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PERMANÊNCIA OU ALTERAÇÃO DOS PROCESSOS CONSTRUTIVOS DAS HABITAÇÕES INDÍGENAS E URBANAS - MUNICÍPIO DE BARRA DOS BUGRES, MT Gisele Carignani (1); Jaucele Azeredo (2); Andrea Paula Ferreira (3) (1) Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso e-mail: [email protected] (2) Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso e-mail: [email protected] (3) Departamento de Arquitetura e urbanismo – UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso e-mail: [email protected] RESUMO A pesquisa aqui apresentada trata da diversidade e identidade cultural das edificações indígenas construídas no Estado do Mato Grosso, mais precisamente em aldeias indígenas localizadas próximas à cidade de Barra do Bugres. Até meados do século XX as aldeias desenvolveram formas próprias e apropriadas de construção, consideradas por muitos autores como arquitetura vernacular, fazendo uso de materiais construtivos naturais e disponíveis na região. O contato constante dessa cultura indígena com a cultura dos colonizadores e recentemente com a cultura própria de centros urbanos, proporcionou a troca de conhecimentos de técnicas construtivas específicas de cada um. O objetivo da pesquisa é fazer uma análise da aculturação dos processos construtivos, da permanência ou alteração destes no intuito de resgatar a cultura construtiva indígena local. Como fundamento foram realizados levantamentos documentais e históricos e observações in loco. É questionado se tais povos indígenas adotaram as técnicas e sistemas construtivos oferecidos em todo o entorno, ignorando, muitas vezes, os materiais regionais e as questões bioclimáticas ou se eles se mantêm fiéis às tradições passadas de geração em geração por seus antepassados, que desenvolveram de forma empírica sistemas construtivos adequados técnica e culturalmente para construção na aldeia. Palavras-chave: habitação indígena; arquitetura vernacular; processo construtivo. ABSTRACT The research regarding diversity and cultural promotion of constructions was developed in Mato Grosso, in indigenous villages next to Barra do Bugres city. Those villages during long time developed its proper forms of construction, considered for many authors as vernacular architecture, using materials from their region and culture. The contact of indigenous and urban culture provided the knowledge exchange of constructive techniques specific of each one. This research intend to rescue the local indigenous culture making documentary surveys and historical analysis, and local observation of the permanence or alteration of the constructive processes.It is questioned if such indigenous people remained immune to all the constructive systems diversity offered by the urban culture, ignoring, many times, the local materials and bioclimatic questions, or if they remain use traditional techniques transmited generation to generation, whom always known empirically, which variables to consider when doing constructions in the village. Keywords: vernacular architecture; indigenous house; constructive processes - 1268 -

PERMANÊNCIA OU ALTERAÇÃO DOS PROCESSOS … · INTRODUÇAO A diversidade cultural encontrada atualmente no território nacional tem suas raízes na nossa ... As características

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PERMANÊNCIA OU ALTERAÇÃO DOS PROCESSOS CONSTRUTIVOS DAS HABITAÇÕES INDÍGENAS E URBANAS -

MUNICÍPIO DE BARRA DOS BUGRES, MT

Gisele Carignani (1); Jaucele Azeredo (2); Andrea Paula Ferreira (3) (1) Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso

e-mail: [email protected] (2) Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso

e-mail: [email protected] (3) Departamento de Arquitetura e urbanismo – UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso

e-mail: [email protected]

RESUMO A pesquisa aqui apresentada trata da diversidade e identidade cultural das edificações indígenas construídas no Estado do Mato Grosso, mais precisamente em aldeias indígenas localizadas próximas à cidade de Barra do Bugres. Até meados do século XX as aldeias desenvolveram formas próprias e apropriadas de construção, consideradas por muitos autores como arquitetura vernacular, fazendo uso de materiais construtivos naturais e disponíveis na região. O contato constante dessa cultura indígena com a cultura dos colonizadores e recentemente com a cultura própria de centros urbanos, proporcionou a troca de conhecimentos de técnicas construtivas específicas de cada um. O objetivo da pesquisa é fazer uma análise da aculturação dos processos construtivos, da permanência ou alteração destes no intuito de resgatar a cultura construtiva indígena local. Como fundamento foram realizados levantamentos documentais e históricos e observações in loco. É questionado se tais povos indígenas adotaram as técnicas e sistemas construtivos oferecidos em todo o entorno, ignorando, muitas vezes, os materiais regionais e as questões bioclimáticas ou se eles se mantêm fiéis às tradições passadas de geração em geração por seus antepassados, que desenvolveram de forma empírica sistemas construtivos adequados técnica e culturalmente para construção na aldeia.

Palavras-chave: habitação indígena; arquitetura vernacular; processo construtivo.

ABSTRACT The research regarding diversity and cultural promotion of constructions was developed in Mato Grosso, in indigenous villages next to Barra do Bugres city. Those villages during long time developed its proper forms of construction, considered for many authors as vernacular architecture, using materials from their region and culture. The contact of indigenous and urban culture provided the knowledge exchange of constructive techniques specific of each one. This research intend to rescue the local indigenous culture making documentary surveys and historical analysis, and local observation of the permanence or alteration of the constructive processes.It is questioned if such indigenous people remained immune to all the constructive systems diversity offered by the urban culture, ignoring, many times, the local materials and bioclimatic questions, or if they remain use traditional techniques transmited generation to generation, whom always known empirically, which variables to consider when doing constructions in the village.

Keywords: vernacular architecture; indigenous house; constructive processes

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1. INTRODUÇAO A diversidade cultural encontrada atualmente no território nacional tem suas raízes na nossa colonização e se reflete consideravelmente em nossas habitações. A história da casa brasileira nos leva primeiramente às raízes lusitanas, às ocas indígenas e de acordo com Carlos Lemos (1996), “perceptíveis compromissos com a África e com o Oriente, com a Índia nas tentativas de contornar o incômodo do calor abrasador. Só o negro - escravo não contribuiu na definição da casa nacional embora tenha sido figura indispensável ao seu funcionamento”.

A própria arquitetura regional portuguesa carrega em sua tradição peculiaridades pertencentes às diversas aldeias de características populares que se diversificam do norte ao sul de Portugual, sendo assim, cada mestre, oficial ou aprendiz, pedreiro, taipeiro ou carpinteiro, trazia consigo a lembrança de sua província e experiência do seu ofício. Esta diversidade resultou na adoção simultânea de diferentes sistemas construtivos de feições arquitetônicas próprias: taipa de pilão a taipa de sebe, ou de mão – pau a pique -, o adobe a alvenaria de tijolo, a pedra e cal, tendo sua manifestação variada em cada região do Brasil.

Em relação à organização interna e a presença do fogo, portugueses e indígenas procediam de modo semelhante no intuito de manter a casa toda aquecida com o aproveitamento do fogo usado para cozinhar, deixando a fumaça escapar pela telha vã e ou por engenhoso dispositivo na cumeeira das ocas.

Lucio Costa (1980) define a arquitetura regional autêntica como sendo a que tem as suas raízes na terra; produto espontâneo das necessidades e conveniências da economia e do meio físico e social e se desenvolve com tecnologia associada às características de cada povo; ao passo que aqui a arquitetura veio já pronta e, embora beneficiada pela experiência anterior africana e oriental do colonizador, teve de ser adaptada como “roupa feita,ou de meia-confecção”, ao corpo da nova terra.

A arquitetura indígena aculturada aqui observada se veste de um regionalismo e, por mais que tenha havido a imposição da erudição e da cultura “civilizadora” por parte dos colonizadores, dos desbravadores da região centro-oeste, a apreensão não foi completa e as aldeias são povoadas por um hibridismo próprio resultante de uma cultura mista que é a gênese de uma nova e ainda sem identidade reconhecida.

2 – OBJETIVOS O que se pretende com esta pesquisa é fazer uma análise fundamentada em levantamentos documentais, bibliográficos e observações in loco, da permanência ou alteração dos processos construtivos das habitações indígenas e urbanas no município de Barra do Bugres, identificando as características regionais e as influências sofridas durante o século XX.

3 - A ARQUITETURA VERNACULAR EM BARRA DO BUGRES-MT Em 1878, alguns exploradores subiram o Rio Paraguai, a partir de Cáceres, atingindo a barra do Rio dos Bugres à procura da ipecacuanha1, abundante nas matas da região.

As primeiras habitações de que se tem notícias e que deram origem à cidade de Barra do Bugres tinham um caráter provisório, típicas das habitações de extrativistas que eram obrigados a migrar em busca da poaia. A atividade extrativista de poaia, borracha e madeira foi deflagradora da formação do aglomerado de casas próximas da barra do Rio dos Bugres com o Rio Paraguai, em sua margem direita, que deu origem à cidade de Barra do Bugres, município que foi criado pela Lei Estadual nº 545, de 31 de dezembro de 1943.

1A ipecacuanha, também conhecida como “poaia” ou “ipeca”, é uma planta cujas raízes possuíam alto valor medicinal, e por conseguinte, alto valor comercial na época. A emetina é um dos subprodutos da ipecacuanha e que ditava seu preço internacional pelo grande emprego nos processos de coagulação do sangue, por isso disputada por laboratórios europeus.

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Com a expansão do povoado, as construções passaram a ter características de habitações permanentes e a serem construídas com materiais que pudessem ser produzidos no local, como a taipa ou o adobe.

A figura 1 mostra uma construção original da área histórica da cidade, residência edificada em meados do século XX. Pode-se identificar a construção em tijolos de adobe, telhas irregulares tipo capa - canal, presença de cimalhas nos beirais, esteio em madeira, técnicas rudimentares com características vernaculares, construções que se repetem e cujas técnicas se transferem por várias gerações. Observa-se a presença de telhadões em duas águas e a técnica construtiva adaptada às condições locais com poucos recursos técnicos.

(a) (b) Figura 1 – residência em tijolos de adobe e cobertura em telhas capa-canal

É possível identificar o alinhamento da tipologia de habitações com as habitações rurais construídas no período colonial em regiões não litorâneas do Brasil, como o uso de adobe, o telhado em duas águas com carpintaria rudimentar, a liberação das paredes laterais, a existência de aberturas nas paredes laterais e a disposição em planta quadrangular. Percebe-se também a ocorrência da eira e beira marcando a fachada e a inexistência de recuo frontal, típicos das habitações urbanas de fins do período colonial e início do imperial. A suavização da inclinação do telhado próximo à fachada é uma ocorrência sem similar registrado na bibliografia especializada.

A existência de exemplares remanescentes das primeiras habitações da cidade foi possibilitada pela intensificação da expansão da zona urbanizada, ocorrida entre as décadas de 1960 e 1970, para oeste, seguindo a direção da rodovia MT 246, em sentido oposto ao rio, lócus do povoado de origem. A rodovia é atualmente o elemento estruturador do espaço urbano e divide a cidade em duas partes, leste e oeste. As características arquitetônicas das habitações contemporâneas ao povoamento que originou a cidade não foram reproduziram nas novas áreas de expansão.

4 -OS ÍNDIOS DA REGIÃO DE BARRA DO BUGRES A partir da descoberta do ouro pelos bandeirantes paulistas aconteceu o primeiro contato com as tribos da região de Mato Grosso no século XVIII. No início do séc. XX, a política do Governo Federal era a de expandir ao máximo o território brasileiro, povoando-o e oferecendo condições de viabilização econômica para os que se instalassem e constituíssem o seu patrimônio no Oeste e Norte do país. A “Marcha para o Oeste”, a partir de 1937, foi o programa oficial do Governo Federal mais importante dessa política expansionista. Estas frentes de expansão se deparavam com inúmeros povos indígenas que ocupavam grande parte do território mato-grossense.

Dentre as etnias encontradas no Mato Grosso, pode-se citar os Umutina, que de acordo com os escritos de Schultz, apud Arruda (2003), moravam nas margens do rio Sepotuba, afluente médio do rio Paraguai, tendo muitas aldeias e extensos roçados. Com a chegada dos exploradores, foram forçados a adentrar em direção ao sul, se localizando nas margens do rio Bugres. Na região onde os Umutinas estavam localizados havia a poaia e ainda, mais acima, ao norte desta área indígena, havia a mineração, como a exploração de diamantes.

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As políticas de aldeamento foram desenvolvidas e estavam pautadas pela domesticidade dos povos indígenas visando apaziguá-los e incorporá-los ao trabalho. Com o surgimento do SPI – Serviço de Proteção ao Índio, houve uma continuidade das ações políticas de aldeamento, tendo claro o propósito de promover a “evolução do índio” integrando-o ao processo civilizador a partir de atitudes mais aprimoradas e assistencialistas.

O processo de intervenção com fins pacificadores foi se intensificando à medida que as frentes de expansão iam adentrando para o oeste e invadindo extensas porções de terras interessantes economicamente para mineração e extração vegetal.

A definição territorial nacional do Brasil surgiu no período imperial e se estende até o século XX, sendo articulada a partir das Linhas Telegráficas. A movimentação iniciada nos fins do século XIX ganhou reforços a partir da primeira década do século XX e tomou corpo na era Getulista, quando a ordem era a de integrar as inúmeras etnias indígenas que viviam em “estados diferentes de civilização”, tornando-as um só povo em um só território.

Figura. 2 – Mapa da localização do território indígena Umutina. Fonte: IBGE/2007

Dentro da visão que vigorava no SPI, de acordo com Arruda (2003), acreditava-se que os índios, em geral, eram todos iguais, sem uma singularidade étnica, o que torna compreensível, do ponto de vista político, a prática de reunir, num mesmo local, índios de diversas etnias. Partindo deste princípio o Posto Fraternidade Indígena foi fundado pela Comissão Rondon2 em 1913, a partir da extensão de um ramal de linhas telegráficas do Posto Utiarity até a cidade de Barra do Bugres.

2 Candido Mariano da Silva Rondon nasceu no dia 5 de maio de 1865 em Mimoso, próximo à Cuiabá, em Mato Grosso. Trabalhou como ajudante na “Comissão Construtora de Linhas Telegráficas”, chefiada pelo então Coronel Gomes Carneiro. Em 1907, recebeu o convite do então presidente da república Afonso Pena para estender as linhas telegráficas até o Amazonas e o Acre. Foi então nomeado chefe da “Comissão de Linhas

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A política de aldeamento empreendida pelo SPI recriava e definia espaços destinados aos índios para que passassem a viver com os conceitos dos civilizados, dentro de uma faixa de terra quase sempre menor que a área por onde circulavam anteriormente.

Atualmente, conforme Lucybeth (2003), no Posto Umutina, visto na figura 1, ex-posto Fraternidade Indígena, vivem 350 habitantes, entre Umutina e índios de outras etnias (Bakairi, Kaiabi, Parebi, Paresi, Irantxe, Nambikuara, Terena e Bororo), em grande miscigenação e em um território delimitado após a intervenção do SPI, localizado entre os rios Bugres e Paraguai, com 24.625 hectares aproximadamente.

5 - AS HABITAÇÕES INDÍGENAS DA REGIÃO Como descreve Portocarrero (2001), diversas eram as etnias que habitavam esta região e as características encontradas em relação à configuração de suas aldeias eram comuns à maioria delas. As aldeias possuíam plantas circulares, com aproximadamente cem metros de diâmetro, sendo que a casa dos homens tinha seu eixo maior posicionada na direção norte-sul. A espacialidade das aldeias refletia o próprio pensamento formador desse povo, uma sociedade nitidamente igualitária. No século XVIII teve início a ocupação da região e começaram as pressões sobre os territórios indígenas, deflagrando um processo que viria, deliberadamente, alterar o formato das aldeias. Ao final do século XIX, as aldeias com planta circular ainda existentes, remanescentes do impacto da colonização, começaram a ser formalmente desconstruídas, primeiro por religiosos e depois pelo SPI.

Quanto à configuração das habitações indígenas, como observa Portocarrero (2001) com base nos registros iconográficas de viajantes que visitaram aldeias Bororo nos séculos XIX e XX, como Adrien Taunay (1827), Karl Von den Steinen (1887), Rondon (1916) e Lévi-Strauss (1936), pode-se definir com clareza três modelos alinhados a três períodos diferenciados e consecutivos:

- o primeiro pré-colombiano, com habitações de plantas arredondadas, nas quais as paredes eram o prolongamento da cobertura ovalada ou cônica feita com estrutura de esteios e travessões em madeira não processada e coberta com folhas de palmeira;

- o segundo denominado como período de contato, as casas passam a ter plantas retangulares, mantendo por algum tempo ainda a cobertura cônica e depois até o chão em duas águas coberta de folhas de palmeira;

- o terceiro contemporânea, com habitações com paredes e cobertura formalmente independentes, planta retangular com quatro paredes em alvenaria de adobe e cobertura duas águas com telha cerâmica.

As casas indígenas pré-colombianas eram extremamente versáteis na sua simplicidade. Nelas, como afirma Novaes (1983), praticamente tudo estava ao alcance das mãos, ou dos pés. Com relação aos espaços sociais da casa, embora houvesse numa mesma casa duas ou três famílias nucleares, havia uma nítida separação espacial entre as famílias, tanto durante o dia quanto a noite. O centro da casa era destinado aos rituais e constituía um local especial que não era exclusividade de nenhuma família em particular. Era também no centro da casa que colocavam o fogo, continuamente avivado para cozinhar, espantar mosquitos, ou simplesmente como fonte de calor durante a noite. Anteriormente cada família nuclear tinha seu fogo (Enciclopédia Bororo, p. 488) e depois passou a ser usado por todos os membros do grupo doméstico, o que justifica sua localização central. O material usado para a construção de casas e abrigos variava pouco: a matéria-prima era a madeira para esteios e travessões, as folhas de palmeiras para a cobertura e as tiras de embira para a amarração.

Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas”. Nessa empreitada Rondon acabou encontrando maiores dificuldades, devido às grandes distâncias a serem percorridas e à presença de tribos indígenas ainda hostis e arredias. (CAMARGO e LIMA, 2005, p 38-39).

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A aldeia circular era constituída de casas que mantinham não apenas a mesma distância entre si, mas também a mesma distância do centro da aldeia (da esfera política e jurídica), denota claramente que esta era uma sociedade igualitária e que os diversos grupos que a compunham (clãs, grupos doméstico, linhagens) mantinham entre si uma relação de complementaridade nas suas diferenças, e não uma relação de dominação/subordinação. Durante o dia, o ambiente dentro de casa era de penumbra, seria preciso sair e colocar uma esteira ao ar livre, ou aproveitar a luz que entrasse pela porta e atingisse o centro para fazer algum trabalho. Nas horas do sol mais quente, quando seria penoso ficar fora do abrigo da casa, os índios deitavam-se um pouco para descansar ou aproveitar para executar com tranqüilidade alguma tarefa. Se a vontade era de trabalhar num colar, por exemplo, poderia afastar a palha da cobertura lateral num ponto conveniente, junto à esteira onde está recostado, para permitir a entrada de um pouco de mais de luz. Essas “janelas” poderiam ser abertas a qualquer momento e em qualquer lugar. Por elas também, uma pessoa poderia acompanhar o movimento de toda a aldeia sem deixar o conforto de sua esteira.

Quando Marechal Rondon fundou o Posto Fraternidade para instalar os índios Umutina e reintegrar também índios de outras tribos que foram resgatados pela citada comissão com o objetivo de domesticá-los e apaziguá-los, foram instalados diversas moradias, escolas e o posto administrativo para a equipe do SPI. As edificações propostas desconsideraram as técnicas construtivas desenvolvidas e os materiais utilizados pelos índios, como também o seu modo de vida. Estes tiveram que se adaptar e aprender as novas técnicas, sendo que existe atualmente uma diversidade bastante grande nos materiais e técnicas encontrados nas edificações da aldeia. Da diversidade das habitações destacam-se as casas edificadas com troncos de madeira do cerrado (figura 3a) por ser representante do uso de técnicas e materiais de construção endógenos.

(a) (b)

Figura 3 - Habitações edificadas em madeira e alvenaria para parte administrativa

(a) (b) ( c) Figura 4 – Edificação em pau a pique e pátio central da aldeia

A escola da aldeia Umutina, juntamente com o posto de saúde e o posto administrativo, foi construída em 1942, pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e começou a funcionar em 26 de maio de

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1943 (figura 3b). Ela funciona até os dias atuais, sendo que sua estrutura física não sofreu alterações, apenas houve a troca da cobertura; as paredes são duplas, possuem grandes aberturas e o piso, em tijolos. Segundo as pessoas mais idosas da aldeia que fizeram parte do processo de contato, a construção com paredes duplas realizada pelo SPI era uma estratégia para defender de possíveis invasões ou revoltas indígenas. A escola também foi usada como um instrumento de fixação do povo Umutina no local onde vivem, já que este povo tinha o nomadismo como característica original.

Percebe-se que a configuração da arquitetura indígena Umutina não apresenta a mesma forma circular, nem mesmo na implantação de suas casas, apresentando um pátio central retangular (figura 4b) com as residências em seu redor de diversos materiais que foram adaptados de outras culturas urbanas e rurais, dentre elas o pau à pique (figura 4 a) e alvenaria em tijolos (figura 4c). Tanto o pátio externo quanto as habitações têm a planta em formato retangular, configuração facilmente percebida em todas as edificações, independentes do material e ou técnicas construtivas. As exceções são as edificações onde funcionam a igreja (figura 5a), uma referência às técnicas originais da tribo Umutina, e a escola, construída em 2003 com recursos do Governo Federal pelo programa FUNDESCOLA, que apresenta uma configuração não retangular e tecnologia e materiais construtivos bastante atualizados (figura 5b).

(a) (b)

Figura 5 – Igreja e escola

A forma como ocorreu o domínio dos povos indígenas pelos desbravadores e colonizadores, através das políticas de aldeamento, que se pautaram pela domesticidade visando apaziguá-los e incorporá-los ao trabalho, depois retomado pelo SPI integrando-os ao processo civilizador a partir de atitudes mais aprimoradas e assistencialistas, acarretou num processo de transformação da cultura desses povos, o processo de aculturação3. Esse processo imposto de forma objetiva resultou na incorporação das diversas técnicas construtivas oferecidas pelos “brancos” aos povos indígenas, percebidas de forma efetiva no aldeamento Umutina, edificações em alvenaria com paredes em prumo feitas com tijolos cerâmicos furados assentados em argamassa e rebocadas, outras em madeira e pau a pique de caráter mais provisório e se apropriando de materiais locais. As várias técnicas observadas nas construções da tribo foram se somando no decorrer dos intensivos e sucessivos contatos afetando sua forma física, sem que, no entanto, se perdessem algumas das manifestações culturais traduzidas em festas, danças e artesanatos.

6 – CONCLUSÕES Embora o modelo circular permaneça na percepção que os índios tem de sua aldeia, poucas são as aldeias da região que apresentam esta configuração. Se o contato com a sociedade envolvente forçou a modificação na disposição das casas, já que funcionários da FUNAI, instituição governamental que substituiu o SPI, construíram as novas aldeias desconsiderando a disposição circular, os missionários tentaram interferir na organização social dos indígenas, introduzindo a aldeia com planta em “L”, esta 3 “A aculturação compreende aqueles fenômenos que resultam quando grupos de indivíduos de culturas diferentes entram em contato direto e contínuo, com mudanças resultantes de um deles, ou de ambos os grupos”. (REDFIELD et al, 1936, p. 149 apud NOVA, 2000, p 100).

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disposição não foi apreendida e incorporada culturalmente a ponto de alterar a forma pela qual os índios Umutina concebem sua sociedade e as relações entre seus membros.

A forma circular continua sendo o modelo utilizado para expressar o modo pelo qual os Umutinas se representam. Mesmo quando situados em aldeias com casas dispostas em ruas retilíneas, eles apontavam para as casas como se elas estivessem dispostas em círculo, descrevendo deste modo as relações sociais entre os moradores. Este fato nos permite concluir que a percepção espacial dos Umutinas não corresponde à configuração física da aldeia, a imagem mental da organização social culturalmente mantida é contrária e se sobrepuja, ao menos por enquanto, a morfologia do ambiente construído.

Atualmente, os Umutinas se relacionam efetivamente com a sociedade envolvente. Sua área atual é quase uma ilha fluvial, onde o grupo pratica agricultura, pecuária, pesca e extrativismo. A sua população é de 407 pessoas, segundo Maria Alice de Souza Cupudunepá, professora e habitante local.

A partir destas constatações podemos concluir que houve uma influência significativa da cultura “civilizadora” nos hábitos, formas e materiais construtivos das habitações dos Umutinas, num processo de aculturação, mesmo que diversos estudos tenham demonstrado que suas técnicas fossem bastante apropriadas culturalmente e ambientada às questões climáticas da região.

A proximidade física entre Umutinas e Barrabugrensses não foi o bastante para que fosse estabelecida a influência mútua entre as culturas no período expansionista, pois não é possível identificar traço qualquer da incorporação das técnicas indígenas de construir em aspecto algum da área histórica da cidade, mostrando que o processo de aculturação se processou em apenas um dos grupos envolvidos, no caso, os indígenas.

Mesmo atualmente quando a política e a concepção social sobre a cultura indígena é de reconhecimento de sua importância e de respeito à diversidade cultural, e não mais “civilizadora” como no período expansionista, não há indícios de influência da cultura indígena na forma de construir e habitar na cidade de Barra dos Bugres.

7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA, Lucybeth Camargo de. Posto Fraternidade Indígena: Estratégias de Civilização e Táticas de Resistência 1913-1945. Cuiabá, 2003. 163p. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso.

CAMARGO, José Carlos Godoy e LIMA, Fabrício Felipe. O positivismo e a Geografia em Rondon. Estudos Geográficos, Rio Claro, 3(1): 37-52, jan-jun - 2005 (ISSN 1678—698X), em <http://cecemca.rc.unesp.br/ojs/index.php/estgeo/article/viewFile/286/233> acesso em 08 de setembro de 2007.

COSTA, Lucio. Biblioteca educação é cultura: Arquitetura. 10.v. Rio de Janeiro: Bloch: FENAME, 1980.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em <http://mapas.ibge.gov.br/>. Acesso em: 23 maio 2007.

LEMOS, Carlos. História da casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1996.

NOVA, Sebastião Vila. Introdução à Sociologia. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2000.

NOVAES, Sylvia Caiuby (Org.). Habitações Indígenas, São Paulo: Nobel: Ed. da Universidade de São Paulo, 1983.

PORTOCARRERO, José Afonso Botura. Bái, a casa Bóe: Bái, a casa Bororo: Uma história da morada dos índios Bororo. Cuiabá, 2001. 129p. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso.

REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. Perspectiva: São Paulo, 1997.

SCHULTZ, Harald. Vinte e Três Índios Resistem à Civilização. São Paulo: Ed. Melhoramentos. 1956:12.

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