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Perdas & Ganhos Lya Luft 2ª EDIÇÃO EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO - SãO PAULO 2003 1 Convite Não sou a areia onde se desenha um par de asas ou grades diante de uma janela. Não sou apenas a pedra que rola nas marés do mundo, em cada praia renascendo outra. Sou a orelha encostada na concha da vida, sou construção e desmoronamento, servo e senhor, e sou mistério. A quatro mãos escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a sério. Procurando o tom Que livro é este? Talvez um complemento ao Rio do meio, de 1996. Escrito na mesma linha, retomando vários dos que são meus temas.Toda a minha obra é elíptica ou circular: tramas e personagens espiam aqui e ali com nova máscara. Fazem isso porque não se esgotaram em mim, ainda as vou narrando. Provavelmente assim continuarei até a última linha do derradeiro livro. Que livro é este, então? Eu não o chamaria de ensaios, porque o tom solene e a fundamentação teórica que o termo sugere não são jeito meu. Certamente não é romance nem ficção. Também não são ensinamentos - que não os tenho para dar. Como em muitos campos de atividade, surgem novos modos de trabalhar ou criar que precisam de novos nomes. Cada um dê a esta narrativa o nome que quiser. Para mim é 13 aquela mesma fala no ouvido do leitor, que tanto me agrada e faço em romances ou poemas - um chamado para que ele venha pensar comigo. O que escrevo nasce de meu próprio amadurecimento, um trajeto de altos e baixos, pontos luminosos e zonas de sombra. Nesse curso entendi que a vida não tece apenas uma teia de perdas mas nos proporciona uma sucessão de ganhos. O equilíbrio da balança depende muito do que soubermos e quisermos enxergar. Encontro um amigo, pianista consagrado, e conto que estou começando um livro, mas como sempre no início de um novo trabalho ainda estou buscando "o tom" certo. Ele acha graça, então escritor procura o tom? Rimos, porque acabamos descobrindo que os dois buscamos a mesma coisa: encontrar o nosso tom. O da nossa linguagem, da nossa arte, e - isso vale para qualquer pessoa - o tom da nossa vida. Em que tom a queremos

Perdas e Ganhos - Lya Luft

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Perdas & Ganhos

Perdas & Ganhos

Lya Luft

2 EDIO EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO - SO PAULO 2003

1 Convite

No sou a areia onde se desenha um par de asas ou grades diante de umajanela. No sou apenas a pedra que rola nas mars do mundo, em cadapraia renascendo outra. Sou a orelha encostada na concha da vida, souconstruo e desmoronamento, servo e senhor, e sou mistrio.

A quatro mos escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meudestino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos asrio.

Procurando o tom

Que livro este? Talvez um complemento ao Rio do meio, de 1996. Escritona mesma linha, retomando vrios dos que so meus temas.Toda a minhaobra elptica ou circular: tramas e personagens espiam aqui e ali comnova mscara. Fazem isso porque no se esgotaram em mim, ainda as vounarrando. Provavelmente assim continuarei at a ltima linha doderradeiro livro. Que livro este, ento? Eu no o chamaria de ensaios,porque o tom solene e a fundamentao terica que o termo sugere no sojeito meu. Certamente no romance nem fico. Tambm no soensinamentos - que no os tenho para dar. Como em muitos campos deatividade, surgem novos modos de trabalhar ou criar que precisam denovos nomes. Cada um d a esta narrativa o nome que quiser. Para mim

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aquela mesma fala no ouvido do leitor, que tanto me agrada e fao emromances ou poemas - um chamado para que ele venha pensar comigo. O queescrevo nasce de meu prprio amadurecimento, um trajeto de altos ebaixos, pontos luminosos e zonas de sombra. Nesse curso entendi que avida no tece apenas uma teia de perdas mas nos proporciona uma sucessode ganhos. O equilbrio da balana depende muito do que soubermos equisermos enxergar.

Encontro um amigo, pianista consagrado, e conto que estou comeando umlivro, mas como sempre no incio de um novo trabalho ainda estoubuscando "o tom" certo. Ele acha graa, ento escritor procura o tom?Rimos, porque acabamos descobrindo que os dois buscamos a mesma coisa:encontrar o nosso tom. O da nossa linguagem, da nossa arte, e - issovale para qualquer pessoa - o tom da nossa vida. Em que tom a queremosviver? (No perguntei como somos condenados a viver.) nEm meios-tonsmelanclicos, em tons mais claros, com pressa e superficialidade, oualternando alegria e prazer com momentos profundos e reflexivos. Apenascorrendo pela superfcie ou de vez em quando mergulhando em guasprofundas. Distrados pelo barulho em torno ou escutando as vozes naspausas e nos silncios - a nossa voz, a voz do outro. Nosso tom ser ode suspeita e desconfiana ou sero varandas abrindo para a paisagemalm de qualquer limite? Parte disso depende de ns.

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No instrumento de nossa orquestrao somos - junto com fatalidades,gentica e acaso - os afinadores e os artistas. Somos, antes disso,construtores de nosso instrumento. O que torna a lida mais difcil,porm muito mais instigante. Sento-me aqui no computador e penso no tomdeste livro, que preciso encontrar. Eu o sinto, neste momento inicial,um murmurar para o leitor: "Vem refletir comigo, vem me ajudar aindagar." Embora seja uma fala ntima, este pode parecer em certosmomentos um livro cruel: digo que somos importantes, e bons, e capazes,mas tambm digo que somos tantas vezes fteis, que somos medocresdemasiadas vezes. Digo que poderamos ser muito mais felizes do quegeralmente nos permitimos ser, mas temos medo dos preos a pagar. Somoscovardes. Mas h de ser um livro esperanoso: sou dos que acreditam quea felicidade possvel, que o amor possvel, que no existe sdesencontro e traio, mas ternura, amizade, compaixo, tica edelicadeza. Penso que no curso de nossa existncia precisamos aprenderessa desacreditada coisa chamada "ser feliz". (Vejo sobrancelhasarqueando-se ironicamente diante dessa minha romntica afirmao.) Cadaum em seu caminho e com suas singularidades. Na arte como nas relaeshumanas, que incluem os diversos laos amorosos, nadamos contra acorrenteza. Tentamos o impossvel: a fuso total no existe, opartilhamento completo inexeqvel. O essencial nem pode sercompartilhado:

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descoberta e susto, glria ou danao de cada um -solitariamente. Pormnuma conversa ou num silncio, num olhar, num gesto de amor como numaobra de arte, pode-se abrir uma fresta. Espiaro juntos, artista e seuespectador ou seu leitor - como dois amantes. E assim, rasgando joelhose mos, a gente afinal vai. Por isso escrevo e escreverei: para instigaro meu leitor imaginrio -substituto dos amigos imaginrios da infncia?- a buscar em si e compartir comigo tantas inquietaes quanto ao queestamos fazendo com o tempo que nos dado. Pois viver deveria ser - ato ltimo pensamento e o derradeiro olhar - transformar-se. O que escrevoaqui no so simples devaneios. Sou uma mulher do meu tempo, e delequero dar testemunho do jeito que posso: soltando minhas fantasias ouescrevendo sobre dor e perplexidade, contradio e grandeza; sobredoena e morte. Lamentando a palavra na hora errada e o silncio na horaem que teria sido melhor falar. Escrevo continuamente sobre sermosresponsveis e inocentes em relao ao que nos acontece. Somos autoresde boa parte de nossas escolhas e omisses, audcia ou acomodao, nossaesperana e fraternidade ou nossa desconfiana. Sobretudo, devemosresolver como empregamos e saboreamos nosso tempo, que afinal sempre otempo presente. Mas somos inocentes das fatalidades e dos acasos brutaisque nos roubam amores, pessoas, sade, emprego, segurana, ideais. Demodo que minha perspectiva do ser humano, de mim mesma, tocontraditria quanto, instigantemente, somos.

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Somos transio, somos processo. E isso nos perturba. O fluxo de dias eanos, dcadas, serve para crescer e acumular, no s perder e limitar.Dessa perspectiva nos tornaremos senhores, no servos. Pessoas, nopequenos animais atordoados que correm sem saber ao certo por qu. Semeu leitor e eu acertarmos nosso tom recproco, este monlogo inicialser um dilogo - ainda que eu jamais venha a contemplar o rosto dooutro que afinal se torna parte de mim. Ento a minha arte ter atingidoalgum tipo de objetivo.

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2 Desenhando no fundo do espelho

Fruto de enganos ou de amor, naso de minha prpria contradio. Ocontorno da boca, a forma da mo, o jeito de andar (sonhos e temoresincludos) viro desses que me formaram. Mas o que eu traar no espelhoh de se armar tambm segundo o meu desejo.

Terei meu par de asas cujo vo se levanta desses que me do a sombraonde eu creso - como, debaixo da rvore, um caule e sua flor.

A marca no flanco O mundo no tem sentido sem o nosso olhar que lheatribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. uma idia assustadora: vivemos segundo o nosso ponto de vista, com elesobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou congelamos conforme nossaabertura ou excluso em relao ao mundo. E o que configura essaperspectiva nossa? Ela se inaugura na infncia, com suas carncias nemsempre explicveis. Mesmo se fomos amados, sofremos de uma inseguranaelementar. Ainda que protegidos, seremos expostos a fatalidades eimprevistos contra os quais nada nos defende. Temos de criar barreiras eao mesmo tempo lanar pontes com o que nos rodeia e o que ainda nosespera. Toda essa trama de encontro e separao, terror e xtaseencadeados, matria da nossa existncia, comea antes de nascermos.

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Mas no somos apenas levados revelia numa torrente. Somosparticipantes. Nisso reside nossa possvel tragdia: o desperdcio deuma vida com seus talentos truncados se no conseguirmos ver ou notivermos audcia para mudar para melhor - em qualquer momento, e emqualquer idade. A elaborao desse "ns" iniciado na infncia ergue asparedes da maturidade e culmina no telhado da velhice, que coroamentoembora em geral seja visto como deteriorao. Nesse trabalho nossa mose junta s dos muitos que nos formam. Libertando-nos deles com oamadurecimento, vamos montando uma figura: quem queremos ser, quempensamos que devemos ser - quem achamos que merecemos ser. Nessa casa, acasa da alma e a casa do corpo, no seremos apenas fantoches que vagammas guerreiros que pensam e decidem. Constituir um ser humano, um ns, trabalho que no d frias nem concede descanso: haver paredes frgeis,clculos malfeitos, rachaduras. Quem sabe um pedao que vai desabar. Masse abriro tambm janelas para a paisagem e varandas para o sol. O quese produzir - casa habitvel ou runa estril - ser a soma do quepensaram e pensamos de ns, do quanto nos amaram e nos amamos, do quenos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudarisso, esse selo, sinete, essa marca. Porm isso ainda seria simplesdemais: nessa argamassa misturam-se boa-vontade e equvocos, seduo ecelebrao, palavras amorosas e convites recusados. Participamos de umasingular dana de mscaras sobrepostas, atrs das quais somos

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o objeto de nossa prpria inquietao. Nem inteiramente vtimas nemtotalmente senhores, cada momento de cada dia um desafio. Essaambigidade nos dilacera e nos alimenta. Nos faz humanos. No prazo deminha existncia completarei o projeto que me foi proposto, aos poucostomando conta dessa tela e do pincel. Nos primeiros anos quase tudo foiobra do ambiente em que nasci: famlia, escola, janelas pelas quais meensinaram a olhar, abrigo ou priso, expectativa ou condenao. Logo noterei mais a desculpa dos outros: pai e me amorosos ou hostis, bondososou indiferentes, sofrendo de todas as naturais fraquezas da condiohumana que s quando adultos reconhecemos. Por fim havemos de constatar:meu pai, minha me, eram apenas gente como eu. Fizeram o que sabiam, oque podiam fazer. E eu... e eu? Marcados pelo que nos transmitem osoutros, seremos malabaristas em nosso prprio picadeiro. A redeestendida por baixo tecida de dois fios enlaados: um nasce dos quenos geraram e criaram; o outro vem de ns, da nossa crena ou nossaesperana.

Muito escutei na infncia: "Criana no pensa." Criana pensa. Mas faztambm algo mais importante, que amadurecendo desaprendemos: ela .Contemplando uma mancha na parede, um inseto no capim ou a revelao deuma rosa, ela no est apenas olhando. Est sendo tudo

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isso em que se concentra. Ela o besouro, a figura na parede, ela aflor, o vento e o silncio. Da mesma forma ela a frieza ou a angstiados adultos, sua superficialidade e frieza ou seu amor verdadeiro. Eprecisa que s vezes a deixem quieta, sem exigir que a toda hora semexa, corra, fale, brinque, como se contemplao fosse doena. A crianaimersa em seu ambiente participa de um processo maior do que ela, noqual desabrocha com pouca conscincia. Porm ela tem algo mais valiosodo que conscincia: tem intuio de tudo, tem o saber inocente.Perderemos essa sabedoria da inocncia na medida em que formosdomesticados, necessariamente encaixados na realidade em torno. Queiramos deuses que nesse processo de domesticao a gente consiga preservar acapacidade de sonhar. Pois a utopia ser o terreno da nossa liberdade.Ou acabaremos como focas treinadas cumprindo corretamente nossastarefas, mas soterrando aquilo que chamamos psique, eu, self, ousimplesmente alma. Seremos rodos pela futilidade, to mortal quanto apior doena: ataca a alma, deixando-a porosa e quebradia como certosesqueletos. A alma com osteoporose. Uma criana sobretudo a suaprpria dimenso na qual o tempo, os aromas e as texturas, as presenase emoes so a sua realidade peculiar. Isso alguma vez tentei explicarnaquele tempo com minhas palavras hesitantes. Ningum parecia entender -ou no estavam muito interessados. Ento eu armava tudo em

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histrias que recitava para mim mesma como rezas de bruxas. Adulta,acabei fazendo algo parecido ao escrever romances e outros livros - comoeste. Compreendi que a aparente indiferena dos outros com minhasimaginaes infantis no era porque estivessem desinteressados ou eu nosoubesse explicar direito. Era porque o pensado e o real no sedistinguem nem cabem em palavras, e isso no se comunica.

Mais uma vez um livro meu se funda na idia da famlia. Tenhoincansavelmente escrito sobre ela. Somos marcados pelo olhar profticoque nos lanaram em pequenos, como a maldio ou bno das fadas noscontos infantis. Os dramticos ou trgicos personagens que inventei em#meus romances foram frutos de famlias particularmente doentes ondeimperavam o desamor, a hipocrisia, o isolamento. As vezes eram inibidospela impossibilidade de manifestar afetos - que murchavam sem seremexercidos. Se viver sozinho j duro, viver em famlia pode ser oneradoe oneroso. Sofremos com a precariedade dos laos amorosos. Sofremos comfalta de dinheiro e tempo. Sofremos com a necessidade de suprir cada vezmais os mandatos do consumo. Sofremos com o pouco espao para dilogo,ternura, solidariedade dentro da prpria casa. Principalmente, no temostempo ou disponibilidade para o natural exerccio da alegria do afeto.

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Crianas, seja em que famlia for, sero seguramente -no principalmente- um problema e uma tarefa. Para que nos signifiquem alegria ns asteremos de querer e amar. Fazer da casa o ninho, no a jaula, comearantes daquele primeiro toque e olhar sobre um filho que acaba de nascer.A infncia o cho sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias. Sefor esburacado demais vamos tropear mais, cair com mais facilidade equebrar a cara - o que pode at ser saudvel, pois nos dar chance dereconstruirmos nosso rosto. Quem sabe um rosto mais autntico. Mas svezes ficaremos paralisados. Em plena maturidade sinto em mim a meninaassombrada com a beleza da chuva que chega sobre as rvores num jardimde muitas dcadas atrs. Tudo aquilo para sempre meu, ainda que aspessoas amadas partam, que a casa seja vendida, que eu j no sejaaquela. Para isso precisei abrir em mim um espao onde abrigar as coisaspositivas, e desejei que fosse maior do que o local onde inevitavelmenteeu armazenaria as ruins. Os contornos desse eu que me propuseramprecisaram ser ampliados segundo o meu jeito, para que, dentro de todasas minhas limitaes, eu pudesse me abrir e acolher a vida em constantetransformao. Boa parte do tempo andamos meio s cegas, avanando porerro e tentativa, tateando entre os desafios de cada dia. Sobre essaterra firme ou areia traioeira teremos de erguer a nossa casa pessoalfeita em parte desses materiais brutos. Nem tudo pode ser programado. Osclculos tm resultados imprevistos. Misturamos em ns possibilidade desonhar e necessidade de rastejar, medo e fervor.

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Talvez seja utopia, mas se eu no deixar que se embote a minhasensibilidade, quando envelhecer, em vez de estar ressequida eu tereichegado ao mximo exerccio de meus afetos.

Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psquico. Nascemos dojeito que somos: algo em ns imutvel, nossa essncia so paredesdifceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalhaser a de toda a nossa existncia. As ferramentas para executarmos atarefa de viver podem ser precrias. Isso quer dizer: algumas pessoasnascem mais frgeis que outras. Um beb pode ser mais tristonho do queseu irmo mais vital. No uma sentena, mas um aviso da madrastaNatureza. O meu diminuto jardim me ensina diariamente que h plantas quenascem fortes, outras malformadas; algumas so atingidas por doena oufatalidade em plena juventude; outras na velhice retorcida aindaconseguem dar flor. Essa mesma condio a nossa, com uma diferenadramtica: a gente pode pensar. Pode exercer uma relativa liberdade.Dentro de certos limites, podemos intervir. Por isso, mais uma vez,somos responsveis, tambm por ns. Somos no mnimo co-responsveis peloque fazemos com a bagagem que nos deram para esse trajeto entre nascer emorrer. Carregamos muito peso intil. Largamos no caminho objetos quepoderiam ser preciosos e recolhemos inutilidades. Corremos sem parar ataquele fim temido, raramente nos sentamos para olhar em torno, avaliar ocaminho, e modificar ou manter nosso projeto pessoal.

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Ou nem tnhamos desejos pessoais. Nos dilumos nas guas da sorte ou davontade alheia. Ficamos tnues demais para reagir. Somos os que seencolhem nos cantos ou sentam na beirada da poltrona nos sales da vida.Cada desperdcio de um destino, um indivduo que se probe de sedesenvolver naturalmente conforme suas capacidades ou at alm delas, meparece to trgico e to impor-tante quanto uma guerra. Pois a derrotade um ser humano - que vale tanto quanto milhares. No devamos escreverartigos e fazer passeatas apenas contra a guerra, a violncia, acorrupo e a pobreza, mas proclamar a importncia do que semearam emns, indivduos. De como o devemos cuidar no tempo que nos foi dado paraessa jardinagem singular.

Se insisto na importncia do olhar fundamental me conduzindo por umcaminho ou outro, no estarei atribuindo excessiva responsabilidade famlia primeira - aos pais? Penso que assim. O amor primeiro, aqueleentre pais e filhos, vai determinar nossa expectativa de todos os amoresque teremos. Nossa vivncia inicial vai marcar muitas de nossasvivncias futuras. Por isso, ter filhos e cri-los cada dia gerar epari-los outra vez, sem descanso. Todo amor tem ou crise, todo amorexige pacincia, bomhumor, tolerncia e firmeza em doses sempreincertas. No h receitas nem escola para se ensinar a amar. Uma arenade combates destrutivos me prepara to mal para ser uma pessoa

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inteira quanto o sossego artificial dos problemas ignorados. Lutas podemser positivas, competio faz crescer; amar impor e aceitar limites. Arelao familiar ocorre entre personalidades diferentes ou atantagnicas, predeterminadas a viverem longo tempo entre quatro paredesde uma mesma casa (sem possibilidade de divrcio se forem pais efilhos), reunidos num caldeiro fervente de desencontros e desconsertos:"Sempre senti que minha me no sabia bem o que fazer comigo!" "Meufilho desde beb parecia sempre desconfortvel, at nos meus braos.""Nuncaentendioquerealmentemeupaiqueriademim, era sempre um estranho.""Qualquer coisa qumica, de pele, no funcionava entre minha me e eu, agente no gostava de se abraar." "Vivemos sempre em universosdiferentes e distantes um do outro." "Nunca consegui agradar minhame, ela me criticava o tempo todo, e, mesmo agora que sou adulta e elabem idosa, continuamos no mesmo tom." "Meu pai parecia irritado s de meolhar. Me cobrava tudo. Por mais que eu me esforasse, sempre me sentiaseu devedor." Esse grupo familiar que no escolhemos e nos define tantopode ser um porto confivel de onde partimos e ao qual podemos retornar,ainda que em pensamento. Aquele lugar que ser sempre o meu lugar, mesmoque eu j no viva nele. Mas necessrio cortar com o que eleeventualmente tem de sufocante: pois pode ser tambm jaula, voragem,fundo de poo. Se ficarmos demais presos, teremos de nos puxar pelos

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prprios cabelos para outro espao onde mesmo com susto e incertezas agente possa respirar e decidir o que fazer agora. No podemos alterar opassado. Dramas familiares podem ser razes venenosas por baixo da terrado convvio ou da alma. A lei do silncio, do segredo obsessivo, podeconstituir grave perturbao. Mas podemos mudar nossa postura em relaoa tudo isso, ainda que em longos e dolorosos processos, que significaroa diferena entre vida e morte. Posso me libertar. Posso me reprogramarpara discernir o que para mim, neste momento, o "melhor" - ou opossvel. Meu conceito de mundo inibe minhas decises e me consome e fazencolher, ou me fora a enfrentar alternativas. Nessa hora entraro emjogo a minha bagagem inata, o que eu tiver construdo em mim, osrecursos aos quais posso apelar - e minha confiana de que possorealizar isso. No comandamos o destino das pessoas amadas, nem ao menospodemos sofrer em lugar delas, mas ter filhos ser gravementeresponsvel. No apenas por comida, escola, sade, mas pelapersonalidade desses filhos: mais complicado do que garantir umasobrevivncia fsica saudvel. No significa que ns os formamos oudeformamos como deuses onipotentes. Ao contrrio, parte do drama depaternidade e maternidade no podermos viver por eles nem os preservarde seus destinos. Fazer suas opes. Mas seguramente nossa maneira deser, de viver e de pensar quando ainda eram pequenos, quando aindapareciam "nossos", vai influir em tudo isso. No defendo os paisvtimas, que "por amor aos filhos" desistem de sua prpria vida. Noadmiro a me sacrificial que anula sua personalidade com a mesmaalegao, para no

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fundo culpabilizar os filhos e lhes cobrar o que lhe "devem e at o que"no devem". Mas ser sobre ns, nossa esperana ou pessimismo, nossoafeto ou frieza, que os filhos daro os primeiros de seus muitos passos.E faro isso com seus filhos futuramente. Sero to fundamentais paraeles quanto os pais de nossos pais foram na gerao anterior. Atrs e frente de cada casal humano estende-se uma longa cadeia de erros eacertos geradores de humanidade.

Nascemos com toda a carga de nossa gentica fsica e psquica. Mas nosomos apenas isso. Somos em parte resultado do que foram nossos pais.Mas no somos apenas isso. A sociedade em que vivemos tem muitos olhos ebraos, que nos vigiam e interferem em nossa realidade. Um deleschama-se opinio alheia. No a de algumas pessoas amadas e respeitadas,mas essa entidade informe, onipresente, quase onipotente, do "o que elesvo pensar". Sem pedir licena, entra em nossa casa e nossa conscincia,limitando, podando. Fora das paredes domsticas, nossa insero em umacultura tem uma fora inaudita. Para super-la precisamos dediscernimento, no propriamente um dote da juventude. At chegarmos maturidade somos muito mais vulnerveis a essa presso que, vindo defora, nos vara e l se estabelece. Adolescente numa cidade do interioronde o comportamento era ditado por essa criatura sem rosto - e detantos rostos -, muito me apoiou o que se ensinava em minha casa: aopinio alheia realmente no interessava. Haveria umas

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poucas pessoas s quais, por respeito e afeto, eu quereria prestarcontas - seriam meus referenciais em muita coisa. Muito do que noslegaram pode ser re-programado: somos fruto mas no escravos, o olharprimordial que nos saudou no necessariamente uma sentena de morte.Podemos -tarefa ingrata - fazer nossos acrscimos, escrever uma errata"sobre o texto daquele prefcio de ns. Mas quem nos dar sugestes, quemnos pode ajudar - se somos tambm pr-formados, pr-fabricados econdicionados? Quem vai destramar esses fios, onde comeamos ns etermina a influncia de tantos? Por isso somos buscantes, inquietos,naturalmente insatisfeitos. No condenados: somos livres para muitasdecises. A partir de quando pude ter algum discernimento, o que fizpara continuar sendo - ou melhorando - isto que agora sou? Como fui metornando um indivduo que cultiva liberdade mas tambm respeito eternura pelo outro? Como me posicionei em relao a essa entidadeannima e poderosa que se chama os outros, que pode ser amvel e cruel?Nossa viso imprecisa se define mais com o amadurecimento e a reflexo.Forma-se o que chamamos personalidade, opinio prpria, atitude. De milmaneiras mostraremos o lugar que pretendemos ocupar: pela escolha dasnossas roupas, da profisso, do parceiro, de tudo. Sobretudo noinconsciente eu me comportarei conforme a confiana, a suspeita, oentusiasmo ou o ceticismo que me caracterizam. Dando aulas em umafaculdade eu insistia com aqueles jovens: "Vocs so melhores do quepensam. So mais inteligentes e mais capazes do que pensam, mais,inclusive, do que ns adultos - pais e professores -,sem querer osfazemos acreditar que so."

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Ensinamos aos nossos filhos que so belos e bons, que so prncipes doesprito.., fazemos com que se sintam uns coitados, uns estorvos, motivode preocupao e desgaste, de brigas e de arrependimento, lanados numaaventura fadada ao fracasso? Criamos almas suba ltemas se podamos criaralmas livres? A pergunta pode parecer cnica tendo em vista acomplexidade de nossas estruturas sociais e de oportunidades dedesenvolvimento, mas preciso explicar. Sugerindo que nossos filhosdeviam sentir-se prncipes e princesas, bvio que no penso em luxo ouposio social, muito menos arrogncia, atributo dos medocres.Auto-estima o que me vem mente. Viso positiva, no cor-de-rosa ouirreal, significando confiana. Capacidade de alegria, busca defelicidade, crenas. O que de melhor posso fazer, como ser inteiro efeliz, dentro de minhas possibilidades - que geralmente extrapolamaquilo em que acreditamos ou nos fazem crer. Por isso eu dizia aos meusalunos: vocs so melhores do que pensam. Auto-estima me lembra o quedizia meu amado Erico Verissimo: "Eu me amo mas no me admiro." Tem aver com superar o confortvel esprito de rebanho: formar e sustentaropinies prprias. No com viver desde. nhosamente margem, masenfrentar o risco de algum isolamento. No vender a alma a qualquerpreo por qualquer companhia, mas selecionar os amados eleitos, osamigos leais, os mestres e modelos sensatos. At mesmo a profisso maisadequada, a que nos d mais prazer, se que podemos fazer essa escolha:temos de pegar qualquer atividade quando se trata de sobreviver.

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Falar fcil... Eu sei. Mudanas produzem ansiedade. Tentar sair doemprego em que me pagam mal ou estou infeliz; enfrentar pai ou meopressivos; romper um relacionamento amoroso que me diminui ou esmaga;evitar um convvio em que um se anula para que o outro tripudie, numprocesso de servido que gera ressentimento e culpa. Sair doestabelecido e habitual, mesmo ruim, sempre perturbador. O desejo deser mais livre forte, o medo de sair da situao conhecida, por piorque ela seja, pode ser maior ainda. Para nos reorganizarmos precisamosnos desmontar, refazer esse enigma nosso e descobrir qual , afinal, oprojeto de cada um de ns.

"Mas a famlia no tem mais essa importncia que voc lhe atrbui",objetaro. "A gente muito mais livre, os compromissos so maisfrouxos. Tudo mudou." No: quase tudo mudou. A essncia permanece amesma: a nossa essncia. Vertiginosamente no sculo passado a sociedademudou, a famlia mudou. Transformou-se a cultura, evoluram tecnologia ecincias, tudo avana em uma velocidade inimaginvel h 50 anos. Pormas emoes humanas no mudaram. Nem ao menos somos originais. Nossosdeselos bsicos ho de ser os mesmos: segurana, afeto, liberdade,parceria; sentir-me integrado na sociedade ou na famlia, ser importan

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te para meu grupo ou ao menos para uma pessoa - aquela que o meu amor.No preciso ser um rei para ser importante, mas devo me sentirapreciado. Isso me determinar tanto quanto o primeiro olhar que incidiusobre mim. Devo me considerar capaz e merecedor, sem megalomania, semalienao. Dentro do que est a para que eu o escolha, o modifique, ofaa meu. No tem a ver com dinheiro, posio social, nem com soberba,mas com o modo como somos avaliados - por nos e pelos que amamos. Minhasaes e desistncias nascem desse conceito primeiro. No importa se souoperrio, domstica, motorista, campons ou alto executivo, atrizvitoriosa ou obscura balconista: gosto de mim na medida em que acreditona minha dignidade, quero me expandir conforme meu valor. E tambmsegundo acho que vale a pena esse salto, esse crescimento, essa entrega.Depende de minha confiana. Isso tudo no se instalou em ns atravs depalavras ensaiadas para ocasies especiais ou crises. Estrutura-sesubliminarmente no convvio dirio, paira no ambiente, brilha na pele.Volto famlia: um ambiente duro em casa no prepara para enfrentar adureza da vida, como alguns preconizam. Ao contrrio: para saberdefender-me no terreno violento em que vivemos preciso ter uma slidaraiz de afetos. Esse o alimento mais importante que me podem dar desdeo bero. Ele nutre minha alma, e com ela que conquistarei o meu lugar:o meu lugar na minha casa, no meu casamento, na minha famlia, na minhasala de aula, no meu escritrio, na minha fbrica, na minha rua. Mas temde ser acima de tudo isso o meu lugar diante de mim mesmo. Que no sejasubalterno.

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Se achar que no valho nada, serei nada. Deixarei que outros falem,decidam, vivam por mim. Porm, se acreditar que apesar dos naturaislimites e do medo todo eu mereo uma dose de coisas positivas, vou lutarpor isso. Vou at permitir que os outros me amem.

Cestos, silncios, palavras: criaturas vivas que na sombra doinconsciente armam laos e desarmam vidas. Com elas construmos pontesem cima das guas turvas ou cavamos o fosso dos mal-entendidos. Uma boaparcela dos sofrimentos entre pessoas nasce do desencontro e daincomunicabilidade. "Eu sempre tive certeza de que nossos pais preferiamvoc." "Mas como! Eu que sempre tive certeza de que gostavam muitomais de voc." "Voc nunca disse que me amava, eu at achava que no eraseu filho, que era filho adotado!" "Mas como! Eu te cuidei, te protegi,te ensinei, te dei tudo o que podia... me consumi trabalhando mais doque devia para que no te faltasse nada... lavei suas roupas, cuidei devoc nas doenas..." "Mas aquela vez voc disse... voc fez... vocparecia..." "Mas no era nada disso!... voc no entendeu direito... euno soube me expressar bem." Se a ferida for demais sria, dilogos ouexplicaes como esses no vo curar o que est gravado a fogo. Nobasta uma noite de Natal ou um almoo em famlia para desfaz-lo. Algumme disse:

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"Mas assim mesmo, a gente no se entende. Somos todos unspobres-diabos, todos complicados, todos inseguros e infelizes: comopassar algo de bom para os filhos?" No concordo. No acho que sejamospobres-diabos, nem que todos somos infelizes. Somos complexos, isso sim:intrigantes, vulnerveis e passveis de engano e erro. Somos tambmmaravilhosas mquinas de afeto e idias, de sonho, de produo da arteque transporta para alm do trivial. Capazes de instaurar o mais simplescotidiano que d segurana e aconchego. Porm o amor - como o desamor - uma tarefa trabalhosa. Que nos produz e nos recria a cada hora. Umapersonalidade um jogo de armar de emoes enoveladas, com peasdifceis de ajustar.

Sempre me disseram que eu era feia", contou-me algum, e me convenci deque no merecia ser apreciada, ser escolhida - em resumo, ser feliz.Outra pessoa me disse: "Eu era gordinha, mas meu pai sempre ressaltavaque eu tinha olhos bonitos, era inteligente, era amada. Sem dizerexpressamente, ele me ensinou que o fsico deve ser cuidado mas no tudo, nem deve determinar o meu destino. Hoje, se algum no me amasseporque no estou dentro dos padres da moda, ele no me atrairia peloseu modo de pensar." A famlia nos fornece os primeiros critrios quepodemos seguir ou infringir. Transgredi-los pode ser a salvao emmuitos

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tos casos, se nos esmagarem; mas que difcil, quase herica tarefa.Porm ou nos libertamos at onde for possvel, ou estaro ali atrs daporta a qualquer momento, mos na cintura, mostrando a cara epronunciando sua sentena. Que no ser liberdade nem absolvio.Ensinaram-me desde cedo que minha liberdade era essencial, que se ligava minha dignidade, e que eu seria responsvel por minhas escolhas. Mais:eu sabia que mesmo se tudo desse errado algum sempre estaria ali paramim. Esse se tornou para mim o conceito bsico de famlia: aquele grupo,ou aquela pessoa que, mesmo se no me compreende e s vezes nem aprova,me respeitar e amar como sou - ou como consigo ser. Em qualquerestgio esse sentimento bsico de aprovao faz falta: sim, eu mereoviver bem. Mais tarde ainda pode-se desenvolver e reforar, comexperincias positivas, esforo pessoal, e uma reeducao sentimental, onvel de nossa auto-estima. Autoconhecimento, um dos objetivos daterapia, apura a viso e leva a entender melhor, a conviver com feridas,a sobrenadar mesmo quando a onda forte e feia. Sentir-se valorizadopor algum, amigo, amor, por um grupo, pode ser definitivo. Mas nem tudose resolve assim. Algo elementar pode ter sido mais deletrio do quepodamos suportar. Feridos de morte no incio, passaremos o tempoespreitando para os lados: quem agora vai me ferir, de onde vir oprximo golpe, a prxima traio? Crescendo, amadurecendo eenvelhecendo: com que olhar nos contemplamos? Paramos eventualmente paraolhar e questionar?

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Nossa maneira de ver e viver reflete - e repete - aquela com que fomosvistos quando ramos somente reflexo no espelho, ou vamos formando umapostura prpria com todo o esforo e dor que isso possa exigir? Sendocontraditrios, somamos hesitao e medo com audcia e fervor. Podemosnos esconder no quarto escuro ou virar a cara para o sol, alternar asduas posturas, gastar e consumir, amealhar e multiplicar. Somos tudoisso. Nossa anistia ou nossa aniquilao. No s culpa dos outros seficamos truncados. Em cada estgio podemos colocar algum trao, algumponto, alguma cor no projeto de quem pretendemos ser. Podemos serobrigados a usar disfarces, mas no centro de ns mesmos ressoa o nomeque nos dermos: a nossa chancela.

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Teorias da alma

Quanto mais recursos temos no campo da psicologia e dos novosconhecimentos sobre as relaes humanas, mais inseguros estamos. Quantomais civilizados, menos naturais somos. Na poca em que mais se fala emnatureza estamos mais distantes dela. Ser natural passou a n~o sernatural. Assim com criar filho. Perplexos diante das mil teorias quenos batem porta em toda a mdia, e a proliferao de consultrios comtodo tipo de terapias (pelas razes mais singulares), estamos nosconvencendo de que ter e criar filho no l muito natural. Passamosdo extremo antigo de achar que criana no pensa ao outro extremo:criana complicao. Mil receitas de como tratar do beb aoadolescente atormentam geraes de pais aflitos. A aflio no boaconselheira. Afobado, alis, a gente ama bem mal...

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Esquecemos o melhor mestre: o bom-senso. A escuta do que temos no nossointerior, aquela coisa antiquada chamada intuio, lembram? Claro quepara isso precisamos ter bom-senso e ter algo dentro de ns para serescutado. Ou cada vez que o beb chorar desafinado, a criana ficarmenos ativa (ela em geral est simplesmente pensando, querendo quefinalmente a deixem um pouco quieta), vamos cor-rendo procurar umespecialista. Para que ele nos ensine a segurar o beb, dar a mamadeira,olhar no olho, aconchegar ao peito a criana nossa de cada dia. quesomos, alm de aflitos, desorientados. Falta-nos o hbito de observar ede refletir. Preferimos evitar o espelho que faz olhar para dentro dens. Cada vez mais amadurecemos tarde ou mal. Somos crianas tendocrianas. No gostamos de refletir e decidir: se a gente parar parapensar, tudo desmorona, me disse algum. Temos receio de encontrar aponta do fio dissimulada na confuso do novelo, e, puxando por ela, vertudo se desmontar. Mas pode ser positivo: poderamos recolher os cacos erecomear. Quem sabe criar uma estrutura interior mais natural e boa doque essa em que nos fundamos, e baseados nela dar aos filhos um legado -e um recado - tranqilo e positivo, que no est em livros e nem emconsultrios. Ser natural est em crise grave.

Quando a sofisticao de usos e ferramentas se torna quase cotidiana,tendemos a usar de estratgias complexas tambm quando bastaria apelarpara a simplicidade e sensatez. Mesmo em ambientes onde predomiriam osbons afetos,

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comea antes do nascimento a confuso gerada por algumas teoriasimprecisas ou receitas tolas que nada tm a ver com a psicologiacincia, mas com isso que chamo psicologismo de revista. Queroreafirmar o meu apreo por profissionais da chamada rea psi. Quatroanos de terapia me ajudaram a superar um perodo extremamente difcil.Sempre que posso homenageio a extraordinria profissional que meorientou. Mais do que na maioria das profisses, esse um territrio aoqual chegamos porque estamos sofrendo. Estamos vulnerveis, e noconhecemos os meandros desse novo lugar. Desamparados, ficamosentregues ao profissional que nos vai cuidar. Tenho observado algumasjovens que atendem seus pacientes, adultos ou adolescentes, em roupasmais adequadas danceteria do que gravidade de um consultrio. Nuncame canso de comentar que ali vamos fazer algo mais grave ainda do queremendar as entranhas numa mesa cirrgica: tentamos remendar a nossapobre alma. Aparncia de garotinhas, minissaia, blusa de alcinhas,maquilagem carregada, tre jeitos infantis ao falar, podem disfarar umabagagem bem respeitvel de informaes e teorias. Mas eu, que no sounem pudica nem moralista, imagino se inspiram confiana nos aflitos queas procuram; se lhes podem oferecer apoio, sobretudo orientao. Lembroaqui a histria do grupo de mdicos residentes que fazia a ronda com seuprofessor por uma enfermaria de hospital. Uma das jovens mdicas,vestida precariamente, procurou o mestre e lhe falou no ouvido:"Professor, quando cheguei perto, o paciente do leito comeou a semasturbar."

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O professor olhou-a de alto a baixo, e disse tranqilamente: "Minhafilha, cubra-se." No acho que as profissionais da rea psi devam servenerandas matronas. Mas no perturbem ainda mais quem a elas recorre,mostrando-lhe sua prpria alma de minissaia. Pode parecer engraado, maseu levo isso muito a srio. Levo muito a srio ser srio. Levo a srio aseriedade da doena, seja do corpo ou da mente, a necessidade de amparoe socorro que levam as pessoas a procurar mdicos do corpo e do corao.E tudo isso se aplica s figuras de pai e me dentro de casa. Pai notem de ser carrasco nem irmo: tem de ser pai, ombro e abrao;autoridade, norte e abrigo; camaradagem mas tambm firmeza. Me no temde ser amiguinha, tem de ser mde. Tem de ser aquela a quem filhos, mesmoadultos, sabem que podem recorrer quando tudo falhou, at os melhoresamigos. No ser a falsa jovenzinha competindo em maquilagem e roupas coma filha, ou parecendo seduzir colegas do filho - criandoconstrangimentos que ela ignora como se no vivesse no real. Conceitospouco simpficos, severos? A vida pode ser bem mais severa que isso.

Amar dar a uma criana os meios para adquirir uma personalidadeequilibrada. Perguntaro o que esse equilbrio, e responderei que cadaum tem o seu. Deve ser o suficiente para no nos afogarmos na primeiraonda. Para isso no se exige nem muita instruo nem grandes bensmateriais. No se faz teorizando

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nem debatendo, mas dando regao acolhedor, mo firme e ouvido atento. Osburacos no cho de nosso passado no so terem nos dado apenas doispares de tnis e duas calas, nenhum dos brinquedos eletrnicosmodernos, nem aulas de bal ou idiomas. As falhas do terreno onde vamoscair, quebrando corao e cara, so provocadas por um ambiente hostil,pais despreparados ou infelizes. Mais danosos do que pobreza, escolaruim, roupa modesta, casa simples, bairro suburbano ou excesso detrabalho. O solo firme sero as relaes amorosas. Bom-humor e carinho.Interesse. Mas como ter isso se o cotidiano sacrificado e nem noscomunicamos bem dentro de casa? Um luxo, amar, se muitas vezes no temostempo nem de ler o jornal, dinheiro para o fim do ms, alegria paracomear o dia. Por isso digo que gerar e parir grave responsabilidade.E que vamos continuar parindo, mais do que corpos, seres humanoscomplexos. A fragilidade do relacionamento familiar ou suas eventuaiscatstrofes, nossas inseguranas, o dilvio de informaescontraditrias para as quais no temos muito discernimento, tornam cadavez mais difcil educar. Ento delegamos isso creche, ao jardim, escola, ao psiclogo, turma de amigos. Como temos pouco tempo, ningumpode exigir que a gente ainda por cima manifeste emoes e dialoguequando chegamos em casa exaustos de tentar manter a famlia com asexigncias de consumo que ela tem - ou ns pensamos estar obrigados alhe dar. At porque, se gerar e parir fisicamente natural, criar inserir numa cultura que se sobre pe ao natural. Pode ser repetitivo

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e tedioso, problemtico. Passamos do extremo da educao rgida deseducao simplista.

Conheci a educao pelo terror que imperava antigamente (antes queconhecimentos de psicologia nos ensinassem a sermos menos cruis) at emfamlias estruturadas e funcionais: "Se voc engolir as sementes, essanoite vai nascer uma rvore na sua barriga; se voc mentir, seu narizvai crescer e vem polcia cortar com uma tesoura enorme; se voc comerfruta sem lavar, vai ficar com a barriga cheia de vermes horrveis..."Hoje camos no outro extremo. Pais atnitos com a invaso dopsicologismo fcil e nem sempre consistente receiam impor limites aosfilhos para que no fiquem "traumatizados". Pais inseguros oudesinformados levam filhos aos mais variados especialistas paratratamentos nem sempre necessrios e oportunos. Sei de pais que procurama emergncia de um hospital para que as enfermeiras cortem as unhas deseu beb, ou meam a temperatura simplesmente porque "hoje eu achei elemeio quentinho". Ou porque "o beb chora h trs horas sem parar, deveestar com alguma dor"... e a mdica constata apenas que ele precisava debanho e fraldas limpas. Cortar unhas e botar termmetro no soemergncia. Fraldas sujas no so emergncia. Falta de amor e de atenopodem ser uma emergncia. A psicologia ajuda a entender e aliviar, no aformar a personalidade. Assim a escola, a creche, o jardim-de-infncia,no so lar nem famlia, professoras no so mes ou tias, e

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no se deveriam incumbir esses terceiros, por mais dignos e respeitveisque sejam, dos deveres de nosso corao. Que deveres so esses? Abrirum espao de ternura no cotidiano apressado e difcil, eventualmentecruel. Deixar aberta a porta dos dilogos no convencionais, com horamarcada, mas no fluxo habitual do interesse e do carinho. Amor emfamlia uma arte, um malabarismo, por vezes um herosmo. Essencialcomo o ar que respiramos. Preparar algum para viver no se faz comfrases, mas convivendo. Preparar algum para futuros relacionamentos,para ter um dia sua profisso, sua famlia, sua vida, se faz sendohumano, sendo terno, sendo generoso, sendo firme, sendo tico. Sendogente. A idia de que a vida um bem, e que merecemos liberdade efelicidade, se transmite credtando nisso. Todo o nosso processofuturo se antecipa em casa. O respeito pelos filhos modela o respeitoque tero pelos outros e por si. A chegada de mais uma criana ensina adividir, a competir saudavelmente, a amar com generosidade e a sevalorizar. Isso no se incute com frases ensaiadas, mas com uma atitudegeral. Isso que se chama clima. Qual o clima que reina em nossa casa?Se nossa postura for de uma desconfiana geral, no haver palavras,joguinhos, terapeutas, que convenam a criana de que amar no mortal, de que confiana possvel, e at de que a chegada de um irmopode ser um barato. O ambiente em que vive que vai lhe indicar se bom ter famlia, ter irmos, amigos, amores, se vale a pena - se possvel amar e respeitar sem ser trado.

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Conviver gera problemas e atritos, mas tambm alegria e crescimentopessoal. Vai haver cime entre irmos? Vai. Tambm isso normal, antecipao de laos futuros. Dividir pode ser ruim, pode serdesagradvel: quem no quereria tudo para si: os brinquedos, os pais, acasa, o mundo inteiro? Mas dividindo se reforam auto-estima ecapacidade de interao. positivo, mas tem de nos ser mostrado assim.Nada disso exige grandes estudos ou recursos financeiros. Exigededicao, exige delicadeza, exige ternura: o mnimo que pode esperarquem nasceu de ns.

Nosso legado real aos filhos no a casa, no a conta bancria, no nem mesmo o estudo, como diziam nossos avs. O verdadeiro tesouro doqual eles vo se alimentar (ou tero de se libertar) o recado que lhespassamos diariamente. No est em palavras escolhidas para momentosespeciais. No consiste em noites de Natal ou festas de aniversrio, noest na hora do sermo ou do elogio. Contudo, frases como essas baixamdiante de seu olhar o vu da suspeita: "Voc est precisando de umirmo, a vai aprender a ser menos egosta)" "Quando seu irmo nascer,vai acabar essa moleza toda." "Ainda bem que ano que vem voc vai praescola, a vo lhe ensinar disciplina!" "Quando voc crescer, vai ver oque bom, aproveite agora que s precisa brincar." "Quando voc casare tiver filhos, a sim, vai se lembrar com saudade de quando eracriana."

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"Eu bem queria que voc j fosse casado e cheio de filhos, pra ver oquanto di uma saudade." Somos emocionalmente to rasteiros que osafetos so um dever? Ns realmente sentimos isso, pensamos isso, temosuma afetividade to pobre... ou achamos que ameaar educativo? E seisso nos foi ensinado, o que fizemos para corrigir essa nossadeficincia? Pior: muito mais do que palavras, falam em ns o gesto, avoz, o olhar, a qumica que exalamos. Isso que impera em nosso quarto,nossa cama, nossa casa, nossa mesa - essa aura que distingue pessoas egrupos: afeto ou intolerncia, parceria ou deslealdade. Atritos fazemparte da realidade e certamente so menos danosos do que adissimulao. O escondido debaixo do tapete um tumor mais mortalporque oculto. Todas as relaes precisam ser reenquadradas aqui e ali,ainda que aos trancos e com sofrimento. Porm eu sou dos que acreditamque alm e acima disso amar possvel, pelo menos amar mais, amarmelhor - amar com alegria. As pessoas que nos amam - e a quem amamos -no so necessariamente bonitas, saudveis, agradveis. Isso tambmacontece entre pais e filhos. Nem sempre quem tem filhos gosta decriana. No um defeito de personalidade nem algo perverso. H quem spegando um filho nos braos pela primeira vez sente toda uma gama deemoes desconhecidas, que de repente o/a inundam e enriquecem. Outrostm a alma ossuda como alguns abraos. Mas h quem simplesmente nonasceu para ser me ou pai, embora possa curtir bem outros afetos.

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Essas pessoas, homens e mulheres (pois no somos simples feixes deinstintos), no tm equipamento emocional para isso. Ou nao lhes foiensinado a amar, por sua vez, quando pequenos.

"Pai, olha ali que lindo! Pra o carro para eu apanhar umas flores paraa vov?" A menina colheu flores-do-campo amarelas e roxas, e as seguravano colo durante o trajeto, olhos brilhando de alegria. Quando chegaram,correu para entreg-las av. Esta, num gesto espontneo portantosincero, encolheu-se toda e comentou com voz spera: "Bota isso fora,essas flores de beira de estrada so sujas e tm bichinhos que picam agente!" Nunca esquecerei a expresso do rosto dessa criana. A mulherque revelava tal frieza no era m pessoa. No era desprovida de afetos.Porm sua confiana em coisas e pessoas devia ter sido solapada quandotambm ela era uma menina com braadas de flores para algum adulto dealma rida. "Voc nasceu por acidente, claro que eu te amo, mas nuncaquis ter filhos" ou "eu quis ter s seu irmo, mas seu pai quis tentaruma menina".., so bofetadas, no na cara mas na autoestima. Algumaspessoas no deveriam se sobrecarregar emocionalmente gerando filhos. Noacredito em afetos escravizadores ou escravos, o que para mim essencial para outro pode ser dispensvel ou pesado. Nem por isso ele oueu seremos

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algum melhor ou pior. Ter filhos no garante uma unio mais ou menosboa. Mas porque a gente acha que deve, porque a famlia cobra, porque asociedade espera, porque o cnjuge sonhava com isso, porque nosexigimos seja como for - mesmo sem gostar particularmente da idia,temos um filho. Depois, sabe Deus por que (por "descuido", para seguraro casamento, para consertar coisas, para encher o vazio), teremos maisum ou dois. Preparada a cena para a desestruturao afetiva que sepropaga como crculos na gua quando ali se joga uma pedra impossvelde moer. Quando falei da minha alegria porque nasceriam em minha casaduas menininhas gmeas, me disseram em tom de reprovao: "Mas entovoc quer mesmo ser uma velha que cuida de netos?" Outra reao dealgumas das pessoas a quem contvamos a novidade, manifestaoimpensada por isso sincera, era negativa: "Gmeas? Duaaaas? Quetrabalheira! L se foi o seu sossego! Ah, pobre da sua filha! E a irmdelas, coitada, j est com muito cime?" Trabalhos e alegrias dobraram.E verdade. Cime o sentimento natural de qualquer criana em cujouniverso aparecem competidores e companheiros. No necessariamenteinimigos. Mas ter irmos normal, alegre se a casa for alegre. Tendoirmos, qualquer criana num ambiente sensato est sendo preparada paracompartilhar, respeitar o outro e afirmar-se sem querer destruir esseoutro. At hoje, as gmeas j tendo alguns meses, s vezes indagam: "E acoitadinha da irm, como est-se virando?"

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Eu, que a observo diariamente, diria que se vira muito bem. Sendocriana num ambiente amoroso e bastante calmo, ela resolve de vriasmaneiras o "problema". Isso transparece em atitudes encantadoras como:Ganhou de presente um enfeite de cabelos com duas bonequinhas iguais.Algum perguntou: "So as irmzinhas?" Resposta dela: "No, ora, essassomos a minha mame e eu." Tnhamos comprado grandes bonecas de panopara enfeitar os dois beros. A irm pegou uma delas e por uns dois diasa levava consigo. Indagada, disse: "A mame comprou uma boneca pra mim euma pra Fernanda, e esqueceu da Fabiana, mas j vai comprar." Nocensuramos, no desmentimos. Ela estava armando em seu universo o lugarque caberia a cada criana, e com certeza o seu no era o ltimo nemestava seriamente ameaado. Em pouco tempo acabou largando a boneca nobero da irm e voltou para seus brinquedos habituais. De momento aatividade nesta casa requer reajustes, em especial para uma menina de 4anos. Lidamos ao mesmo tempo com duas pequenas vidas cheias desolicitaes. As vezes todas as mulheres da casa rodeiam os doiscarrinhos como as fadas de um conto mgico, para admirar, amar,socorrer. Tenho fotos de minha mesa de trabalho com uma mamadeira juntodo computador ou dois carrinhos com bebs adormecidos junto destacadeira onde escrevo. Obrigao, chateao? Escolha amorosa.

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No porque eu seja uma boa pessoa ou sequer uma av muito convencional.Mas porque para todos ns este um estgio de trabalho e encantamento.Treinamos mais carinho, pacincia e reflexo. Na balana dos diascertamente a alegria pesa muito mais do que todo o resto, e esto-seestabelecendo laos de afeto que o tempo no vai deteriorar. No cenrioda famlia espero ser o que sempre desejei: um ser humano vulnervel ecomplicado mas amoroso, que curte os outros. Com todos os meus erros,falhas e manias, aprecio laos e afetos, e me ilumina essa sensao deque, afinal, vale a pena. No vivo pensando que a toda hora algum vaime trair. Muitas vezes tenho medo. Freqentemente me engano. Devomachucar quem amo, e certamente sem razo me sinto ferida algumasvezes. Todos os pequenos dramas humanos so meus. Nos meus anos emultiplicados afetos, mais de uma vez quando pensei que haveria umacelebrao, foi um fiasco. Quando imaginei um encontro, foi solido.Quando quis abrao, fui segregada. Ou muito disso se realizou e foibelo, e bom, muito alm de minhas expectativas. Mas aqui, nesta zona deafetos familiares ancestrais - que se restringiu pelo tempo ecircunstncias da vida moderna -mais que perder, continuo ganhando.Esperando que dentro das pequenas ou grandes tempestades que ocorrempara todos ns, fique uma memria de esperana, de amor e lealdade.

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O homem estava pegando as chaves do carro (a mulher j tinha sado paralevar as crianas escola) quando tocaram a campainha. Vagamenteirritado, pois j se atrasara bastante, ele abre a porta: - Sim? O rapazalto e estranho, andrgino, belo e feio, alto e baixo, negro e louro,faz um snalzinho dobrando o indicador: - Vim buscar voc. No erapreciso explicar, o homem entendeu na hora: o Anjo da Morte estava ali,e no havia como escapar. Mas, acostumado a negociaes, mesmoperturbado ele rapidamente pensou que era cedo, cedo demais, e tentouargumentar: - Mas, como, o qu? Agora, assim sem aviso sem nada? Nem umprazo decente? O Anjo sorri, um sorriso bondoso e perverso, suspira ediz: - Mas ningum tem a originalidade de me receber com simpatia nestemundo, ningum nunca est preparado? Est certo que voc s tem 40anos, mas mesmo os de 80 se recusam... O homem agarrou mais firme achave do carro, que afinal encontrara no bolso do palet, e insistiu: -Vem c, me d uma chance. O Anjo teve pena, aquele grandalho estavarealmente apavorado. Ah, os humanos... Ento teve um acesso de bondadee concedeu: - Tudo bem. Eu te dou uma chance, se voc me der trs boasrazes para no vir comigo desta vez. (Passava um brilho malicioso nosolhos azuis e negros daquele Anjo?)

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O homem aprumou-se, claro, ele sabia que ia dar certo, sempre fora bomnegociador. Mas quando abria a boca para comear sua ladainha de razes,muito mais que trs, ah sim, o Anjo ergueu um dedo imperioso: - Esperaa. Trs boas razes, mas... no vale dizer que seus negcios precisamser organizados, sua famlia no est garantida, sua mulher nem sabeassinar cheque, seus filhos nada sabem da realidade. O que interessa voc, voc mesmo. Por que valeria a pena ainda te deixar por aqui algumtempo?

Contaram-me essa fbula, que j narrei em outro livro, e nele quem abriaa porta era uma mulher. A objeo que o Anjo lhe fazia antes de elacomear a recitar seus motivos era: "No vale dizer que porque maridoe filhos precisam de .......

Essa historinha fala do quanto valemos para ns mesmos, do quantovalemos por ns mesmos, do que realmente sentimos e pensamos sobre ns.Algum me disse, tranqilamente consciente de suas limitaes e suasconquistas: - Se eu hoje aos 61 encontrasse o rapaz idealista que fuiaos 18, no me envergonharia de apertar-lhe a mo, e o olharia nosolhos sem ter de baixar os meus. Fez esse comentrio sem laivo desolenidade ou autoglorificao, antes bem- humorado. Aquela doce ironiacom relao a si mesmo que no desprezo mas amor. Quantos de nspodemos dizer isso? Com que argumentos persuadiramos o anjo visitantede ainda no nos levar

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motivo para refletir sobre a passagem do tempo e nosso crescimento comoseres humanos. Em como podemos nos programar, resgatar, desestruturar,reconstruir, boicotar, ou investir nossa cota de humanidade em umprojeto pessoal que faa algum sentido. Boa razo para pensar no valorde ter valores; de avaliar a vida, no apenas correr pela suasuperfcie. Interrompemos de vez em quando nossa atividade para isso -ou nos atordoamos na agitao da mdia, da moda, do consumo, da corridapelo melhor salrio, melhor lugar, melhor mesa no restaurante, melhormodo de enganar o outro e subir, ainda que infimamente, no meu nfimoposto? "Ah, eu sigo meus valores." "Ensinei meus valores a meus filhos."Usamos esse termo com muita facilidade. Que valores, quais valores?Aqueles segundo os quais tento viver, expressos no num eventual sermoou palavreado, mas na maneira como vivo meu cotidiano em famlia, notrabalho, com amigos, com meus amores? Tendo conscincia de queamando-nos mais poderamos viver melhor, passaremos a trabalhar nisso.Comeamos tentando mudar de perspectiva: em lugar de enxergar s aparede em frente, contemplar um pedao que seja de paisagem. Passar devtima a autor de si mesmo um bom movimento. Amadurecer auxilia natarefa de ver melhor a realidade, e no uma catstrofe. Ler ajuda.Abrir os olhos para o belo e o positivo ajuda. Amar e ser amado ajuda.Terapia ajuda. No mnimo, ajudar a mantermos a cabea tona d'gua emlugar de nos afogarmos na autocomiserao. Reinventar-se inteiramente impossvel: o contorno dessas margens, o terreno de que so feitas estestabelecido.Trazemos

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uma chancela na alma - mas podemos redefinir seus limites. Quem sabemudamos as cores aqui, ali abrimos uma clareira e erguemos um abrigo.Muito vai depender do quanto esperamos e acreditamos. De modo geral achoque nos contentamos com muito pouco. No falo em dinheiro, carro, casa,roupa, jias, viagens, que esses cobiamos cada vez mais. Refiro-me aostesouros humanos: tica, lealdade, amizade, amor, sensualidade boa.Nossas asas no so to precrias que tenhamos de voar junto ao cho ouapenas arrastar nosso peso. Nem somos to covardes que no possamosbotar a cabea fora do casulo e espiar: quem sabe no tempo do qualfugimos nos aguarde, querendo ser colhido, algo chamado futuro,confiana, projeto, vida. Ainda que a gente nem perceba, tudo avano etransformao, acmulo de experincia, dores do parto de ns mesmos,cada dia refeito. Somos melhores do que imaginamos ser. Que no espelhoposto nossa frente na hora de nascer a gente ao fim tenha projetadomais do que um vazio, um nada, uma frustrao: um rosto pleno, talveztoda uma paisagem vista das varandas da nossa alma.

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Domesticar para no ser devorado

No preciso consenso nem arte, nem beleza ou idade: a vida sempredentro e agora. (A vida minha para ser ousada.)

A vida pode florescer numa existncia inteira. Mas tem de ser buscada,tem de ser conquistada.

A gueixa no canto da sala

Quando anos atrs eu j refletia sobre os temas especficos deste livro,decidi organizar grupos de mulheres para debatermos sobre a questoMaturidade: Perdas & Ganhos. Convidei uma amiga terapeuta experientepara participar. Mesmo que no fossem grupos teraputicos, eu estarialidando, mais diretamente do que em livros e palestras, com essasingular criatura chamada alma humana. No queria improvisar frente aeventuais momentos de crise. Pretendamos reunir no mximo dez mulherese deix-las trocar idias e experincias sobre o tema doamadurecimento. A cada encontro sugeramos um aspecto do tema ou lhespedamos sugestes. No havia rigidez. Quem quisesse, quem se sentisse vontade, daria seu depoimento ou exporia suas idias a respeito dealgum assunto. Todas podiam comentar, discutir. Hoje vamos falar denossos medos.

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Nossos arrependimentos, nossas alegrias. Nossos sonhos e projetos. Essasugesto podia vir assim, direta, numa frase, ou em algum texto querecebiam para ler. A inteno primeira era descobrir: Quem sou ou achoque sou... quem quero ser, quem gosto de ser? Por que dispendemos tantaenergia tentando ser quem no somos, no podemos ser - quem sabe nemtemos vontade de ser? Depende tambm de mim? Se depende, o quanto issosignifica que gosto de mim? Quero ser feliz, saudvel, amoroso, rodeadode bons afetos ou na verdade curto ser ressentido e amargo? Esse o"meu jeito"? Ou se quero mudar: como mudar, como enfrentar os efeitos damudana? Como acontece entre mulheres, quase de imediato se formou umclima de dilogo e cumplicidade. Algumas mais tmidas, outrasextrovertidas, mais reservadas ou expansivas, rapidamente passaram adirigir elas mesmas os debates, por vezes em tom confidencial, outras,verdadeiras discusses. Lgrimas, risadas. Espanto: "Nossa! Pensei ques eu fosse assim. Achei que ningum tinha esse problema." Nada departicularmente ntimo, apenas manifestaes que provocaram muitareflexo nossa aos sairmos dos encontros. Certamente aprendemos comessas mulheres, que ali faziam o melhor que se pode fazer por si mesmo:querer entender, querer mudar, querer ser mais feliz.

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Suas idades variavam de 40 a 80 anos, a maioria na casa dos 50.Profissionais liberais ou "donas-de-casa" de mente inquietaindispensvel para qualquer debate. Eram da gerao de pioneiras quesomos todas ns: no temos padres anteriores para imitar nem mesmopara infringir, uma vez que o universo de nossas mes est em algunsaspectos to distante do nosso que no h como comparar. O mais difcilera observar o quanto, no importava a profisso, ainda nosvalorizvamos pouco. Insegurana parecia ser a nossa marca, incertezaquanto ao que valamos e podamos (no s "devamos") fazer de nsmesmas. Anos, dcadas, sculos de preconceitos culturais ainda nosprendiam apesar de todas as inovaes. Do que estvamos precisando?Primeiro, de discernimento. As emoes eram confusas. Havia inquietaoe descontentamento, mas a gente nem se permitia elaborar isso com maisclareza. Um desconforto moral trouxera todas quela sala. Como agir emrelao a ele? Era importante defini-lo melhor. Falando, como acontece -pois dizendo o nome das coisas comeamos a ter controle sobre elas -,foram-se delimitando espaos de interrogao, clareando contornos.Apareceram as formas do nosso mal-estar. Uma das mais importantes foicomo era imprecisa a linha entre amor e servido. Entre generosidade eauto-aniquilamento. Entre adaptao e automutilao. Para qualquermudana necessrio compreender o que h de errado em nossa relaoamorosa, em nossa casa, trabalho... em ns. Em que fomos vtimas, quantocolaboramos

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para essa situao. O que posso fazer, como posso, ser que posso ainda?

Uma palavra pronunciada, um texto lido podem nos fazer enxergar o quedevia ser evidente mas no : por ser inquietante demais melhor quefique embaixo de todos os tapetes de nossa resignao. amos nosconscientizando de que amor no deve ser servido. De que em qualqueridade podamos apostar em ns. Era possvel abrir novas portas e sepreciso derrubar algumas em torno e internamente. Devamos assumirdecises, instaurar uma nova ordem pessoal, rever contratos e firmaracertos. Muito disso nem seria falado, mas tcito. Muito teria de serdiscutido, eventual-mente batalhado na famlia ou seja onde for. Erapossvel uma nova maneira de existir, e isso perturbava. Houve quemquestionasse se no seria prefervel tudo permanecer como estava antesdaquelas reunies: na mornido do cotidiano aceito e do sonho podado. "Eagora, o que que a gente faz?", expressavam, entusiasmadas ouassustadas. Cada uma faria ou no faria o que fosse melhor, maissensato, vivel. Para algumas a nica possibilidade seria deixar tudoficar como estava. Para todas, porm, nada mais seria o mesmo:questionar o estabelecido, ainda que eventualmente no pudesse sermodificado, era um modo de se sentirem vivas.

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A questo central era sempre a relao amorosa. Com pais para algumas,com filhos para muitas, para praticamente todas a convivncia com oparceiro. Mulheres que se desperdiam em relaes que as inibem ousolapam seus talentos foram educadas para agradar, no para exercerternura, mas cumprir papis e deveres. Base bem precria para umainterao positiva com colegas, amigos, marido ou filhos. A me sempredisponvel e a mulher submissa, at o colega ou funcionrio eternamentesolcito geram nos outros culpa e hostilidade. Vive-se numa duplasolido: a de quem se submete e de quem at sem querer subjuga.Conviver no se torna dilogo nem parceria, mas um ftustrante monlogoa dois. Mudar isso seria quase um milagre para muitas pessoas. Pormresidem a possibilidades de realizao nunca antes imaginadas para cadaum, ou para os dois parceiros juntos. Alterar qualquer coisa, ainda queseja o cabelo ou o lugar habitual da mesa, difcil. Para algum maisdesestruturado pode ser uma batalha com muitos ferimentos de parte aparte. Sentir-se injustiado machuca, mas conformar-se pode sertentadoramente confortvel: "No h nada a fazer, comigo assim. Meuspais, meu marido, o destino foram carrascos. Agora tarde." Os malesque outros nos causaram - ou ns nos causamos - so sentinelasacusadoras diante de nossa porta. O jeito tentar assumir o controlesobre esses espectros para que no nos manipulem. Alguns desconsertos searrumam com uma boa conversa, ainda que com anos de atraso, e nossurpreenderamos vendo quantas vezes o causador desse sofrimento nadapercebeu.

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Outras marcas so inapagveis, queimaram mesmo, nos deformaram. Paraessas preciso bondade, doura consigo mesmo, sabedoria e aceitao(no usei o termo "resignao" porque no gosto dele). Muitas lamentavamo que tinham feito ou deixado de fazer anos atrs: as escolhas erradas,as omisses, a resignao e a subservincia. Insegurana, incertezas.Casamentos infantis, decises graves tomadas sem refletir, primeirasresponsabilidades srias quando ainda se era to imaturo. Uma deixara detrabalhar porque vieram os filhos, e o marido no queria que ficassemcom uma bab. Outra desistira de fazer mestrado porque os filhosreclamavam de sua ausncia em casa. Outra ainda nem chegara a entrar nauniversidade porque o pai queria as filhas em casa. Uma delas teriapodido fazer doutorado em outro estado, mas nem se animara a mencionaresse desejo pois o marido "ficaria furioso". Uma confessou que noqueria filhos pois se sentia pouco maternal, seu desejo verdadeiro erabrilhar na profisso que a apaixonava mas que s agora, filhos adultos,conseguia realmente exercer com satisfao. Ento por que tivera filhos,trs na verdade? Ora, porque era o que as moas faziam, o que os maridose pais esperavam. Era assim. Relatando esses fatos antigos pareciammeninas apanhadas em falta s porque tinham ousado ter tais desejos. Umaou outra sorriu, sacudindo a cabea: "Meu Deus, como eu fui boba." Erammodelos das boas e dedicadas mulheres que numa relao so - mais queamantes/amigas - meninas submissas de modelos masculinos toestereotipados quanto elas. A

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solido dos seus homens certamente era vasta na medida dessadesigualdade Sugerimos que fizessem, cada uma a seu modo, uma revisodaqueles processos. Porque tinham agido de um modo ou de outro? O quepodiam, agora, tantos anos depois, fazer a respeito? "No posso fazernada, ora, reagiu uma delas, pois passou h vinte anos, acabou, no temjeito." A tendncia ficar arrastando esses pequenos cadveres, os "ah,se eu tivesse.., se ele tivesse..." Posso contornar esse fosso fingindoque no h problema; deitar-me sua beira, chorando; enterrar-me dentrodele com minhas qualidades e esperanas; disfar- lo com folhas, ramos,tbuas, fingindo que nada aconteceu. Tentar preencher esse saldonegativo com alguma coisa positiva, que em cada caso ser peculiar.Indagar: por que naquele momento agi daquele modo? Foi por ignorncia,covardia, impulso de autodestruio? Na relativa lucidez da maturidadeveremos que a maior parte desses "buracos" se tornam menos funestosquando se constata: "naquele momento, naquela circunstncia, eu fiz omelhor que podia." Quase sempre havia um motivo: os filhos pequenos,problemas do companheiro, real dificuldade em se afastar concretamenteda casa ou da cidade, a presso social ou familiar, havia.., nem semprecoisas negativas. Apenas realidades com as quais se tentou lidar comose podia quela altura. Aos poucos enfrentavam-se velhos problemas commais lucidez: naquela ocasio eu fiz o melhor que podia, embora hoje, namaturidade, veja que podia ter agido diferente. Naquela fase, imaturaainda, eu no podia, meus pais no entendiam, meu marido no sabia.

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Amadurecer serve para isso: o novo olhar, na lucidez de certodistanciamento, permite compreender aspectos nossos e alheios antesobscuros. Por vezes promove-se uma espcie de anistia. Partindo delapodem-se reconfigurar padres. Gosto de usar a palavra anistiar - melhorque perdo, pois no tem conotao religiosa, nem d a idia de quesomos bonzinhos perdoando algum. Nem a ns mesmos.

Um dia sugeri que falssemos diretamente sobre o que nos dava raiva. Aprincpio ningum se animou: todas com marido maravilhoso, filhostimos, pais uns santos, proibido sentir raiva. De repente uma, queraramente falava, comeou baixinho: "E tenho raiva. Eu tenho muitaraiva." Sua raiva era da me invlida que a atormentava com a tiraniados fracos, de alguns doentes e das crianas muito mimadas. Outra entodisse ter raiva dos sacrifcios que fazia pelos dois filhos adultos queainda moravam com ela, sempre insatisfeitos e grosseiros. Umacensurava-se por sentir raiva do marido que no lhe dava ateno nemimportncia. ("Para ele parece que eu nem existo, nem sou humana.")Outras sentiam muita raiva de escolhas feitas na juventude, de que faleiacima. A lista foi longa e animada. Comeamos a descobrir que ter raiva(no rancor) pode ser saudvel e necessrio. Nunca ter raiva - no sefalava de dio ou ressentimento - mentir para si mesmo.

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Muitos desses motivos de raiva podiam ser vistos sob outro enfoque:submeter-se a filhos grosseiros resultado de todo um processo, desdeo nascimento ou antes, em que a me precisava sentir-se vtima, aboazinha - a sofredora. Perder as estribeiras, descer das tamancas (oudo pedestal) pode provocar uma transformao admirvel numa relao.Certamente marido e filhos deviam sentir um misto de raiva e culpa emrelao quela esposa-me-mrtir. Quando as coisas parecem muito ruins,ensinou-me uma amiga, pode-se indagar: " tragdia ou apenaschateao?"

Na grande maioria das vezes chateao. A conta atrasada, o patroestpido, o colega invejoso, o filho malcriado, o marido calado, a velhame descontente, cinco quilos a mais, as prprias frustraes. Chuvademais, sol demais. Muito frio, muito calor: de repente, cada vez querespiramos, o mundo parece acabar. Uma boa faxina nos armrios docorao traz grande alvio: botamos fora as chateaes ou as deixamos delado por um tempo, e vamos lidar com as coisas graves. Aos poucosdescobrimos que respiramos melhor. Podemos at mesmo sonhar. Aauto-estima reduzida, companheira da insegurana e do medo, nos indicaramuitas escolhas erradas na juventude. A muitas de ns aprisionava aindaagora num padro fadado a causar mal-estar no ambiente familiar, e umconstante sofrimento pessoal. Se nos valorizamos pouco no s tendemos amanter as coisas como esto (ruim o que conheo, pior o que ignoro), mas

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tomamos - ou no tomamos - decises por medo. Medo da solido, de sermosincapazes de decidir sozinhas, medo da opinio dos outros, medo. Quem sesubestima precisa de algum ao lado para confirmar sua validade comopessoa. Nessa situao no se dialoga, pois o equilbrio da balana estdemais prejudicado. surpreendente a dificuldade de mulheres, mesmocompetentes, para se sentirem justificadas, validadas por si ss. "Nome sinto inteira sem um companheiro, sem poder ao menos pensar e dizer"eu tenho algum" disse-me uma advogada. Tambm nas mulheresbem-sucedidas pessoal ou profissionalmente vive aquela que tem medo deficar sozinha, que viceja melhor sombra do outro e considera suaverdadeira vocao a de servir, de agradar, de providenciar: a gueixa.Essa que resiste a todas as inovaes e conquistas de nosso tempo."Homem gosta de mulher que no sabe escolher no cardpio ou finge queno sabe e deixa ele decidir", disse-me uma jovem numa fase (passageira)de desiluso. Mas quem sabe ns que no somos muito boas em escolhero companheiro, mesmo de um jantar? E quem disse que um homem com essegosto saber nos valorizar, portanto ser que ele nos interessaria?Cuidado: o homem apreciador da gueixa de falinha infantil e pratopreferido dele sempre espera pode ser msculo e prepotente, mas correo risco de tornar-se um eunuco - nas emoes, que ficaro muitolimitadas.

Embora a ambigidade nossa torne tudo mais interessante pelamultiplicidade de opes e interpretaes, por outro

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lado nos aprisiona na gangorra da indeciso. Sofremos essa diviso entreo "querer" fazer e o que pensamos "dever" fazer. Realizamos em ns afrase da nossa infncia, que incansavelmente ouvi: Criana no temquerer. Permanecemos, em algumas coisas, crianas - saboreando osprivilgios e sofrendo os limites dessa condio. Quem conviverconosco, marido ou filhos, vai carregar um fardo a mais, que olisonjeia ou o deixa solitrio: ter ao lado a eterna menina em quem nopode se apoiar, com quem no pode realmente partilhar a vida. Dinheiro einstruo no nos liberam facilmente da secular lavagem cerebral danossa cultura. Passivamente ningum derruba paredes limitadoras. E opreconceito (a "cultura") nos diz que ser ativo coisa de homem. Quedevemos ser gentis, conciliadoras, agradveis, sedutoras, despertar nohomem sentimentos de posse e proteo, controlar constantemente osfilhos para mostrar o quanto somos dedicadas. Em suma, precisamos provarque merecemos afeto. Somos criadas em funo do hipottico prncipesalvador que decidir - e ter de gerir, ainda que lhe custe - o nossofuturo. E naturalmente vai nos tratar como crianas. Seremos sempre asdespossudas, sem espao nem fora de deciso. Seremos dos pais, depoisdo marido, dos filhos, e dos netos. Para ns sobrar o canto da mesa dasala de jantar quando quisermos escrever, o computador do filho quandonos arriscarmos pela Internet, o sof com as outras mulheres nosjantares de casais. Atrs de ns, o terror do tempo que passa devorandouma existncia que nunca aprendemos a administrar - pois jamais nospertenceu. Pior: possivelmente nem a queramos

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administrar, porque isso significaria sair da protegida resignao parao susto das decises. Enfrentar obstculos e exercer enfim o todesejado - e temido - poder sobre ns mesmas. Quando aquele Anjo viessebater nossa porta oferecendo a chance de ainda no nos levar casopudssemos dar trs bons motivos para isso... o que teramos a lhe dizeralm dos pretextos habituais: "marido e filhos precisam de mim, e mas euainda nem arrumei a casa", ou "preciso fazer as compras e preparar ojantar?" No se iludam: isto de que estou falando no acontecia s nocomeo do sculo passado, nem ocorre, hoje, apenas entre mulheres maisdesinformadas ou simples. Embora tenha evoludo muito, a situao dehomens e mulheres - pois se falo de uma, fatalmente estou envolvendo ooutro - est em plena mutao. Muito resta a cumprir para se poder falarem verdadeira parceria. Ela exige equilbrio: entre servo e senhor noexiste dilogo.

Uma das queixas repetidas em nossos encontros era -nada original - nohaver dilogo com maridos e namorados. "Mas voc tentou dialogar, algumavez tentou conversar com seu marido, seu namorado, at seu filho?" "Ah,no adianta... homens no gostam de falar... tm dificuldade compalavras, no tm jeito com elas... fogem da emoo.., so uns covardes. da natureza deles." Ser mesmo?

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Ou ns impedimos os nossos homens de falar porque exigimos demais,exigimos que sejam como ns, que falem a nossa lngua - se eles semprefalaro na linguagem dos homens? Ns realmente lhes abrimos espao aonosso lado, ns de verdade os estimulamos, e os escutamos, somosparceiras - ou quando chegam em casa despejamos em cima deles umatonelada de queixas sobre a casa, a empregada, as crianas, o trnsito,os preos do supermercado... como se esta, a nossa imediata, fosse anica realidade? No impossvel pessoas que falam idiomas diferentesse entenderem: com mmica, expresso, olhar, entonao de voz, alma ecorpo e um gostar-se que dispensa tudo isso. No houve apenas um desfiarde dores e queixas, mas vivenciamos muitos momentos de riso e bomhumor. Falou-se na importncia do bom-humor para conviver, para viver,para saborear positivamente as transformaes todas: "em certos momentosno o amor que nos salva", me dizia um amigo, " o humor". Obom-humor uma qualidade atraente e uma atitude sbia. No se trata desarcasmo, de divertir-se custa dos outros, mas de rir de si mesmo nahora certa, respeitar-se e amar-se, mas no se julgar sempre injustiadoe agredido. Pode ser um ltimo recurso: "Ou tento sorrir, at de mimmesma, ou corto os pulsos", me disse algum com razes para sedesesperar. E sorriu para mim, como quem diz: eu vou conseguir, a gentevai conseguir, afinal vale a pena. No posso fazer piada quando perco umamante ou amigo, quando descubro que estou doente ou fico sem meuemprego. 73

Bom-humor no significa piadas: o sorriso afetuoso, o silenciocarinhoso, o colo acolhedor aberto ao outro e para mim mesma. Nossaevoluo, as imposies do nosso grupo e cultura, nossos prpriosfantasmas, exigem muita energia, vontade e uma pitada de bom-humor paraserem domados - e no nos devorar sem cerimnia e sem compaixo.

Pretendamos um trabalho breve s com mulheres. Mas ao fim de quase umano de sucessivos grupos, quando j pensvamos em suspender o trabalhopor excesso de outros compromissos, havia uma lista de dez homens quedesejaram participar. Fizemos ento um ltimo grupo, desta vez s dehomens. "Por que no misturaram?", sempre nos perguntam. Porque notnhamos idia da dimenso que aquilo tomaria. De nossa vontade dereunirmos um ou dois grupos, apenas porque eu queria tomar o pulso dasmulheres, chegamos a mais de dez. Nunca tive inteno de juntar homens emulheres, pois tnhamos apenas quatro encontros cada vez, e no haveriatempo de se instalar a desejada espontaneidade. Eu estava curiosa peloque diriam homens sobre o assunto das perdas e ganhos do amadurecimento.Pois o grupo masculino teve resultados comoventemente parecidos com osdas mulheres: questionavam suas escolhas, ressentiam-se doenvelhecimento, sofriam com o medo de perder a potncia (tambm aeconmica e a autoridade), de perder a sade e a forma fsica.Aborreciam-se pois, ainda que

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exaustos, lhes parecia impossvel parar ou reduzir o ritmo de trabalho:mulheres e filhos dependiam demais deles. Eram onerados pelapreocupao pelos filhos e culpa por achar que haviam falhado nafamlia: podia ter havido mais dilogo, dedicao e tolerncia. Muitossentiam- se isolados dentro da prpria casa. O lao singular entre me efilhos os deixava de fora. "Os filhos s vm at mim para pedirdinheiro", lamentou um deles, "quando querem amizade, contar coisaspessoais, procuram a me." O no corao dos filhos, mesmo rapazes, eraum terreno onde conseguiam andar direito. Haviam-lhes ensinado, alisdesde cedo, que no territrio de me e filhos o homem era um intruso."Cuidado, voc vai deixar o beb cair! Homem no tem mesmo jeito comcriana. Deixa que eu mesma cuido disso, voc pode ler seu jornal, verseu futebol." No so frases que fabriquei agora mas pronunciadas pormuitas de ns mesmas queles que mais tarde acusaramos de serem"distantes" dos filhos. Quem sabe agimos assim para sermos as nicasdonas daquele que julgamos nosso nico verdadeiro bem, nosso "objeto"mais pessoal, produto nosso, sado de ns - o "nosso" filho? Mulhereslevantam paredes em torno da sua relao com o filho e deixam o homemde fora. Naturalmente passaro a vida queixando-se de que ele no seinteressava pelo beb, no sabia o que fazer com os filhos.

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A solido dos homens me pareceu mais rida do que a das mulheres, quetm outros tipos de laos afetivos: famlia, amigos, at mesmo sua casa."Os rapazes, meus colegas" dizia uma universitria, "quando conversamentre si contam vantagens, falam de dinheiro, futebol, poltica emulher. Ns, as moas (algumas eram j casadas), quando nos reunimos,trocamos confidncias ou nos queixamos (das mes, das empregadas, dosfilhos, dos deveres em casa, ou... dos homens)." Entre o paposuperficial com os amigos e o receio de decepcionar ou assustar (ouirritar?) as mulheres com sua prpria fragilidade, com suas preocupaesmais ntimas ou seus dramas, os homens silenciam. Com suas mulheresmuitas vezes queixosas, obsessivamente encerradas na sua maternidade,consumindo-se nos cuidados domsticos ou em uma excessiva futilidade,resta-lhes o papel de provedor. A necessidade de ter algum com quemdialogar, com quem realmente se abrir, era quase uma constante em seuscomentrios: "Com meus amigos, falo dessas coisas que homem fala:poltica, futebol... com a mulher, no quero me abrir porque ela logofica nervosa, e me cobra mil coisas... e aos filhos, ah , esses eutenho de proteger, no ?" Quase sempre h coisas a melhorar, e quasesempre podem ser melhoradas. No proibido questionar, esclarecer,explicar. No vergonhoso realizar o sonho de estudar, de abrir umaloja, de fazer uma viagem, de mudar de profisso. Mudar umrelacionamento. Mais fcil a resignao: morrer antecipadamente.Velhos casais ressentidos ou jovens casais solitrios dentro de casa soterrivelmente tristes e terrivelmente comuns.

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"Quando estou deprimido, levantar da cama (e no me arrastar pela casa)j um ato herico", comentou algum. Viver um herosmo, viver bem umlongo amor mais herico ainda. Viver sozinho se meu amor fracassou uma batalha por mera sobrevivncia. Porm, s manter a cabea tonad'gua num casamento, suficiente? Um amigo disse no aniversrio de suamulher uma das coisas mais bonitas que ouvi: "Todos os dias de nossocasamento (de uns 40 anos), eu te escolhi de novo como minha mulher." Ocasal mais feliz haveria de ser aquele que no desiste de correr atrsdo sonho de que, apesar dos pesares, a gente a cada dia se olharia comoda primeira vez, se enxergaria - e se escolheria novamente.

Um dia me pediram para escrever sobre "o casal perfeito": bom para quemgosta de desafios. Minha primeira providncia foi cercar com aspas ovocbulo "perfeito". O que justificaria o rtulo sobre o qual eu deviaescrever? Imediatamente ocorreu-me que parceiros de um casal "perfeito"precisam se querer bem como se querem bem os bons amigos, e temperaresse afeto com a sensualidade que distingue amizade de amor. Duaspessoas que compreendem, sem ressentimento nem cobranas, a inevitveldose de peculiaridades do ser humano e sua dificuldade de comunicao.Em ltima anlise, toda a sua complicao. A melhor parceria deve seraquela em que um aceita o outro sem ter de se submeter a qualquer coisapelo outro; em

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que um aprecia e admira o outro, mas tem por ele ternura e cuidados.Sobretudo aquela em que um parceiro no investe no outro todos os seusprojetos, primeira decepo passando de amor a rancor. Se o outroservir de cabide para os nossos sonhos mais extravagantes de perfeio,o primeiro vento contrrio derruba o pobre dolo que no tem culpa denada. No casamento saudvel, h um propsito geral: quero passar comvoc o melhor de meus dias, construir com voc uma relao gostosa,importante e definitiva. importante no correr para os braos do outrofugindo da chatice da famlia, da mesmice da solido, do tdio. Eessencial no se lanar no pescoo do outro caindo na armadilha do"enfim nunca mais s!", porque numa unio com expectativas exageradasdecreta-se o comeo do exlio. Amor bom, alm do mais, tem de suportar esuperar a convivncia diria. A conta a pagar, a empregada que no veio,o filho doente, a filha complicada, a me com Alzheimer, o paideprimido, ou o emprego sem graa e o patro grosseiro. Quando caiaquela ltima gota - pode ser uma trivialssima gota -, a gente explode.Quer matar e morrer, e nos damos conta: nada mais em nossa relao como era no comeo. No nem de longe como planejvamos que fosse. Noqueremos continuar assim, mas no sabemos o que fazer. Ou sabemos, masnos parece inexeqvel. Na verdade, na parceria amorosa como em tudo omais recomeamos tudo todos os dias. Ento podemos tentar comeardiferentes tambm aqui e agora. O cotidiano conforta, os seus pequenosrituais so os marcos de nossa vida mais segura, mas tambm trazdesencanto e monotonia. 78

Precisamos de criatividade num relacionamento amoroso, dizem. O problema que quando se fala em "criatividade" numa relao a maioria pensa logoem inovaes no sexo, como se a soluo estivesse em novas posies,outro perfume, artifcios exticos. Transar bem resultado, no meio.Como deveriam ser os filhos: fruto de um afeto vivo, no instrumentopara consertar o que est falido. Passada a primeira fase de paixo(desculpem mas ela passa, o que no significa tdio nem fim de teso), agente comea a amar de outro jeito. Ou a amar melhor; ou: a que agente comea a amar; a querer bem; a apreciar; a respeitar; a valorizar;a mimar; a sentir falta; a conceder espao; a querer que o outro cresae no fique grudado na gente. "Se voc ama algum, deixe-o livre",estava escrito no bilhetinho que foi um dos maiores presentes que me deualgum entre tantos muitos outros bens. Um pouco de lucidez e um bocadode maturidade (ah, que boa coisa, o tempo) h de mostrar se - e o qu -pode ser ainda conquistado a dois. Isso entendido, chega o momento dadefinio: e agora, o que fazer? Investir, se h mais possibilidades doque vazio. Como a gente no desiste fcil - porque afinal somosguerreiros ou nem estaramos mais aqui, e porque h os filhos, oscompromissos, a casa, a grana e at ainda o afeto -"vamos criar umjeito de reconstruir o que parece esfarelado. Isto : quando h vontade,afeto, quando resta interesse. Desde que seja uma reinveno a dois, noa submisso de um e o exlio de outro. Pois o espao entre opressor eoprimido um vazio. Mas e quando realmente nada mais resta de positivo?

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Laos podem ser reconstitudos, remendados ou cortados. O corte se fazcom mais ou menos generosidade, carinho ou hostilidade e raiva - semprecom dor. Porm nenhuma unio deveria ser a sentena definitiva deaniquilamento mtuo dentro de uma jaula.

Como invento histrias, gosto de fbulas. Trabalho com elas, pois so oespelho da realidade. E porque gosto de histrias de anjos, aqui vaimais uma. Esta fala de amor, de parceria no amor, de encontrar quempossa ser nosso cmplice, muito alm e acima de convenes, receitas e"modas". Era um homem, um homem comum, que um comum destino pareciacontrolar inteiramente. Um animal domstico bem treinado. Um dia sentiuum incmodo nos dois ombros, distenso muscular, m posio notrabalho... Foi piorando e resolveu olhar-se no espelho, de lado,inteiro e nu depois do banho: no havia dvida, duas salincias oblquasapareciam em sua pele abaixo dos ombros. Teve medo mas decidiu nocomentar com ningum, e como no transava freqentemente com a mulher,conseguiu esconder tudo quase um mes. Fez como via fazer sua mulher:pegou de cima da pia um espelho redondo no qual ela ajeitava o cabelo, epassou a analisar todo dia aquele fenmeno que, em vez de o assustar,agora o intrigava. Curioso mas sem sofrer - pois no doa -, foiobservando aquilo crescer. E pensava:

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Nem adianta ir ao mdico, porque se for um tumor (ou dois) to grande,no tem mais remdio, melhor morrer inteiro do que cortado. Certavez, quando se masturbava no banheiro, na hora do prazer sentiu que elasenfim se lanavam de suas costas, e viu-se enfeitado com elas,desdobradas como as asas de um cisne que apenas tivesse dormido e,acordando, se espojasse sobre as guas. Ficou ali, nu diante doespelho, estarrecido. tora ele no era apenas um homem comum com contasa pagar, emprego a cumprir, famlia a sustentar, filhos a levar para oparque, horrios a cumprir: era um homem com um encantamento. Eram umasasas muito prticas aquelas, porque desde que usasse camisa um poucolarga acomodavam-se maravilhosamente debaixo das roupas. Em Certasnoites, quando todos dormiam, ele saa para o terrao, tirava a roupa evarava os ares. Sua mulher notou alguma coisa diferente no corpo de seumarido. Estava ficando curvado, tantas horas na mesa de trabalho. Nadamais que isso. Embora a me lhe tivesse dito que "com homem sempremelhor confiar desconfiando", daquele seu homem pacato ela jamaisimaginaria nada muito singular. - Voc vai acabar corcunda desse jeito,aprume-se - ela dizia no seu tom de desaprovao conjugal. As coisas secomplicaram quando, j habituado sua nova condio, o homem-anjo olhouem torno e, sendo ainda apenas um homem com asas, sentiu-se muito s. Ecomeou a pensar nisso. E olhou em torno e se apaixonou. Na primeiranoite com sua amante, esqueceu o problema, tirou a roupa toda, e