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160 Cuadernos del Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano - Series Especiales Nº1 (2). AÑO 2013 ISSN 2362-1958 PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS TÉCNICAS NA CERÂMICA DE UMA REDUÇÃO JESUÍTICO-GUARANI DO INÍCIO DO SÉCULO XVII NA REGIÃO CENTRAL DO RIO GRANDE DO SUL/BRASIL 1 Silvana Zuse 2 ABSTRACT This work presents the study of pottery of two archaeological sites located at the central region of Rio Grande do Sul state, Brasil, the pottery collections of Ibm4 Pedra Grande site, where it was installed a Jesuit – Guarani settlement in the beginning of the XVII century, in comparison to the pottery vessels of Ibm 14 Rodolfo Mariano site that consists of a funerary context dated from the XI century from our era. With emphasis on the technological choices inserted in the Operation Sequence of ceramic artifact confection, we tried to notice the permanent or changed technological choices occurred from the first contact throughout the different stages of its confection considering: clay acquisition, paste treatment, techniques of manufacture, artifact forming and shaping, surface finishing, and firing, and vessels ready to be used. In this way, we studied which technological changes occurred into a bigger group of cultural transformations in a social totality. RESUMEN Este trabajo presenta el estudio de la cerámica de dos yacimientos arqueológicos ubicados en la región central del Rio Grande do Sul, Brasil, las colecciones cerámicas del Ibm4 “Sitio Pedra Grande”, donde se instaló una Reducción Jesuita Guaraní en el inicio del siglo XVII, en comparación con los vasos cerámicos del “Sitio Ibm14 Rodolfo Mariano”, que consiste en un contexto funerario que data del siglo XI de nuestra era. Con énfasis en las elecciones tecnológicas implementadas en la secuencia de la operación de confección del artefacto cerámico, hemos intentado percibir las elecciones permanentes o cambios tecnológicos que han ocurrido desde el primer contacto a lo largo de las diferentes etapas de confección, tiendo en cuenta: la adquisición de arcilla, tratamiento de la pasta, técnicas de fabricación, elaboración del artefacto, acabado de la superficie, quema, y los vasos listos para el uso. Por lo tanto, se buscó entender los cambios tecnológicos incluidos en un grupo mayor de transformaciones culturales en su totalidad social. 1 Este artigo constitui-se de uma síntese dos resultados obtidos na dissertação de mestrado intitulada ‘Os Guarani e a redução Jesuítica: tradição e mudança técnica na cadeia operatória de confecção dos artefatos cerâmicos do sítio Pedra Grande e entorno’ (Zuse, 2009). 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Pau- lo/MAE-USP). Contato: [email protected] OS GUARANI NA REGIÃO CENTRAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E A CHEGADA DOS EUROPEUS A região abordada neste trabalho está situada geomorfologicamente na zona de transição entre o Planalto Meridional Brasileiro e a Depressão Central ou Periférica, e inserida na Bacia Hidrográfica do rio Ibicuí e do Rio Uruguai, mais especificamente próxima ao rio Toropi, no município de São Pedro do Sul. Os dados das pesquisas arqueológicas realizadas até o momento na região central do estado do rio Grande do Sul demonstram que inicialmente foi ocupada por grupos caçadores coletores, principalmente em abrigos sob rocha e nos montículos, chamados cerritos, e posteriormente pelos Guarani, vindos

permanências e mudanças técnicas na cerâmica de uma redução

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Cuadernos del Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano - Series Especiales Nº1 (2). AÑO 2013

ISSN 2362-1958

PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS TÉCNICAS NA CERÂMICA DE UMA REDUÇÃO JESUÍTICO-GUARANI DO INÍCIO DO SÉCULO XVII NA REGIÃO CENTRAL DO RIO

GRANDE DO SUL/BRASIL1

Silvana Zuse2

ABSTRACTThis work presents the study of pottery of two archaeological sites located at the central region

of Rio Grande do Sul state, Brasil, the pottery collections of Ibm4 Pedra Grande site, where it was installed a Jesuit – Guarani settlement in the beginning of the XVII century, in comparison to the pottery vessels of Ibm 14 Rodolfo Mariano site that consists of a funerary context dated from the XI century from our era. With emphasis on the technological choices inserted in the Operation Sequence of ceramic artifact confection, we tried to notice the permanent or changed technological choices occurred from the first contact throughout the different stages of its confection considering: clay acquisition, paste treatment, techniques of manufacture, artifact forming and shaping, surface finishing, and firing, and vessels ready to be used. In this way, we studied which technological changes occurred into a bigger group of cultural transformations in a social totality.

RESUMENEste trabajo presenta el estudio de la cerámica de dos yacimientos arqueológicos ubicados en la

región central del Rio Grande do Sul, Brasil, las colecciones cerámicas del Ibm4 “Sitio Pedra Grande”, donde se instaló una Reducción Jesuita Guaraní en el inicio del siglo XVII, en comparación con los vasos cerámicos del “Sitio Ibm14 Rodolfo Mariano”, que consiste en un contexto funerario que data del siglo XI de nuestra era. Con énfasis en las elecciones tecnológicas implementadas en la secuencia de la operación de confección del artefacto cerámico, hemos intentado percibir las elecciones permanentes o cambios tecnológicos que han ocurrido desde el primer contacto a lo largo de las diferentes etapas de confección, tiendo en cuenta: la adquisición de arcilla, tratamiento de la pasta, técnicas de fabricación, elaboración del artefacto, acabado de la superficie, quema, y los vasos listos para el uso. Por lo tanto, se buscó entender los cambios tecnológicos incluidos en un grupo mayor de transformaciones culturales en su totalidad social.

1 Este artigo constitui-se de uma síntese dos resultados obtidos na dissertação de mestrado intitulada ‘Os Guarani e a redução Jesuítica: tradição e mudança técnica na cadeia operatória de confecção dos artefatos cerâmicos do sítio Pedra Grande e entorno’ (Zuse, 2009).2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Pau-lo/MAE-USP). Contato: [email protected]

OS GUARANI NA REGIÃO CENTRAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E A CHEGADA DOS EUROPEUS

A região abordada neste trabalho está situada geomorfologicamente na zona de transição entre o Planalto Meridional Brasileiro e a Depressão Central ou Periférica, e inserida na Bacia Hidrográfica do rio Ibicuí e do Rio Uruguai,

mais especificamente próxima ao rio Toropi, no município de São Pedro do Sul. Os dados das pesquisas arqueológicas realizadas até o momento na região central do estado do rio Grande do Sul demonstram que inicialmente foi ocupada por grupos caçadores coletores, principalmente em abrigos sob rocha e nos montículos, chamados cerritos, e posteriormente pelos Guarani, vindos

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da Amazônia (Noelli, 1999/2000).Os Guarani são povos linguisticamente

definidos como parte do grande tronco Tupi, englobando as línguas da família Tupi-Guarani, com uma ampla dispersão no território brasileiro, leste do Paraguai e da Argentina e no Uruguai. Estudos etnográficos, linguísticos e arqueológicos sustentam que os Guarani se expandiram desde a Amazônia até a foz do rio Paraná e se estabeleceram no Rio Grande do Sul através dos rios Uruguai, Ijuí e Jacuí. Ao passo que as datas mais antigas estão no médio Jacuí, as quais remetem o assentamento Guarani a 1800 AP., num segundo momento estes teriam se expandido e se consolidado em praticamente todas as áreas florestadas dos vales fluviais e na faixa litorânea, de diferentes climas, solos e altitudes (Brochado 1984; Noelli 1993, 1996, 1999/2000, 2004; Rogge 2004; Soares 1997, 2004; Urban 1992). Ocuparam e dominaram um vasto território até a chegada dos europeus, quando iniciaram os conflitos políticos entre as coroas espanhola e portuguesa na disputa dessa região fronteiriça, bem como as fundações das Reduções Jesuítico-Guarani. O processo inicial de colonização europeia envolveu as expedições de reconhecimento, a fixação do colonizador à terra, exploração da mão de obra indígena através da encomienda e a captura de escravos pelos bandeirantes paulistas. Decorrente disso são as relações conflituosas entre indígenas Guarani e representantes da sociedade colonizadora luso-espanhola, a grande desorganização social e o decréscimo da população principalmente com o contágio com doenças (Basile-Becker 1992).

Inicialmente chamados pelos encomenderos para batizar e dar um atendimento religioso aos indígenas nas missões itinerantes, logo os jesuítas da Companhia de Jesus iniciam a fundação das reduções dos Guarani e outros grupos3, entre o final do século XVI e início do XVII.

3 Conforme Santos e Baptista (2007), os povoados não eram espaços absolutamente de população Guarani, apesar dos jesuítas homogeneizarem os povos indígenas de diferentes etnias com classificações genéricas e cria-rem uma língua reducional fundamentada no idioma Guarani. Os Guarani são a maioria da população mis-sional, entretanto as análises detalhadas em documen-

As Reduções se constituíram na concentração de índios em pequenos povoados, para convertê-los à fé da Igreja católica reformada (Quevedo 2000). A Província Jesuítica do Paraguai, estabelecida em 1609, dividiu-se nas regiões das fundações das frentes missionárias do Guayrá, Paraguai, Itatim, Uruguai e Tape. Esta ultima localiza-se à margem esquerda do Rio Uruguai, nas bacias dos rios Ibicuí e Jacuí, e no Planalto Central do atual Rio Grande do Sul, onde a partir de 1626 foram fundadas no alto Ibicuí as Reduções de Candelária, São Tomé, São José, São Miguel e São Cosme e Damião, e na Bacia do Jacuí, os povoados de Santa Tereza, Santa Ana, São Joaquim, Natividade, Jesus Maria e São Cristóvão. Com o avanço dos povoados missionários em território espanhol, Portugal promoveu as expedições bandeirantes que se dirigiam às reduções em busca de índios para as fazendas portuguesas, resultando na degradação dos povoados. Na Frente Missionária do Tape muitas reduções foram destruídas e os sobreviventes transmigraram para além do Rio Uruguai, encerrando-se o período das Reduções de 1ª fase4 neste território (Basile-Becker 1992).

Diante dos acirrados conflitos, da exploração da mão de obra e desorganização do espaço e sociedade Guarani, os padres cooptavam os indígenas para as missões, oferecendo um espaço de “proteção”. Com o objetivo principal de demarcar o território fronteiriço espanhol, as reduções buscam a ocidentalização e cristianização dos indígenas, através da modificação do espaço, das crenças e da sociedade como um todo: busca-se mudar o espaço social da dança, da festa, das bebedeiras habituais, que foram proibidas; o centro da aldeia é representado pela igreja; os enterramentos deveriam ser feitos em covas rasas

tos inéditos mostram que outros grupos estão presentes como no caso dos Jê que estão inseridos inclusive nas reduções do Tape, especialmente em Santa Tereza.4 Denominam-se reduções da primeira fase aquelas fundadas no início do século XVII. Somente em 1682 inicia-se a segunda fase reducional, quando foram fun-dados os Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai, que perduraram até a expulsão dos Jesuítas do Brasil por ordem do Marquês de Pombal, em 1768, e as missões foram lentamente abandonadas (Brochado et al. 1969).

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e não mais em urnas funerárias; a produção de alimentos em grande escala com a preocupação do armazenamento deveria substituir a produção para a subsistência; seguida da modificação na cultura material (Machado 1999; Tocchetto 1991). A tentativa de implantação deste novo modo de vida e nova religião não ocorreu sem resistências, conflitos e contradições: trata-se de um processo dinâmico onde atuam diversos atores históricos, sendo as reduções resultado de uma mescla de aspectos das organizações sociais dos grupos indígenas e dos modos hispânicos dos espanhóis, que não só não conseguiram padronizar e dogmatizar as sociedades, como também obrigaram-se a reavaliar e modificar seus próprios dogmas (Baptista 2007; Santos e Baptista 2007).

O sítio Ibm 4 Pedra Grande- localizado próximo ao arroio Ribeirão, afluente do rio Toropi- é representativo da história de ocupação região, por ter sido ocupado inicialmente por grupos caçadores coletores e posteriormente pelos Guarani, e no início do século XVII ser o local de uma das reduções Jesuítico-Guarani da primeira fase. Denomina-se Pedra Grande o monólito que marca a paisagem da localidade de mesmo nome, situado no topo de uma colina: trata-se de um grande bloco de arenito de 86,5 m de extensão e 8,5 m de altura máxima, cuja declividade forma um abrigo de 9 m de espessura máxima, no qual ocorrem dois painéis com gravuras rupestres. O sítio arqueológico foi identificado em 1969 por José Proenza Brochado e Pedro Inácio Schmitz, e inicialmente escavado em 1971 pelos mesmos pesquisadores; nos anos de 1984, 1986 e 1987 o professor Vítor Hugo da Silva da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) realizou intervenções no sítio; em 1997 foi novamente escavado pelos arqueólogos Klaus Hilbert e José Proença Brochado; e finalmente em 2002 foi alvo de escavações coordenadas pelo arqueólogo Saul Eduardo Seiguer Milder da UFSM5.

5 O material arqueológico das etapas de 1969 e 1971 en-contra-se atualmente no acervo do Núcleo de Pesquisa Arqueológica/NUPARQ da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; o material proveniente das escavações de 1997 está no Centro de Estudo e Pesqui-sas Arqueológicas/CEPA, da Pontifícia Universidade

Todas as intervenções arqueológicas permitiram caracterizar o sítio em relação à espacialidade das ocupações e cronologia (Figura 1, croqui do sítio). O abrigo formado pela inclinação do monólito foi ocupado inicialmente por indígenas caçadores-coletores, evidenciada na espessa camada arqueológica com material lítico, desde pelo menos 80 cm de profundidade, com datações C14 entre 900 - 790 a.C. (Abrigo - C10: 70 - 80 cm) e 1110-1190 d.C (Abrigo - C2: 60-70 cm). Associados as estas ocupações estão os grafismos rupestres, dispostos em dois painéis do monólito, atribuídos à Tradição Meridional, gravados no abrigo durante um período que antecede a data de 900-790 a.C. e ultrapassa a de 1200-1300 d.C. Os Guarani também ocuparam o abrigo, cuja camada arqueológica presente desde a superfície até 60 cm de profundidade apresenta lítico lascado, polido e picoteado e cerâmica Guarani, datada por C14 em 1305- 1385 d.C (Abrigo - C2: 30 – 40 cm) (Brochado e Schmitz 1976)6.

Nas escavações realizadas em 2002 na área em frente ao abrigo da Pedra Grande também foram evidenciadas duas camadas de ocupação, sendo a primeira há 70 cm de profundidade, composta por vestígios de uma ocupação por grupo caçador-coletor, com contexto de uma fogueira e um ‘buraco de estaca’; e a segunda atribuída aos grupos ceramistas Guarani, desde a superfície até 30 cm com material lítico e cerâmico, separada da primeira por camadas de sedimentação. No Abrigo do Meio, as escavações revelaram uma camada arqueológica de 60 cm de espessura com material lítico e fragmentos que remontam vasilhas cerâmicas, associadas a duas fogueiras na parte central do abrigo. Foi também encontrada neste espaço uma conta de colar azul veneziana (Milder 2002).

A maior concentração de cerâmica Guarani ocorre na face oposta ao abrigo da

Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS; e o material es-cavado na década de 1980 e em 2002 encontra-se no La-boratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas/LEPA, da Universidade Federal de Santa Maria/UFSM.6 As datações radiocarbônicas foram realizadas no Ra-diation Biology Laboratory da Smithsonian Institution, e apresentadas em Brochado e Schmitz (1976).

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Pedra Grande, onde ocorriam concentrações de material cerâmico e lítico em superfície, indicando habitações de planta circular, medindo entre 10 e 50 m de diâmetro. Nas escavações o material ocorreu até 50 cm de profundidade. Nesta área também ocorria, associada à cerâmica Guarani, fragmentos de cerâmica europeia, sendo este o local da Redução Jesuítica. As escavações realizadas em 1997 evidenciaram uma área com terra preta antrópica em uma habitação de planta circular conforme a distribuição dos buracos de estaca, grande quantidade de material cerâmico, dois fragmentos de louça europeia, uma conta azul de vidro, duas facas de metal e quatro cravos de ferro, e alguns fragmentos de ossos bovinos7, que comprovam o contato dos Guarani com os europeus (Brochado 2001).

A cerâmica caracterizada como da fase Reduções8 foi evidenciada nas camadas superficiais, em todos os espaços do sitio e principalmente na parte posterior ao abrigo da Pedra Grande, bem como elementos da cultura material europeia introduzida pelos padres. Verificou-se que as casas da Redução seguiam a maneira indígena, não sendo cobertas com telhas como ocorre nas reduções Jesus Maria (Ribeiro 1981; Ribeiro et al. 1976) e Nossa Senhora da Candelária do Caaçapamini (Machado 1999), porém a distribuição espacial das casas não pôde ser feita devido aos escassos dados em relação à distribuição das concentrações de material e da falta de escavações sistemáticas nas mesmas. A redução Jesuítico-Guarani do sítio Pedra Grande, cuja denominação é contraditória nas publicações, às vezes sendo chamada de São

7 As contas venezianas estão presentes nos sítios de con-tato da região, e especialmente nas Reduções Jesuíticas do sul do Brasil. O metal passa a ser introduzido a partir do contato, e os ossos bovinos são restos de alimenta-ção, baseada também na criação de gado, levado às Re-duções pelos Jesuítas, criado em estâncias.8 A cerâmica das reduções de primeira fase do Rio Grande do Sul é atribuída à fase Reduções, transicional entre a tradição Tupiguarani e a Neobrasileira (cerâmica confeccionada por grupos familiares, neobrasileiros ou caboclos, com técnicas indígenas e de outras procedên-cias) (Ribeiro 1981). Já a fase Missões refere-se a cerâ-mica dos sítios pertencentes aos Sete Povos das Missões (Brochado et al. 1969).

José (1633-1637 d.C) (Brochado e Schmitz 1976) ou São Miguel (1632- 1638 d.C) (Brochado 2001), é uma das três reduções do início do século XVII identificadas até o momento, sendo que a maioria possui localização indefinida9. Na mesma região foram evidenciados outros sítios arqueológicos: Ibm-14 Rodolfo Mariano, Ibm- 15 Adelque Weide, Ibm- 16 Fernando Weide e Ibm- 17 Amauri Rossi. O primeiro deles, distante 1,8 km do sítio Pedra Grande, é caracterizado por apresentar material cerâmico em superfície e vasilhas inteiras, algumas associadas a um enterramento com restos ósseos bastante preservados, que foram encontradas e coletadas pelo morador do local, juntamente com a equipe do Museu do município de São Pedro do Sul no ano de 2005, e posteriormente encaminhadas ao Laboratório de Arqueologia da UFSM. Esse sítio não foi escavado até o momento, e possui apenas uma datação por Termoluminescência realizada com um fragmento da urna funerária de 1024 (+- 100) d.C.10. Essa é uma data recuada para a região, considerada periférica do ponto de vista hidrográfico, e expande o período de ocupação no entorno da Pedra Grande pelos Guarani para pelo menos 600 anos. Os demais sítios foram identificados em 2008 pela equipe da UFSM e até o momento não foram escavados, estando distantes entre 1 e 5 km da Pedra Grande (Zuse 2009).

CERÂMICA GUARANI E DE CONTATO: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS TÉCNICAS

Os estudos arqueológicos da cultura material Guarani, especialmente no que se refere às vasilhas cerâmicas, demonstram que, ao longo do tempo, esses indígenas reproduziram suas técnicas de confecção, o que implica na continuidade dos

9 A localização nos documentos e na cartografia jesuí-tica nem sempre coincide com a atual, devido ao pouco conhecimento na época de uma região tão vasta. As ou-tras duas reduções são a Redução de Jesus Maria (1633-1636), situada na Bacia do Rio Jacuí, às margens do Rio Pardo, em Candelária – RS; e a Redução de Nossa Sen-hora da Candelária do Caaçapaminí (1627-1636), loca-lizada próxima a um afluente do rio Piratini, a 20 Km do município de São Luís Gonzaga.10 Datação realizada no Laboratório de Vidros e Da-tação da Faculdade de Tecnologia de São Paulo, Brasil.

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aspectos tecnológicos e funcionais dos artefatos, bem como na subsistência, na organização social e nas outras esferas da cultura, até os primeiros contatos com os europeus (Noelli 1993, 1999/2000; Soares 1997). Brochado et al. (1990) e Brochado e Monticelli (1994) fizeram a classificação etnohistórica das vasilhas, estabelecendo que a inferência da funcionalidade possa ser dada pela reconstituição do perfil da borda, diâmetro da boca e tratamento de superfície e sua relação com os exemplares arqueológicos, a qual possui seis classes principais de vasilhas: panelas para cozinhar (yapepó), caçarolas para cozinhar (ñaetá), pratos para assar beiju (ñamõpyu), talhas para bebida em geral, especialmente fermentar bebidas alcoólicas (cambuchí), pratos para comer (ñaembé) e tigelas para beber (cambuchí caquâba). Algumas classes apresentam variações internas de tipos, totalizando dez categorias básicas de classificação.

Estudos recentes chamam a atenção para o estudo da diversidade existente na cultura material e padrões de assentamento Guarani, das particularidades regionais e locais. Existe uma continuidade e similaridade reconhecível em áreas muito distantes, por serem padrões culturalmente determinados a partir de uma única

matriz cultural, entretanto ocorrem variações decorrentes do distanciamento temporal e territorial, contatos com grupos não Guarani, ou representantes de diferentes parcialidades étnicas. São encontradas variações nos acabamentos de superfície, nos motivos pintados e nas formas das vasilhas, entendidas como inovações dentro de uma margem aceita de alterações na tradição do grupo, associadas àquelas usualmente encontradas (Monticélli 2007; Moraes 2007; Noelli 2004; Oliveira 2008).

Já para os sítios de contato, mais especificamente as reduções Jesuítico-Guarani, a bibliografia aponta um tipo de cerâmica diferente desses tradicionalmente conhecidos para os Guarani: trata-se de uma cerâmica vermelha, de tamanho pequeno, com base arredondada, plana, anelar ou em pedestal, que se constituem de pratos, tigelas e panelas. Nesses sítios, ocorre ainda uma maior presença do corrugado telhado e do escovado (Brochado et al. 1969; Chymz 2001; Machado 1999; Pereira 1999; Ribeiro 1981; Ribeiro et al. 1976; Tochetto 1991). As permanências e mudanças técnicas foram vistas pelos pesquisadores como indicativos de grau de aculturação (Ribeiro et al. 1976), afirmação

Figura 1. Croqui esquemático do sítio Pedra Grande. Número 1: monólito Pedra Grande; 2: painel com gravu-ras rupestres; 3: área da redução escavada em 1997; 4: Abrigo do Meio, escavação 2002; 5: área em frente ao monólito escavada em 2002; 6: Atual igreja e salão de festas. Adaptado de Brochado e Schmitz (1976), Brochado (2001) e Milder (2002) (Arte Final: Angislaine Freitas Costa, 2012).

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étnica (Machado 1999) ou resistência (Tocchetto 1991).

A depressão central foi intensamente ocupada pelos Guarani, como demonstra o grande número de sítios evidenciados e as datações obtidas até o momento. Na área específica em que ocorrem os sítios abordados neste trabalho, são observadas semelhanças tecnológicas nos inúmeros fragmentos e vasilhas cerâmicas nas publicações e nos acervos dos museus, com a manutenção de algumas características diagnósticas da tradição tecnológica do grupo. E, a partir do momento da fundação das Reduções Jesuítico-Guarani, algumas mudanças técnicas são facilmente observadas. O estudo da cerâmica dos sítios Rodolfo Mariano e Pedra Grande permite perceber as escolhas tecnológicas das artesãs Guarani antes e após o contato e colonização europeia, e entender os processos de permanências e mudanças na tecnologia, inserida na tradição do grupo ao longo de sua história e na aquisição de novos conhecimentos técnicos no momento da sua inserção no povoado Jesuítico-Guarani.

Nesse sentido, utilizou-se uma abordagem tecnológica, que permite caracterizar os artefatos para além da sua forma e decoração, mas em termos de escolhas tecnológicas que são sociais e tradicionais (Balfet 1991; Lemonnier 1992, 1993; Leroi-Gourhan 1985; Mauss 2003; Schiffer e Skibo 1997, 2001). As escolhas tecnológicas podem ser percebidas nas diferentes etapas da cadeia operatória de confecção dos artefatos, desde a aquisição da matéria prima, as técnicas de confecção e de acabamentos de superfície, forma das vasilhas e queima, e em toda a história de vida dos artefatos que inclui a utilização e o descarte (Balfet 1991; Schiffer e Skibo 1997, 2001). As tecnologias são produções sociais e integrantes de um fenômeno cultural, portanto mudanças tecnológicas proporcionam ideias para as mudanças sociais e vice-versa (Lemonnier 1992, 1993). Para a compreensão de tais escolhas, foi elaborada uma ficha de análise que contempla atributos que caracterizam a pasta, os acabamentos de superfície, a queima, vestígios de uso e as formas das vasilhas (Brochado e Monticelli 1994; Brochado et al. 1990; Chymz 1976; La Salvia e

Brochado 1989; Shepard 1963). Foram também utilizadas as técnicas da Microscopia Óptica, Fluorescência de raios X e Difratometria de Raios X, na verificação da pasta, banhos e pigmentos, técnicas de confecção e queima (Appoloni et al. 1997; Alves 1988, 2009; Goulart 2004; Silva et al. 2004). Os resultados das análises fornecem subsídios para entender as escolhas tecnológicas feitas pelas ceramistas nas diferentes etapas da cadeia operatória dos artefatos cerâmicos e, assim, observar o que permaneceu e o que mudou a partir da fundação da Redução Jesuítico-Guarani. Foi analisada uma amostra de cada coleção proveniente das diferentes escavações no sítio Pedra Grande, dos acervos do LEPA/UFSM, NUPARQ/UFRGS e CEPA/PUCRS.

Verificou-se que fragmentos de borda, parede, carena, bojo e base compõem as formas das vasilhas Guarani (principalmente yapepó e cambuchí), recorrentes nos sítios Guarani e nos acervos da região. A cerâmica do Abrigo do Meio remontou parcialmente dez vasilhas, das quais nove apresentam características de vasilhas utilizadas para cozinhar alimentos, verificado pela presença de fuligem e tratamento plástico corrugado ou corrugado ungulado, forma restringida e com bojo (yapepó), associadas a duas fogueiras evidenciadas no abrigo. Estas formas também estão presentes nas demais áreas do sítio. Porém a partir da fundação da Redução Jesuítico-Guarani são adotadas inovações em relação à forma de algumas vasilhas: pratos e tigelas de tamanho pequeno, com base plana, anelar, em pedestal ou arredondada, com diâmetro de abertura variando entre 12 e 24 cm. Estas cerâmicas, recorrentes no sítio (uma vasilha do Abrigo do Meio e as outras da parte posterior ao monólito) de certa forma imitam formas europeias, principalmente em relação à base.

No acabamento da superfície das vasilhas, são recorrentes os tratamentos tradicionais Guarani como a aplicação da barbotina e do banho, a pintura policrômica vermelha sobre engobo branco, além dos tratamentos plásticos corrugado, ungulado, espatulado, ponteado, corrugado ungulado (Figura 2, cerâmica típica Guarani encontrada no sítio Pedra Grande). Porém os pratos e tigelas de tamanho

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pequeno e forma diferenciada, do período da redução, recebem um tratamento monocromático em vermelho ou preto, a maioria com polimento (Figura 3, inovações da forma, do período da Redução). Portanto, ocorreram inovações técnicas na categoria de vasilhas utilizadas para servir alimentos, no contexto da redução jesuítica. Entretanto, vasilhas típicas Guarani continuavam sendo utilizados para processar os alimentos (os yapepós), e apesar de serem adotadas inovações tecnológicas relacionadas a forma e acabamento das vasilhas, aquelas tradicionais continuam sendo produzidos.

Através de análises macroscópicas, de Microscopia Óptica (MO) em seções delgadas de fragmentos cerâmicos, e da Fluorescência de Raios X (EDXRF, aparelho portátil), caracterizou-se a pasta dos fragmentos cerâmicos em relação à composição, granulometria e distribuição dos elementos, a fim de verificar as escolhas que as ceramistas fizeram das pastas, adequadas a cada tipo de vasilha. Verificou-se a presença de grãos de quarto, óxido de Ferro e Feldspato, que provavelmente já estavam agregados à argila na

fonte, e em alguns casos o caco moído, adicionado à pasta. As análises de EDXRF realizadas em fragmentos com diferentes tratamentos de superfície e de diferentes cores de pasta não apontaram diferenças nos tipos de elementos químicos identificados, mas somente nas suas proporções, portanto trata-se de um mesmo tipo de argila sendo utilizado para a confecção de todos os tipos de vasilhas. Verificou-se através das análises macroscópicas que as vasilhas com as paredes de espessura mais fina, como aquelas com pintura policrômica (cambuchís), engobo vermelho (tigelas e pratos da fase Reduções) e tratamento plástico corrugado telhado, apresentam uma pasta com elementos minerais de granulometria mais fina (grãos pequenos de quartzo, óxido de ferro e feldspato), enquanto nas vasilhas com tratamento corrugado, espatulado, ungulado e alisado aparecem grãos maiores. Já as análises de Microscopia Óptica, que permitem analisar uma fração mais fina desses elementos, demonstraram que ocorreu uma grande variação da quantidade e tamanho dos grãos de quartzo e dos demais elementos presentes como cacos moídos e

Figura 2. Cerâmica típica Guarani evidenciada no sítio Pedra Grande- fragmento de yapepó e de cambuchí, das coleções do CEPA/PUCRS e NUPARQ/UFRGS, respectivamente.

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inclusões para todos os tipos de vasilhas, não ocorrendo uma correlação de tipo de pasta com tipos de tratamentos de superfície. Verificou-se também na análise das seções delgadas que o caco moído foi adicionado nas pastas que apresentam menor frequência de grãos de quartzo, portanto esse elemento poderia ter como função diminuir a plasticidade da pasta (os cacos moídos só foram identificados na análise de Microscopia Óptica, por serem de tamanho pequeno). Tanto nas análises por Microscopia Óptica quanto nas por EDXRF, não se verificou diferenças isoladas para nenhum dos tipos de vasilha, nem mesmo para a cerâmica com engobo vermelho da fase Reduções, portanto, mesmo depois da implantação do povoado pelos jesuítas, continuou-se escolhendo os mesmos tipos de argilas e pastas para a confecção dos recipientes de cerâmica.

Foi observada a técnica acordelada na confecção de todos os tipos de vasilhas, verificada na quebra dos roletes e na ordenação dos elementos plásticos e fissuras de forma circular, observada com a Microscopia Óptica. Utilizou-se a técnica modelada apenas para confeccionar as bases planas de alguns pratos e tigelas vermelhas da redução, sendo o restante do corpo destas vasilhas feito com roletes. A técnica torneada foi verificada somente em três fragmentos que compõem uma única vasilha, possivelmente trazida de outro local pelos padres. Constatou-se

que, mesmo após o contato, permanece a técnica tradicional Guarani acordelada de confecção dos artefatos, e o torno não foi introduzido nessa Redução. A queima dos artefatos foi realizada em temperaturas superiores a 550ºC, estimativa feita devido à ausência da Caulinita nos resultados das análises por Difratometria de Raios X. Essa temperatura é atingida em fogueiras abertas, que os Guarani utilizavam tradicionalmente, e nenhum forno fechado foi evidenciado até o momento na redução.

Portanto, não foram constatadas mudanças relacionadas à escolha da matéria-prima e tratamento da pasta, nem mesmo na técnica de confecção dos artefatos que continua sendo a acordelada, com exceção das bases planas, anelares e em pedestal dos pratos e tigelas, que são modeladas. Inovações ocorreram na forma e acabamento de algumas vasilhas, aquelas ligadas ao consumo de alimentos, que não substituem as tradicionais Guarani, mas são acrescentadas no leque de possibilidades existente.

Foi analisada também a cerâmica coletada no sítio Ibm 14 Rodolfo Mariano, que remontou parcialmente quinze vasilhas (Figura 4, sendo três delas (vasilhas V1, V2 e V3), segundo o morador que as coletou, associadas ao contexto funerário de um enterramento, uma delas sendo a urna funerária e as outras duas servindo de tampa. A urna (V1) possui 41 cm de diâmetro de abertura e 37,5 cm

Figura 3. Vasilhas cerâmicas do período da Redução -pratos e tigelas rasas, com engobo vermelho- Peças do acervo CEPA/PUCRS.

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Figura 4. Vasilhas cerâmicas do sítio Ibm 14: yapepós, cambuchís e cambuchís caguâbas. Peças do acervo LEPA/UFSM.

de altura; a V2 apresenta o mesmo diâmetro de abertura e forma muito semelhante aquela da urna, e a V3 é menor, com 30 cm de diâmetro de altura e 25 cm de altura. As três vasilhas foram utilizadas inicialmente no preparo de alimentos (yapepós), com uso secundário no enterramento. Outras duas

vasilhas apresentam depósito carbônico próximo à base, ambas com tratamento plástico corrugado, uma delas com 20 cm de diâmetro de abertura e 14 cm de altura (V5) e a outra com 17 cm de abertura e 12 cm de altura (V7), possivelmente tratando-se de yapepós de tamanho pequeno. Ocorre

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ainda uma vasilha com tratamento ungulado de 17 cm de diâmetro (V4) e uma com tratamento corrugado telhado de 18 cm de abertura (V6), que poderiam ser incluídas nesta categoria, apesar de não apresentarem depósitos carbônicos no interior, tampouco fuligem na superfície externa.

Outras quatro vasilhas apresentam pintura policrômica (vasilhas V8, V11, V13, V14), com diâmetro de abertura de 24 cm, 58 cm, 34 cm e 18 cm respectivamente. As duas primeiras são cambuchís, e as menores podem pertencer à mesma categoria, ou tratar-se cambuchí caguâba. Além destas, a vasilha V9 apresenta policromia a partir da carena e duas bases (vasilhas V10 e V12) podem ser de cambuchís por serem alisadas, e fragmentos de parede associados a elas possuírem engobo branco.

Uma tigela (vasilha V15) apresenta forma de cambuchí caguâba, com diâmetro aproximado de 30 cm, porém com pintura monocromática em vermelho, em ambas as superfícies. A monocromia em vermelho não é um elemento recorrente na cerâmica Guarani do período pré-contato com o europeu, porém é recorrente nas reduções jesuíticas do século XVII. Somente a evidenciação do contexto desse sítio, com escavações e realização de datações, permitiria verificar trata-se de uma inovação anterior ao contato com o europeu, ou se este sítio também teria sido ocupado durante o período da Redução, podendo constituir-se de uma área mais periférica onde a prática de enterrar os mortos em urnas continuaria sendo feita, longe do alcance da visão dos padres.

DISCUSSÃO Os dados arqueológicos obtidos até o momento no atual estado do Rio Grande do Sul demonstram que os Guarani ocuparam primeiramente os rios maiores como o Uruguai e o Jacuí, onde ocorrem as datas mais antigas, e posteriormente se expandiram para os rios menores em decorrência do aumento demográfico. Poucos trabalhos têm sido realizados nas áreas mais periféricas do ponto de vista hidrográfico, nos rios e arroios menores da região central do estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo de entender o sentido e a possível diversidade nas ocupações e

na cultura material, até então vista como bastante homogênea. O estudo do contato entre indígenas Guarani e jesuítas espanhóis no seu período inicial também é ainda pouco explorado na arqueologia, tendo em vista que maior atenção foi dada as reduções fundadas no século XVIII, os chamados Sete Povos das Missões, localizados no noroeste do estado do Rio grande do Sul.

As pesquisas realizadas até o momento (Fajardo 2001; Santi 2009; Zuse 2009) demonstram que os Guarani ocuparam a região por um longo período até o contato e colonização europeia. Ocupações no Arroio Raimundo, afluente do Rio Vacacaí, ocorreram entre 500 e 1060 d.C (datações por Termoluminescência) no sítio Cabeceira do Raimundo (Fajardo 2001). Já nos arroios afluentes do rio Ibicuí Mirim, no município de São Martinho da Serra, ocorrem datações próximas ao ano de 100/200 d.C, além de sítios como o Ibm 12 Marafiga e Ibm 10 Guarda de San Martin que são do período do contato com o europeu, sendo o primeiro um contexto de enterramento em urna funerária com cultura material europeia associada (contas de colar e cunhas de ferro) com datações de cerâmica por Termoluminescência de 1530 d.C, 1620 d.C e 1835 d.C (Machado 2004). No rio do Soturno foram evidenciados sítios Guarani com datações de cerâmica por Termoluminescência que variam entre 1.179 +-130 d.C e 1.659 +-50 d.C (Santi 2009). Entretanto fazem-se necessárias novas escavações e datações para estabelecer um panorama regional das ocupações Guarani, até o contato e colonização europeia.

Esse trabalho centrou-se na análise da cerâmica Guarani desde a sua chegada na região anteriormente ocupada por grupos caçadores-coletores, até a fundação da Redução Jesuítico-Guarani, buscando evidenciar as permanências e mudanças na cultura material. Entende-se que na cadeia operatória de confecção dos artefatos, todos os gestos, escolhas e decisões adotadas pelas ceramistas estão inseridos em um corpo de conhecimentos técnicos da sociedade, aprendidos e transmitidos ao longo das gerações. Ao mesmo tempo, se as tecnologias são produções sociais, integrantes de um fenômeno cultural, conforme entende Lemonnier (1992), então

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os comportamentos técnico, social e cultural possuem um caráter dinâmico, e estão sujeitos a mudanças. Analisamos um contexto em que de um lado estavam os Guarani com sua tradição cultural transmitida ao longo das gerações por milhares de anos, e do outro os jesuítas que eram os mais “brandos” dos espanhóis que por ali andavam. A Redução foi um refúgio para o Guarani ameaçado pela encomienda e pelos ataques bandeirantes, ao mesmo tempo em que representou a transformação do seu espaço, do seu simbolismo, da sua economia, enfim, da sua totalidade social, de acordo com um projeto de cristianização implantado pelos padres. Não sem resistências, que inclui a destruição de muitos povoados pelos indígenas e a morte de alguns padres. A análise dos dados, centradas na compreensão do universo material e tecnológico, permitiu perceber que o conhecimento técnico tradicional Guarani, transmitido ao longo das gerações por pelo menos dois mil anos de história, permaneceu sendo utilizado na confecção dos artefatos cerâmicos, com a incorporação de novos conceitos relacionados à forma e tratamento de superfície em algumas vasilhas, transmitidos pelos padres, possivelmente relacionados a funções específicas e novos modos de consumir os alimentos. Dentro das possibilidades de mudanças, os Guarani optaram por adotar algumas características técnicas novas e rejeitar outras, de acordo com a experiência que traziam em séculos de história, expansão e contatos culturais com outros povos.

AGRADECIMENTOSMárcia Angelina Alves, Saul Milder, Átila Stok da Rosa, Klaus Hilbert, Carlos Appoloni, Silvia Copé, Juliana Rossato Santi.

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