, ele também sugere transformações, como a já citada desmontagem do ginásio

esportivo. 12 E por meio de um dos depoimentos, também se torna possível perceber outras

dessas mudanças:

Tiraram o relógio! De 59... Que o relógio marcou a vida de cada um! A gente ia pro colégio, olhava pro relógio! O relógio batia! Então, a minha infância, juventude até os quinze anos, o relógio era a base de tudo na cidade. [...] A amplificadora do Seu Juarez: [...] 07h ele começava a Ararena! Quando dava 10h era o relógio! [imita o som do relógio] Aí já era o relógio da gente, pra ir pra casa! Então a vida era assim, isso pelo tempo: o relógio da Matriz, a Ararena do Juarez... Nessa época ninguém usava relógio! (Entrevista. G.B. Viçosa do Ceará - CE, 14 ago. 2014).

O entrevistado faz referência à retirada do relógio de uma das torres da Igreja Matriz, quando

dos trabalhos de restauração da edificação, ocorridos nos anos de 2005 e 2006. Em outro

trecho, ele remonta à reforma da Praça General Tibúrcio que se encontra em execução: uma

iniciativa da Prefeitura Municipal, com o intuito de proceder à modernização da infraestrutura,

tendo em vista a atividade turística.

No tempo, a gente jogava com dois banquinhos... Quer dizer, com aquela reforma da praça, tirou toda... A gente olha pra praça, não tem mais o sentido da nossa memória, da nossa infância [...]. Aqueles canteiros, não tinha jardins, mas era onde a gente [...] jogava o triângulo, jogava a bila, né! Então, pra gente que morava, ali era o melhor parque de diversão do mundo! (Idem).

Quanto à reforma, que também se estende à Praça Clóvis Beviláqua, o site oficial do Governo

Municipal noticia o evento de apresentação dos projetos, iniciado com:

[...] uma breve explanação dos principais avanços que ficarão marcados na história do nosso município, entre eles a construção das duas principais Praças que mudarão completamente o perfil do nosso município, tornando-o mais belo e turístico [...].

13

11

Decreto-Lei nº 25/37 – Capítulo III: Dos efeitos do tombamento.

12 Tratou-se de uma recomendação: o ginásio esportivo continua instalado no mesmo local.

13 Prefeitura Municipal de Viçosa do Ceará. https://mail.google.com/mail/u/0/#search/r/147a8edab9031aa3

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Aqui, aparece o poder municipal também como agente (re) construtor, intervindo sobre o

“quadro paisagístico”. Nesse sentido é que poderemos observar a preocupação dos agentes

oficiais de proteção patrimonial, em buscar a anuência dos poderes públicos locais e o ajuste

da legislação municipal, com a criação ou aplicação de novos dispositivos legais. Como é

sugerido abaixo:

A solicitação do relator também objetivou facilitar entendimentos futuros entre o IPHAN e as autoridades locais, em favor do ajuste da legislação municipal ao estatuto federal concernente à preservação. No Ceará, tem-se notícia de desencontro entre a legislação aplicada pelo IPHAN e planos diretores recentemente aprovados por câmaras municipais de cidades que possuem áreas tombadas pelo governo federal. Este não é o caso de Viçosa do Ceara, cuja expressão demográfica ainda a exclui da obrigatoriedade constitucional concernente ao preparo de planos diretores urbanísticos (CASTRO, 2002, p.65-66).

À época, o Município ainda não havia elaborado seu Plano Diretor Participativo, tendo-se em

vista que o “Estatuto da Cidade” (Lei n º 10.257/2001 – Diretrizes Gerais da Política Urbana) o

define como obrigatório apenas para as cidades com mais de vinte mil habitantes. Entretanto,

em outra passagem, o relator indica: “[...] a cidade deverá preparar, já neste ou, quando muito,

no próximo ano, um plano diretor que tanto considere a situação atual da cidade como tente

prever solução de novos problemas, que por certo advirão do incremento das atividades

turísticas” (CASTRO, 2002, p.56). E com relação à legislação urbana, Raquel Rolnik nos lança

a seguinte definição:

A lei organiza, classifica e coleciona territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação. Funciona, portanto, como referente cultural fortíssimo na cidade, mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final (ROLNIK, 1997, p. 13).

Finalmente, consideramos que, os planos de gestão municipais, os projetos e ações de

modernização locais, as estratégias oficiais de salvaguarda do patrimônio cultural, bem como

as práticas cotidianas, todos são formas de apropriação dos espaços da cidade e das

referências culturais. E essa tensa articulação nos conduz a pensar que, à medida que a

cidade vai se constituindo historicamente, ela assume uma dimensão “literal”, tornando-se um

enérgico agente de indagação no que tange às suas próprias condições de produção. Quem a

produz? Para quem? Que memórias, identidades e projetos constrói ou apaga? (SILVA

FILHO, 2003). Tal dimensão se deixa entrever por meio da observação da paisagem, sobre a

qual Ribeiro (2007, p.24) discorre: “[...] a estética da paisagem é uma criação simbólica,

desenhada com cuidado, onde as formas refletem um conjunto de atividades humanas”. E

aqui, completemos com a reflexão de Milton Santos:

A paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições; a lógica pela qual se fez um objeto no passado era a lógica de produção daquele momento. Uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que tem idades diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos (SANTOS, 2014, p. 72-73).

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Se a paisagem resulta de uma escrita sobre a outra, por que “guardar” alguns de seus

fragmentos, sobre os quais não se permitiriam mais “reescrições”? E de que forma isso é

possível? Tratemos agora de prosseguir a investigação!

Referências

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CASTRO, José Liberal de. Viçosa do Ceará: Parecer sobre tombamento federal de trecho urbano. In: Revista do Instituto do Ceará, 2002. 45-68.

CHUVA, Márcia R. R. Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 34, 2012. 147-165.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

MENESES, Upiano T. Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, nº 34, 1992. 09-23.

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Edusp, 2014.

RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. – Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007.

ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação política urbana e territórios na cidade de São Paulo. – São Paulo: Estúdio Nobel: Fapesp, 1997.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 203-216.

SILVA FILHO, Antônio Luiz Macêdo e. A cidade e o patrimônio histórico. Fortaleza: Museu do Ceará / SECULT-CE, 2003.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.