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Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

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as estruturas sociais da economia

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fi Estruturas Sociais da Economia

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AS ESTRUTURAS SOCIAIS DA ECONOMIA

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As EsTRUTURAS SociAIS DA E coNOM IA

Pierre Bourdieu

AS ESTRUTURAS SOCIAIS DA ECONOMIA

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Tradução de

Lígia Calapez

e Pedro Simões

Autor: Pierre Bourdieu Revisão Técnica de

Título original: The Economic Field Carlos Gomes

Tradução: Lígia Calapez e Pedro Simões Revisão Técnica: Carlos Gomes Capa: José Saraiva Paginação: Menta Design

© Campo das Letras - Editores, S.A., 2006 Rua D. Manuel li, 33, 5.0 4050-345 Porto Tel.: 226 080 870 Fax: 226 080 880 E-mail: [email protected] Site: www.campo-letras.pt

Impressão: Papelmunde, SMG, Lda 1.• edição: Junho de 2006 Depósito Legal: 244524/ 06 ISBN: 989-625-051- 0 Código de barras: 9789896250515

Colecção: Campo das C iências - 20 Código do livro: 1.09.020

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While economics is about how people make choice, sociology is about how they don't have any choice to make

BERTRAND RussELL

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Introdução

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A S ES TRUTU RAS SOCIA I S D A ECONOM IA

A

São necessários séculos de cultura para produzir um utilitário como Stuart Mill.

H ENRI BERGSON

ctencia a que se chama "economia" repousa sobre uma abstracção ·originária, que consiste em dissociar uma cate­goria especifica de práticas, ou uma dimensão particular

de toda a prática, da ordem social na qual toda a prática humana se encontra submersa. Esta imersão, de que se encontram alguns aspectos ou alguns efeitos quando se fala, segundo Karl Polanyi, de "embeddedness" 1 obriga, que, para as necessidades de conhecimento, se seja forçado a tratá-la de outra forma, a pensar toda a prática, a começar por aquela que se apresenta da forma mais evidente e estrita, por "económico", como "um facto social total", no sentido que lhe dá Marcel Mauss.

Quer isto dizer que os estudos particulares que pude realizar, há cerca de quarenta anos, na Argélia, sobre a lógica da econo­mia da honra e da "boa-fé" ou sobre as determinantes culturais e económicas das práticas de poupança, do crédito, ou do investi­mento, ou a meio dos anos 60, com Luc Boltansky e Jean-C laude Chamboredon, sobre a banca e a sua clientela, ou ainda mais recentemente, com Salah Bouhedja, Rosine Christin, Claire Givry e Monique . de Saint-Martin, sobre a produção e comercialização de casas individuais, se distinguem da economia na sua forma mais comum sob dois aspectos essenciais: elas tentam, em qualquer um dos casos mobilizar o conjunto dos saberes disponíveis sobre as diferentes dimensões da ordem social, seja, em síntese, a família, o Estado, a escola, os sindicatos, as associações, etc. - e não uni­camente, a banca, a empresa e o mercado - ; e elas armam-se de um sistema de conceitos que, forjado de modo a descreverem os

1 Embutido . . (N. do T.)

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dados resultantes da observação, poder-se-ia apresentar como uma teoria alternativa para compreender a acção económica: o conceito de habitus, nascido do esforço de relatar as práticas dos homens e das mulheres que se encontraram lançados num cosmos econó­mico estranho e estrangeiro, importado e imposto pela colonização, com um equipamento cultural e disposições, nomeadamente econó­micas, adquiridas num universo pré-capitalista; o conceito de capital cultural que, elaborado e instalado praticamente no mesmo momento em que Gary Becker introduzia em circulação a noção de "capi­tal humano", mole, vaga e pesadamente carregada de pressupostos sociologicamente inaceitáveis, visava descrever as diferenças, de outro modo inexplicáveis do desempenho escolar de crianças dotadas cul­turalmente de forma desigual e, mais geralmente, em todas as for­mas de práticas culturais ou económicas; o conceito de capital social que eu tinha forjado, desde os meus primeiros trabalhos de etno­logia em Kabila ou em Béarn, para descrever as diferenças residuais ligadas, grosso modo, aos recursos que podem ser reunidos por pro­curação, através de redes de "relações" mais ou menos numerosas e mais ou menos ricas, e que, muitas vezes associada hoje ao nome de ]ames Coleman, responsável pelo seu lançamento sobre o mercado altamente protegido da sociologia americana, é frequente­mente utilizado para corrigir, através do efeito dos "social networks", as implicações do modelo dominante2

; o conceito de capital simbó­lico, que tive de construir para descrever a lógica da economia da honra e da "boa-fé" e que pude precisar e afinar, por e para a aná­lise da economia dos bens simbólicos, e muito especialmente das obras de arte; enfim, e sobretudo a noção de campo, que conhe­ceu um certo sucesso, sob uma forma sem nome e muitas vezes um pouco imprecisa, na "N ew Economic Sociology"3• A introdu-

2 As estratégias que visam "corrigir" as insuficiências ou as lacunas de um paradigma sem nunca o colocar verdadeiramente em questão, Herbert Simon falando da "racionalidade limitada" ou Marc Granowetter reintroduzindo os "social networks", fazem pensar nas construções laboriosas pelas quais Tycho­-Brahé se esforçava por salvar o modelo geocêntrico de Ptolomeu contra a revolução de Copérnico.

3 Para uma análise da diferença entre o conceito de capital cultural (intro­duzido in P. Bourdieu e ].-C. Passeron, Les Héritiers. Les étudiants et la culture,

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ção destas noções não é senão um aspecto de uma mudança mais global de linguagem (marcada, por exemplo, pela substituição do léxico da disposição pela da decisão ou do adjectivo "razoável" pelo "racional") que é indispensável para exprimir uma visão da acção radicalmente diferente daquela que fundamenta, de forma muitas vezes implícita, a teoria neo-clássica.

Recorrendo a conceitos que foram elaborados e implementa­dos a propósito de objectos tão diversos como as práticas rituais, os comportamentos económicos, a educação, a arte ou a litera­tura, eu não quereria parecer sacrificar a esta espécie de anexio­nismo reducionista, ignorando as especificidades e os particularis­mos próprios a cada microcosmo social, ao qual se dedicam, hoje, cada vez mais, certos economistas, convencidos que se podem con­tentar com os conceitos mais gerais e mais puros do pensamento económico para analisar, fora de toda a referência aos trabalhos dos historiadores ou dos etnólogos, de realidades sociais tão com­plexas como a família, as trocas entre as gerações, a corrupção e o casamento. Quando eu me inspiro na realidade de uma con­vicção perfeitamente oposta: porque o mundo social se encontra totalmente presente em cada acção "económica", torna-se necessá­rio armarmo-nos de todos os instrumentos do conhecimento que, longe de colocar entre parênteses a multidimensionalidade e a mul­tifuncionalidade das práticas, permitam construir modelos históricos capazes de justificar com rigor e parcimónia as acções e as institui­ções económicas tais como elas se apresentam à observação empí­rica. Isto, evidentemente, envolvendo a obrigatoriedade de suspen-

Paris, Éditions Minuit, 1964) e a noção de "capital humano", proposta por Gary Becker, ver P. Bourd ieu, ''Avenir de classe e causalité du probable", Revue française de Sociologie, XV (Janeiro-Março 1974, pp. 3-42) e La Noblesse d'État. Grandes Écoles et esprit de corps (Paris, Éditions de Minuit, 1989, pp. 391--392); sobre o capital social, ver «Ü capital social. Notas provisórias", Actas da investigação em ciências sociais, 31 (Janeiro 1980, pp.2-3); sobre o capital simbó­lico, La Distinction. Critique sociale du jugement (Paris, Éditions de Minuit, 1979), Méditations pascalliennes (Paris, Éditions d~ Seuil, 1997), e para uma actualização recente, "Scattered remarks", European ]ournal of Social Theory, 2(3) (Agosto de 1999, pp. 334-340).

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der previamente a adesão às evidências e às prenoções de senso comum. Como o atestam tantos modelos dedutivos dos economis­tas que não passam de simples formulações e de fórmulas matemá­ticas duma intuição de senso comum, esta ruptura nunca é, talvez, tão difícil como quando o que se pretende questionar se encon­tra inscrito, como os princípios das práticas econômicas, nas roti­nas mais banais da experiência ordinária. Eu só poderia dar uma ideia do trabalho de conversão que é necessário para romper com a visão primeira das práticas econômicas evocando a longa série de surpresas, espantos e de perturbações, que me levaram a sofrer de uma forma significativa o carácter contingente de tantos comporta­mentos que são o pão quotidiano das nossas vidas, o cálculo dos custos e perdas, o empréstimo com juros, a poupança, o crédito, a constituição de reservas, o investimento ou mesmo o trabalho. Recordo-me de ter permanecido, durante longas horas, a crivar de questões um camponês kabile que me tentava explicar uma forma tradicional de empréstimo de gado, porque não me tinha passado pela cabeça que o emprestador, contra toda a razão "econômica" se sentia em dívida para o devedor em nome da ideia que aquele assegurava a manutenção do animal que, em qualquer dos . casos, seria necessário alimentar. Recordo-me, ainda, da soma de peque­nas observações de natureza anedótica ou de constatações estatís­ticas que tive de acumular antes de, pouco a pouco, compreender que tinha, como toda a gente, uma filosofia implícita do traba­lho, baseada sobre a equivalência do trabalho e do dinheiro: o comportamento considerado extremamente escandaloso do pedreiro que, aquando do regresso de uma longa estadia em França, pedia que lhe acrescentassem ao seu salário uma soma correspondente ao preço da refeição oferecida no fim dos trabalhos à qual ele se tinha recusado participar, ou o facto de para um número de horas ou de dias de trabalho objectivamente idênticos, os camponeses das regiões do Sul da Argélia, menos afectados pela emigração se incli­navam mais para se considerar ocupados ao contrário dos Kabilas que tendiam .a se considerar sem trabalho ou desempregados. Esta filosofia que, para mim (e todos os meus semelhantes), era normal, para alguns que eu observava, nomeadamente os Kabilas, encontra­vam-se no processo de a descobrir, arrancando-se, laboriosamente, a

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uma v1sao, para mim muito difícil de encarar, da actividade como ocupação social4

• E recordo-me também de ter sentido uma espécie de estupefacção divertida diante da história extraordinária destas crianças de Lowestoft, em Inglaterra, que, como o relatavam os jornais de 29 de Outubro de 1959, tinham criado um seguro con­tra as punições prevendo que, para um açoite, o segurado recebe­ria quatro xelins, e que, perante certos abusos, tinham chegado ao ponto de estabelecer uma cláusula suplementar segundo a qual "a · sociedade não era responsável por acidentes voluntários".

Na falta destas "predisposições" que os estudantes espontanea­mente "stuartmilianos" de Lowestoft tinham encontrado no seu berço, os agentes econômicos que pude observar na Argélia dos anos 60 deviam aprender, ou mais exactamente reinventar, com maior ou menor sucesso segundo os seus recursos econômicos e culturais, tudo o que a teoria econômica considera (pelos menos tacitamente) como um dado, isto é, como um dom inato, univer­sal e inscrito na natureza human a: a ideia do trabalho como uma actividade que possibilita a obtenção de um rendimento monetá­rio por oposição à simples ocupação conforme a divisão tradicional das actividades ou a troca tradicional de serviços; a própria possi­bilidade da transacção impessoal entre indivíduos, ligada à situação de mercado, por oposição a todas as trocas da economia da "boa­-fé", como a designam os Kabilas, entre pais e familiares ou entre desconhecidos, mas, se se pode dizer, "domesticados", pela caução de próximos e intermediários capazes de limitar e conjurar os ris­cos ligados ao mercado; a noção de investimento a longo prazo, por oposição à prática de constituição de reservas ou à simples antecipação inscrita na unidade experimentada, de forma directa, dos ciclos produtivos; a concepção moderna, que se tornou de tal forma familiar que esquecemos que foi objecto de intermináveis debates ético-jurídicos, do empréstimo com juros e a própria ideia de contrato, com os seus prazos estritos, até então desconhecidos,

4 Sobre a descoberta do trabalho, poder-se-á ler P. Bourd ieu, Travail et tra·

vailleurs en Algérie, segunda parte, Paris-La haye, Mouton, 1963 (Com A. Dar­bel, J.-P. Rivet, C. Seibel), e P. Bourdieu e a A. Sayad, Le Déracinnement. La crise de l'agriculture tradionnelle en Algérie, Paris, Éditions de Minuit, 1964.

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as suas cláusulas formais, que substituíram progressivamente a troca de honra entre homet1s de honra, excluindo o cálculo, a busca do lucro e obedecendo a uma preocupação aguda de equidade, etc. Tantas inovações parciais, mas que se constituíram em sistema, por se enraizarem numa representação do futuro, como local onde exis­tem formas abertas e justificáveis de cálculo5

Eu podia assim verificar, como numa situação experimental, que existem condições econômicas e culturais da conversão da visão do mundo que é exigida àqueles que, dotados de uma formulação criada pelo universo pré-capitalista, são lançados no cosmos econô­mico importado e imposto pela colonização. Só uma forma muito particular de etnocentrismo que se mascara em universalismo, pode · levar a creditar, de forma universal, os agentes da capacidade de uma conduta econômica racional, fazendo desaparecer, por essa via, as condições econômicas e culturais do acesso a esta capacidade (desta forma constituída em norma) e, simultaneamente, a da acção indis­pensável se se quer universalizar estas condições. Só rompendo de forma radical com o preconceito antigenético de uma ciência dita pura, quer dizer profundamente des-historizada e des-historizante, porque assente (como a teoria saussuriana da língua) sobre a colo­cação entre parênteses de todo o enraizamento social das práti­cas econômicas, se pode fazer jus às instituições econômicas das realidades sociais cuja teoria econômica ratifica e consagra a apa­rente evidência.

Tudo o que a ciência econômica coloca como um dado, quer dizer o conjunto das disposições do agente econômico que funda­mentam a ilusão da universalidade não histórica das categorias e dos conceitos utilizados por esta ciência, é com efeito o produto

5 Sobre as condições económicas do acesso ao cálculo económico, poder· -se-á consultar P. Bourdieu, Travait et travaitleurs en Atgérie (obra citada) e Atgérie

60 (Paris, Éditions de Minuit, 1977); e sobre as condições cultura is, poder-se­-á ler uma descrição da emergência progressiva da market cutture, teoria social espontânea que descreve as relações sociais "exclusivamente em termos de mercadorias e trocas, enquanto estas continuavam a ter implicações mais vas­tas", in W. Reddy, The Rise of Market Cutture . The Textite Trades and French Society, 1750-1900 (Cambridge, Cambridge University Press, 1984).

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paradoxal de uma longa história colectiva, reproduzido sem cessar nas histórias individuais, que só a análise histórica podem resolver de forma completa: é porque inscreveu paralelamente nas estrutu­ras sociais e nas estruturas cognitivas, esquemas práticos de pen­samento de percepção e de acção, que a história conferiu às ins­t ituições cuja economia pretende fazer a teoria não-histórica a sua aparência de evidência natural e universal; isto, nomeadamente, através da amnésia da génese que favorece neste domínio e noutros, o acordo imediato entre o "subjectivo" e o "objectivo", entre as d isposições e as posições, entre as antecipações (ou as esperanças) e as oportunidades.

Contra a visão não histórica da ciência econômica, torna-se por­tanto necessário reconstruir, por um lado, a génese das disposições econômicas do agente econômico, e muito especialmente dos seus gostos, das suas necessidades, das suas propensões ou das suas capacidades (do cálculo, da poupança ou do próprio trabalho), e, por outro lado, da génese do próprio campo econômico, quer dizer, fazer a história do processo de diferenciação e de autonomizaçã:o que conduz à constituição. deste jogo especifico: o campo econô­mico como cosmos obedecendo às suas próprias leis e conferindo por esse facto uma validade (limitada) à autonomização radical que opera a teoria pura ao constituir a esfera econômica como um uni­verso separado. Não foi senão de forma progressiva que a esfera das trocas mercantis se veio a separar dos outros domínios da exis­tência e que se afirmou o seu nomos especifico, aquele que enun­cia a tautologia "os negócios são os negócios"; que as transações econômicas cessaram de ser concebidas sobre o modelo das trocas domésticas, portanto comandadas pelas obrigações familiares ("nos negócios não existem sentimentos") ou sociais; e que o cálculo dos lucros individuais, portanto o interesse econômico, impôs-se como um princípio de visão dominante, senão exclusivo, contra a rejei­ção colectivamente imposta e controlada das inclinações calculado­ras que se encontrava associada à economia doméstica.

A palavra "conversão", que pode parecer imprópria ou exces­siva, impõe-se se se encarar que o universo no qual os recém­-chegados devem entrar é também, e tanto quanto aquele de que saem, um universo de crença: paradoxalmente, o universo da razão

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enraíza-se numa vtsao do mundo que, se atribui um lugar central ao princípio da razão tou, se se preferir, da economia), não tem a razão por princípio. A observação das conversas forçadas, mui­tas vezes custosas e dolorosas, que os recém-chegados à economia propriamente económica devem operar sob pressão da necessidade, permite, sem dúvida, obter uma ideia aproximada do que se pas­sou nas origens do capitalismo, em que as disposições se inventa­ram ao mesmo tempo que se instituía, a pouco e pouco, o campo no qual elas se concretizavam. O espírito de cálculo, que não se encontra em nada implicado na capacidade, sem duvida univer­sal, de submeter os comportamentos à razão calculadora, impõe­-se pouco a pouco, em todos os domínios· da prática, contra a lógica da economia doméstica, fundada sob a rejeição ou, melhor, a recusa do cálculo: recusar calcular nas trocas entre familiares, é recusar obedecer ao principio da economia, como capacidade e

" . )) "f . )) (d t o propensão para economtzar ou a azer economtas e es orç , de sacrifício, depois de trabalho, de tempo, de dinheiro, etc.), recusa que pode sem duvida, a prazo, favorecer uma espécie de atrofia da propensão e da capacidade de cálculo. Enquanto a famí­lia fornecia o modelo de todas as trocas, aí compreendido aquelas que nós consideramos como "económicas", é doravante a econo­mia constituída enquanto tal, reconhecida como tal, com os seus próprios princípios e a sua própria lógica, a do cálculo, do lucro, etc., que para grande escândalo do pai Kabila a quem o seu filho reclama um salário, pretende transformar o princípio de todas as práticas e de todas as trocas, aí compreendido no seio da família. É desta inversão da tabela de valores que nasceu a economia tal como a conhecemos. (E que alguns .economistas particularmente intrépidos, como Gary Becker, se limitam a seguir no seu movi­mento, de que o seu próprio pensamento é o produto impensado, quando aplicam à família, ao casamento, à arte, modelos construí­dos segundo o postulado da racionalidade calculadora.)

Numa espécie de confissão a si própria, a sociedade capita­lista cessa de "se pagar a si própria a falsa moeda do seu sonho", sonho d e desinteresse, de generosidade, de gratuitidade: registando de algum modo o facto que tem uma economia, constitui como económicos os actos de produção, de troca ou de exploração reco-

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nhecendo explicitamente como tais os fins económicos em relação nos quais estiveram sempre orientados. A revolução ética no termo dn qual a economia se pôde constituir enquanto tal, na objectivi­dade de um universo separado, regido pelas suas próprias leis, as d cálculo interessado e da concorrência sem limites orientada para o lucro, encontra a sua expressão na teoria económica "pura" que rcgista, inscrevendo-a tacitamente no princípio da sua construção de objecto, o corte social e a abstracção prática de que o cosmos 'conómico é o produto.

Paradoxalmente, este processo é ele próprio indissociável de uma nova forma de rejeição e de negação da economia e do económico que se institui com a emergência de todos os campos de produ­' ão cultural fundados sobre a rejeição das suas condições econó­micas e sociais de possibilidade6• · Com efeito, só pagando o preço de uma ruptura tendente a reenviar para o mundo inferior da 'conomia - de que se viu ter-se constituído retirando dos actos e das relações de produção o seu aspecto propriamente simbólico -que os diferentes universos de produção simbólica se puderam afir­mar enquanto microcosmos fechados e separados, onde se reali­zam acções de parte em parte simbólicas, puras e desinteressadas (do ponto de vista da economia do económico). A emergência des­tes universos, que, como os mundos escolásticos, facultam posições onde se pode sentir inclinado a apreender o mundo como um cspectáculo, de longe e de alto, e de o organizar como um con­junto destinado só para conhecimento, vai de par com a invenção de uma visão escolástica do mundo que tem uma das suas expres­sões mais perfeitas no mito do homo oeconomicus e na rational action

theory, forma paradigmática da ilusão escolástica que leva o estu­d ioso a colocar o seu pensamento elaborado na cabeça dos agen­tes que actuam e na base da sua prática, quer dizer na sua "cons­ciência", as suas próprias representações espontâneas ou elaboradas ou, pior ainda, os modelos que teve de construir para justificar as práticas deles.

6 Para um desenvolvimento desta análise, poder-se-á ver P. Bourdieu, Médi­tations pasca!iennes, op. cit., p. 29 ss. e também p. 64 ss.

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Numerosos observadores alertados, nomeadamente por econo­mistas especialmente clarividentes, como Maurice Allais7 constata­ram que existe um desvio sistemático entre os modelos teóricos e as práticas efectivas, e diversos trabalhos de economia experimental (eles próprios nem sempre libertos do erro escolástico) e mostraram que, em muitas situações, os agentes efectuam escolhas sistematica­mente diferentes daquelas que se podem prever a partir do modelo económico, seja, por exemplo, porque não jogam os jogos de acordo com as predições da teoria dos jogos, seja porque recorrem a estra­tégias práticas, seja porque se inquietam de agir conforme o seu sentido de justeza ou da justiça, de ser tratados . de igual forma. Esta discordância empiricamente constatada não é senão o reflexo do desvio estrutural, que eu analisara desde os meus primeiros tra­balhos como etnólogo, entre a lógica do pensamento escolástico e a lógica prática ou, segundo a fórmula de Marx a propósito de Hegel que não me canso de citar, "entre as coisas da lógica e a lógica das coisas". Não há duvida que as disposições e os esquemas mol­dados pela imersão num campo que, como o campo económico, se distingue dos ot,~tros campos sob vários aspectos, e nomeada­mente por um grau excepcional de "racionalização formal"8 , podem engendrar práticas que se revelam conformes (pelo menos de um ponto de vista grosseiro) à racionalidade sem que se possa contudo supor que elas têm sempre a razão como princípio. É verdade que as sanções se impõem sem contemplações nem equívocos (fala-se assim, para designar um veredicto brutal e sem conciliações, da "verdade dos preços") e que os comportamentos podem ajustar-se à finalidade, sem passar por cínicos ou oportunistas, da busca da maximização do lucro individual. O proveito económico, ao qual se tem tendência a reduzir toda a espécie de provento, não é senão a

7 Cf. M. Aliais, "O comportamento do homem racional diante do risco: crítica dos postulados e axiomas da escola americana", Econometrica, 21, 1953, pp. 503-546.

8 Poder-se-ia, deste ponto de vista, concordar com Max Weber que a teo­ria da utilidade marginal é um "facto histórico-cultural" que manifesta este aspecto das sociedades contemporâneas que é a tendência para a racionalização - formal -, correlativa nomeadamente da generalização das trocas monetárias.

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forma específica que reveste o investimento no campo económico quando este é apreendido por agentes dotados das disposições e das crenças adequadas, porque adquiridas em e por uma experiên­·ia precoce e prolongada das suas regularidades e da sua necessi­dade. As disposições económicas mais fundamentais, necessidades, preferências, propensões, não são exógenas, quer dizer, dependentes de uma natureza humana universal, mas endógenas e dependen­tes de uma história, que é precisamente a do cosmos económico onde elas são exigidas e recompensadas. Quer dizer, contra a dis­t inção canónica entre os fins e os meios, que o campo impõe a todos, mas com graduações diferentes segundo a sua posição e as suas capaci­dades económicas, não só os meios "razoáveis" mas os fins, ou seja, o enriquecimento individual da acção económica.

A economia das práticas económicas, esta razão imanente às práticas, 'ncontra o seu princípio não nas "decisões" da vontade e da cons­·iência racional ou nas determinações mecânicas nascidas de pode­res exteriores, mas nas disposições adquiridas através de aprendi­zagens associadas a uma longa confrontação com as regularidades do campo; estas disposições são capazes de engendrar, mesmo fora le todo o cálculo consciente, comportamentos e antecipações que

v<t le mais chamar de razoáveis, em vez de racionais, mesmo se a sua ·onformidade com as estimativas do cálculo inclina mais a pensá­-las e a tratá-las como produtos da razão calculadora. A observa­ção mostra que, mesmo neste universo onde os meios e os fins da acção e a sua relação são elevados a um alto grau de explícita· ção, os agentes orientam-se em função de intuições e antecipações do sentido prático, que deixa muitas vezes o essencial no estado implícito e que empenha, sobre a base da experiência adquirida na 1 rática, nas estratégias "práticas", no duplo sentido de implícitas, não teóricas, e de cómodas, adaptadas às exigências e às urgên­cias da acção9•

9 O facto que práticas que se podem considerar razoáveis, porque dotadas de uma razão, sensatas, não terem a razão ou o cálculo racional como prin­cípios tem consequências bem reais: os problemas e as formas de os resol­ver são completamente d iferentes do que seriam se tivessem sido levados ao estado explícito e metódico.

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(Derivado ao facto de a lógica económica do juro e do cál­culo ser indissociável d~ constituição do cosmos económico onde se cria, o cálculo estritamente utilitarista não pode descrever com­pletamente as práticas que permanecem imersas no não econó­mico; e, sobretudo, não pode justificar o que torna possível o objecto do cálculo, quer dizer, da formação do valor a propó­sito da qual existe matéria para calcular, ou, o que vem a dar no mesmo, da produção que eu designo t'illusio, a crença funda­mental no valor das jogadas e do próprio jogo. Isto vê-se bem no caso dos campos, como o campo religioso ou o campo artís­tico, onde os mecanismos sociais da produção de provef).tos não "económicos" - no sentido restrito - obedecem a leis que não são as do campo económico: poder-se-ão localmente submeter ao princípio da economia - com o recurso ao moinho das preces, por exemplo, ou à aplicação do do ut des às trocas com os pode­res sobrenaturais - sem que se possa esperar compreender o fun­cionamento, ainda que parcialmente, a partir deste único princí­pio. Da mesma forma, todos os cálculos do mundo a propósito dos cálculos envolvendo o mercado da arte - ou, a fortiori, o uni­verso da ciência ou mesmo da burocracia - não farão avançar um passo a compreensão dos mecanismos que constituem a obra de arte como um valor susceptível de ser envolvido em cálculos e transações económicas. E o mesmo acontece, ainda que seja muito menos visível, no campo económico: com efeito, se se exceptuar algumas situações históricas - como aquelas que pude observar na Argélia - ou algumas condições sociais relativamente extraordiná­rias - por exemplo, a dos adolescentes saídos do mundo operário que, tendo adquirido, na sequência de passagem mesmo que infe­liz por uma instituição escolar, disposições com um nível ajustado de forma menos estrita que os mais velhos às posições prováveis, recorreram a meios diversos para escaparem à simples reprodução-, tudo concorre para fazer esquecer o carácter socialmente construí­do, portanto arbitrário e artificial, do investimento no jogo e nas jogadas económicas: de facto, o principio último do envolv imento no trabalho, a carreira ou a busca do lucro, situa-se para além ou aquém do cálculo ou da razão calculadora, nas profundezas obscuras de uma conformação historicamente constitu ída que faz

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·om que, salvo algo de extraordinário, nos levantemos cada dia para partir para o trabalho sem deliberar, como se fez ontem e se fará amanhã.)

O "scholastic bias"10 tal como acabo de o descrever não é, sem dLivida, o único princípio das distorções que afectam hoje a ciên­·ia económica. Ao contrário da sociologia, ciência pária, sempre wspeita de compromissos políticos, de que, na melhor das hipóte­ses, os poderosos não esperam nada, senão conhecimentos subalter­nos e sempre um pouco servis de manipulação ou de legitimação, ' que, por este facto, se encontra menos exposta do que outros n pedidos susceptíveis de ameaçar a sua independência, a econo­mia é sempre mais uma ciência de Estado, que, a este título, é 1 erseguida pelo pensamento de Estado: constantemente habitada por preocupações normativas de uma ciência aplicada, encontra-se I igada ao processo de responder politicamente a solicitações políti­·as, defendendo-se simultaneamente de todas as implicações políti­·as pelo nível ostentatório das suas construções formais, de prefe­rencia matemáticas.

Daí decorre que, entre a teoria económica na sua forma mais 1 ura, quer dizer, a mais formalizada, que nunca é tão neutra como quer acred itar e fazer acreditar, e as políticas que são implementa­das em seu nome ou legitimadas por seu intermédio, interpõem­-se agentes e instituições que se encontram impregnadas de todos )S pressupostos herdados da imersão num mundo económico parti-·ular, saído de uma história social singular. A economia neolibe­ral, cuja lógica tende, hoje, a impor-se a nível mundial por inter­médio de instâncias internacionais como o Banco Mundial ou o FMI e os governos aos quais ditam, directa ou indirectamente, os seus princípios de "gouvernance" 11 , deve um certo número das suas ·aracterísticas, pretensamente universais, ao facto de se encontrar imersa, embedded, numa sociedade particular, quer dizer, enraizada

10 Enviesamento escolástico. (N. do T.) 11 "Gouvernance" é um dos numerosos neologismos que produzidos por

1./tink tanks e outros círculos tecnocráticos e veiculados por jornalistas e os "intelectuais" da moda, contribuem para a "mundialização" da linguagem e dos cérebros.

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num sistema de crenças . e de valores, um ethos e uma vtsao moral do mundo, em síntese, um sentido comum económico, ligado, enquanto tal, às estruturas sociais e às estruturas cognitivas de uma ordem social particular. E é a esta economia particular que a teoria eco­nómica neoclássica vai buscar os seus pressupostos fundamentais, que ela formaliza e racionaliza, constituindo-as assim em fundamen­

tos de um mundo universal. Este modelo repousa sobre dois postulados (que os seu s defen­

sores consideram como propostas demonstradas): a economia é um domínio separado governado por leis naturais e universais que os governos não devem contrariar por intervenções intempestivas;· o mercado é um meio óptimo para organizar a produção e as tro­cas de forma eficaz e equitativa nas sociedades democráticas. Ele é a universalizacão de um caso particular, o dos Estados Unidos da América, ca~acterizados, fundamentalmente, pela fraqueza do Estado que, já reduzido ao mínimo, foi sistematicamente enfra­quecido pela revolução conservadora u ltraliberal, que teve como consequência diversas características t ípicas: uma política orientada para o recuo ou abstenção do Estado em matéria económica, a transferência (ou a subcontração) dos "serviços públicos" para o sector privado e a conversão dos bens públicos como a saúde, a habitação, a segurança e a cultura .- livros, filmes, televisão e rádio - em bens comerciais e os ·utentes em clientes; a renúncia, ligada à redução da capacidade de intervenção na economia, do poder de igualizar as oportunidades e de fazer recuar as desigual­dades (que tende a crescer de forma desmesurada), em nome da velha tradição liberal do self help (herdada da crença calvinista que Deus ajuda àqueles que se ajudam a si próprios) e da exaltação conservadora da responsabilidade individual (que leva, por exem­plo, a imputar o desemprego ou o falhanço económico primeiro aos próprios indivíduos, e não à ordem social, e que encoraja a delegação em n íveis inferiores de autoridade, região, cidade, etc., as funções de assistência social); o enfraquecimento da visão hege­liana-durkheimiana do Estado como ipstâncía colectiva encarregue de agir enquanto con sciência e vontade colectiva, responsável pelas escolhas confor mes ao interesse geral, e de contribuir para favore­

cer o reforço da solidariedade.

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Para, além disso, a sociedade americana levou sem dúvida ao limite extremo o desenvolvimento e a generalização do "espírito do capitalismo", produto de uma revolução ética de que Max Weber encontrara uma incarnação paradigmática em Benjamim hanklin, e a su a exaltação do crescimento do capital conver-1 ida em "dever"; e também o culto do indivíduo e do "individua­li timo", fundamento de todo o pensamento económico neoliberal, tue é um dos pilares da doxa sobre a qual, segundo Dorothy

R ss, se construíram as ciências sociais americanas12; ou, sempre

~cgundo Dorothy Ross, a exaltação do dinamismo e da maleabili­dade da ordem social american a que, por oposição à r igidez e ao 1· ' ceio do risco das sociedades europeias, conduz a ligar a eficá-ia e a produtividade a uma forte flexibilidade (por oposição aos

fortes constrangimentos associados a uma forte segurança social) ' mesmo a fazer da insegurança social um princípio positivo da organização colectiva, capaz de produzir agentes económicos mais eficazes e produtivos13•

O que corresponde a afirmar, que entre todas as característi­·as das sociedades na qual a ordem económica se encontra "mer­gulhada", a mais importante, para as sociedades contemporâneas, 1 a forma e a força da tradição estatal, de que não se pode fazer abstracção, como alguns políticos pressionados e apressados, sem se exporem a propor como avanços progressistas medidas plenas de terríveis regressões momentaneamente invisíveis, mas, a mais ou menos longo prazo, completamente inelutáveis. Um pouco no modo como políticos e altos funcionários franceses que, impondo, ~em dúvida com toda a boa-fé, nos anos 70, uma nova política de ajuda ao alojamento inspirada por uma visão ~eoliberal da eco­nomia e da sociedade, não sabiam que se encontravam a prepa-

12 Cf. D. Ross, The Origins of American Sacia! Science (Cambridge, Harvard niversity Press, 1998) e também P. Bourdieu e L. Wacquant, "Les ruses de

In raison impérialiste", Actes de ta recherche en sciences socia!es, 121-122 (Março 1998, pp. 109-118).

13 Enquanto que uma forte produtividade pode ser associada a uma grande flexibilidade, como é o caso das economias como, por exemplo, da Dina­marca, mas combinada com fortes garantias socia is.

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rar os conflitos e os dramas que vmam a opor de forma durá­vel os habitantes dos grandes edifícios colectivos desertados pelos mais favorecidos dos seus habitari.tes e pelos habitantes das viven­das pequeno-burguesas 14 •

O Estado é o fim e o produto de um lento processo de acu­mulação e de concentração de diferentes espécies de capital: capital de força fisica, policial ou militar (que evoca a definição weberiana pelo "monopólio da violência - fisica - legitima"); capital econó­mico, necessário entre outras coisas para assegurar o financiamento da força fisica; capital cultural ou informacional, acumulado, por exemplo, sob a forma de estatisticas, mas também por instrumen­tos de conhecimento dotados de validade universal no dominio do seu âmbito, como os pesos, as medidas, os mapas ou os cadastros; e, enfim, o capital simbólico. Encontra-se, assim, em condições para exercer uma influência determinante sobre o funcionamento do campo económico (como, também, mas em menor grau, sobre os outros campos). Isto nomeadamente porque a unificação do mer­cado dos bens económicos (e também dos bens simbólicos - de que o mercado das trocas matrimoniais é uma dimensão) acompa­nhou a construção do Estado e a concentração das diferentes espé­cies de capital com que operou. O que corresponde a dizer que, mais que qualquer outro campo, o campo económico se encon­tra habitado pelo Estado que contribui, em cada momento, para a sua existência e a sua persistência, mas também para a estru­tura da relação de forças que o caracteriza. Isto nomeadamente através das diferentes "politicas" mais ou menos circunstanciais a que recorre conjunturalmente (por exemplo, as "politicas da fami­lia" que, pelas leis sucessórias, a fiscalidade, os subsidias familiares, a assistência social, actuam sobre o consumo - de casas nomea­damente - e os niveis de vida) e, mais profundamente, através dos efeitos estruturais que exercem as leis orçamentais, as despesas com infra-estruturas, nomeadamente nos dominios dos transportes,

li Para uma análise mais aprofundada das consequências a longo prazo da política de alojamentos acima analisada, poder-se-á ler P. Bourdieu et a l. , La Misere du monde, Paris, Éd it ions du Seuil, 1993.

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dn energia, do alojamento, das telecomunicações, a (des)fiscalizacão do investimento, o controlo dos meios de pagamento e do crédito, 11 formação da mão-de-obra e a regulação da imigração, a defini­~·nc e a imposição das regras do jogo económico como o contrato I ' trabalho, como tantas outras intervenções politicas que trans­

formam o campo burocrático num estimulador macroeconómico ·ontribuindo para assegurar a estabilidade e a previsibilidade do

l'nmpo económico.

Vê-se bem, por essa via, que a imersão da economia no social '• ta l que, por legitimas que sejam as abstracções operadas para ns necessidades da análise, se torna necessário manter na mente que o objecto real de uma verdadeira economia das práticas não I! outra coisa, em última análise, senão a economia das condicões d ' produção e reprodução dos agentes e das instituições de pr~du­~·~o e reprodução económica, cultural e social, quer dizer, o pró­prio objecto da sociologia na sua defin ição mais completa e mais g ' ral. A própria imensidade da tarefa faz com que nos devamos r •signar a perder em elegância, em parcimónia e em rigor formal, ou seja, de abdicar de rivalizar com a economia mais pura, sem no entanto renunciar a propor modelos, mais fundados na descri­~·~o do que na dedução, e capazes de oferecer antídotos eficazes ao morbus mathematicus, de que os pensadores da escola de Cambridge j;\ fa lavam a propósito da tentação cartesiana do pensamento dedu­t·ivo15· E dedicar-nos ao prazer de descobrir que alguns dos proble­mas que desconcertam de tal forma · os economistas, como a ques­rão de saber porque razão os ricos não gastam toda a sua fortuna nntes de morrer ou porque, mais simplesmente, os jovens ajudam os idosos ou o inverso, encontram talvez o início de solucão desde que se deixe o ar rarefacto da teoria pura. ·

15 E. Cassirer, La Philosophie des Lumieres, Brionne, Gérard Monfort, 1982,

p.l09.

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Page 15: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

1

O mercado da casa

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EST RUT U R AS SO CIAI S D A ECONOMIA

C ríticas aos pressupostos da economia, colocação em causa das suas insuficiências e dos seus limites forat~ expres­sas, aqui ou ali, por este ou aquele economista. E a razão

1 ela qual que em vez de nos sacrificarmos, como tantos outros, a questionar de forma tão ineficaz como estéril e votadas a pare~

·cr ou ignorantes ou injustas, foi necessário arriscarmos afrontar, ' Om as armas da cíência social, um objecto tipicamente partilhado pela economia, a produção e a comercialização de casas individuais, (azendo assim surgir adicionalmente um certo nú.mero de questões a propósito da visão antropológica que a maior parte dos econo­mistas introduzem na sua prática.

As escolhas económicas em matéria de habitação - tais como ·omprar ou alugar, comprar antigo ou novo, e, nesse caso uma ·asa tradicional ou uma casa industrial - dependem por um lado, das disposições económicas (socialmente constituídas) dos agentes, em particular dos seus gostos, e dos meios económicos que podem colocar à sua disposição, e, por outro lado, do estado da oferta das habitações. Mas os dois termos da relação canónica, que a teoria cconómica neoclássica trata como dados incondicionados, depen­dem por sua vez, de forma mais ou menos d irecta, de todo um conjunto de condições económicas e sociais produzidas pela "polí­t ica do alojamento". Com efeito, através nomeadamente de todas as formas de regulamentação e de ajuda financeira destinada a favo­recer uma ou outra forma de realizar os gostos em matéria de alo­jamento, de ajudas aos construtores ou aos particulares, como os empréstimos, as isenções, os créditos bonificados, etc., o Estado - e aqueles que estão em posição de impor as suas perspect ivas através dele - contribui de forma muito significativa para produzir o estado do mercado de habitações, nomeadamente orientando directa

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UNIVERSIDADE FEDERAL [ h} i~AKA INSTITUTO Of. FILOSOFIA E Cl tNCIAS 1-lUJf.ANAS

DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO BIBLIOTECA DE PÓS-GRAOUAÇAO E PESQUISA '

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ou indirectamente os inv~stimentos financeiros - e também afectivos - das diferentes categorias sociais em matéria de alojamento. Assim, toda a medida visando reduzir a oferta de aluguer acessível - por uma restricão dos créditos atribuídos à produção de habitações com renda bai~a - remete uma parte dos arrendatários possíveis para a propriedade, que essa é mais ou menos atractiva segundo a impor­tância das ajudas pessoais e os custos do crédito. E, do mesmo modo, uma política como aquela que foi promulgada pela lei de 1977 constituiu o coroar de todo um conjunto de acções visando a orientação para a propriedade (quer dizer, no espírito de alguns dos seus inspiradores que associam habitação colectiva e arrendamento ao colectivismo ou ao socialismo, para a ligação duradoura à ordem estabelecida, portanto, para uma forma de conservantismo) das "escolhas" das categorias sociais que se encontravam menos orienta­das até ai a satisfazer a sua necessidade de alojamento e fazer do acesso ao alojamento uma forma principal de aplicação.

Em síntese, o mercado das casas individuais (como, sem dúvida, com graus diferentes, todo o mercado) é o produto de uma dupla construção social, para o qual o estado contribui de uma forma deci­siva: construção da procura, através da produção das disposições individuais e, mais precisamente dos sistemas de preferência indivi­dual - nomeadamente em matéria de propriedade ou de arrenda­mento - e também através da atribuição dos recursos necessários, isto é, as ajudas estatais à construção ou ao arrendamento defi­nidas por leis e regulamentos de que se pode também descrever a génese; construção da oferta, através da política do Estado (ou dos bancos) em matéria de crédito aos construtores que contribuí, com a natureza dos meios de produção utilizados, para definir as condicões de acesso ao mercado e, mais precisamente, a posição na es~rutura do campo, extremamente disperso, dos produtores de casas, portanto, os constrangimentos estruturais pesando sobre cada um deles em matéria de produção e de publicidade. E basta levar mais lonae o trabalho de análise para descobrir ainda que a pro-

"' cura não se específica nem define completamente senão em relação a um estado particular da oferta e também das condições sociais, nomeadamente jurídicas (regulamentos em matéria de construção, licenças de construção, etc.) que lhe permitem se satisfazer.

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É difícil não detectar, sobretudo a propos1to de um produto tão ·arregado de significado como a casa, que o "sujeito" das accões 'conómícas não tem nada a ver com pura consciência sem pas;ado da teoria ortodoxa e que, muito profundamente enraizado no pas­sado individual e colectivo, através das disposições de que são res­ponsáveis, as estratégias económicas estão a maior parte das vezes integradas num sistema complexo de estratégias de reprodução, por­tanto cheias de toda a história que elas visam perpetuar, isto é, a unidade doméstica, ela própria o resultado de um trabalho de construção colectivo, uma vez mais ainda imputável, numa parte essencial, ao Estado; e que, correlativamente, a decisão económica não é a de um agente económic isolado, mas a de um colectivo, grupo, família ou empresa, funcionando como campo.

A análise deve assim dedicar-se a descrever a estrutura do campo de produção e os mecanismos que lhe determinam o fun­cionamento (em vez de se contentar com o simples registo, pedindo ele próprio explicações, de co-variações estatísticas entre variáveis e acontecimentos) e também a estrutura da d istribuição das disposi­ções económícas e, mais especialmente dos gostos em matéria de habitação; sem esquecer de estabelecer, por uma análise histórica, as condições sociais da produção deste campo particular e das dis­posições que ai encontram a possibilidade de se realizar de forma mais ou menos completa.

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A S ES TRUTU RAS SOCIAIS

Capitulo 1

Disposições dos agentes e

estrutura do campo de produção1

D A EC ONOMIA

V m conjunto das particularidades de produção de habita­ções e das relações que se estabelecem entre as empre­

sas de produção, resultam das características particula-

res deste produto no qual a componente simbólica entra numa

parte especialmente forte. Enquanto bem material que se encontra

•xposto à percepção de todos (como o vestuário), e isto duravel­mente, esta propriedade exprime ou trai, de forma mais decisiva

tue outros, o ser social do seu proprietário, os seus "meios", como

H ' costuma dizer, mas também os seus gostos, o sistema de classi­

ficação que ele envolve nos seus actos de apropriação e que, objec­

tivando-se em bens visíveis, dá lugar à apropriação simbólica ope­

rnda pelos outros, colocados desta forma em condições de o situar

no espaço social situando-o no espaço dos gostos2• Ela é, por outro

lado, a ocasião de investimentos ao mesmo tempo económicos e afec-

1 Para uma exposição mais detalhada dos dados sobre os quais se iipoiam as análises apresentadas neste primeiro capitulo, poder-se-á repor­llir a dois artigos publicados nas Actes de [a recherche en sciences socia[es (81-82, Março 1990): P. Bourdieu (com a colaboração de S. Bouhedja, R. Christin, ,. Givry), "Un placement de pére de famille" (pp. 6-33) e P. Bourdieu e M.

d' Saint-Martin, "Le sens de la propriété" (pp. 52-64). 2 Sabe-se, por exemplo, a importância que os membros da burguesia e da

11ristocracia davam, no séc\.l lo XIX, à qualidade social do seu endereço - o que podia conduzir a escolher alugar num "bom" bairro em vez de comprar num hairro com menor cotação. E pode-se ver um indice desta consciência de levar ~·m conta os julgamentos dos outros nos "isto basta-me" ou "isto agrada-me" que por vezes revelam as vivendas pequeno-burguesas. .

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tivos particularmente irpportantes3: bem de consumo que, devido ao seu custo elevado, é a ocasião de uma das decisões económi­cas mais difíceis e mais pesadas de todo um ciclo da vida domés­tica, ela é também uma "aplicação", quer dizer, uma poupança não financeira e um investimento que é entendido como conservando ou aumentando o seu valor dando simultaneamente satisfações ime­diatas4. A este título, ela é o elemento central de um património de que se espera que dure tanto como o seu proprietário, e mesmo que lhe sobreviva, a título de herança transmissível.

A mitologia da "casa''

Mas não se pode compreender completamente os investimentos de toda a espécie, em dinheiro, em trabalho, em tempo e em afec­tos, de que ela é objecto, se não nos apercebermos que, como o recorda o duplo sentido da palavra, que designa ao mesmo tempo

0 edifício e o conjunto dos seus habitantes, a casa é indissociável da família corrio grupo social durável e do projecto colectivo de a perpetuar. Sabe-se com efeito que, em algumas tradições culturais, nomeadamente camponesas e aristocráticas, a palavra "casa" reenvia inseparavelmente para a morada material e para a família que aí viveu, aí vive ou aí viverá, entidade social cuja transcendência em relação às pessoas individuais se afirma precisamente pelo facto de dispor de um património de bens materiais e simbólicos - nomea­damente um nome, muitas vezes diferente dos seus membros - que são transmissíveis em linha directa5

. Em muitas sociedades, a cons-

J Um dos comprovativos deste interesse é o sucesso da imprensa consa­grada à decoração da casa que preenche uma função similar à dos manuais de saber-viver num outro domínio da prática.

4 Derivado à pluralidade das funções económicas que preenche simulta­neamente, a casa de habitação coloca problemas difíceis de classificação con­

tabilística. . s Sobre o modelo da "casa", ver P. Bourdieu, "Célibat et condition pay­

sanne", Études rurtt!es, 5-6 (Abril-Setembro 1962, pp. 32-136) e "Les stratégies matrimoniales dans le systeme des stratégies de reproduction", Anna!es, 4-5

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trução de uma nova casa é, como na Kabyla antiga, um empreen­dimento colectivo, mobilizando todo o grupo de varões num tra­balho voluntário (nomeadamente para o transporte de vigas), que coincide com a fundação de uma nova família. E, ainda hoje, o projecto de "fazer construir" está quase sempre associado ao pro­jecto de "fundar uma família" (ou de a aumentar), de construir uma casa no sentido de colectivo de pessoas quer dizer a criacão de um grupo social unido pelos laços de ali,ança e de ~arentes~o, que redobram os laços da co-habitação6•

Assim, tratar a casa como um simples bem de capital caracteri­zado por uma taxa determinada de amortização e a compra de uma casa como uma estratégia económica no sentido estreito do termo fazendo abstracção do sistema de estratégias de reprodução de qu~ é um instrumento, corresponderia a despojar, sem mesmo o saber, o produto e o acto económico de todas as propriedades históricas, eficientes em certas condições históricas, que devem à sua inser­ção num contexto histórico e que importa inscrever na ciência por­que elas se encontram na realidade onde mergulha o seu objecto. O que se afirma tacitamente através da criacão de uma casa é a vontade de criar um grupo permanente, unido por relações s~ciais estáveis, uma descendência capaz de se perpetuar duravelmente, no género do domicílio, durável e estável, imutável; é um projecto ou uma aposta colectiva sobre o futuro da unidade doméstica, quer dizer, sobre a sua coesão, a sua integração, ou, se se preferir, sobre a sua capacidade de resistir à desagregação e à dispersão. E o pró­prio empreendimento que consiste em escolher em conjunto uma casa, de a arranjar, de a decorar, em resumo, de a transformar

"b · " r 1 d " " num a ngo com uma torte re ação e pertença , entre outras

(Julho-Outubro 1972, pp. 1105-1127); E. C laverie e P. Lamaison, L'impossib!e Mariage. Vio!ence et parenté en Gévaudan, XVII' , XVIII' et XIX' siec!es (Paris, Hachette, 1982); e também C. Lévi-Strauss, Paro!es données (Paris, Plon, 1984, p. 177).

6 Observa-se assim que a curva representando a evolução da taxa de pou­

pança não financeira (assimilada ao investimento imobiliário) das famílias, apre­senta ü ma curva muito semelhante à curva que representa a evolucão dos casamentos (c~. L. Crétin e P. Hardy, "Les ménages épargnent moins .qu'il ya quinze ans", Economie et statistique, 219, Março 1989, pp. 21-26).

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razões porque se gosta dos sacrifícios em tempo e trabalho que cus­tou e também porque,' enquanto atestado visível do sucesso de um projecto comum realizado em comum, transforma-se na fonte sem­pre renovada de uma satisfação partilhada, é um produto da coesão afectiva que redobra e reforça a coesão afectiva.

Uma análise antropológica dos investimentos de que a casa cons­titui objecto deveria também ter em consideração toda a herança de mitologias colectivas ou privadas (nomeadamente literárias) que se lhe encontra ligada e que, como se verá, é constantemente evo­cada, despertada, reactivada pela retórica publicitárd. Mas a cha­mada das invariantes antropológicas que se encontram, ainda hoje, presentes na representação dominante não deve levar ao ignorar das variações de significado e de função da casa segundo os meios e os momentos. A utilização social da casa como domicílio estável e durável do colectivo que a habita, pressupõe a tradição de seden­tarismo (por oposição a todas as formas de nomadismo, temporá­rio ou permanente) próprio a economias agrárias, favorecendo o enraizamento no solo e imutabilidade no tempo. Ele é solidário de uma visão conservadora do mundo, que valoriza todas as formas de enraizamento (o · Heimat e o heimlich que a ideologia volkisch opõe ao "vaguear" e ao desenraizamento) e que exalta as relações sociais encantadas, concebidas sobre o modelo de uma família integrada, da "comunidade" (Gemeinschaft) agrária idealizada.

Ligada à família como colectivo, à sua permanência no tempo que visa garantir e que pressupõe, a compra da casa é, ao mesmo tempo, um investimento económico - ou, pelo menos, uma forma de entesouramento, enquanto elemento de um património durá­vel e transmissível - e um investimento social, na medida em que encerra uma aposta sobre o futuro ou, mais exactamente, um pro­jecto de reprodução biológico e social. A casa encontra-se ligada à

7 Encontrar-se-á o estudo de um exemplo de mitologia colectiva par ti­cularmente ligada à área med iterrânica, mas sem dúvida sempre inscrita no inconsciente europeu em P. Bourdieu, "La maison Kabyle ou le monde ren­versé'', in ]. Pouillon e p. Maranda (éd.), Échanges et Communications. Mélan­ges offerts à Ctaude Levi-Strauss à t'occasion de son 60' anniversaire (Paris - La Haye, 1970, pp. 739-358).

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família como unidade social tendendo a assegurar a sua própria r 'produção biológica: ela entra como condição permissiva nos pla­nos de fecundidade; e também a sua reprodução social: ela é um dos principais meios pelos quais a un idade doméstica assegura a n ·umulação e a conservação de um certo património transmissí­vel. Daí decorre que as transformações das tradições em matéria de constituição ou de dissolução da unidade doméstica (e em par­ti ular o crescimento da freq uência dos divórcios ou o declínio da co-habitação entre diferentes gerações) são de natureza a afec­t·:u, mais ou menos directamente, as estratégias em matéria de alo­jamento, e em particular as escolhas a favor do arrendamento ou do acesso à propriedade.

As disposições mais ou menos inconscientes que levam a cons­titu ir praticamente a casa como morada estável de um colectivo de habitantes permanente fazem com que, sem dúvida pelo efeito de uma contaminação metonímica do que contém pelo conteúdo, do modo de produção pelo produto, a maior parte dos agentes eco- · nómicos têm, no que se refere à casa, uma preferência em matéria de tecnologia de fabrico de que não se encontra equivalente a não ser em certos produtos alimentares e, mais geralmente, para todos os bens de luxo: ligados a um modo de produção dito tradicional que é concebido como uma garantia não unicamente de qualidade técnica mas também de autenticidade simbólica, eles encontram-se quase inclinados a privilegiar a casa "feita à mão", à antiga, real­mente ou sobre um modo similar (a "casa dos pedreiros"8 em pedra, produzida segundo um modo de produção industrial), possuída em propriedade individual e situada num meio envolvente autêntica ou ficticiamente campestre (lote) - isto em detrimento da casa indus­trial (ou da habitação num edifício colectivo). E, como se verá mais adiante, esta necessidade de habitar socialmente constituído encon­tra-se particularmente desenvolvido nos consumidores mais impreg­nados das tradições sucessórias que visam perpetuar a casa, nomea­damente pelo privilégio acordado aos mais velho dos descendentes.

8 A frase publicitária "Uma casa de pedreiros" foi lançada pela empresa Bouyges para promover casas industriais.

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As propriedades do produto só se definem completamente na relação entre as suas características objectivas, tanto técnicas como formais, e os esquemas inseparavelmente estéticos e ét icos do aspecto exterior que estruturam a percepção e a apreciação, defi­nindo assim a procura real com a qual os produtores devem entrar em consideração. E as seduções ou os constrangimentos económi­cos que conduzem às decisões de compra observadas só se ins­tauram como tal na relação entre um certo estado da oferta pro­posta pelo campo da produção e um certo estado de exigências inscritas nas disposições dos compradores, assim conduzidos a con­tribuir para os constrangimentos a que se encontram sujeitos. Consequentemente, torna-se necessário pensar em termos comple­tamente novos a oferta e a procura e a sua relação. Com efeito, num dado momento, a oferta apresenta-se como um espaço diferen­ciado e estruturado de entidades concorrentes cujas estratégias dependem dos

outros concorrentes (e não como uma soma agregada de entidades independentes), e só porque ela própria é estruturada (nomeada­mente pela intervenção do Estado) é que pode satisfazer e explo­rar, a procura, ela própria diferenciada e estruturada que, em parte, contribuiu para criar.

Se não é falso dizer que a produção produz o consumo, é a oferta, pelo simples facto de ela tender a anular toda ou parte das outras maneiras possíveis de satisfazer a necessidade de habi­tar (por exemplo, o arrendamento das casas individuais), contri­bui para impor uma forma particular de satisfazer esta neces­sidade, sob a aparência de satisfazer os gostos do consumidor-rei; e que, paralelamente, as empresas capazes de organizar a sua acti­vidade de forma a dar a uma produção industrial de série as aparências de uma produção artesanal de tradição só podem ter sucesso na medida em que consigam fazer pagar ao consumidor o seu desejo mais ou menos fantasmástico de uma casa indivi­dual, durável, transmissível e "feita à mão". (É sem dúvida por essa via que o mercado da casa participa na lógica característica do mercado das obras de arte, onde as preferências se aplicam também a uma tecnologia dominada pelo culto da autenticidade da manifattura, que a assinatura garante, certificado que a obra foi executada pela mão do mestre, ou seja, "de mão de mestre").

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A publicidade so e tão eficaz porque adula as disposições pre­•xistentes para melhor as explorar, submetendo o consumidor às

suas expectativas e às suas exigências sob a aparência de os ser­vir (no inverso de uma política que se serviria de um conheci­mento realista das d isposições para trabalhar para as transformar ou as deslocar para outros objectos)9• Para este fim, recorre a efei­tos que é necessário chamar, correndo-se o risco de chocar, "poéti­cos". Como a poesia, com efeito, e com meios em todos os pontos similares, joga com conotações da mensagem, utilizando sistemati­·amente o poder que detém a linguagem poética para evocar as ·xperiências vividas "próprias a cada um dos indivíduos, variáveis com os indivíduos, variáveis para o mesmo indivíduo segundo os momentos"10• Ela mobiliza as palavras ou as imagens capazes de fazer ressurgir as experiências associadas à casa de que se pode d izer, sem contradição, que são comuns e singulares, banais e úni­cas. Elas são comuns na parte que devem a uma tradição cultural -, em particular, às estruturas cognitivas herdadas - aquelas, por exemplo, que decorrem da análise estrutural do espaço interior da casa ou da relação entre o espaço doméstico e o espaço público. Elas são únicas na parte que devem à forma socialmente específica que revestiu, para cada um de nós, o encontro, ao longo de uma história singular, das palavras e dos seres domésticos.

É o que faz aparecer de forma muito clara a análise da sua expe­riência de leitor de anúncios imobiliários que Marc Augé propõe11

Explicitando as experiências subjectivas que os anúncios fazem sur­gir no seu espírito (citadino, homem e cultivado), indica os meca­nismos sobre os quais se apoia o discurso publicitário (como, mais geralmente, todo o discurso poético) para evocar o universo das conotações privadas: por um lado, a memória encantada das expe­riências originárias, que são ao mesmo tempo situadas e datadas,

9 Vê-se aqui tudo o que se encontra implicado na passagem, hoje forte­mente encorajada nos serviços públicos, nomeadamente educativos e culturais do utilizador (ouvinte, espectador, aluno, estudante, etc.) para o cliente.

10 A. Martinet, To Honor Roman ]akobson, citado por G. Mounin, La Com­

munication poétique, Paris, Gallimard, 1971, p. 25. 11 M. Augé, Demeures et Châteaux, Paris, Éditions du Seuil, 1989.

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portanto umcas, e tran~locais e trans-históricas (na medida em que cada infância contém também alguma coisa de todas as infâncias); por outro lado, o jogo das associações literárias que criam a evoca­ção das palavras evocadoras e das imagens sugestivas tanto quanto o exprimem. O efeito simbólico do anúncio é o produto de uma colaboração entre o autor, que vai buscar ao seu património cultu­ral palavras e imagens capazes de despertar no seu leitor experiên­cias únicas, e o leitor que contribui para conferir ao texto indutor o poder simbólico, ou melhor, o encanto que o mesmo exerce sobre si: com base em todas as suas experiências anteriores do mundo ordinário e também do mundo literário, este último projecta sobre o texto-pretexto a aura de correspondências, de ressonâncias e de analogias, que lhe permitem reconhecer-se a si próprio; e é porque ele se reencontra, como se costuma dizer, na pequena mitologia pri­vada do mundo doméstico que lhe é proposta que pode fazer sua, apropriar-se, deixando-se possuir por ela: "O sistema de anúncios, globalmente, funciona como uma armadilha selectiva cujos mecanis­mos serviriam para orientar as diferentes categorias de vítimas para os seus respectivos quartos de captura."12 A magia e o encanto das palavras participam directamente na magia e no encanto das coisas que eles evocam: o prazer que o leitor sente ao habitar as casas de palavras, "velhas abadias", "antigos moinhos", "posto dos correios" ou "solares do século XVIII" não é senão uma antecipação simbólica do prazer de habitar, de se sentir "em casa" num universo de coisas que é sempre indissociável do universo das palavras necessárias para as chamar e as dominar, numa palavra, de as domesticar.

A casa é objecto de um conjunto de actividades que se torna necessário chamar (de um adjectivo retirado de Ernst Cassirer) "mito­poéticas", quer sejam verbais, como as trocas de conversas encanta­das sobre as adaptações realizadas ou a realizar13

, ou práticas como a

12 lbid., p. 79. 13 Pode-se fazer uma ideia deste formidável trabalho de apropriação, que tem

o seu equivalente na ordem do discurso, olhando atentamente as fotografias das . alterações interiores ou exteriores que os seus proprietários introduziram nas casas Phénix, in Les Honneurs de la maison. Six photographes dans la maison. Testemu­nhos recolhidos sob a d irecção de Lucien C lergue, Paris, Pandora, 1982.

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"bricolage", ocasJao para uma verdadeira criação poetica cujo limite é o palácio do "Facteur Cheval": estas intervenções demiúrgicas con­correm para transmutar o simples objecto técnico, sempre neutro e impessoal, muitas vezes decepcionante e inadequado, numa espécie de realidade insubstituível e sagrada, um destes churingas nos quais, orno nos quadros, os álbuns ou os túmulos da família, a descen­

dência afirma a sua unidade e a sua continuidade14•

O espaço dos compradores

e a génese social das preferências

Mas a análise antropológica - ou fenomenológica - do significa­do da casa faz-nos correr o risco de esquecermos que, neste domí­nio como noutros, as experiências e as expectativas são diferen­·iadas, e segundo um princípio que não é outro que a posição ocupada no espaço sociaF5

• O próprio desejo de posse, no qual se realiza a representação encantada da casa como morada, não tem a universalidade que tacitamente lhe acorda a análise feno­menológica (ou etnológica). E é a todos os títulos notável que as vias pelas quais se satisfaz tenham sofrido uma profunda muta-

14 À maneira dos churingas, estes objectos de pedra ou de madeira deco­rada representando o corpo físico de um antepassado determinado que, nos Arandas, são solenemente atribuídos, em cada geração, ao vivo considerado m mo a reincarnação do antepassado, e que, periodicamente se vai buscar para inspeccionar e honrar, os álbuns de família e todos os bens preciosos, 11rquivos de família, jóias de famíl ia, retratos de família, que se t ransmitem de geração em geração, como o nome próprio e por vezes, alguns primei-1\lS nomes, devem o seu carácter sagrado ao facto de ao atestarem fisica­mente a antiguidade e a continuidade da descendência, consagrarem a sua unidade social, sempre indissociável da permanência no tempo (cf. P. Bour­dicu, Un art moyen, Essai sur les usages sociaux de la photographie, Paris, Éditions de M i nuit, 1965).

15 É o que determina o limite da antropologia filosófica que sobrevive 11 inda hoje, nomeadamente na Alemanha, e da maior parte das tentativas dos l·tnólogos para transportar, sem análise crit ica, os seus instrumentos e os seus h:\bitos de pensar para fora dos seus terrenos tradicionais de aplicação.

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Page 23: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

ção. Com efeito, a ligação entre a casa e a herança, portanto a família, enfraqueceu-s~: enquanto que a parte relativa à transmis­são directa desta categoria de património que é a casa se encon­tra em declínio (entre os proprietários recentes aqueles que devem as suas habitações a uma herança ou a uma doação apenas repre­sentam, em 1984, 9% do c"onjunto16

), a compra a crédito consti­tui o modo de aquisição mais frequente da residência principal e o peso das anuidades médias de reembolso pesa cada vez mais no orçamento das famílias que se tornam proprietárias cada vez mais novas e sem esperar por herdar o alojamento dos seus pais, aliás votado à venda na grande maioria dos casos.

Ao contrário do que se observava nas gerações mais antigas, onde é quase sempre por herança ou graças a uma lenta acumulação de poupança que se acedia à propriedade, os proprietários das gerações mais recentes vêem no acesso à propriedade um meio de se alojarem constituindo, em simultâneo, um património imobiliário, enquanto que a poupança diminui regularmente (passando de 18% em 1970 para 12% em 1987 - sem contrapartida sob a forma de crescimento dos créditos das famílias, que permaneceram estáveis durante o mesmo período)17

• Mas, de forma mais aprofundada, a estatística mos- . tra claramente que as preferências variam segundo diferentes factores: o capital económico, o capital cultural, a estrutura do capital tomada no seu conjunto, a tiajectória social, a idade, o estatuto matrimonial, o número de crianças, a posição no ciclo da vida familiar, etc.

A preocupação para ter em conta o sistema de Jactares determinan­tes obriga a libertar-nos das limitações inerentes às monografias con­sagradas a populações pré-construídas (as famílias com fracos recursos, os reformados, os auto-construtores ou "castores", etc.), e a escapar às simplificações características das explicações parciais com que muitas

16 C. Taffin, ''L'accession à tous prix", Économie et statistique, 202, Setem: bro 1987, pp. 5-16. A transmissão directa é, no entanto, muito mais impor­tante do que os números deixam transparecer: a ajuda da família exerce-se sobre formas diversas (empréstimos gratuitos, doações de terrenos, contribui; ções parciais, etc.).

17 Cf. L. Crétin e P. Hardy, "Les ménages épargnent moins qu'il ya quinze ans", op. cit.

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'I z '$ se contentam as análises estatísticas. Assim, o inquérito que o I NSEE realiza regularmente sobre amostras importantes (29 233 famí­llu~ •m 1984, 23 606 em 1978) apreende a situação do alojamento, 11 Mlla evolução, o sistema de financiamento, as principais caracterís-1 h·ns das famílias, etc., mas deixa escapar factores explicativos tão Importantes quanto a trajectória social ao longo de várias gerações 111 1, pelo menos, a profissão do pai) e a análise que é proposta

11 o atribui um peso adequado a factores tais como o capital cul­llll'lll ou técnico (quando a divisão do trabalho entre investigado­i 'H atentos a factores ou populações diferentes - os novos que ace-1 km para um, o sector do arrendamento para um outro, etc. - não 11\' tÜ a por impedir de facto as comparações e as sínteses)18•

IH Uma das tentativas mais sistemáticas tinha sido conduzida por Pierre I )urif, que se encontrará abaixo entre os iniciadores da reforma do alojamento, I' Sylvie Berniard a partir do inquérito do alojamento de 1967 aproximado l'il1 1 articular do inquérito de 1963 (cf. P. Durif e S. Berniard, "Les Francais 1•1 la maison individuelle", Économie et statistique, 7, Dezembro 1969, pp. 3:16; 1'. Durif, "Propriétaires et locataires en 1967", Économie et statistique, 3, Julho-1\g-osto 1969, pp. 41-56). O inquérito conduzido em 1986 por Catherine Bon­

VII I ·t e a sua equipa no quadro do Instituto Nacional dos Estudos Demográfi­l'llS (INED) sobre a história residencial da geração das pessoas nascidas entre 1\)26 e 1935 e vivendo na região parisiense (n= 1987 indivíduos) tinha como

1 1hjcctivo recolher, numa primeira fase, as circunstâncias e os factores da che­jl Jda a Paris, do "percurso de alojamento" e da constituição do património imo­hllh\rio ao longo do ciclo da vida, assim como os projectos de reforma e de mudança: dedicando uma grande parte ao estudo dos factores demográficos e w iais, acorda muito menos atenção ao capital económico, ao capital cultural

IH ! ao efeito da política e da oferta dos alojamentos (C. Bonvalet, A. Bringué, 1\. Riandey, Cyc!e de vie et changements urbains en région parisienne. Histoire résidentiel!e d'u.ne génération, Paris, INED, Junho 1988, p. 179 e anexos). O estudo sobre a 11rigem geográfica e familiar, a vida profissional, o alojamento e os modos de vida que foi realizado no Credoc por Nicole Tabard e a sua equipa junto de I 000 famílias do Essonne compreendendo pelo menos um filho com menos de 20 anos, foi centrado, numa primeira fase, sobre a construção de uma tipo­i 1gia socioprofissional das comunas e bairros do departamento e sobre a aná­lise das relações entre, por um lado, a morfologia das comunas ou bairros de ,. •sidência e os comportamento e práticas das famílias em matéria de aloja­mento e, por outro lado, entre a trajectória social e geográfica dos inquéritos e a sua localização específica na Essonne (N. Tabard e al., Re!ations entre !a struc­ture socio-économique de ! 'espace, !a production de ! ' environnement et !es conditions de !oge­ment, Ana!yse de !'enquête Essonne, Paris, C redoc, Janeiro 1987, p. 124).

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Page 24: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

Da análise secundária de um conjunto de quadros realizados a nosso pedido a partir dos dados obtidos a partir do inquérito sobre o alojamento real izado pelo INSEE em 1984

19, evidencia-se

que as oportunidades de aceder à propriedade dependem do volume do capital possuído que intervém sem dúvida a título de condições facilitadoras, mas que a propensão para comprar em vez de alugar depende sobretudo da estrutura deste capital, quer dizer, do peso rela­

tivo do capital económico e do capital cultural. A taxa de proprietários aumenta pouco com o rendimento:

passa de 35,2% para o nível de rendimentos mais baix~ para 43,1% para o mais elevado. Pelo contrário, a taxa de proprietários de um apartamento varia fortemente: passa de 8,1% para os rendimentos mais baixos para 22,1% para os mais elevados. Quando se entra em conta com aqueles que se instalaram há menos de três anos no alojamento que ocupam no momento do inquérito, e não o con­junto de proprietários e arrendatários, nota-se que a parte dos pro­prietários passa de 8,9% em 1978 nos que têm rendimentos mais baixos para 35,4% para aqueles que têm rendimentos mais eleva­dos, crescendo a parte de proprietários com apartamentos tão for­

temente quanto o montante dos rendimentos20•

Tudo se passa como se um volume mínimo de capital econó­mico fosse necessário para formar o projecto de se torn ar proprie­tário ou como se, abaixo de um determinado nível, não se ousasse encarar a compra de um alojamento: quando se lhes pergunta as diferentes razões que os impedem de comprar um apartamento ou uma casa, 45% dos empregados e 42% dos operários indicam como razão principal a falta de meios financeiros contra unica­mente 24% dos membros das profissões intermediárias, dos qua­dros superiores e dos membros das profissões liberais21

• O receio

19 A interpretação das estatísticas alimentou-se de forma continuada das indicações e das hipóteses resultantes de um conjunto de entrevistas aprofun­dadas (n=45) que realizámos junto dos proprietários de casas iridividuais da região parisiense e do sul de França (ver anexos, pp. 109-119)

20 M. Vi llac, G. Balland, L. Touchard, "Les conditions de logement des ménages en 1978", Les Collections de l'INSEE, série "Ménages", 85, 1980.

21 SOFRES, Les Français et !'immobillier, Março 1986.

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o E " ·a-o u

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do endividamento nu~_n contexto aonde não se sabe "o que nos reserva o futuro" é também mencionado mais vezes pelos empre­gados (15%) do que pelas outras categorias (8%). Os artesãos, comerciantes, chefes de empresas são, quanto a eles, muito mais numerosos (18%) do que os quadros superiores e as profissões intermediárias (2%) ou do que os operários (lo/o) a indicar que o

investimento imobiliário não é suficientemente rentável. Tudo se inclina, portanto, para concluir que a estrutura do capi­

tal desempenha um papel determinante na escolha entre a compra e o arrendamento: com efeito, se se deixar de lado os reformados, é entre as categorias que são sensivelmente mais ricas em capital económico do que em capital cultural, e que dependem principal­mente do capital económico para a sua reprodução, que as pro­porções de capital são mais elevadas, ou seja, em 1984, 76,8% nos empresários, 66,1 o/o nos artesãos e 65% nos agricultores. Sabe-se que, de forma geral, os patrões da indústria e do comércio investem mais do que todas as outras categorias, e em todos os sentidos do termo, na posse de bens materiais: casas, viaturas de luxo. Tudo per­mite supor que o facto de estas categorias com forte hereditariedade profissional dependerem muito fortemente da herança económica para · a sua reprodução, os predispõe a pensar o alojamento como ele­mento de um património transmissível que o transforma numa apli­cação de pai de família por excelência (e, também, para alguns, numa

verdadeira aplicação especulativa). Inversamente, a parte dos proprietários é claramente mais fraca

nas categorias com um elevado capital cultural. No seio do campo do poder, segundo uma lógica observada em muitos outros domí­nios, os chefes de empresa, muito mais frequentemente proprietá­rios, contrapõem-se aos professores, às profissões artísticas e aos quadros do sector público, mais frequentemente arrendatários, sendo que a posição intermédia é ocupada pelos quadros do pri­vado, os engenheiros (mais próximos dos quadros do sector público e dos professores) e as profissões liberais (mais próximas dos patrões). No interior das classes médias, encontra-se uma estrutura análoga, com um pólo nos artesãos e comerciantes, a maior parte das vezes proprietários, e no outro, os professores primanos e os quadros intermédios do sector público (sendo que os empregados

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das administrações e das empresas são menos frequentemente pro­prietários do que as outras categorias).

Enquanto que a taxa dos proprietários é praticamente indepen­dente do rendimento nas fracções mais ricas em capital económico do que em capital cultural, encontra-se-lhe estreitamente ligada nas fracções que são mais ricas em capital cultural do que em capi­ra l económico, de que se sabe necessitarem mais do que outras de recorrerem ao crédito para financiarem o seu acesso à proprie­dade: 88% dos chefes de empresas possuindo menos de 100 000 francos franceses de rendimentos anuais em 1984 são proprietá­rios de uma casa contra 44,5% daqueles que têm entre 100 000 • 200 000 francos franceses (o que sem dúvida se deve ao facto de que os chefes de empresa com rendimentos mais baixos habi­t::t m com mais frequência em comunas rurais ou em pequenas aglo­merações)22 . Do mesmo modo, nos artesãos, a parte dos proprie­tá rios é de 56,5% para os detentores de rendimentos inferiores a 50 000 francos franceses, de 54% para os detentores de rendimen­tos médios e de 54,5% para aqueles que têm rendiment~s supe­riores a 100 000 francos franceses. Os pequenos comerciantes e os agricultores possuidores de rendimentos mais elevados são como mais frequência proprietários das suas casas do que aqueles que dis­põe de rendimentos mais fracos (nos membros das profissões libe­ra is, que acumulam capital económico com capital cultural, o facto de ser proprietário ou arrendatário de uma casa ou de um aparta­mento, é independente do montante dos rendimentos). Inversamente, ns variações são particularmente fortes nos professores primários e nos quadros intermédios da função pública: menos de 10% dos 1 rofessores primários com rendimentos mais baixos (que também são os mais jovens) são proprietários de uma casa, contra mais de 60% dos detentores de rendimentos superiores a 150 000 francos fra nceses, e observa-se variações similares nos quadros intermé­dios da função pública. Do mesmo modo, entre os engenheiros e os quadros (do sector público ou privado), a taxa de proprietários ncsce fortemente com os rendimentos.

22 Nesta categoria, a taxa de proprietários é também independente da idade.

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Quanto ao capital cultura!, não tem efeitos vtstveis sobre a taxa de proprietários no interior de cada categoria social, qualquer que seja 0 rendimento. No entanto, nas categorias inferiores, parece que um mínimo de capital escolar, marcado pela posse de um CEP23 ou de um CAP2\ é condição necessária para o acesso à pro­priedade (sem dúvida em ligação com as disposições ascéticas mar­cadas também por uma fraca taxa de fecundidade), sendo que a probabilidade de ser proprietário é mais fraca entre os operários, os empregados, os técnicos ou as profissões intermédias desprovi­das de diplomas que nos detentores de um CEP ou de um CAP, eles próprios mais frequentemente proprietários de uma casa do que os membros das mesmas categorias que são detentores de um

BECP25 ou de um bacharelato26•

A categoria dos detentores de CEP ou de CAP permite apa­nhar os efeitos de uma espécie particular de capital cultural que encontra um ponto de aplicação particularmente visível no caso do acesso à propriedade, o capital técnico (de "bricoleur"27), parcial­mente adquirido na escola e mais ou menos bem vincado pela posse de um CAP (cf. Anexo: Capital técnico e disposições ascé­ticas, p. 115). Assim, situados no topo da hierarquia dos trabalha­dores manuais de que possuem sem dúvida no mais alto grau de excelência, as ~apacidades técnicas, os contramestres e os mestres28

podem colocar as capacidades parcialmente adquiridas na escola,

23 C EP - Contrat d'Étude Prospective. 24 CAP - Certificare d'Aptitude Professionnelle. 25 BECP - Bilan et Elargissement de C ibles Professionnelles. 26 As taxas de proprietários de um apartamento parecem mais ligadas a

um diploma que as taxas de proprietários de uma casa - isto pelo menos em algumas categorias. Mas deve-se sem dúvida ver nisso um efeito da urba·

nização, sendo que os proprietários de apartamentos são mais frequentes nas

grandes aglomerações, que contam mais diplomados. 27 Manteve-se a palavra na língua original atendendo à vulgarização da

sua utilizacão n a língua portuguesa. (N. do T.) zs Os ~ontramestres com rendimentos mais baixos (menos de 65 000 fran­

cos franceses por ano) são com mais frequência proprietários do seu alo: jamento (39,5%) que os empregados (i6,5%) ou os quadros médios (8,2%) detentores do mesmo nível de recursos.

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\' •rtificadas por títulos escolares tais como o CAP ou o BEP29 e r ·forçadas ao longo da sua carreira profissional, ao serviço das dis­posições ascéticas que são, sem dúvida, um princípio da sua ascen­~ o profissional e os levam a consentir numerosos sacrifícios para Ml ' dotarem de uma casa total ou parcialmente (com os "castores") fi1bricadas por si próprios, muitas vezes com a ajuda dos colegas ou dos membros da família.

Entre os adquiridores recentes de casas que constituem os pri­meiros proprietários das residências que habitam, os operários não qualificados da industria e do artesanato, os operários qualificados dn manutenção, os empregados de comércio, as profissões intermé­dias da função pública (e tantas outras categorias situadas no sec­tor da "esquerda" do espaço social, do lado do "público") são os mais numerosos (segundo o inquérito realizado pelo INSEE em 1984) a dizer que escolheram um modelo de casa por catálogo (mais de 48% em cada um destes grupos); os agricultores, os arte­~iios, os pequenos comerciantes, os chefes de empresa e os mem­bros das profissões liberais (categorias que se apoiam, para a sua reprodução, sobre o capital económico) são os menos numerosos a rcr recorrido a este modo de construção (menos de 25% em cada 11 ma destas categorias).

Sabe-se, além disso, que a propensão para atribuir mais importân­·ia ao aspecto técnico e menos ao aspecto simbólico da casa cresce

;) medida que se desce na hierarquia social. A análise dos dados provenientes do inquérito efectuado em 1984 pelo lnstitut Français de Démoscopie, junto de uma amostra representativa de 998 pes­soas, faz emergir uma oposição particularmente clara no que se refere às representações das casas prefabricadas entre, de um lado os indivíduos colocados no topo da hierarquia económica (os deten­rores de rendimentos mais elevados), social (os quadros superiores e os membros das profissões liberais) e cultural (os indivíduos possui­dores de diplomas de nível mais elevado e os que fizeram estudos superiores) e, por outro lado, aqueles que têm rendimentos mais baixos, que são operários ou inactivos e que se limitaram a fazer

29 BEP - Brevet d'Études Professionnelles.

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Page 27: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

O modo de constr~ção da casa (novos proprietários)"'

T udo Plano Casas de Pro moro r Total constru ido estabelecido catálogo

pelo próprio pelo próprio OU .por

profissionais

Agri cu! to res 4,2 75,8 18,3 1,7 100 Op. especializados 8,4 31,8 48,1 1,7 100

Op. qualificados 9,4 34,9 43,6 12,1 100

Contramestres 12,5 36,8 35,9 14,8 100

O perários reformados 9,9 55,5 29,2 6,3 100

Artesãos 25,5 49,3 19,7 5,4 100

Comerciantes 10,6 56,0 24,0 9,5 100

Art./Com. reformados 9,9 52,7 27,9 9,4 100

Policias, militares 3,6 35,7 38,8 2 1,9 100

Empregados comércio 5,1 36,1 49,9 8,9 100

Empregados admin istrativos empresas 3,2 33,2 46, 1 17,6 100

Funcionários públicos 4,8 36,5 38,3 20,4 100

Empregados reformados 3,3 60,0 34,9 1,8 100

Quadros intermédios empresas 3,2 40,7 38,6 17,4 100

Q uadros intermédios públicos 1,5 27,3 48,4 22,8 100

Técnicos 6,2 41,7 34,1 18,0 100

Professores primários 4,3 52,8 26,9 16, 1 100

Quadros intermédios reformados 4,1 48,0 43,0 5,0 100

Chefes de empresa 18,1 49,5 21,6 10,8 100

Quadros secror privado 0,9 47,7 33,1 18,3 100

Engenheiros 5,8 39,3 32,9 21,9 100

Quadros secror público 1,3 40,0 38,8 19,9 100

Professores 8,0 47,8 25,9 18,3 100

Profissões liberais 75,1 19,0 5,9 100 Q uadros reformados 2,3 72,2 22,7 2,8 100

Conjunto 7,6 42,0 37,1 13,2 100

. Excluiu-se do cálculo os "sem objecto", quer dizer, os aglomerados fa 1n il iares que nfio são os primeiros proprietários da casa. Fonte: Inquérito INSEE, 1984. Quadro rea lizado a nosso pedido.

5 4

I'Studos primários30• Os primeiros têm a representação mais nega­tiva da casa prefabricada: são os mais numerosos a pensar que as p •ssoas recorrem a tal t ipo de casas por não terem meios para pagar uma casa tradicional ou para se libertarem de todas as for­malidades admin ist rativas. Os segundos consideram a maior parte das vezes que podem existir boas razões para se escolher uma casa prefabricada e que aqueles que fazem este tipo de escolha têm g'osto pelas coisas modernas; pensam que este tipo de casa é mais sólida, mais fácil de personalizar. Tudo parece confirmar que, como s • pôde apreciar noutros domínios da prática, os mais desprovi­dos economicamente e sobretudo culturalmente aderem, sem que Isso se transforme, evidentemente, numa verdadeira tomada de posi­c;fio, a uma estética que se poderia designar de funcionalista, liberta (por defeito) das prevenções ligadas ao n ível cultural: considerando n casa como um instrumento que deve ser cómodo, seguro, sólido, rapidamente d isponível, eventualmente adaptável, têm uma visão tec­n icista, reforçada pela competência técnica que podem pôr ao ser­viço da sua transformação. E tudo leva a crer que, entre os assa­lariados, são os operários qualificados, os técnicos ou os pequenos ·ngenheiros que, sem dúvida porque estão mais afastados da repre­sentação dominante da casa, seja devido à sua cultura técnica, seja devido à sua origem social, ou às duas ao mesmo tempo, são os mais atentos ao interesse que apresentam as casas industriais e os menos sensíveis em todo o caso (relativamente) a tudo aquilo que promovem os promotores de "residências" com nomes evocadores.

O efeito dimensão da aglomeração é bem conhecido. Mas o essen­cial é que se especifica segundo o volume e a estrutura do capi­tal possuído. A separação entre as classes sociais cresce quando se passa das comunas rurais para as grandes aglomerações tanto pelo facto de se possuir o alojamento como pelo facto de habitar em casa individuaP1

3° Cf. G. Ballester, Maison préfabriquée, Paris, lnstitut Français de Démos­copie, Novembro 1984.

31 M. Villac, G. Balland, L. Touchard, "Les conditions de logement des ménages en 1978", op. cit., pp. 161-166. Para além da dimensão da aglomera­ção, dever-se-ia en trar em consideração com a região. Pierre Durif mostrara

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Nicole Tabard mostra que os desvios entre os quadros ou profis­sões liberais e os operários são mais marcadas no Essonne do que no conjunto da França32

. A "democratização" aparente do acesso à

propriedade de uma casa individual é essencialmente imputável · ao facto das fracções superiores da classe operária residirem mais fre­quentemente numa comuna rural ou, quando habitam numa aglo­meração, nas zonas periférícas. A análise do inquérito de 1984 confirma que a parte dos proprietários das casas individuais varia, no interior de cada categoria, na razão inversa do tamanho da comuna. Os operários praticamente só podem aceder à propriedade nas comunas rurais. Os contramestres, pelo contrário, podem pos­suir casas, mesmo na aglomeração parisiense (ao nível de 31,6%).

De uma forma geral, a parte dos proprietários, sempre baixa entre as pessoas com idades inferiores a 35 anos, cresce com a idade. Tudo parece indicar que o acesso à propriedade é cada vez mais tardio à medida que se desce na hierarquia social - com excepção dos contramestres que, desde os 30 a 34 anos, se contam em 50% os que já possuem casa. Assim não é senão na categor ia dos mais de 50 anos que os proprietários ultrapassam os arrenda­tários entre os operários qualificados, coincidindo o acesso à casa com o momento da reforma. De facto, a idade só adquire todo o seu sentido como um momento do cido da vida doméstica: a questão da compra de uma casa coloca-se com uma força particular em cer­tas etapas deste ciclo, relacionado com a preocupação de "fundar", como se diz, uma "família", quer dizer no momento do casamento ou nos anos que o seguem em ligação com a aparição dos filhos .

Os casais casados são, segundo o inquérito do INED, aque­les que, em qualquer idade, "escolhem" mais ser proprietários da sua residência principal e recorrem para esse efeito ao crédito (9

que existia em 1968 disparidades regionais muito marcadas, nomeadamente entre a França do Oeste e França de Leste: a proporção das casas individuais ultrapassava então a média em todo o Oeste da França e era particularmente elevada no Norte, o habitat colectivo era pelo contrário mais importa nte no Centro, no Leste e sobretudo no Sudoeste (cf. P. Durif e S. Berniard, "Les Français et la maison individuelle", op. cit., especialmente pp. 5-7).

32 N . Tabard et al, op. cit.

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Ho bre 10 das entidades que acedem à propriedade são casais casa­dos). Pelo contrário, quando os celibatários, onde se encontra duas vezes menos de proprietários aos 50 anos do que nos casais casa­dos, se tornam proprietários, é sobretudo por herança ou compra ~em recurso a crédito. A taxa de proprietários entre os divorciados \ igualmente fraca, sendo o divórcio acompanhado muitas vezes de um recuo para o sector de airendamento33

Na geração dos parisienses nascidos entre 1926 e 1935, a maior parte daqueles que tinham comprado o seu alojamento tinham constituído família antes de acederem à propriedade. Este acesso t·cve lugar mais cedo no ciclo da vida familiar para os quadros wper iores do que para os operários ou os empregados. É que, parece, os primeiros estão em melhores condições de fazerem frente aos encargos que representam a educação dos fi lhos e os reembol­sos dos empréstimos para o alojamento34. É provável que, para as gerações seguintes, o acesso à propriedade, que se produziu para mais baixos níveis etários, tenha obrigado os casais, aí incluídas as ·lasses populares e médias, a fazerem face em simultâneo aos encar­gos com a educação e aos reembolsos dos empréstimos.

A parte dos membros das fracções assalariadas das classes mé­dias (empregados, quadros médios, mas também contramestres) e das lasses abastadas que são proprietárias de uma casa cresce mais fre­

quentemente com o número de crianças a cargo. Inversamente, nos trabalhadores manuais, os operários especializados, os operários qua­lificados e os empregados de comércio, a relação é mais complexa, na medida em que a propensão para adquirir uma casa é indissociá­vel de uma ambição de ascensão social que é inseparável de uma restrição da fecundidade: observa-se assim que, nestas categorias, os aglomerados familiares que têm duas crianças são mais frequente­mente proprietários de uma casa do que aqueles que não têm ou que apenas têm um, e do que aqueles que têm três ou mais35•

33 C. Bonvalet et a!., op. cit., p. 121. 14 lbid., pp. 125-126. 35 Sobre a relação entre a restrição da fecundidade e a ambição de ascen­

ção cf. P. Bourdieu e A. Darbel, "La fin d'un malthusianisme?", in Darras, Le Partage des bénéfices (Paris, Éditions de Minuit, pp. 117-129) e P. Bourdieu , La Distinction. Critique socia!e du jugement (op. cit.).

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De facto, como é o caso do conjunto dos consumos, só se pode­ria descrever de forma· mais completa as diferenças constatadas em matéria de alojamento fazendo intervir não apenas o volume e a estrutura do capital (que comandam a acção de factores tais como a dimensão da aglomeração de residência ou a d imensão da famí­lia), mas também a evolução no tempo destas duas característi­cas, que se podem obter nomeadamente através da origem social e geográfica e que se traduzem muitas vezes nas mudanças de alo­jamento ou do estatuto de ocupação do alojamento. Embora não se possua praticamente dados estatísticos sobre os efeitos da ori­gem social (quase nunca levada em consideração nos inquéritos), para além das indicações fornecidas pelas entrevistas, tudo permite supor que o acesso à propriedade (a maior parte das vezes graças ao crédito) foi sobretudo o resultado dos "novos ricos" que eram também "recém-chegados" à sociedade urbana, provincianos "que subiram a Paris" ou nas grandes cidades que adquiriram casas nos novos bairros da periferia ou dos arredores (enquanto os antigos residentes tinham maiores possibilidades de habitar, muitas vezes como arrendatários, os velhos bairros centrais)36

.

As probabilidades de ser proprietário ou arrendatário não são as mesmas segundo se é filho ou filha de pais proprietários ou de pais arrendatários da sua residência principal. O estudo com­parativo dos arrendatários e de os acedentes à propriedade de uma mesma geração (39 anos no momento do inquérito) resi­dindo nos Alpes-Marítimos faz emergir que as filhas de proprie­tários têm duas possibilidades sobre três de se tornarem proprie­tárias (e isto desde os 39 anos) enquanto que as filhas de pais arrendatários têm um pouco menos de uma possibilidade sobre duas37• (A repartição dos filhos de proprietários e arrendatários é

36 Esta hipótese encontra confirmação nos primeiros resultados publicados do inquérito que Nicole Tabard realizou no Essonne e que deveria permitir detalhar o conhecimento dos efeitos da trajectória social. Ela faz sobressair, em particular, os laços entre a origem social - nomeadamente para os qua­dros e os membros das profissões liberais - e o facto de se residir numa comuna mais ou menos "de nível elevado".

37 Cf. P. C ulturello, De [a [ocation à ['accession, Nice e Marselha, GERM -CERCOM, 1989 (Relatório de Investigações para a CNAF).

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jlrosso modo a mesma.) A origem social (obtida aqui de forma indi­t' • ·ta e grosseira) contribui sem dúvida para estruturar as estraté­gias residenciais das famílias, mas unicamente através de um con­lttnto de mediações tais como o tipo de aglomeração, o momento d ciclo da vida, a profissão e a origem do cônjuge, etc.

As fracções assalariadas das classes médias, grandes utilizado­ms do crédito bancário, e as fracções superiores da classe operá· t•i::t representam uma parte importante dos "candidatos" recentes à

propriedade. Segundo o inquérito realizado pelo INSEE em 1984, os professores primários, os quadros do sector público, os técnicos, ns profissões intermédias do sector público e do sector privado, os operários qualificados são, entre todos os proprietários de casa, os mais numerosos a ocupar uma casa relativamente nova, acabada •m 1975 e depois. Se o recurso ao crédito para comprar uma casa

se generalizou, é no entanto nestas mesmas categorias (às quais é

necessário juntar os engenheiros e os contramestres) que, segundo •ste mesmo inquérito, ele é mais frequente (cf. pp. 60-61).

As fracções assalariadas das classes médias estão também entre as mais numerosas, quando já não são proprietárias de uma casa, :1 desejarem tornar-se ou, quando são proprietárias de um aparta· mento e encaram mudar-se, declarando o desejo de comprar uma asa. Assim, o acesso à propriedade de casas conheceu o seu cres­imento mais significat ivo na região do espaço social definida pelo

primado do capital cultural sobre o capital económico, quer d izer em todas as categorias superiores (engenheiros, quadros superio· res) e médias (técnicos, quadros médios, empregados) assalariados do sector público ou semi-público (com excepção todavia das pro­fissões artísticas e intelectuais), e também n as regiões ·superiores la classe operária (contramestre, operários qualificados) e mesmo

numa fracção não negligenciável de operários especializados e tra­balhadores manuais.

Daí decorre que o processo global de crescimento da taxa de proprietários se ~companha de uma homogeneização de dois sectores que se opõe na dimensão horizontal do espaço social, quer dizer, do ponto de vista da estrutura do capital: categorias que se encon­travam pouco inclinadas até aí a fazerem da compra da casa uma forma principal de aplicação e que teriam constituído uma clientela

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natural a uma política. visando favorecer a criação de alojamentos públicos (casas individuais ou edifícios) destinados ao arrendamen­to entraram, graças ao crédito e às ajudas do governo, na lógica de acumulação de um património económico, atribuindo assim um papel, nas suas estratégias de reproduçã:o, à transmissão directa de bens materiais; no entanto, em simultâneo, categorias que não con­tavam senão com a herança para reproduzirem a sua posição deviam apoiar-se sob~e o sistema escolar para operar as reconversões impostas pelos rigores da concorrência. (Estes dois movimentos complementa­res e convergentes contribuíram, sem dúvida, para reduzir o desvio entre a "direita" e a "esquerda" do espaço social e do campo polí­tico, substituindo as diferentes oposições que dividiam a realidade e a representação do mundo social, propriedade e arrendamento, libe­ralismo e estatismo, privado e público, por oposições atenuadas entre formas mistas. O que corresponde a dizer, a propósito, que só se pode compreender as escolhas individuais, em matéria política, mas também económica - como, por exemplo, o crescimento dos inves­timentos na educação ou nos consumos culturais - se se levar em conta as estruturas objectivas e a sua transformação.)

Os "primeiros proprietários" de casas em 1984

Primeiro Não primeiro Total proprietário proprietário

Agricul tores 31,2 68,8 100 O perá rios especializados 49,8 50,2 100 Operários qualificados 63,9 36,1 100 Contra mestres 67,6 32,4 100 Empregados de serviços 50,1 49,9 100 Operários reformados 33,8 66,2 100 Artesãos 59,2 40,8 100 Comerciantes 53,8 46,2 100 Art./Com. reformados 39,7 60,3 100 Policias, mili.tares 62,3 37,7 100 Empregados de comércio 48 52 100 Empregados administrativos empresas 56,9 43,1 100 Funcionários públicos 59,1 40,9 100 Empregados reformados 38 62 100 Q uadros intermédios empresas 63,9 36,1 100

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Q uadros intermédios públicos 62,5 37,5 100 Técnicos 68,3 31,7 100 Professores primários 61,7 38,3 100 Q uad ros intermédios reformados 44,7 55,3 100 ( :hcfes de empresa 63,2 36,8 100 Q uad ros sector privado 56,9 43,1 100 l!ngenheiros 66,6 33,4 100 Quadros sector público 66,6 33,4 100 Professores 46 54 100 Profissões libera is 28,8 71,2 100 Profissões artísticas 24,1 75,9 100 Quadros reformados 47,1 52,9 100 Uutros 30,5 69,5 100

Conjunto 50,5 49,5 100

Fonte: Inquérito INSEE, 1984. Q uadro realizado a nosso pedido.

No primeiro período de for te crescimento da produção de alo­jamentos que se estende de 1950 a 1963-1964, os quadros superio­res e médios orientaram-se em grande número para a propriedade, no entanto, a proporção de proprietários de alojamentos aumentava quase tão rapidamente nos operários como nos empregados (mas que partiam de uma taxa muito mais baixa) e sensivelmente menos depressa nos membros das profissões liberais e nos patrões, grandes ou pequenos38

. Depois da quebra dos anos de 1964 a 1968, que afecta todas as categorias sociais, mas muito particularmente os ope­rários, a difusão da propriedade retoma num ritmo relativamente rápido (menos todavia que nos anos 50), sobretudo entre os quadros superiores e médios e também os contramestres e os operários qua­lificados (enquanto que os empregados, os operários especializados e os trabalhadores manuais se mantêm a uma taxa muito baixa e que os patrões e os membros das profissões liberais têm então um cresci­mento mais baixo do que todas as outras categorias). Depois de 1974, n progressão da propriedade de alojamento reduz-se de novo enquanto que a propriedade de casas individuais se mantém e conhece mesmo

38 C . Topalov, Le togement en France, Paris, Presses de la FBSP, 1987, espe­

c ia lmente pp. 305-314. A taxa de agricultores, p atrões d a indústr ia e d o comér­

c io pro prietários do seu a lojam ento, já muito elevado no iníc io d o períod o,

aum entava m uito mais lentamente.

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um ligeiro . crescimento ao longo dos anos 80; isto porque, no fim dos anos 70, chegam em massa sobre o mercado, criados por novas ~ rmas de ajuda e de crédito, novos produtos propostos por grandes empresas de construção industrial ou semi-industrializada a chamar novos compradores, recrutados na sua maioria entre os operários qua­lificados, os empregados e os quadros médios39•

A aparente democratização do acesso à propriedade, como o suger.e o aumento da taxa de proprietários (passa de 35% em 1954 para 45,5% em 1973, 46,7% em 1978 e prossegue em seguida para atingir 51,2% em 1984), dissimula diferenças consideráveis segundo a localização do alojamento (tendo a oposição entre o suburbano e o citadino substituído a oposição entre quem vive no campo e o citadino) e segundo mesmo as características deste alojamento (con­forto, etc.) que quando se combinam, determinam desvios enor­mes nos modos de vida associados ao habitat ou impostos por ele. As diferenças respeitam primeiro aos custos reais, não unicamente em dinheiro, através do crédito, mas também em tempo: em tempo de trabalho para adaptar a casa, no caso, por exemplo, dos con­t ramestres, que consagram as suas noites e os domingos ao "bri­colage", em tempos de espera para se tornar proprietário ou para estar "verdadeiramente instalado", enfim e sobretudo em tempo de trajecto para ir para o trabalho.

Na região panstense, o acesso à propriedade do alojamento foi muitas vezes acompanhado de um deslocamento para os subúrbios.

39 A lógica de exploração cada vez mais intensiva de um "filão" em vias de se esgotar conduziu, sem dúvida, as empresas bancárias a recuar os limi­tes dos riscos razoáveis. A crise, por esta razão, abateu-se duramente sobre as entidades que recorriam a empréstimos oriundas das classes populares. Assim, 21 dos 51 dossiês de vendas de casas pronunciadas de 1981 a 1983 nos tribunais de primeira instância de Rennes e de Saint-Malo na sequência de um contencioso entre um candidato à propriedade e um financiador, res­peitavam a operários dos quais 9 traba lhavam na constru-ção e obras públi­cas, 5 respeitavam a empregados e 3 a agricultores - as categorias socioprofis­sionais eram desconhecidas em 20 dos casos (cf. Agência de urbanismo e de desenvolvimento intercomunal da aglomeração de Ren nes, Les accédants à La pro­/Jriété en difficuLtés financiéres, Rennes, Fevereiro 1986).

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É assim que, na geração das pessoas nascidas entre 1926 e 1935 e habitando a região párisiense, 25% habitavam Paris antes de ace­derem à propriedade contra unicamente 14% depois da aquisição do alojamento. Entre aqueles que deixaram Paris, quase dois terços (63%) lamentam ter deixado o bairro onde estavam e preferiam ter aí permanecido40. É o afastamento do centro da cidade (mais do que o afastamento do local de trabalho) que mais lamentam os proprie­tários de casas. Entre 1978 e 1984, a proporção de proprietários de casas individuais que se queixam de se encontrarem longe do cen­tro da cidade mais do que duplicou, passando de 10 a 20% dos candidatos e de 11 para 24% dos outros proprietários, enquanto se mantinha relativamente estável para os proprietários de apartamen­tos (de 9 a 10% para os candidatos, de 7 a 10% para os outros proprietários)41

.

Se as despesas em transportes são relativamente elevadas para os proprietários das fracções, assalariados das classes médias e superiores, os custos em tempo de trabalho para acabar a casa e suportar a sua manutenção através de trabalhos diversos são parti­cularmente significativas para os operários42: As formas de ener­gia consumidas pelas camadas populares em casa individual são menos caras do que nos apartamentos, porque "incorporam traba­lho doméstico". Pelo contrário, para as outras camadas sociais, a despesa de energia doméstica varia do simples para o dobro entre apartamentos e casas individuais, e ainda mais nas categorias mais

favorecidas43•

4° Cf. C. Bonvalet, op. cit., p. 131. 41 Cf. M. Eenschooten, "Le logement de 1978 a 1984. Toujours plus grand

et toujours mieux", Économie et statistique, 206, Janeiro 1988, pp. 33-43. 42 N . Tabard, Consommation et inscription spatia!e. Syntheses et perspectives, Paris,

Credoc, 1984. 43 Este conjunto de efeitos colaterais negativos da mudança de alojamento

explica o facto, na aparência paradoxal, de que o acesso à propriedade de um apartamento moderno ser vivido muitas vezes, e muito logicamente, como uma regressão, apesar de todos . os esforços desenvolvidos para se contentar (este desalinhamento paradoxal entre a experiência dos agentes e a melhoria aparente, ligada à passagem do bairro de barracas para o HLM ["Habitation à Loyer Modique"- Habitação social], das suas condições de alojamento apare-

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As diferenças respeitam também aos lucros de utilização e de ·omercialização eventual. As casas possuídas são evidentemente de valor muito desigual, devido à sua qualidade técnica ou estética • sobretudo devido à sua localização: são desigualmente espaço­~as e confortáveis; encontram-se mobiladas de forma muito dife­l'enciada e a distâncias muito desiguais relativamente aos equipamen­Los públicos ou privados, escolares, culturais, comerClats, etc. e em relação ao local de trabalho. Assim, os operários agrícolas, os operários não qualificados da indústria e do artesanato são pro­prietários das casas mais pequenas, os chefes de empresa e os membros da profissões liberais possuem as casas mais espaçosas. em 1984, 73% dos membros das profissões liberais, 71,5% dos ·hefes de empresa proprietários ocupavam uma casa de mais de 120 m2, contra 14% dos operários não qualificados. As diferen­\ ' <1S separando as diversas categorias sociais são da mesma ordem se se consideram o número de d ivisões. Em 1975, a proporção dos operários proprietár ios que ocupavam alojamentos inconfor­t{tveis era 8,6 vezes mais elevada de que para os membros das profissões liberais e os quadros superiores com o mesmo esta­t'uto de ocupação44 .

Assim esta análise dos dados estatísticos permite, apesar dos limites inerentes ao seu processo de colheita, desenhar um pri­meiro esboço dos sistema de factores explicativos que, com pesos diferentes (que só poderia adquirir um carácter mais preciso se se •fectuasse uma análise de regressão dos dados recolhidos por um inquérito especial com base numa mesma população representativa), o rientam as escolhas que os agentes económicos podem operar nos I i mires que fixam às suas disposições, por um lado o estado da oferta das habitações (ligado ao funcionamento do campo da pro­dução) e, por outro lado, os meios económicos de que eles dis­põem e que, da mesma forma que o estado da oferta, dependem

le forma muito estreita da "política de alojamento".

co.:u-me com toda a sua transparência no inquérito que conduzi na Argélia n.os anos 1960 - cf. P. Bourdieu, Algérie 60, op. cit., pp. 83-114).

44 Cf. C . Topalov, op. cit., p. 315.

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A lógica específic_a do campo de produção 45

Para compreender a lógica do mercado das casas individuais, torna-se necessário colocar dois princípios metodológicos de cons­trucão do objecto que são simultaneamente hipóteses sobre a pró­pri~ natureza da realidade estudada. Primeiro, as relações objecti­vas, que se instauram entre os diferentes construtores colocados em concorrência na conquista de partes deste mercado, constituem um campo de forças cuja estrutura, num dado momento se encon­tra no princípio das lutas que visam conservá-lo ou transformá-lo. Segundo, as leis gera is de funcionamento que valem para todos os campos e, muito especialmente, para todos os campos de produ­ção económica, que se especificam segundo as propr iedades carac­

terísticas do produto. Melhor do que as noções de "sector" ou do "ramo" da indús­

tria que designam comummente agregados de empresas produzindo

0 mesmo produto e que se assimila por vezes . a um agente único orientado para uma função comum, sem nos interrogarmos nem sobre a homogeneidade dos conjuntos considerados nem, omis­são mais grave, sobre as relações entre as suas componentes, a nocão de campo permite levar em consideração as diferenças entre as .empresas (cuja amplitude varia, sem dúvida, muito fortemente segundo os "ramos") e também as relações objectivas de comple­mentaridade na rivalidade que, ao mesmo tempo, os unem e os opõem; ou seja, compreender a lógica da concorrência de que o campo é o local e de determinar as propriedades diferenciais que, funcionando como vantagens específicas, definidas na sua existência e na sua própria eficácia na relação com o campo, determinam a posição que cada empresa ocupa no espaço do campo, quer dizer, na estrutura de distribuição destas vantagens.

45 O inquérito em que se baseia esta obra foi rea lizado no fim dos anos 80, pelo que os dados recolhidos se repor tam a um período anterior aos anos 90. A opção de se centrar neste período just ifica-se pela amplitude e , importância das transformações estrutura is que o caracterizam e porque uma economia estruturalmente histórica não pode ser pensada fora de um qua­dro espácio-temporal definido.

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Entre as propriedades específicas que fazem da casa um pro­duto a todos os títulos singular, encontra-se, sem dúvida, a muito lmtc carga simbólica de que se encontra investida e a sua rela­~· o com o espaço que explicam as caracter ísticas particulares do l'llmpo de produção, e em particular a predominância esmaga­dora das empresas "nacionais" (apesar da presença de um pequeno nl'rmero de empresas internacionais) e da persistência de peque­nas empresas artesanais ao lado das grandes empresas de produção ii 1Justrial. Devido à dimensão simbólica do produto, a produção I ' casas situa-se a meio caminho entre duas formas opostas da IL'tividade produtiva: por um lado, a produção de obras de arte

l ' m que a parte da actividade de produção consagrada ao fabrico do produto material é relativamente fraca e partilhada pelo pró­pr io artista, enquanto que a parte objectivamente consagrada à pro­moção-criação simbólica da obra (pelos críticos, galeristas, etc.) é muito mais importante; por outro lado, a produção de bens mate­r·iais tais como o petróleo, o carvão ou o aço, em que o aparelho de produção toma um lugar preponderante enquanto que a parte de investimento simbólico se mantém muito fraca. Está-se evidente­mente perante um continuum; e poder-se-ia marcar toda uma série de posições intermédias tais como, por exemplo, do lado da pro­dução de obras de arte, a alta costura, actividade semi-artística que ·onhece já uma divisão de trabalho, de fabrico e de estratégias de promoção e de venda bastante próximas daquelas que se praticam no domínio da produção de habitações, ou, do lado da indústria pesada, a produção de automóveis, em que a actividade de produ­ção simbólica do produto, com o design, a criação de marcas, de modelos, etc., tem um lugar mais importante.

A casa é também um produto duplamente ligado ao espaço e a um local no espaço: concebido como um bem imóvel, fixo, é uma habitação que, na sua definição dominante é e deve ser construí­J o no local (e não "pré-fabricado"); por outro lado, encontra-se envolvida na lógica das tradições loca is, através das normas arqui­tecturais e técnicas impostas pelos regulamentos administrativos e sobretudo pelos gostos dos eventuais compradores para os estilos regionais. Tudo isto faz com que micromercados de base local, parcial­mente arrancados à concorrência geral, podem perpetuar-se, nomea-

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damente porque, pelo menos nas regtoes rurais, ainda muito for­temente ligadas à representação tradicional da casa, e sem dúvida, para além disso, a preferência é dada aos artesãos locais, a com­pra de uma casa industrial só poderia aparecer, como já vimos, como um efeito da indigência ou como uma excentricidade incom­preensível.

As características particulares do produto e as disposições que contribuem para o adaptar, na sua própria realidade, impondo a definição dominante do que deve ser, fazem com que se possa encontrar lado a lado, sobre este mercado dividido em sectores de base geográfica, um pequeno número de muito grandes socie­dades industriais ou semi-industriais vendendo por catálogo casas que não representavam, apesar disso, mais do que 10% do mer­cado da casa individual em 1981, alguns grandes promotores rea­lizando "villages" (e, em simultâneo escritórios, centros comerciais e edifícios de habitação), um grande número de empresas médias construindo entre uma vintena e várias centenas de casas por ano numa ou várias regiões, e uma multiplicidade de PME (uma por cantão em média) construindo algumas casas por ano e por vezes pequenos loteamentos46

46 "Casa individual: promotores e construtores resistem bem." Le Moniteur destravauxpublicsetdubâtiment, 9, 2 de Março de 1984, p. 37. Daí resulta que o "sector" se caracteriza pelo emprego de uma mão-de-obra numerosa, os custos de pessoal nas empresas de construção e de engenhar ia civil de mais de 50 assalariados representam 38% do volume de negócios sem impostos em 1981 e 90% do valor acrescentado (cf. ).-). Granelle e M. Pelege, Construction, crois­sance et crise. Réflexions pour une relance, Paris, Éditions du Moniteur, 1985). Dito isto, os progressos da industrialização total ou parcial (ao nível das componen­tes utilizadas) fazem com que o custo da fabricação propriamente dito desem­penhe um papel cada vez menor na construção dos edifícios (sobretudo dos edifícios ou residenciais de elevado padrão), enquanto que a parte dos custos anexos, preço do terreno, honorários do notário e, sobretudo, custos de comer­cialização e financeiros cresçam (cf. P. Madelin, Dossier I comme immobilier, Paris, A. Moreau, 1974, pp. 265-268; e também Le Moniteur des travaux pubtics et du bâti· ment, suplemento Magazine 17, 28 de Abril de 1980: "O preço dos terrenos . cresce de forma constante. O encargo global com a terra aumentou de 20% em 1978 para 30% no inicio de 1980, do custo final da operação").

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Segundo uma outra fonte, o inquérito realizado em 1984 pela lJ B (Union de credit pour !e bátiment de !a Compagnie bancaire) sobre os •onstrutores de casas, as empresas produzindo pelo menos vinte t'nsas por ano em 1982 construíam 38% das casas enquanto que ns sociedades de promoção imobiliária (privada e publica) cons-1 ruíam 26% das casas (sob a forma de habitação grupada) ao mesmo tempo que outros edifícios (escritórios, centros comer­da is, etc.). O resto das construções, seja 36%, era produzido por p •quenas empresas de construção e pequenos artesãos locais rea­li za ndo algumas casas por ano, por particulares fazendo construir 1 or intermédio de um arquitecto ou por um gabinete de estu­los ou em regime de auto-construção (sozinhos ou organizados ·m mútuas como os "castores") ou com a ajuda de artesãos -

l' landestinos ou não (a auto-construção representa quase 10% das casas produzidas)47 .

Os construtores de casas individuais, empresas de construção, ga binetes de estudo e construtores especializados, muitas vezes desig­nados pelo termo de construtores de casas por catálogo, também -se diferenciam fortemente segundo a área geográfica do seu mercado: 69% entre eles estão cantonados em um ou dois departamentos, 28% operam numa dezena de departamentos (duas ou três regiões do INSEE), 4% em 4 a 9 regiões e só 1% no conjunto do territó­rio. 45% dos construtores têm uma outra actividade (trabalhos de nrranjo e restauração, promoção de edifícios, realizações de lotes) fora da construção. Como consequência, não é fácil de encontrar o que é que têm em comum um grande promotor parisiense, ligado nos grupos bancários, um subcontratador que envia todos os dias os seus técnicos assistir os pequenos artesãos locais, um grande cons­t rutor cujas equipas de venda estabelecem planos de financiamento ·nquanto subcontrata a produção, a filial de um grande grupo de produção que produz grandes obras em série, a empresa familiar de

47 UCB, Regards sur une fJrofession: les constructeurs de maisons individuelles, Paris, UCB, 1983. A realidade é muito mais complexa do que o que transparece des ta classificação. Onde classificar, por exemplo, as associações de arquitectos rnis como os "Architectes-bâtisseurs"?

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base regional que se encarrega de todos os aspectos das casas que produz ou a pequen; empresa local que, entre outras actividades, constrói algumas casas.

Assim, existem poucos "sectores" da produção económica em que as diferenças entre as empresas sejam tão marcadas: primeiro pela dimensão que varia desde as grandes unidades de produção lançando anualmente sobre o mercado milhares de casas (mais de 4 000, em média, em 1984 para as quatro primeiras) até aos peque­nos artesãos cuja produção anual se mede por unidades (no iní­cio dos anos 80, 93% das empresas ocupavam menos de 10 assa la­riados e menos de 100 empresas empregavam 1 000 assalariados ou mais); pelo modo de financiamento, desde os grandes constru­tores mais ou menos completamente submetidos aos bancos, até aos artesãos proprietários da sua empresa; pelo modo de fabrico e as estratégias de comercialização, etc. No entanto, estes pro­dutores to talmente incomparáveis na aparência estão envolvidos no mesmo campo e entram numa concorrência menos desigual do que se poderia pensar (nomeadamente, porque ela se encon­tra circunscrita pelos efeitos da distância geográfica, que favorece o funcionamento dos mercados locais e também pela diferencia­ção da procura).

A estrutura do campo dos construtores

Por impossibilidade de reunir os dados necessários para o con­junto dos produtores de casa, limitou-se, numa primeira fase, a análise às sociedades construtoras de casas individuais e aos promo­tores mais importantes em termos de volume de negócio48

• Fizemo­-lo apoiando-nos sobre a ordenação estabelecida pelo Le Moniteur des

travaux publics et du bâtiment de 18 de O utubro de 1985 que apre­senta as 400 primeiras empresas do conjunto da construção e do nível de vida (entre os quais só uma quarentena são sociedades

48 Embora a casa individual tenha sido objecto de numerosas publicações, . não existe nenhum estudo sobre o conjunto dos construtores (se exceptuar­mos a lguns dados confidencia is como o "Barometre" UCB).

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d ' construção e de promoção) classificadas segundo o seu volume d ' negócios e sobre os anu ár ios da UNCMI (Union nationale des

constructeurs de maisons individuelles) e da FNPC (Fédération nationale

cl.e la promotion et de la construction). Introduziu-se, para além disso, na análise a título de exemplos-testemunho, e por necess idade de romparação, 5 empresas mais pequenas.

Para além dos 4 grandes grupos, Phénix, Maison Bouygues, Bruno­·Pctit, Groupe Maison Familiale (GMF) e as suas filiais, Maison i'~volutive, Alskanor, Bâti-Volume para Phénix, France-Construction, 'TIM SA e Bâtir para Maison Bouygues, Pavillon Moderne de

Sologne, SIF et Cie para Bruno-Petit, reteve-se os seguintes construto­res e promotores: Cogedim, Seeri, Sinvim et Cie, Promogim SA, Férinel, Meunier-Promotion, Kaufman and Broad, Saci, Laguarrigue-c Clair Logis, Bâti-Service Promotion, Lemoux Bernard, Ast 'onstruction, Sonkad, Établissements Émile Houot, Kiteco, Maison

Mondial Pratic, EPIB-SA, Prisme, Entreprise Vercelleto, léna Industrie, Bâti Conseil, Socarei, GTM-Ml, GTM et Cie, Breguet. Os 5 peque­nos construtores que se reteve são: Nord France Habitation, Sergeco, Maison Occitane, AMI, OMI-France. (As entrevistas foram realizadas ju nto de responsáveis e vendedores das seguintes sociedades: Phénix, Maison Bouygues, Nord France Habitation, Sergeco, Kaufman and Broad, Bruno-Petit.)

Procurou-se reunir o máximo de informações objectivas res­peitantes a estas empresas junto dos dois sindicatos que as reú­nem (a UNCMI e a FNPC), junto das próprias empresas e da imprensa especializada (em particular os inquéritos realizados pela 'qu ipa Performances e stratégies do "Moniteur des travaux publics et du

bâtiment"). A sociedade Ribourel não pôde ser retida na análise, uma vez que as informações a seu respeito eram bastante incom­pletas. Por outro lado, ao lado das 26 sociedades de construção ou de promoção incluídas na análise a título de elementos activos, teve que se tratar como elementos suplementares 18 sociedades das quais as informações disponíveis eram muito pobres.

Para cada uma destas 44 sociedades, reteve-se as informa­ções respeitantes à antiguidade (data de criação); o estatuto jurí­dico (sociedade anónima, sociedade de responsabilidade limitada,

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sociedade de franchising49) e a organização da empresa (sector prin­cipal de actividade - · promoção ou "villages" agrupadas, constru­ção de casas à unidade -, existência de filiais, número de mar­cas representadas - a não confundir com o número de modelos, uma sociedade podendo ter uma única marca, caso mais frequente, ou várias); o local da sede social (Paris, região parisiense, provín­cia) e a extensão da rede de implantação e de venda (sobre toda a França, sobre uma ou várias regiões, etc.); o volume global do pessoal empregue; a importância e a qualidade da actividade eco­nómica (capital; volume de negócios; resultado líquido contabilístico obtido em 1984; número de casas colocadas em estaleiro - na falta do número de casas entregues, mais seguro mas não comunicado; peso das exportações no volume de negócios); o modelo de controlo da sociedade (controlo exercido pela família, pelos bancos, pelas grandes empresas de construção) e a diversificação deste controlo50.

Todas as informações foram recolhidas para o ano de referência, 1984. Fez-se um esforço para recolher dados permitindo medir o dinamismo relativo das várias sociedades: evolução do número de casas colocadas em estaleiro como a evolução do volume de negó­cios entre 1983 e 1984 ou, mas a título de elementos suplementa­res, a evolução do volume de negócios entre 1979 e 1984 e a evo­lução das casas colocadas em estaleiro entre 1983 e 1984, assim como o número de filiais e a parte respeitante à exportação no volume de negócios das sociedades (actividade de uma forma geral pouco importante), conjunto de elementos que falhavam para um número relativamente importante de sociedades.

Não foi possível obter um certo número de informações necessárias à construção de forma rigorosa a um modelo de campo, nomeada­mente sobre a estrutura do pessoal empregue e sobre o recrutamento dos membros da equipa dirigente e do conselho de administração, o tipo de produto e o modo de fabricação, a parte do investimento consagrada à investigação, no sector comercial, na produção.

49 Em geral utiliza-se o vocábulo em inglês. Não há uma traducão ade-quada e/ou comummente utilizada para português. (N. do T.) .

50 O controlo por sociedades estrangeiras não foi levado em conta neste estád io da investigação.

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lc.ncontrou-se aqu i todas as questões bem conhecidas dos espe­lin listas das empresas sobre a definição e os limites da firma, sobre ,, tratamento das filiais: dever-se-ia incluir as filiais nascidas de uma pr •ocupação de diversificação comercial ou das firmas que, como h ·nnce-Terre para Bruno-Petit (ele é o PDG51

) ou France-Lot para l rM F, que permitem às empresas de construção dar a volta à lei lj iiC proíbe os construtores de vender o terreno ao mesmo tempo que a casa (isto sem ter ligação jurídica à holding)? Como tratar as ,•mpresas de franchising (que são três na amostra: Lemoux Bernard, Sonkad, Kiteco) que exploram uma marca apoiando-se sobre peque­nas empresas locais às quais fornecem assistência técnica? Cada um dos indicadores recolhidos coloca problemas que decorrem mui­i ns vezes das dificuldades em determinar a identidade da firma: por exemplo, a data da criação coloca a questão das fusões e das 1il sorções (com a passagem da marca de uma unidade para outra). )cralmente, chocamo-nos com o problema da comparabilidade dos

dados: por exemplo, alguns construtores consideram o número de çasas vendidas, outros o número de casas entregues ou construídas. Dito de outra forma, os dados reunidos no fim de um enorme l'rabalho de processamento dos anuários sindicais, dos balanços de actividade, dos recortes da imprensa, completado pelo interrogatório directo das próprias empresas, de jornalistas, de serviços administra­l'ivos, etc., são muito incompletos e a desproporção é imensa entre ns resultados obtidos pela análise e o trabalho investido52

A oposição principal segundo a dimensão das empresas, medida 1 or diferentes indicadores correlacionados de forma grosseira, o volume de negócios, o capital, o número de casas colocadas em

5' PDG - Président Directeur-Générale: Presidente do Conselho de Admi­

n istracão. (N. do T.) sz . Esta primeira análise, conduzida sucessivamente sobre as . 44 sociedades

de construção ou de promoção, e sobre as 30 sociedades de construção, só tendo originado resultados decepcionantes, e, num certo sentido, demasiado previsíveis, não será reproduzida aqui. Ela será apresentada em detalhe em É!ements d'une ana!yse du marché de !a maison individ~e!te, Paris, Centre de sociolo­

gie européenne, 1987, pp. 53-60.

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estaleiro, o volume do pessoal empregue, que correspondia, grosso modo, a uma oposição segundo a área de actividade (parisiense ou de província), mascarava uma oposição secundária, ortogonal à pre­cedente, que um segundo conjunto de análises baseadas sobre os dados retirados do inquérito realizado pelo INSEE, em 1987, sobre a estrutura do pessoal empregue pelas diferentes empresas de cons­trução, permite fazer realçar. A estrutura do emprego, e em parti­cular a parte respectiva dos operários e dos artesãos, dos técnicos e dos engenheiros, ou dos empregados e dos quadros, é um indi­cador bastante seguro das orientações da empresa e do primado acordado à produção ou à comercialização do produto.

Em vez de acumular indicadores mais ou menos díspares (como na análise precedente), tomou-se a decisão de refazer a análise a partir da mesma amostra de construtores (descrita acima) mas limi­tando-nos às informações sobre o volume do pessoal empregue e sobre a sua distribuição segundo as posições na divisão do trabalho e no espaço geográfico que são recolhidos cada ano no inquérito sobre a estrutura dos empregos realizado pelo Serviço de Estudos e Estatística do Ministério dos Assuntos Sociais e do Emprego e geri­das pelo INSEE. Encontrando-se cobertos estes dados pelo segredo estatístico, só pudemos ter acesso aos mesmos depois de ter consti- . tuído um processo de pedido e comparecido diante do Comité do Segredo Estatístico e depois de ter redescoberto ou reconstitu ído (a custo de uma investigação muitas vezes difícil) o número de acesso ao ficheiro para cada uma das empresas retidas. Para se respeitar o com­promisso que tomámos de não publicar nenhum dado respeitante a esta ou aquela empresa designada pelo seu nome, substituímos o nome das empresas no diagrama pelo número de ordem que lhes tinha sido atribuída nos quadros estatísticos, mas recordámos no comentário as outras propriedades das empresas distribuídas segundo os facto.res fundamentais tomados em conta para a análise.

A oposição principal estabelece-se entre as grandes sociedades nacionais de promoção ou de construção de casas individuais, todas ligadas a grupos bancários ou franchising dando a prioridade à concepção e à d ifusão, e empresas pequenas e médias de implan­tação regional ou local, com capital familiar (portanto pouco liga­das ao mercado financeiro), construindo casas industr ializadas ou· com esqueleto de madeira ou metal e reun indo todas as valências profissionais. Por um lado, (à direita no diagrama), tem-se empre-

7 4

I <I

~ ~

~4

sas que - como o explícita a estrutura dos empregos, em que os operários e os artesãos se encontram praticamente ausentes, e os •ngenheiros ou os técnicos muito fracamente representados, inver­

samente aos quadros e empregados - têm um sector financeiro • departamentos de estudo ou investigação e publicidade muito Importantes - são antes de tudo empresas comerciais e financeiras ~ubcontratando o fabrico. Os construtores situados neste pólo do ·spaço, embora numa primeira leitura muito heterogêneos, tanto do ponto vista da estrutura do capital e do estatuto juríd ico (filiais

O campo dos construtores de casas individuais

filiai s de empresas de construção e/ou empresas com produção unificada - o.E.•

Anó lise factorialdas correspondênci:\s Quádro de 50 linhfls (con.nrutom) das quais ,5 ilus- 0 trações (promotores) e de 50 colunas (emfJl\'go: chefes 'G. d e cmprC1i<1 , qu;~dros, engenheiros, CJW~dro~ rnédios, ~

11

O.Q.

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Estaleiros

MESTRE

~~~~~~~:~~o~1eSSesind~~~~~~f.ad0S ~f?es~t~~~~~ri~w?2 b acti••idíJdc:: ofidnas, fãbricas, estnleiros, escritórios, C outros lugares). 8

Factores Válor próprio Percentagem ~ l-2-3-

0,31684 38,94 O, 19577 24,06 0,09830 12,08

Contribuições mais for tes 1.<> facwr 2.0 facror 3 ."' fac.:tor

construtores

24 20,1 17 63,6 8 18,9 8 10,8 32 11,9 3 16,2 40 8,9 41 9,9 21 12,2 41 5,1 l i 6,6 24 7,6 3 4,9 15 5,4

38 3,9 44 4 26 2,9 26 3,4 'l4 2,7 32 3,'l 14 2,6 i~ 3,3

" vari;h·eis

OQ art. 37.9 ~r .. ,d 52,6 ~:melro• 50,8 qu:1dro 17 17 s il\d 33,2 I· méd io 17.5 cmprcg. 11 ,4 Q art. 12,6 ngcnheiro 8,9 q . medio 10,4 o L-----------------------------~~

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EMP. T ECNICO l3 29 ZS BOUYGUES 47

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de grandes grupos financeiros ou da construção e obras públicas, grandes empresas familiares) como pelo número de obras colocadas em estaleiro, que vai de 30 para Gestion Immobiliere a mais de 4 000 para GMF e Maison Bouygues, têm em comum uma estru­tura de emprego que privilegia os empregados, os quadros (médios e superiores) e os engenheiros (em detrimento dos operários e dos artesãos) e que se explica por um recurso maciço à subcontratação, ela própria baseada sobre o retorno a uma fabr icação dita tradicio­nal, associada a uma função comercial extremamente desenvolvida. Elas têm em comum ter a sua sede social na região parisiense (com excepção de Férinel cuja sede é em Roubaix, mas que tem uma filial na região parisiense), de ter sido criadas entre 1965 e 1975 -com excepção da SACI (1951) - e de se encontrarem ligadas pelo seu capital (que se situa na média das empresas da amostra) a gru­pos bancários, companhias de seguros, grandes empresas de cons­trução (americanas no caso da Kaufman and Broad).

O exemplo mais característico é o de Bruno-Petit Construteur: pouco tempo antes do inquérito, Bruno-Petit abandonou o seu modo de fabrico industrializado, baseado na uti lização de painéis prefabricados de cimento alveolado, para regressar à pedra (isto enquanto conservava na filial, explorando Maison Bruno-Petit, uma parte do pessoal muito qualificado que exigia o processo antigo o que lhe permitiu reduzir o tempo de intervenção entre as dife­rentes sequências da obra); paralelamente, desenvolveu o seu ser­viço comercial e multiplicou as pequenas filiais regionais. De uma forma geral, o fecho do mercado no início dos anos 80 e a inten­sificação da concorrência dos pequenos artesãos incitaram os pro­dutores a reforçar a sua força de venda (em detrimento da investi­gação da inovação técnica) e a tentar uma aproximação geográfica da clientela.

Características sob todos os aspectos similares encontram-se nos franchiser que têm um número de empregados muito reduzido (de 10 a 15 nas t rês empresas da nossa amostra), todos quadros ou técnicos. Detendo um capital que, em relação ao volume da produ­ção, é extremamente reduzido (e detido na maioria pelo seu pro-

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prietário), estas empresas comeretats "oferecem primeiro um finan­ciamento" e os seus produtos são a todos os títulos tradicionais.

Todas as sociedades situadas no pólo oposto (à esquerda do dia­,l(rama) têm uma implantação regional mais ou menos ampla e a sua sede é na província (Metz para Ast, Mamers para Vercelletto, Alençon para Laguarrigue, Gérardmer para Houot). Trata-se de PME independentes e muitas vezes antigas (Vercelletto, 1903; Houot, 1927; Laguarrigue e André Beau, 1957) que não têm qual­JUer ligação com os grupos financeiros ou as grandes empresas

de construção. Fundadas sobre um capital fa miliar, incluem mui­tas vezes o patronímico do seu PDG. Têm em comum a recusa do recurso à subcontratação para o grosso das obras e de empre­garem processos de construção industrializados (painéis prefabrica­dos, lajes de betão, estruturas de madeira ou metálicas, etc.) que, para alguns, são de sua invenção e que exigem uma mão-de-obra especial izada ("operários da casa") efectivos estáveis (o que exclui a subcontratação e o recrutamento à medida das necessidades). Se a isso acrescentarmos que são muito dependentes de _empresas fornecedoras dos elementos de construção, vê-se que estas empre­sas com uma organização muito rígida, de entre as quais Phénix ~ uma figura típica, não estão nada preparados para oferecer pro­dutos "personalizados" e menos ainda de se ajustarem às variações do mercado. No entanto, é do seu lado que se situa a inovação téc­nica e mesmo estética.

Assim Houot, SA, fundada em 1927 com capital familiar, é uma velha empresa muito integrada de carpintaria industrial que se inicia, em 1957, na construção de casas com esqueleto de madeira com um processo de con strução específico. Vercelletto, SA fundada em 1903 com capital familiar, é uma empresa antiga de alvenaria que explora a marca Ouest-Construction com um pro­cesso de fabrico à base de betão armado moldado, que necessita do recurso a uma mão-de-obra muito especializada para a monta­gem obra. Socare!, SA, fundada em 1967, explora um sistema atra­vés de uma alvenaria de blocos de cimento e conta com uma forte 1 roporção de operários da casa no seu pessoal. A própria Phénix, SA, fundada em 1945, a mais antiga das empresas que só fazem

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casas individuais e também a mais industrializada (com as suas filiais), emprega um sistema industrializado de esqueleto metálico e lajes de betão que só podem ser montados no estaleiro p~r "ope­rários da casa" - o que exclui todo o recurso à subcontratação . .

O segundo factor distir:gue duas categorias de empresas que o primeiro factor confunde: por um lado (no topo do diagrama) as filiais dos grandes grupos com vocação exclusivamente regional, quer dizer, os subcontratados integrados (por oposição aos sub­contratados exteriores da Maison Bouygues, por exemplo) intei­ramente especializados na construção de casas individuais, por outro lado (na base do diagrama) as pequenas empresas locais integradas, de t ipo familiar, com a produção mais diversificada. Enquanto que as primeiras comportam uma forte proporção de operários da indústria ou de artesãos (segundo o processo de fabrico), encarregues de fabricar ou de construir o essencial da obra, e uma fraca proporção de empregados, sendo as funções comerciais asseguradas pelas casas-mãe, as segundas são PME inte­gradas, que asseguram elas próprias todas as fases da produção, desde a obra até ao serviço pós-venda.

A análise das estruturas de emprego das diferentes empresas, ver­dadeiro revelador das escolhas económicas mais fundamentais, per­mite assim distinguir três grandes classes de empresas de produção de casas que, encontrando-se dotadas de vantagens muito desi­guais, se encontram votadas a futuros muito diferentes na con­corrência que as opõe. Primeiro, as empresas (situadas em baixo e à direita no diagrama) que, graças a toda uma série de inovações organizacionais, dominam o mercado da casa individual: à conta de produzirem sem pedreiros próprios "casas de pedreiros", conse­guem fabricar industrialmente produtos de aparência tradicional; para além disso, graças a grandes investimentos na área comer­cial e, muito especialmente, na publicidade, sabem dar à fabrica­ção industrial de produtos de série a aparência do artesanato tra­dicional e explorar o mito da casa como morada, servindo-se de. características reais do modo de fabrico tradicional, mas desviado do seu sentido original. (Este sistema fundado sobre o enquadra­mento moderno de uma produção tradicional evoca o modo de

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produção baseado no enquadramento das empresas agro-alimenta­res - nomeadamente produtores de leite ou queijo - dos peque­nos agr.icultores assim submetidos à disciplina "industrial" e con­vertidos de facto à posição de meros subcontratados.)

Típica da categoria, a empresa Maison Bouygues foi criada a 5 de Fevereiro de 1979; conhece um desenvolvimento extrema­mente rápido uma vez que, em dez anos, conquista o primeiro lugar no mercado da casa individual: de 3 casas entregues e 31 milhões de francos franceses de volume de negócios em 1979, para 3,5 milhões e 1 bilião e 200 milhões de francos franceses em 1987. Uma estratégia publicitária relativamente simples mas muito coerente, concebida pela agência Synergie, suporta durante todo este período um sucesso comercial excepcional. Durante os primeiros anos de existência da Maison Bouygues, a publicidade insiste sobre a notoriedade e a imagem de marca que é neces­sário impor. Assim, o primeiro anúncio de todos, realizado em Fevereiro de 1979, impõe o logotipo, a cor vermelha e o slogan "casa de pedreiros". Vê-se já perfilar à esquerda do logotipo uma silhueta (com um traço, a preto e branco), a do pedreiro, em pé numa pose familiar, um pé pousado sobre dois blocos de pedra empilhados (foto 1, p. 80). Este anúncio põe igualmente o acento sobre a especificidade de um produto "tradicional" - por oposi­ção às casas industriais dos principais concorrentes, nomeadamente Phénix - e apresenta claramente o seu posicionamento sobre o mercado como produtor "gama média-baixa". Nos anos 80-81, a personagem do pedreiro toma cada vez mais importância: trata-se doravante de um verdadeiro "gaston" e já não de uma silhueta; torna-se colorido e cresce até atingir a altura do logotipo; a perso­nagem é simpática e inspira confiança. O slogan "casa de pedrei­ros" impõe-se e engloba todas as outras mensagens (foto 2, p. 80). A fórmula definitiva encontra-se achada: logotipo vermelho, slo­gan, pedreiro, texto branco sobre fundo azul "royal" que se torna­rão os modos de reconhecimento permanentes da marca. A aber­tura de uma sétima filial em 1980 justifica a aparição de anúncios na imprensa de revistas (Télé 7, Match, Parents, Maison individuelle). Desde então, a cada estádio da vida da empresa corresponde uma

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Nord·Picardie: février 1979. Maison Bouygues vous prop_ose des maisons bãties

par des macons prix d'un loyer.

.......... . ..,.'(11 ....

I I I

I I ············* Una mcúson do mo~oni.

1

2

3 5

4

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"estratégia para os média" adaptada: em 1981, a criação de uma nona filial; em 1982,· o bilião de volume de negócios é atingido, a décima terceira filial aberta e a Maison Bouygues abre-se a uma campanha nacional de afixação de cartazes. Em 1983, um novo tema, "os jovens casados", dirige-se aos novos lares, parte impor­tante da clientela (foto 3, p. 81). O pedreiro é substituído (na mesma pose) pelo jovem casal, o slogan mantém-se, mas o acento é colocado sobre a acessibilidade. Em 1984, a marca encontra­-se bem implantada e a empresa encontra-se no segundo lugar do mercado da casa individual. Depois de ter consagrado cinco anos ao desenvolvimento da sua notoriedade e da sua imagem de marca, Maison Bouygues lança uma nova gama: a casa Grand­-Volume. A estratégia publicitária muda: torna-se necessário fazer sonhar o consumidor com a "séjour cathedrale" e o mezanino. Simultaneamente ao lançamento do Grand-Volume, 1985 é o ano "Imagination" (do nome de um dos modelos propostos à clientela). Esta campanha é baseada sobre a exploração das fotos de inte­rior, mas a afixação nacional de cartazes mantém sempre a apre­sentação do pedreiro, desta vez em grande plano, a espátula na mão direita e o polegar da mão esquerda levantado (foto 4, p. 81). ·

Com a abertura da televisão ao sector da casa individual e a compra da TF1 pela Bouygues, a actividade do sector de marketing concentra-se à volta do pequeno ecrã. No domínio da publicidade audiovisual e apesar dos investimentos serem menos de metade aos de Phénix, Maison Bouygues impõe-se em 1986 junto dos telespec­tadores com um filme, L: Ami de ta famiUe, muito orientado sobre o produto (visita muito detalhada de uma casa) e fortemente iden­tificada à marca ("gaston" sentado com a família na pose e papel de um amigo, logotipo, música ... ) (foto 5, p. 81). A compra de TF1 coincidirá naturalmente com uma forte presença publicitária sobre esta emissora, a criação de um concurso organizado por TF1 e Télé-Star. Esta forte implantação na televisão aumentou com o apoio publicitário concedido, a partir de 1986, à equipa de fute­bol de Bernard Tapie, o OM53 cujos jogos são difundidos nas emis-

53 OM - Olympique de Marseille. (N. do T)

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Ml es especializadas e nos jornais televisionados: desenhado sobre a ·nmisola dos jogadores marselheses, o logo laranja é reconhecível de longe, em grande plano, a legibilidade é perfeita. Tendo-se tor­nado o leader da casa individual em França, Maison Bouygues con­fia em 1987 a sua publicidade à agência RSCG (Roux, Séguéla, Cayzac e Goudard).

Quanto à segunda classe, a das empresas integradas e organi­zadas à volta da implementação de um processo de fabrico indus­rrial, mesmo que se encontrem próximas das precedentes pela dimensão e importância da sua actividade como a Phénix, a mais antiga e a mais poderosa da categoria, ou menos importantes, tanto pelo número de casas produzidas como pelo volume do seu ·ap itai ou do seu pessoal, encontram-se submetidas aos constran­gimentos técnicos extremamente rígidos da produção integrada, que se traduzem em constrangimentos sociais, através da necessi­dade de manter em permanência um pessoal efectivo altamente •specializado. Obrigadas a ir, permanentemente, em contra-corrente, da procura normal de casas-moradia, elas encontram-se de alguma forma prisioneiras das condições organizacionais que num determi­nado momento constituiu o seu avanço em termos tecnológicos. Encontrando-se menos preparadas para responder à nova situação Tiada pela crise e pela diminuição do mercado, conhecem mui­tas vezes situações difíceis. E se as maiores conservam as vanta­gens ligadas às economias de escala e à diversificação das variáveis que lhes assegura a sua dimensão, grande número delas, nomea­damente entre as mais pequenas, foram reduzidas ao estatuto de fi liais de grandes grupos.

Restam enfim o conjunto das pequenas e médias empresas familiares e integradas produzindo segundo o modo tradicional.

ferecendo um produto "feito à mão", por artesãos, pedreiros e carpinteiros, os mais tradicionalmente associados à ideia de "auten­ticidade" nos materiais - pedra, madeira, perpianho, cimento, etc. - , representativos da ideia de permanência e estabilidade e segundo técnicas de construção que deram as suas provas, assim como os "planos" que, embora sendo impostos pelos clientes agindo como arquitectos espontâneos, reproduzem quase sempre os modelos

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inconscientes, têm por si só toda a lógica da procura mais tradi­cional. Mas pode-se perguntar se, num domínio em que a arte de produzir as aparências desempenha um papel tão importante, as grandes empresas que se viraram para a produção industrial da aparência da casa tradicional não conseguirão, neste domínio como noutros, vencer todas estas pequenas empresas que produzem real­mente o tradicional mais ou menos adulterado (uma parte impor­tante dos elementos que utilizam são produtos industriais) e que só poderão sobreviver franchisers nas vastas empresas capazes de pro­duzir de forma tradicional a imagem esperada dos seus produtos "tradicionais". Oito isto, as pequenas empresas artesanais são, num determinado sentido, indispensáveis ao funcionamento de todo o sistema, ao qual fornecem a sua justificação simbólica. Através das "casas burguesas" que executam num estilo local que é o pro­duto de uma reconstituição histórica mais ou menos aproximativa - solares, casa de campo, moradias, etc. -, continuam a dar vida, e figura concreta, ao modelo dominante da casa tradicional que tantos compradores trazem no seu inconsciente como uma espécie de ideal, e isto muito para além dos limites da clientela que têm capacidade de os oferecer.

As estratégias publicitárias

O peso relativo que uma empresa acorda à função comercial é, sem dúvida, um dos indicadores mais poderosos e mais significativos da sua posição no campo dos construtores. Estes com efeito encon­tram-se colocados perante as seguintes alternativas: seja trabalhar a transformar os esquemas de percepção ou de apreensão socialmente constituídos (os gostos) que os potenciais compradores aplicarão aos seus produtos, à sua realidade física de objecto submetido à per­cepção, mas também aos materiais de que é feito e aos processos de fabrico que a sua configuração sensível liberta ou trai de um cliente ansioso ou inquieto - nomeadamente desarmando os preconceitos contra a casa industrial e rompendo as associações normais entre a casa e o antigo, o tradicional, para proceder à substitu ição por asso­ciações novas ou insólitas, entre a casa e o moderno, a vanguarda,

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11 npuro técnico, o conforto, etc., ou seja, inversamente, esforçar-se por preencher o espaço entre a impressão espontaneamente suscitada [Wio produto e a aparência que se pretende induzir-lhe. Nunca tendo IlM grandes empresas industriais verdadeiramente escolhido o cami­nl o da subversão e do modernismo assumido e proclamado, distin­)l \1 ' m-se sobretudo pela amplitude da acção simbólica de transfigura­\' o que os seus serviços comerciais e em particular os publicitários, 111 ns também os vendedores, realizam com o objectivo de preencher 11 ~ sso eventual entre o produto oferecido e percepcionado e o pro­duto esperado, e de convencer o cliente que o produto proposto é I •lto para ele e que é feito para este produto.

À medida que cresce a dimensão da empresa, a burocratização t ' n parte do pessoal comercial crescem. O pessoal trabalhando em •$ta leiros, de maioritário torna-se minoritário, a parte dos adminis-

1 rntivos cresce ligeiramente e a parte dos comerciais cresce forte­mente (seja 10,5% a 12,5%, 18%, 21,5% e 23,2% quando se vai d empresas que constroem de 20 a 50 casas àquelas que cons-1 roem de 50 a 100, de 100 a 250, de 250 a 1000, e enfim às maiores que constroem mais de 1000). Quanto maior é a sociedade mais se impõe a constituição de uma grande rede de vendedores: 11 passa palavra não chega e torna-se necessário dar mais espaço à prospecção e à publicidade. No entanto, o número de vendas rea­li zadas por cada vendedor diminui com a dimensão, enquanto que p número de encomendas anuladas cresce (em 1984, cerca de 40% das encomendas registadas pelos vendedores das maiores socieda­des foram anuladas em seguida pelos clientes contra um pouco menos de 10% para as pequenas empresas). Compreende-se que a questão do recrutamento e da formação dos vendedores se torne 1 rioritária par<l" as maiores sociedades de construção, tanto mais que os vendedores são extremamente móveis (seis a oito meses de ' mprego em média num mesmo construtor segundo Le Moniteur

eles travaux publics et du bâtiment). Vários construtores criaram (Bruno­.Petit, Phénix) escolas de vendas internas. Outros procuram melho­rar os seus métodos de recrutamento.

Como o peso do sector comercial, o recurso aos diferentes meios de prospecção comercial e de publicidade cresce com a dimen-

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são das empresas. Assim, a parte dos construtores que, segundo o inquérito UCB d~ 1983, declaram fazer frequentemente publi­cidade nos jornais passa de 48% para os mais pequenos (aqueles que constroem de 20 a 49 casas) para 69% para os construtores de 50 a 99 casas, 72% para os construtores de 100 a 249 casas, 74% para os construtores de mais de 250 casas; a parte daqueles que organizam stands nas feiras e exposições passando de 26% a 44%, 59% e 74%. As diferenças seriam muito mais importantes se se pudesse levar em conta a parte dos construtores que fazem publicidade nos grandes semanários, na rádio ou na televisão. As sociedades cuja dimensão é mais importante organizaril gran­des "campanhas de publicidade" e recorrem a uma gama muito ampla de meios de prospecção: folhetos distribuídos nas caixas de correio, prospectos, catálogos publicitários, brochuras, publicidade nos diários regionais, nacionais, os semanários, as revistas, carta­zes, stands de exposição nos salões e feiras, casas-modelo expostas seja nos centros ou "aldeias", seja em pontos estratégicos (grandes armazéns, estações, etc.), mensagens publicitárias na rádio e recen­temente (1985) na televisão (é entre os clientes das maiores socie­dades de construção que a parte daqueles que dizem ter conhecido · a sociedade de construção pela publicidade, a rádio ou o jornal é mais forte). No pólo oposto, as pequenas empresas apoiam-se sobretudo sobre as redes de relações de conhecimentos e os anún­cios nos jornais locais.

Sabe-se que, como toda a acção simbólica, a publicidade nunca tem tanto êxito como quando elogia, excita ou acorda disposições preexistentes que exprime e às quais dá assim oportunidade de se reconhecer e de se cumprirem. Compreende-se que todas as empre­sas recorram de forma praticamente idêntica ao tesouro das pala­vras e dos temas melhor adaptados para induzir as representações mais tradicionais da casa e de toda a gente da casa, evocando, por exemplo, a superioridade da propriedade sobre o aluguer ("com­prar custa menos do que alugar") ou os encantos da natureza: isto, sem dúvida, para inserir a casa num conjunto de associações atra­entes, mas também e sobretudo para fazer esquecer o afastamento da residencial proposta em relação ao centro da cidade ou ao local

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de trabalho, convidando a fazer da necessidade virtude e a conver­ll'r o relegar para uns longínquos arredores num regresso electivo 110 campo (foto 3, p. 95).

Os processos utilizados são quase sempre os mesmos: um dos 1nais correntes consiste em comparar duas situações radicalmente 11postas, seja a do candidato e do não candidato; um outro propõe 11m diálogo fictício entre o cliente potencial e o profissional que apresenta o seu produto dando a ilusão de uma relação directa e pessoal; um outro ainda, muito utilizado para mascarar as proprie­dades indesejáveis do produto, consiste em utilizar o que se pode­ria chamar o golpe do ilusionista, que visa chamar a atenção sobre vantagens reais ou presumidas, qualidades ou facilidades oferecidas, ' te., para esconder os inconvenientes ou os aspectos desagradáveis. E a publicidade do imobiliário não recua sempre perante os argu­mentos financeiros ou técnicos duvidosos ou as deformações gros­~ciras a propósito da envolvente da casa ou da própria casa. Vários grandes construtores foram apanhados pelas sanções da lei de 27 de Dezembro de 1973 cujo artigo 44.1 proíbe "toda a publicidade ·omportando [ ... ] alegações, indicações ou pretensões falsas ou de natureza a induzir em erro quando estas se referem a um ou vários elementos". Assim a sociedade Maison Bouygues foi condenada em 1983 pelo Tribunal Criminal por ter difundido um catálogo anun­ciando "casas por medida", enquanto que na realidade apenas ofe­recia casas pertencentes a "tipos determinados", e "uma verdadeira carpintaria de mestre", "enquanto que os materiais utilizados são confeccionados industrialmente e prefabricados e que as madeiras não são montadas segundo as técnicas ancestrais".

As diferentes empresas têm assim tanto menos necessidade de recorrer à publicidade e à retórica da ancestralidade quanto o seu produto e o seu modo de produção são mais próximos da reali­dade. E se as estratégias publicitárias crescem em intensidade com a dimensão das empresas, é sobretudo a sua forma que muda quando se vai daquelas que, mesmo se devem fazer concessões às aparências - como a imitação do reboco sobre os painéis prefabri­cados - , se apoiam sobretudo sobre a qualidade técnica dos seus produtos, àquelas que, como a Maison Bouygues, baseiam a sua

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estratégia sobre a produção de aparências de um produto e de um modo de produção "tradicionais". A utilização dos diferentes temas e dos diferentes processos retóricos varia com efeito segundo a posi­ção no campo. A estratégia que consiste em atribuir ao produto vendido as "qualidades" do produtor é, sem dúvida, mais frequente nas publicidades das sociedades maiores e mais antigas. Apoiando­-se no pressuposto de que só uma casa sólida pode fabricar casas sólidas ou que casa sólida não pode fabricar senão casas sólidas, portanto, as casas fabricadas por uma casa antiga e durável são necessariamente sólidas e duráveis, esforçam-se, numa lógica que é a da participação mágica, de contaminar o produto pelo produtor. Assim, sendo a Maison Bouygues uma sociedade recente, invocar­-se-á a antiguidade do Grupo Bouygues como garantia da qualidade das casas com o mesmo nome, supondo-se que o comprador terá pouca probabilidade de se aperceber do deslize: "Maison Bouygues beneficia da experiência de 30 anos do grupo Bouygues e de todo o seu poder de compra. Assim, Maison Bouygues conseguiu redu­zir o custo das casas de pedreiros"54•

As grandes sociedades de construção procuram antes de tudo desarmar as resistências ou as inquietudes dos seus clientes mais desprovidos ("Tornar-se proprietário de uma Grand-Volume é mais fáci l do que você pensa"). Elogiando os seus serviços, a sua assis­tência financeira, jurídica, administrativa, etc., insistindo sobre as garantias que asseguram, visam criar a confiança. "Qualquer que seja o seu problema, crédito (novos empréstimos PA P e APL), ter­reno (serviço de consultoria de terrenos), administrativo ou outro, os nossos especialistas documentar-vos-ão com rigor. Podem assim conhecer as vossas possibilidades de adquir ir uma casa individual no sector da vossa escolha" (Maison Alskanor, 1979). Se tendem por vezes a dramatizar um pouco a situação de compra ("É a com­pra mais séria da vossa vida" - GMF; "Quando se decide cons­truir, empenha-se um pouco da nossa vida" - Bruno-Petit), é para melhor fazer realçar a sua capacidade de se encarregarem de tudo

54 Brochura publicitária: "Une maisons de maçons, oui, vous potwez" ("Uma casa de pedreiros, sim, você pode"), 1984, p. 46.

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c apelar à qualidade da sua intervenção que justifica a sua repu­tação: "Cada um sente bem que uma casa de pedreiros é incom­parável. Para além disso, Maison Bouygues traz-vos todas as vanta­gens de um grande construtor e suprime toda a inquietude sobre o preço, a garantia, a qualidade" (Maison Bouygues, 1984). A "charte Phénix", a "loi Bruno-Petit", ou as garantias propostas pela GMF ou Maison Bouygues supostamente protegem os clientes "do que quer que aconteça".

É porque as estratégias publicitárias são determinadas em grande parte pela concorrência que, paradoxalmente, se tendem a apro­ximar: os diferentes construtores lançam praticamente ao mesmo tempo campanhas que utilizam mais ou menos o mesmo argu­mento ("a casa personalizada", "torne-se proprietário", etc.). Só se pode compreender, por exemplo, o número de argumentos invo­cados pela Maison Bouygues se não se vir que esta sociedade, no seu esforço para retirar o primeiro lugar à Maison Phénix, tomou de forma resoluta o partido de produzir em série o tradicional enquanto que, no outro sentido, Phénix continua a invocar jus­tificações técnicas ou financeiras mais ou menos "modernistas" fazendo simultaneamente concessões, tanto no produto como na sua promoção publicitária, aos pedidos tradicionais: "A seriedade c a competência da Maison Bouygues permitem hoje propor casas individuais para cada um, mesmo para aqueles cujos meios finan­ceiros são modestos. A sua casa Bouygues não será prefabricada !subentendido: como são as casas Phen ix], será u ma casa de pedrei­ros construída pelos melhores operários da sua região"55

A vantagem que o recurso às técnicas industriais de prefabrica­ção ligeira e a utilização de componentes de fabrico industrial, como divisórias ou grades de portas, confere às empresas mais moder­nas, é compensada, e como tal limitada, pela atracção dos clien­tes pelas formas de fabrico tradicionais que, mesmo incluindo cada vez mais elementos industrializados, proporcionam uma tranquili­zadora imagem de solidez. A persistência da imagem da casa feita

55 Francis Bouygues, Texto de introdução a uma brochura de apresenta­ção da sociedade Maison Bouygues, 1984.

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pelo pedreiro é tão forte que todos os construtores de casas indus­triais têm que recorrer. a estratégias de camuflagem para dissimular as componentes industriais, tanto na realidade (como fachadas de alvenaria ou tijolo, com funções puramente decorativas, ou a valo­rização das vigas e de qualquer característica própria de uma casa tradicional), como no discurso destinado à promoção, que recorre à retórica do "local", do "tradicional", do "estilo regional", etc.

A situação era, num certo sentido, relativamente clara, enquanto a distribuição entre empresas de materiais técnicos - ligados ao nivel de industrialização - variava na razão inversa da distribuição de materiais simbólicos - ligados ao grau de adaptação ao modelo do produto e do modo de produção artesanal. Uma ruptura deci­siva deste tipo de equilíbrio, que dava oportunidades acrescidas às pequenas empresas artesanais e familiares, ocorreu com a inovação organizacional que consiste na criação de empresas de construção capazes de produzir industrialmente um sucedâneo do tradicional, nomeadamente convertendo em mais-valia simbólica uma particula­ridade da sua organização - o recurso massivo à subcontratação ou ao franchising - conciliando assim o inconciliável, ou seja, as vanta­gens técnicas da produção em série e as vantagens simbólicas do fabrico artesanaP6•

As dificuldades resultantes da contradição entre os processos de produção industrial e as expectativas da clientela surgem com toda a clareza no discurso e nas imagens publicitárias das empre­sas médias com base local que oferecem produtos de origem indus­trial. Assim, a publicidade da Maison Dégut baseia-se no essencial em argumentos técnicos como a resistência dos "painéis com três camadas sobrepostas" ("uma estrutura de 17 toneladas resistente ao

;r, O mesmo tipo de consequências, que só podem ser entendidas numa perspectiva estrutural, é observável no dom.ínio da produção editorial onde os produtores e distribuidores de uma literatura "comercial" de produção indus­trial e destinada ao consumo de massas, podem minar (ou deturpar) as autên­ticas criações de vanguarda, através de artifíc ios de marketing, que por vezes se apoiam numa adesão de boa-fé, ligada a efeitos de altodoxia, de alguns crí­ticos mal informados (cf. P. Bourdieu, "Une révolution conservatrice", Acres de la recherche en sciences sociales, 126-127, Março de 1999, pp. 3-28).

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par panneaux porteurs a tríple /ames croisée~

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Tél. 77 54.22.59

découverte d' une nouveauté dan.r la con.rtMJCtlon ! U" wo<: #&l rAAM!.A l _$ ...... ~. <iÍ4 ~tf(ll(h!l'i'> • Ji•Y~:1Vf !l " l•, t .. 14l1t<t

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fogo, painéis de 2m50 de altura por 1 metro de largura"), apre­sentados em corte e cuja composição é descrita em detalhe, ou ainda a sua eficácia em termos de isolamento e de ventilação e também de conforto psicológico e biológico ("a casa com estrutura em madeira A. Dégut é saudável porque não interfere no campo contínuo das radiações espaciais necessárias ao equilíbrio biológico do indivíduo"). Mas, por outro lado, invoca logo de seguida o prestígio do nobre e do antigo para justificar um processo coroa­do por medalhas de ouro e de bronze e confirmado com paten-

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FINTAS

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tes: "O processo utilizado por A. Dégut inspira-se nas tradições de outrora (revestimento de cas­telos) que deram as suas pro­vas ao longo de 500 anos". E garante que "o aspecto exterior é rústico, graças à cobertura em elastofibra à base de titânio". A contradição semântica é evidente e a empresa de promoção não tem outro recurso que não seja projectar-se no futuro longínquo em que o avanço tecnológico de hoje se converte em "tradição de amanhã".

A mesma contradição, mas neste caso pode dizer-se que apre­sentada em bruto, sem qualquer eufemismo nem transfiguração, está patente na publicação das Maisons Émile Houot, pequena empresa familiar, criada em 1957 e situada em Gérard-mer, que se dedica à construção de vivendas e casas individuais n a Lorraine e no norte dos A lpes. A ima-gem apresenta aqui, sem frases

a acompanhar - a empresa não tem um slogan publicitário pró­prio - o processo tal como é: a casa construída na fábrica segundo uma técnica industrial (o processo Houot) vem "directa­mente da fábrica"; cai do céu, totalmente pronta, projectando-se­-lhe dos quatro cantos as linhas convencionais que, como nas ban­das dese~hadas do Super-homem, servem para exprimir a rapidez do voo. E efusivamente saudada ("Viva as casas Houot") pelo cír­culo familiar que, cão incluído, a aguarda no quadro tradicional de uma "sala de estar" pequeno-burguesa estranhamente instalada a céu aberto. Dificilmente se poderia mostrar de forma mais clara,

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quer o contraste entre o produto industrial, proveniente de um outro mundo, que é preciso simultaneamente evocar e fazer esque­·cr transfigurando-o, e a componente "família", que se afirma, em primeiro plano, na sua mais tradicional expressão social: o casal junto, o pai instalado no seu sofá, com um jornal na mão, a mãe ~cntada, numa pose tipo fotografia romântica, no encosto, com o braço (sem dúvida) poisado no ombro dele, os dois filhos - um rapaz de pé, com o braço levantado na direcção do objecto voador, l' mo anunciador da modernidade, e uma rapariga sentada - , reflexo fiel do casal com filhos, que estão separados por uma mesinha baixa com um ramo de flores, símbolo, em nome da tradição, da Primavera, da vida que recomeça... A estrutura iconográfica iden­tifica-se com a utilizada para exprimir o milagre e, se não fosse de recear o pedantismo de uma referência que alguns con sidera­rão deslocada, tratando-se de banda desenhada comercial, pode­ríamos invocar a análise de Erwin Panofsky a propósito dos reis magos de Rogier Van der Weyden: a casa de Émile Houot ocupa de alguma forma o lugar da criança rodeada de uma auréola de raios dourados que, salta à vista, porque implícita na percepção do quadro uma visão perspectiva do espaço, flutua no ar, como uma aparição57•

A contradição, que encontra a sua decifração simbólica na retó­rica do milagre, adaptada aos objectivos da mensagem publicitária, k:va por vezes à confusão da inten ção expressiva. Assim, a publici­dade de Maisons de l'Avenir, pequena empresa de vocação regional 1ue, criada em 1967 e localizada em Rennes, recorre a uma pro­

dução industr ial pesada, mistura as imagens habituais da casa con­·luída, rodeada de árvores e cheia de crianças, com fotografias do processo de fabrico que evocam mais a indústria do que o arte­sanato tradicion al. O processo industrial que se pretende tradicio­nal, como indica o estranho nome que lhe é atribuído, "superper-1 ianho", só aparece no reverso do desdobrável.

57 E. Pa nofsky, Essais díconologie. Les thémes humanistes dans 1 ·art de la Renais­,l!lnce (trad. C . Herbette e B. Teyssédre), Paris, Gall imard, 1967 (Lo ed. 1939), pp. 24-25.

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Todas estas contradições, e as correspondentes incongruências semânticas no discurso," desaparecem no caso de empresas que recor­rem a processos de construção tradicionais, seja através de uma forma de organização própria da produção em série baseada na sub­contratação, seja através de formas mais ou menos modernizadas de artesanato tradicional. Uma empresa como a Sergeco, criada em 1962, em Paris, que produz casas individuais de "gama média", cons­truídas por encomenda segundo os métodos mais tradicionais com materiais tradicionais, tijolo furado, torneiras de cobre, etc., pode recorrer sem problemas a todo o arsenal simbólico da moradia: desde o slogan, "as nossas casas são feitas para durar", até à capa do folheto, intitulada, de forma sem dúvida deliberadamente ambígua, "uma casa para amar", em que é representada uma casa, ao estilo dos livros infantis, que brota de uma flor, como os bebés nascem de uma couve (foto 1, p. 95). A harmonia entre evocação e construção é perfeita - dois pedreiros a construir uma parede de tijolos - e a evocação da casa acabada (que não reproduzimos aqui) aparecendo

Maisons de l'Avenir des maisons en «Superparpaings))

V011€' MitiSOn de rAvemr, aS&se s.ur des f~l.l!Jc\$(1) t'J;'jJ\I(mnelles de maç.oonene, ~t constrwte e!\ "Su~rpajngs', \21 spé(.~Jictnent faboqub darlS notr>,~ bétonrume Son P.I1Ch;11 P.Aéfteur. {3) d'aSPect lalocM, btr.ék1~ d"l..lfle !)féparahon en soos fa;:c ~~rntMrn 1es fi>QUes de fts.~11e:s Sa cl\arpoote en bOIS mawl l4l, cl11!<1ll<e à fenc-1tmtm t$1. f&1hsét Püf nos charpeotJcrs «>rnpotgl'lOfL$du Tour de F rance Tr.altee Í$g<!de et msec!Jctde. elle rcçort

:;!'~~5~~ :~ tOfturt en #~::_-T owtes ses menuJSer~ sont SOtgneusemt'flt " -~,. ía!mw;écs et asstmblêcli dans rlOS ateh~rs par rJts cornpagnoos meout$olers PM"' (6! l!t le<i!!tres ma douNe >nr>g< sont 1?1lbo$ exotique V-olets (8) á ilssetntiage- P<'~" iatlgUt'ii!!$ \OCQ!{X)r~ .avec barre et t:cturpes S.Ot\1 et1 $apt!'l !!lo NOt'd de fmtltOrl "Ltwn.t Esc.altet (9) .l Quat1Jet' 1oomafl1 avec m.arc~ ~~ ton\tem(lrches.. l111l01'\ ci c.rêmruUére') teJI1$ê 5f'lon l'~rt! adrtfOOM\Ie en bois tr.<otiQ\;t! sé!edtOMe Ck>tsort$ mténe:urt!$ autnporta11tes üOl. ISOiittJon (li) (!ame mmerale el ~tyrene) chauffugi> Ctect.nq~. éftc!r!Cité. S3Mal!t5. rMt~ents de sot>. ra.a!emeflt sont r~l•sés. par flOS- propres équloes e1 dt"S art~m :)>Joc!Kmné:$ ~~c~ par nos 501ns,

" ~P€ Le superparpaing "),. ,'?'~, est fabriqué en béton armé ,.;,. (lAJJ~ .. :• 9osé à 370 kg ?,e cirnent au m3

~pit,.~ Superparpa1ng . . ,.. ' est une marque déposee

Desdobrável publicitário, Maisons de l 'Avenir, 1986.

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UNE MA.ISONA AIMER...

1 - Desdobrável publicitário, Scrgeco, 1986.

3 - Sergeco, catálogo, 1983-1984, p. 5.

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2 - Desdobrável publicitário, Maisons Sprint, 1986, p. 12.

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a primeira como uma garantia de "longa vida" da segunda, ou seja, entre outras coisas, do "bem-estar da família" e do rendimento a longo prazo do judicioso investimento por que esta optou.

Quanto às formas de publicidade da Maison Sprint, pequena empresa regional criada em 1966 em Marselha, nada, a não ser o seu nome, que traz à lembrança rapidez, vem contrariar a evoca­ção encantada da mais tradicional imagem da casa: por um lado, as garantias associadas à ideia de "grande empresa", não apenas a "experiência" e a gestão racional, com "instrumentos informáticos para gerir as obras, coordenar os esforços, optimizar as compras", mas também a actividade "pluridisciplinar", ligando especialistas com nomes que dão um tom científico, "técnico do betão, engenheiro tér­mico, geólogo, geómetra", não só a carta profissional de membro de UNCMI e o controle da SOCOTEC, sociedade de controle técnico da construção, mas ainda a caução de um grande banco e a protec­ção de uma grande seguradora; simultaneamente, todas as garantias associadas ao modo de construção tradicional, desde a "verdadeira mestria" do "companheiro" que vemos a ajustar o pavimento até aos "acabamentos refinados e harmoniosos" (foto 2, p. 95). A ilus­tração valoriza os artesãos, pavimentadores ladrilhadores, esrucadores, pedreiros, e os materiais ditos "nobres" que utilizam, o discurso que a acompanha invoca a raridade do produto proposto ("apenas cons­truímos, em cada ano, um número limitado de casas") e o seu per­feito ajustamento aos gostos do cliente ("a arte de viver à medida") e usa e abusa, para exaltar estas "casas feitas por mão de mestre", do tesouro de estereótipos pseudopoéticos que alimenta as frases com pretensões literárias sobre a casa: mistério, charme, natureza, proporções, tradição, região, território, residência, espaços, volumes, pátio, mezanino, caramanchão, barbecue, canto de chaminé, local para lenha, tijoleira, telha redonda, lareira, história, alma.

A crise e o efeito de campo

A relação de forças entre as empresas depende da conjuntura económica global que, na área da habitação, se refracta segundo a sua lógica específica. O efeito de campo nunca foi tão visível como

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por ocastao da crise que, por volta dos anos 80, atingiu o mercado da habitação: na medida em que têm que contar, nas suas estraté­gias de produção e comercialização, com a procura de construções "tradicionais" e "personalizadas" que é suposto ser satisfeita pelos pequenos produtores artesanais, as grandes empresas industriais, que só podem baixar os custos aumentando a produção à custa da 'Standardização do produto, vêem-se obrigadas a multiplicar estraté­

).( ias de ordem técnica (como a diversificação dos modelos), organi­zacionais (como a organização em grande escala de uma produção de aspecto artesanal), ou simbólicas (como o recurso a uma retó­rica do tradicional, do original, do único), para limitar ou masca­rar os efeitos da produção em série. Muitas empresas nacionais são nssim levadas a abandonar a sua polít ica de produção integrada e industrializada para adoptar estratégias de produção próprias das pequenas empresas artesianas ou semi-artesanais e regressar a pro­cessos de fabr ico tradicionais apoiando-se na subcontratação.

Os mais importantes construtores nacionais, nomeadamente Phénix, foram os primeiros a ser atingidos e registaram em geral uma diminuição da sua actividade (quebra particularmente sen­~ível no caso de Phénix que, tendo construído mais de 16 000 ·asas em fins de 1970, não produzia mais que 8 000 em 1984, 7 200 em 1985, 6 200 em 1986). A rápida renovação das empresas \ sem dúvida, uma das características dom inantes deste campo: segundo um inquérito conduzido pela UCB, na Primavera de 1983, junto de 80% dos construtores que iniciaram a construção de pelo menos 20 casas em 1982, 59% eram recém-chegados que tinham -riado a sua empresa há menos de dez anos (ou seja, por volta

de 1976) ou que, nalguns casos, construíam menos de 20 casas 'm 1976. Tratava-se quase sempre de empresas locais, pequenas ou médias, sendo os produtores mais importantes em geral os mais antigos (Phénix, por exemplo, criada em 1945, GMF em 1949); mas observavam-se também casos de uma ascensão muito rápida: assim, Maison Bouygues, criada em 1979, situava-se desde 1982 no segundo lugar no mercado da casa individual vendida por catá­logo; é igualmente o caso dos Architectes-bâtisseurs, criados em 1981, que conseguiram, desde 1984, agrupar cerca de 400 arqui-

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tectos organizados em pequenas sociedades. Mas se são numerosos os casos de criação ·de novas empresas, sobretudo nos anos 70 e mesmo nos anos 80, os encerramentos e as declarações de fa lência são ainda mais frequentes pois, segundo o inquérito UCB, houve uma queda de 1 100 construtores em 1976 para apenas 800 em 1982. Após um período de forte expansão - o número de casas em construção passou de 107 000 em 1962 para 281 000 em 1979 - , a construção de casas individuais exper imentou desde 1980 um declí­nio muito acentuado, não se registando mais de 192 000 constru­ções em 1985 - isto embora esta diminuição tenha sido posterior e menos acentuada que em relação à construção de condomínios.

A cr ise alterou a relação de forças a favor das pequenas empre­sas. "Os pequenos e médios construtores aproveitaram a situação para retirar a iniciativa aos grandes, que tinham ocupado o seu ter­ritório. Mais próximos da sua clientela, conhecendo as suas expec­tativas, os seus gostos, as PME aumentaram nestes últimos anos a sua capacidade de comercialização e, na sua maior ia, conseguiram, no ponto mais alto da crise, alcançar resultados apreciáveis. Por exemplo, em 1984, Vercelletto em Mammers iniciou a construção de 350 casas (contra 250 em 1983); C leverte em Lyon, 226 (con­tra 158); Maison C hapel em Brignoles, 107 (contra 60); as Maisons Archambault em Tours, 50 (contra 22). Este período parece ter sido de curta duração pois em 1985, de uma forma geral, também os pequenos e médios construtores marcavam passo; alguns regis­tam mesmo uma quebra sen sível de actividade. Por outro lado, as maiores, que tiraram as suas lições da guerra, fazem volte-face no início do ano, decalcando doravante a sua estratégia na das PMP8." Na luta contra os pequenos e médios con strutores, os grandes reorganizam-se e, através da criação de filiais regionais ou formas originais de subcontratação, adaptam estruturas semelhan­tes às das PME numa tentativa de se aproximarem dos consumi-

58 «La maison ind ividue lle se personna lise», Le Moniteur des travaux pubtics

et du bâtiment, 2 de Maio de 1986, pp. 30-34; cf. também «Des constructeur.s sur mesure», Le Moniteur des travaux pub!ics et du bâtiment, 30 de Abril de 1987, pp. 1-XV!Il.

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dores e das suas expectativas. Assim Bruno-Petit subdivide as mar-as Bruno-Petit e Chalet ldéal em PME mais autónomas, cedendo

uma parte minor itár ia do capital aos novos dir igentes. Na mesma linha, Maison Phénix cria estruturas mais pequenas em diferen­res regiões. Esta diversificação interna das grandes empresas anda a par com uma forte tendência para a concentração: em 1982, a parcela do mercado dos construtores que edificavam mais de 250 asas por ano, que representava 5% do total, é de 50% das casas

·onstruídas pelos construtores no seu conjunto e a dos construto­res nacionais, que não representam mais de 1%, é de 33%.

Algumas das maiores empresas tentam conciliar a estandar­dização da produção e a personalização do produto através de estratégias técnicas e comerciais que visam oferecer combinações singulares de elementos mais ou menos estandardizados e pro­por todo um conjunto de métodos de construção (sendo a ino­vação mais eficaz a organ ização em massa, graças à subcontrata­ção, de uma produção tradicional: a "casa do pedreiro") e toda uma gama de fórmulas de venda (casas entregues chave na mão, casas com acabamentos por concluir, em Kit ou com possibili­dade de serem acrescentadas, etc.). Assim C laude Pux, então pre­sidente da U nião Nacional de Construtores de Casas Individuais (UNCMI), cita um inquérito que recenseia 985 modelos para 34 construtores em 1984 e indica que este número tenderá a aumen­tar. Alguns construtores passam a oferecer apenas casas individua­li zadas e deixam de lado qualquer catálogo. Le Moniteur des travaux fJub lics et du bâtiment de 2 de Maio de 1986 escreve: "A casa indivi­dua l personaliza-se. Os construtores nacionais arranjaram um novo cavalo de batalha: os projectos personalizados". Uma contra-ofen­~ iva em relação aos pequenos e médios produtores, que acompa­nha a sua regionalização. E o responsável do orçamento da publi­cidade de Maisons Phénix expõe a nova estratégia comercial numa entrevista (de 1987): "Há alguns anos atrás, todos os construto­res vendiam casas por catálogo. Entretanto, as técnicas de venda evoluíram. Já não se vende dessa forma. Hoje as pessoas que­rem uma casa personalizada. Se se restringir a oferta a um catá­logo, as pessoas têm a sensação de só poderem escolher entre as casas apresentadas. Batemo-nos contra isso, queremos que a pes-

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soa tenha a sensação de estar de facto a construir a sua casa e a escolher livremente o que deseja. Primeira mudança: na Phénix as casas já não têm um nome. Já há um ano que esse processo está em curso. Cada vendedor terá imagens de casas (fotografias) que poderá mostrar aos clientes, casas já construídas ou concre­tizáveis. Deixa de haver catálogo. Haverá um dossiê com projec­tos de construção. As fichas serão apresentadas com imagens das casas sem qualquer nome, serão casas com estruturas adaptáveis por exemplo, talvez com urna proposta de plano susceptível de alteracões. Para cada cliente será criado um dossiê de projecto de const;ução. Nada será imposto à partida. É um trabalho muito semelhante ao do arquitecto. É preciso corresponder à motivação das pessoas que querem fazer as suas escolhas. Todos os constru­tores apostam na casa personalizada, estão conscientes de que a procura evoluiu." Assim, o facto de o mote da "personalização", que há muito se impôs ao nível bancário em relação ao crédito, se venha agora aplicar também , sob o efeito da crise, ao próprio produto, contribui inevitavelmente para reforçar de forma considerá­vel a coerência e eficácia simbólica do dispositivo comercial imple­

mentado pelas empresas.

Esta diversificação não é exclusiva de uma estandardização evi­dente dos produtos da mesma empresa e de uma hornogeneização dos produtos de empresas que ocupam posição vizinh as no campo. É o que diz, com clareza, uma vendedora de Kaufman and Broad: "Em relação aos concorrentes, é tudo igual ( .. . ). Ternos as mesmas empresas, utilizamos os mesmos materiais e depois tenta-se ofere­cer um extra qualquer ... ". Se o primeiro efeito resulta directamente da necessidade técnica de baixar os custos, o segundo parece ser, pelo menos em parte, resultado da concorrência que leva as maio­res empresas a oferecer aos seus clientes os produtos capazes de rivalizar com os que registam maior êxito entre os concorrentes mais directos (na circulação de informação um papel determinante cabe, sem dúvida, aos próprios clientes, que, ao utilizar o que sou­beram junto de um construtor para confron tar outros, transmitem aos vendedores os argumentos de venda utilizados pelos concorren­tes). O facto de as empresas concorrentes se estarem permanente-

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mente a espiar ou a plagiar59 entre si, ou recorrerem a um ali­viamento mútuo de quadros ou vendedores que funcion a corno 11ma transferência de capital técnico incorporado, contribui sem dúvida para o surgimento quase simultâneo de modelos semelhan­I'CS nas empresas que ocupam posições próximas, corno Phénix, •m declínio , e Bouygues, em ascensão60

: por exemplo, a casa "GrandVolurne" que foi um grande sucesso da Maison Bouygues, quando do seu lançamento, em 1984, an tecipou-se ligeiramente à casa "Spacio" que, na mesma época, foi um estrondoso fracasso para a Phénix.

Mas, na prática, nestas lutas a curto prazo em que se roubam mutuamente ideias, processos, pessoal, etc., os concorrentes com­prometem os trunfos que podem lançar na batalha, estando todo o passado da relação estrutural presente em cada momento desta relação -nomeadamente, no caso da r ivalidade entre Phénix e Bouygues, ntravés da própria estrutura de emprego no seio da empresa e I'Odas as form as de inércia e perturbações daí resultantes. Se nos cingirmos às tendências dom in antes, poder-se-à dizer que a crise levou ao triunfo da procura mais tradicional no plano técnico c estético: perpianho para as paredes, cavaletes industriais para o madeiramento, madeira para os exteriores (com janelas com pequenos vidros quadrados estilo "Ile-de-France", muito caras e 1 ouco sólidas). A retracção do mercado traduziu-se numa retracção

59 A sociedade Breguet-Construction fo i condenada em finais de 1973 por ter copiado modelos da sociedade americana Kaufman and Broad, apossando­-se assim a baixo custo de numerosos modelos que t inham sido durante muito tempo testados por Kaufman (cf. P. Madelin, Dossier I comme lmmobi!ier,

op. cit., p. 226; são referidos numerosos outros exemplos de processos, de ali­ciamento de quadros, de plágio de modelos).

60 U ma secretária comercial da sociedade Bouygues que anteriormente tinha trabalhado nove anos na Phénix e que o seu antigo director de vendas, que transitara da Phénix para Bouygues, fez admitir na Bouygues, explica: "Bouygues foi de alguma forma lançada pelo meu ant igo responsável local na Phénix ( ... ). O d irector regional da Maison Bouygues deixou a Phénix. Lan· çou então a Maison Bouygues Ile-de-France, que teve grande êxito, e levou com ele alguns dos colegas com quem trabalhava bem". Ela recorda ainda que muitos vendedores de Phénix que conhecia passaram para Bouygues.

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e dispersão social da clientela. Ora sabe-se que as maiores empre­sas industriais, e muho especialmente Phénix que dominava o mercado, tinham praticado uma política de produção em massa visando baixar os custos através da estandardização do produto e o crescimento de vendas com base na conquista das camadas sociais menos favorecidas (os grandes produtores nacionais, que concentram uma parte importante da produção de casas indivi­duais, construíam sobretudo casas de 4 a 6 assoalhadas, com uma superfície habitável de 50 a 120 m2 de área e sem cave, enquanto os construtores regionais ofereciam casas maiores, de 5 a 8 assoa­lhadas e de 110 a 120 m2

, com um preço por metro quadrado mais elevado). Como tal, a redução da procura das camadas com menos posses começou por atingir as empresas maiores em bene­fício dos construtores regionais, que sempre se dirigiram a uma clientela mais abastada61

• Os construtores especializados na "baixa gama" (Maison Phénix, Maison Mondial Pratic) reagiram tentando conquistar clientelas mais favorecidas . Mas, inversamente, as socie­dades importantes, que produziam sobretudo para uma clientela abastada, só puderam manter-se diversificando a sua actividade: é o caso de Kaufman and Broad, especializada na construção de "palacetes" para quadros e engenheiros, que teve que se lan­çar na construção de apartamentos, de escritórios, de residências para reformados; ou ainda a Société des Constructions Modernes Laguarrigue que, em 1982, construía sobretudo para uma clien­tela abastada e que, para tentar atenuar os efeitos da. crise e a diminuição da sua actividade, propõe casas menos caras para uma clientela mais modesta (com a gama Record de que o preço ini­cial era, em 1986, de 221000 F por 73m2 hab itáve is).

61 Uma análise dos pedidos de autor ização de construção apresentados na câmara de Taverny em Val-d'Oise permite constatar directamente a dominân­cia dos pequenos e médios construtores locais. Em 32 pedidos de constru­ção de casas individuais apresentados em 1984 e 30 apresentados em 1985 (e que representam menos de 20% dos pedidos de toda a ordem: constru­ção de edifícios, de lojas, demolições, etc.), só uma pequena fracção (menos de 25%) provém de construtores nacionais (Phénix, Bâti-Service, Maison Bou­ygues, Nouveaux Constructeurs e Alskanor).

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As estratégias da empresa como campo

Mas para avaliar de forma mais completa e precisa a relação d ' forças entre as empresas e a sua evolução ao longo do tempo, 1 l ll · seja, as estratégias a que recorrem para a alterar ou manter, !l omeadamente face à redistribuição de oportunidades determinada p ' la crise, impõe-se uma mudança de escala e passar do campo das •mpresas tomadas no seu conjunto a cada empresa em particular que, pelo menos no que respeita às grandes, são unidades relativa­mente autónomas funcionando também como campos. Na verdade, l1 óbvio que a empresa não é uma unidade homogénea susceptível de ser considerada como um sujeito racional, o "empreiteiro" ou o "gestor", or ientada para uma função objectiva única e unificada. Ela é determinada (ou orientada) nas suas "escolhas", não apenas pela sua posição na estrutura do campo de produção, mas tam­hém pela sua estrutura interna que, produto de toda a sua histó­ria anterior, continua a orientá-la em relação ao presente. Dividida ' m sectores virados fundamentalmente para a produção, a investi­gação, o marketing, o financiamento, etc., .é composta por agentes cujos interesses específicos estão ligados a cada um destes sectores e respectivas funções , e que podem entrar em conflito por múlti­plas razões, em particular pelo poder de decidir sobre as orienta­ções da empresa. As suas estratégias são determinadas através de inúmeras decisões, pequenas ou grandes, ordinárias ou extraordiná­rias, que, em cada caso, são o produto da relação entre, por um lado, os interesses e decisões associadas a posições na relação de forças no seio da empresa e, por outro, a capacidade de impor os seus interesses ou decisões, por sua vez dependentes do peso dos diferentes agentes envolvidos na estrutura, ou seja, do volume e estrutura do seu capital. O mesmo é dizer que o "sujeito" que por vezes se designa como "política da empresa" mais não é do que o campo da empresa ou, mais precisamente, a estrutura da relação de forças entre os diferentes agentes que dela fazem parte ou, pelo menos, de entre estes, os que detêm maior peso na estrutura e que assumem na decisão uma parte proporcional ao seu peso indi­vidual. Os estudos de caso destinados a estudar a génese de uma decisão são quase irrelevantes sempre que não têm em conta as

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manifestações extraordinárias do exerctoo do poder, ou seja, o dis­curso e as interacções, ignorando a estrutura das relações de força entre as instituições e os agentes (frequentemente organizados em corpo) que lutam pelo poder de decisão, ou seja, as disposições e os interesses dos diferentes dirigentes e os trunfos de que dispõem para os fazer triunfar.

As estratégias dos dirigentes envolvidos na luta de concorrên­cia no seio do campo do poder de uma empresa e as perspecti­vas do futuro, previsões, projectos ou planos, que tentam impor dependem nomeadamente do volume e da estrutura do seu capi­tal, mais de carácter económico (acções, etc.) ou mais de carácter escolar, e, particularmente a este nível, do género de capital esco­lar que detêm e também da posição - ligada às propriedades pre­cedentes - que ocupam na empresa (director financeiro, d irector comercial, director do pessoal, engenheiro de produção, etc.). Se tivermos em conta que, nas maiores sociedades, e mais burocratiza­das, a orientação no sentido de uma ou outra das funções deter­minantes da empresa, financeiras, comerciais, técnicas, está estreita­mente ligada ao tipo de capital escolar que possui, e, como tal, a trajectórias sociais e escolares geradoras de d isposições específicas (e­também de capital social, ligado à pertença a determinados corpos), compreende-se que as lutas que se desenrolam no seio das equi­pas dirigentes por ocasião das decisões ordinárias ou extraordiná­rias, e muito especialmente quando das crises de sucessão, devem muito à preocupação dos d iferentes d ir igentes, e, através deles, os diferentes corpos (engenheiros de Minas ou Civis, inspectores de Finanças, antigos HEC, etc.), em promover actividades a que estão ligados e dessa forma manter ou melhorar a sua posição perpe­tuando ou transformando o equilíbrio entre as funções a que os seus interesses andam ligados.

É assim que podemos compreender as estratégias das diferen­tes empresas envolvidas na luta pelo domínio do mercado da casa individual e, em particular, das maiores, como Maisons Bouygues e Maison Phénix, se tomarmos em conta todo o seu historiai social e em particular a evolução, no interior de cada uma delas, das rela­ções de força entre as diferentes categorias de dirigentes - que, logo que têm o poder para tal, podem sacrificar os "interesses" da empresa à

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Rllllsfação dos seus interesses no seio da empresa. Para compreender, por •1wmplo, as razões ou as causas que fizeram com que a Maison l1ht n ix, como u m barco vogando na d irecção errada, perseverou lltltto tempo, apesar da crise que a atingia, na orientação que lhe 1 nha sido dada pelo seu fundador, seria necessário refazer a h istória dtt evolução da estrutura das relações entre os que, no quadro dos dirigentes, se empenhavam na luta por manter o rumo e os que, p •lo contrário, pretendiam levar a empresa numa outra direcção.

A partida, a Maison Phéntx, uma pequena sociedade de enge­llh ·iros que trabalhava principalmente para a Électricité de France, 1 >'gistou um rápido crescimento e, no final dos anos 90, encon-11'1\va-se numa situação de quase monopólio no mercado da cons­II'Ução industrial de casas individuais. Se o seu declínio só é ~ l· n s ível a partir de 1980, os sinais percursores fazem-se notar tnuito antes, desde meados dos anos 70, quando a Maison Phénix 1 •ve que fazer face a uma crise de sucessão. Após a reforma de André Pux, que tinha a legitimidade e autoridade do fundador ("quando ele d izia: «vai-se continuar a fazer as casas como dan­k s, não alteramos nada», as pessoas rião se atreviam a r ipostar"; t HI "«Comecem por ganh ar dinheiro, depois então terão o direito ti • falar>>, ele tinha autoridade para o dizer"), os grupos financei­t'o · não tardaram a assumir o controle do capital. O novo PDG, ltoger Pagezy, engenheiro de M inas, é o representante de um grande grupo, Pont-à-Mousson. C laude Pux, o fi lho do fundador, que lançou, a partir de 1965, o sector comercial da sociedade, mas que não tem nenhum título académico de prestígio nem, ao que parece, a protecção do pai, tenta apoiar-se nas filiais regio­nais para se impor junto do PDG. Mas a autonomia das suas fi I i a is, inicialmente encorajada (49% do seu capital foi vendido 110 seu PDG, enquanto 49% se destinavam à sociedade-mãe e 2% cabiam a C laude Pux), fo i depois restringida (os presidentes das (iliais regionais serão subst ituídos e o grupo resgatará em 1982 o HCLI capital). Os efeitos da crise de sucessão são tanto mais graves 1uanto ela surge num momento em que os concorrentes estão a

desenvolver-se, apostam em importantes investimentos publicitários • ocupam cada vez mais terreno.

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Saída do fundador, . crise de sucessão, conflitos entre sede e filiais regionais, crescimento da concorrência, declínio geral da acti­vidade no ramo a partir de 1980, são outros tantos factores que levam, nomeadamente, a uma perda de confiança na empresa, no valor dos seus produtos. O revés registado pelo modelo "Spacio", pro­posto por Phénix, no mesmo momento em que o modelo "Grand­-Volume" de Bouygues, embora técnica e financeiramente muito semelhante, averba um grande sucesso, não pode ser d issociado de todo o universo das relações no seio da empresa (em que os sin­dicatos fizeram a sua aparição, em meados dos anos 80): enquanto o "espírito da casa" decrescia abruptamente na Phénix, onde os vendedores "desmoralizados" pareciam já não acreditar no seu produto, na Bouygues, os vendedores, sujeitos a um controle muito aper­tado ("estão mais em cima de nós", d izia um dos que tinha saído de Phénix) e aderindo mais fortemente à sua empresa, mostravam­se mais "agressivos" e eficazes. Através das estratégias comerciais (a aposta no tradicional - a "casa do pedreiro" na Bouygues em con­traposição ao moderno envergonhado da Phénix) e da disposição dos que estão encarregados de as executar, e em particular dos ven­dedores, é toda a política social da empresa, as relações entre os serviços comerciais e os serviços encarregados da publicidade e da investigação, etc., que de alguma forma se transmitem às práticas, com as consequências conhecidas. O que prova que é de facto a empresa na sua totalidade, com a sua estrutura e a sua h istória, e, através dela, toda a estrutura e história do campo, que estão pre­sentes, em cada momento, em cada uma das estratégias, irredutí­veis ao decretado na hora por um decisor racional.

À crise de sucessão seguir-se-ão muitas outras e a Phénix aca­bará por andar de reorganização em reorganização, de dificuldade em dificuldade. Em 1979, Saint-Gobain-Pont-à-Mousson cede 45% da sua participação no capital da sociedade a vários investidores de que o mais importante é entretanto a Companhia Geral das Águas, o que leva a mudanças na equipa dirigente. Em 1984--1985, nova reorganização. Maison Phénix regista numerosos reve­zes, nomeadamente nas suas diferentes tentativas de desenvolvi­mento ou de compras de ,sociedades no estrangeiro (a que terá aliás que renunciar). Todos os trunfos específicos que lhe permiti-

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nltn ocupar uma pos1çao dominante no campo, o capital técnico (o processo de construção relativamente económico a que devia o seu sucesso, depois desqualificado pelos concorrentes), mas também o capital simbólico que, tanto no interior da empresa como fora, representava a autoridade e legitimidade do fundador, o espírito de empresa fortemente enraizado e a confiança no produto, foram pouco a pouco enfraquecendo sem que ninguém tenha sabido ou podido inventar e mais ainda impor os novos trunfos que uma reconversão do modo de produção poderia gerar. Sem dúvida por­que qualquer inovação técnica ou comercial teria implicado uma alteração profunda da hierarquia das diferentes funções e dos dife­rentes sectores da empresa, nomeadamente técnica e comercial, e como tal uma redefinição revolucionária dos sistemas de interesses associados às diferentes posições.

Assim, o espaço diferenciado e estruturado da oferta, ou seja das empresas de produção de casas (ou dos seus agentes, desde os dirigentes aos vendedores) que, para manter ou melhorar a sua posição na estrut ura, devem desenvolver estratégias de produção - e como tal produtos, casas - e de comercialização - nomea­damente publicidade - elas próprias dependendo da posição que os seus trunfos lhe asseguram, mantêm uma relação de homolo­gia com o espaço diferenciado e estruturado da procura, ou seja, o espaço dos compradores de casas. O ajustamento da oferta e da procura não é o resultado de uma milagrosa agregação de inúme­ros milagres obra de entes racionais capazes de concretizar as esco­lhas mais conformes aos seus interesses. Contrariamente às aparên­cias, nada há de natural nem evidente no facto de os compradores com menos posses recorrerem às sociedades que oferecem produ­tos mais medíocres, sobretudo esteticamente, enquanto os outros se dirigem "espontaneamente" para as empresas que ocupam no espaço dos produtores de casas posições homólogas à sua posição no espaço social, ou seja, para os produtores e produtos mais ade­quados a satisfazer o seu gosto de conforto, de tradição, de ori­ginalidade, em resumo, o seu sentido de distinção. Se este ajus­tamento se dá é porque a correspondência entre as características sociais dos compradores e a das empresas, e como tal dos produ-

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tos, do seu pessoal, e em particular dos seus ·vendedores (as socie­dades que oferecem ~asas consideradas de baixa gama . à clientela menos favorecida - operários, empregados - têm os vendedores com menor nível de escolaridade, que são frequentemente antigos operários), ou das suas formas de publicidade (estreitamente liga­das ao nível social da clientela, ela própria frequentemente ligada à posição da sociedade no campo), está na origem de uma suces­são de consequências estratégicas no essencial não voluntárias e semi-inconscientes. E somos assim levados a substituir o mito da "mão invisível", elemento fulcral da mitologia liberal, pela lógica da orquestração espontânea das práticas, baseada em toda uma rede de homologias (entre os produtos, os vendedores, os compradores, etc.). Esta espécie de orquestração sem chefe de orquestra está na base de inúmeras estratégias que poderemos considerar sem sujeito, porque são mais inconscientes que propriamente desejadas e calcu­ladas, como a que consiste, para um vendedor, em identificar os seus interesses com os do comprador ou apresentar-se a si próprio como garante da transação ("tenho uma igual") - e que não seria concebível, e menos ainda eficaz em termos simbólicos, a não ser com base numa afinidade, garantida pela similitude das posições, entre os habitus dos compradores e dos vendedores.

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Anexos

I - Entrevistas

1. Dois "novos proprietários"

O Sr. e a Sra. P., que moram desde 1977 numa casa Phénix num loteamento composto por 134 casas em Perray-en-Yvelines, na região parisiense, são desses "novos proprietários" que, d ispondo 11penas de um capital económico muito baixo mas de um capital ·ultural e escolar relativamente mais elevado, adquiriram terreno e l'asa recorrendo a vários créditos. O Sr. P., nascido em Tarbes, de um pai que foi sucessivamente pintor de edifícios e depois encar­r ·gado de entregas de um armazém, veio para a região parisiense porque não encontrava trabalho na sua zona; a sua mulher nasceu na Bretanha, sendo os seus pais porteiros de edifícios. Alugaram um apartamento durante os três primeiros anos de casados mas t'iveram "sempre o objectivo de comprar uma casa, uma casa indi­vidual". O Sr. P., com 35 anos aquando desta conversa (em 1985), possuía um CAP de electricista e um CAP de especialista em motores diesel e ocupou diferentes postos na indústria automóvel, na C itroen, na UNIT, depois na IVECO, e por fim na Renault Véhicules lndustriels onde é electricista de automóveis; a Sra. P., que tem 32 anos e fez a secundária sem chegar a obter o bacha­rclato, foi secretária durante onze anos numa sociedade imobiliária. Aquando do nascimento da sua filha, agora com 2 anos de idade, deixou de trabalhar; pensa retomar o trabalho logo que a criança vá para a escola.

No momento da compra, os seus recursos só lhes permitiam uma escolha restrita; foram "parar" à Phénix em Coignieres. Os outros proprietários do loteamento são na sua maioria gente de 'Stratos sociais idênticos e, noutra conjuntura ou noutro mercado,

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teriam fracas possibilidades de vir a ser propnetanos; são operários "suficientemente abastad"os", empregados de escritório, dos Correios, de bancos, de companhias de seguros, alguns quadros médios e téc­nicos, um professor; dois colegas do Sr. P. vivem também no lotea­mento. As casas foram rapidamente vendidas, em duas semanas, em 1977; os vendedores "não tiveram que empurrar" os clientes.

O Sr. e a Sra. P. procuraram casa durante bastante tempo, andaram "por todo o lado", visitaram exposições de casas, a Feira de Paris; tinham todas as revistas da especialidade, pediam docu­mentação: "Eram sobretudo catálogos meramente descritivos, não referiam sítios, a localização da casa". Dispondo de poucos bens pessoais (cerca de 40 000 FF em 1976), precisavam de encontrar um terreno e uma casa que não fossem demasiado caros. Se tivessem comprado primeiro o terreno, e depois de alguns anos a casa, isso teria sido "difícil, porque implicava duas vezes empréstimos": "Entre nós, dizíamos: «Se contrairmos um empréstimo para comprar um terreno, já não teremos dinheiro para comprar a casa., E como é preciso construir num prazo de três a quatro anos, não conseguía­mos. Tratava-se, então, de encontrar qualquer coisa em que tudo fosse ao mesmo tempo, o terreno e a casa."

Foi-lhes proposto um terreno na Gallardon: "Não quisemos, era num canto perdido, havia apenas um comboio de manhã, um à noite, mesmo que entretanto já lá haja alguma coisa construí­da. Assim acabámos na Phénix em Coigniêres. E lá, disseram­nos: «Não temos terreno na zona, não temos nada, mas se quise­rem, dentro de um ano vamos construir um aldeamento de casas Phénix em Perray-en-Yvelines.» Bem, para nós, eram 15 quilóme­tros mais abaixo (que Trappes, onde desejariam viver), mas está bem." Seis ou sete meses mais tarde, receberam "uma carta convi­dando-os a ir à Phénix em Coigniêres", propondo-lhes que viessem ver a casa-modelo. Foram então à Phénix mas não compraram no primeiro dia. É o Sr. P. que conta: "Propuseram-nos quatro assoa­lhadas ao lado do desvio da auto-estrada. Tínhamos lá ido antes, tínhamos andado a ver tudo, o terreno, e dissemos: «Não quere­mos ao pé da auto-estrada>>, a inda não estava feita, só havia um aterro ( ... ); nas plantas não se via nada, bem quase nada, via-se apenas uma linha, e ninguém dizia que era um. desvio da nacional

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10 que tem bastante movimento. O único terreno que nos propu-8cram, era esse perto do desvio. «Não há outros?,, perguntámos. Havia outros com terrenos um pouco esquisitos, que também não queríamos ( ... ). Portanto, nesse dia, não havia nada. Então, voltá­mos depois, e propuseram-nos cinco assoalhadas. Mas nós, à par­tida queríamos quatro assoalhadas, e ficávamos com uma de cinco assoalhadas que não queríamos ... ". E acrescenta: "Enfim, estava bem situada, era perfeita, mas havia uma assoalhada a mais. Bem, à 1 artida era uma pouco mais cara." A casa com o terreno custava 270 000 FF em 1977: "O preço base não era nada caro", sublinhou a Sra. P. e o marido concordou: "Relativamente às outras não era ca ra". Entretanto, o preço que irão pagar de facto será bem mais elevado: "Mas, atenção, vamos desembolsar o dobro!".

Tudo estava feito de forma a dar-lhes a sensação de que esta ·asa era "barata". Aquando da reserva, em 1976, apenas tiveram que pagar 2 500 FF. "Podíamos desistir, e perdíamos exactamente 500 FF do processo. Portanto, d igamos, não era arriscado", explica o Sr. P. Sendo as suas disponibilidades de 40 000 FF, precisavam de pedir empréstimos. O Crédito predial concedeu-lhes um emprés­timo "da ordem dos 126 000 FF"; t inham ainda 50 000 FF numa conta de poupança habitação. "E depois, porque isso não chegava", pediram também um empréstimo à sociedade onde trabalhava a Sra. P., de 50 000 FF. Um antigo colega do Sr. P. que tinha com­prado uma casa Phénix dizia estar "satisfeito". Assim o Sr. P. não tinha ide ias preconcebidas desfavoráveis. "Tinham-nos" avisado que as casas Phénix, tinham "pouco isolamento, não eram resistentes porque eram de placas de betão, enfim prefabricado. Tudo isso me aborrecia um pouco", conta a Sra. P. que acrescenta pouco depois: "Mas para nós, à partida, não era cara, e num local que nos con­vinha." E o Sr. P. concretiza: "Bem poderíamos querer outra coisa, mas não poderíamos pagar". Fazendo da necessidade virtude, con­cluíram: "Bom, não é pior que outra coisa qualquer". Trabalharam ambos muito para arranjar a casa: terraço, isolamento, vidros duplos, jardim com horta, relvar um terreno que inicialmente estava a mato. Evidentemente, "as casas estão demasiado próximas umas das outras"; e eles lamentam o mau isolamento das paredes, a reduzida dimensão da garagem, a falta de uma cave e de um

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canto para a bricolage, o barulho da caldeira... A estação de com­boio fica longe: o vendedor tinha-lhes garantido que iria ser cons­truída uma nova gare em frente ao loteamento, mas ela foi r~cons­truída no local da antiga gare. O terreno em volta da casa é de má qualidade: aquando da construção, "retiraram a terra para a venderem e depois substituíram-na por entulho, todo o lixo que recuperaram", juntando apenas 10 em de terra vegetal. É-lhes bem mais difícil enumerar aquilo de que gostam na casa; pelo menos têm uma satisfação: a sua casa não é uma casa de catálogo, não existe no catálogo Phénix, foi expressamente concebida por um arquitecto para este loteamento.

Sabem que possivelmente irão ficar para sempre nesta casa, mas têm esperança de poder mudar dentro de cinco, seis anos, ter "outra coisa melhor". "O nosso objectivo, diz a Sra. P., é sem­pre ter uma casa só para nós"; "100 m 2 chegam", acrescenta o marido, que gostava muito de ter uma cave: "Para mim, é a liber­dade". Não querem mais casas Phénix, nem de construção indus­trial; "o ideal, seria mandá-la construir a um artesão, dizendo-lhe: «Eu, quero isto assim». E, se tiverem que recorrer a um constru­tor, serão mais "exigentes" do que da primeira vez.

O Sr. e a Sra. B., que compraram em 1980 uma casa Bâti Service num loteamento composto de 40 casas, em Essarts-le-Roi, não longe da floresta, perto de Rambouillet, fazem igualmente parte destes "novos compradores" de propriedade, que, situando-se embora no sector à esquerda do espaço social, dispõem de mais capital eco­nómico e sobretudo de mais capital cultural e escolar do que o Sr. e a Sra. P. Com 30 anos de idade no momento da nossa conversa (em 1985), o Sr. B. nasceu na Argélia, onde o seu irmão era mili­tar de carreira - "o equivalente a um agente de autoridade supe­rior"; chegou a França em 1962; depois dos estudos secundários e superiores na Escola Nacional de Estatística e de Administração Económica (ENSAE), entrou como engenheiro na EDF em Paris. Os seus pais (a sua mãe é secretária) "tinham apostado nos estu­dos" dos filhos: o seu irmão é méd ico, a sua irmã enfermeira. A Sra. B., que nasceu na Tunísia, tem a mesma idade que o marido: filha de um responsável de uma pequena PME, fez um mestrado

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em informática na universidade, a que se seguiu o Instituto de Administração de Empresas e é engenheira numa grande sociedade privada. Casados há quatro anos, têm duas meninas e desejam ter um terceiro filho "daqui a dois anos".

Tendo inicialmente alugado um apartamento na periferia, decidiram, logo que t iveram "algum dinheiro de lado" (cerca de 120 000 FF): "Vamo-nos abalançar, vamos comprar qualquer coisa." Não querendo optar pelos pequenos espaços dos apartamen­tos parisienses, nem por viver num prédio ("num prédio, nunca me sinto em casa, o facto de partilhar, de ter áreas comuns, tipo o elevador, não gosto muito disso", explica o Sr. B.) e tendo "decidido meter-se a caminho", começaram a procurar em Saint­-Quentin-en-Yvelines ou nessa região, "algo por volta dos 400 000 a 450 000 FF". Estiveram quase a comprar um projecto de Ricardo Bofill, mas no último momento desistiram, porque havia muitas ·oisas que não lhes agradavam: estrutura das divisões, falta de cave, etc. "Um dia vimos, num anúncio local de apartamentos, Les Essarts-le-Roi. C onhecíamos Les Essarts e gostávamos bastante.

omentámos entre nós: «Tem um problema, ainda assim ficamos mais longe do que em Maurepas para ir a Paris. >> De qualquer modo, fomos ver. ( ... ) Bom, não h avia lá mesmo nada! Estava tudo ainda só no plano. Havia uma grande cartaz Bâti Service e uma espécie de pequena caravana com uma senhora que se aborrecia mor­talmente lá dentro. T inha uma bela maquette." Após terem ido ver de perto uma casa idêntica à sua, decidiram-se em poucos dias. "No que respeita ao preço, era um pouco mais cara (520 000 FF) que o que rínhamos pensado, mas enfim, considerámos que podíamos aguentar 1 oupando um pouco." Obtiveram facilmente os empréstimos neces­S<hios, assinaram em 1980 e mudaram-se em 1981. O "canto" agra­dava-lhes, tinham "amigos". Sobretudo "agradou-nos muito estarmos verdadeiramente sozinhos ( ... ), e além disso podia-se fazer uma cer­cazita. Tínhamos então muitas ilusões, embora soubéssemos que em qualquer dos casos se tratava de um loteamento e havia problemas do tipo co-propriedade, mas bem menores do que num edifício".

A sua trajectória social, as deslocações sucessivas, a sua profis­são, levaram-nos sem dúvida a uma visão um pouco desencantada, funcionalista, da habitação. O que procuravam e lhes agradou na

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casa Bâti Service que compraram, é que era "algo funcional, qual­quer coisa de funciorial com divisões adaptáveis onde podíamos meter as coisas ( ... ); queríamos uma coisa clara, simples, fomos ver as casas Bâti Service, honestamente, não disseram: «é muito agra­dável, hein!» Disseram: «é bom, é sóbrio, é standard,". Mas entre­tanto não teriam ido para uma casa Phénix: "mais parece uma casa mécano em grande e penso que se degrada depressa".

O Sr. e a Sra. B. acompanharam de perto a construção da sua casa, o que lhes permitiu evitar algumas desilusões no momento da entrega: foi assim que repararam que a janela da cozinha tinha sido esquecida e colocada na garagem. Quando disseram ao respon­sável da obra que se tinha enganado, ficou furioso; entretanto, dois dias depois, tudo estava onde devia. Tiveram muito menos proble­mas com erros de construção do que a maioria dos outros pro­prietários do loteamento. Por exemplo, um vizinho tinha um cano entupido obstruído e foi preciso perfurar a cozinha com martelo pneumático. Mas mesmo assim houve numerosos incidentes: restri­ções de electricidade para todos nos dois primeiros meses, garagens inundadas num dia de tempestade, parqueamentos tão pequenos e mal concebidos que geram numerosos conflitos, paredes intei­ras com o papel a descolar-se, sem falar dos problemas dos cães - "entre os cães que ladram e os cães que urinam (risos), há cães por todo o lado". As dificuldades no momento da instalação, os conflitos com o construtor contribuíram para favorecer uma certa forma de solidariedade, de entre-ajuda, mas pouco a pouco as rela­ções degradaram-se, as tensões cresceram. O Sr. e a Sra. B. tenta­ram ficar de fora das "histórias de vizinhança", da rede de convi­tes, mantendo-se entretanto "bem com toda a gente, mas de forma superficial". Os outros proprietários são em geral casais um pouco mais velhos que eles, à volta dos 35-40 anos, na sua maioria com dois filhos, "uma população maioritariamente de funcionários ou do sector público; muita gente da Renault, alguns da EDF, dos PTT, da administração de Impostos, Polícia (. .. ), quadros médios e agentes de autoridade, em muitos casos trabalham os dois".

O Sr. e a Sra. B. sabem bem que não irão ficar toda a vida neste loteamento: dentro de quatro anos aproximadamente, pensam ir embora e gostariam de não voltar para um loteamento. "Quero

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li ma casa independente com um muro à volta. Ponto final. Preferia uma coisa totalmente individual", declara o Sr. B., enquanto a sua mu lher deseja que essa próxima casa não seja demasiado isolada, demasiado afastada das escolas nem do centro. Gostariam de ficar no mesmo "canto"; do poLltO de vista estético, preferiam a "velha rasa feita de boa pedra", mas as casas modernas "são mais funcio­nais. Temos a certeza de que tudo corre bem porque não há sur­presas. E depois, como perspectiva, se pudermos ser nós próprios a fazer os planos, é uma expenencia bastante interessante. Então não sei. Estou um pouco hesitante ... ".

2. Capital técnico e tendências ascéticas

O Sr. e a Sra. R. e os seus três filhos vivem numa casa cujos planos foram desenhados pelo Sr. R. e que ele próprio construiu, num terreno que o seu pai e o seu avô tinham comprado nas coli­nas de uma cidade mineira da região de Aix-en-Provence. Originário de uma família de mineiros e criado pelos seus avós que trabalha­vam ambos na mina - a sua avó trabalhava com a peneira, na lim­peza do carvão -, o Sr. R., com 35 anos de idade, é chefe de equipa na mina. "Estou no fundo, na extracção; faço carvão, naturalmente ·om os meios modernos de agora, mas enfim a mina será sempre a mina." O seu pai também trabalhou cinco anos na mina antes de se instalar, no regresso do seu cativeiro, numa grande cidade vizi­nha, onde inicialmente ocupou um lugar num escritório num ser­viço de cobranças antes de abrir uma drogaria por sua conta.

O Sr. R. acumulou durante vários anos um capital técnico diversificado; entre os 16 e 30 anos, foram pelo menos cinco os

AP que preparou e obteve nos centros de formação da mina. "Se começarmos do início, fui mecânico (em garagens). Depois, fiz o CAP de pintura, depois um CAP de desenhador industrial, a ~eguir um CAP de mineiro, CAP de fogueira e, posteriormente, fiz um CAP de electromecânico. Foi isso que me permitiu trabalhar em electricidade, chumbo, aquecimento ... e para além de tudo isto, faço de pedreiro em casa." "É estranho, dá para pensar, com todos esses CAP que ele tem, devíamos ser milionários (risos) porque eu,

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Page 58: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

não tenho mesmo nada! Nada, nada, não tenho u m único CAP", exclama a Sr. R. que provém de uma família bastante modesta de repatriados da Argélia, nunca exerceu qualquer profissão e cria os seus três filhos de catorze, seis e cinco anos.

Após ter vivido nos seis primeiros anos do seu casamento em HML62 numa ZAC63 de uma grande cidade vizinha, e posterior­mente numa casa destinada a trabalhadores perto da mina onde não pagavam aluguer, o Sr. R. começou a construir a sua casa. Graças a um forte capital técnico, em simultâneo com tendências ascéticas que partilha com a sua esposa ("tanto ele como eu, somos formigas", diz a Sra. R.), conseguiu realizar o seu projecto, com um capital económico de partida muito baixo: cerca de 40 000 FF, e sem recorrer ao crédito. "Com 40 000 FF, ainda se faz muita coisa, sabe. Na época, o perpianho era a 1,74 FF e assim podia-se comprar 5 000 ou 6 000 unidades; e com isso já se pode fazer duas casas como esta. Assim, compramos o indispensável para começar a casa ( .. . ). Inicialmente, com as primeiras economias, fiz a fossa sanitária, os alicerces, ergui as paredes do rés-do-chão e comecei a levantar as do primeiro andar. Digamos, por alto, que com este dinheiro consegui tratar de todo o perpiano e do grosso da obra, sem contar com a marcenaria e tudo isso." Durante cinco ou seis anos, fizeram o máximo de economias possível para poderem comprar o material necessário para a construção. "À medida que ele trabalhava, o dinheiro entrava, economizávamos e recuperáva­mos os gastos", explica a Sra. R. Tendo decidido "fazer tudo pela casa", não voltaram a comprar nada que não fosse indispensável. "Não comprámos nem um prato, mesmo nada, quer dizer apenas comida, dois pares de jeans e duas camisolas por ano. Digamos que, durante cinco anos, apostámos tudo na casa, mas em relação ao interior, porque no que respeita ao exterior, é o meu marido que o está a fazer, e agora privamo-nos de bem menos coisas que

62 Sigla de habitação de aluguer módico. Habitações construídas por ini­ciativa dos poderes públicos destinadas a famílias com baixos rendimentos. (N. do T.)

63 Zona arranjada e equipada por uma organização pública para ser pos­teriormente cedida a entidades públicas ou privadas. (N. do T.)

116

dantes." O Sr. R. fez praticamente tudo na sua casa, com excep­~· · o do estuque nos tectos, a escada e o aquecimento central pela "hoa razão" que teria precisado de quatro ou cinco meses para o fn zer e isso teria atrasado a entrada na casa.

A construcão da casa, que custou um total de 220 000 FF, exi­j.tiu economia; rigorosas mas talvez mais ainda um considerável inves­ti menta em tempo. "Quando estava a construir a minha casa, fazia d •zoito, dezanove horas de trabalho por dia. Por vezes, levantava­·me às 3.30 h da manhã e trabalhava, até às 9.30 h da noite, sem interrupção, apenas com um intervalo para uma sandwich entre o meio dia e as 2 horas; foi assim durante três anos. E nunca falhei, Incluindo sábados e domingos, incluindo o Natal e o Ano Novo." Nisto, o Sr. R. não é "uma excepção, não, porque quem trabalha 11 a mina, de qualquer forma, em princípio, mata-se a trabalhar, não ~ problema. Se não for assim, não vai para a mina". Era preciso investir muito tempo para fazer os trabalhos; e também para esco­lher os artesão contratados para os trabalhos de que o Sr. R. não ~c podia encarregar ou para arranjar materiais de boa qualidade ao preço mais baixo possível. ''Antes de avançar a contratar uma pes­Hoa, já tínhamos gasto nisso uns dois meses. Então este... e este e aquele, antes do mais informávamo-nos, para saber se o artesão, se prestava para alguma coisa, não fosse ele ter que refazer o traba­lho três vezes por não estar em condições. Nem era uma questão de dinheiro, mas uma perda de tempo", explica o Sr. R. acrescen­rando depois: "Nós discutimos sempre os preços com os empreitei­ros, tanto um como outro, ela porque é pied-noi'J"Õ\ e eu porque sem­pre fui assim, a gente tenta sempre arranjar-se." Mas, no caso da pavimentação, "não se consegue ganhar muito, talvez uns 10% no máximo, e isto calculando os menos caros, andando à procura por todo o lado, metendo o nariz em todos os cantos. Isso exige muito rempo e, no fim de contas, não se ganha grande coisa. Mas tentá­mos sempre ter bom material, que não fosse muito caro, enfim o

menos caro possível".

64 Francês de origem europeia que viveu na África do Norte, em part i­cular na Argélia, até à independência. (N. do T.)

117

Page 59: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

É evidente que s~ sentem actualmente muito satisfeitos com a casa: "A verdade é que a nossa casa tem uma história, cada ele­mento da nossa casa tem uma história, enquanto as pessoas que compram uma casa assim, «chaves na mão>>, como se diz ... ", e a Sra. R. não termina a frase, plena de subentendidos. Um pouco mais tarde dir-nos-á, entretanto, que obter um crédito pagável em vinte anos para comprar uma casa, é demasiado, e sobretudo "não é honesto" porque "paga-se a casa quase três vezes".

"Ou então, acontece também, o pai e a mãe trabalham muitas vezes para fazer face às d ívidas, e os filhos infelizmente... Olhe, ali o meu mais velho, acaba de chegar da escola, são 3.20 h, ele sabe que a mãe está, e regressa a casa." A casa, "estamos orgulho­sos, poderíamos falar-lhe dela durante horas".

A história da sua casa é inseparável da história da família. A sua construção foi planeada há muito; sempre "falaram dela"; e o Sr. R., desde "bem pequeno", sabia que iria construir a sua casa neste local para viver. Queriam que "as crianças viessem" antes que a Sra. R. fizesse 30 anos; os encargos com a casa e os encar­gos com a educação dos filhos, particularmente pesados na fase da adolescência, não se far iam sentir ao mesmo tempo. O tempo· das privações maiores passou; por vezes vão ao restaurante: "rara­mente, mas acontece, com os nossos filhos, porque estamos tão habituados a ter os fi lhos connosco que, mesmo para ir a algum lado, levamo-los sempre. É assim connosco, é que moralmente, somos uma família e fazemos questão de continuar a sê-lo . Isso é muito importante para nós. Os nossos filhos pertencem-nos, e nós aos nossos filhos, e à casa, e somos todos um mundo", explica a Sra. R. Quando, após seis anos inteiramente consagrados à cons­trução da casa, partiram de férias para a Córsega, foi em família para um aldeamento turístico; saiam de manhã pelas 9 horas para a pesca e as outras pessoas do aldeamento turístico nem os viam. "Na verdade, é uma id iotice, mas é assim, não participámos de todo - com excepção do mais velho que foi dançar uma ou duas noites - na vida do a ldeamento, precisamente porque nos bastáva-

. " mos a nos mesmos. A organização interna da casa foi prevista em função do

futuro, da velhice: o quarto e a casa de banho serão em baixo

118

para quando já não puderem subir a escada. A reforma que o Sr. R. pedirá aos 53 anos, esperam poder ainda aproveitá-la para via­jar e "ter uma vida a dois" que nunca tiveram, porque quando se 'onheceram a Sra. R. já tinha um filho do primeiro casamento. Raciocinam sempre numa "perspectiva de futuro"; pensam já em dividir o terreno em três para mandar construir em cada parcela uma casa para cada um dos filhos ou para que os seus filhos a possam aí construir. É verdade que "actualmente, o trabalho, exige que as pessoas se mudem", e possivelmente os seus filhos não pode­rão morar ali, mas "o certo é q ue gostaríamos que os nossos miú­dos tivessem mesmo assim uma casa, um tecto onde se abrigar".

119

Page 60: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

11 - Quadros estatísticos

Proprietários e locatários de casas e de apartamentos

~~~no~~~~rooroN~~~o~-ro~~ ~o~~~~~~~-cicicici~~~~~~0~~~~~ri~~riri~ri~~ri~~ci~~~

.. ' ~ooo~~~ro~N~~oro~~~~ooo~ oo ~o~~~~N~oooT~~ r ôôôôóN~N~~ro~N~~~~~N~~~~~~~~NôN~~~ôO

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Divisão por diploma

Proprietário

casa individual apa rtamento I

ldf Prov. F r. ldf Prov. F r.

Sem diploma 17,7 28,5 27,3 11,4 20,4 17,0 :EP 46,5 48,1 47,9 32,9 42,2 38,8

ll EPC 14,3 9,5 10,0 15,6 14,5 14,9 Hac 7,2 5,8 5,9 12,4 9,2 10,4 I)UT 4,0 3,5 3,5 5,0 4,3 4,6 Li cenciat ura 8,0 3,1 3,7 16 ,9 6,4 10,3 (. )urros 2,2 1,5 1,6 5,8 3,0 4,0

Total 100 100 100 100 100 100

Divisão por rendimento

Proprietário

casa individual

Idf Prov. Fr.

<29 999 F 3,5 5,6 5,4 30-49 999 F 7,3 10,8 10,4 50-64 999 F 5,3 9,8 9,3 65-79 999 F 4,6 9,6 9,! 80-99 999 F 8,2 12,7 12,2 100-119 999 F 7,8 12,6 12,1 120-149 999 F 15,2 16,1 16,0 150-199 999 F 22,0 13,6 14,5 200 e + 26,1 9,1 10,9

Total 100 100 100

- efectivos nulos * efectivos fracos IdF: Ile-de-France Prov.: Província Fr.: toda a França

aparta tn ento

ldf Prov. F r.

3,5 5,1 4,5 4,9 10,3 8,3 6,2 9,3 8,2 6,9 10,6 9,2

10,5 12,8 11,9 8,4 9,4 9,1

14,8 14,8 14,8 18,0 16,6 17,1 26,7 ll,O 16,8

100 100 100

Locatários Conjunto

casa individual aparta tnento

ldf Prov. F r. ldf Prov. F r.

23,6 34,0 33,3 22,1 31,5 28,5 27,0 37,8 40,4 40,2 35,6 39,3 38,1 42,6 11,4 10,9 10,9 14,7 12,2 13,0 11,7 10,8 5,8 6,2 10,9 7,9 8,9 7,6 4,5 3,1 3,2 4,2 3,9 4,0 3,8 7,8 4,7 4,9 8,0 3,6 5,3 5,2 4,0 1,0 1,2 3,6 1,5 2,1 2,1

100 100 100 100 100 100 100

Locatários Conjunto

casa individual apartamento

Idf Prov. Fr. ldf Prov. Fr.

4,2 7,3 7,1 4,3 9,1 7,6 6,2 7,3 14,4 13,9 7,7 16,5 13,7 11,7 9,3 12,9 12,7 10,9 15,9 14,3 11,3 5,9 12 ,2 11,8 12,0 13,5 13,0 10,8

12,3 16,3 16,0 13,8 14,9 14,5 13,4 10,4 11,9 11,8 11,0 11,0 11,0 11,3 17,6 10,6 11,1 16,1 10,8 12,5 14,1 17,0 8,2 8,8 13,3 5,7 8,1 12,0 15,9 6,0 6,7 10,8 2,5 5,1 9,2

100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Inquérito do INSEE, 1984. Quadros realizados a nosso pedido.

121

Page 61: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

lll -A Feira da Casa Individual*

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* O esquema e a legenda são retirados do Guide de visite du Salon, 1985, pp. 6-7.

122

A Feira da Casa Individual, onde estão representadas as sociedades, grupos 1111 empresas que querem ocupar um lugar no mercado, com um espaço em lji'i"a l proporcional ao seu peso no campo, faculta uma espécie de materializa­~· ) d irectamente legível do campo de produção (amputado, naturalmente, das pl'quenas empresas artesanais) e da estrutura da oferta. Assim, em 1985, os maiores construtores, Phénix, Maison Bouygues, GMF e Bruno-Petit têm gran­dt·s stands, próximos uns dos outros, num local central da feira. As sociedades médias estão fortemente representadas, as mais pequenas são em geral remeti­das para os stands mais pequenos e para as zonas periféricas. Há, entretanto, duas excepções: uma sociedade média, Sergeco, que só constrói na Ile-de-France, ol'upa um stand importante, perto da Phénix e da Maison Bouygues (está numa 1:1se de expansão e pretende aumentar a sua visibilidade; recentemente expôs 11ma casa num local pouco habitual, na gare de L'Est, e apresenta stands em diferentes linhas do RER6', etc.). Os promotores são pouco numerosos, natu­ra lmente porque preferem recorrer a outros tipos de iniciativas. Por detrás da r •ira, os representantes das administrações: Ministério do Urbanismo, da Habi­tação e dos Transportes, Electricidade de França; as organizações profissionais,

NSFA (União Nacional dos Sindicatos Franceses de Arquitectura), UNCMI (União dos Construtores de Casas Individuais), Avocats Services. Os bancos e organismos de financiamento estão relativamente dispersos, uns nas traseiras, outros em posições mais centrais. Q uanto às revistas especializadas, na sua maioria ocupam apenas pequenos stands (com uma excepção, L'lndicateur 13ertrand, que dispõe de um stand mais importante).

l:ONSTRU T OR ES T 28 M;1isons C:mdct VENDA DE LOTES

AJM Construct ions p 19 M;li:;on Cévénolc N. ~ Central Tcrnl in s COCIM

I' 5 A LRIC Sociéré N 7 Maison:~ Chalct Ideal 11 lmobcl S. A .

A R VI S.A. p 14 Maisons C oprcco

I' 2 BATCO Société T 37 Mai::;ons C osmos.Scmibat MATERIAIS

N 19 Batisscurs d 'Armor T 18 M<tison:; de J·a Avcn ir A t l<uuic

r 26 BATIVOLU ME T 42 Maiso n du G .S.C.l.C. Placoplatrc

r 14 Beauce Perchc Constructio n Mai8ons btelle S U RC HISTE Sodété

I' •I UERVAL T 8 M:dson évolutivc - C ofra Tuiles et Briq ucs d e Fr01 ncc

I' 21 Bizzozzcro r 18 Maison Familialc

r 8 Breguet Construct io n T 25 M:1iso ns France Con fo rt O RGA N ISMOS

C<1 rd S. A. p 13 M aisons G oe land S. A. DE FINA NCIAMENTO

N 13 Ca ro n et Chamho n p I7 M:1ison Isola T 50 CIRC I

T 5 C:~scel C onst ruct ion s N 10 Maisons Kitcco 9 Com pto ir d cs En"trcprcneu rs

N 9 Clcvcrtc Maison Lo1ra (SOCARE L) ,f C rédit Agricolc

N 16 Conscructeurs p 6 Maison~ LcliCn c T 29 Crédit Fo ncicr de F ra nce

des Rêgio n s de Fr:1nce p l M:d sons Lcon Grossc T 17 FICOFRANC E

N 17 CO.RE.LA N 14 Mai!'ons Mctllut N 2 G.R.E.P. Caísse Epargnc ECUREUIL

I' 20 C.TR. N 20 M:1 isons P;1scal M:~ nta M inistCrc eles P.T.T.

N 15 C.T.V.L Connructions T 38 M:1isons Phé n ix S.A.C .l.A.C.

rraditíOiu,cllcs d u V:~l de Loirc N li M;~ isons Pres to·Co n fo r t

T 39 Donn:~ Constructio n s ' l Maiso ns Pu ma T 21 T 21 U.C.O. U n ion

E.ntn.l ::ri<e Ú 1m l..'I" (S.ES. Dumcd N 16 Ma i sons Rousillo n d e crédit pour le h:it im cnt

T 4 Ma i sons ilr un o-Pctit p 7 M:d son SIC

65 Metro regional q ue serve país e arredores. (N. do T.)

123

Page 62: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

ESTR UTUR AS SOC I AIS D A ECO NOM I A

Capitulo 11

O Estado e a construção do mercado1

A procura com que os produtores devem contar é ela pró­pria um produto social. Tem como base os esquemas de percepção e de valorização socialmente constituídos

I ' socialmente alimentados e reactivados por acção dos publicitá­l'ios e de todos os que, através das publicações femininas e das l'l'Vistas dedicadas à casa, particularizam, reforçam e adaptam as I' XJ ectativas em rnatéria de habitação, dando como exemplo a sua lll' tc de viver, e também por acção das instâncias estatais que l'ontribuem de forma muito directa para orientar as necessidades Impondo normas de qualidade (nomeadamente através das instân­rlas locais, arquitectos de departamentos, DOE, conselheiros de lll'quitectura, etc.). Mas o que a caracteriza realmente, é que ela é l'm grande medida produzida pelo Estado. De facto, os constru­tores, nomeadamente os maiores e os bancos a que estão ligados, dispõem de meios, bem mais poderosos do que a simples publici­dude, para a moldar; podem nomeadamente influenciar as decisões políticas passíveis de orientar as preferências dos agentes encora­jando ou contrariando mais ou menos as preferências iniciais dos potenciais clientes através de medidas administrativas que tenham romo consequência impedir ou favorecer a sua concretização. Na verdade, poucos mercados serão, tanto como o da habitação, não 11penas controlados mas de facto construídos pdo Estado, muito espe­dalmente através da ajuda concedida aos particulares, que varia

1 Este capitulo está baseado num artigo que apareceu em A ctes de la recher­dte en sciences sociales (81-82, Março 1990): P. Bourdieu e R. C hristin, "La cons­l'ruction du marché" (pp. 62-85).

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Page 63: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

no seu volume e modalidades de atribuição, favorecendo mais ou menos uma ou outra categoria social e, dessa forma, este ou aquele segmento de construtores.

A "política da habitação": dos grandes empreendimentos à casa individual

É assim que, nos anos 60, se impõe uma política neoliberal no sentido de reconciliar os que, de acordo com uma antiga tradição, vêm no acesso à propriedade de uma casa individual uma forma de amarrar os novos proprietários à ordem estabelecida, garan­tindo a cada um "o direito individual à aquisição de um patrimó­nio mínimo", como escreve Valéry G iscard d 'Estaing em Démocratie française, e aqueles que, denunciando embora por vezes a política e a mitologia da "casa particular", não propõem qualquer medida concreta visando ultrapassar as vulgares alternativas entre habitação individual e habitação colectiva, com apoio da comunidade, nacio- . nal ou local, e confusamente associado ao colectivismo.

A criação, em Setembro de 1966, de um mercado hipotecário que abria aos bancos a possibilidade de oferecer créditos a longo prazo e reduzir a entrada inicial, no mesmo momento em que novas modalidades de intervenção eram oferecidas às instituições financeiras, bancárias ou outras (criação da conta poupança-habita­ção, empréstimos especiais diferidos do crédito imobiliário, substi­tuídos em 1972 pelos empréstimos bonificados à habitação, alon­gamento dos empréstimos bancários-CCF a médio prazo, créditos à promoção de habitação, etc.) favoreceu um financiamen to ban­cário massivo da construção que beneficiou sobretudo os grandes construtores: enquanto em 1962 os bancos só contribuíam com 21,7% do crédito à habitação, a sua parte elevou-se em 1972 para 65,1%, e inversamente a parte do sector público descia de 59,7% para 29,7% e a dos prestamistas de carácter não financeiro de 18,5% em 1962 para 5,2% em 1972.

Phénix, a mais antiga das sociedades de construção imobiliária, criada em 1945, só alcança um volume de produção anual signifi­cativo (cerca de 200 casas) a partir de 1960; a maioria dos cons-

126

I rutores aparecem nos anos 60 e, logo no início da década, come­~·am a organizar-se para tentar convencer os poderes públicos a r 'tomar uma política favorável à habitação individual. Assim, em 1961, o PDG da sociedade Phénix junta no SMI (o Sindicato dos

onstrutores de Casas Individuais, que dará lugar à U n ião Nacional dos Construtores de Casas Individuais) um pequeno número de 'mpreiteiros que "acreditam no desenvolvimento da casa individual". ~m 1962 é constituída, com o apoio do SMI, o CIMINDI (Comité Interprofissional da Casa Individual), destinado a apoiar todas as Iniciativas profissionais que vão no sentido do desenvolvimento da construção de casas individuais. O SMI participa na elaboração de textos que regulamentam a profissão (como a lei de 16 de Julho de 1971) e age como grupo de pressão, nomeadamente junto dos pre-8identes das câmaras, com o objectivo de demonstrar a necessidade de, em alternativa aos grandes conjuntos habitacionais, promover uma política de desenvolvimento da casa individual. Em 1968, estes profissionais conseguem um aliado e porta-voz na pessoa de Albin ' halandon, ministro do Equipamento, que define como objectivo

acelerar o desinvestimento d() Estado (que se iniciou em 1966, com <1 criação do mercado hipotecário, etc.) e fazer entrar a habitação na lógica do mercado, favorecer o acesso à propriedade (promo­vendo os créditos à habitação, alargando os empréstimos à habita­<,:ão a novas categorias ·de beneficiários e colocando terrenos para construção à d isposição dos construtores), limitar a construção dos grandes edifícios (circular de 30 de Novembro de 1972) e encorajar a produção de casas individuais (nomeadamente lançando, a 31 de Março de 1969, um concurso internacional da casa individual).

As empresas de construção por catálogo desenvolvem-se rapida­mente no decurso dos anos 70, apoiando-se nas facilidades ofereci­das à clientela pelos sistemas públicos de crédito e graças à redução da entrada inicial exigida: enquanto a construção por encomenda (a uma pequena empresa, a um arquitecto, etc.) exige uma forte capa­cidade de poupança, a construção por catálogo beneficia da mais elevada percentagem de empréstimo e da entrada inicial mais baixa. A lei de 16 de Julho de 1971, que reorganiza o conjunto das profis­sões ligadas ao sector imobiliário, instituiu o contrato de construção da casa individual, garantindo aos potenciais clientes um conjunto

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Page 64: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

de garantias relativamente às sociedades construtoras e oferecendo, em simultâneo, novas possibilidades de intervenção aos estabeleci­mentos bancários que dão a sua caução aos con st rutores e estabe­lecem relações estreitas com os maiores de entre eles. Vemos assim que a relação de forças entre as grandes empresas industriais e as pequenas ou médias empresas que coexistem no mesmo mercado, dependem da "política de habitação" e, em particular, das regras que regem a ajuda pública à construção e a concessão de créditos, desta forma introduzindo formas de arbitragem en tre os diferentes intervenientes no campo da produção.

Crónica da génese de uma política

O mercado da habitação é apoiado e controlado, directa e indi­rectamente, pelos poderes públicos. O Estado fixa as suas regras de funcionamento através de toda uma regulamentação específica que vem juntar-se à infra-estrutura jurídica (direito de propriedade; direito comercial, direito do trabalho, direito dos contratos, etc.) e à regulamentação geral (congelamento ou controle dos preços, enquadramento do crédito, etc.). Para compreender a lógica deste mercado, construído e controlado burocraticamente, impõe-se des­crever a génese das regras e regulamentações que definem o seu funcionamento, ou seja, fazer a h istória social deste campo circuns­crito em que se defrontam, corri armas e objectivos diferentes, os funcionários públicos superiores com competências na área da habi­tação, construção ou finanças e os representantes dos interesses pri­vados no domínio da habitação e do financiamento. Na verdade, é no quadro desta relação de forças e de luta entre, por um lado, os agentes e as instituições burocráticas investidos de diferentes pode­res e frequentemente concorrentes e com interesses de corpo por vezes antagónicos e, por outro, as instituições ou agentes (grupos de pressão, lobbies, etc.) que intervêm no sent ido de fazer triunfar os seus interesses ou os dos seus mandatários, que se definem, na base de antagonismos ou de alianças de interesses e de afinidades de habitus, as leis que regem o mundo do imobiliário. As lutas para alterar ou conservar as representações legít imas que, uma vez

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investidas da eficácia simbólica e pratica da regulamentação oficial, 1 odem de facto determinar as práticas, são uma das dimensões fundamentais das lutas políticas pelo domínio dos instrumentos de poder estatal, ou seja, generalizando a fórmula de Max Weber, 1 elo monopólio da violência física e simbólica legítima.

Para compreender a "política do Estado" nas diversas áreas a seu ·argo, será necessário saber quais as diferentes posições que se apre­~entam relativamente ao problema em causa e as relações de força entre os respectivos defensores; será necessário também conhecer quais as tendências de opinião da fracção mobilizada e organizada dos "fazedores de opinião" (polít icos, jornalistas especializados, publicitários, etc.) e dos grupos de pressão (organizações profissionais, patronais, ~indicais, associações de consumidores, etc.), tendo sempre presente que o inquérito sociológico mais não faz do que registar o resul­tado, num momento determinado, de um trabalho político, para o qual os próprios técnicos superiores da função pública contribuíram c cujos efeitos se poderão reflectir sobre eles mesmos.

A esfera do funcionalismo público superior é o local de um permanente debate em torno da própria função do Estado. Os funcionários que fazem parte das organizações burocráticas vira­das para uma ou outra das grandes entidades estatais (ministérios, direcções, serviços, etc.) tendem a afirmar e a defender a sua exis­tência defendendo a existência desses organismos e empenhando­-se no cumprimento das suas funções. Mas essa é apenas uma das bases dos antagonismos que dividem o campo da função pública e que orientam as grandes "escolhas" políticas, nomeadamente em matéria de habitação. Para justificar que os "poderes públicos" tenham "escolhido", no caso da habitação, coordenar a produção e distribuição através de uma regulamentação administrativa em vez de deixar agir as forças do mercado, é preciso nomeadamente ter em con sideração, em primeiro lugar, as representações sociais, implícitas ou object ivadas no d ireito ou na regulamentação, que impõe que sejam assegurados a todos determinados serviços insubs­t ituíveis; e, em segundo lugar, as imperfeições e as falhas da con­corrência e da lógica do mercado que, num determinado estádio da consciência social sobre o tolerável e o intolerável e a defini­ção de necessidades legítimas, impõem uma intervenção destinada

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a proteger os interesses dos utentes contra uma inaceitável discri­minação iJnposta pelos preços. Pode-se assim considerar que a pro­dução de um bem ou de um serviço tem tanto mais hipóteses de ser controlada pelo Estado quanto mais esse bem ou serviço for considerado como indispensável pelo que poderemos designar como opinião mobilizada ou actuante (por oposição à ideia corrente de "opi­nião pública") e o mercado falhar nesse domínio.

Se o campo do funcionalismo público superior dispõe de uma indiscutível autonomia, baseada nas suas estruturas objectivas, tra­dições e regras próprias e nas competências dos agentes, a ver­dade é que as r ivalidades que aí se manifestam se devem em grande medida às pressões, determinações ou influências externas. De facto, cada um destes agentes ou grupo de agentes tende a apoiar-se, Para impor a sua perspectiva política - e fazer passar os seus interesses específicos -, nas forças externas ou seus porta-vozes no seio das instâncias representativas (assembleias parlamentares, comissões, etc.) e a recorrer, de forma mais ou menos consciente, às represetltações que os agentes sociais produzem individual ou colectivamente. Para compreender, de facto, o que significam estas representações, importa descrever a acção dos agentes e instituições que, tanto dentro como fora da administração, contribuíram para que o direito à habitação fosse considerado como um .dos direitos fundamentais (com a lei de 22 de Junho de 1982, parte 1, artigo 1): reformadores sociais associacões familiares, s indicatos, partidos, investigadores em ciên~ias soci;is, etc. Na verdade é a lm~ga his­tória de todas est as iniciativas reformadoras que levou à "política de habitação" tal como esta se concretizou, num dado momento, num certo número de instituições (regulamentos, organismos espe­cializados, formas de ajuda financeira, etc.), objectivação provisória de uma d~terminada relação de forças estrutural entre os diferen­tes agentes ou instituições interessados que actuam no sentido de conservar Gu transformar o statu quo nesta matéria.

Ao faz~r incidir este estudo no período de 1974-1976, numa fase em que a "política de habitação" foi objecto de múltiplas refle­xões e ref()rmas (Livro branco dos HML, Comissão Barre, Comissão Nora-Even() e, em menor medida, Comité de habitat do 7.0 Plano), pretende-s~ focalizar um momento crítico, em que os antagonismos

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M' manifestam e é implementada a regulamentação que se man­t •ve em vigor até ao fim dos anos 80. Desde o início dos anos 70 que . a ideia de umá reforma da política da habitação anda no :1 r. O sistema de ajuda à construção ainda em vigor é dominado pela ajuda à edificação, ajuda financeira pública ao investimento de 11m mestre de obras, sob a forma de um empréstimo com condi­\'ôes muito vantajosas2

• Instituído com a lei de 3 de Setembro de 1947, este sistema de atribuição foi completado em 1948 por medi­das limitadas (designadas "subsídio de habitação") de ajuda à pessoa, uma ajuda financeira pública atribuída às pessoas para aligeirar as mensalidades de um crédito contraído para compra de habitação, c calculada em função dos recursos e da situação familiar3• Este sistema foi alvo de muitas críticas, apesar de diversificado e com­pletado ao longo dos anos por toda uma série de medidas com­plementares. São-lhe apontados alguns efeitos negativos, como a desigualdade social no que respeita à habitação, a insuficiente qua­l idade das novas construções e a degradação do parque existente. No fim dos anos 60, a necessidade de uma reforma parecia impor­·se de forma crescente nos "meios dirigentes", nomeadamente atra­vés das reflexões individuais ou colectivas que contribuem para os trabalhos das comissões dos 5.0 e 6.0 Planos.

É o caso, em 1965, da obra de C laude Alphandéry, Por uma twlítica da habitação; é o caso, em 1969, do Relatório Consigny, resul­tado do trabalho de uma comissão reunida a pedido de Albin ' halandon; e, ainda em 1969, da Comissão de habitação do 6.0

Plano, presidida por Claude Alphandéry. (Ao contrário de Pierre onsigny, de ora avante instalado em funções administrativas,

2 Antes da lei de 1977, que leva à prática recomendações da Comissão Barre, estes empréstimos t inha uma taxa fixa e por um período de quarenta c cinco anos. Depois de 1977, as taxas são indexadas, as anuidades progres­oivas e o período reduzido a trinta e quatro anos, tendo como contrapartida o aumento da ajuda à pessoa.

3 Após 1977, toda a nova habitação construída dá direito ao APL (Aide personnalisée au logement - Ajuda personalizada à habitação); aplicável tam­bém a algumas casas antigas.

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Claude Alphandéry desempenha ainda um papel importante em 1975 entre os inovadores: é" presidente da direcção da Construção no ministério do Equipamento.) Mas nenhum destes trabalhos põe verdadeiramente em causa o princípio da ajuda à edificação. A contribuição mais importante para a reflexão dos reformadores veio, em 1970, de dois jovens funcionários da direcção de Revisão do ministério das Finanças (na época dirigido por Valéry Giscard d 'Estaing), Yves Carsalade, de Engenharia marítima, e Hubert Lévy­-Lambert, engenheiro de Minas4• Ambos se baseiam num modelo de simulação matemática, o modelo Polo, que permite prever as consequências das decisões em matéria de habitação, para criticar o regime de apoio em vigor (as regras de atribuição dos HLM favore­cem as famílias mais abastadas em detrimento dos pobres; a ajuda pessoal seria menos cara para o Estado do que a ajuda à ed ifica­ção) e para defender um regresso à lógica do mercado associada a uma ajuda pessoal (ou mais precisamente, personalizada) variando em função do rendimento e da situação familiar dos beneficiários. Tudo leva a pensar que estes dois funcionários (que reencontrare­mos na análise estatística apresentada a seguir), mais do que um projecto político de transformação, tinham em vista, sobretudo, o objectivo puramente teórico de, a pretexto da habitação enquanto terreno de experimentação, construir um modelo que permitisse a simulação dos fenómenos económicos.

É somente entre 1971 e 1974 que os poderes públicos começam a concretizar todas estas propostas teóricas numa série de refor­mas: lei de Julho de 1971 que cria o subsídio social à habitação, reforma do financiamento em 1972, concentração dos empréstimos do crédito imobiliário nas famílias de rendimento médio, criação de empréstimos à habitação bonificados. Mas, como estas medidas deixam intactas as bases do sistema, a ajuda à edificação "modu-

4 Cf. Y. Carsalade e H. Lévy-Lambert. Nota em apêndice ao relatório do grupo "intervenções públicas" da Comissão de Habitação do 6.0 Plano, v. li, p. 175 ss.; H. Lévy-Lambert, "Modéle de choix en matiére de politique du logement", Revue d 'économie poli tique, 6, 1968, p. 938, e La Vérité des prix, Paris, Éditions du Seuil, 1969.

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lada" de acordo com o tipo de casa, o úi1ico efeito que tiveram foi aumentar consideravelmente a sua complexidade sem promover a eficácia. A crer em Pierre Richard, jovem engenheiro civil, a ideia que se ia espalhando era que a ajuda à edificação deveria ser aban­donada.

Constituída por uma aliança conjuntural entre jovens politéc­nicos que, tal como os seus antecessores Yves Carsala e Hubert Lévy-Lambert alguns anos antes, se esforçam por inventar for­mas mais eficazes e mais económicas de atribuição da ajuda estatal, e jovens da escola de administração que, partilhando a mesma preocupação de aligeirar a carga do Estado, pretendem fazer avançar uma perspectiva liberal, esta vanguarda tem que con­tar com uma burocracia de gestores que, empenhados em defen­ler os seus interesses específicos de posição e de corpo, se mos­

tram bem mais prudentes. Jovem inspector das Finanças (nascido em 1937, sendo seu pai advogado no Tribunal de Recurso), que mais tarde irá ocupar o lugar . de relator-geral da Comissão 'Barre, Antoine Jeancourt-Galignani está muito próximo dos jovens refor­madores do grupo de investigação e estudo para a construção e a habitação (GRECOH). Autêntico gabinete económico e financeiro da direcção da Construção, este organismo reúne, ao lado de um administrativo como Jacques Lebhar (nascido em 1946, de um pai técnico financeiro), uma maioria de politécnicos, como Georges

repey (nascido em 1943), que saiu da escola de engenharia em l967 e foi sucessivamente chefe do gabinete dos estudos económi­cos do GRECOH - até 1971 -, encarregado do serviço de estatís­tica e dos estudos económicos na DBTPC (direcção dos Edifícios, dos Trabalhos públicos e da Construção) e finalmente, em 1974, 1irector do GRECOH na direcção da Construção, que assu­mirá o papel, determinante, de relator adjunto (junto de Antoine Jeancourt-Galignani) da Comissão Barre, e que está também ligado ao responsável da Divisão de estudos sobre a habitação do INSEE, Pierre Durif, autor do modelo Alio para subsídio à habitação (e cujos trabalhos sobre o mercado da casa individual, aqui referidos, são muito considerados). Esta rede de investigadores e de serviços de investigação, que visam dar continu idade, dando-lhes uma forma

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mais concreta, aos trabalhos de Yves Carsalade e de Hubert Lévy­~Lambert, desempenha um papel determinante, conferindo aos pro­Jectos reformadores a autoridade da coerência e rigor dos modelos formais. (Diga-se de passagem que, contra o epíteto de "holista" lançado sempre que se dá alguma atenção às características sociais dos agentes, a abordagem aqui escolhida valoriza os indivíduos mas no quadro da sua plena dignidade enquanto agentes qu~ actuam em função das suas características sociais incorporadas - dos seus habitus -, e como ta l diferentes, e desiguais.)

Os debates que decorrem no interior do campo burocrático estão naturalmente relacionados com as discussões e conflitos exter­nos, a que os funcionários superiores fazem referência e em que se apoiam para ba~ear ou justificar as suas tomadas de posição e os seus projectos. E o caso nomeadamente da polémica em torno do movimento dos HLM. As reformas de 1972 (alteração do regime dos empréstimos bonificados, alargamento dos subsídios à habita­ção e medidas de apoio às casas antigas) não são suficientes para anu lar os inconvenientes da ajuda à edificação. Apesar da diversifi­cação das categorias de habitação, as famílias de menores recursos não podem aceder à habitação social, uma situação que traz reais vantagens a alguns dos seus beneficiários. Ao contrário do que se propunha, a multip licação de categorias de habitacão acentuou a segregação social e de local. Aquando do 35.° C~ngresso dos HML 00-13 de Junho de 1974), a União dos HML e 0 seu presi­dente Albert Denvers dão o sinal de alarme pelo estado de degra­dação da habitação social e avançam com uma série de medidas de aplicação imediata. Mas, três meses mais tarde, este esquema é abalado com a nomeação para a presidência da União, de Robert Lion, director da Construção.

"Já era uma aberração que um inspector das Finanças fosse para a direcção da Construção: mas que eu devesse assumir a respon­sabilidade pelo movimento dos HLM! ( ... ) Reagi. ( ... ) Tinha uma certa simpatia pelos HML ( ... ) Era de certo modo uma missão su i­cida. ( ... ) Havia um grande bloqueio, uma grande crispação. Cheguei aos HML no Verão de 1974. Percebi que nada iria mexer sem um

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tratamento de choque. Coloquei-me num lugar de opostçao em relação à política de habitação, de uma forma que foi conside­rada como pouco digna por muitas pessoas. Tivemos então a ideia de criar, em torno dos HML, um grande movimento de reflexão c, eu diria mesmo, de opinião. Não se sabia o que fazer com os IIML, impunha-se um projecto, e foi assim que, no Outono de 1974, lançámos, com grande estrépito, os grupos de trabalho que Iriam levar ao Livro branco e que precederam a Comissão Barre. A Comissão Barre surgiu como uma reacção, suscitada pelo Eliseu, e nomeadamente por Pierre Richard que detinha o pelouro da habi­ração no Eliseu." (entrevista, Paris; Janeiro de 1988)

Assim, entre Novembro de 1974 e Março de 1975, data do con­gresso dos HLM de Grenoble, 450 pessoas - sindicalistas, eleitos locais, técnicos de finanças, construtores pr ivados e representan­tes do movimento dos HLM - , organizadas em quatro comissões presididas por Jean Turc, C laude Alphandéry, Hubert Dubedout e C laude Gruson, debateram, em ambiente de grande efervescência, os problemas colocados pela . habitação social. Em Maio de 1974, a eleição para a presidência de Valéry Giscard d 'Estaing, cujo ministério tinha albergado as primeiras investigações econométricas sobre a habitação e que tinha assumido alguns compromissos neste domínio traz um reforco decisivo aos reformadores de orientação liberal. jean-Pierre Four~ade torna-se ministro da Economia e das Finanças, Robert Galley ministro do Equipamento, Jacques Barrot secretário de estado da Habitação, e Pierre Richard, engenheiro civi l, nascido em 1941, que tinha sido conselheiro técnico de Christian Bonnet, então secretário de estado da Habitação, torna­-se conselheiro técnico de Valéry Giscard d 'Estaing, no quadro da política de "liberalismo avançado" que o novo presidente irá levar à prática no primeiro período do seu septenato. Doravante encarre­gue dos problemas do urbanismo e da habitação no Eliseu, Pierre Richard está no centro das reflexões sobre a habitação entre 1974 e 1976. É ele quem propõe ao Presidente da República a constitui­cão de uma comissão "à inglesa" encarregada da reforma da habi­~ação, seguindo o exemplo da Comissão Sudreau; será igualmente ele a fazer a ligação entre o movimento dos HLM e a comissão.

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Face ao clima de efervescência no movimento dos HLM, as coisas precipitam-se: "Deram-ll-ie um impulso", dirá Robert Lion. Sabendo que não era do ministério do Equipamento que as inovações iriam partir, e que, entre o Equipamento e as Finanças, "haverá sem­pre guerra", Pierre Richard propõe que se faça "qualquer coisa de consensual", promover uma grande reflexão nacional sobre a habi­tação, em torno de uma comissão totalmente independente que, sem comprometer o Estado, pudesse auscultar todas as partes inte­ressadas, evitando todo o conflito aberto com o movimento dos HLM. A composição da comissão foi objecto, durante o Outono de 1974, de numerosas discussões entre Valéry Giscard d "Estaing, o seu conselheiro técnico Pierre Richard e o secretário de estado da Habitação, Jacques Barrot.

A Comissão Nacional para a Reforma da Habitação é criada ofi­cialmente pelo Conselho de Ministros de 22 de Janeiro de 1975, quase ao mesmo tempo em que é anunciada a publicação de um Livro branco dos HLM. A lista dos 10 membros da comissão, tor­nada pública à saída deste mesmo Conselho de Ministros, é criti­cada pela excessiva representação de técnicos de finanças. Os dois postos chave, o de relator-principal e o de relator-adjunto, são atri­buídos, o primeiro a Antoine Jeancourt-Galignani, antigo direc­tor do Financiamento da construção na direcção do Tesouro -neste caso em atenção ao ministério das Finanças - , o segundo a Georges Crepey, engenheiro civil, director do GRECOH - para tranquilizar o ministério do Equipamento -, mas este último, rom­pendo com a doutrina mais difundida no Equipamento, irá pôr em questão o sistema de ajuda à edificação. A primeira reunião de trabalho realiza-se a 28 de Fevereiro de 1975 (o Livro branco dos HLM está em vias de elaboração). A comissão trabalha com muita rapidez pois Raymond Barre consegue apresentar o seu relatório a 23 de Dezembro de 1975.

Ao que parece, de acordo com as entrevistas realizadas com os diferentes membros desta comissão, as "personalidades dominan­tes" eram Pierre Richard, que embora não tenha sido membro da comissão acompanhava de perto os seus trabalhos, dava nota deles ao Eliseu e tentava fazer a ligação com o movimento dos HLM; Pierre Durif, que assessorava os relatores na construção dos mode-

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los de previsão; Michel Mauer, promotor de Cogedim, que repre­sentava a iniciativa privada, enquanto Michel Saillard, director-geral da SCIC (Sociedade Central Imobiliária da Caixa de Depósitos) e porta-voz dos grandes programas de ajuda, defendia a ajuda à edi­ficação e Henri Charriere, director da planificação e dos estudos na Companhia Bancária, exprimia as posições do seu banco numa defesa pura e dura do mercado. Raymon Barre, que tacitamente se coloca ao lado dos jovens de vanguarda mas sem se manifestar aber­tamente, dá grande margem de manobra aos dois relatores que, ao fim de alguns meses, lhe apresentam um anteprojecto que pode apro­var pois está conforme às suas convicções de economista liberal.

A estrutura do campo burocrático

Tendo assim esboçado, nas suas grandes linhas, as iniciati­vas inovadoras que prepararam a reforma do apoio à habitação, podemos tentar determinar qual era, em 1975, na véspera desta reforma, a est rutura da distribuição de forças (ou dos trunfos) entre os agentes eficazes, ou seja, entre os indivíduos que têm peso bastante para orientar efectivamente a política da habitação, por­que possuem esta ou aquela propriedade actuante no campo. Uma vez definida esta estrutura, poderemos então avaliar se, às posições que os agentes (ou corporações) nela ocupam, correspondem, como poderemos deduzir, as respectivas tomadas de posição, nas lutas para conservar ou alterar as regras em vigor; dito de outra forma, e as d iferenças objectivas na distribuição dos interesses e dos trun­

fos podem explicar as estratégias adaptadas nas lutas e, mais pre­cisamente, as alianças e as divisões em campos5.

5 Graças à "neutralização" que resulta do afastamento no tempo, o inqué­rito sobre estruturas e interesses permanentes - ou seja sempre presentes e cscaldantes - pôde assumir o aspecto de uma questão h istórica sobre lutas passadas. Concordámos entretanto em citar apenas, tanto no texto como nos diagramas, os nomes dos funcionários superiores cuja participação neste pro­cesso reformador é do domínio público; os outros são apenas designados pelas primeiras letras do nome.

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Para definir a lista de indivíduos eficazes, procedeu-se por tenta­tivas, recorrendo, para a"lém dos critérios "de interesse" resultantes da análise das entrevistas e das declarações publicadas, aos crité­rios institucionais, como posições reconhecidas ao nível do poder. Seguindo um procedimento que sempre se impõe em situações semelhantes, só pudemos fugir a este "círculo hermenêutica" atra­vés de um constante vai-e-vem entre as orientações dos agentes socialmente designados como "importantes" e a explicitação dos princípios envolvidos na prática nesta orientação; o que a pouco e pouco possibilitou que esta assumisse uma precisão e um rigor que não tem necessariamente na prática: a delimitação do conjunto dos indivíduos eficazes - directores dos ministérios em causa, direc­tores de bancos, construtores, dirigentes de organizações profissio­nais, directores de escritórios de HLM, etc. - permitiu revelar os trunfos que lhes conferem esta eficiência, enquanto a determina­ção das propriedades actuantes obrigava, por seu lado, a definir a população dos agentes que, porque detêm essas propriedades, têm todas as hipóteses de ser eficazes.

No que respeita aos quadros superiores do funcionalismo público, considerámos assim um conjunto de altos funcionários ocupando posições estratégicas no espaço dos poderes em matéria de habitação. No ministério das Finanças, onde os funcionários que se ocupam da questão da habitação, são em número muito reduzido, considerámos os representantes dos serviços ligados às reformas: a d irecção do Tesouro, o gabinete A3, encarregado do financiamento da construção, a direcção do O rçamento, incluindo nomeadamente o gabinete 50, que tem a seu cargo a habitação e o urbanismo, a direcção do Planeamento.

No ministério do Equipamento, criado em 1966 e constituí­do por estruturas centrais e locais muito complexas, considerá­mos a direcção da Construção, encarregada da gestão da ajuda à

edificação (e a esse título responsável por 400 000 habitações em 1974), da tutela dos mestres de obras (HLM, sociedades mistas) e da elaboração do quadro jurídico da construção. Estão ligados a esta direcção o Grupo Permanente pela Recuperação da Habitação Insalubre (GIP), a Agência Nacional para o Melhoramento da

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Habitação (ANAH), que se encarregam da reabilitação das casas ·~ntigas, o Plano de Construção, d a autoria de Robert Lion, des­tinado a impulsionar a investigação e inovação na habitação, o

rupo Habitação e Vida Social (para os grandes conjuntos), o erviço das Q uestões Económicas e Internacionais (SAEI) e o

G rupo de Investigação e Estudo para a Construção e Habitação (GRECOH) criado por volta de 1968-1969, encarregue dos estudos visando definir uma nova política: gabinete económico e financeiro da direcção da Construção, está em ligação com as organizações financeiras, a Caixa de Subsídios à Família, etc.

O utro serviço do ministério do Equipamento, a direcção do Ordenamento do Território e do Urbanismo (DAFU), que regula­menta a construção (planos, esquemas, autorizações de construção), 1 responsável pelas novas cidades, as ZAC, as empresas de renova­·ão urbana e de recuperação imobiliária e controla a política imo­biliária (zonas de ordenamento d iferido, reservas imobiliárias); as d irecções dos departamentos do equipamento (ODE), serviços exter­nos do ministério do Equipamento de que os engenheiros civis têm praticamente o monopólio. Entre os serviços ligados ao pri­meiro-ministro, considerámos o Comissariado Geral do Plano e da I rodutividade, o G rupo Central das Novas C idades e a Comissão Nacional das Operações Imobiliárias e da Arquitectura.

No Ministério do Interior, a d irecção-geral das colectividades locais exerce uma tutela sobre as colectividades locais e sobre os escritórios de HLM que lhes estão ligados; a DATAR, ligada ao ministério do Interior após a eleição de Valéry Giscard d 'Estaing, tem um papel na descentralização, renovação rural (com os contra­tos de região), a promoção das pequenas cidades.

A direcção da Arquitectura, anteriormente ligada ao ministério da C ultura, onde tinha um papel muito importante (velava pela aplica­ção da lei Malraux nos sectores protegidos), fo i ligada ao ministério do Equipamento no início dos anos 70, e posteriormente fusionada com a direcção do Urbanismo, ficando doravante os arquitectos na dependência dos engenheiros civis. No ministério da Saúde, a direc­ção da Segurança tem a seu cargo a tutela da Caixa de subsídios à família que garante a gestão dos subsídios à habitação.

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Do lado do sector parapúblico ou semipúblico, considerámos a Caixa de depósitos e consignações, a SClC e um certo número de estabelecimentos públicos de ordenamento ou sociedades de economia mista, o Crédito Predial de França, a Agência dos Empreiteiros e o Movimento dos HLM que, em 1975, reunia mais de 100 organizações, agrupadas em cinco categorias: os serviços públicos de HLM, criados por iniciativa de uma autoridade local e que oferecem habitações para alugar; os serviços públicos de orde­namento e de construção; as sociedades anónimas de HLM, que oferecem casas para alugar e casas para comprar; as sociedades coo­perativas de HLM, prestadoras de serviços, que asseguram a gestão dos empréstimos aos que lhe têm acesso; a Sociedade de Crédito Imobiliário de França, que oferece empréstimos para acesso à pro­priedade ou melhoramento do habitat. A instituição HLM, que está muito ligada à direcção da Construção, ainda que pouco presente nas lutas pela definição da política de habitação, salvo em relação a reivindicações pontuais, reagiu vivamente, através do seu presidente, Albert Denvers, deputado socialista do Norte, contra a sugestão de certos grupos do 6.0 Plano no sentido de reintroduzir a habita­ção social na economia de mercado. No fim de 1974, Robert Lion torna-se delegado-geral e dá nova vida ao movimento.

No sector privado, considerámos a União Nacional dos Constru­tores de Casas Individuais que, fundado em 1961, com o nome de Sindicato dos Construtores de Casas Individuais, por iniciativa de André Pux, PDG da sociedade familiar Phénix, assume como missão convencer os poderes públicos a regressar a uma política favorável à habitação individual e participa na elaboração de tex­tos orientadores da profissão e intervém em todas as instâncias de concertação, grupos administrativos, comissões parlamentares, fede­rações profissionais da construção civil, tanto a nível central como regional e local, defendendo a reorganização dos circuitos de finan­ciamento e a atribuição do desenvolvimento urbano às colectivida­des locais (em ruptura com os "grandes conjuntos" e o urbanismo "dirigista"); os construtores civis mais activos nas lutas em torno da política de construção (cerca de 550, estão agrupados na Federação nacional dos construtores civis e produzem 100 000 casas por ano, das quais dois terços com ajuda do Estado); os estabelecimentos

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bancários mais envolvidos que assumem parte crescente (29% em 1965, 54% em 1972) do financiamento da habitação: o Crédito Agrícola e o Crédito Mútuo, incluindo quatro caixas locais inter­v(!m ao nível do empréstimo directo às famílias, concedem emprés­l'imos à habitação convencionados e dão o seu apoio às sociedades de HLM. Considerámos igualmente três estabelecimentos bancários 'Specializados, a União do Crédito para a Construção, o Banco pa ra a Construção e Equipamento e o Banco para a Construção e Trabalhos Públicos.

Seleccionamos ainda os representantes dos proprietários, a União Nacional da Propriedade Imobiliária (UNPI) que luta contra 11 lei de 1948 do congelamento das rendas e pretende o regresso no mercado livre de alugueres; o movimento dos senhorios - a ' onfederação Nacional da Habitação (CNL), cujo presidente é ' laude Massu, autor de uma obra intitulada Le droit au logement

(Éditions sociales) que recomenda a manutenção de uma regula­mentação e o alargamento do aluguer de casas; movimentos de inquilinos, a União Nacional dos Subsídios à Família (UNAF) e a União Departamental das Associações Familiares (UDAF), muito ligada às caixas de subsídios familiares locais.

Por último considerámos os eleitos locais envolvidos no movi­mento dos HLM (em 1976, 128 deputados e senadores, 700 con­selheiros regionais ou membros dos comités económicos e sociais regionais participavam na gestão ou na direcção de organismos de HLM) ou pertencendo a conselhos de administração de outras orga­nizações de construtores (sociedades de economia mista por exem-1 lo) que, de alguma forma (participação em comissões, especializa­ção nas questões de habitação, etc.) contribuíram para influenciar a política de habitação.

Para caracterizar cada uma das personalidades, teve-se em conta a idade, sexo, local de nascimento, origem social, estado civil (e o número de filhos), estudos secundários e superiores, condecora­ções, o corpo e o sector de pertença, participação em diferentes comissões especializadas, informações que foram retiradas de entre­vistas com os interessados ou de diferentes fontes de informação e ainda de diversas obras com análises ou testemunhos (cf. biblio­grafia em anexo, p. 169).

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Para tentar ultrapassar a pura descrição a que se cingiram as mais úteis análises do funcionamento das organizações burocráticas, queríamos propor aqui um verdadeiro modelo explicativo das estraté­gias individuais e colectivas. Tendo em conta o conjunto dos agen­tes eficazes (indivíduos e·, através deles, instituições) e o conjunto dos atributos - ou trunfos - que estão na base da eficácia da sua acção, podemos conseguir, com a análise das correspondências6,

que utilizada desta forma, nada tem do método puramente descritivo que nela pretendem ver os que são contra a análise de regressão, que revele a estru­tura das posições, ou, o que vem dar ao mesmo, a estrutura da distribuição dos poderes e dos interesses específicos que determina, e explica, as estratégias dos agentes e, dessa forma, a história das principais intervenções que levaram à elaboração e à concretização da lei sobre a ajuda à construção.

De facto, a análise das correspondências faz ressaltar uma pri­meira oposição previsível (o primeiro factor representa 6,4% da inér­cia total) entre os funcionários superiores da função pública, ou seja, o campo da burocracia propriamente dita, e as forças sociais exter­nas com as quais deve contar, representantes dos interesses priva­dos, como os construtores civis (e em particular os porta-vozes do UNCMI e do Comité Interprofissional da Casa Individual), os ban­queiros, mas também os eleitos locais ou nacionais dedicados às questões da habitação, os responsáveis regionais da área da habitação (como os directores dos organismos públicos de ordenamento das novas cidades, etc.) ou ainda os responsáveis de instituições orienta­das para a gestão social da habitação (como os directores de escritó­rios de HLM ou os responsáveis de Caixas de subsídios à famíl ia).

Oriundos muitas vezes de famílias que já pertencem à função pública superior e tendo frequentado os estabelecimentos de ensino secundário mais destacados (Janson-de-Sailly) e as maiores escolas, os altos funcionários do Estado, mandatados por instituições buro­cráticas (direcção do Tesouro, direcção da Construção, etc.) cujos interesses partilham, nomeadamente através da solidariedade corpo-

6 Cf. H. Rouanet e B. Le Roux, Analyse des données multidimensionneUes,

Pari, Dunod, 1993.

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t'lltiva, detêm um capital de competência específico ligado à sua for­mnção escolar mas também e sobretudo à experiência burocrática n ·umulada no decurso da sua trajectória na administração supe­l'ior. Os agentes situados no outro pólo têm em comum o facto d · estarem de fora da função pública superior e de, na sua maio­r·ia, não possuírem os diplomas escolares muito especiais de que tiS funcionários superiores são detentores (ainda que na sua maio­ria tenham feito estudos superiores).

Nas posições intermédias encontram-se, nomeadamente, os res­ponsáveis de bancos públicos e privados, frequentemente ligados por solidariedades de escola e de corporação, que, nalguns casos, 1>cuparam sucessivamente - no quadro de uma certa facilitação -posições de ambos os lados do espaço. É o caso, por exemplo, de Antoine Jeancourt-Galignani que, após ter desempenhado, como vimos, um papel determinante na preparação das novas medidas, •nquanto director do Serviço de Financiamento da Construção •, posteriormente, relator-geral da Comissão Barre, participará na ·oncretização destas medidas na qualidade de representante do ' rédito Agrícola; de C laude Alphandéry, inspector das Finanças

que, após ter presidido à Comissão de Habitação do 6.0 Plano, se ·ncontra na direcção do Banco de Construção e dos Trabalhos Públicos e como PDG do grupo Imobiliário de Construção; de Jcan-Pierre Fourcade, ministro da Economia e das Finanças no governo de Chirac que era anteriormente PDG do grupo ban­cário C IC, filiado na Companhia Bancária do Suez; ou ainda de Mareei Diebolt, antigo prefeito de Paris, que ocupa a presi­dência da Sociedade de Apoio à Construção Imobiliária (SACI) c do Banco para a Construção e Equipamento, etc. A interliga­ção entre o funcionalismo público superior e o sector semipúbl ico ou privado é particularmente forte no sector bancário, podendo a mesma instituição - a companhia bancária por exemplo - ser representada por responsáveis situados em diferentes posições do plano superior.

Este primeiro factor clarifica a estrutura fundamental do espaço social em que se concretiza esta forma tipicamente burocrática de consulta que é a comissão: o campo burocrático só pode cumprir a função de legislador defrontando, de acordo com processos de que detém o

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Para os resu ltados e as fontes de análise, ver Anexos

controlo, os representantes oficiais dos interesses oficialmente reco­nhecidos que, mesmo quando se trata de autoridades públicas regio­nais ou locais, eleitos locais ou nacionais ou legítimos representantes de organizações profissionais ou de associações, os coloca no mesmo plano dos interesses particulares, privados, empurrando-os assim para uma postçao subordinada relativamente aos detentores oficiais do monopólio da definição legítima do interesse geral. Como responsá­veis pela composição do grupo de participantes, onde podem fazer

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' ntrar, ao lado dos inevitáveis representantes das organ izações pro­fissionais, individualidades que se prontificam a apoiar as suas ini­·iativas, e estando em condições de impor as regras que orientam a

discussão e o registo das conclusões (nomeadamente através da desig­nação dos presidentes e dos relatores), os agentes do Estado podem transmitir publicamente a imagem de um debate aberto com o exte­rior, mantendo entretanto o monopólio da elaboração das decisões olectivas, da sua concretização e da avaliação dos resultados.

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O campo dos agente<~ eficaze<l na área do financiamento da habitação em 1975

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Se as diferentes comissões têm cada uma a sua história parti­cular, apresentam ainda assim todas elas traços comuns, particular­mente visiveis no caso da Comissão Barre.

Antes do mais, um certo número de ideias que andam no ar (ao nivel da burocracia), "desinvestimento do Estado", "desorçamenta­ção do sector apoiado", etc., juntando alguns funcionários reformado­res, todos eles convencidos de que o Plano não é o lugar adequado para fazer uma reforma da politica da habitação, na medida em que os interesses demasiado diversos e opostos ai representados se neu­tralizam mutuamente. Em segundo lugar, a composição da comis-

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O campo dos agente<! eficaze<l

na área do financiamento da habitação em 1975

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são, cuidadosamente constituída, ao mais alto nivel do Estado, deter­mina de alguma forma antecipadamente os resultados que poderá alcançar: as t rês personalidades dominantes, Raymond Barre, pouco informado dos mecanismos do financiamento da habitação e pouco implicado no respectivo universo, ainda que a par dos hábitos dos gabinetes ministeriais, mas que é conhecido, como economista, pelas suas ideias liberais, e Antoine Jeancourt-Galignani e Georges Crepey, ambos especialistas das questões do financiamento da habitação, representam só por si um verdadeiro programa. Os dois relatores que, com o beneplácito de um presidente prestigiado, farão o essencial do trabalho de concepção e redacção, apresentaram, como estamos

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lembrados, com Pierre Durif, pouco antes da criação da comissão, um conjunto coerente de propostas para uma reforma da política de financiamento da habitação; pelas suas posições, personificavam a alianca entre os três pilares institucionais de uma acção renova­dora: 0 • Tesouro (e a inspecção das Finanças), o Equipamento (e as Pontes e Calçadas) e os serviços de estudo (com o INSEE). Como uma espécie de minoria actuante burocraticamente designada e reconhecida, estavam à partida dispostos a animar e a orientar um trabalho de universalização de que a comissão, ainda que não fosse muito alar­gada, deveria dar a imagem. A lógica que enforma a constituição da comissão é a concretização (inconsciente) da lei segundo a qual se contribui para produzir o discurso (aqui o relatório final) ao criar

0 espaço social, materializado num grupo, no qual esse discurso é produzido. (Note-se de passagem como seria inútil, pelo menos neste caso, mas sem dúvida de forma mais generalizada, procurar apenas no discurso, como o fazem certos defensores da "análise do dis­curso", as leis da construção do discurso que de facto assentam nas leis de construção do espaço de produção do discurso.)

Mas nem os representantes dos poderes públicos nem os porta­-vozes dos interesses privados (ou pelo menos os que aparecem como tal na perspectiva dos burocratas que pretendem o monopó­lio da definicão do interesse geral) constituem conjuntos homogé­neos. São at;avessados por divisões objectivas que se traduzem em confrontos. O segundo factor (que representa 5,6% na inércia total) reflecte uma outra oposição, que diz especialmente respeito ao campo burocrático: de um lado, os "financeiros", frequentemente provenientes do ENA e da inspecção das Finanças, solidamente ligados ao governo (nomeadamente ao gabinete do primeiro-minis­tro ou dos ministros ligados à habitação) ou a órgãos para-adminis­trativos de intervencão como a DATAR e pertencendo ao minis­tério das Financas ~u a bancos privados ou públicos (e agraciados com condecora~ões diversas, nomeadamente a cruz de guerra); de outro, os "técnlcos" que, sendo frequentemente filhos de quadros do sector privado e provenientes da Escola Politécnica e da área de Pontes e Calçadas, estão ligados ao ministério do Equipamento e ao GRECOH e são membros da Comissão Nora (e também, no

outro pólo do primeiro eixo, eleitos locais).

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No primeiro, A, que inclui diferentes sectores, definidos pelos dois primeiros eixos, encontram-se reunidos funcionários superiores da função pública e do sector bancário público, na sua maioria pro­venientes dos grandes organismos (lnspecção das Finanças, Tribunal de Contas, Conselho e Estado), frequentemente colocados à cabeça de direcções do ministério das Finanças ou membros de gabinetes ministeriais ou de organismos de intervenção como a DATAR. Mais próximo do centro surgem os quadros do sector bancário público e privado, Crédito Predial de França, Crédito Agrícola, Paribas.

No sector B estão agrupados os engenheiros civis formados no Politécnico, muitas vezes filhos de quadros do privado, de industriais, pertencentes ao ministério do Equipamento, como Georges Crepey (filho de um funcionário superior), que estará no centro dos debates, ou organismos de construção imobiliária pública e mista.

No sector C, encontramos quase exclusivamente directores de sociedades (frequentemente de economia mista) ou da banca -pertencendo a estabelecimentos bancários públicos especializados na construção, como o Crédito Predial, ou a bancos populares e mutualistas, ou ainda a bancos privados. Muitos deles são antigos funcionários superiores (nomeadamente inspectores das Finanças) aposentados. Mais velhos que nos outros sectores, são na maioria de origem social menos elevada e mais provinciana.

No sector D, encontramos essencialmente representantes das instituições especializadas na habitação social (escritórios de HLM), grupos profissionais, e também eleitos locais ou nacionais. É essa ainda a área do INSEE, do Plano, e das comissões encarregadas de preparar as reformas. Vamos aí encontrar alguns dos "reforma­dores": Pierre Durif, JACQUES Lebhar, Michel Dresch, jovens tec­nocratas reformadores, Jacques Barrot, Hubert Dubedout e Jean Turc, eleitos favoráveis às reformas.

Quanto ao eixo 3, isola muito claramente o grupo dos refor­madores: muito disperso nos dois primeiros eixos (contam-se entre eles inspectores das Finanças que passaram pela ENA e engenhei­ros civis do Politécnico, mas também altos funcionários e eleitos locais, nomeadamente presidentes de câmara de grandes cidades),

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têm em comum um certo número de características secundárias que os distinguem da sua primeira categoria de pertença, como, para os altos funcionár ios, a sua relativa juventude, a sua origem social elevada (são muitas vezes filhos de quadros superiores do sector público), a sua pertença a grupos de investigação e, no que respeita aos eleitos nacionais ou regionais, o distinguirem-se a nível translocal e a sua abertura aos problemas centrais.

Por um lado, temos jovens funcionários superiores reformadores ocupando posições na DATAR, nos muito activos serviços de estu­dos do ministério do Equipamento, no SAEI (Serviço das Questões Económicas Internacionais), no GRECOH (Grupo de Investigação e Estudo sobre a Construção e a Habitação), ou na Divisão de Estudos sobre a Habitação do INSEE: Jacques Lebhar, antigo aluno do ENA, administrador civil, encarregado do gabinete dos estu­dos financeiros e fiscais do GRECOH, um membro muito activo da Comissão Nora-Eveno; Georges Crepey, politécnico, mas tam­bém diplomado em Ciências pd, engenheiro civil, que foi relator­-adjunto da Comissão Barre e participou na Comissão Nora; Antoine Jeancourt-Galignani, inspector das Finanças que em 1969 foi encar­regue de uma missão junto de Valéry Giscard d "Estaing, e poste­riormente responsável do Gabinete do Financiamento da Construção na Direcção do Tesouro, e que, desde 1973, é director-geral adjunto da Caixa de Crédito Agrícola; Michel Dresch, próximo de Robert Lion, relator de dois grupos de trabalho da Comissão Lion, tam­bém responsável, em 1972, pelo gabinete de estudos financeiros do GRECOH. Junto destes funcionários reformadores, encontram­-se eleitos locais ou nacionais que tiveram um importante papel nas comissões, como Jean Turc e Hubert Dubedout, membros das Comissões Barre e Lion, ou Eugêne Berest, membro da Comissão para a habitação do 7.0 Plano.

No pólo oposto, estão agrupados funcionários em geral mais velhos e com menos qualificação académica, que ocupam posições nos estabelecimentos públicos ligados ao ministério do Equipamento

7 Instituto de Estudos Políticos de Paris.

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ou em serviços administrativos. Frequentemente cobertos de conde­·orações (cruz de guerra, legião de honra), são na sua grande maio­ria prefeitos, bancários do sector público ou privado ocupando dife­r ' ntes posições; só muito raramente participaram nos trabalhos das diferentes comissões e em geral receberam mal as suas conclusões.

Espaço das posições e espaço das tomadas de posição

Esta análise do campo de forças não é um fim em si e as suas implicações só se revelam na totalidade quando se comparam as diferentes posições ou tomadas de posição dos vários intervenientes nos debates que levaram à reforma de 1976. Dito de outro modo, desenha um mapa das diferentes, e por vezes antagónicas, posições, ·ujos intervenientes, no quadro da crise determinada pelos projec­tos de reforma, se vão organizar em campos. As tomadas de posi­ção, tanto as dos indivíduos como as dos corpos (que nem sempre ~ão unânimes), tendem, de facto, a distribu ir-se entre dois pólos. De um lado, a manutenção da ajuda à edificação sem qualquer alteração - posição, de facto, muito rara - ou associada à ajuda pessoal; de outro, o abandono completo (proposto pela Comissão Barre) da ajuda à edificação a favor da ajuda pessoal.

A eficácia explicativa da análise das correspondências é particu­lat·mente evidente na correspondência quase perfeita entre o espaço das posições e o espaço das tomadas de posição. Os funcionários do Tesouro subscrevem a visão liberal, em estado puro, tal como é proposta pelo Relatório Barre, e recusam a solução mista com­binando a ajuda à edificação e a ajuda pessoal: empenhados em favorecer o "desinvestimento do Estado", pretendem ver alargada a todas as categorias de famílias ajudas pessoais capazes de compen­sar a supressão (ou a redução) da ajuda à edificação (a rigor, reser­vada às famílias de menos posses); considerando que o Estado não deverá preocupar-se com o "parque" privado da habitação, recusam a ideia de uma ajuda pública para a manutenção e melhoramento do "parque" social (os HLM). Quanto à direcção do Orçamento, ainda que o d irector tenha uma posição favorável à ajuda pessoal e, de forma mais geral, muito próxima das posições do Tesouro,

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os serviços inclinam-se para a conservação da ajuda à edificação c temem as consequências, a~ n ível orçamental, de uma ajuda pes­soal parcialmente suportada pelo O rçamento. Da parte do minis· tério do Equipamento que, sendo a sua principal atribuição a construção, não pode deixar de encarar com preocupação uma interrupção ou diminuição do esforço de construção a que está ligado (e, num certo sentido, de forma muito directa, das percen· tagens atribuídas aos engenheiros civis), a aposta é na conservação do sistema em vigor, mesmo que com algumas modificações. Isto, claro está, com particular força nos serviços encarregados da gestão da ajuda à edificação e da tutela dos organ ismos HLM.

É nos serviços de investigação, e antes do mais no GRECOH, na d irecção do Planeamento, na repartição da Habitação do INSEE, no Serviço de Estatística e dos Estudos Económicos da DBTPC, que mais claramente se pretende, seja a personalização da ajuda à

edificação (GRECOH), seja a supressão das ajudas à construção e a instauração de uma ajuda pessoal parcialmente financiada pelo Orçamento. Fora da função pública superior, os empreiteiros públi· cos ou privados da indústria e da construção aproximam-se da posi· ção da vanguarda do Equipamento: são pela preservação da ajuda à construção, mas personalizada e, de qualquer forma, aligeirada.

Neste debate, o ministério das Finanças e o ministério do Equipamento (que se opõem frontalmente no segundo eixo) defen­dem assim teses antagónicas, mesmo inconciliáveis: as Finanças militam a favor da substituição pura e simples das ajudas à cons­trução, excessivamente caras, por uma ajuda pessoal, enquanto o ministério do Equipamento, que está ligado ao movimento HLM e aos construtores de habitação social, considera que este subsídio deve ter uma fu nção meramente complementar. No campo dos reformadores "liberais": o presidente da República e o seu gabinete (nomeadamente Pierre Richard, estreitamente ligado ao GRECOH que, durante o Verão de 1976, assumirá o essencial da prepa­ração do projecto de lei), Jean-Pierre Fourcade que levanta ape­nas algumas reservas em relação aos prazos de aplicação, Robert Galley, inicialmente com algumas reticências, e depois favorável à APL desde que seja elaborada de forma a permitir às "famílias modestas" o acesso à propriedade, Jacques Barrot, min istro do

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Equipamento, que se assumtra como um vigoroso defensor da nova 1 olítica. Contra o projecto e do lado do Equipamento: o movi­mento HLM que, por iniciativa de Robert Lion, t inha organizado um congresso extraordinário com o objectivo de controlar e ante­cipar-se ao avanço do liberalismo radical (da parte da Comissão Barre), sacrificando o que tivesse que ser sacrificado e propondo 11ma política de liberalismo mitigado, combinando ajuda pessoal e njuda à edificação, e que denunciava a redução da act ividade das sociedades de crédito imobiliário; o Crédito Predial (responsável 1 elos prémios de seguro aos construtores de novas habitações e dos empréstimos especiais) e o Crédito Mutualista, doravante afas­tados da gestão e atribuição dos novos empréstimos, em proveito nomeadamente do Crédito Agrícola; a Caixa Geral de Depósitos; ns caixas de abonos de família que têm d ificuldade em adaptar­•SC ao novo regime, mas que serão encarregadas da distribuição de APL; os partidos de esquerda, e em particular o partido comunista, c, em termos mais gerais, os eleitos locais ou nacionais (deputa­dos ou senadores) de todos os part idos que participam em orga­nismos HLM. Estas resistências, visíveis aquando da preparação da reforma, manifestam-se de forma ainda mais clara na fase de ela­boração e de aplicação da lei: nomeadamente ao nível das direc­ções regionais do equipamento que aceitam mal a radical alteração das relações tradicionais com os construtores sociais, os HLM, e que frequentemente se aliam aos construtores locais e aos eleitos, seja qual for a sua família política. (O Comité Nacional de Ligação por uma Política Social da Habitação, reunido em Julho de 1976 c agrupando todo o sector "social" - Associação para a Habitação Familiar, Associação dos Municípios e França, CNAF, Confederação Geral da Habitação, Federação Nacional da Construção, União das Caixas Económicas, União Nacional das Associações Familiares, União Nacional das Federações de Organismos HLM, União Nacional Interprofissional do Alojamento, etc. - , condena o desin­vestimento do Estado e o encorajamento exclusivo ao acesso à pro­priedade de casas individuais.)

As "razões" destas tomas de postçao variam caso a caso. Mas, quando se trata de organismos administrativos, têm como base determinante a tendência das instituições burocráticas (e dos fun-

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cionanos correspondentes) a "manter o statuo quo", ou seja a preo­cupação de evitar que um o~ganismo burocrático perca toda a sua razão de ser ao perder a sua função. Isso é bem visível no caso do ministério do Equipamento que, expressamente d ireccionado para a promoção da construção, e muito em part icular a construção de habitação social como os HLM, via desaparecer, com o total aban­dono da ajuda à edificação, uma das suas principais razões de exis­tir: a ajuda à edificação, que é necessário gerir, exige e justifica a actividade de todo um corpo de funcionários que, com o regresso à lógica do mercado e do laisser-faire individual, veriam desaparecer todas as suas funções de promoção e controle. Esta tendência para a autoperpetuação das instâncias burocráticas e dos agentes que lhe devem o ser e a razão de ser burocrática, está na base da inércia, que frequentemente se lamenta, destas instituições, mas também, quando são o resultado de conquistas sociais, da conservação de estruturas e de funções independentes dos constrangimentos ime­d iatos das relações de forças políticas e sociais.

As bases da "revolução burocrática''

Assim a análise das correspondências - através de uma distri­buição em função dos dois primeiros factores - esclarece a distri­buição das forças em presença e, por intermédio do elo de liga­ção sociológico (e não lógico) que une as tomadas de posição às posições, revela o princípio das estratégias de luta visando uma conservação ou uma transformação: de um lado, o ministério das Finanças, e também, sem dúvida, os bancos privados, gran­des beneficiários, desde o fim dos anos 60, das novas formas de crédito hipotecário e personalizado, a que as novas medidas de ajuda pessoal se ajustavam perfeitamente; de outro, o ministério do Equipamento e todos os organismos ligados à implementação da habitação social, desde os HLM, evidentemente, até aos organismos públicos de financiamento, e também a maioria dos eleitos locais, directamente interessados na habitação social, que, entre outras coisas, pode ser um instrumento polít ico para obtenção de apoios duradoiros. Altos funcionários privilegiados, como os do ministério

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do Equipamento, podem portanto ser levados, por força da própria lt'lgica da defesa dos interesses do seu corpo e dos seus privilégios, 11 enveredar por acções que contribuem para a defesa de conquis-1 as sociais a que estão ligados interesses burocráticos. Uma aná­l l ~e atenta da lógica complexa do cam po burocrático permite assim constatar e compreender a ambiguidade intrínseca do funcionamento do l!stado: se é certo que tenta impor, a coberto da neutralidade buro­nática, uma política conforme aos interesses dos grandes bancos e dos grandes construtores - que, agindo através do seu capital social d ' ligações com a administração superior, lhe impõem uma política de acordo com os seus interesses, ou seja, a criação de um mer­rado para o crédito bancário aos particulares ou às empresas -, não 1 menos verdade que, pelo menos den tro de certos limites, contri­hu i para a protecção dos interesses dos dominados.

Mas a análise estatística revela também (através do terceiro fac­ror) as forças capazes de superar os antagonismos que enformam ' paralisam o universo, ou seja, o conjunto dos reformadores que, muito dispersos nos dois primeiros eixos, mas em contrapartida reunidos pelo terceiro factor, conseguiram arrancar o mundo buro­' rático ao statu quo a que parecia estar condenado pelo equilíbrio das forças antagónicas. Estes agentes, dotados de propriedades e interesses diferentes, têm em comum um conjunto de proprieda­des raras que os distinguem da restante população estudada e, em 1 articular, do conjunto dos funcionár ios normais, gestores pruden­tes e mais ou menos reticen tes em relação às medidas em estudo. Provindos das mais importantes escolas (ENA, Politécnico), mem­bros dos corpos mais prestigiados (Inspecção das Finanças, Obras Públicas), foram desde muito cedo guindados a posições muito ele­vadas e prestigiadas (mesmo que marginais na óptica do poder) da administração central, onde se vêem confrontados, ou mesmo afrontados, por funcionários mais velhos, que chegaram aos postos mais comezinhos de administração no fim da lenta carreira que é o destino comum dos funcionários "procedentes do quadro", pro­movidos por "ant iguidade" e frequentemente oriundos das famílias consideradas "modestas". A sua "juventude" (Jacques Lebhar tem 28 anos, Philippe Jaffré 29, Michel Dresch 31) é de facto "preco­cidade", ou seja, posse legítima de atributos como as capacidades

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pessoais, os "dons" e o_s títulos; escolares ou administrativos, que lhes dão bases e garantias e que, não sendo em geral alcançados senão em idades (biológicas) mais avançadas, surgem como extraor­d inários. "Precocidade" que, como salta aos olhos, não deixa de ter ligação com o facto de serem oriundos de famílias de funcionários públicos superiores, uma verdacleira nobreza burocrática conhecida como tal (a propósito de Georges Crepey, um dos nossos entrevis­tados declara: "Crepey. .. uma grande família de funcionários... o seu pai era presidente de instância no Tribunal de contas").

Não só lhes é permitida como encorajada a audácia dos "gol­pes de génio" que compete aos "jovens e brilhantes funcionários" e que, pela aceleração que imprimem às suas carreiras, contribuem para lhes garantir um "futuro brilhante": a participação na prepa­ração da reforma do financiamento da construção, nem que seja apenas pelos "contactos" que proporciona - nomeadamente no seio das comissões onde os "jovens relatores" são levados a trabalhar com personalidades reconhecidas -, representa um desses recursos tipicamente burocráticos, gravados na memória dos grandes corpos que, com a participação em gabinetes ministeriais - ela prÓpria fre­quentemente ligada às relações de conhecimento mútuo que se esta­belecem nas comissões - , favorecem as "grandes carreiras" dos altos funcionários (o recrutamento dos "corpos de elite" apoia-se sempre em formas de cooptação em que intervém um conhecimento g[oba[

da pessoa dos novos admitidos - e, sempre que possível, dos seus próximos e em particular do outro membro do casal). Na verdade a presença, à cabeça do Estado, de um presidente conhecido pela sua "precocidade" não podia deixar de conferir um reforço con­juntural a todos os detentores desta propriedade - isto de acordo com a lei das instituições, segundo a qual os titulares de uma das propriedades que favorece o acesso às posições de poder, por exemplo um título académico, ficam automaticamente em vanta­gem, na competição que os opõe aos detentores de outras proprie­dades (no quadro de uma empresa privada ou pública), quando a personalidade que ocupa uma posição dominante é igualmente dotada dessa propriedade.

Entre as propriedades que distinguem estes "reformadores", uma das mais salien tes, porque os coloca sem dúvida em posi-

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~·< o de ultrapassar as fronteiras dos corpos e dos corporattvtsmos, quanto mais não seja pelos contactos alargados que lhe estão nssociados (por exemplo, Robert Lion, da Escola Nacional de Administração, e Pierre Durif, do Politécnico, conheceram-se nos ba ncos de C iências po), é o facto de deterem títulos académicos muito diversificados, por vezes obtidos no estrangeiro, e corres­p ndendo a posições em geral muito afastadas no espaço burocrá­t·ico ou, no caso de certos responsáveis de comissões, nomeada­mente Raymond Barre e Simon Nora, pertencerem a organismos internacionais ou a gabinetes m inisteriais. Assim, para citar ape­nas alguns exemplos, Pierre Durif, administrador do INSEE, fez : iências po, de par do Politécn ico; Pierre Richard, conselheiro de

Valéry Giscard d 'Estaing, que assegurou a liaacão com os refor-o •

madores, é um engenheiro civil que fez os seus estudos nas uni-versidades de Paris e de Pensilvânia, Georges Crepey, engenheiro ·ivil, é também d iplomado em Ciências po, Pierre Consigny, nntigo aluno da ENA, tem uma licenciatura em letras e frequen­tou a un iversidade de Yale, etc. O facto de ocuparem posições muito dispersas nos dois primeiros eixos contribuiu sem dúvida 1 ara favorecer o êxito de um empreendimento que devia mobi­lizar e conciliar interesses d ivergentes, nomeadamente os dos funcionários do Tesouro e da l nspecção das Finanças, tenden­·ialmente favoráveis às novas formas de financiamento, os dos funcionár ios do Equipamento e engenheiros civis, cujos interesses de corpo estavam tradicionalmente ligados à ajuda à edificação, • os dos eleitos locais e presidentes de câmara, frequentemente associados, através da sua part icipação nos HLM, a for mas de construção mais ou menos ameaçadas pelas novas medidas.

O distanciamento em relação à burocracia comum e às suas rotinas, de par das disposições habitualmente associadas a uma ori­gem social elevada e à "precocidade", como a "audácia", a "ambi­ção", o "entusiasmo", etc., é, sem dúvida, o que mais claramente distingue os "revolucionários burocratas" da grande massa dos fun­cionanos das estrut uras de gestão: ao contrários destes "reformado­res" que, na sua maioria, não têm qualquer experiência do traba­lho local e de administração comum e que ocuparam de imediato posições, ainda que menores ou marginais, mas próximas dos cen-

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tros de decisão, nos organismos de investigação e de planifica• ção (como o GRECOH), os administradores, na sua maioria com uma formação jurídica sem qualquer originalidade particular, marv tiveram-se durante muito tempo em postos de trabalho a nível local ou puramente administrativos, para alcançar posições centrais segundo a lógica da promoção interna, e sem passar pelos gabinetes ministeriais nem pelo estrangeiro.

A estas duas categorias de agentes correspondem dois modos de pensar, duas visões do mundo burocrático e da acção da buro­cracia, e também dois géneros claramente opostos de capital buro­crático, que de imediato se detecta estarem sociologicamente ligados a propriedades sociais, de idade, formação escolar e antiguidade na administração: de um lado, o capital burocrático da experiên· cia, quer se trate do "conhecimento das pessoas" próprio de um chefe do pessoal ou do conhecimento dos regulamentos próprio de um chefe de escritório experiente, que só se pode adquirir à

[a [ongue, com o tempo, e como tal está ligado à antiguidade na administração; do outro, formas de capital burocrático com base téc­nica, susceptível de ser mais rapidamente adquirido, por métodos mais racionalizados e mais formalizados, como o inquérito estatís· t ico, tratando-se do conhecimento do pessoal, ou os modelos mate­máticos, tratando-se da avaliação dos custos e dos efeitos de uma medida, e capazes de ameaçar o capital de informação adquirido pela antiguidade. A força de um determinado funcionário, ou de um determinado corpo, é sempre em parte devida à sua capacidade de dominar, ou mesmo monopoLizar, este recurso raro que é a infor­mação (e sabemos como, nas lutas internas, a "retenção de infor­mação" é uma das armas dos detentores do capital de informação baseado na experiência e na antiguidade). Podemos citar aqui o exemplo, frequentemente referido pelos nossos inquiridos, de uma personalidade que se tornou quase lendária. O Sr. Latinus, adido principal do Tesouro entre 1945 e 1975, que, senhor de um conhe­cimento único de todos os regulamentos em matéria de financia­mento à edificação e de cálculo de custos por t ipo de habitação, detinha um papel em tudo semelhante ao daqueles que em certas civilizações são considerados como "bibliotecas vivas": indispensá­veis ao bom funcionamento da burocracia, porque os únicos capa-

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zcs de se orientar na selva dos regulamentos, circulares, aditivos • rectificativos, estas personagens respeitadas, a toda a hora con­sultadas pelos outros, nomeadamente pelos mais jovens, tornam-se numa espécie de árbitros e especialistas cuja actividade ninguém é ·apaz de controlar. Parte do que é atribuído à "inércia burocrática" ou às "resistências" dos funcionários, verdadeiras "virtudes aneste­siantes" que mais não fazem do que apresentar a descrição como •xplicação, tem a ver, na verdade, com o facto de algumas medi­das ameaçarem este capital ligado à antiguidade e à experiência. De maneira mais geral, todas as formas de capital científico ou técnico que permitem uma acumulação ou uma utilização acelerada do saber constituem uma ameaça para os detentores de uma com­I etência prática baseada exclusivamente na experiência.

É uma oposição deste género (a que é revelada pelo terceiro factor de análise) que se esboçou, por ocasião da reforma, entre administrativos e reformadores. Estes, nos debates que os opuseram aos funcionários das Finanças, nomeadamente a propósito da ava­li ação dos custos das novas medidas e dos seus efeitos, recorreram amplamente às técnicas da econometria para impor os seus pontos de vista (e muitos dos inquiridos assinalam que, já nas negociações que levaram à lei de 1972 sobre o cálculo de subsídio de habi­tação, a Caixa Nacional dos Abonos de Família - CNAF - teve dificuldade em defender o seu projecto aquando dos debates por­que não conseguiu opor senão métodos de cálculo artesanais aos modelos expressamente elaborados pelo INSEE para o ministério do Equipamento)8

. Embora não se deva sobrestimar a eficácia dos modelos formais e dos serviços de investigação que os utilizam, a verdade é que, conjuntamente com outras formas de poder, sem dúvida mais determinantes, estes instrumentos contribuíram em

8 Após os debates de Março e Julho de 1976, o pessoal encarregado da reforma fo i profundamente renovado (o GRECOH, nomeadamente, frag­menta-se). Entretanto os novos responsáveis (no gabinete do ministro da Habi­tação - Jacques Barrot - ou na direcção da Construção) apresentam caracte­rísticas muito próximas dos anteriores: em grande med ida, vêm dos servicos de estudos do Plano e da DATAR e fizeram parte da sua carreira no estr~n­geiro e nos organismos internacionais.

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muito para a vttona dos '>eformadores", ao introduzir esta forma muito particular de utopia a que a uti lização de instrumentos for­mais como os modelos matemáticos dá lugar.

A comissão e a legitimação de uma minoria actuante

Se juntarmos todos os atributos partilhados pelos reformado­res e que tendem a aproximá-los pelos laços de simpatia asso­ciados à afinidade de habitus, e isto apesar das diferenças de posição q ue reproduzem, no subespaço que eles próprios cons­tituem, as diferenças constitutivas do campo no seu conjunto, vemos que os "revolucionários" são gente abastada. E, de facto, tudo parece indicar que, no campo burocrático como em mui­tos outros domínios, é necessário um capital significativo para fazer uma revolução vitor iosa. Mas este modelo de mudança buro­crática ficaria sem dúvida incompleto se não fizéssemos intervir um outro trunfo, que praticamente todos os protagonistas pos­suem, 0 sentido do jogo burocrático que, na sua forma mais aca­bada, permite jogar com as regras ?o jogo, num virtuosismo de transgressão bem acondimentada. E assim que vemos Antoine Jeancourt-Galignani juntar-se a Latinus, com quem aparentemente nada tem em comum, para elaborar o artigo duplamente funda­mentado que será um dos pontos de partida do movimento de ideias conducente à reforma do financiamento. Do mesmo modo, os que escolhem Raymond Barre para presidir à comissão deci­siva, valorizam nele a personalidade exterior às questões do uni­verso da construção mas também alguém familiarizado com os processos e procedimentos da vida burocrática, informado e res­peitador das regras de conveniência que regem os convites e as permutas nas comissões: e, de facto, ele leva a cabo todo este empreendimento com a maior mestria, tirando o melhor partido possível deste instrumento institucionalizado de transformação da instituicão burocrática que é a comissão.

Esta. criação institucional tipicamente b urocrática permite à burocracia ultrapassar os seus próprios limites, entrar aparente­mente em diálogo com o exterior, sem deixar de prosseguir os seus

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próprios fins e obedecer às suas próprias regras de transformacão. Simultaneamente dissimulada e legitimada pela universalização ~ar­eia! que a imersão num sujeito colectivo lhe proporciona, a mino­ria actuante torna-se numa espécie de grupo de pressão legítimo, publicamente conhecido e reconhecido, investido de uma missão, de um mandato. O movimento subversivo deixa de ser suspeito de servir os interesses particulares de um corpo ou de uma clique (os "jovens lobos"); é o agente de uma mobil ização legítima, por­que formalizada. A burocracia reconhece esta forma muito particu­lar de realização burocrática que projecta os "grandes servidores do Estado", momentaneamente arrancados ao anonimato do funciona­lismo, porque souberam acatar as normas de d iscricão burocrática mesmo na subversão regulamentada das regras buro.cráticas.

Assim, na sequência do longo trabalho desenvolvido, desde os primeiros esforços de Albin C halandon, então ministro do Equipamento e da H abitação, para alargar a atribuição de subsí­dios à habitação e encorajar a construção de casas individuais (leis de 16 de Julho de 1971 e de 31 de Janeiro de 1972), é através de um conjunto de manobras, de que as jornadas HLM para 0

Livro branco e a Comissão Barre representaram os pontos culmi­nantes, e que pressupunham uma grande capacidade estratégica especificamente burocrática de mobilização e de manipulação, que as novas representações, de que resultou o compromisso desti­nado a apaziguar os antagonismos entre os diferentes responsáveis pela política de habitação, se impuseram oficialmente no seio da própria função pública superior.

É provável que o "golpe" através do qual, sob o impulso de Robert Lion, que tinha sido informado dos projectos de reforma de Valéry G iscard d 'Estaing, o movimento dos HLM assumiu de alguma forma a iniciativa, tirando o tapete debaixo dos pés dos seus adversários, tenha contribuído, tanto como o Relatório Barre, que, pelo seu ultraliberalismo, teria provocado sem dúvida uma mobilização de sentido contrário, para favorecer o movi­mento no sentido da aceitação de uma solução de compromisso que combinava a ajuda à edificação e a aj uda pessoal à habita­ção. De facto, se os autores do Livro branco do movimento dos HLM avançavam com numerosos argumentos a favor da ajuda

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à edificação, ignorados nos relatórios Barre e Nora, afirmavam entretanto uma clara p;eferência pela ajuda pessoal; e o imenso t rabalho colectivo de tomada de consciência que teve lugar por ocasião das jornadas nacionais de estudo, nomeadamente entre os responsáveis locais, contribuiu para a aceitação, nomeadamente no seio do próprio movimento dos HLM, das críticas à instituição que até então lhe eram dirigidas de fora; ao pretender colocar as autoridades governamentais face a propostas com que teriam que contar - o que explica a dimensão, 450 pessoas, da mobi­lizacão - Robert Lion e os seus "cúmplices" (Michel Dresche, Cla~de Alphandéry, Claude Gruson, etc.), cujo objectivo era limi­tar a liberdade de acção da administração central (aliás pratica­mente ausente destas jornadas), serviram de facto os seus objecti­vos conduzindo o sector do campo mais afastado da visão liberal (O na análise) a aceitar a reforma.

Assim, talvez por ser demasiado sofisticada, a estratégia ima­ginada por Robert Lion, prestigiado funcionário superior, per­feito con hecedor do jogo, das suas regras e dos adversários, con­tribuiu para preparar o terreno para a comissão presid ida por Raymond Barre que, pela sua própria intransigência, favoreceu o compromisso que Robert Lion lhe queria à partida impor. A composição e o funcionamento das duas comissões atestam esta relação de complementaridade no antagonismo que define a reta­cão entre adversários cúmplices. Tal como a Comissão Barre atri­buiu um lugar insign ificante aos movimentos de fa mílias e aos organismos sociais, as jornadas promovidas pelos H LM apenas concediam um lugar muito restrito aos fu ncionários9. Na ver­dade, no fundo , os inquiridos não deixam de ter razão quando referem, à mistura, como os maiores responsáveis pela transfor­mação da política da habitação, personalidades (Georges Crepey,

9 A Comissão Nora é, sem dúvida, a mais estritamente burocrática das três comissões. Oriunda do coração da própria burocracia (do ministério das Financas) e confiada a um funcionário superior em pleno exercício, é com­posta 'na sua quase totalidade por funcionários na sua maioria jovens e com iniciativa e as suas conclusões parece terem a unanimidade na administra­ção superior.

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Pierre Durif, Jacques Lebhar, Pierre Richard, Robert Lion) que por vezes se apresentavam e eram consideradas como totalmente opostas, e cujas posições se vieram entretanto a revelar comple­mentares e convergentes.

Invariantes e variações

A lógica que enforma a 11t.sto' r ·a e t L d 1 s rutural das rewrmas e 1975, nada tem, na verdade, de conjuntural. A " olítica da habi-

-"t: · d . d p taçao ot um os pnmeiros terrenos e confronto entre os parti-dários de uma política "social" - que não - 'd ·f· · · sao 1 enti tcaveis com o socialismo e, menos ainda como os soe · r· d L

' ta tstas - e os eien-sores de um liberalismo mais ou menos rad ical. De um lado,

~~. que pret~nd~m alargar ou manter a definição em vigor dos trettos socta ts direito ao trabalho, direito à saúde, direito

à habitacão, d ireito à educacão etc - co! · bl ' t · · ' · ' ecttva e pu tcamen e reconhecidos e assumidos - através de d'L L d

11erentes 10rmas e segurança, subsíd io de desemprego, ajuda à habitação, abonos de família, etc. - e avaliados segundo o princípio "a cada um

~egund~ as s~,as. necessidad~s" (de que a el<pressão paradigmática e. ~ tdeta de . mmnno vital ). Do ,~utro, os que pretendem rede-fmtr e reduztr a mtervencão do Estado-pr ·d· · " da · ovt enCLa , nomea -mente através da concretização de medidas inspiradas no princí-pio "a cada um segundo os seus méritos", levando à atribuicão de ajuda em funcão dos rendimentos monet· · ·m · st 't.u

1· · anos asst m 1 -

dos como medida última do valor social do 10 s agentes .

10 A oposicão entre estas duas lógicas é particul · · 1

· armente VISIVe no caso estudado por Bernard Guibert (L'intervention de l ·<O d l' bl' · 1·

. . . cota t ans o 1gatron a rmen-tarre. Premreres leçons de la loi de 1984, Paris, CNAF, 1987 l0-11) em ue a "I · · d b 'd ' " ' pp. q og1ca O SU Sl lO , que caracteriza O direito aos al · d C · d ' c· 'J d O _ . " . . , tmentos o o tgo tvt

e 18 4, se opoe a logtca do quotidiano caracte · . d · b . ' nst1ca o Imposto so re

o rendtmento, sendo o custo com o filho consider d . . a o como uma percenta-

gem do rendunento dos pats. Oposicão análoga à q · . . . . _ · ue enco ntra mos na area

do d tretto a habttacao, com a ajuda à edificacão d 1 d d . · · • e um a o, e o outro a

aJuda pessoal e, em termos mais gerais toda a pol1·r· d " d · 1· ' tca e cré tto persona 1-

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Page 82: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

A "filosofia" em que se inspirava a vanguarda tecnocrática dos anos 70, e que então esbârrava com fortes resistências, mesmo no seio do próprio funcionalismo público superior, veio mais tarde a encontrar numerosos apoios, sobretudo a partir de 1981, mesmo entre os que estavam socialmente mandatados para defender os direitos sociais - o que está naturalmente ligado à chegada ao poder de uma geração de dirigentes provenientes das C iências po e do ENN 1• De facto, como foi frequentemente repetido por muitos dos seus defensores, a "política da habitação" que visava favorecer o acesso à propriedade através de medidas tendentes a ajustar as ajudas e os créditos à "pessoa" (na perspectiva d a banca) era considerada como uma arma contra o "colectivo", o "social" e, como tal, contra o "colectivismo" e o "socialismo". Tal como o quintal do operário de outros tempos, a "casita" indi­vidual e o crédito a longo prazo que lhe dava acesso deveriam acorrentar os seus "beneficiários" a uma ordem económica e social que por si só con stituía a maior das garantias que os pro­prietários end ividados por muitos anos poderiam dar à banca. E isto oferecendo simultaneamente às instituições bancár ias a possi­bilidade de mobilizar mais à von tade as poupanças fixas.

Sob a influência de todo um conjunto de factores que ultrapas­sam largamente o campo das lutas pela definição da "política de habitacão" as relacões de forcas no seio deste campo foram-se alte­rando ' nu1~ sentid~ cada vez. mais favorável aos defensores de um liberalismo mais ou menos radical. E a análise revelará que actual­mente as mesmas grandes categorias de agentes se dividem, prati­camente segundo os mesmos princípios, a propósito dos mesmos problemas, mas com uma deslocação global de todas as tomadas de posição no sentido do pólo liberal que fo i sem dúvida deter-

zado", concretizada, nos anos 60, pelos bancos que tendem a fazer do valor monetário, actual e potencial, dos agentes económicos, a medida absoluta do seu valor, e do crédito (no sentido amplo do termo) que lhe pode ser atribui­

do, no plano social e económico. 11 Sobre o papel das Ciências po na codificação e inculcação da vulgata

"liberal", pode ler-se P. Bourdieu e L. Boltanski, "La production de l "idéologie dominante", Actes de la recherche en sciences sociales, 2-3, 1976, pp. 4-73.

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minada, ou tornada possível, pelo menos parcialmente, pelos efei­tos da política "liberal" em matéria de ajuda e de crédito, e em particular pelo acesso à propriedade, inicialmente entre os qua­dros e, sobretudo nos anos 80, entre os sectores mais favorecidos dos operários e empregados de escalão inferior. Os debates susci­tado pela lei Quilliot de 22 de Junho de 1982 e pelo plano de Habitação de Pierre Méhaignerie, destinado a atenuar-lhe parcial­mente os efeitos, mostram que as oposições continuam a definir-se mais ou menos da mesma forma entre os que lamentam as difi­culdades dos organ ismos HLM e os que apostam na aplicação das "leis do mercado" à habitação, preconizando mesmo a venda dos HLM aos seus ocupantes. Sem dúvida que, através do Conselho Nacional da C onstrução, que junta arquitectos, fabricantes de mate­riais e empreiteiros (a U n ião Nacional dos Construtores de Casas Individuais, a Federação Nacional dos Construtores C ivis e sobre­tudo a Federação Nacional da Construção Civil), os profissionais que, noutros tempos, se t inham mostrado mais favoráveis à ajuda à edificação (e decid idamente hostis à lei de 1977) parecem ter ade­rido ao liberalismo, pelo menos provisoriamente (e provavelmente em ligação com a quebra brutal da construção - de 500 000 habi­tações construídas em 1974 para 295 000 em 1986); entretanto, os bancos, talvez por terem esgotado os seus "recursos" em poten­ciais compradores de "crédito personalizado" (como o testemunha o crescimento do contencioso ligado ao sobre-endividamento), man­têm-se na expectativa, como a Federação Nacional dos Agentes Imobiliários (FNA IM) e a Câmara Nacional dos Administradores de Bens (CNAB) ou os notários e proprietários privados da União Nacional da Propriedade Imobiliária (UNPl), que tinham comba­tido violentamente a lei Quilliot.

De facto, apesar do reforço que a "política da habitação" levada a cabo nos anos 60 e 70 trouxe ao campo "liberal", as forças favoráveis à defesa dos "direitos sociais" continuam a ser muito poderosas porque estão desde há muito inscritas nas instituições, ou seja, simultaneamente nas estruturas objectivas, nomeadamente administrativas, e nas estruturas cognit ivas e nas d isposições para uja produção contribuíram.

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Page 83: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

Anexos .

I - Análise das correspondências múltiplas

A construção dos dados e dos resultados

Quadro de 97 linhas (indivíduos) dos quais 3 ilustrativos e 47 colunas (variáveis disjuntivas) incluindo 2 ilustrativas.

Variáveis. Idade 7 (modalidades); profissão 16; estado civil 3; número de filhos 7; local de nascimento 3; escola secundária pública 7 privada 4, Janson-de-Sailly 2, Louis-le-Grand 2, Henri IV 2, Stanislas 2, outra escola secundária de Paris ou da região parisiense 2, grande escola secundária da província 2, outras escolas secundárias da província 2; estudos superiores: Letras 2, Direito + IEP + ENA 2, Direito + ENA 2, Politécnico + ENA 2, ENS 2, Politécnico 2, Engenharia civil 2, Escola Central 2, outros 2, estudos no estrangeiro 2; legião de honra 2, ordem de mérito 2, cruz de guerra 2, distinções académicas 2, outras condecorações; Comissão barre 2, Comissão do Plano 2, Comissão do habitat 2, Comissão Lion 2, Comissão Nora 2; com ligação à administração 19, outros corpos 2; conselheiro minis­terial 2, director de ministério 2; eleito local 2, eleito nacional 2; Conselho de Estado 2, Tribunal de contas 2, inspecção das Finanças 2, engenharia civil 2, prefeito 2, outros corpos 2; modalidades: direc­tor de escritório ou de sociedade HLM 2, GRECOH 2.

Factores Percentagens Valores absolutos

1 - 0,11713 6,41* 2 - 0,10255 5,61 3 - 0,08659 4,74

* Sabe-se que, de maneira geral, a análise dos quadros com codificação disjun­t iva conduz a taxas de inércia fracas "que dão uma ideia muito mais pessimista da informação sintetizada". Cf. L. Lebart, A. Morineau, N. Tabard, Techniques de

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Page 84: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

Contribuições mais Significativas

l.o FACTOR 2." FACTO R 3." FACTOR

ln div íd~tos

Richard 4,3 Bloch-L 4,6 Monod 4,6 C repey 3,5 Mayet 4,5 Womanti 4,2 Dubedout 3,2 Hervio 3,9 G raeve 4,2 Laure 3,2 Brousse 3,6 Dou ffiagues 3,9 Maye t 3,2 Nora 3,3 Turc 3,7 Sa illard 2,9 Ternier 3,1 Ess ig 3,3 Verger 2,9 Richard 2,8 Brousse 3,3 Traub 2,7 Gonon 2,8 Ma lecot 3,1 Lerebour 2,6 2,6 Ratt ier 2,8 Leroy 2,6 Jaffré 2,7 Hervio 2,6 Traub 2,6 Brousse 2,5 Di ebolt 2,6 Ternier 2,5 Pa ira 2,5

Variáveis O utro corpo 6,7 Politécnico 6,2 ENA, IEP, Or. 6,2 O mesmo corpo 6,7 Escola de engenhar ia 5,8 Sem legião de honra 5,9 Corpos dos P.&C. 6, 1 Corpos dos P. & C. 5,8 C ruz de guerra 4,5 Escola de engenharia 6,1 lnspecção Finanças 3,6 Eleito local 3,4 Poli técnico 3,6 Cruz de guerra 3 Tribunal de Contas 3,4 Eleito local 2,7 Oirector de gabinete 3 61-65 anos 3 Eleito nacional 2,7 O utra condecoração 2,8 legião de honra 2,9 Janson-de-S. 2,7 distincões académicas 2,5 prefeito 2,7 Quadro sup. público 2,6 encarr~gado de missão 2,5 equipa sector público 2,6 outros estudos 2,6 Stanislas 2,6

Profissão libera l 2,5

!a descriptionstatistique, Paris, Dunod, 1977, p. 130 (encontramos o mesmo comen­tário em J .-P. Fénelon, Qu'est-ce que! 'ana!yse des données 1, Paris, 1981, pp. 164-165).

168

li- Fontes

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Rapport de la Commission Aménagement du territoire et cadre de vie pour la préparation du 7. 0 Plan, Paris, La Documentation française, 1976.

Rapport de la Commission d · étude d 'une réforme du logement présidée par R. Bane, Paris, La Documentation française, 1976.

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União Nacional dos HLM, Proposition pour !' habitat. Livre blanc, suple­mento da revista HLM, 244, 1975.

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Page 85: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

A S ESTR UT URAS SOCIA I S O A ECON OM I A

Capitulo III

O campo dos poderes locais

Tal como a "política de habitação" é, a nível central, o resu l­

tado de uma longa cadeia de interacções concretizadas num deter­

minado quadro estrutural, também as regulamentações constitut i­

vas desta política serão, elas próprias, reinterpretadas e redefinidas

através de uma nova série de interacções entre os agentes que, em

função da sua posição nas estruturas objectivas do poder definidas

à escala de uma unidade territorial, região ou município, seguem

estratégias d iferentes ou antagónicas. Quer isto dizer que não se

pode conceber a relação entre o "nacional" e o "local", o "centro"

e a "periferia", como a da regra universal e da aplicação particu­

lar, da concepção e da execução. A visão que se tem a partir dos

"centros" do poder, que leva a considerar as religiões e os cultos

"periféricos" (geográfica ou socialmente) como rituais mágicos, as

línguas regionais como dialectos, etc., impõe-se insidiosamente à

ciência social e será fácil demonstrar que, muitas vezes, a utilização

de uma oposição entre "centro" e "periferia" (ou entre universal e

paroquial), para além de apagar, a coberto de uma neutralidade des­

critiva, os efeitos da dominação, tende a estabelecer uma hierarquia

entre do is termos opostos: as acções periféricas são assim pensadas

como simples aplicação mecânica das decisões centrais, servindo a

administração local apenas para executar as ordens ou "circulares"

burocráticas; ou então, sem que uma coisa exclua a outra, podem

ser consideradas como "resistências" do interesse privado ou do

particularismo local ("provincial") a medidas centrais.

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O jogo e a regra

A opostçao aparentemente neutra e puramente descritiva entre "centro" e "periferia" deve o seu peso simbólico ao facto de resul­tar da sobreposição de dois conjuntos de opostos. O primeiro, que está simultaneamente inscrito na própria estrutura burocrática, sob a forma de uma série de divisões e subdivisões que fazem correspon­der níveis hierárquicos cada vez mais baixos a unidades territoriais cada vez mais pequenas, e na mente dos funcionários, com a opo­sição entre os lugares "centrais" de "direcção" e de "concepção" e os postos "locais" e "periféricos" de "execução". O segundo, que se estabelece entre a própria burocracia e tudo o que lhe é exterior: subordinados ou "administrados", mas também "comunidades locais", ou seja, entre o "serviço público" e os "interesses privados", entre o "interesse geral" e o "interesse particular". Temos ainda todo um conjunto de oposições paralelas e parcialmente intermutáveis: "cen­tral" I "local", "geral" ("interesse geral", "ideias gerais", etc.) I "par­ticular" ("interesses particulares"): "concepção" I "execução"; "teoria" I "prática"; "longo prazo" I "curto prazo", etc. A matriz comum des­tas oposições é a antítese entre duas perspectivas: princípio gerador de todo o discurso que o universo burocrático tem sobre si próprio e que os mais presunçosos dos produtores e reprodutores desta ideo­logia profissional designam por vezes um pouco pomposamente de "ciência administrativa", a perspectiva dos funcionár ios, que, estando colocados no cimo da hierarquia burocrática, é suposto situarem-se "acima da confusão", e como tal estarem aptos a "tomar distância" e a "ver as coisas de cima", a "ter numa perspectiva ampla" e a "ver longe", opõe-se à visão terra a terra dos simples executantes ou dos vulgares agentes, cujos "interesses a curto prazo" levam a "resistên­cias" anárquicas ou a "pressões" contrárias ao "interesse geral". Este conjunto de oposições, que se enraíza num sentimento de superio­ridade simultaneamente técnico e ético (as mais das vezes assente numa auto-segurança abalizada em termos sociais e de escolaridade), está na base da visão tecnocrática do mundo própria de todos aque­les que, na medida em que participam do monopólio da violência simbólica legítima, são socialmente apoiados e encorajados a pensar como os funcionários e os missionários do universal. Determina a

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percepção que o relator de uma grande comissão sobre a ajuda à

habitação poderá ter dos participantes estranhos à administração, tal como a ideia que um engenheiro, colocado à cabeça de uma direc­ção departamental de equipamento, faz dos presidentes das câma­ras ou dos eleitos da sua circunscrição. Isto significa que a prévia objectivação destes princípios de con strução da realidade, que estão inscritos n a própria realidade e no espírito de quem pretende ana­lisá-la (e que pode, por exemplo, adoptar para si a visão husser­lian a1 do filósofo como "funcionário da humanidade"), é indispen­sável para evitar que se imiscua na ctencia, enquanto instrumento de construção do objecto, princípios de divisão que aí têm apenas lugar enquanto objectos.

O que é certo, é que, na prática, para um empresário, como para a maioria dos "administrados" ou dos "subord inados", o "Estado" apresenta-se sob a forma de regulamentos ou dos agentes ou ins­tâncias que os invocam, na maioria dos casos para dizer não, para proibir (neste caso, a existência do Estado e do regulamento é invo­cada sobretudo aquando dos pedidos de construção, tendo em conta os planos de ocupação dos solos, as normas técnicas e estéticas de construção, etc. , aquando do pedido de empréstimos, aquando da assinatura de um contrato de compra ou de venda, a propósito das garantias, dos prazos, etc.). A percepção, orientada e dirigida pela regulamentação é uma percepção selectiva, que tem os mesmos limites que a competência estatutária do funcionário. Afirma-se entretanto como universal, seja esta universalidade a das normas do "belo" ou das exigências da racionalidade ou da técnica, ou de ambas, e fre­quentemente anuncia-se através de expressões dotadas de um sujeito colectivo ou impessoal ("O ministério da Cultura considera que ... "). E isso mesmo quando não é fácil ignorar ou ocultar o arbitrário da perspectiva que está na sua base, e justificar por exemplo com argu­mentos estéticos e técnicos a largura legal ou legítima dos rebordos dos telhados ou o limite da área circundante de um monumento his­tórico. Mas, quando se trata do arquitecto municipal, este ponto de vista, que não pode deixar de aparecer como particular ao utente (e

1 Husserl (Edmund), filósofo alemão (1859-1938). (N. do T.)

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mais claramente ainda a um outro arquitecto, situado num ponto muito próximo, mas simultaneamente muito diferente do espaço social) tem formas de se fazer reconhecer como universal. O pró­prio estatuto de funcionário da autoridade, expressamente manda­tado para fazer respeitar um regulamento que determina que os rebordos dos telhados não tenham mais de doze centímetros ou que promulga que o espaço circundante de um monumento histó­rico deve ser protegido num raio de quatrocentos metros, implica uma "situação de monopólio" em relação ao determinar do que é belo e está bem em matéria de habitação. Este monopólio da vio­lência simbólica legítima afirma-se na pretensão do funcionário, arquitecto municipal ou engenheiro do DDE, de se colocar numa postçao que não é a própria, ou seja, a perspectiva absoluta, uni­versal, geral, portanto deslocalizada, desparticularizada, não privada, do servidor, simultaneamente neutro e competente, do interesse geral. E não é raro que esta pretensão encontre nas próprias d is­posições inscritas no meio ambiente do funcionário - por exemplo, a hostilidade anticapitalista à lógica do lucro e a rejeição estética à produção em série que inspiram a muitos arquitectos departamen­tais um forte preconceito contra esta forma de produção de habi­tações - os recursos psicológicos necessários para se afirmar com a plena convicção da sua necessidade e universalidade.

Na luta pelo monopólio, o regulamento é a grande arma do funcionário, a que acresce, caso seja necessário, a sua competên­cia técnica ou cultural. E podemos mesmo dizer, generalizando a fórmula de Weber segundo a qual "obedecemos à regra quando o interesse em obedecer-lhe supera o interesse em desobedecer-lhe", que o funcionário aplica ou faz respeitar o regulamento apenas na medida, e só na medida, em que o interesse em aplicá-la ou fazê­-la respeitar ultrapassa o interesse em "fechar os olhos" ou "fazer uma excepção". A regra que, como vimos, resultou do confronto e interligação entre interesses e visões do mundo social antagóni­cos, só pode ser aplicada através da acção de agentes encarrega­dos de a fazer respeitar que, dispondo de uma liberdade de mano­bra tanto maior quanto mais elevada é a posição que ocupam na hierarquia burocrática, podem fazê-la cumprir ou, pelo contrário, deixá-la transgredir, segundo o seu interesse material ou simbólico

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em mostrarem-se estritos ou f lexíveis. (Daí que não seja possível estabelecer uma relação mecânica entre posições e tomadas de posi­ção: as posições incluem sempre uma margem de jogo, maior ou menor, que os agentes podem utilizar de forma mais ou menos ampla segundo as suas d isposições, elas próprias mais ou menos estreitamente ajustadas às posições).

A autoridade do funcionário pode afirmar-se na identificação pura e simples, sem qualquer distanciamento, com os regulamen­tos, apagando-se face à regra, anulando-se, para gozar plenamente do poder que ela lhe dá, ou seja, em geral, um poder de pro ibir. Esta estratégia, que consiste em renunciar à liberdade sempre possí­vel em qualquer posto, mesmo o mais baixo, e em comportar-se como uma pessoa anónima e substituível, reduzida à sua função, é tanto mais provável, porque simultaneamente mais encorajada e mais van­

tajosa, quanto mais se desce na hierarquia. Mas, a todos os níveis, ela não passa de uma alternativa possível - abrindo assim a porta a um jogo estratégico - à conduta oposta, que consiste em mos­trar-se "compreensivo", "humano", tirar partido (e benefício, quanto mais não seja puramente moral e de carácter ético) da margem de liberdade que qualquer posto deixa sempre aos que o ocupam (quanto mais não seja porque nenhuma descrição relativa ao posto nem nenhum regulamento pode prever tudo).

É aqui o momento de lembrar que um domínio, enquanto jogo estruturado de forma flexível e pouco formalizado - ou mesmo uma organização burocrática enquanto jogo artificialmente estru­turado e construído em função de fins bem definidos - , não é um aparelho obedecendo à lógica quase mecânica de uma disci­plina capaz de converter qualquer acção em simples execução, limite nunca alcançado, mesmo nas "instituições totais"2

• A conduta

2 O fantasma do aparelho, oriundo da tradição marxista mais mecanicista, impôs-se com particular força em relação ao Estado, assim investido de uma espécie de poder d ivino ou demoníaco de manipulação. E por uma estran ha inversão das coisas, foi frequentemente aplicado ao Partido e ao Estado comu­nistas por todos os defensores anticomunistas de "teorias" do "totalitarismo" que assim se abstiveram de ver (mas desejariam fazê-lo?) e de compreender as mudanças que foram ocorrendo nos países do leste da Europa e de que o

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disciplinada, que assume toda a aparência de execução mecânica (o que lhe vale ser uma fonte de anedotas), pode ser o resultado de estratégias tão subtis (com o valente soldado C hvéik, por exemplo) como a opção oposta, que consiste em jogar com a regra, mar­car as suas distâncias em relação ao regulamento. O jogo burocrá­t ico, sem dúvida um dos mais regulamentados de todos os jogos, comporta, entretanto, uma parte de indeterminação ou de incer­teza (aquilo que, num mecanismo, se designa de "jogo")3

• Como qualquer tipo de domínio, apresenta-se sob a forma de uma certa estrutura de probabilidades - de recompensas, de ganhos, de van­tagens ou de sanções - mas que implica sempre uma parte de indeterminação: pois por mais estrita que seja a definição do seu posto e por mais restritivas que sejam as exigências inerentes à sua posição, os agentes dispõem sempre de uma margem objectiva de liberdade que podem ou não explorar segundo as suas disposições "subjectivas"; ao contrário de uma simples roda da engrenagem, podem sempre escolher, pelo menos na medida em que se sintam impulsionados, entre a obediência perinde ac cadaver e a desobediên­cia (ou a resistência e a inércia), e esta margem de manobra possível

abre-lhes a possibilidade de um ajuste, de uma negociação quanto ao preço da sua obediência, do seu consentimento.

Dito isto, e com o risco de desiludir os que veriam nestas aná­lises um imprevisto (ou inesperado) ressurgimento da "liberdade", importa relembrar que não é um sujeito puro, e livre, que vem ocupar as margens de liberdade de que os funcionários sempre· dis­põem, em graus diversos de acordo com a sua posição na hierar­quia. Aqui como em qualquer outra situação, é o habitus que vem preencher as lacunas da regra e, tanto nas situações ordinárias da realidade burocrática como nas ocasiões extraordinárias que as ins-

"fenómeno Gorbatchev" é a expressão e o culminar (cf. P. Bourdieu, "A long trend of change" - a propósito de M. Lewin, The Gorbatchev Phenomenon: A histo·

rical interpretation -,Times Literary Supplement, Agosto 12-18, 1988, pp. 875-876). 3 Esta incerteza faz parte integrante da própria lógica do jogo. De um

jogo no qual um dos jogadores (por exemplo, um adulto face a uma criança) está em posição de ganhar em todos os lances, d iz-se que "não é um jogo"; é um jogo que não vale a pena ser jogado.

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tituições totais oferecem às pulsões soc1a1s (como o campo de con­centração), os agentes podem assumir, para o melhor e para o pior, as margens de acção que lhes ficam nas mãos, e utilizar a sua posição de superioridade - por mais ínfima e provisória, como a do ajudante de porteiro - inerente às suas funções para exprimir as pulsões socialmente constitu ídas pelo seu habitus4• É assim que os postos subalternos de enquadramento e de controle das "insti­tuições totais" (internato, caserna, etc.) e, de forma mais geral, os postos executivos das grandes estruturas burocráticas, devem muitos dos seus traços mais característicos, que entretanto não estão pre­vistos em nenhum regulamento burocrático, às disposições predo­minantes, num determinado momento, dos que os ocupam: os fun­cionários "cumprem as suas funções" com todas as características, desejáveis ou indesejáveis, do seu habitus. Muitas das "virtudes" e dos "vícios" da pequena burocracia são imputáveis, tanto ou mais, ao facto de os postos subalternos serem particularmente adaptados, até há pouco, à pequena burguesia em ascensão e às suas disposi­ções simultaneamente estritas e estreitas, rigorosas e rígidas, regu­lamentadas e repressivas.

Nem tudo está contratualizado num contracto burocrático: o regulamento que define os deveres do subordinado define simul­taneamente os limites do arbítrio dominante. Esta a ambiguidade fundamental do direito: por um lado é difícil defender-se contra as práticas concretas ou as determinações tácticas de um universo como a família onde o essencial dos constrangimentos éticos per­manece implícito, nas obscuras profundezas das evidências partilha­das, por outro é possível tirar partido de uma regra explícita rein­terpretando o enunciado dos deveres ("o funcionário deve reenviar o dossier em seis dias") de forma a transformá-lo numa reivindica­ção de direitos (o funcionário tem oito dias para reenviar o dos­sier). Restringindo embora a margem de liberdade dos executan­tes, ind icando o que eles podem ou não podem fazer, a regra, na

4 Cf. B. Reynaud, "Types of ru les, interpreration and collective dynamics: reflections on the introduction of a salary rule, in a maintenance workshop", Industrial and Cor[)orate C hange, 5(3), 1996, pp. 699-721.

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medida em que é sujetta à interpretação e à aplicação (no sentido de Gadamer), delimita também o poder do super ior, e, ao definir o que ele tem o direito de exigir, impõe o limite ao seu arbítrio, ao abuso de poder. É esta ambiguidade fundamental da ordem buro­crática que dá relevância à greve de zelo, ao mostrar que basta obedecer à letra às regras que o regem para bloquear o funciona­mento de um sistema oficialmente fundado sobre a obediência à regra. E a margem de interpretação da regra ao dispor de qualquer agente, e cuja amplitude é sem dúvida a mais exacta medida do seu poder, lembra que a ordem burocrática não poderia funcionar se não recorresse em permanência a uma casuística infinitamente sub­

til do direito e do favor. O poder propriamente burocrático e as vantagens lícitas ou ilí­

citas que pode proporcionar baseia-se na liberdade de escolha entre a aplicação rigorosa e estrita da regra e a transgressão pura e sim­ples. E, para dificultar mais ainda a tarefa dos que se interrogam sobre os "incentivos" capazes de aumentar o rendimento do traba­lho burocrático, é apoiando-se neste mesmo princípio, o das liberda­des que se obtêm concedendo liberdades, ou seja, sendo indulgente, fechando os olhos às faltas a uma disciplina formal e tolerando transgressões menores aos imperativos formais e aos formalismos, que alguns detentores de poderes burocráticos podem acumular a título pessoal um capital simbólico que lhes permite mobilizar, a todos os níveis da estrutura burocrática, energias, e mesmo entu­siasmo, que a imposição pura e simples das regras formais nunca obterá e conseguir uma forma de sobre-trabalho e de auto-explora­ção. A aposta em abrir a possibilidade de uma excepção à regra cons­titui um dos meios mais comuns e mais eficazes de adquirir esta forma particular de carisma burocrático que se alcança afirmando a sua distância em relação à definição burocrática de função5

• O fun­cionário assume-se como notável dotado de uma certa notoriedade nos limites de um determinado território e de um grupo interrelacionado, garantindo um capital social de relações úteis e um capital simbólico

5 O carisma do professor-profeta é um outro exemplo deste processo, que analisamos noutra parte.

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de reconhecimento graças a esta forma específica de troca em que a principal "moeda de troca" não é outra coisa senão a excepção à regra ou a adaptação de regras estabelecidas ou fabricadas, como um "serviço" a um utente ou mais, mais frequentemente um outro notável, agindo em nome de um ou outro dos seus "protegidos".

Assim a aplicação do regulamento, que pode ser uma não apli­cação, uma derrogação, um deixar andar legítimo, depende muito directamente, em cada caso, das disposições (habitus) e dos interes­ses (pessoais e de posição) dos agentes que, detendo o poder por força deste regulamento, têm um poder quase monopolista quanto à sua aplicação em cada caso particular, ou seja, à sua interpreta­ção e imposição (como o responsável do DDE no caso da auto­rização de construção ou o arquitecto municipal no caso do plano de arquitectura, ou todos os que, num qualquer momento de um processo de decisão burocrática, têm que dar um "parecer", uma apreciação ou uma nota sobre um formulário previsto para o efeito). Estes agentes executivos que nunca são meros executan­tes dispõe sempre de um leque de "escolhas" possíveis ent~e dois limites, de facto jamais atingidos: a aplicação est r ita e integral do regulamento, sem ter em conta as particularidades do caso consi­derado, que, como lembra a expressão summum jus, summa injuria, pode ser uma forma intocável de abuso do poder ou, pelo contrá­rio, a transgressão legítima, a derrogação oficial ou oficiosa como excepção à regra no quadro das regras e de uma relativa legali­dade. De facto, a segunda hipótese só assume todo o seu sen­tido e valor confrontada com a primeira; é na medida em que suspende a possibilidade de aplicação pura e simples da regra (que pode ser invocada como uma ameaça numa espécie de chan­tagem legal) que a excepção concedida se torna num serviço pres­tado, constituindo assim um recurso específico, susceptível de ser trocado, e de entrar no circuito de trocas simbólicas em que se baseia o capita l social e o capital simbólico do notável. Por opo­sição à autoridade burocrática, este crédito é essencialmente pes­soal: revém apenas àquele que, ao autorizar uma excepção à regra, afirma a sua liberdade pessoal em vez de proceder como perso­nagem impessoal identificada pura e simplesmente à regra de que se assume como vassalo.

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O direito não subsiste sem o favor, a derrogação, a dispensa, a excepção, ou seja, sem toda a espécie de autorizações especiais de transgredir o regulamento que, paradoxalmente, só podem ser concedidas pela autoridade encarregada de o fazer respeitar. O monopólio da aplicação do regulamento pode assim proporcionar a quem o detém, os benefícios e regalias ligados à sua observân­cia e as vantagens, materiais ou simbólicas, associadas à transgres­são legítima, de que a gorjeta ou o suborno representam apenas a sua expressão mais grosseira: a isenção burocrática das interd i­ções ou das obrigações burocráticas pode ser fonte de vantagens mais subtis, como o crédito por serviços prestados que pode ser utilizado n as trocas com outros detentores de poderes burocráti­cos, como tal privilégios potenciais (é o que no calão burocrático se designa de serviços mútuos), ou com outros notáve is, e em parti­cular eleitos, deputados, conselheiros ou presidentes de câmara que aumentam o seu capital simbólico através de intervenções e interce­dendo junto da burocracia, ou ainda com simples particulares que detêm capital social suficiente para participar nestas relações de troca. Através deste mecanismo, que se inscreve no próprio cerne do monopólio burocrático, o arbítrio ligado à tentação de acumu­lação de um "poder pessoal", de um capital simbólico associado à pessoa do mandatár io, insinua-se na aplicação do regulamento, pondo em causa os próprios fundamentos da "racionalidade buro­crática", ou seja, o controle e previsibilidade que, segundo Max Weber, a definem.

A transgressão regulamentar ou autorizada pelo regulamento não é uma simples falha da lógica burocrática; ela inscreve-se, de facto e de direito, na própria ideia de regulamento. Antes do mais por­que, por mais minuciosos que sejam os regulamentos que regem a aplicação da regra (e em particular as circulares de aplicação que os "redactores da administração central" produzem para os exe­cutantes dos "serviços externos"), nunca poderão prever todos os casos e situações possíveis e, se o fizessem, tornariam a sua "exe­cução" impossível. Paradoxalmente, a regra não é verdadeiramente o princípio da acção; ela intervém como uma arma e um instru­mento das estratégias que orientam a acção. Em direito, porque a derrogação Legítima à regra burocrática pode ser inscr ita na própria

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lógica da instituição burocrática, sob a forma de instâncias de recurso oficiais ou oficiosas que, através da divisão de trabalho de domina­ção que estabelecem, permite à instância hierarquicamente superior, como tal dotada de um grau superior de liberdade, tirar uma vanta­gem simbólica da rigidez regulamentar da instância inferior (a hierar­quia entre os dois funcionários levando a que, em muitos casos, as disposições "repressivas" da pequena burguesia - Legalismo, rigor, espírito severo, etc. - sirvam para valorizar as disposições burguesas - distanciamento da função, humor, perspectiva superior, etc.)6•

(Salta à vista a dificuld ade das tarefas de controle, vigilância e avaliação que incumbem às instâncias centrais e que, em todas as trad ições, tendem a ampliar-se, por vezes até à hipertrofia, à

medida que avança a construção do edifício burocrático, a ponto de constituírem, em muitos casos, o essencial, tanto no plano quantitativo como qualitativo, do que vulgarmente apelidamos de burocracia. Os membros dos corpos de controle, hierarquicamente superiores, são dotados, na maioria dos casos, de um capital cultu­ral e simbólico superior ao dos funcionários subalternos; mas, em contrapartida, estão de facto e de direito mais afastados das "rea­lidades" [nomeadamente porque não se podem aproximar dema­siado sem porem em causa o seu estatuto], e as competências téc­nicas que lhes valeram aceder à sua posição, seja a cu ltura letrada do mandarim chinês ou a cultura matemática e jurídica do alto funcionário europeu, nem sempre são úteis ou utilizáveis de uma forma directa, mesmo para fins de simples controle, na rotina quo­tidiana da vida burocrática. Assim, as práticas dos pequenos fun­cionários subalternos opõem aos controles racionais, tornados pos­síveis pelos instrumentos burocráticos que pouco a pouco foram criados com esse fim, como o recenseamento estatístico das acti­vidades, registadas nos arquivos, ou as inspecções súbitas, regula-

6 Todos estes mecanismos jogam em cheio nos casos em que os "puní­veis" são particularmente dependentes, e sem recursos, como é o caso dos im igrantes ou, uma situação extrema, o dos \em papéis", consistindo a hipo­crisia das decisões centrais em deixar as mãos livres às instâncias executi­vas e campo aberto às suas disposições, mais frequentemente repressivas que compreensivas.

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res ou extraordinárias, uma espeCie de opacidade endémica, ligada à sua própria lógica, que é a do saber-fazer prático, funcionando passo a passo e caso por caso, e destinada a pôr em causa, mesmo sem qualquer intenção de dissimulação, as exigências codificadas e racionalizadas das instâncias de controle. De facto, esta falta de sintonia estrutural entre as duas lógicas, que sem dúvida é o que torna as burocracias capazes de se adaptar aos casos particulares na sua imprevisível diversidade, é simultaneamente o que as pre­dispõe a escapar ao controle racional. E é igualmente certo que a inevitável casuística de quem está no terreno, em contacto directo com os problemas concretos, abre muito naturalmente possibilida­des de dissimulação praticamente infinitas aos que queiram e pos­sam jogar plenamente com a ambiguidade da regra e sobretudo de todos os recursos do jogo com a regra. É por isso que o legalismo, que consiste em fazer da regra o princípio das práticas e, mais pre­cisamente, deduzir as práticas da regra que as deveria reger, se é particularmente encorajado pela imagem que as burocracias têm ou pretendem dar delas próprias, simultaneamente como produtoras e produtos do regulamento, é sem dúvida o mais temível obstáculo a um conhecimento e a uma compreensão verdadeiros do funcio­namento real das burocracias.)

O domínio territorial

Como descrever os processos soctats que levam à concretização prática dos regulamentos e que dão ao Estado o seu papel real, o papel de que se reveste ao encarnar-se nas inumeráveis acções dos inumeráveis agentes burocraticamente mandatados para agir em seu nome e que se confrontam, no domínio territorial, com inte­resses divergentes e poderes diferentes? A "escolha" que cada um dos detentores de um poder burocrático pode fazer entre o rigo­rismo e o laxismo, entre as diferentes formas de abuso de poder por hipercorrecção ou por "distanciamento em relação à função", tem o seu limite na concorrência com os outros pretendentes ao monopólio da aplicação da regra burocrática. De facto, nenhum responsável pode ignorar que cada "administrado" pode tirar par-

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tido dos conflitos estruturais entre as autoridades que se con­frontam no quadro de uma unidade administrativa como o dis­trito (por exemplo, o presidente da Câmara e o chefe de serviço da DOE) para suspender as decisões indesejáveis ou retardar-lhes os efeitos; ou que, jogando já não com as relacões horizontais no quadro do domínio territorial, como o distrito: mas com as rela­ções verticais, pode mesmo tentar fazer intervir o ministério da tutela e, no caso limite, conseguir que seja mudado o funcionário que recusa arranjar formas de adaptação da regra. Por exemplo, os arquitectos municipais e sobretudo os engenheiros das DOE, podem jogar com a ambiguidade estrutural da sua posição de dupla dependência, em relação ao presidente da Câmara e às "comunida­des locais", por um lado, e em relação à hierarquia do seu minis­tério de tutela, por outro, para garantir uma forma de independên­cia que permita os compromissos, as excepções e as negociações e, dessa forma, importantes vantagens materiais e simbólicas. Mas a tentação caciquista, com o abuso de poder que implica, encontra o seu limite no controle e na censura que exercem o domínio da concorrência territorial e, através dele e das suas intervenções, as próprias autoridades centrais, na lógica da "mutacão" ou da "ante­cipação", que conduz ao "centro", ou seja, a pod~res mais amplos mas também mais controlados.

Assim, como referem todas as informacões que recolhemos, sobretudo as daqueles cuja carreira levou a . passar por diferentes situações locais, e como as nossas observações (no Loire e em Vai d 'Oise) nos permitiram verificar, a configuração das forças em pre­sença no quadro territorial varia de distrito para distrito e, em cada distrito, de acordo com os interesses e as disposições dos agentes que aí ocupam as posições determinantes, presidente da Câmara, chefe de serviço da DDE, presidente do Conselho geral, presidentes das grandes cidades; ao mesmo tempo, é claro que encontramos invariantes através da complexidade e multiplicidade das configurações no quad ro das quais são definidas as interacções entre agentes e instituições que podem intervir directa ou indirec­tamente na questão do alojamento e n~s "decisões" susceptíveis de serem tomadas nesta matéria. A mais aguda consciência da infinita diversidade de combinações concretas não impede de conceber os

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prinCiptos de um modelo capaz de tornar as prattcas e as estraté­gias individuais, se não previsíveis, pelo menos imediatamente inte­ligíveis: um tal modelo deverá ter em conta, para cada um dos agentes, para além das características associadas à sua trajectóría social, os poderes (ou o capital) e os interesses ligados à posição, actual e potencial, que ocupa na dupla relação, vertical, no seio da hierarquia do seu organismo, e na horizontal, no domínio local. Poderemos assim dotar-nos dos meios para recuperarmos a confi­guração global do domínio local e da forma particular de interac­ções (positivas - cooperação, aliança, etc. - ou negativas - confli­tos abertos ou larvares) que podem aí ocorrer.

O facto de a aplicação dos regulamentos se efectuar através desta multiplicidade de poderes concorrentes que se opõem entre si no domínio territorial, mantendo-se simultaneamente integrados no domínio nacional (o dos presidentes de Câmara, dos arquitectos, dos engenheiros das DOE, etc.) e que oscilam permanentemente entre a tentação da "vassalagem local" e a ambição de ascender na hierarquia central (nomeadamente a do organismo respectivo), garante uma certa protecção contra o abuso de poder pelo menos aos que dispõem dos recursos necessários para entrar no círculo da troca de serviços, e assegura igualmente protecção contra o domí­nio total de um dos poderes, ou de uma autoridade central, sobre a totalidade do jogo. Assim, cada uma das posições mais fracas no domínio territorial podem abrir caminhos para a sua independên­cia através do "jogo de bilhar" (como por vezes se diz) que con­siste em apoiar-se num poder para escapar a um outro que, numa outra ocasião, ou noutro domínio territorial, poderá ser utilizado para resistir ao primeiro. Até certo ponto, é sempre possível fur­tar-se à influência de um ou outro dos concorrentes, pondo-os em concorrência com terceiros. Eis um testemunho típico de um res­ponsável do serviço de contencioso administrativo de uma ODE num municipalidade da região parisiense: "Nós (nas DOE), somos funcionários do Estado. Um presidente de Câmara não me pode dar ordens no sentido de me proibir o acesso a um dossier. Mas como queremos manter a confiança dos eleitos municipais, acaba­mos por aceitar, para não perder a nossa credibilidade. Se recu-

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sarmos, o presidente da Câmara irá contactar uma empresa pri­vada que lhe dirá sempre sim. As empresas privadas de estudos, os arquitectos privados podem fazer POS (Planos de Ocupação de Solos); seguirão a lógica d a rentabilidade, poderão fazer por exem­plo um POS em quinze dias. A qualidade não interessa. Em con­trapartida, a administração conhece o terreno, trabalhamos no dia a dia com os presidentes de câmara. O sub-chefe da administração está permanentemente no local. É o GEP (Grupo de Estudo e de Planificação) que, no nosso caso, elabora os planos de ocupação de solos." Para mais, se a DOE pode recusar as ordens ou pedi­dos do presidente da Câmara, precisa da clientela dos municípios e deve evitar reclamações e protestos que poderão denegrir a sua imagem junto da administração central. Pelo seu lado, o presidente da Câmara pode fugir à influência da DOE (tanto mais facilmente quanto maior for o município) pondo-a em concorrência com um arquitecto privado, mas tem interesse em garantir a competência específica do sector de Equipamento, e mesmo a sua cumplicidade activa, para levar a cabo obras que poderão contribuir para a sua reeleição. Por isso, o presidente da Câmara, como muitos eleitos locais, considera mais simples e mais seguro confiar a concepção e realização dos seus projectos aos funcionários da DOE, contanto que, ao associá-los aos seus próprios projectos, e como contrapar­tida às vantagens que retiram dessa situação, lhe irão garantir os meios para realizar a sua política.

Outro exemplo destes compromissos mútuos, que levam à nego­ciação para evitar os golpes e confrontações directas: "Tomemos um exemplo concreto: o da autorização de construir. 99% dos municípios passam pela DOE para obter autorizações (plano de ocupação dos solos aprovado ou não). O presidente da Câmara, que não é forçosamente especialista em urbanismo, vai seguir a opinião da DOE. Mas se se tratar de um acto ilegal, a ODE pode recusar o processo e obrigar o governador civil a anulá-lo. Só que assim o presidente da Câmara ficará descontente. Como tal a DOE irá discretamente negociar com o presidente da Câmara para que mude de opinião, sem conhecimento do governador civil." Noutros casos, o utente descontente com as decisões da DOE pode apre­sentar queixa ao presidente da Câmara ou pedir a intervenção de

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um vereador. O eleito, empenhado em corresponder aos interesses de um eleitor, pode intervir junto da DDE, ou, pior ainda, pedir a intervenção do governador civil. Situações desagradáveis, ou mesmo perigosas, na medida em que podem pôr em causa, quer a auto­ridade dos serviços técnicos e o equilíbrio, sempre muito sensível, da sua relação com o governador civil, quer a relação entre a DDE e o presidente da Cãmara, cliente actual ou potencial, ou mesmo, em caso de conflito grave, a posição do próprio funcionário, sem­pre exposto a uma mudança. Também aqui, esta rede de mútuos condicionamentos leva os serviços técnicos a rodear as suas deci­sões de consultas e negociações.

Tal como os utentes, os organismos mais débeis, mas também o poder central, podem apoiar-se nesta rede de relações de inter­dependência concorrencial para virar organismos e funcionár ios uns contra os outros e obter, com estes conflitos, uma certa liber­dade. Assim, os organismos consultivos como a ADIL (Associação Departamental de Informação sobre a Habitação - encarregada de oferecer in formação jurídica aos utentes) e o CAUE (Consultor em Arquitectura, Urbanismo e Ambiente - encarregado de dar con­selhos aos particulares e aos municípios) que têm muita d ificul­dade em fazerem-se reconhecer como possíveis interlocutores pelas instâncias dominantes no quadro do domínio territorial, podem apoiar-se nos eleitos que, à partida (contribuem para a sua criação), lhes são, pelo menos aparentemente, favoráveis, mas, assumindo como ponto de honra "evitar qualquer recuperação política", adap­tam uma imagem de neutralidade que os impede de ut ilizar esse recurso. Podem também apoiar-se nas administrações, e nomeada­mente nos funcionários da DDE, mas como estes tendem a ver com maus olhos as suas intervenções, que vêm baralhar as rela­ções privilegiadas que mantêm com os "seus" eleitos, são em geral levados a apostar numa acção educativa que assume por vezes a forma de uma espécie de agit prop junto dos utentes.

Entretanto, para lá de todas as formas de equi líbrio que seja possível concretizar, entre os diferentes organismos competentes em matéria de habitação, governo civil, DDE, CAUE, ADIL, eleitos locais, presidentes de Câmara, vereadores, deputados, associações,

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segurança social, empresas públicas de habitação social, organis­mos de empréstimos, etc., em cada município e em torno de cada questão polémica, a verdade é que, sobretudo no caso de negó-ios importantes, autorizações de construção, POS ou ZAC, o peso

maior, em termos estruturais, cabe sempre à DDE, ao governo ivil e aos presidentes de câmara; sendo a posição central mono­

polizada pela DDE, em torno da qual tudo gira e cuja influência 'e impõe de forma tanto mais determinante quanto mais peque­nas e menos solidárias são as autarquias com que lida, e por isso obrigadas, à falta de recursos económicos e técnicos, a recorre­rem a ela para a execução e mesmo para a concepção dos seus projectos urbanísticos. O antagonismo de fundo entre a DDE e

governador civil, o equivalente, a este nível, à oposição entre o ministério das Finanças, com os seus directores, e o min istério do Equipamento, com os seus engenheiros civis, é um factor de equi­líbrio, que dá aos administrados e seus representantes a possibili­dade de um recurso. Dito isto, só todo um conjunto de monogra­fias poderia dar conta das variações e das invarian tes que marcam o confronto entre dois corpos que tendem ambos a considerar­-se como uma elite das elites, separados entretanto pela forma de expressão, pelo tipo de raciocínio e pela própria visão do mundo; e não chegariam muitos volumes para descrever as d iversas varian­tes das estratégias através das quais o director de departamento do Equipamento, o engenheiro civil e o politécn ico, com a força que lhe dá o hermetismo da sua técnica, a relação privilegiada que o liga ao seu organismo e ao seu ministério de tutela, e o peso eco­nómico e político que lhe confere, junto das comunidades locais, o seu triplo papel de controle, concepção e iniciativa, tenta pôr em causa na prática a posição oficialmente proeminente do admi­

nistrador ao nível departamental. Q uanto aos construtores e aos empreiteiros, estão muito desi­

gualmente armados para entrar neste "jogo de bilhar". Mesmo que por vezes sejam alvo de um certo preconceito por parte dos arqu i­tectos mun icipais, os grandes construtores nacionais detêm, sem dúvida, pelo menos neste domínio, uma clara vantagem relativa­mente aos pequenos e médios construtores regionais (que podem apoiar-se preferencialmente nos deputados e nos senadores): estão

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indubitavelmente mais bem armados para orientar as decisões em matéria de política de habitação e para contornar - através da intervenção junto das autoridades centrais, min istros, gabinetes mmtstenats - os obstáculos burocráticos que as autoridades subal­ternas lhes levantam. Mas, também aí, se o modelo proposto per­mite definir o que serão, em cada caso, os parâmetros adequados no campo das forças possíveis, é aperias na singularidade de uma conjuntura que se torna possível determinar qual será exactamente o sistema de limitações burocráticas, característico de tal configu­ração particular da estrutura do mercado, com base local, da casa individual, que pesa sobre determinada transação particular.

Destas análises poderemos ser tentados a concluir, como o fazem frequentemente alguns dos melhores observadores, que todo o "sistema burocrático", gigante com pés de barro, estaria votado à impotência, por força da rigidez das suas estruturas hierárqui­cas, sem a permanente intervenção destas regulações "espontâ­neas", correcções, ajustamentos, acomodamentos, que ocorrem na relação entre as instâncias "locais" da burocracia de Estado, nomea­damente as DOE, e os representantes das "comunidades locais" assim investidos de um extraordinário poder ("o presidente d~ uma pequena câmara é o critério que, pouco a pouco, marca toda a acção administrativa")1. Esta visão "basista" anda com frequên­cia a par de uma representação vagamente funciona lista, que faz da impossibilidade de controlar o campo de acção das instâncias territoriais, e das possibilidades que a rivalidade entre instâncias territoriais oferece ao jogo dos notáveis locais e dos seus manda­tários, a base de uma dialéctica constante entre o "sistema buro­crático" e a realidade envolvente e, dessa forma, o princípio de um equilíbrio entre a anomia8 de uma sociedade desprovida de regras ou incapaz de impor a sua aplicação e a hipernomia de uma ordem social rígida e incapaz de se adaptar no quadro das suas próprias regras.

7 C f. P. Grémion, L~ Pouvoir périphérique. Bureaucrates et notables dans le systeme

politique français, Paris, Editions du Seu i!, 1976. 8

Anomia - rejeição de qualquer lei (nómos - lei, regra). (N. do T)

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Esta representação um pouco optimista tem o mérito de tomar em conta a complexidade das interacções que se ocultam sob a aparente monotonia da rotina burocrática. Mas a realidade é sem dúvida ainda mais complexa, e não podemos esquecer que cada uma destas interacções é palco de jogos e de jogadas de poder, e como tal de violência e de sofrimento. Na verdade, não entra quem quer neste círculo de trocas vantajosas que permitem o ajus­tamento das normas à realidade: os notáveis beneficiam simulta­neamente da regra e da transgressão; para o comum dos "subalter­nos" e dos "administrados", desprovidos dos recursos indispensáveis para obter os desfasamentos à regra que se abrem aos privilegia­dos, "a regra, é a regra" e, em alguns casos, "a suprema justiça é a suprema justiça". Tanto ao nível da concepção e da elaboração das leis e dos regulamentos, como ao nível da sua aplicação, nas obs­curas transações entre os funcionários e os utentes, a administra­ção não tolera verdadeiramente o diálogo senão com o notável, ou seja com um outro seu igual, ainda que num plano ligeiramente inferior: assim se estabelece o ajustamento sem negociação (o oposto do compromisso negociado numa base organizada) que é garantido, ao nível colectivo e nacional, pela comissão, e ao nível individual e local, pela intervenção, duas formas de troca, geradora de ganhos simbólicos, entre agentes que são suficientemente conhecedores das verdadeiras regras do jogo, para tirar ganhos (para eles próprios e para os seus protegidos) de uma gestão racional do direito e da manipulação do direito, da lei e do privilégio.

Mas é preciso avaliar também os inúmeros custos dos efeitos da hipernomia burocrática e, em particular, o custo em tempo, em trabalho, em diligências, por vezes em dinheiro, que os cidadãos comuns têm frequentemente de pagar para impor, contra o abuso de poder, contra o arbítrio da aplicação ultra-rigorosa da regra, contra a r igidez permitida pelo monopólio burocrático, o afasta­mento, por vezes mínimo, em relação à norma em bruto e bru­talmente aplicada, que aproxima um pouco o procedimento buro­crático de ideal de uma administração realmente (e não apenas formalmente) racional ou, muito simplesmente, das expectativas e exigências legítimas do utente.

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Anexos

Entrevistas: Três perspectivas

sobre o domínio local

Um pequeno empresário

O director de uma pequena empresa de construção regional (em Ile-de-France) lembra (em 1985) os seus conflitos com os diferen­tes responsáveis distritais e, em particular, com os arquitectos das DDE e dos Edifícios de França9.

Sr. D.: ( ... ) O ra essa gente (os arquitectos) não têm nenhuma formação a nível técnico, ( ... ) não têm de todo em todo o tipo de raciocínio de um técnico. São artistas. E então fazem coisas que lhes parecem belas. E, como de costume, é o belo como eles

9 Esta conversa, como todas as aqui referidas, foi realizada no quadro de um estudo levado a cabo num departamento da lle-de-France, o Val-d'O ise, e que deu lugar a entrevistas com diferentes intervenientes: arquitectos muni­cipais (CAUE, DDE, etc.), juristas (ADIL), um notário; com funcionários de diferentes sectores da DDE - Argenteuil (serviço das autorizações de constru­ção), Cergy Préfecture (serviço dos contenciosos do urbanismo); como o pre­sidente de câmara e os responsáveis dos serviços técnicos de urbanismo em Taverny. Procedeu-se também a consultas sistemáticas no serviço técnico de urbanismo da câmara de Taverny, nomeadamente em relação às autorizações para construção para os anos de 1984 e 1985, sobre a implantação e realiza­ção da ZAC de Ligniéres em Taverny e sobre a comercialização pela AFT RP (Agência Imobiliária e Técnica da Região Parisiense) de uma primeira parcela de terrenos postos à venda em Taverny. Por último t iveram lugar observa­ções em Moisselles, "aldeia-montra" das casas individuais, realizaram-se entre­vistas com os construtores locais e houve recolhe sistemática de documenta­ção publicitária. Com o objectivo de fazer comparações, realizou-se idêntico plano de est udo no distrito de Loiret.

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o entendem. Por mim, não pretendo entrar em polémica nessa área, mas, o que me interessa, é que seja belo para os clientes. O que me importa é que os meus clientes apreciem. E, por outro lado, que esteja dentro das suas capacidades financeiras. O u seja, por mim cinjo-me a uma sabedoria camponesa... Em qualquer dos casos, é muito simples: a prova real é a do mercado. Portanto somos nós quem tem razão pois somos nós que dominamos o mer­cado. Aliás, se fossem eles a ter razão, nós não exist iríamos, seriam eles a fazer o nosso t rabalho. É evidente, n ão?

- Parece que, em geral, vocês têm uma relação bastante d ifícil com os arquitectos... enfim , n ão é que lhes queiram mal, mas ...

Sr. 0 .: Ah, sim! Q uero-lhes mal, sim, porque tenho boas razões para isso. (. .. ) Q uero-lhes mal porque muito simplesmente considero que essa gente goza de uma situação de monopólio que, quanto a mim, é intolerável. (. .. ) Salta à vista que se assiste a abusos escan­dalosos por parte dos arquitectos dos Edifícios de França, ou das DOE. Essa gente, não temos nenhuma forma de os controlar. Nenhuma. E como tal eles fazem o que querem (. .. ) Por exemplo, quando nos dizem que os rebordos dos telhados não devem ter mais de 12 em ( ... ) e eu não vejo em que é que possa ser um aten­tado ao amb iente, que um rebordo de telhado ten ha 30 em em vez de 12 em. É pura canalhice, desculpem lá o termo ( ... ) Mas se, a dada altura, o arquitecto Z é substituído pelo arquitecto X, tudo muda: o que antes era belo passa a ser feio. Assim... temos todo um sector profissional a reclamar, mas isso não impede que as coi­sas continuem a ser como são. Ainda que, agora, estejam mais ate­nuadas. Mas no princípio, eu diria até há coisa de mais ou menos cinco anos, era de loucos, completamente de loucos.

- Ou seja? Sr. 0.: Bem, chegávamos com uma casa, enfim, com um pro­

jecto, eles riscavam aquilo com grandes traços vermelhos, punham tudo da cabeça para os pés e ficávamos num impasse. ( ... ) Então íamos à luta, sem largar, e era à força de ir à luta que acabávamos por... os aproximar um pouquinho das nossas propostas. Depois houve alguma aproximação ... há alguns anos para cá. Mas no prin­cípio, pode-se dizer, aquilo era mesmo uma espécie de massacre!

-Como é que era isso?

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Sr. 0 .: Bem, as nossas relações eram de meter medo. Para eles, éramos uma raça a abater. Alguns dos meus colegas eram trata­dos, a nível nacional, como polu idores. O que é completamente estúpido. Não se faz poluição quando se constroem casas. A liás, ao fim de cinco anos, com essas trepadeiras e tudo o que as pes­soas lá põem, deixa de se ver ( ... ). E, ainda por cima, havia pes­soas a quem eram sistematicamente recusadas as autorizações de construção. Então era dramático porque havia pessoas como nós, que investem para vender, e outros, por trás, que riscavam com grandes traços vermelhos e "ide refazer o vosso plano". Posso dizer que houve assim um ou dois anos de tensão extrema. E depois, lá acalmou, por pressão do ministério da tutela ( .... ).

E o Sr. O. prossegue, evocando as d ificuldades que encontrou nas suas diligências para obter a autorização para expor uma das suas casas, durante quatro meses, na gare de Leste em Paris.

Sr. 0.: Mas quero falar-lhe, por exemplo, da casa que tivemos em exposição na gare de Leste. O ministério da C ultura considera que é um atentado ao ambiente termos colocado lá aquela casa. Penso que viram mal! Têm que ir ver outra vez. Por mim, gosta­ria bem de os levar a visitar o bairro, porque há por lá algumas coisas que têm que se lhe d iga. O lhe para estes painéis publicitá­rios, a regulamentação, etc. Venham então d izer depois: "Ah, não, é inaceitável". Q ue isto choca: de acordo. Que isto não pode ficar definitivamente assim: certo. Mas trata-se de uma exposição que não é definitiva, que dura quatro meses. Então, dizer que é um atentado ao ambiente, acho que é gozar com toda a gente.

- Espere lá, recebeu uma carta do ministério da C ultura? Sr. 0.: T ive mesmo uma recusa por parte da Câmara de Paris. - Mas como é que é possível que mesmo assim a sua casa

esteja lá? Sr. 0 .: Fui reclamar junto do governo civil e o governo civil

deu-me autorização... enquanto a Câmara de Paris recusou. E o ministério da Cultura também recusou; contra a opin ião do gover­nador civil. Estavam mesmo dispostos a dar ordem de demolição. Está a ver até onde isto vai!

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É incrível! Mas então como é que isso tudo acabou? É por­que conhece algumas pessoas pessoalmente .. .

Sr. 0.: De maneira nenhuma. De maneira nenhuma. É à força de ... de ... como dizer? ... de di ligências e de ir discutir com as pes­soas para as convencer. Porque se a questão fosse pôr em expo­sição um avião ou... carros da última guerra mundial, ninguém diria nada. E isto apenas porque os arquitectos não teriam nada a ver com o assunto (. .. ) É preciso que lhe diga que me safei desta forma: quando a proibiram, já tinha terminado. Foi assim. Entre o momento em que pedi autor ização e o momento em que me foi dito que não, a casa esteve instalada no local. Eles precisaram de dois meses para fazer um papel, eu construi uma casa nesse mesmo tempo. Como vê temos ritmos diferentes. Não somos da mesma raça.

- Então, quando o papel chegou, como reagiu? Entrou em pânico?

Sr. 0.: Não, nada disso ... Enfim, ainda assim fiquei um pouco inquieto (riso)... mas já estava à espera de algo semelhante e tinha a possibilidade de recorrer ao governador civil. O que aliás fi z. E depois tinha sobretudo o apoio da SNCF, pois instalara a casa em terreno da SNCF. Então eu disse à SNCF: "Isso é problema vosso, desembrulhem-se. Quanto a mim, aluguei-vos esse espaço e vocês sabiam para o que era". Então, a partir dai, foi administra­ção contra administração. E foi um jogo de xadrez, e posso dizer­-lhe, nada simples.

- E o governador civil? Sr. 0.: Obtive uma autorização do governador civil... não sei

bem quando, mas um mês depois da casa estar concluída. E assim, contra mim tinha: a câmara de Paris, o ministério da C ultura, e uma associação do 10° bairro que se chamava "Viver melhor no 10° bairro". ( ... ) Agora, para mais, a piada é que esta casa é uma casa concebida por nós e submetida aos arquitectos dos Edifícios de França de toda a região da lle-de-France, e foi considerada como perfeitamente integrável nos locais, porque é um tipo de casa de alguma forma aprovado, ainda que não seja uma aprovação ofi­cial, porque isso, isso não existe. Mas então, d iziam-nos: "Tendo em conta que, na gare de Leste vocês estão num sítio classificado,

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porque há a igreja tal e coisa a menos de quatrocentos metros, não podem fazer isso." (. .. ) Na verdade, quanto às redondezas, é preciso saber onde elas começam. A partir do momento em que se vêem camiões SERNAM, que são uma espécie de ruinas ambulantes, frente à gare de Leste, devo dizer que a minha casa, faz lá bem melhor figura. Puseram-se flores no pátio, isso não faz mal...

Um funcionário da DDE

"As relações entre o serviço de urbanismo - ou seja a ODE -e os diferentes parceiros são muito variáveis de um distrito para outro. Posso começar pelas relações entre a DOE e os serviços do governo civil. Sabe que é o governador civil que está à cabeça da ODE, que tem sob as suas ordens todos os serviços de Estado. A forma de intervenção das DOE e dos outros serviços depende, em geral, da sensibilidade de cada governador civil, ou de cada res­ponsável, face aos problemas. No Loiret, temos a sorte de ter um responsável muito sensível aos problemas da habitação, o que leva a que as relações entre o governo civil e a DOE sejam excelen­tes. Há contactos frequentes. O governador civil tem o poder de decidir, mas participamos muito nos debates prévios, nunca somos colocados perante factos consumados. Noutras províncias, os ser­viços de habitação (da ODE) são tratados como meros executan­tes pelos serviços do governo civil. Há outros distr itos onde os serviços do governo civil não se preocupam muito com os proble­mas do alojamento e nesses casos há uma ampla e total delega­ção: são as ODE que fazem o trabalho e tentam «passar» tudo o que entendem. As situações são as mais diversas. No caso do dis­trito de Loiret, há uma situação de equilíbrio, em que o governa­dor civil decide, mas, na prática, passa-nos para as mãos questões

· específicas, pede-nos estudos; e nós fazemos esses estudos, discu­timo-los, pomo-nos de acordo e, assim, penso que tudo funciona bastante bem. O que é pena é que, ao nível da habitação (conti­nuando a falar do distrito de Loiret), temos um Conselho distrital muito pouco sensível aos problemas do alojamento (. .. ). Em alguns distritos, o serviço participa em alguns melhoramentos, ajuda os

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organismos, as autarquias, leva a cabo alguns trabalhos de recupera­ção de bairros degradados. Aqui, não. O serviço diz: «A habitação não faz parte das nossas atribuições, não participamos». Tentámos fazer compreender que, em torno dos problemas da habitação, há problemas sociais que lhes compete resolver. Mas respondem: «]á fazemos o suficiente ao nível social aqui no serviço». ( ... ) Isto tem ·a ver com o presidente. E temos o mesmo problema ao nível da cidade principal de Orléans, por exemplo (. .. ). É semelhante. A cidade de Orléans não participa em nada que diga respeito a alo­jamento. Pelo menos até á data."

(Extracto de uma conversa realizada em Dezembro de 1988, com um fun­cionário da DDE de O rléans, director do grupo UOC - Urbanismo Opera­

cional e Construção.)

Um arquitecto conselheiro

M.R., arquitecto, é director de um CAUE (Conselho de Arqui­tectura, Urbanismo e Meio-ambiente) na Ile-de-France (criados com base na lei de 1977 por iniciativa do ministério do Equipamento, os CAUE têm por função aconselhar os particulares e as muni­cipalidades no domínio da arquitectura e do urbanismo). Ele des­creve como foi criado o seu organismo.

M.R.: Antes do mais importa dizer que os governadores civis tiveram um papel muito importante na criação dos CAUE. Ou seja, foram eles que presidiram às comissões criadas como grupos de trabalho para a organização dos CAUE. Isto é muito impor­tante porque, ao contrário do que se passa agora, o governador civil nem sempre era quem detinha mais poder no seu distrito.

- ? M.R.: Quer dizer que por vezes a DDE detinha mais poder

do que ele. - E aqui? M.R.: Aqui, na época, o governador civil do distrito era um

político, um gaullista ... e quanto mais complicadas eram as situa­ções no plano técnico, mais ele tinha tendência a desconfiar. E

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a DDE tinha dificuldade em... eu diria, em utilizar uma lingua­gem muito política, concreta, em vez de uma linguagem técnica ... monopolista. Em resumo, havia um problemazito entre eles. E, para mais, o governador civil tinha um secretário que tinha liga­ções ... bom, enfim, o ambiente de uma província, de um departa­mento normal. Enfim, o governador civil queria controlar as expe­riências. ( ... ) Assim rapidamente fez-se um acordozito: o governador civil com o arquitecto ABF e comigo, o arqu itecto que o governa­dor civil tinha encarregado para decidir e fazer experiências. (. .. ) Entretanto, por sua vez, a DDE criou uma outra estrutura, para ter uma posição forte na CAEU, com o objectivo, diria eu... de pressionar a nível institucional, do estilo: "Têm que fazer aquilo", enfim, formalismos! A DDE dizia: "Para nós, é preciso mais, e como tal vamos colocar exigências ao nível da arquitectura às nos­sas autorizações para construir". Na época a inda não se falava de pedagogia. Eles falavam de educação: "Vamos ensinar isto às pes­soas ... ". E pouco a pouco este estilo impôs-se. A DDE desenvolveu uma estrutura desse tipo. E nas últimas reuniões (para a criação do CAUE) - como era urgente, em Setembro de 1978, continuáva­mos nos grupos de trabalho. .. - , o governador civil reuniu toda a gente, sabendo que eu tinha preparado um relatório (só ele sabia disso) que definia objectivos de trabalho.. . Nessa reunião, havia representantes da DDE, da DDA, da DDASS, da inspecção acadé­mica. E bem, a DDE estava lá com a lei de 1977 para dizer ... bem para dizer que eles é que eram os chefes! E um dos seus proble­mas era: "No CAUE não é preciso haver director."

- Porquê? M.R.: Isso permitia-lhes destacar pessoas contratadas por eles

para trabalhar como uma equipa técnica. E utilizavam para tal sub­venções de estudos de urbanismo. O problema era que havia lá representantes dos arquitectos, que começaram com grandes histó­rias; a DDE tentou encurralá-los dizendo: "Bem, vocês não leram o 3.0 capítulo, alínea 2, etc.", e eles a responder: "Mas a arquitec­tura .. . , etc., etc.". Em resumo, o governador civil em pouco tempo ficou farto. E disse-me - eu estava praticamente na frente dele: "Tem aquela coisa pronta? Está certo disso?" Respondi-lhe: "Mas isto funciona muito bem. Já temos seis meses de experimentação.

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Pode ser generalizado. E além disso não é uma coisa rígida, é um sis­tema aberto ... ". Não me deixou falar mais, pediu que o meu relatório fosse aprovado. Aprovado. Os outros calaram-se, sem saber de que se tratava. Depois de o ter aprovado, leu-o. Então, os tipos fartaram-­se de barafustar. ( ... ) E ficou assim: "Bom, agora, criamos o CAUE, informamos o Conselho geral que vamos realizar a assembleia geral constitutiva". Realizou-se a assembleia constitutiva e foi então que surgiram os primeiros problemas políticos reais. Um certo número de eleitos estava muito mal informado quanto ao funcionamento e à

origem do CAUE, porque a informação tinha sido feita pela DOE, então imagine! Praticamente ela disse não importa o quê ... A DOE quis começar a colocar as pessoas no quadro de uma equipa técnica enquanto o trabalho ia prosseguindo. E quando os tipos que que­riam os postos-chave da CAUE se começaram a degladiar de uma forma incrível, os eleitos fizeram marcha atrás, enfim pelo menos o presidente do CAUE que tinha sido eleito, que era um homem um pouco do tipo III República, muito calmo, presidente de um muni­cípio com mais de 10 000 habitantes. Havia pessoas que estavam integradas nos Edifícios de França e ligadas ao governador civil e que também tentavam, de todos os modos, fazer-se ao tacho... Em resumo, tudo isto acabou por se arrastar por um ano.

(O CAUE acabou por ser criado.) - E depois como reagiu a ODE? M.R.: Muito, muito mal. Os Edifícios de França, bem. Mas a

DOE, a partir do momento em que o presidente do CAUE deci­diu assumir o controle da situação e me nomeou como director, com o acordo do governador civil - pois o governador civil tam­bém teve que ceder ...

- O governador civil também não estava de acordo? M.R.: A minha nomeação dependia de duas assinaturas: a do

presidente do CAUE e a do governador civil. E o governador civil, não era bem isto que ele queria. Mas teve mesmo que ceder porque não tinha outra opção. Além do mais, tinham decorrido dezoito meses de trabalho e isso, de certa forma, limitava-o.

- D isse que a DOE reagiu muito mal... M.R.: Muito mal. Literalmente abriu fogo. Ou seja, retirou­

-se quase no mesmo momento do conselho de administração e

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não mais voltou. Começou a divulgar informações falsas sobre o CAUE. E criou um outro CAUE, que considerava o seu CAUE, através das suas estruturas. Ou seja, tinha arqu itectos que traba­lhavam na ODE e disse-lhes: "O nosso problema, é o apoio arqui­tectónico". Abriu assim serviços em permanência, à semelhança do que também nós de alguma forma fazíamos. Tudo isto ocorreu em simultâneo.

- E o Conselho geral, de que lado é que estava de facto? M.R.: Como muitos conselhos gerais, não se colocou ao lado

de ninguém ...

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A S E STR UTUR AS SOC I A I S O A ECONOM I A

Capitulo IV

Um contrato sob pressão 1

Depois deste longo desvio pela análise das estruturas e das relações de força objectivas entre agentes e inst ituições, podemos assim regressar ao que aparentaria ser, segu ndo o bom método empírico e empirista, o primeiro momento, e frequentemente o último, da investigação: a interacção directa, susceptível de ser observada, registada, entre o comprador e o vendedor, de que por vezes resulta um contracto. Ora n ão há interacção que dissimule tão bem a sua verdadeira base como a relação entre o comprador e o vendedor numa transação imobiliária. E n ada seria mais peri­goso que ficar-se pelo valor facial da troca como o fazem, a pre­texto de fidelidade ao real e de atenção aos factos, alguns adep­tos da "análise de discursos" ou da etnometodologia, que viram nos últimos desenvolvimentos da tecnologia e , em particular, no gravador e sobretudo no vídeo, uma contribuição e um reforço da sua visão hiperempirista (justifica-se perfeitamente designá­-la assim, por muito que recorra a justificações que vai buscar à

fenomologia); e que, na convicção de ter encontrado nestes com­portamentos filmados e registados os sacro-santos factos que pode­rão opor aos quadros estatísticos dos adeptos da tradição "quan­titativa", hoje ainda dominante, estão na verdade de acordo com estes quanto à epistemologia positivista de submissão ao "dado" tal como ele se apresenta.

1 Este capitulo tem como base o artigo publicado nas A ctes de !a recherche en sciences socia!es (81-82, Março 1990): P. Bourdieu (com a colaboração de S. Bouhedja e C . Givry), "U n contrat sous contrainte" (pp. 34-51).

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É o momento de lembrar que a verdade da interacção não está na interacção (relação a dois que na verdade é sempre uma rela­ção a três, os dois agentes e o espaço social em que estão inse­ridos). Não há praticamente nada do que define a economia da habitação, desde os regulamentos administrativos ou as medidas legislativas que orientam a política do crédito imobiliário, até à concorrência entre os construtores ou os bancos que os apoiam, passando pelas relações concretas entre as autoridades regionais ou municipais e as diferentes autoridades administrativas encarregadas de aplicar a legislação em matéria de construção, que não esteja em jogo nas transações entre os vendedores de h abitações e os seus clientes, mas que só aflora ou se manifesta, de forma enco­berta. As interacções singulares, personalizadas, localizadas e data­das, entre um visitante do Salão do Apartamento de 1985, M. S., e um vendedor, ou entre um outro vendedor e um casal (Sr. E Sr• F.) que, com os seus dois fi lhos, veio aos Florélites, numa tarde de domingo, para escolher uma casa, não passam de expres­sões conjunturais da relação objectiva entre o poder financeiro da banca, materializado no agente encarregado de o exercer com tacto (para evitar assustar o cliente, que só tem a alternativa de fugir), e um cliente definido, em cada caso, por um determinado poder de compra e, secundariamente, por uma certa capacidade de afir­mação, ligada ao seu capital cultural, por sua vez estatisticamente ligado ao seu poder de compra.

Tendo observado por diversas vezes o cenano estereotipado em que a troca se desenrola, ou seja, o processo pelo qual a rela­ção de forças, de início aparentemente favorável ao potencial com­prador, se vai invertendo, para progressivamente se converter num interrogatório, procedemos a observações sistemáticas sobre a forma como os vendedores se posicionavam, se apresentavam, "agarravam" o cliente. Isso nomeadamente nos stands Phénix, Sergeco, Bouygues, Manor, GMF, Cosmos, Espace, Kiteco, Clair Logis, do Salão da Casa Familiar no Palácio dos Congressos em Paris e na "aldeia expo" de Florélites Norte. Registámos ainda diálogos entre os ven­dedores e compradores e de sessões de compras em que aparece­mos na qualidade de potenciais compradores (armados de um certo

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número de referências demográficas e sociais previamente estabeleci­das de acordo com uma espécie de plano experimental). Realizámos ainda uma série de entrevistas aprofundadas junto de vendedores, agentes comerciais, responsáveis de estágios de venda ligados a gran­des empresas nacionais de construção, e conseguimos obter, junto de um con strutor, informações ao nível das instruções dadas aos vendedores.

Pudemos assim constatar que o trabalho exploratório sobre os méritos comparados dos d iferentes modelos de casa, através do qual o cliente tenta pôr em concorrência os vendedores, e, por interposta pessoa, os construtores, transforma-se mais ou menos rapidamente, sob o efeito das limitações técnicas e sobretudo finan­ceiras, num inquérito do vendedor de h abitação, que é também vendedor de crédito, em relação às garantias que o comprador pode oferecer. A conversa, inicialmente destinada a pôr à prova o vendedor, desemboca quase sempre numa espécie de lição de rea­lismo económico no decurso da qual o cliente, assistido e encora­jado pelo vendedor, tenta aproximar o nível das suas aspirações do nível das suas possibilidades de forma a dispor-se a aceitar o vere­dito da jurisdição económica, ou seja, a casa real, frequentemente muito longe da h abitação sonhada, a que tem direito no quadro da estrita lógica económica.

A negociação estrutura-se em três actos, que vamos reencontrar, com ligeiras variações apenas, em todos os casos observados. O que na verdade varia, é a rapidez - e a brutalidade - com que o vendedor impõe o seu domínio sobre a transação e, de forma mais frequente, o tempo da troca: o seu domínio da situação é nalguns casos imediato, outras vezes progressivo, e os esforços do cliente para retomar a iniciativa são mais ou menos coroados d e êxito, e como tal podem levar a um menor ou maior arrastamento no tempo. O vendedor é o agente da necessidade económica. Mas esta necessidade, pode impô-la de forma suave e progressiva, ou, pelo contrário, rápida e brutal. Como acontece sempre que um::ol sequên­cia de acções está previamente determinada, seja pelos p rincípios da tradição, no caso, por exemplo, as trocas rituais de ofertas, de palavras, etc., seja pelas imposições de uma necessidade e"terior, a única margem de jogo, e de liberdade, situa-se na área elo tempo

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e do ritmo. Aqui, o vendedor deve, seguindo uma boa estraté­gia, impor a necessidade evitando fazê-lo sentir de forma dema­siado brutal, ou seja, mantendo as aparências. Daí a importância do tempo que demora a concluir a negociação e que é necessano para permitir ao cliente reduzir pouco a pouco o fosso entre as suas esperanças e as suas possibilidades.

A descrição da conduta dos vendedores, esboçada por um res­ponsável das vendas da Maison Bouygues, corrobora as nossas obser­vações e, ao mesmo tempo, fornece alguns elementos de descri­ção da função que contribuem para explicar os comportamentos: "Há quem não se importe de levar com pontapés no traseiro, de ser recebido assim de qualquer maneira, no canto de uma mesa. Fazíamos uma triagem, por um lado entre os bons e os que o não são, entre os que têm dinheiro e os que não o têm, e os outros iam e vinham, não nos interessam. As coisas passavam-se mais ou menos assim, ainda que isto seja apenas uma caricatura. Continuámos a trabalhar desta forma. Há ainda actualmente quem funcione assim. Experimente, vá às expo-habitação nas aldeias, e vai aperceber-se do que lhe acontece, ao colocar questões, ao tentar informar-se. O ven­dedor inverte completamente o esquema. É ele que lhe diz: «Sente­-se, quanto ganha, quantos filhos tem>>. Ali, para avaliar imediata­mente, em menos de dois minutos, se tem recursos ou não."

De uma forma geral, depois de um preâmbulo mais ou menos longo, o vendedor toma a direcção das operações e, nomeadamente através de um interrogatório sobre as garantias, assume-se como ins­tância quase burocrática, que age como juiz das capacidades finan­ceiras do cliente, dos seus direitos e das suas possibilidades e que, nalguns casos, vai ao ponto de pura e simplesmente se substituir a ele e apossar-se do seu direito de decidir; isto graças a estraté­gias retóricas de "ambiguidade", que visam apresentar como um total assumir de responsabilidades o que não passa de uma con­fiscação de direitos: hábil em impor-se como um especialista capaz de fazer a felicidade do cliente melhor que ele próprio, sabe tam­bém apresentar-se como um alter ego bem colocado para se pôr no lugar do interessado e tomar os seus interesses entre mãos, "como

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faria por ele próprio". Pode também propor directamente: "Far-se-á um empréstimo PAP para 20 anos e um empréstimo complemen­tar." Esta utilização do se que, pelo seu carácter impessoal, confere à proposta apresentada um carácter anónimo e geral, operando uma espécie de fusão entre comprador e vendedor num sujeito colectivo (mas de forma menos ostensiva que um "nós"), surge frequente­mente, com objectivos idênticos, no vocabulário dos vendedores.

A brutalidade dos vendedores explica-se pelo facto de, tendo na sua maioria iniciado carreira no período de expansão, quando os clientes se precipitavam para conseguir uma casa, têm tendên­cia a considerar o primeiro contacto como uma espécie de filtro, destinado a seleccionar os "clientes efectivos", para evitar desper­diçar esforços em tentativas votadas ao fracasso (as taxas de êxito variam entre um por cada dez ou um em cada vinte). Como tal, para não perder tempo com aqueles que designam de "turistas" ou "passeantes", vão directamente ao essencial, perguntando sobre os seus rendimentos aos que consideram como eventuais clientes (os casais, sobretudo acompanhados de crianças), a fim de eliminar rapidamente os que não têm meios para adquirir a casa dos seus sonhos. Tendo recebido frequentemente a sua formação de velhos vendedores das mais diversas proveniências, têm tendência a con­siderar com uma mistura de cinismo e de resignação todos esses clientes com "mais olhos que barriga", "cheios de fantasias", que catalogam de imediato e que recebem sempre de forma idêntica, com a pressa que estão de saber se são "a sério" e, nesse caso, de os levar o mais rapidamente possível a encarar as realidades.

As estratégias baseadas na ambiguidade, que visam abolir a dis­tância, e a desconfiança, entre o vendedor e o comprador, encon­tram um apoio natural na "personalização do crédito", inovação em matéria de técnicas bancárias, instituindo um novo género de garan­tias, nomeadamente a que representa o rendimento permanente, con­junto de rendimentos susceptível de serem perspectivados para a vida (ou para um longo período). Com · base nessas garantias típi­cas da era do calculável e da previsibilidade, que só os agentes com uma carreira, e como tal rendimentos regulares e regularmente

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distribuídos no tempo, podem oferecer, a banca pode doravante emprestar dinheiro sem pedir garantias "reais" (os "bens ao luar") e oferecer um crédito proporcional, no seu montante, na sua dura­ção e no preço, a um conjunto de características da pessoa burocra­ticamente definida, como as perspectivas de ganhos, a dimensão da família, etc. Foi esta técnica bancária (muitas vezes referida como uma "democratização do crédito") que permitiu à banca conquistar uma nova clientela, o assalariado burguês dos quadros (superiores ou médios). Com uma carreira institucionalmente garantida, são estes os clientes melhor colocados para dar as garantias "pessoais" repre­sentadas por um rendimento permanente perfeitamente assegurado e calculável e que, graças às possibilidades de crédito assim ofereci­das, podem, num período de forte urbanização, concretizar a ambi­ção, antes reservada aos detentores do capital económico, de pos­suir a sua própria casa, vivenda ou apartamento.

Para a banca o valor da pessoa reduz-se à sua perspectiva global de ganhos, ou seja, à perspectiva de rendimento anual multiplicado pela esperança de vida, ou mesmo, sobretudo quando se aventura a dirigir-se a categorias sociais que oferecem em geral menos garan­tias que os quadros do sector público, à sua perspectiva geral de solvabilidade, que depende também de princípios éticos e, em parti­cular, de todas as virtudes austeras que determinam o controlo do consumo e o respeito pelos compromissos. Na maioria dos casos, o construtor, e o vendedor que o representa nas transações, funcio­nam como intermediário da banca, à qual asseguram, como contra­

partida de antecipações de ordem financeira ou de tarifas especiais, uma espécie de direito de preempção sobre uma parte da clientela do imobiliário e, dessa forma, o controlo de uma parcela crescente do mercado do crédito; por acréscimo, n a medida em que a maio­ria das transações se reduzem no essencial à definição de um plano de crédito, de que frequentemente a discussão sobre as características técnicas da casa não é mais do que um apêndice, a negociação que leva à assinatura de um contrato imobiliário é uma simples variante das transações que se efectuam directamente com a própria banca.

A concessão de um contrato de crédito pessoal ou persona­lizado" pressupõe assim uma prévia recolha de um conjunto de

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informações sobre a pessoa a quem será feito o empréstimo. E este interesse burocrático pela pessoa burocraticamente definida, ou seja, impessoal e intransmissível, e pelas características genéri­cas que os formulários burocráticos mecanicamente registam, e que podem servir de base a um cálculo rigoroso das perspectivas de ganhos, pode ser sentido pelo cliente, porque todas estas caracte­rísticas estão ligadas à sua pessoa singular, como um interesse pes­soal pela sua pessoa considerada na sua unicidade. O questionário puramente técnico permite assim servir de base a estratégias simbó­licas visando explorar mais ou menos conscientemente as ambigui­dades da situação para corresponder às expectativas do cliente; este sentir-se-á tanto mais inclinado ao estabelecimento de uma relação pessoal de confiança, quanto não pode deixar de sentir com angús­tia o abismo, que leva a que a decisão surja como um verdadeiro desafio, entre a importância do que está em causa e a extrema pobreza de informação disponível. (Importa dizer, entre parênteses, que o problema do carácter consciente ou inconsciente das estra­tégias, ou seja a boa-fé ou o cinismo dos agentes, não tem qual­quer sentido: tal como esses actores de teatro ou de cinema que por vezes consideramos como "instintivos" e que de alguma forma representam sempre a mesma personagem pois limitam-se a assu­mir diferentes "papéis" com as suas próprias roupagens, eles inves­tem, numa transação que querem que resulte, todo o conjunto de características próprias que se revela tanto mais eficaz quanto mais próximas estiverem do cliente: sabe-se, por exemplo, como os vendedores da Maison Phénix, frequentemente antigos operários e geralmente com muito pouca instrução, fizeram maravilhas quando o seu trabalho foi vender a uma clientela popular um produto de "baixa gama", de acordo com a sua posição e costumes e adaptado às possib ilidades e gostos desta clientela).

Destinadas a fornecer à banca as informações indispensáveis -para uma avaliação precisa das garantias, as perguntas a que o cliente tem que responder, se quer uma resposta às questões que ele próprio colocou, podem também ser sentidas como perguntas pessoais, no sentido ofensivo do termo.· E, através de uma ligeira "ambiguidade" com recurso a um certo eufemismo, as operações técnicas que exigem o estabelecimento de um contrato de crédito

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pessoal podem ser ocastao para estabelecer uma relação directa, adequada para levar o cliente a ba ixar as defesas - demitir-se das suas capacidades críticas - e a confiar. A lógica da racionalidade económica, que implica conceder mais ou menos dinheiro, a uma taxa mais ou menos elevada, por um período mais ou menos longo, conforme o cliente ofereça mais ou menos garantias, coin­cide com a lógica comercial que recomenda adaptar as estraté­gias de venda a cada caso particular. E o domínio da situação, por parte dos vendedores, suficientemente próximos socialmente do cliente para que ocorra de forma natural a passagem às relações "pessoais" e, dessa forma, a confusão entre as informações "pessoais" e as informações úteis na perspectiva da banca, fará o resto.

Como ficou bem demonstrado pelo inquérito realizado em 1963 à Companhia Bancária, mesmo o simulacro de interesse pela "pessoa" do cliente tende a desvanecer-se à medida que avança o processo de elaboração do contrato. Para lá do primeiro con­tacto com as recepcionistas, todas as fases do processo adminis­trativo, estudo, concretização, pagamento, depois gestão, decorrem sem a presença do cliente, só solicitada pelo pessoal do banco quando o requerimento está incompleto, é excessivo ou mal fun­damentado ou tão complicado que exija um esclarecimento minu­cioso. Quem está encarregado da elaboração do dossier não tem qualquer contacto com os clientes nem mesmo com os funcioná­rios que os receberam. Na verdade, após a primeira selecção feita na recepção, a triagem é feita com base no dossier: é a este nível que intervém a verdadeira decisão, ou seja, fora de qualquer contacto pessoal. Nesta fase, a entrevista com o cliente é excepcional: ela acarretaria o risco, dizem os quadros, de levar a uma perda de objectividade por parte do responsável; por simpatia ou por com­placência, poderia esquecer as regras estritas do equilíbrio finan­ceiro, deixar-se arrastar pelo optimismo do cliente e fazer estima­tivas financeiras excessivamente favoráveis, que como tal poderiam acarretar cargas excessivas. No dossier, a "pessoa", definida como a intercepção de uma pluralidade de categorias abstractas, é redu­zida a um conjunto específico de características estatísticas isolá­veis e codificáveis, a partir das quais é apreciado o seu valor em

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termos individ uais, ou seja, a sua futura capacidade monetária. E é a banca que, em nome de um saber inacessível e segundo regras exclusivas (a "tabela"), decidirá soberanamente, armada do conhecimento aprofundado que tem do cliente, as condições par­ticulares que lhe serão concedidas.

A ambiguidade, objectivamente inscrita na instituição, exprime­-se também nas estratégias linguísticas dos fu ncionários e dos ven­dedores que, recorrendo a dois estilos de linguagem, enquanto em geral o cliente só dispõe de um, podem alternar a linguagem neu­tra da burocracia bancária com a linguagem pessoal e familiar do dia-a-dia. Assim, uma questão como "Devemos comprar novo ou usado?", é susceptível de duas respostas possíveis. Ou bem: "Aconselhamos sempre os nossos clientes a comprar novo porque podem beneficiar do desconto do Banco de França." Ou então: "Sabe, não sou a pessoa mais indicada para lhe responder porque comprei usado." No primeiro caso, o funcionário fala como porta­-voz autorizado representante oficial do saber; no segundo, com­porta-se como simples particular a aconselhar outro particular. Os funcionários da banca devem, em princípio, mostrar pela lingua­gem ut ilizada e pelo tom que não é a vida privada do cliente que lhes interessa mas algumas características genéricas e abstractas da sua operação imobiliária que são necessárias para o inserir nesta ou naquela categoria e aplicar-lhe a escala apropriada. E é assim que tudo se passa com especialistas (banqueiros, patrões, directo­res de agência, conselheiros) que telefonam em nome de um ter­ceiro: a linguagem técnico-burocrática, carregada de termos especí­ficos, destinados a conferir ao discurso um tom de neutra! idade técnica (hipoteca, sub-rogação dos privilégios, etc.) e de sucedâneos "caros" das palavras vulgares (terceiros, fruição, conjunto imobiliá­rio, edifício residencial, aquisição, empréstimo complementar, efec­tua-r, etc.), é o que permite "meterem-se", como se diz, "nas ques­tões" dos clientes tanto quanto a situação o exija, sem entretanto invadir a sua vida privada e mantendo sempre as distâncias.

As coisas passam-se de forma bem diferente com os clientes "vulgares". Sem dúvida que a força inerente ao discurso técnico mantêm-se mesmo quando utilizado por agentes que não têm toda

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a competência que seria suposto garantir. (Ainda que possa aconte­cer que o carácter um pouco forçado do seu à-vontade de funcio­nários a utilizar uma linguagem de quadros transpareça em quebras e falhas do seu discurso quando confrontados, excepcionalmente, com clientes que dominem perfeitamente a linguagem económica - um professor de direito, num caso observado.) É assim que, na boca dos recepcionistas de banco, que a utilizam entretanto de forma aproximativa e mecânica, a linguagem económica pode fun­cionar como instrumento de distanciamento destinado a desarmar o cliente desconcertando-o e fragilizando o seu sistema de defesa: o carácter impessoal da linguagem técnica é uma das formas de con­seguir que se abstenha de qualquer referência directa aos seus pro­blemas "pessoais" fornecendo entretanto as informações (pretensa­mente) "pessoais" necessárias à elaboração de um contrato2•

Mas o detentor da linguagem dominante pode permitir-se mudanças no registo linguístico quando os clientes, incapazes de manter um tom idêntico, traduzem as palavras do recepcionista na linguagem das relações pessoais. "Os nossos escritórios estão aber­tos em permanência", diz o recepcionista; e o cliente, recorrendo a um jogo de tradução que ajuda a compreender e permite con­firmar que se percebeu bem, ao mesmo tempo que corresponde a um esforço para reduzir a distância (e a ansiedade), repete: "Ah, bom, vocês estão abertos todo o dia." "Sim, diz o recepcionista, pode vir quando quiser." (Os recepcionistas, que devem sempre dizer o seu nome no início do diálogo, insistem muito no carácter quase "amigável" da relação que estabelecem com os clientes: "O primeiro contacto é fundamental, é preciso pôr o cliente à vontade e deixá-lo falar. Em geral, quando entram estão crispados e, para que descontraiam, basta ser amável. Geralmente, com os clientes mais fiéis, vamos até ao esclarecimento. Não digo que nos torne­mos amigos do cliente, mas isto é um pouco como a relação do doente com o seu médico: ele pergunta-nos o nome, etc.")

2 A utilização que os membros do corpo médico (médicos, de diferentes áreas, enfermeiros, etc.) fazem da linguagem técnica, em alternância com a linguagem do dia-a-dia, obedece, no essencial, ao mesmo modelo.

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Da mesma forma, tal como para encorajar a tendência do cliente a identificar o interesse estritamente profissional pelas suas características pessoais com um interesse pela sua vida privada, os vendedores frequentemente optam por recorrer à tradução da lin­guagem técnica para linguagem vu lgar ou fazem-no espontânea­mente no momento. Assim, a um cliente que se queixa do con­domínio, o vendedor diz: "Sei o que isso é, é o meu caso." A procura mais espontânea que calculada da cumplicidade pessoal leva muitas vezes o vendedor a introduzir, no seu discurso, anedo­tas ou conselhos com que pretende mostrar que se coloca na pers­pectiva do utente. O mecanismo nunca ressalta de forma tão clara como em casos limite em que o vendedor, para vencer as resis­tências de um cliente que não entra de imediato no jogo, coloca as questões e dá as respostas: "Vai-me perguntar, nestas condições, porquê... e eu responderei que ... ". Mas, quando o tipo de relação com o cliente não permite esse "abandono" característico de um intercâmbio "pessoal", o funcionário pode atingir os mesmos objec­tivos recorrendo à linguagem técnico-burocrática que, pela compe­tência técnica que a sua utilização é suposto garantir, automatica­mente lhe confere o estatuto de especialista, levando o cliente a comportar-se como alguém que pede conselhos técnicos.

Na verdade, a dualidade de registos linguísticos abre a possibi­lidade de manobras retóricas sem dúvida mais inconscientes que conscientes que permitem manipular a distância social entre os interlocutores, quer se opte pela aproximação e a familiaridade atra­vés da utilização de expressões familiares, quer, pelo contrário, se aposte em manter distâncias e ficar de fora utilizando o modo de expressão mais "formal": a utilização alternada de uma e outra estratégia permite um domínio mais ou menos completo da situa­ção. Assim, quando os clientes falam de crédito, os elementos do saber popular que utilizam são frequentemente retomados tal qual pelos recepcionistas. À cliente que se lamenta da renda, um recep­cionista diz: "Sei do que está a falar, a minha mãe paga tanto ... e a renda acaba por ser dinheiro perdido ... ". Pelo contrário, ao que parece estar contra o crédito, r,esponde-se em termos técni­cos, para o fazer compreender que não percebe nada. Este jogo com as linguagens inscreve-se, como possibilidade, em qualquer

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interacção burocrática. Todos os indivíduos investidos do estatuto de mandatários de uma autoridade superior (atestado, frequente­mente, pelo uso de um uniforme ou um sinal distintivo) são per­sonagens dúplices e votadas ou autorizadas a apostar no jogo duplo que está na base de muitas das estratégias mais típicas da ges­tão ou da manipulação burocrática dos simples leigos. Tal como o polícia que, confrontado com os apelos ao diálogo do utente que cometeu uma infracção, responde que "as regras, são as regras", tais estratégias podem pura e simplesmente ser consideradas como ine­rentes ao posto, à definição social do funcionário que se assume em determinada função. É o que fazem espontaneamente os ven­dedores quando, investidos de uma autoridade que não é a sua, se comportam como especialistas jurídico-financeiros, porta-vozes do direito e do Estado, encarregados de transmitir ao cliente a lei ou o regulamento e, mais precisamente, fixar quais são exactamente os seus direitos ao inserir no enunciado geral da fórmula jurídica os valores numéricos dos parâmetros fornecidos pelo questionário (número de filhos, rendimentos da família, etc.). Jogando, mais ou menos conscientemente, com a ideia que os clientes, e nomea­damente os de menores recursos, têm do direito e em particular do contrato como obstáculo inamovível, tudo fazem para dar às suas conclusões o carácter evidente de uma dedução lógica e de um veredicto jurídico; manipulando um vocabulário técnico que nunca explicam - ou em termos que atestam que não o dominam completamente - e que, como o testemunham as ulteriores decep­ções dos compradores super-endividados, se destina, sem dúvida, mais a impressionar do que comunicar informação útil, transfor­mam a informacão sobre as condicões de acesso a vantagens, APL ou empréstimos, progressivos, num . enunciado peremptório de deve­res. (Diga-se de passagem que não é fácil discernir onde termina o Estado e começa a "sociedade civil". Tanto mais que, para a generalidade das pessoas, sob a forma de esquemas de pensamento comuns, o Estado está de certo modo presente na pessoa do ven­dedor de Bouygues ou de Phénix, que usurpa uma espécie de dele­gação oficial para impor as normas jurídicas da transacção imobi­liária, ou, noutros casos, nos representantes dos banqueiros, nos agentes imobiliários ou nos administ radores e bens que, sem serem

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membros de parte inteira do Estado, intervêm nas comissões em que são elaborados os regulamentos estatais. De facto, pondo de lado a d icotomia que pode ter a sua importância nos "debates de sociedade", impõe-se falar do acesso diferencial aos recursos espe­cificamente burocráticos, direito, regulamentos, poderes administra­tivos, etc., e ao poder sobre esses recursos, que a distinção canó­nica, tão nobre como vazia, leva a esquecer.)

A relação entre quem detém posições burocráticas - ou como tal identificadas, como os vendedores - e os utentes caracteriza-se, de forma generalizada, por uma profunda assimetria: com a expe­riência adquirida em milhares de casos semelhantes e armado com a informação que por sua vez cada cliente lhe fornece e lhe ·per­mite antecipar as suas expectativas, as suas preferên cias e mesmo o seu esquema defensivo, sendo embora ele próprio banal e previsí­vel (como as suas pretensas questões armadilhadas ou as suas exi­bições de falsa competência), o funcionário está em condições de dar resposta, com estratégias e instrumentos estandardizados, tais como formulários, questionários ou conjuntos de argumentos pre­vendo respostas adaptadas a todas as questões possíveis (cf. Anexos, p. 237), a situações que são para ele repetitivas e normalizadas, enquanto o utente é levado a vivê-las como únicas e singulares, e tanto mais angustiantes (no hospital, por exemplo) quanto é mais relevante o que está em causa e mais reduzida a informação.

Mas o agente burocrático pode igualmente tirar partido das capacidades inerentes à sua posição para estabelecer uma · relação pessoal que, em certos casos pode ir, pelo menos na aparência, até à transgressão dos limites da sua função: é o caso quando o vendedor indica, confidencialmente, mesmo sob condição de man­ter segredo, uma vantagem particular, ou fornece, a título de favor, uma informação preciosa, e confidencial - por exemplo, sobre ter­renos ainda disponíveis num loteamento ou sobre a particular qualidade de um tipo de casa; ou quando, jogando com as frus­trações e a expectativas que um tratamento anónimo e despersona­lizado cria junto do cliente, a banca oferece atenções pessoais a que ele se irá agarrar imediatamente (na segunda visita, orienta-se o cliente para o funcionário que contactou da primeira vez; é desig­nado pelo seu próprio nome; demonstra-se, de múltiplas formas, o

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conhecimento que se tem do seu caso, daí o interesse muito espe­cial que se tem por ele, etc.). Na verdade, o vendedor deve criar uma relação de dominação simbólica destinada, a prazo, a anu­lar-se e a assumir-se como identificação com as razões e interesses da banca que, na perspectiva, eventualmente, de uma identificação "pessoal" do vendedor e do cliente, serão apresentadas e sentidas como totalmente idênticas às razões e interesses do cliente. Deve servir-se da vantagem que lhe dá o seu conhecimento sobre o pro­duto, sobre as cond ições de financiamento e, muito especialmente, sobre as armadilhas que pode albergar, para alimentar e reforçar a angústia que, levada ao seu extremo limite, só é superável com uma rendição do próprio. .

O vendedor, que espera do cliente que se demita em seu favor e lhe delegue o poder de decidir sobre a natureza e a forma do contrato, deve como tal apontar-lhe a dedo a sua incompetên­cia ao mesmo tempo que lhe oferece uma assistência proporcio­nal à situação de confusão para que o remete e apresentando-se a seus olhos como realmente atento às suas preocupações e capaz de as fazer suas, e como mais apto que o próprio a "tomar em mãos" como se diz, os "seus interesses". Colocado perante uma decisão de enorme importância sem dispor do mínimo de infor­mação necessária, tanto sobre as características técnicas do pro­duto como sobre as condições financeiras do crédito, o compra­dor sente-se inclinado a agarrar-se a qualquer coisa que possa assemelhar-se a uma garantia pessoal; ele só deseja um contrato de confiança global, capaz de conjurar a angústia e que lhe dê de uma assentada e uma vez por todas, as garantias em relação às incertezas da transação. É disto que estão bem cientes os ven­dedores que, na verdade, entram eles próprios no jogo: "Nós não vendemos as nossas casas. Vendemos terreno-casa. Bem, não, ven­demos os nossos financiamentos e o terreno... e a nossa capaci­dade. Isto não tem nada a ver com a casa, é verdade. Pronto, é assim: vendemos o terreno e a nossa capacidade, e, se qui­ser como brinde, eles lá ficam com uma casa (riso) ... Raramente nos perguntam como é a casa. Muito raramente." E as afinida­des sociais que os ligam aos seus clientes facultam as bases desta relação de identificação mútua.

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A semelhança estrutural entre o espaço dos diversos construto­res e o espaço das características sociais dos seus agentes (nomea­damente os vendedores), como tal o espaço dos produtos ofere­cidos e o espaço dos seus respectivos clientes alvo, tem como resultado um ajustamento "automático" (não isento de discordân­cias locais e parciais) das estratégias comerciais dos diferentes ven­dedores às expectativas socialmente estabelecidas das corresponden­tes clientelas. Segundo um inquérito à população conduzido pelo lnstitut Français de Oémoscopie, em 1981, junto de 571 proprie­tários de casas Phénix, a clientela da Phénix é constituída por 45,3% de operários, 2,2 % de membros do pessoal de serviços, 18,6% de empregados, 15% de quadros médios, 17% de artesãos e pequenos comerciantes, 1,5% de agricultores, 2,2% de outros trabalhadores no activo, 10,6% de trabalhadores no inactivo-refor­mados e 3,5% de quadros superiores e membros de profissões liberais. E, para idên tico extracto socioprofissional, os proprietá­rios das casas Phénix são mais idosos, e sobretudo com um mais baixo nível de instrução, que os proprietários de concorrentes pró­ximos na área (como GMF, Bruno-Petit e Chalet idéal) sem falar dos proprietários de casas construídas por empresas que oferecem casas de "topo de gama".

Observa-se, por outro lado, que o nível cultural dos vendedo­res é nitidamente mais baixo nas grandes empresas de construção que oferecem produtos técnica e esteticamente mais . pobres e que têm uma clientela com menos dinheiro e menos cultura. Assim, entre os vendedores da Maison Phénix, 22% são detentores de um CEP ou um CAP, 24% um BEPC, 12% um nível equivalente ao bacharelato, 13% têm o bacharelato ou o BTS e 5% fizeram estu­dos superiores (24% não puderam fornecer informação correspon­dente). Sabe-se aliás que numerosos vendedores da Maison Fénix começaram a sua vida profissional como operários fabris. Tudo leva a pensar que, tanto ao nível de escolaridade como da sua trajec­tória, os vendedores diferenciam-se segundo uma hierarquia idên­tica à das respectivas empresas. Assim, na Kaufman and Broad, empresa internacional que constrói casas de "topo de gama", encon­tra-se uma significativa proporção de vendedores com cursos supe­riores, alguns mesmo provenientes das Belas-Artes.

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Os vendedores ocupam uma pos1çao estrateg1ca na medida em que é por seu intermédio que, em grande parte, se realiza o ajusta­mento entre o produto e o comprador, e como tal entre a empresa e uma determinada clientela. Entre outros factores de êxito ou revés de uma política comercial ou de um produto, um dos mais deter­minantes é sem qualquer dúvida a "harmonia" entre os vendedores e os clientes, mas também, no seio da empresa, entre os vendedo­res e os quadros comerciais e os serviços de marketing ou de publi­cidade encarregados de definir a promoção comercial do produto. A par da remuneração, que evidentemente conta bastante, nomea­damente na concorrência entre as diferentes empresas para ter os melhores vendedores, é a concordância entre as estratégias que os vendedores utilizam na prática e os esquemas concebidos pelos espe­cialistas (muitas vezes considerados pelos vendedores como puros teóricos sem conhecimento do terreno) que leva a que os vende­dores façam o seu trabalho com agrado, ou seja, com tanta eficácia objectiva como satisfação subjectiva. Na verdade, o vendedor contri­bui de forma determinante para a produção do produto: o que é proposto ao comprador, não é apenas uma casa, mas uma casa acompanhada de todas as conversas em torno dela, dos amigos ou conhecidos que, como o demonstra o inquérito realizado, estão frequentemente na origem da escolha de um determinado construtor, e sobretudo do vendedor que, frequentemente, se apresenta a si próprio como exem­plo ("Sabe, eu tenho uma igual, e estou muito satisfeito").

A inversão da relação inicial, que resulta da transformação da compra de uma casa numa aquisição de crédito, da apreciação da casa proposta em avaliação financeira de quem a pretende, só pode resultar, e levar à assinatura de um contrato (em vez de levar à fuga do cliente), se o vendedor conseguir transformar a definição da situa­ção e do seu próprio papel e, assim, a imagem que o comprador tem de si e da situação, de forma a que a relação de ansiosa desconfiança se transforme numa relação de entrega confiante, baseada numa certa forma de identificação. Ao apoiar-se na cumplicidade ética e afectiva, ligada à afinidade de hábitos, os vendedores podem juntar a autori­dade do especialista e a proximidade do conselheiro e do confidente para levar os clientes a reconhecer por si próprios no veredicto da banca os inevitáveis constrangimentos da necessidade económica ou,

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se se preferir, que assumam a perspectiva da banca identificada com uma determinada pessoa que surge como a personificação da banca: "Devemos sempre levar os clientes a dar a sua opinião sobre se a banca deve ou não conceder-lhes crédito", diz um responsável. O exame prévio das garantias de solvabilidade, que se destina a prote­ger o prestamista em relação a quem pede o empréstimo, pode ser apresentado como estando ligado à preocupação de proteger o cliente, ou seja o próprio, de escolhas imprudentes (e contra uma tendência que, como assinala um consultor jurídico da ADIL do Val-d'Oise, é fácil de explorar: "Eles têm uma tal vontade de ouvir que podem comprar a sua casa de cinco assoalhadas com jardim, e que poderão fazê-lo sem problemas, que têm tendência a escamotear a realidade (. .. ) Já vimos uma senhora que queria tanto comprar que nos garan­tiu que não gastava mais - uma quantia ridícula - , não gastava mais que 500 francos por mês, segundo creio, para alimentar cinco pes­soas. Queria tanto garantir-nos, demonstrar que podia comprar, que chegou a dizer-nos: «Não há qualquer problema, porque os legumes, é a Untei que mos dá, e só comemos massas; e à noite ficamo-nos por uma sopa, porque as crianças já comeram carne na cantina.>> Acontece cada uma! Vemos pessoas que querem fechar os olhos à

realidade e se autoconvencem de que, se apertarem o cinco, conse­guem. E vemos famílias que se privam de ter férias para poder com­prar. É uma coisa tão importante!"). E se o intermediário da banca, com base no seu capital económico e no seu capital de informação, pode encobrir o seu papel de prestamista sob a aparência da pos­tura desinteressada do conselheiro que, à maneira do médico ou do advogado, põe à disposição do cliente um saber acumulado, é por­que mais não faz que proteger os interesses da banca quando pro­tege o cliente contra ele próprio, ao aconselhá-lo, por exemplo, a não ignorar compromissos anteriores (pensões alimentares, outros emprés­timos, etc.) ou a não se endividar para além de um certo limite.

Como não pode vender as suas casas se não conseguir vender . o crédito correspondente, o vendedor vê-se colocado numa situação de double bind3 que tende a levar ao extremo a contradição inerente

3 Duplo contracto. (N. do T)

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às estratégias da banca: enquanto vendedor de um produto, pode ser tentado a explorar a impaciência, a imprudência ou incoerên­cia dos que não sabem fazer contas; enquanto vendedor de cré­dito, deve, para proteger os interesses da banca, proteger o cliente em relação a empréstimos excessivos. Terá assim de navegar entre a tentação de "forçar" que o levaria a empurrar um cliente para um "coeficiente de esforço" (definido pela relação entre os níveis do reembolso e o rendimento corrente ou o rendimento permanente) o mais elevado possível e o receio da insolvabilidade e do sobre­endividamento, que o leva a controlar cuidadosamente os recursos do cliente e mesmo, eventualmente, as suas outras despesas esque­cidas ou ocultadas. Deve encarnar, por um lado, o princípio do prazer, evocando, como os panfletos propagandísticos, a felicidade familiar, o conforto da futura casa, etc., e o princípio da realidade, ao lembrar todas as limitações financeiras .

Prisioneiro de limitações e instruções que prat icamente não lhe deixam margem de liberdade, a sua principal tarefa será tal­vez, no fundo, orientar e dar assistência ao cliente no processo de desinvestimento que este terá que realizar para ajustar as suas esperanças às suas possibilidades: ao obrigá-lo a pensar o seu pro­jecto no quadro dos limites de um orçamento limitado, leva-o a descobrir que todas as características da casa desejada que a lógica do sonho permite conciliar como que por magia, são inter­dependentes, e que os impiedosos cálculos optimizados da eco­nomia fazem pagar todas as concessões ao sonho num domínio (a superfície habitável, por exemplo) com inevitáveis contraparti­das noutro (em geral a distância da cidade ou do t rabalho). Se o vendedor consegue ajudar de forma eficaz o cliente neste "tra­balho de luto", sem aniquilar todo o desejo, é porque, subme­tendo-se embora totalmente à necessidade económica e jurídica, tem igualmente interesse em pôr ao serviço deste todos os recur­sos da sua competência económica e técnica para lhe conseguir o máximo do sonho concretizável tendo em conta os limites das suas possibilidades.

O desejo de ter uma vivenda é tal, que as compras desrazoá­veis, penalizadas pelo sobre-endividamento, seriam sem dúvida bem

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menos raras4 se os vendedores de crédito não estivessem em con­dições de impor a quem pede o empréstimo os constrangimentos económicos que vêm reforçar as antecipações razoáveis (mais do que racionais) que a maioria dos clientes espontaneamente assumiriam no seu comportamento em matéria económica. As indicações e as recomendações dos vendedores terão tanto mais probabilidades de levar a um acordo final, consagrado pela assinatura do contracto, quanto mais o cliente estiver antecipadamente con forme as perspec­tivas da instituição. Este "cliente ideal" é o pequeno ou médio fun­cionário que tem à justa os recursos financeiros necessários para dar garantias suficientes e que tem o futuro suficientemente garan­tido para ser previdente sem ser tão rico que possa dispensar o cré­dito; alguém com os recursos culturais indispensáveis para enten­der as exigências da banca e assumi-las, mas não os bastantes para opor uma resistência estruturada às suas manobras. A carreira de funcionário corresponde de facto à dupla raiz do comportamento dito racional, o de um ser mensurável e que sabe calcular: é este tipo de comportamento que, como vimos, confere plena garantia a um rendimento constante, uma espécie de capital potencial que o crédito permite em parte antecipar; é também ele que fundamenta e torna possíveis os princípios sem os quais não seria possível uma

utilização racional desta forma de crédito5•

A especial predilecção da banca por este cliente t ípico manifesta­-se aliás de forma clara na recusa que explicitamente afirma (atra­vés das declarações dos responsáveis e funcionários) a duas cate-

4 Em 1963, o contencioso da Companhia Bancária representava· apenas 0,06% dos dossiers. Segundo diversos estudos, o sobre-end ividamento imobiliá­rio terá aumentado consideravelmente de há uns anos a esta parte, em con­sequência nomeadamente da deflação que comprometeu a solvabilidade dos titulares de empréstimos de reembolso progressivo contraídos nos anos 1981-·1984, determinando uma mudança da estrutura em relação à qual se tinham definido princípios e estratégias (cf. C omité consultivo, Raport du groupe de tra-

. vai! sur [ 'endettement et !e surendettement desménages, Paris, Julho 1989). 5 Sobre a calculabilidade e a previsibilidade associadas à carreira (por opo­

sição nomeadamente à insegurança e incert~za da ex istência do sub-proleta­riado) como condição de emergência dos princípios de cálculo, ver P. Bour·

dieu, A!gérie 60, op. cit.

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gorias opostas de clientes, que têm em comum pecar por excesso, mas em pólos opostos. Trata-se, por um lado, do cliente "pouco interessante" que, não dispondo nem de capital económico nem de capital cultural e pronto a tudo para realizar os seus sonhos, é levado a subscrever compromissos insustentáveis (que, segundo alguns estudos, podem atingjr mais de 40% do rendimento), isso nomeadamente porque não dispõe do mínimo de conhecimentos necessários para tirar partido da informação fornecida pelos fun­cionários (e que não compreende os mecanismos de APL ou dos empréstimos progressivos); por outro lado, do cliente dito "picui­nhas" que, demasiado bem informado e conhecendo bem os seus interesses e os seus direitos, não se deixa manipular e trata de jogar com as possibilidades que lhe oferece a personalizacão do cré­dito para obter realmente as vantagens financeiras ligad~s ao facto de fornecer garantias sólidas. Levado muitas vezes pela urgência, o p rimeiro tem uma redu zida vantagem pessoal e oferece garan­tias pessoais fracas; pretende um crédito a longo prazo; situando­-se abaixo do limiar do calculável, avalia mal quanto vale, e assim quer mais do que pode. O segundo, não estando muito mal colo­cado, pode esperar; oferece uma significativa capacidade pessoal e reais garantias, o que lhe dá a segurança de ser aceite em qual­quer lado; não necessita de um período de reembolso muito longo; em termos intelectuais, d ispõe dos meios que lhe permitem ut ili­zar melhor os seus recursos, que conhece bem.

Quanto aos agentes da banca, dispõem de todos os meios para "fazer ouvir a voz da razão" ao cliente. A fórmula do cré­d ito pessoal faz com que os procedimentos relativos à elaboracão do contracto funcionem como "mecanismo de revelação", para ~ti­lizar os termos da teoria dos contratos6: com efeito elas obrigam o cliente a fornecer uma informação praticamente total (escamo­teando apenas um ou outro dado) por um "custo de revelacão da verdade" muito fraco. A banca dispõe assim de todos os . meios

6 Sobre a teoria dos contratos e os conceitos de "seleccão adversa" ou de "morallw zard", pode-se ler, entre outros, O. Hart, B. Hol~strom, "The T he­ory of Contracts", in T. Bewley (ed.), Advances in Economic Theory, Fifth World Congress, Cambridge, Cambridge U niversity Press, 1987.

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para agir conforme ao seu interesse "destrinçando entre os agen­tes" de fo rma a estabelecer um contrato específico para cada um deles. Ela dispõe de todas as informações necessárias para escolher clientes que não apresentem nenhum vício oculto, e para proce­der à exploração desses clientes rentáveis, sem ultrapassar o pon to em que os riscos se tornariam excessivos. Está assim quase inte­gralmente protegida contra os riscos de uma "selecção adversa" associados ao desconhecimento de uma qualquer característica do cliente que poderia pôr em causa o contrato: com efeito está sem­pre em condições de chamar à razão o cliente que seja tentado a ocultar um ou outro empréstimo, um ou outro compromisso, que possa pôr em causa, a prazo, a sua solvabilidade. Está também ao abrigo da moral hazard, ou seja, dos acasos ligados a uma mudança de comportamento por parte do agente, como, por exemplo, a que poderia ser provocada pelo desespero suscitado pela descoberta de vícios ocultos no contrato, ou na compra, ou em ambos. Assim se compreende como o sobre-endividamento só atinge uma fracção muito pequena da população endividada7•

Obrigado a uma posição de racionalidade na negociação do con­trato de crédito que define os limites das suas legítimas aspirações, o cliente é igualmente compelido a ser razoável na gestão da exis­tência que assumiu, ignorando muita coisa, ao assinar um contrato que, muitas vezes, acarreta toda uma série de consequências ocul­tas (como o aumento de despesas com deslocações, a aquisição de um segundo automóvel, etc.). O trabalho de desinvestimento que se realiza, com a assistência do vendedor, através da discussão do plano de financiamento, prossegue bem para além do momento da assinatura (que muitas vezes já representa, em si, um acto de resig­nação): nada há de mais razoável e realista que essa longa lista

7 Segundo um estudo da Caisse d'Allocations Familiales de Mâcon, a parte dos dossiers que representam uma taxa de esforço superior a 30% des­

. ceu ligeiram nte entre 1985 e 1987, passando de 30 para 20% dos benefici­ários com ajudas. Entretanto, em 1987, continuava a haver cerca de 7% de dossiers que correspondiam a taxas de esforço 'superior a 40% e, em Fevereiro de 1988, 10,5% dos dossiers correspond iam a uma taxa de esforço superior a 37% (cf. Comité consultivo, op. cit., p.l7).

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de justificações que frequentemente se recolhe quando se indaga sobre a história de habitações sucessivas ("mas, pelo menos, esta­mos em nossa casa ... ", "não há nada como a habitação própria", etc.) e que resultam desse imenso trabalho de luto que o comprador terá de fazer, para acabar por contentar-se com o que tem, quando descobre tudo o que a sua compra ocultava, o ruído das máquinas de cortar relva aos fins-de-semana, os latidos dos cães, os conflitos em torno das áreas comuns, etc., e sobretudo o custo em tempo gasto nos trajectos quotidianos.

Entre os proprietários de vivendas, são os membros das pro­fissões intermédias das empresas e das administrações, os técni­cos e empregados, que gastam mais tempo em transportes para se deslocar para o trabalho e são os membros das profissões liberais e dirigentes de empresa que gastam menos: 13,5% das profissões intermédias do sector público, 12,5% das profissões intermédias das empresas e dos técnicos, 11% dos empregados proprietários de uma vivenda em Ile-de-France, gastam pelo menos três horas por dia nas deslocações entre a sua habitação e o local de trabalho, o que não é o caso de nenhum dirigente de empresa ou membro de profissões liberais. Entre os que gastam duas horas ou mais, contam-se ainda 48,5% dos quadros superiores do sector público, 35,5% dos engenheiros. Entre os operários proprietários de uma vivenda, são os contramestres e os responsáveis de obra os que têm um tempo de deslocação maior, sendo o tempo de deslocação dos operários especializados o mais curto.

Assim, ao fim de tantas decisões e consultas, os compradores, calculadores racionais ainda que o não queiram, são obrigados a vergar-se às imposições que, através das novas formas de ajuda financeira, governam o mercado imobiliário - consistindo a esco­lha mais decisiva que lhes é deixada entre mãos em optar entre a qualidade estética ou técnica da habitação e a distância a que se localiza, ou seja, entre um alojamento medíocre mas próximo do local de trabalho e um alojamento mais espaçoso, ma is confortá­vel, mas mais afastado. Para tal devem contentar-se, antes e depois da sua decisão, em aplicar todos os seus esforços neste amor fati,

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de que a adesão à marca do seu automóvel é uma outra forma, e que permite fazer da necessidade virtude. Mas sobretudo devem fazer abstracção, numa tremenda aposta, de todas as incógnitas ligadas ao universo económico, desemprego, mutações, etc., ou ao ciclo da vida doméstica, permanência ou divórcio do casal, pro­ximidade ou afastamento dos filhos, etc., que tacitamente estão presen tes na sua "escolha".

Dito isto, por mais forte que seja a necessidade que pesa sobre a transação, o jogo nunca está decidido à partida, e tanto vende­dores como compradores podem jogar usando a liberdade que lhes é deixada pela estrutura da relação económica; uns para reforçar as imposições estruturais ou , pelo contrá rio, alargá-las estrategica­mente, mas para melhor as estreitar depois; os outros para lhes escapar, através da resistência ou da fuga. E é apenas através desta série de interacções, tão imprevisíveis como aleatórias (aquele casal, que poderia não ter parado ali, ou ir a outro stand, ou afastar-se dizendo que voltaria, etc., está em vias de assinar um compromisso conforme as possibilidades reais que os seus haveres lhe permitem), que, em última análise, o sistema dos factores económicos e demo­gráficos revelados pela análise estatística age ou, melhor dizendo, se actualiza. Longe de ser uma simples ratificação da estrutura da relação económica, a interacção é uma actualização dessa rela­ção, sempre incerta, no seu desenvolvimento, plena de suspense e de surpresas, na sua própria existência: a observação e a descri­ção etnográfica facultam assim o único modo de a apreender e de restituir a forma que, na experiência vivida dos agentes, assume a acção de factores que não podem actuar sem ser através dela. A troca não se reduz a um simples processo de revelação através do qual o comprador colaboraria, na sua ignorância, com um vende­dor apostado em extrair informações: o vendedor cont ribui para alimentar a necessidade e o gosto do comprador ao mesmo tempo que avalia a sua capacidade de reembolso e contribui para a tor­nar possível; o comprador aprende algo sobre si próprio, sobre os seus gostos e interesses, e realiza o trabalho psicológico necessário para passar ao acto, as mais das vezes ao preço de uma restrição reflectida das suas aspirações e das suas expectativas, ou, pelo con­trário, acaba por diferir ou renunciar. Em resumo, aquilo a que a

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observação nos conduz, e que a lógica dos modelos puros pode­ria levar a esquecer, é que o acto de compra não está implicado em termos lógicos e incluído em termos práticos no conjunto de condições que é necessário preencher para comprar. E, de forma mais genérica, que a acção ou interacção não pode ser considerada nem como uma simples con­cretização mecânica da estrutura (no caso a relação desigual entre o vendedor e o comprador), nem como uma acção de comunica­ção que se poderia explicar sem ter em conta a necessidade estru­tural que nela se exprime. Numa palavra, o acto económico não é o resultado de uma necessidade quase mecânica, que se exerceria através de agentes susceptíveis de ser substituídos por máquinas; ele só se pode concretizar assumindo uma forma social particular, em ligação com as características sociais dos agentes envolvidos na troca e, muito particularmente, os efeitos de uma proximidade con­fiante ou de uma distância hostil daí resultantes.

O Senhor S.

No salão da vivenda, o Sr. S., claramente à procura de uma casa, percorre os corredores, coloca questões num dos stands, tira documentação noutro, depois aproxima-se do stand C.

Logo que chega ao stand, um homem, com ar jovem e um fato sóbrio, dirige-se-lhe e pergunta-lhe se deseja alguma informação. Face à sua resposta positiva, convida-o a segui-lo e senta-o num box

um pouco afastado, sentando-se depois na sua frente.

VENDEDOR: Sabe alguma coisa daquilo a que tem direito? Antes de mais nada importa, digamos assim, conhecermo-nos um pouco, saber um pouco do que deseja. E, bem, vou dar-lhe alguma docu­mentação.

Inicia-se então um interrogatório cerrado sobre o local de habitação, o número e a idade dos filhos, o estatuto de locatá­rio ou proprietário, o preço do aluguer ("Por pouco mais do que isso, pode ser proprietário"), o local de trabalho e a profissão dos cônjuges, se possuem meios de transporte, os bens pessoais,

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o número de assoalhadas pretendido, a superfície e o local dese­jados. A cada uma das perguntas, o visitante vai respondendo o melhor que pode.

VENDEDOR: Espere, vou-lhe dizer, vão ser cinco pessoas a habi­tar esta casa, bem, para cinco pessoas, precisa de ... 80 ... espere lá para eu não dizer disparate ... 88 ou 99 m2, qualquer coisa parecida.. . (procura no seu dossier e lê) cinco pessoas=88 m 2 no mínimo para ter direito a empréstimo ... (agarra na calculadora, pergunta quais são os rendimentos do casal e conclui). Assim são 13 000 francos por mês, nesse caso podem reembolsar até 33%; é o que os bancos autorizam, ou seja (volta a utilizar a máquina de calcular) ... podem reembolsar 4290 F. Que vos parece este reembolso?

VtsiTANTE: Enfim, de qualquer modo ... , já que decidi ter uma casa, estou pronto a fazer sacrifícios.

VENDEDOR: Bom, vou passar-vos isto tudo a limpo.

Agarra no formulário, volta a fazer todas as perguntas já feitas, assentando-as agora por escrito, depois explica ao visitante que há duas possibilidades de empréstimo, o PAP ou o empréstimo con­vencional de que faz uma apresentação simultaneamente obscura, incompreensível e num tom de autoridade.

VENDEDOR: Vou então explicar-vos. O empréstimo PAP é, d iga­

mos assim, um empréstimo com a ajuda do Estado, a uma taxa à partida mais vantajosa, mas que nunca cobre a totalidade da operação. Quer dizer que, com o empréstimo PAP, é preciso um empréstimo bancário suplementar que vem complementar o emprés­t imo PAP. Entretanto, vocês têm uma outra possibilidade que é um empréstimo convencional, no início um pouco mais caro mas que, para um período de 20 anos, vem dar ao mesmo que um

. PAP com o complemento. Assim o PAP, é com o Crédito Predial, o complemento ao PAP, é com o vosso banco ou um organismo financeiro ou mesmo o próprio C réd ito Imobiliário, também pode tratar d isso... bem... o empréstimo convencional, é com um orga­nismo financeiro ou o vosso banco.

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VISITANTE: E quem trata disso? ... Vocês não se ocupam de nada? Tenho que ser eu a fazer de todas essas diligências?

O vendedor lança-se então na sequência Ocupamo-nos-de-tudo-de­·Aa-Z que faz parte do arsenal estratégico de qualquer vendedor e que é explicitamente ensinada nos estágios de formação para ven­dedores.

VENDEDOR: Nós, em geral, ocupamo-nos de tudo. A única coisa que vocês têm que fazer é ler os papéis e assiná-los. É tudo. ( ... ) Ocupamo-nos de tudo de A a Z. (E, sem dar ao visitante o tempo de respirar, começa a falar sobre a apresentação do construtor, iniciando uma segunda sequência obrigatória, Somos-os-primeiros-em­-França-para.) Deixem que lhes esboce um pouco o quadro .. . (. .. ) Fomos os primeiros a ter a marca registada de alto isolamento ... ( ... ) Somos os primeiros em obras públicas e construção de torres e de edifícios (. .. ). No que respeita às vivendas, construímos cerca de 3 500 casas por ano em toda a França. Não somos os pri­meiros, porque os primeiros é uma sociedade que se dedica ape­nas à construção de casas ind ividuais. Quanto a nós, fazen1os mui­tas outras coisas. Como tal não podemos ser os primeiros. Mas estamos na segunda posição. (E conclui, antecipando a questão, já esperada, do cliente). Então, e como são feitas as nossas casas? Digamos que as paredes são de painéis de betão, de um metro e quarenta por setenta centímetros de largura com oito centímetros de espessura. Porquê? Porque não queremos construir em perpia­nho. Consideramos que o perpianho não é um material sólido. Não se vê um único ... mesmo um único grande edifíc io construido com perpianho. É tudo construído em cimento armado. Porquê? Há uma razão. É mais resistente.

O visitante limita-se a escutar.

Segundo tempo: o VISitante toma timidamente a iniciativa aquando da apresentação técnica do produto. O vendedor, que quer desenvolver uma informação mais técnica sobre as casas que representa, é obrigado a responder uma a uma às questões mais práticas que o visitante lhe vai colocando. "O interior está bem

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isolado?"; "Quantas janelas há por divisão?"; "E o aquecimento eléc­trico?"; "Tem fossa asséptica?"; "O chão é forrado a linóleo?"; "Há um suplemento a pagar por isso, não me falou do preço para ... "; "E a cozinha, está equipada ou não?"; "Na casa de banho, pode­mos meter armários ... ?".

Um pouco atrapalhado com as questões do visitante, o vende­dor vai dando as respostas que entremeia com tentativas de reto­mar as rédeas da situação ("Vamos, agora, ver como são feitas as nossas casas") e embrenha-se numa descrição muito técnica a que o visitante, claramente ultrapassado, deixa de prestar atenção: "O isolamento? Mas o nosso isolamento exterior chega perfeitamente"; "Se não tratamos da fossa sanitária? É que uma fossa asséptica é um suplemento em relação à casa"; "Vou-lhe dizer o seguinte. Não se preocupe"; "A cozinha não está equipada, mas tem todas as toma­das previstas para o fr igorífico, o congelador, a máquina de lavar, há tudo, como previsto. Quer dizer que tem apenas que colocar os seus móveis e ir morar para a casa"; "A casa de banho? É como se lá entrasse, poisasse a roupa, poisasse a sua escova de dentes, e está em sua casa. É assim."

VISITANTE: E quanto ao modelo que mais me convenha? VENDEDOR: Pode ser escolhido em função da disponibil idade

financeira. Agarra na máquina de calcular, refaz os cálculos, acrescenta-lhe

o APL, recomeça uma vez mais, engana-se, corr ige, para concluir. VENDEDOR: Portanto, estamos à vontade para construirmos o que

quisermos. Bom, pretende um terreno ... VISITANTE: Quer dizer, para m im o que importa é a casa.

Encarregam-se dos terrenos? O terreno, é à parte da casa? VENDEDOR: Sim, mas estamos à vontade. Quero eu dizer, quando

se dispõe de um financiamento como este ... Se fosse assim todos os dias, estaria contente. Por vezes, somos obrigados a ...

A seguir o vendedor mostra ao visitante um catálogo com dife­rentes modelos de casas. Têm todas uma garagem ("mas a gara­gem é um extra"). Ao visitante que gostaria de ter uma casa com outro andar, pela "independência", responde: "É mais fácil sem outro andar. Quando se tem um andar, muda tudo." O catálogo

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tem apenas casas de um só piso, mas "podemos sempre acrescen­tar-lhe uma cave, se desejar".

VISITANTE (retomando a questão do terreno): Q ual seria a área? VENDEDOR: Que área é que desejaria? VISlTANTE: Quanto baste para construir a casa, mais um pequeno

jardim, só isso.

O vendedor sugere uma área de 700 a 800 m2: com "o orça­mento de que dispomos".

VISITANTE: E isso chega? VENDEDOR: Bem, quando se tem toda essa área para cortar a

relva ... Claro que ... não, 700 a 800 m2 ... já é qualquer coisa. VISITANTE: E a electricidade? A água? Os esgotos?

O vendedor passa então a uma outra sequência, previamente preparada: você-sabe-quase-ao-cêntimo-o-que-irá-pagar (variante com outro vendedor: "Contamos tudo, de forma a que não tenha qualquer espécie de surpresas").

VENDEDOR: Bem, as casas são consideradas sem os extras ... o preço da casa. Mas tem-se isso em conta no plano de financia­mento. Ou seja, quando sair daqui, saberá exactamente, quanto é que vai pagar.

ViSITANTE: E quanto ao papel de parede, podemos ser nós a escolhê-lo?

O vendedor inicia a sequência os-três-níveis-de-acabamento.

VENDEDOR: Temos o que se designa por casas prontas para decora­ção em que o cliente trata do papel das paredes e das pinturas. Esta, uma primeira possibilidade. Temos ainda o que se designa como uma prestação média, que inclui papel de parede, pinturas, alcatifa nos quartos. Temos por último o que se designa de pres­tação luxo que inclui todos os acabamentos de interior, a alcatifa de luxo nos quartos, os azulejos por cima do lava-loiças ou da banheira, o papel de parede. Há três níveis de acabamento.

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VISITANTE: E os telhados, são de telhas? Qual destas casas me

aconselharia? VENDEDOR: Aquela. (Mostra um modelo: trata-se da última casa

comercializada que aconselha sempre. O construtor recomendou-a e agrada-lhe bastante: tem armários de parede e arrumos por todo o lado.) Não tem cinco divisões, mas proponho-lhe um modelo

remodelável. Connosco tudo é possível. VISITANTE: Quais são as vossas garantias?

O vendedor responde com a sequência As garantias (garantia bienal de dois anos de funcionamento, dez anos sobre as grandes

obras e garantia suplementar).

VISITANTE: E o terreno, será isolado ou em lotes? VENDEDOR: É como quiser. Tem disponibilidade financeira para

tal, portanto pode escolher o terreno. VISITANTE: E esta, quanto custaria? (Indica um modelo) VENDEDOR: Vou dar-lhe o preço total, ou seja, como lhe disse há

bocado, é só entrar, poisar as suas coisas, e a casa está pronta a habitar. O vendedor indica o preço. O visitante informa-se de prazos.

Não há prazos, responde o vendedor, que simultaneamente informa que pode escolher o terreno daqui até ao fim de semana antes de mergu­lhar o visitante numa nova sequência sobre a-demora-das-diligências-

-administrativas. Terceiro e último tempo. O vendedor retom3. a iniciativa e pre­

para-se para a conclusão voltando ao terreno qu e lhe é mais favo­rável: !anca, em rajadas, uma série de sequências sobre o aspecto financeiro. d a transaccão: "Sabe, as despesas com o notário são de 3% e têm que ser assum.idas pessoalmente"; "Terá despesas de actu ali­zação para corresponder aos d iferentes aumentos, mas os preços são definitivos, firmes e inalteráveis"; "Poderá eventualmente fazer a lgu­mas economias se se encarregar das ligações EDF para a sua casa, mas terá de pagar os materiais"; "Se não construir uma garagem, mas apenas um abrigo para o seu carro, deve dizer-mo à partida para que figure na autorização de construir".

Passa seguidamente à questão do terreno, o que lhe dá oca-

sião de se envolver.

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VENDEDOR: De momento, tenho vanos terrenos disponíveis na região em que está interessado. Alids sou responsável da região vizinha

e conheço muito bem o hipermercado Continente lá do sítio, é perto do campo, e de ... (cidade referida) uma bela terra muito conhe­cida. (. .. ) Eu próprio estou há quatro anos com o (nome do cons­trutor), e estou em vias de mandar construir uma casa (nome do constru­tor). (Termina com votos de uma conclusão definitiva do contrato:) Para quando será então a sua decisão? Se tomar uma decisão nestes próximos dias, a casa estará pronta quando da próxima reentrada escolar dos seus filhos.

O vendedor entrega ao visitante o catálogo, acrescentado com plantas de casas, projecto, preços; aperta a mão ao visitante dizendo "Até breve" e fica a vê-lo afastar-se.

O Sr. e a Sra F.

O Sr. e a Sra. F., que andam à procura de casa para comprar, já há algum tempo que dedicam a isso a maioria dos seus fins-de­-semana e visitam regularmente a exposição de vivendas Florélites Nord, nos arredores de Paris, em que se juntam diferentes constru­tores. Nesse domingo, acompanhados dos seus dois filhos, de 11 e 7 anos, decidem contactar o construtor G que de momento só conhe­cem de nome. Após algumas dificu ldades em localizar a casa no meio da povoação, vão visitá-la. Andando de uma divisão para outra, param na cozinha onde estão expostas as maquetas das casas, em bolas de vidro suspensas. A vendedora de serviço estava mesmo a terminar uma conversa com outro casal e virou-se então para eles.

Sr. F.: É assim, temos três filhos e queríamos informar-nos sobre a compra de casa.

Muito descontraída, sentada no rebordo do lava-loiça, a vende­dora fez um teste imediato à seriedade das intenções do Sr. e da Sra. F., colocando algumas perguntas iniciais: "Sabem em que zona querem construir?", "Quanto podem gastar com casa e terreno?", "Onde é que habitam actualmente?", "Qual é a gare que utilizam

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em Paris, a gare Norte?". A seguir responderá, pergunta a pergunta, à catapulta de questões do Sr. e da Sra. F., antes de concluir: "Estariam interessados em encontrarem-se com um colaborador que vos poderia apresentar diferentes estilos de casa e sobretudo os ter­renos correspondentes?". Face à concordância do Sr. e da Sra. F., acompanha-os a uma divisão contígua transformada em escritório e convida-os a sentarem-se. Instantes depois, aparece um homem:

VENDEDOR: Meus senhores, presumo que queiram algumas infor­mações? (Instala-se atrás de uma secretária).

SR. E SRA. F.: Bem, nós estaríamos interessados n uma casa, uma casa aqui na zona, para aqueles lados.. . E a sua colega disse-nos que era consigo que devíamos tratar para ver os terrenos.

VENDEDOR: É melhor ver as coisas em conjunto, o que pretendem como casa, o orçamento de que dispõem e depois o terreno, em que local... enfim em que região desejaram construir.

Começa então a colocar as primeiras questões, "Onde é que moram actualmente?", "Em que zona de Paris trabalham?" para encaixar a pergunta "E ao nível das vossas disponibilidades financeiras,

ao nível do orçamento, entre terreno e casa, sabem exactamente o que está ao vosso alcance?"

.SR. F.: Sim, quanto a isso, estivemos com ... (menciona o nome de outro construtor), ele fez-nos um estudo financeiro, e assim ...

VEN DEDOR: ... estiveram com o adversário, OK. E a que mon­tante chegaram? 50 ... 60 ... ?

SR. F.: Bem, 65 milhões. VENDEDOR: 650 000 francos, terreno e casa incluídos. Arranjam

um financiamento através de um emprést imo bonificado, ou de um empréstimo PAP? Chegaram a ver isso?

SR. F.: Bem, ele fez-nos alguns cálculos .. .

O vendedor lança-se então numa explicação muito abreviada.

VEN DEDOR: Actualmente há duas formas de financiamento. Em fun­ção das condições familiares, ou seja, do número de pessoas a

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Page 116: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

cargo, e da carga fiscal, pode-se ter direito a um empréstimo de Estado, o empréstimo PAP. Ou as condições familiares e fiscais permitem obter os empréstimos de Estado com juros de 9,6%, ou então recorre-se aos empréstimos bonificados. São dois tipos de financiamento, mas que fazem a diferença ao nível do finan­ciamento.

Depois avança com um questionário intensivo a que o Sr. e a Sra. F. vão respondendo alternadamente enquanto o vendedor anota todas as suas respostas num formulário: "A entrada ini­cial?", "São proprietários ou inquilinos?", "Número de filhos?", "Rendimentos?", abonos de família: "Mas, atenção, os bancos não as tomam em consideração." Verifica os cálculos do construtor concorrente ("Um terço de 12 000 FF, faz 4 000 FF: sim, é isso") e prossegue com o interrogatório: "Há alguma possibilidade de um empréstimo por parte do vosso patrão?", "Tem os seus impostos em dia?", "Há quanto tempo trabalha na mesma empresa?" Pergunta se o outro construtor não lhes fez um PAP e decide: "Então vamos fazer um empréstimo por 20 anos e um empréstimo complemen­tar. ... Sim, é isso, vamos fazer um empréstimo PAP, majorado, não há problema ... "

O Sr. e a Sra. F. não podem deixar de estar de acordo. O ven­dedor prossegue: "Então e agora, no que respeita á casa, o que é que procuram, de que é que precisam?" O Sr. e a Sra. F. dizem pre­tender um quarto para cada filho "pelo menos", "uma área por volta dos 100 m2", "um único piso", "com garagem". O vendedor concorda: "Bem, então vamos lá ver o que é que vos poderei ofe­recer nesse género?" Folheia um catálogo.

SR. F.: Vimos uma na publicidade que vocês têm na cozinha que tem um ar bastante ...

(Indica qual é, apontando uma das últimas casas produzidas pelo construtor e unanimemente considerada como invendável pelos vendedores que, considerando-a demasiado complicada e em geral inadaptada ao que é pedido pelos clientes, nunca a propõem.)

VENDEDOR (continuando, como se nada fosse, a percorrer as páginas do catálogo): Como hipótese de casa, 100 m2, com gara-

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gem ... Há diversas possibilidades ... (volta as páginas) ... bem, aqui está um exemplo, esta. (Mostra as plantas. É a última casa do construtor e que, ao contrário da precedente, teve a aprovação dos vendedores.) Pode-se acrescentar a garagem aqui ... Abre tantas pos­sibilidades, hein! Podemos fazer seja o que for.

O Sr e a Sra. F., enquanto vêem o catálogo, tentam fazer o ven­dedor falar sobre outros modelos, mas em vão. Ele contenta-se em continuar a preencher o formulário, fazendo cálculos sobre o custo da garagem ("isto é tanto"), juntando o APL, o montante do emprés­timo PAP, e responde vagamente às questões que o Sr. e a Sra. F. lhe tentam colocar, nomeadamente quanto ao lado técnico da casa.

SRA. F.: E os clientes que tern na zona, aguentaram bem o frio

que fez há pouco tempo? VENDEDOR (aproveitando para se imiscuir): Claro que sim, eu pró­

prio o suportei muito bem, tenho uma casa G. Segue-se uma longa descrição dos aspectos técnicos das casas G. O Sr. e a Sra. F. ficam entretanto a saber que o seu emprés­

timo "será progressivo" sem que lhes tenha sido explicado o que

isso quer dizer. SR. F.: De qualquer forma, claro que teremos outras despesas,

mas para estarmos tranquilamente na nossa casa, e tudo isso, vale a pena fazer sacrifícios, não há problema ...

VENDEDOR (protesta): Ah, não, não, como se costuma dizer: a cada um o seu ofício... Eu coloco questões, e isso permite-nos che­gar a acordo quanto ao financiamento ...

Informa sobre o custo total resultante das suas contas, antes de perguntar se o Sr. e a Sra. F. tinham obtido valores idênti­cos no construtor concorrente. Como o Sr. F. avança com uma verba mais consentânea, o vendedor volta a mergulhar nos seus cálculos e acaba por comentar, rindo: "Ah não, não... matemati­camente, não é possível!"; procede então ao desconto "do que sobra

para o terreno". Dado que o Sr e a Sra. F. pretendiam uma determinada superfí­

cie de terreno, o vendedor responde indicando uma parcela. "Resta um lote ali, neste loteamento. Se não... É o único. Vendemos

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tudo ... " E gaba a "estação mesmo ao pé": "é uma pequena povoa­ção", "tem todas as escolas", "mesmo por detrás, é só campo ... são 500 m2". O vendedor tenta inserir a casa que aconselhou neste lote, mas não consegue. Propõe um outro terreno, por detrás do aeroporto de Roissy, que o Sr. e a Sra. F. recusam "por causa do barulho dos aviões demasiado próximo", e acaba por sugerir um terceiro, um pouco mais longe, mais caro, que parece agra­dar mais ao Sr. e à Sra. F. E acrescenta: "Atenção, é um último lote. Vai desaparecer num instante. Temos já autorizações de cons­trução para lá."

Segundo tempo. O Sr. e a Sra. F. irão colocar questões a que o vendedor responderá, uma a uma, entremeando as suas afirma­ções com discursos estandardizados.

SR. F.: E quanto às autorizações de construção, essas diligências todas, são vocês que tratam disso?

VEN DEDOR: De A a Z. Vocês não têm que tratar de nada, é questão nossa, não têm que se preocupar, telefonam-nos de tem­pos a tempos ...

SR. F.: São vocês que constroem todo o loteamento? VENDEDOR: Não somos só nós. Mas temos um método de cons­

trução bem específico ( ... ) quero dizer com isto que há um rigor no fabrico claramente superior pois nós não recorremos a emprei­teiros ou artífices.

SRA F.: E então, se houver algum problema, telefonamos e vocês ... VENDEDOR: Não há problemas, não, é verdade ... Os nossos mate­

riais, são os mesmos que são utilizados para construir barragens.

Assim estamos seguros do nosso produto, hein! É uma garantia e tanto, hein! (o vendedor desenrola então a sequência As garantias)

Aliás é por isso que nós garantimos as nossas casas por trinta anos quanto às paredes exter iores (mais a garantia de três anos sobre os equ ipamentos, a chamada garantia-fornecedor).

SRA. F.: E as janelas, quando fecham mal? VEN DEDOR (sequência técn ica): Não ... e para mais nós já temos

quarenta anos de prática. Há mesmo um serviço especial que se ocupa de... (cita o nome do construtor). Podem fazer posterior­mente alterações na vossa casa, há um serviço de melhoramentos

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da habitação que faz todo um trabalho de acompanhamento ao

nível da vossa casa. Há mesmo quem ... SR. F.: Há lá algum clube (nome do construtor)? VENDEDOR: ... Não, não h á nenhum clube (nome do constru­

tor), mas na verdade pode-se criar um clube pois há 150 000

casas construídas. ( ... )

Terceiro tempo. O vendedor deixa de acompanhar o que o Sr. e a Sra. F. d izem, mas retoma o assunto em mãos para avançar com os seus últimos argumentos e tenta forçá-los a tomar uma decisão.

A uma questão prática colocada pela Sra. F.: "Poderemos colo­car um pequeno arrumo junto à garagem?", o vendedor responde em termos do "conjunto do projecto". E prossegue: "E quanto ao terreno, justamente, tenho uma proposta para este local, que cor­responde bem ao vosso financiamento." O Sr. e a Sra. F. propõem­-se então ir lá "e dar uma volta no regresso para o ver", o vende­

dor começa a pressionar:

VENDEDOR: Se é aquele o terreno que desejam ... penso que é pre­ciso andar bem mais depressa do que isso... pois, é isso, só resta um.

O Sr. e a Sra. F. mostram-se então reticentes face a tanta pre­

cipitação. O vendedor tenta perceber se ao menos consegu iu interessá-los.

VENDEDOR: Entretanto, ao nível do financiamento, ao nível da

casa, corresponde ao que andam à procura?

O Sr e a Sra. F. dizem que sim. O vendedor tenta então orga­

nizar com eles um dossier.

VENDEDOR: ... Bem ... quero eu dizer, temos que organizar um processo ... é para fixar um preço, se for esta a casa que vos inte­ressa, podemos abrir já um dossier respeitante a esta casa, fixar o preço de base e, a partir daí, posso afinar a questão do financia­mento e fazer uma investigação no terreno. Eu ... ( .. . ) Se vocês qui-

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serem, podemos mu ito bem fazer hoje mesmo o dossier construção, reservar a casa. Assim, isto fica garantido. Para isso precisamos de um sinal de 2 000 F. Se houver algum problema ser-vos-á devol­vido, mas assim posso procurar um terreno.

Face às reticências do Sr. e da Sra. F. ("Vamos esperar tal­vez que o tempo melhore um pouco para lá irmos"), o vendedor resolve insistir: "Será uma pena para vocês, se se forem embora, perder um preço de base da casa (. .. ) Não se trata de precipitação, há tantas possibilidades de suspender. .. "; e trata de argumentar: "Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, é preciso dar um passo de cada vez." O Sr. e a Sra. F. respondem: "Vamos olhar com calma (. .. ) Bem, talvez voltemos cá um destes fins-de-semana." O vende­dor termina a entrevista deixando-lhes as indicacões e o estudo de financiamento que fez, a que junta o catálogo 'com os diferentes modelos de casa, depois acompanha-os até à divisão contígua.

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Anexos

1 - O argumentário e a sua utilização

A Sra. A., jovem secretária comercial de um construtor de âmbito nacional, está encarregada de atender os telefonemas e mar­car os encontros dos vendedores. "A nossa sociedade enviou-nos ... enfim, uma pessoa que se ocupa da formação do pessoal enviou­-nos umas listas de argumentos." Tira da sua gaveta uma dezena de folhas agrafadas que recebeu da direcção. No cimo da primeira página, pode ler-se "Manual de argumentação". Poisa o documento na sua frente e começa a ler em voz alta, enumerando as indicações a segu ir para cada uma das situações que se podem aprestmtar:

Sra. A.: Aquando da recepção de um pedido8: Sim, claro. O seu nome?

Morada. Telefone. Bem, a informação que lhe vou dar não irá ser satisfatória porque suponho que pretende um preço preciso, não é isso? E a minha resposta será entre tal e tal preço ... (E ela comenta.) Na verdade isto não quer dizer grande coisa, tenta-se .. . falar um pouco sobre o plano finan­ceiro ... (Continua a ler) Indicações precisas em relação às questões financei­

ras: Estou a ver que o senhor está interessado no aspecto financeiro. Tem razão. É muito importante ... Estas duas frases, vou utilizá--las. Bem, o nosso especialista poderá responder a todas as suas questões. Por isso proponho que se

encontre com ele dia tal. .. ou taL.. A pergunta sobre o preço: Quanto à pergunta sobre o preço,

fico sempre pelo vago. É entre taL e taL Não dou o preço. É para deixar as pessoas no vago e para que sintam a neces­sidade de se encontrar com alguém para obter outras informa­ções. Se eu o der, vão-me dizer: "Boa tarde, minha senhora" e

8 Utiliza-se aqui o itálico para distinguir os extractos do manual da argu­mentação das palavras do próprio empregado.

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Page 119: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

contactar muitos outros construtores, e será o próprio a fazer depois a sua escolha ...

- Mas, vocês sabem, os preços ... Sra. A.: Claro, claro que sim. Tenho aqui as tabelas, naturalmente

( ... ) Mas, para qualquer modelo, digo entre 250 000 e 300 000 FF ... Por vezes 350 000 FF: "Quanto custa uma de cinco assoalhadas?" Então eu respondo-lhes: "Sim, uma de cinco assoalhadas. Mas nós temos com 90 m2 ou 80 m2, temos uma casa em L, temos uma casa de um andar ... e é tudo com cinco divisões." Então o cliente, diz para si próprio: "Ai sim?!", e quer ir ver. Consigo coordenar as coisas assim.

Novo contacto com os clientes: Há também que ter em conta aquilo que os clientes me podem responder... Esteve em contacto connosco há

já algum tempo. Estou a contactá-los para saber em que ponto estão as coisas

no que respeita ao seu projecto de construção.

- E então, o que é que ele responde? Sra. A.: Ele diz: "Desistimos." Então eu respondo: Senhor fulano

de tal, protelou o seu projecto, por alguma razão particular? Então, se se trata

de razões financeiras: na altura encontrou-se com um técnico nosso, ele fe z-lhe

algum plano de financiame nto? Se responder sim, eu digo: Qual era o montante? A sua situação financeira sofreu posteriormente alguma alteração?

Se ele responde que não, então eu prossigo: Posso colocar-lhe algu­

mas questões? Quantos filhos tem? Que idade têm? Quais são os rendimentos

mensais da sua família? Temos então, uma primeira possibilidade: se a avaliação é igual ou superior ao montante definido - Tem algum

suplemento financeiro ou algumas economias de família? Se a resposta é sim: Tem algum terreno? Se a resposta é afirmativa: Onde? Se a res­posta é negativa: Onde é que desejaria construir7 Segunda hipótese: se a avaliação é inferior ao montante definido - Tem a possibilidade de

dispor de um montante que o possa ajudar a iniciar este projecto? Se a res­posta é não. Digo-lhe então que proponho numa primeira fase reenviar­

-lhe o nosso catálogo, e que retomarei contacto dentro de alguns meses. Mas

se, entretanto, tiver a lguma questão a colocar, estamos à sua inteira disposi­

ção. ( ... ) O mês passado refiz todos os contactos que não tinham tido seguimento, aí uns quarenta, e só consegu i três encontros. É pouco! ... Bom, deu para fazer duas vendas, mas bem ... digamos

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que é pouco relativamente a outros.. . contam cada uma. ( .. . ) Em contrapartida fizemos outra coisa que não resultou mal, como ficou provado, é que as pessoas que tinham sido recebidas sem resultados, por uma pessoa, quando consegui obter outro encon­tro, dirigimo-las para outra. E foi essa outra que conseguiu levá­-las a assinar.

Anulação de encontro: Agora isto, é bem difícil... muito difícil de reatar ( ... ) O cliente diz-nos: ''Ait! Tenho muita pena, minha senhora,

mas não me é possível estar lá para receber o vosso vendedor." Ah! Sim, é nesse caso que tento enganar, quando se trata de um encontro nesse mesmo dia. Por exemplo, os rapazes têm encontros mar­cados para as 18 horas ou para as 20 horas, e um cliente tele­fona-me de manhã para anular. E então, para tentar manter o encontro, minto e digo que eles não estão lá e que não voltarei a vê-los nesse dia.. . Lamento muito porque não os vou ver... ou então, quando é na véspera, no limite, digo (a Sra. A. lê o papel): Ah!

Lamento muito, senhor, porque infelizmente não vou ver o técnico comercial

até ao final do dia nem amanhã durante todo o dia ... Bom ... Aliás ele até me

falou do vosso projecto sobre o qual tem coisas importantes a dizer-vos ... Por mim, neste caso, diria antes: "Ah, bom, é pena porque ontem, justamente, estivemos a falar de si, e ele tem algumas propostas a fa zer-lhe." Isto porque, então, as pessoas pensam: "Está bem, falam de mim." Isso marca-as.

A Sra. A. volta ao seu manual de argumentação e lê: Anulação

de uma venda: Isto também é muito difícil... - Sim? Sra. A. (lê): E então, senhor fulano de tal, o que é preciso para proceder a

uma anulação, restituir o seu sinal, retirar o dossier é falar o mais depressa pos­

sível com M. (o vendedor) que vos irá indicar o que deve ser feito e cumprirá

as formalidades necessárias. Desta forma tento que haja um segundo encontro entre ele e o vendedor.

- E isso resulta? Sra. A.: ( ... ) Sim, resulta, porque, como as pessoas nos passaram

um cheque, e como nos deram a sua folha de salário, a declaração dos impostos, etc., temos papéis pessoais que lhes dizem respeito e eu utilizo essa vantagem. Mas é preciso agir muito rapidamente ...

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- Sim? Sra. A.: Em quarenta e oito horas no maxuno. Em vinte e qua­

tro horas, é o ideal. Se ele telefona, deixamos praticamente tudo de lado e aí vamos nós! Porque é uma venda a recuperar... sobretudo quando eles dizem que há um outro concorrente mais ou menos ...

- E então, isso resulta? Sra. A.: Bem... isso depende ... Não ... é muito variável! Por vezes

vai, outras vezes não! O mês passado, tivemos casos desses, ten­támos recuperar, e não conseguimos nenhum: tinha havido uma situação de desemprego, um divórcio não declarado ... Era irrecupe­rável de momento, talvez dentro de um ano!

Um negócio perdido (o cliente anula o seu contrato com o cons­trutor).

Sra. A. (lê o texto): Chegou a estar com um dos nossos especialistas?

Senhor fulano de tal, vou-lhe pedir um favor. Poderá dize1' me o que é que encon­

trou noutro sítio e que nós infelizmente não lhe pudemos oferecer?

- Costumam responder-lhe? Sra. A.: Quanto a isso (riso)... Há de tudo. Há casos em que ...

o vendedor não apareceu... ou... que ele não nos disse isso ... , etc. - E diz o que pensa desses argumentos? Sra. A.: Bem ... eu, não sou bem para esse género de coisas ...

Enfim, ainda a semana passada falei disso com o chefe do meu sector, porque não sei se o cliente se dá ou não conta disso ao telefone, mas eu, quando estou a falar, tenho a impressão de estar a ler. Então, isso embaraça-me um pouco. É pouco expontâneo relativamente ao que o cliente me vai dizer. Eu sigo o meu guião. (A Sra. A. lê os seus papéis) Está bem. Tem uma localidade preferida?

Bom, isto eu digo em conversa, mas depois de ter dito isto, se não sigo o manual de argumentação, já n ão sei o que dizer. Está a ver? Mas em qualquer dos casos é difícil porque depende das per­guntas concretas que o cliente faz a dada altura. Então podemos não ter as respostas adequadas em relação aos argumentos deles. E isso incomoda-me um bocado, porque tenho a impressão de que se nota demais que estou a ler ...

- Mas há indicações neste manual de argumentação que não utilizaria se falasse de forma expontânea?

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Sra. A: Bem... (Ela lê o papel na sua frente) É da casa do Sr.

e Sra.? Estou a falar com o Sr. ou Sra. Bom dia. Aqui fala (nome do constru­

tor). Contactaram-nos. É muita amabilidade da vossa parte. Agradeço. Tomei conhecimento da informação que nos enviaram, mas falta-me uma em relação

ao terreno. Informaram-nos de que não têm nenhum terreno, mas em que local

gostariam de construir? Bem, até aqui digo sem problemas... Tem uma

localidade prefeTida? ... Bom, OK ... Agora isto: Tem uma localidade pre­

ferida, prefiro não insistir mu ito porque duvido que se as pessoas moram em Meudon, lhes apeteça construir em Meudon; ou se moram no 16°, tenham vontade de construir no 16°... E então ... bem... surge o problema... (riso) porque antes do mais não há ter­reno e depois, muitas vezes, os pobres não têm dinheiro... Então, em vez de lhes dizer que não é possível - enfim, de qualquer forma não é esse o meu papel, isso compete depois aos rapazes, mas o que se pretende é que eu consiga marcar os encontros, então, em vez de perguntar Tem uma localidade preferida, pergunto­-lhes em que sector pensam construir ...

- É mais vago ... Sra. A .: Isso! Eu prefiro ficar mais no vago ... Não, mas é ver­

dade, essa frase, Tem uma localidade preferida, eu nunca a d igo ... Porque isso.... deixa-me bloqueda ... porque o nosso papel é conven­cer o cliente a arranjar um terreno noutro lado.

- Há outras frases que ... Sra. A. (continua a ler) Então, o que lhe proponho, sem nenhum com­

promisso da vossa parte - isto então digo sempre, porque as pessoas têm muito medo -, é ter um encontro com o nosso técnico que responderá

a todas as vossas questões, antes do mais no plano financeiro, ou seja, de que

vantagens, de que tipos de crédito, poderá benef iciar - isto, em princípio, as pessoas sabem... porque já andaram à procura .. . e contactaram várias empresas - e depois também, no plano imobiliário, ou seja, que tipo de

terreno, que tipo de precauções é preciso tomar - isto, nunca digo ... - Não? Porquê? Sra. A .: Porque ... não, porque ... é como no caso da localidade

preferida ... que terreno e que precauções é preciso tomar. .. é que na verdade depois eu não saberia argumentar... porque o cliente vai perguntar: "O que é que isso quer dizer: que precauções é pre­ciso tomar?" E eu não sei.

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- O que é que diz em vez disso? Sra. A. (riso): Pura e simplesmente salto por cima desta frase ...

Tudo o que diz respeito a imobiliário, em princípio .. . bem... Eu fico-me pela casa! Em relação ao terreno não d igo nada.. . (A Sra. A. retoma a sua leitura) Enfim, claro que lhe fa lará da sua casa, dá-lhe uma ideia das suas opções e ele responderá às suas perguntas. Então proponho marcar o encontro para tal. .. ou taL.. (faz-se a reorganização dos encon­tros e pronto.) Agora, foram feitos alguns testes pelos chefes do sector, e digamos que conseguiram, ter ... bem ... em dez contactos, cinco encontros efectivos numa tarde. Eu, bem gostaria, mas não consigo. Só muito raramente. As pessoas t rabalham. Consigo con­tactá-las a partir das 18 horas... ou 20 horas ( ... ). Mas, em geral, tento então perguntar-lhes se, eventualmente, estão dispon íveis no mtcto ou no fina l da semana, e se preferem que vamos à sua casa ... de manhã ou à tarde. E, em geral, nesses casos dizem-me: a partir das 18 horas ( ... ). Como o objectivo é que estejam tanto o Sr. como a Sra., para que não se possam desculpar com a ausên­cia do outro, tento também saber se estarão lá os dois ...

- Há mais alguma coisa nesse manual de argumentação que não costume dizer?

Sra. A.: Ah, sim! (olha para os papéis.) ... As objecções do cliente ...

"Bom dia, minha senhora, quero apenas algumas informações." Então nós tentamos marcar um encontro, e depois, nada, o cliente insiste que "é apenas uma informação". Então... bem... leio sempre os argu­mentos do meu guião, e... bem... isso sempre me deixa embara­çada: Claro, senhor fulano de tal. Compreendo perfeitamente, só que um pro­jecto de construção não é uma coisa qualquer ... bem... (A Sra. A. retoma a leitura) ... ainda assim é uma coisa importante. É um compromisso para mui­tos anos, que merece um estudo aprofundado. Aqui (nome do construtor), somos gente séria, pensamos que uma conversa com o nosso técnico é claramente prefe­rível para .. . bem ... para responder às suas questões. Sem nenhum compromisso da sua parte, claro está. É por isso que proponho um encontro dia taL.. ou taL.. Agora.. . bem... eu não digo esta frase toda ...

- Ah sim? Então como faz? Sra. A.: Porque o cliente, não está nada interessado, penso

eu, em ouvir todo este meu paleio. Bom, assim digo-lhe. "Bem, oiça... penso que para ter as informações... verdadeiramente... ade-

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quadas em relação ao que pretende, é preciso marcar um encon­tro ... ". Bom, não tenho problemas por aí além em marcar encon­tros como este, porque as pessoas, se nos contactam, é porque de facto querem mesmo saber alguma coisa. Assim, uti lizo este texto apenas como base .. .

- Quais são as frases que, em geral, não utiliza? Sra. A.: Ah, bem ... quanto a isso ... aqui (nome do construtor), somos

gente séria. Esta, por exemplo, não uso. Evidentemente.... (risos) Assim, fica mais resumido. (A Sra. A. continua a ler os papéis.) Pergunta possível do cliente: Como é a construção das vossas casas? Aí, a frase que se segue, leio-a sempre: Vejo que se interessa pelo aspecto téc­nico, e tem razão, é muito importante. Esta d igo-a porque calha muito bem. E, por exemplo, a que vem a seguir: E bem, é justamente o nosso técnico que pode responder a todas as suas questões. É por isso que lhe proponho um encontro com ele dia taL.. ou taL.. Também a digo, porque são frases curtas. É simples. Assim, não altero nada, porque fica melhor (. .. ). Em contrapartida, esta, que d iz respeito às anulações, esta não a digo nunca: Senhor fulano de tal, tem a gentileza de nos conceder uns instan­

tes ... Isto nunca d igo, porque se o cliente contacta, parece-me ridí­culo pedir-lhe que me conceda um instante se ele já teve o traba­lho de telefonar para anular, porque então as pessoas mandam-nos dar uma volta ...

- Na verdade nunca disse o seu gmao completo ... Sra. A.: Não, nunca tentei, porque, além do mais, há frases tão

longas que... como tenho a pessoa ao telefone, na verdade quero dizer as coisas depressa. Tento despachar-me depressa, não me arras­tar demasiado. Porque, se começamos a alongar... bem posso dizer­lhes que sou secretária e que ... não sei nada ... é preciso que fique no vago! Porque eu sou secretária e não vendedora... Então se começo a contar-lhes a minha vida, oiço logo: "Ah sim, mas pensa que posso ... " ou "Ah sim, pensa que acha que posso conseguir, lá, um ter­reno a este preço ... ". Em resumo, colocam-me um monte de questões. Por isso tento ao máximo ficar no vago! Agora bem... se quiser, o objectivo do manual de argumentação, e está muito bem, é na ver­dade dizer sempre: "Sim senhor". Eles dizem-nos. "Não tenho pressa." E nós respondemos: "Sim, claro, compreendo." Então, ficam muito satisfeitos, porque pensam "Ela compreende ... " (Desata às gargalha-

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das.) Eu deveria utilizar sempre este manual de argumentação, mas tenho em geral tendência a ser eu própria e depois... ops, recuo!

2 - Duas entrevistas

"Um verdadeiro calvário"

O Sr. L. e a sua família decidiram lançar-se na compra de uma casa. Ele tem 32 anos e é operador numa empresa de informática. Ela tem trinta anos e é contabilista numa seguradora. Têm dois filhos com 7 e 3 anos.

. A descrição que ele faz da construção da sua casa é a seguinte: "E um trabalho forçado, um verdadeiro calvário: para fazer isto é preciso querer mesmo. Ah, sim, é absurdo! Não sei como expli­car, hoje em dia facilitam-se tanto os empréstimos para os car­ros ou para uma coisa qualquer, enquanto para uma casa, não dá para acreditar os papéis que são precisos, a falta de coordenacão ... Por último, fui eu próprio que tratei das coisas. Normalme~te é o construtor que trata dos empréstimos, etc. Bem, se calhar com­pliquei um pouco as coisas mas no que diz respeito a papéis ... cada um depende de não sei quantos outros. Aí, se for caso disso, podem-se perder meses e meses. Há, quanto mais não seja, o pro­blema de o terreno não estar disponível; é preciso avançar com dinheiro, ver logo com quanto se pode avançar. É o problema de como começar, não sabemos como se faz, não sabemos como começar: devemos contactar um construtor? Mas ele pergunta-nos se temos um terreno. Será de procurar primeiro um terreno e depois contactar um construtor? Para isso é preciso saber, à par­tida, quanto se pode gastar com o terreno.

No início estamos desorientados; na verdade, agarramos no problema ao contrário do que devíamos. Comigo, foi o que acon­teceu: fui ter com o construtor, ele disse-me, tem um terreno; não? Ele tinha terrenos, mas será que os seus terrenos correspondem ao que nós pretendemos? Não é certo. Pode-se arranjar um terreno noutro lado. Bom, tudo é um problema. Depois, procurar emprés­timos, conseguir coordenar tudo. É um inferno, do princípio ao

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fim. No nosso caso, por exemplo, ficámos bloqueados por falta de alvará de construção. Agora estamos à espera do alvará, e a par­tir daí, posso f~zer um pedido de empréstimo a 1%, o empréstimo patronal, etc. E preciso ainda tratar das assinaturas no notário. Nada está feito para facilitar as coisas. Desde o princípio, vai fazer um ano e meio para poder construir uma casa, é demais! Gasta-se quase tanto tempo a tratar dos papéis e essas coisas como a cons­truir a casa. É completamente absurdo!

Depois vem a construção. Eu, como sou um bocado manía­co, vou também acompanhar tudo isso, vou gastar muito do meu tempo. Para mais, quero uma obra bem feita, portanto ainda vou gastar muitas horas para ir e vir, ver como as coisas estão, etc., para ter a certeza que fica tudo como eu quero. Porque ainda por cima é raro que as coisas sejam feitas como deve ser. É mesmo preciso querer uma casa.

( ... ) temos sempre a impressão de que não vamos conseguir. Claro que se uma pessoa tem um salário interessante, conta com outras facilidades. Mas nós não temos nenhum apoio familiar, sem­pre nos desenvencilhámos sozinhos. Então, ficamos com um monte de problemas pela frente e acabamos por desesperar. No princípio estávamos cheios de energia, mas depois desesperávamos, dizíamos para nós mesmos: não é possível, nunca iremos conseguir. Então caíamos na desmoralização. Houve um momento em que eu pensei, não é possível, nunca conseguiremos. E como tinha posto aquilo na cabeça e queria mesmo, sentia-me frustrado e enervado. Estou bem contente de ter conseguido. Para todas as pessoas que conheci, que tinham comprado, o início e os dois primeiros anos, é sempre muito duro, quanto mais não seja porque é preciso tomar balanco mas depois parece que as coisas melhoram... De qualquer manei~a: como as coisas estão, com o preço das rendas... Só nos resta lutar contra ventos e tempestades! A sensação de que não se consegue avançar, isso é frustrante. Na verdade, a menos que se tenham os meios, nunca se consegue o que se quer. Dou-me conta que entre os sonhos que tinha, o que à partida queria fazer, é duro conse­guir concretizar apenas uma parte do ·nosso sonho. Na verdade, esta casa, quanto a mim, como que encolheu, já não é a casa que eu concebia. Imaginava uma grande casa, com grandes divisões,

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uma grande lareira, sei lá ... Para mais, quando era jovem, tinha um monte de amigos que viviam em Enghien, que t inham casas bem bonitas. Sempre disse para mim mesmo, é o máximo, é isto que eu quero ter, bom, e depois vem a triste realidade (riso).

(Extracto de uma conversa com o comprador de uma casa de fabrico industrial, Taverny - Val-d'Oise -, fins de 1987).

"Fazer baixar a temperaturá'

VENDEDOR: Quando um cliente acaba de assinar o acordo com o vendedor e regressa, à tarde, para casa, os dois dias que se seguem são terríveis. Portanto, é preciso dar-lhe algum conforto, dizendo: "Bom, conseguimos, tratámos do seu pedido de financiamento; o seu pedido foi enviado para tal entidade bancária; estivemos com o responsável; temos já uma resposta positiva de... da aceitacão do dossier". Ah, bom!... Assim é melhor... E, depois, a temp~ratura volta a subir. Voltamos então a confortá-los, indo ter com eles justa­mente com a aceitação do crédito ... A temperatura ainda está muito elevada. Depois, há problemas ligados ao pedido de licença para construir. Eles já têm o seu crédito, mas será que poderão mandar construir exactamente o que querem, porque também está sujeito a normas... em... da Direcção Regional do Equipamento. Bem, na verdade, aí a tensão é menor, mas mantêm-se algumas apreensões ... nomeadamente em função das alterações; para alguém que queira fazer alterações ao nível da arquitectura, não é garantido que elas sejam aceites pelo arquitecto ( ... ). Mas ai a pressão é menor. Ela é maior sobretudo ao nível dos empréstimos, quando o dossier está na tangente, então sim, é difícil. Mas, a partir da aceitacão as coi­sas correm bem melhor, porque eles sabem que vão ter. u~ finan­ciamento e que, apesar de tudo, poderão construir.

- Então vocês, nessa fase, todo o vosso trabalho consiste em ... VENDEDOR: Confortá-los ... levá-los a admitir ... apoiar a sua opi­

nião, reforçar a ideia de que fizeram uma boa escolha ... - Mas como é que fazem isso? VEN DEDOR: A verdade é que há pessoas que, com a questão do

financiamento, assustam-se com .. . contrair empréstimos por quinze,

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vinte anos. E quando se recebe a proposta de empréstimo e essa proposta de empréstimo, por exemplo, faz ressaltar os cálculos sobre vinte anos, com tudo o que se vai ter que pagar! É pre­ciso reparar que, mesmo 10% é 10 ao ano, e que para vinte anos isso corresponde a 200%. Triplica o preço da casa... O u seja, é absurdo! E nós tentamos tranqui lizá-los antes do mais ... em relação ao valor intrínseco do dinheiro. Mas isso, são noções abstractas. Deixamo-los bem mais tranquilos quando lhes dizemos que não precisam sentir-se obrigados a levar 20 anos para pagar. ..

- Que eles não são obrigados a levar 20 anos para pagar? VENDEDOR: Claro que não ... podem revendê-la ... e como o sec­

tor imobiliário ... não conheço ninguém que perca dinheiro no imo­biliário.. . Compra-se qualquer coisa por 200 000 FF. Mesmo sem grande mais-valia, pode revendê-la por 400 000 ou 500 000 FF dez anos depois... E, então, já dispõe de uma certa base financeira e pode retomar o processo em bases diferentes ... ( ... ). Uma casa para a vida; hoje isso já não é assim ( ... ). Temos recém-casados, jovens casais com uma criança pequena que querem logo uma casa de cinco ou seis assoalhadas porque é a sua grande aqu isição ... Bem, se isso é aprovado a nível financeiro e têm orçamento que o per­mita, tudo bem. Mas, se não for o caso, é preciso desdramatizar. Porque é que querem seis assoalhadas se vocês são só três? Qual é o vosso objectivo no imediato? Bom, vocês têm uma entrada de tanto, têm um rendimento de tanto que vos permite o acesso a uma vivenda. Mas, com que base? ( ... )

- Não sabia que utilizavam esses argumentos nas vendas ... VENDEDOR: Não é um argumento propriamente dito, mas talvez

uma contra-objecção a uma eventual objecção quanto aos preços, sobre o tempo, sobre o espaço, sobre o volume, pode-se sempre ...

bem ... utilizar esta ... fórmula . - Diz "contra-objecção" ... VENDEDOR: ... E a pessoa que sonha e quer ter a sua casa, ima­

gina-a, etc. E levá-la a contentar-se com um projecto abaixo das ... suas expectativas, não é fácil. O inverso é sempre mais fácil.

(Extracto de uma conversa com um vendedor q ue trabalha para um construtor nacional, Salão da Casa Individual, Paris, O utubro 1984.)

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A S ES TR U TU RAS S OC I A I S O A E CONOMIA

Conclusão

As bases da miséria pequeno-burguesa

A quilo de que se tem falado, ao longo de todo este tra­balho, constitu i uma das bases determinantes da misé­ria pequeno-burguesa; ou, mais precisamente, de todas as

pequenas misérias, todos os atentados à liberdade, às esperan­ças, aos desejos, que sobrecarregam a existência de preocupações, decepções, restrições, falhanços e também, de forma quase ine­vitável, de melancolia e ressentimento. Este tipo de miséria n ão inspira espontaneamente a simpatia, a compaixão ou a indignação que suscitam os graves problemas da condição proletária ou sub­proletária. Sem dúvida, porque as aspirações que estão na base das insatisfações, das desilusões e sofrimento do pequeno-bur­gês, vítima por excelência da violência simbólica, parecem sempre dever algo à cumplicidade de quem as sofre e aos desejos m isti­ficados, extorquidos, alienados, pelos quais, como uma moderna encarnação do Héautontimoroumenos, contribui para a sua própria infelicidade. Ao envolver-se em projectos frequentemente excessi­vos, porque mais à medida das suas pretensões do que das suas possibilidades, coloca-se a si próprio em situações impossíveis, sem outro recurso senão o de fazer face, ao preço de uma enorme ten­são, às consequências das suas opções, enquanto se esforça por se

contentar, como se diz, com as limitações impostas pela realidade às suas expectativas: poderá passar assim toda a vida a esforçar­-se por justificar, aos seus próprios olhos e aos dos seus próximos, as compras fa lhadas, as iniciativas infelizes, os contratos leoninos ou, num outro domínio privilegiado dos seus investimentos, o da educação, os revezes e os semi-êxitos, ou, pior, os sucessos enga­nadores que levam a reais impasses, que a Escola reserva frequen-

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temente aos seus eleitos, e de que o mais notável é sem dúvida a própria carreira de professor, votada a um declínio estrutu ral.

Este "povo", simultaneamente mesquinho e triunfante, nada tem de lisonjeiro para a ilusão populista e, excessivamente próximo e afastado, atrai os sarcasmos dos ensaístas que lhe criticam simulta­neamente o seu "aburguesamento" e o falhanço dos seus esforços para aceder às "liberdades" burguesas, condenando indissociavel­mente as suas aspirações mistificadas e a sua incapacidade de obter outra coisa que não sejam satisfações tão enganadoras quanto irri­sórias; em resumo, tudo o que se condensa na denúncia do "mito do condomínio" ou no d iscurso condescendente sobre a "sociedade de consumo", de que certos "filósofos" ou "sociólogos" com proble­mas de análise social, fizeram a sua especialidade. E, no entanto, porque se vê arrastado a viver acima das suas possibilidades, a cré­dito, ele descobre, de forma quase tão dolorosa como os operários de outros tempos, os rigores da necessidade económica, nomea­damente através das sanções da banca, de que esperou milagres. É sem dúvida isto que explica que, embora seja, por um lado, o produto de um liberalismo que visa associá-lo à ordem estabelecida através dos vínculos da propriedade, continua a apostar, pelo seu voto, nos partidos que se reclamam do socialismo. Embora apa­rentemente o grande beneficiário do processo geral de "aburgue­samento", fica preso através do crédito a uma habitação frequen­temente invendável, quando não é mesmo incapaz de assumir os encargos e os compromissos, nomeadamente em relação ao estilo de vida, tacitamente inscritos numa escolha inicial por vezes não muito clara para ele próprio. "Nem tudo é contratual no contrato", dizia Durkheim. U ma fórmula que se aplica particularmente bem à compra de uma casa, em que muitas vezes está implícito todo o plano de uma vida ou de um estilo de vida. Se o momento da assinatura é tão angustiante, é porque há nele sempre algo de fatal: aquele que assina o contrato assina um destino em grande medida desconhecido e, qual Édipo, desencadeia um mundo de consequên­cias ocultas (nomeadamente por responsabilidade do vendedor), as que estão inscritas no conjunto de regras jurídicas a que o con­trato faz referência e de que o signatário não tem consciência, e todas aquelas que ele não quer ver, com a cumplicidade do ven-

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dedor: estas últimas situações, contrariamente aos temores, estão menos do lado dos "vícios ocultos" do produto que nos compro­missos implícitos que assumiu, e que terá que cumprir até ao fim, ou seja, bem para além do último prazo do último pagamento.

É o que nos dizem repetidamente tantos testemunhos igual­mente dramáticos.

Com 40 anos, Béatrice é empregada na DOE de Cergy-Pontoise. O seu marido (trata-se de um segundo casamento) é operário, encarregado da manutenção de um ministério em Paris. É a mais velha de doze irmãos. Com o seu primeiro marido, com quem tem dois filhos, tinha uma caravana de venda de fritos e de filhós na zona florestal a norte de Paris. Nessa época, os negócios corriam­-lhe bem, tinham "bons locais para a caravana" e viviam numa casa alugada. Depois do divórcio, o seu actual patrão alugou-lhe a um preço muito baixo uma casa requisitada pelo domínio público: "Muito antiga, verdadeiramente esplêndida ... um jardim enorme ... mas tanto trabalho ... o telhado estava a cair. .. e fazer obras numa casa que não é nossa ... ". E no entanto poderiam lá ter ficado "inde­finidamente". Ela estava à espera do seu quarto filho. A empresa GMF fez uma promoção em Cergy-Pontoise: tentados pela publici­dade, sonhavam ter uma casa própria. Antes de se decid irem, foram ver outros lotes na região. "Para os lados de Cergy, em Puiseux, as casas Bouygues, France Cottage que nos agradavam muito. Mas era caro demais. Não podíamos, tendo em conta o preço ... Não tínhamos qualquer possibilidade." Quanto à empresa GMF, con­cede um "empréstimo amigo" que cobre a entrada habitualmente exigida. Após alguma hesitação ("era longe .. . sobretudo para o meu marido"), decidem-se, "empurrados" pela vendedora, por um F6 num loteamento em Bernes-sur-Oise. "Era acessível" e depois "os vendedores ocupam-se de tudo, não se tem problemas".

Puderam beneficiar de um empréstimo PAP significativo, por­que o montante é determinado em função do rendimento indi­cado na declaração de impostos. Ora, tendo-se casado em 1981 e com três filhos a cargo, estão praticamente isentos do pagamento de impostos. "A APL (Ajuda Personalizada à Habitação) é mira­bolante", as mensalidades são enormes. Sem falar do "empréstimo amigo", que nunca se sabe muito bem quando nem como deverá

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ser reembolsado. "Porque eles estendem os juros por vinte anos ( ... ) A tal senhora bem nos podia ter dito isso. Quanto a nós, digamos que não pensámos nessa questão .. . estamos um pouco nas nuvens quando compramos uma casa, só vemos a casa, imaginamos os miúdos lá dentro. E depois, havemos de conseguir."

Antes de se decidirem, pediram algumas opiniões. Na sua maio­ria eram favoráveis à GMF. O meu marido informou-se; viu mui­tas vezes 50 Milhões de Consumido'res: "Com a pouca escolha que tínhamos entre Phénix, Socova e GMF, acabou por decidir-se pela GMF." Quando começou a construção, foram ver "faziam tudo como deve ser": "Bom, tivemos algumas surpresas, por exemplo, em relação ao isolamento, às instalações sanitárias, etc. ( ... ) Não sabía­mos se se poderia protestar. Porque, enfim, protestar.. . se quiser­mos... isso envolve despesas."

A casa era um bocadinho grande de mais ("À partida, bem que queríamos menos um quarto, mas disseram-nos, com quatro filhos, fiquem antes com esta, é melhor ... "). "Bem, é bonita. Enfim, é 0

mínimo, como diz o meu marido, lá dentro ouve-se tudo, as pare­des são demasiado finas, mas eu gosto mesmo de estar na minha casa." No entanto, Béatrice está preocupada: "Não lamentamos nada ... mas actualmente temos muita dificuldade em pagar, é muito duro... Tivemos que cortar em muitas coisas para poder pagar as mensalidades." Dois anos depois da compra, ainda não receberam o plano de financiamento. "Não sabemos o que vai acontecer ... Estamos um pouco desorientados ... "

. Passa-se o mesmo com muitos outros habitantes do loteamento: "E uma catástrofe ... A maioria das pessoas foram obrigadas a ir­-se embora ( ... ). Aconteceu-lhes como connosco, não conseguiam pagar o aquecimento, não podiam fazer nada ( .. . ). Há muitos ope­rários que não reparam... é uma coisa que os ultrapassa haver coi­sas que são em comum." Muitos vinham "dos HLM, do lado de Aubervilliers, não estavam habituados a este tipo de casas ( ... ). No primeiro ano, os berros ... falavam de uma casa para outra".

Béatrice levanta-se às 6 horas, prepara as crianças, leva o mais pequeno à ama e apanha o comboio das 8 horas e meia. Tem pro­blemas com os colegas porque assim "chega às 9 horas e meia em vez de chegar às 9 horas". O seu marido gasta quatro horas por dia

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nos transportes: "Persan-Beaumont, é a linha mais degradada." À tar­dinha, "apanha o mais pequeno, de passagem, na ama". Não há vagas que cheguem nas escolas porque "nas pequenas localidades como esta, não estão preparados assim para a chegada das pessoas".

Todos os anos, vão passar férias a casa da sogra de Béatrice em Perpignan, mas este ano "não há férias", é preciso pôr uma cerca no jardim: "Só para fazer isso, vai-nos custar 8 000 FF." Ela gosta de muros brancos, estilo americano: "Só as portas custam 5 000 FF."

"Quando passarem dez anos e se tudo estiver na mesma, para­mos com as despesas. Mesmo que se perca tudo. Não quero ver­-me, aos 60 anos, num buraco, por causa de uma barraca pela qual os meus filhos irão desentender-se ... "

Não é preciso ir aos casos extremos, mais dramáticos ainda do que este, em que a aposta na estabilidade e permanência das coi­sas e das pessoas, e das relações entre as coisas e as pessoas, que está implícita na opção de comprar uma casa, é posta em causa por deslocações forçadas, o inesperado, o d ivórcio ou a separa­ção. Basta apenas lembrar o caso estatisticamente comum de todos esses habitantes das casas prefabricadas dos bairros ditos residen­ciais que, atraídos pela miragem de uma habitação pretensamente individual (como as casas geminadas dos loteamentos com pratica­mente os mesmos constrangimentos dos HLM), não dispõem nem da solidariedade dos velhos bairros operários nem da privacidade dos bairros abastados: afastados do seu local de trabalho por horas de trajecto quotidiano, ficam privados das relações que se estabele­ciam no seu bairro - nomeadamente através da reivindicacão sindi­cal - sem conseguir criar, num local de residência agrupa~do indi­víduos socialmente muito homogéneos, mas sem a comunidade de interesses e afinidades ligadas à pertença ao mesmo universo de trabalho, as relações possíveis de uma comunidade de lazer.

A casa individual funciona assim, a vários níveis, como uma armad ilha. Como se pode ver bem na conversa acima referida tende pouco a pouco a tornar-se o sorvedouro de todos os inves~ timentos: os que têm a ver com o trabalho - material e psicoló­gico - necessário para a assumir tal como ela é, por vezes bem distante das expectativas; os que suscita através do sentimento de

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posse, que determina uma espeCLe de domesticação das aspirações e dos projectos, doravante restringidos aos limites do umbral, encer­rados na o rdem do privado - por oposição aos projectos colectivos da luta política, por exemplo, que deverão sempre afirmar-se con­tra a tentação de fechar-se no universo doméstico; os que inspira ao impor u m novo sistema de necessidades, inscrito nas exigências que comporta aos olhos dos que entendem estar à altura da ideia (socialmente construída) que fazem de si.

Denise tem pouco mais de 30 anos. É secretária. O marido é contabilista na UAP. Comprou uma casa de produção industr ial, num loteamento de 97 habitações, em Eragny no Val-dÓ ise, perto de Cergy-Pontoise. Vive lá há sete anos. "Escolheu a casa" quando viu que, "na região parisiense, mais perto de Paris, os apartamentos eram tão caros como uma casa neste local". Anteriormente vivia numa casa alugada, num "falso três assoalhadas", onde estava "demasiado apertada": "Íamos ser quatro. E com um único quarto." Dispunha de uma conta poupança que teve que reduzir "porque a criança nasceu um pouco mais cedo": "Portanto, isso constituiu uma limitação em relação aos meios financeiros de que dispúnhamos. Pudemos benefi­ciar de empréstimos da Caixa Económica. ( ... ) O que nos obrigou de certo modo a procurar uma casa nova, pois os empréstimos conven­cionados eram mais interessantes do que os emprést imos de outros bancos." À falta de meios financeiros, t iveram que procurar "nesses subúrbios dos Hauts-de-Seine, que na verdade não (lhes) agradavam". Também teriam preferido uma casa antiga; mas, "mesmo na região, isso levanta muitos problemas pois os empréstimos têm juros clara­mente superiores": "Senão, claro que ambos teríamos preferido esco­lher qualquer coisa com mais alma, em vez desta casa numa loca­lidade nova em que todos têm a mesma idade, todos têm mais ou menos o mesmo nível... É demasiado uniforme."

Denise e o marido escolheram esta região "porque era, ape­sar da distância, uma das mais bem servidas de transportes para Paris", onde trabalham os dois. Antes de se decidirem, olharam sobretudo para os anúncios ("Mas quando vimos os preços, não visitámos as casas antigas. Tivemos medo de sermos tentados .. . "). Foram ver as zonas em construção, os loteamentos.

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Foram arrastados por amigos que tinham acabado de comprar: "Foram eles que nos levaram, porque já t inham antes andado a ver outras coisas." Na verdade, se acabaram por se decidir, foi porque ninguém entre os seus con hecidos os desaconselhou. E depois pensa­ram que, "à falta de encontrar o ideal, ficavam com esta opção (. .. ) enquanto tentavam encontrar melhor". Talvez uma casa "totalmente individual" ou uma casa situada num bairro menos novo. A casa que escolheram era a menos cara e entregue "pronta a habitar".

Os primeiros tempos trouxeram-lhes muitas decepções. "Os aca­bamentos eram uma lástima." Pouco ou nada havia, uma ou outra parede forrada a papel "e, para mais, era tal qual o papel dos HLM". Mandaram repavimentar o rés-do-chão. Fizeram muitas obras, "a pouco e pouco": "Em cada ano calculávamos o que seria possível fazer." Depois descobriram, por exemplo, o barulho das cortadoras de relva, ao fim-de-semana. "E, como estávamos entre duas casas, os sanitários e a cozinha eram paredes-meias com a casa ao lado e ouvíamos toda a conversa dos vizinhos." A chaminé, construída "por uma empresa ligada à empresa imobiliária", foi muito cara.

"A pouco e pouco" foram comprando móveis a particulares graças a anúncios em jornais como Centra[e des particuliers ou Le Bichot. "Há quase dois anos que procurávamos umas estantes. Conseguimo-las, há um mês, em Le Bichot." C riaram o hábito de dar uma olhada, na Feira da Ladra ou nos ferros-velhos da região, "tudo o que se vende... enfim. .. de ant igo... muito mais do que dantes. A ntes não pensávamos nisso de todo em todo. Agora, ao domingo, como a d istância de Paris faz com que as d istracções sejam muito menos ... bem! Ao domingo, se nos apetece sair, gos­tamos de visitar ou uma feira local (. .. ), ou lojas, ou particu lares. Por vezes é um pretexto para passear."

Tentaram plantar o jardim, um pequeno terreno de 100 m2, "só para ter algumas verduras, e talvez alguns frutos", framboesas, duas pereiras, e também uma cerejeira: "Mas tudo isto são árvores novas, ainda não temos muita fruta." ''A vantagem da vegetação, é que cres­ceu bem, e damo-nos menos conta de que temos tantos vizinhos ... ".

Denise levanta-se todos os d ias às 6- e meia; o seu marido às 6 horas menos um quarto. Tomam o pequeno-almoço juntos. Depois ela vai para a casa de banho e o marido vai apanhar a sua camio-

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neta. Por volta das 8 horas leva as filhas à escola, de carro, e depois vai apanhar o comboio a Conflans. Chega ao trabalho por volta das 9 horas e meia. À noite, nunca regressa a casa antes das 7 horas e um quarto. Ao fim-de-semana não têm coragem de voltar a Paris. "Ir a Paris ao fim-de-semana, com a prática apercebemo-nos de que já lá não vamos com frequência." As saídas são sem dúvida aquilo de que sentem mais falta. "Gosto muito de cinema. O meu marido gostaria de ir ver o Amadeus, mas não podemos ... ". Ela não está arrependida de ter comprado esta casa apesar do tempo das deslocações. O que há de bom, nestes loteamentos, é que não há perigo para as crianças; podem andar de bicicleta, de patins, vão a casa uns dos outros. Mas será a mesma coisa quando tiverem 15 ou 16 anos? "A mais velha gosta de sair, de ir ao museu, etc. Não é em Eragny que há estas coisas. Quanto ao desporto, está bem, patinagem, piscina, dança, etc."

Tem três horas de deslocações por dia. Aproveita "para tricotar. É o que fazem muitas mulheres no comboio. Quando não se está muito cansado, pode-se ler. Mas há momentos em que a fadiga é tão grande que tricotar, é mais mecânico. Não se pensa sobre o que se está a tricotar. Ler, é mais difícil. Não se consegue ler no comboio mais do que revistas ou romances simples".

"O que é que anda a ler agora? - Não ... agora ... (silêncio). - O último? - O último, era um livro - como se chama? - Les Enfants de

locaste... que ainda não acabei. É um livro que retoma a teoria de Freud."

O que ressalta deste discurso muito comum - e escolhido exac­tamente pela sua representatividade - é o resultado de uma polí­tica que tem como objectivo oferecer um mercado aos construto­ras de casas, criando simultaneamente proprietários agarrados à sua propriedade e que, de certa forma, resultou. Mas, na maioria dos casos, os que assim se viram transformados em proprietários de casas da periferia, não obtiveram a almejada satisfação senão a cus­tos tão elevados que, mesmo que tenha levado a uma profunda e intencional mudança da ordem social, a política liberal está longe

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de ter proporcionado aos seus promotores as vantagens políticas que dela esperavam retirar. Centrada em torno da educação das criancas considerada como via de ascensão individual, a célula fami-. ' liar é doravante o fulcro de uma espécie de egoísmo colectivo que encontra a sua legitimação num culto da vida doméstica perma­nentemente celebrada por todos os que, directa ou indirectamente, vivem da produção e comercialização de objectos de uso domés­tico. E, sem exagerar a importância a atribuir a tais indícios, não podemos deixar de ver o que por vezes se designa como "sinal dos tempos" no facto de a produção e difusão de imagens televisivas ter caído nas mãos de empresas e empreiteiros que, conhecendo melhor do que ninguétn as aspirações à felicidadezinha privada, ligado à imemorial ambição do património transmissível, conse­guem confinar a pequena burguesia das casas da periferia ao uni­verso capcioso das publicidades adulteradas dos produtos domésti­cos, dos jogos pela glória dos mesmos produtos e dos shows onde se promove uma convivialidade fictícia em torno de uma cultura kitsch, em resumo, às distracções muito familiares e sabiamente domesticadas que a indústria cultural dos profissionais do diverti­

mento produz em série1•

1 O primeiro canal de televisão, TFl, que conta com a mais elevada taxa de audiência, foi comprado em 1987 por Francis Bouygues. Dá amplo espaço na sua grel ha aos programas de entretenimento de sucesso, tais como os jogos de televisão que oferecem, como recompensa, bens para a casa e os espectáculos de show-business animados por apresentadores muito popula­res junto do grande público.

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Anexos

Lista das Siglas

ADIL- Associação Departamental de Informação sobre a Habitação AFTRP - Agência Imobiliária e Técnica da Região Parisiense ANAH - Agência Nacional para o Melhoramento da Habitação APL - Ajuda Personalizada à Habitação BEC - Diploma de Ensino Comercial BNP - Banco Nacional de Paris BTS - Diploma de Técnico Superior CAP - Certificado de Habilitação Profissional CAUE - Consultor em Arquitectura, Urbanismo e Ambiente CEP - Certificado do Ensino Básico CIC - Crédito Industrial e Comercial CIMINDI - Comité Interprofissional da Casa Individual CNAB - Câmara Nacional dos Administradores de Bens CNAF - Caixa Nacional de Pensões CNAM - Conservatória Nacional de Artes e Ofícios CNL - Confederação Nacional da Habitação Credoc - Centro de Investigação para o Estudo e Acompanhamento

das Condições de Vida DAFU - Direcção do Ordenamento Predial e do Urbanismo DATAR - Delegação do Ordenamento do Território e da Acção

Regional DBTPC - D irecção dos Edificios, Trabalhos Públicos e Construção DDA - Direcção Regional da Agricult ura DDAS - Direcção Regional da Acção Sanitária e Social DDE - Direcção Regional do Equipamento ENA - Escola Nacional de Administração

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ENS - Escola Superior de Educação FMI - Fundo Monetário Internacional FNAIM - Federação Nacional dos Agentes Imobiliários FNB - Federação Nacional da Construção FNPC - Federação Nacional dos Empreiteiros GEP - Grupo de Estudo e Planificação GIP - Grupo Permanente pela Recuperação da Habitação De­

gradada GRECOH - Grupo de Investigação e Estudos sobre a Construção

e a Habitação HEC - Escola Superior Comercial HLM - Habitação de Aluguer Reduzido IEP - Instituto de Estudos Políticos INED - Instituto Nacional de Estudos Demográficos INSEE - Instituto Nacional de Estatística e Estudos Económicos PAP - Empréstimo para Compra de Propriedade PDG - Presidente Director-geral PME - Pequenas e Médias Empresas POS - Plano de Ocupação de Solos SAEI - Serviço dos Assuntos Económicos e Internacionais SARL - Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada SCIC - Sociedade Central Imobiliária da Caixa de Depósitos SMI - Sindicato dos Construtores de Casas Individuais (futura

UNCMI) SOCOTEC - Sociedade de Controle Técnico da Construção UCB - União de Crédito para a Construção da Companhia

Bancária UDAF - União Regional dos Abonos de Família UNAF - União Nacional dos Abonos de Família UNCMI - União Nacional dos Construtores de Casas Individuais UNPI - União Nacional da Propriedade Imobiliária UNSFA- União Nacional dos Sindicatos Franceses de Arquitectura X - Politécnico ZAC - Zona de Actividades Comerciais

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Princípios de uma antropologia económica

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A S ESTR UTU RAS SOC I A I S D A ECONOM I A

P ara romper com o paradigma dominante, impõe-se, par­tindo de uma perspectiva racion alista alargada da histori­cidade constitutiva dos agentes e do seu âmbito de acção,

tentar construir uma definição realista da razão económica como ponto de encontro entre as disposições socialmente constituídas (em relação a um determinado domínio) e as estruturas, elas pró­prias socialmente constituídas, desse domínio.

A estrutura do campo

Os agentes, neste caso as empresas, criam o espaço, ou seja, o campo económico, que apenas existe através dos agentes que aí agem e que alteram o espaço em seu redor, conferindo-lhe uma determinada estrutura. Dito de outra maneira, é da relação entre as d iferentes "origens do campo", ou seja, entre as diferen­tes empresas de produção, que e~ergem o campo e as relações de força que o caracterizam 1

• Mais concretamente, são os agentes, ou seja, as empresas, definidas pelo seu volume e capital específico, que determinam a estrutura do campo que por sua vez as deter­mina, ou seja o nível de pressão que exercem sobre o conjunto de empresas dedicadas à produção de bens idênticos. As empre­sas, que exercem influências potenCLats variáveis na sua intensidade e direcção, controlam uma parte do campo (parte do mercado)

1 Enquanto não houver uma definição que obedeça a estes princípios, podemos socorrer-nos da análise das correspoi1dências (cujas bases teóricas são muito semelhantes) para clarificar a estrutura do campo económico, ou seja, o verdadeiro princípio explicativo das práticas económicas.

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tanto maior quanto mais importante for o seu capital. Quanto aos consumidores, o seu comportamento reduzir-se-ia totalmente a um reflexo do ca mpo se não tivessem com ele uma certa interacção (em função da sua inércia, de facto mínima). O peso (ou energia) associado a um agente, que é influenciado pelo campo ao mesmo tempo que o estrutura, depende de todos os outros factores e das ligações entre esses factores, ou seja, de todo o espaço.

Embora sublinhemos aqui a importância das constantes, não ignoramos as particularidades de cada subcampo (correspondente ao que em geral designamos de "sector" ou "ramo" da indústria), que dependem do estado do desenvolvimento (e em particular do grau de concentração) da indústria considerada e da especificidade do produto. Na sequência de um estudo aprofundado sobre as prá­ticas de fixação de preços (pricing) de diversas indústrias america­nas2, Hamilton relacionava o carácter idiossincrático dos diferentes ramos (ou seja, dos diferentes campos) à particularidade dos seus percursos, caracterizando-se cada um pelo seu modo de funciona­mento próprio, as suas tradições específicas, a sua forma particular de chegar a decisões quanto à fixação de preços3•

O peso de um agente depende destes diferentes trunfos, por vezes designados como strategic market assets, factores diferenciais de sucesso (ou desaire) que podem garantir-lhe uma vantagem face à

concorrência, ou, mais precisamente, do volume e da estrutura do capi­tal próprio, nas suas diferentes formas: capital financeiro, actual ou potencial, capital cultural (não confundir com "capital humano"), mais especificamente capital tecnológico, capital jurídico e capital organizacional (incluindo o capital da informação sobre o campo), capital comercial, capital social e capital simbólico. O capital finan­ceiro corresponde ao domínio directo ou indirecto (através do acesso

2 W. H. Hamilton, Price and Price Policies, Nova Iorque, Mac-Graw Hill , 1938. 3 M. R. Tool, "Contributions to an Institutional Theory of Price Determi­

nation", in G .M. Hodgson, E. Screpanti, Redünking Economics, Markets, Technology and Economic Evolution, European Association for Evolutionary Political Econ­omy, 1991, pp. 29-30.

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à banca) de recursos financeiros que são a principal condição (em simultâneo com o tempo) da acumulação e da conservação de todas as outras formas de capital. O capital tecnológico é o conjunto de recursos cient íficos (potencial de investigação) ou técnicos (procedi­mentos, aptidões, rotinas e competências únicos e coerentes, des­tinados a diminuir os gastos em mão-de-obra ou em capital e a aumentar o rendimento) susceptíveis de serem concretizados na con­cepção e fabrico dos produtos. O capital comercial (capacidade de venda) tem a ver com o domínio das redes de d istribuição (armaze­namento e transporte) e de serviços de marketing e de pós-venda. O capital social é o conjunto de recursos mobilizados (capitais finan­ceiros, mas também informação, etc.) através de uma rede de rela­ções mais ou menos extensa ou mais ou menos mobilizável que visa uma vantagem competitiva garantindo aos investimentos rendimentos mais elevados4. O capital simbólico assenta no domínio de recursos simbólicos baseados no conhecimento e no reconhecimento, como a imagem de marca (goodwill investment), a fidelidade à marca (brand loyalty), etc.; como um poder que funciona como uma forma de cré­dito, pressupõe a confiança e a crença dos que lhe estão sujeitos porque estão dispostos a conceder esse crédito (é a este poder sim­bólico que Keynes se refere quando afirma que uma injecção mone­tária resulta se os agentes acreditarem que resulta)5

4 Esta concepção do capital social distingue-se das definições posterior­mente avançadas na sociologia e economia americanas, na medida em que tem em conta, não apenas a rede de relações, caracterizada pela sua extensão e viabilidade, mas também o volume dos diferentes tipos de capital que permite mobili­zar indirectamente (e, como tal, as d iferentes vantagens que pode obter: promo­ções profissionais, participação em projectos, acesso a decisões importantes, oportunidades de investimentos financeiros entre outras) (cf. P. Bordieu, "Le capital social. Notes provisoires", op. cit.).

5 O capital cultural, o capital técnico e o capital comercial existem simul­taneamente sob a forma corpórea (equipamentos, instrumentos, etc.) e sob a forma incorpórea (competência, rapidez, etc.). Pode ver-se uma antecipação da dist inção entre as duas formas de capital, co~pórea e incorpórea, em Veblen que critica na teoria ortodoxa do capital o facto de sobrestimar os activos tangíveis em detr imento dos activos intangíveis (T. Veblen, The Instinct of Work­

manship, Nova Iorque, Augustus Kelley, 1964).

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A estrutura da distribuição do capital e a estrutura da distri­buição dos custos, por sua vez ligadas principalmente à dimensão e ao grau de integração vertical, determinam a estrutura do campo, ou seja, das relações de força entre as empresas: o domínio de uma parte muito importante do capital (da energia global) confere de facto um poder sobre o campo, e como tal sobre as empresas menos dotadas (relativamente) de capital; determina igualmente o direito de entrada no campo e a distribuição de hipóteses de lucro. Os diferentes tipos de capital não actuam apenas de forma indi­recta, através dos preços; exercem um efeito estrutural porque a adopção de uma nova técnica ou o controle de uma parte impor­tante do mercado, etc., altera as posições relativas e as possibilida­des de todas as espécies de capital das outras empresas.

Por oposição à perspectiva da influência mútua, que não reco­nhece nenhuma outra forma de eficácia social que não seja a "influência" directamente exercida por uma empresa (ou uma pes­soa encarregada de a representar) sobre outra através de uma qual­quer espécie de "interacção", a perspectiva estruturalista tem em conta os efeitos que têm lugar fora de qualquer interacção: a estru­tura do domínio, definida pela desigual distribuição do capital, ou seja das armas (ou dos trunfos) específicos, pesa, independen­temente de qualquer intervenção ou manipulação directa, sobre o conjunto dos agentes que actuam no campo. Restringe tanto mais o espaço dos possíveis disponível, quanto mais mal colocados estão nesta distribuição. O dominante é aquele que ocupa na estrutura uma posição tal que a estrutura funciona em seu benefício. É através do peso que tem nesta estrutura, mais do que por via de intervenções directas que podem também accionar (através nomea­damente da rede cruzada de participação nos conselhos de adminis­tração - interlocking directorates - que disso são uma expressão mais ou menos deformada)6, que as empresas dominantes exercem pres­são sobre as empresas dominadas e sobre as suas estratégias: elas definem as normas e por vezes a regra do jogo, impondo a definição

6 B. Minth, M. Schwartz, The Power of American Business, Chicago, Univer­sity of Chicago Press, 1985.

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dos trunfos mais favorável aos seus interesses e alterando todo o quadro em que funcionam as outras empresas e as limitações que pesam sobre elas ou o espaço de possíveis que se lhes oferece.

A tendência para a reprodução da estrutura é intrínseca à pró­pria estrutura do campo: a distribuição dos trunfos determina a distribuição de possibilidades de sucesso e de lucros através de mecanismos diversos, tais como as economias de escala ou as "barreiras de entrada" resultante da situação de permanente des­vantagem que os recém-chegados devem defrontar ou o custo de exploração que devem pagar, ou ainda a acção de todo o tipo de "instituições que visam reduzir a incerteza" (uncertainty-reducing insti­

tutions), segundo a expressão de Jan KregeF, contratos salariais, con­tratos de dívida, preços administrativos, acordos comerciais, ou de "mecanismos que fornecem informação sobre as acções potenciais

dos outros agentes económicos". Daí que, como resultado das nor­mas que regem os jogos recorrentes que aí têm lugar, o campo ofe­rece um futuro previsível e calculável e os agentes adquirem mes­tria e regras transmissíveis (por vezes designadas de "rotinas") que são a base de previsões pelo menos aproximadas.

Como o campo económico tem a particularidade de permitir e facilitar uma perspectiva quantitativa e medidas estratégicas corres­pondentes, não é preciso optar entre uma perspectiva puramente estrutural e uma perspectiva estratégica: as estratégias mais meti­culosamente elaboradas só podem concretizar-se dentro dos limi­tes e na direcção determinados pelas exigências estruturais e pelo conhecimento prático ou explícito, sempre desigual, destas exigên­cias (por exemplo, o capital de informação que está garantido a quem ocupa posições dominantes - nomeadamente através da par­ticipação em conselhos de administração ou, no caso dos bancos, através dos dados fornecidos por quem pede crédito - é um dos recursos que permite escolher as melhores estratégias de gestão do capital). A teoria neoclássica, que recusa ter em conta os efeitos da estrutura e, a fortiori, as relações objectivas de poder, poderá

7 J. A . Kregel, "Economic methodology in face of uncertainty", Economic

]ourna!, 86, 1976, pp. 209-225.

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explicar as vantagens de que gozam os que dispõem de mais capi­tal pelo facto de, sendo mais diversificados, com uma grande expe­riência e urna maior reputação (e corno tal terem mais a perder), oferecerem garantias que lhes permitam obter capital a um menor custo e isto por razões de simples cálculo económico. E poder-se-á sem dúvida objectar que é mais económico e mais rigoroso invocar o papel "regulador" do mercado, corno instrumento que garante a coordenação óptima das preferências (na medida em que os indi­víduos são obrigados a condicionar as suas escolhas à lógica da maxirnização dos lucros sob pena de serem eliminados) ou, mais simplesmente, o papel dos preços.

Ora, a noção de campo marca a ruptura com a lógica abs­tracta da determinação automática, mecânica e imediata do preço em mercados sujeitos a uma concorrência sem limites8: é a estru­tura do campo, ou seja, a estrutura da relação de forças (ou das relações de poder) entre as empresas, que determina as condições nas quais os agentes são levados a decidir (ou a negociar) os pre­ços de compra (de materiais, do trabalho, etc.) e os preços de venda - diga-se de passagem que, invertendo totalmente a ideia que se tem do "estruturalismo", considerado como uma forma de "holismo" implicando a adesão a um determinismo radical, esta visão da acção restitui aos agentes urna certa liberdade de mano­bra, mas sem esquecer que as decisões não passam de escolhas entre os possíveis definidos, nos seus limites, pela estrutura do terreno e que as acções devem o seu sentido e eficácia à estru-

8 Como R. H. Coase bem o demonstrou, é em nome da h ipótese, sub­jacente à teoria ortodoxa, dos custos de transação nulos (zero transaction costs),

que as trocas se podem tornar instantâneas: "Uma outra consequência da hipótese, raramente assinalada, dos custos de transação nulos é que, quando não há custos de transação, não custa nada acelerá-los, de tal forma que a eternidade pode ser alcançada numa fracção de segundo" ("Another conse­quence of the assumption of zero transaction costs, not usually noticed, is that, when there are no costs of making transactions, it costs noth ing to speed them up, so that etern ity can be experienced in a split second") (R. H. Coase, The Firm, the Market and the Law, Chicago, University of Chicago Press, 1988, p. 15).

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tura das relações objectivas entre os que as promovem e os que delas dependem. A estrutura da relação de forças entre empre­sas que não interagem apenas de forma indirecta, através dos preços, contribui, no essencial, para fixar os preços ao determi­nar, através da posição ocupada nesta estrutura, as oportunidades diferenciadas de pesar na sua formação - por exemplo, através do efeito da economia de esca la que resulta do facto de o peso nas negociações com os fornecedores aumentar com a dimensão ou o custo de investimento por unidade de capacidade diminuir quando a capacidade total aumenta. E é esta estrutura social específica que determina as tendências imanentes dos mecanis­mos do campo e, simultaneamente, as margens de liberdade para as estratégias dos agentes. Os preços não determinam tudo, é o todo que determina os preços.

A teoria do campo opõe-se assim à visão atomista e mecani­cista que hiper-valoriza o efeito dos preços e que, como a física newtoniana, reduz os agentes (accionistas, empresários ou empre­sas) a pontos de matéria inter-permutáveis, cujas preferências, ins­critas numa função de utilidade externa ou mesmo, na variante mais extrema (formulada nomeadamente por Gary Becker), imutá­vel, determinam as acções de forma mecânica. Opõe-se também, mas de outra forma, à perspectiva interactiva, em que a represen­tação do agente enquanto átomo calculador permite a coexistên­cia com a visão mecanicista segundo a qual a ordem económica e soc ia l se reduz a uma multitude de indivíduos inter-agindo entre si, n a maioria das vezes de forma contratual. A partir de uma sér ie de postulados com profundas consequências, nomeada­mente o que determina que as empresas deverão ser considera­das como decision makers isoladas que maximizam os seus lucros9,

certos teóricos da organização industrial aplicam ao nível de urna entidade colectiva como a empresa (que, na verdade, funciona ela própria como um campo) o modelo da decisão individual, no segu imento de um cálculo, consciente e deliberadamente orien-

9 ] . Tirole, The Theory oflndustria! Organization, Cambridge, The MIT Press,

1988 , p. 4.

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tado para a maximização do lucro (modelo que alguns pode­rão considerar como irreal ista , reconhecendo por exemplo que a empresa é um nexus of contract, mas sem retirar dis so as devi­das consequências). Arroga-se assim o direito de reduzir a estru­tura da relação de forças constitutiva do campo a um conjunto de interacções desprovidas de qualquer importância relativamente aos que estão envolvidos no momento e susceptíveis de ser des­critas na linguagem da te"oria dos jogos. Perfeitamente con­gruente nos seus postulados fundamentais com a filosofia intelec­tualista que está também na sua base, a teoria neoclássica, que esquecemos ter sido explícita e expressamente construída ao arre­pio da lógica da prática - com base em postulados desprovidos de qualquer fundamento antropológico, como o que defende que o sistema de preferências seja previamente constituído e transitó­rio10 - reduz tacitamente os efeitos que têm lugar no campo eco­nómico a um jogo de jogadas recíprocas de antecipação.

Da mesma forma, aqueles que, para fugir à representação do agente económico como uma entidade egoísta fechada na "estreita defesa dos seus interesses" e como "actor atomizado cujas decisões são alheias a qualquer constrangimento social", lembram, como Mark Granovetter, que a actividade económica está imersa (embed­

ded) nas redes de relações sociais "alimentando a confiança e desen­corajando os maus procedimentos" ("generatting trust and discouraging

10 Os trabalhos cláss icos de Amos Tversky e Daniel Kahneman fi zeram luz sobre as falhas e os erros que os agentes cometem em matéria de teoria das probabilidades e estatística (A. Tversky e D. Kahneman, "Ava ilability, a heuristic for judging frequency and probability", Cognitive Psychology, 2, 1973, pp. 207-232; e também S. Sutherland, lrrationality, the ennemy within, Londres, Constable, 1972). O pressuposto intelectualista que baseia estes estudos corre o risco de ignorar que o problema lógico que infer imos de uma situação real não se coloca do mesmo modo para os agentes (a amizade como relação social não se submete ao principio "os amigos dos meus amigos meus amigos são") e que a lógica dos factos faz com que os agentes estejam á altura de responder na prática a situações que colocam problemas de antecipação de oportunidades que eles não podem resolver de forma abstracta (cf. P. Bour­dieu, Le Sens pratique, Paris; Éditions de Minuit, 1980).

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malfeasance" 11), apenas conseguem escapar ao "individualismo meto­

dológico" para cair na perspectiva de interacção que, ignorando a pressão estrutural do campo, não pretende (ou não consegue) ver ma is do que o resultado da antecipação consciente e calculada que cada agente teria das consequências da sua acção sobre os outros agentes (isto embora um teórico da perspectiva de interacção como Anselm Strauss o refira sob a designação de awareness context12); ou o efeito, considerado como "influência", que as social networks, os outros agentes ou as normas sociais exerceriam nele. Outras tantas soluções que, ao ignorar todos os efeitos da estrutura e todas as relações objectivas de poder, levam a propostas de falsa superação da alternativa, também ela falsa, entre individualismo e holismo 13 •

Se não está em causa negar a eficácia económica das "redes" (ou, melhor dizendo, do capital social) no funcionamento do campo económico, considera-se entretanto que as práticas económicas dos agentes, e a própria força das suas "redes" de que se deduz uma noção rigorosamente definida de capital social, depende antes do mais da posição que esses agentes ocupam nos microcosmos estru­turados que são os campos económicos.

11 M. Granovetter, "Economic action and social structure, the problem of embeddedness", American]ourna!ofSocio!ogy, 91 (3), Novembro 1985, pp. 481-510.

12 A. Strauss, Continual Permutations of Action, Nova Iorque, Aldine de Gru­yter, 1993.

13 Cf. M. Granovetter, "Economic institutions as social constructions: A framewok for analysis", Acta Socio!ogica, 1992, 35, pp. 3-11. Encontrare­mos neste ar tigo uma forma alterada do "individualismo" e do "holismo" que prospera na ortodoxia económica (e sociológica) sob a forma de oposi­ção, pedida de empréstimo a Dennis Wrong ("The oversocialized conception of man in modem sociology", American Sociological Review, 26, 1961, pp. 183-·196), entre o undersocialized view caro à ortodoxia económica e o oversociali· zed view que pressupõe que os agentes são tão "sensíveis (sensitive) à opinião dos outros que se submetem automaticamente às normas de comportamento geralmente admitidas" ou que interiorizaram de tal forma as normas ou as determ inações que já não se deixam afectar pelas re lações actuais (é assim que por vezes é entendida, erradamente, a 1:oção de habitus). Consideramo­-nos assim autorizados a concluir que definitivamente os over e os under con­fluem para ver os agentes como mónades fechados às "influências" dos con­crete ongoing systems of social relations e das social networks.

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Assim, não é nada certo que aqu ilo que é costume designar como "tradição de Harvard" (ou seja, a economia industrial criada por Joe Bain e seus parceiros) não mereça mais que esse olhar meio condescendente que os "teóricos da organização industrial" lhe con­cedem. Na verdade, talvez seja melhor avançar na boa direcção com loose theories, que põem o acento na análise empírica de sectores industriais, do que entrar, com todas as aparências de rigor, numa via sem saída, com a preocupação de apresentar "uma análise ele­gante e geral". Refiro-me aqui a Jean Tirole, que escreve:

"The first wave, associated with the names of ]oe Bain and Edward Mason and sometimes called the «Harvard tradition», was empírica! in nature. lt devel­oped the famous <<structure-conduct-performance paradigm» according to which market structure (the number of sellers in the market, the degree of product differ­enciation, the cost structure, the degree of vertical integration with suppliers and so on) determines conduct (which consists of price, research and development, investment, advertising, and so forth) and conduct yields market performance (efficiency, ratio of price to marginal cost, product variety, innovation rate, prof its and distribution). This paradigm, although plausible, often rested on loose theories, and it emphasized empírica! studies on industries 14

."15

14 J. Tirole, op. cit, pp. 2-3. O autor vai um pouco mais longe em reta­cão aos indicadores sobre custos e beneficios associados às d iferentes catego­;ias de produtos (nomeadamente teór icos e empíricos) no mercado da ciência econômica que permite compreender os resultados comparados da "tradição de Harvard" e da nova "teoria da organização industrial" que defende: "Until the 1970s, economic theorists (with a few eceptions) pretty much ignored industrial organiza· tion, which did not lend itself to elegant and general analysis the wqy the theory of competi· tive general equilibrium analysis dicl. Since then, a fair number of top theorists have become

interested in industrial organ ization." 15 ''A primeira vaga, associada aos nomes de Joe Bain e de Edward Mason,

por vezes referida como «Harvard tradition», era de natureza empírica. Desen­volveu o famoso paradigma «estrutura-conduta-desempenho» de acordo com o qual a estrutura do mercado (o número dos vendedores no mercado, o grau de diferenciação do produto, a estrutura do custo, o grau de integração verti· cal com fornecedores e assim por diante) determina a conduta (que engloba o preço, pesquisa e desenvolvimento, investimento, anúncios, e assim por d iante) e leva a um dado desempenho do mercado (eficiência, relação do preço com o custo marginal, variedade de produtos, taxa da inovação, lucros e distribui­ção). Este paradigma, embora plausível, fica-se em geral por teorias pouco con­sistentes, e dá relevo a estudos empíricos nas indústrias." (N. do T)

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Edward Mason tem na verdade o mérito de estabelecer as bases de uma verdadeira análise estrutural (por oposição à interactiva) do funcionamento do campo económico: em primeiro lugar, afirma que só uma análise capaz de ter em conta, tanto a estrutura de cada empresa, o princípio da capacidade de reagir à estrutura particular do campo, como a estrutura de cada sector (industry), ambas igno­radas pelos defensores da teoria dos jogos (a que de caminho a faz uma crítica antecipada: "Elaborate speculations on the probable behavior of A on the assumption that B will act in a certain way, seems parricularly frui­tless"), poderá dar conta de todas as diferenças entre empresas no que respeita a práticas concorrenciais, nomeadamente a sua política de preços, de produção e de investimento16

• Ele tenta depois estabe­lecer, quer em termos teór icos quer em termos práticos, os factores que determinam a força relativa da empresa no campo, dimensões totais, número de empresas, diferenciação do produto. Ao reduzir a estrutura do campo ao espaço dos possíveis tal como se apresenta aos agentes, pretende no fundo esboçar uma "tipologia" das "situa­ções" definidas pelo conjunto das "considerações que o vendedor leva em conta na definição das suas políticas e das suas práticas" ("The structure of a seller·s market includes all those considerations which he takes into account in determining his business policies and practices17").

O campo econômico enquanto campo d.e conflitos

O campo de forças é também um campo de lutas, campo de construção da acção socialmente construído onde se defrontam agen­tes dotados de recursos diferentes para aceder à troca e manter ou alterar a relação de forças em vigor. É nesse campo que as empre­sas desenvolvem acções que dependem, nos seus objectivos e eficá-

16 E. S. Mason, "Príce and production policies of large-scale enterprise", The American Economic Review, XXIX, 1, suplemento de Março 1939, pp. 61-74 (nomeadamente p. 64).

17 lbid, p. 68 (o sublinhado é meu, para' assinalar a oscilação entre a lin­guagem da estrutura e do constrangimento estrutural e a linguagem da cons­ciência e da escolha intencional).

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cia, da sua posição no campo de forças, ou seja, da estrutura da d ist ri­buição do capital nas suas diferentes formas. Longe de defrontarem um universo sem peso nem limitações, onde poderiam desenvolver à vontade as suas estratégias, são orientadas por condicionamentos e possibilidades inscritas na sua posição e na dos seus concorrentes e pela ideia que poderão ter desta posição e da dos seus concorrentes, em função da informação de que dispõem e das suas estruturas de análise. A parcela de liberdade deixada à arte de jogar é sem dúvida maior do que noutros campos, como consequência do grau particu­larmente elevado em que os meios e objectivos de acção, como tal as estratégias, são explicitados, confessados, declarados, mesmo cini­camente proclamados, nomeadamente sob a forma de "teorias endó­genas" de acção estratégica (management), expressamente elaboradas para apoiar os agentes, e em particular os dirigentes, nas suas deci­sões, e explicitamente ensinadas nas escolas onde se formam esses dirigentes, como as grandes business schoo!s 18

• (A teoria do manage­ment, literatura do business schoo! para o business schoo!, cumpre uma função bastante semelhante à dos escritos dos juristas europeus dos séculos XVI e XVII que, sob a aparência de o descrever, contribuí­ram para a construção do Estado: concebida à medida dos adminis­tradores, actuais ou potenciais, oscila continuamente entre o afirma­tivo e o normativo e apoia-se fundamentalmente na sobrestimação da parcela deixada às estratégias conscientes relativamente às limita­ções estruturais e às disposições dos dirigentes.)

Esta espécie de cinismo institucionalizado, completamente oposto à denegação e sublimação que tendem a afirmar-se no seio dos uni­versos de produção simbólica, leva a que a fronteira entre a repre­sentação comum e a descrição científica seja, neste caso, menos marcada: assim, um certo manual de marketing fala de product market

batdefie!d19• Num domínio em que os preços funcionam simulta-

18 Max Weber assinala que a troca de mercadorias se destaca como a mais instrumental e calculista de todas as formas de acção, constituindo este "arquétipo da acção racional" "uma total abominação do sistema de ética fra­ternal" (M. Weber, Économie et Société, Paris, Plon, 1971, p. 633).

19 P. Kotler, Marketing Management, Ana!ysis, PLanning, lmplementation, and Con­

toL, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1988 (1967), p. 239.

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neamente como oportunidade e como arma, as estratégias assu­mem expontaneamente, tanto para os que as definem como para os outros, uma transparência nunca alcançada em universos como os campos literário, artístico ou científico, onde as consequências são em grande medida meramente simbólicas, ou seja, simultanea­mente fluidas e sujeitas a variações subjectivas. E, de facto, como o atesta o esforço que se impõe à lógica do dom para mascarar o que por vezes designamos como a "verdade dos preços" (por exem­plo; retiramos sempre cuidadosamente a etiqueta de uma prenda), o preço em dinheiro tem uma espécie de objectividade e de universa­lidade brutal que não deixa qualquer espaço à apreciação subjectiva (mesmo que se possa dizer, por exemplo, "é caro para o que é" ou "isto vale bem o seu preço"). O que não impede que as estra­tégias do b!uff, conscientes ou inconscientes, como as do simples regateio, tenham menos h ipóteses de êxito nos domínios económi­cos - ainda que também aí tenham o seu lugar, mas mais como estratégias de dissuasão ou, mais raramente, de sedução.

As estratégias dependem, antes do mais, da configuração particu­lar de poderes que confere ao campo a sua estrutura, e que, defi­nida pelo grau de concentração, ou seja, a distribuição das parcelas de mercado entre um maior ou menor número de empresas, oscila entre dois limites, o da concorrência perfeita e o do monopólio. Na opinião de Alfred D. Chandler, a economia dos grandes países industrializados conheceu, entre 1830 e 1960, um processo de con­centração (nomeadamente através de movimentos de fusão) que levou ao progressivo desaparecimento do universo das pequenas empresas concorrentes a que se referiam os economistas clássicos: "O relató­rio Mac Lane e outras fontes mostram-nos uma indústria manufactu­reira americana composta de um grande número de pequenas unida­des de produção, empregando menos de cinquenta pessoas cada uma e baseando-se na utilização de recursos de energia t radicionais ( ... ). As decisões sobre investimentos, tanto a longo como a curto prazo, eram tomadas, segundo o esquema descrito por Adam Smith, por centenas de produtores reagindo aos sinais do mercado."20 Doravante,

20 D. Chandler, La main visible des managers (trad . F. Langer), Par is, Econo­mica, 1988, pp. 70-72.

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no termo de uma evolução marcada nomeadamente por uma longa série de fusões, e por uma t ransformação profunda da estrutura das empresas, constata-se que, na maioria dos campos sector iais, a luta é circunscrita a um pequeno número de poderosas empresas concorrentes que, longe de se ajustarem passivamente a uma "situa­ção de mercado", têm cond ições para transformar esta situação.

O s campos organizam-se de forma relat ivamente invariante em torno da oposição principal entre aqueles que por vezes chamamos os first movers ou os market leaders e os challengers21

• A empresa domi­nante tem em geral a iniciativa em matéria de alteração de preços, introdução de novos produtos e operações de distribuição e de pro­moção; está em condições de impor a forma de jogar e as regras do jogo mais favoráveis aos seus interesses. Constitui um ponto de referência obrigatório para os seus concorrentes que, por mais que façam, são obrigados a tomar posição em relação a ela, de forma activa ou passiva. As ameaças que incessantemente pesam sobre ela - quer se trate do aparecimento de novos produtos capazes de suplantar os seus ou de um aumento excessivo de custos, capaz de ameaçar os seus lucros - obrigam-na a uma constante vigilância (nomeadamente nos casos de partilha de domínio em que a coor­denacão destinada a limitar a concorrência se impõe). Contra estas amea~as, a empresa dominante pode optar entre duas estratégias bem diferentes: trabalhar para melhorar a posição global do campo tentando aumentar a procura global, ou antes defender ou aumen­tar as suas posições no campo (as suas parcelas de mercado).

As empresas dominantes estão de facto parcialmente ligadas ao estado global do campo, definido nomeadamente pelas possibilida­des médias de ganhos que ele proporciona e que determinam a atracção que exerce (em relação a outros campos). Têm assim inte­resse em agir no sentido de um crescimento da procura de que tiram particular benefício, porque proporcional à sua quota de mer-

21 Ainda que esta forma de ver seja por vezes contestada desde há alguns anos pelo facto de que, com a crise, as hierarquias estão em permanente mudança e que as fusões-aquisições permitem aos pequenos comprar os gran­des, ou concorrer eficazmente com eles, observa-se uma estabilidade bastante grande das duzentas maiores empresas mund iais.

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cado, tentando conquistar novos utilizadores, novas utilizações ou uma utilização mais intensiva dos produtos que oferecem (agindo mesmo, se for caso disso, sobre os poderes políticos). Mas, sobre­tudo, devem defender a sua posição face aos diferentes desafios através d a inovação permanente (novos produtos, novos serviços, etc.) e da baixa de preços. Como consequência de todas as van­tagens de que d ispõem em termos de competição (antes do mais as economias de escala ligadas à sua dimensão), podem baixar os seus custos e, paralelamente, os preços, limitando a redução das suas margens, tornando muito d ifícil a penetração de outros e eli­minado os concorrentes mais fracos. Em resumo, através da sua contribuição determinante para a estrutura do campo (e para a definição dos preços através dos quais se exprime), estrutura cujos efeitos se man ifestam sob a forma de barreiras à entrada ou de limitações de ordem económica, os first movers dispõem de vanta­gens decisivas tanto em relação aos concorrentes já instalados como em relação aos novos concorrentes potenciais22

As forças do campo empurram os sectores dominantes para estratégias que têm como finalidade perpetuar ou reforçar o seu domínio. É assim que o capital simbólico de que d ispõem devido à sua proeminência e antiguidade lhes permite recorrer com sucesso a estratégias destinadas a int imidar os seus concorren­tes, como a que consiste em enviar-lhes sinais para os dissuadir de um ataque (por exemplo, organizando fugas em torno de uma baixa de preços ou à criação de uma nova fábr ica). Estratégias que podem ser de puro bluff mas que o seu capital simbólico torna credíveis e, como tal, eficazes. Pode mesmo dar-se o caso de, con­fiantes da sua força e conscientes de que d ispõem de meios para sustentar uma ofensiva prolongada, e que como tal o tempo joga a seu favor, optem por se abster de qualquer resposta, e deixar os seus adversários envolver-se em ataques caros e votados ao fra­casso. De forma geral, as empresas hegemónicas têm a capacidade de impor o momento das mudanças nos diferentes domínios, pro-

22 D. C handler, Scate and Scope. The Dynamics of Industrial Capitatism, Cam­bridge, Harvard University Press, 1990, pp. 598-599.

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competição pelo fJoder sobre o poder do Estado - nomeadamente sobre o poder de regu lamentação e sobre os d ireitos de propriedade23 -

e pelas vantagens garantidas por d iferentes intervenções estatais, tar ifas especiais, patentes, créditos para investigação-desenvolvi­mento, encomendas públicas de equipamento, ajudas à criação de emprego, à inovação, à modernização, à exportação, à h abitação, etc. Nos seus esforços para alterar a seu favor as "regras do jogo" em vigor e desta forma fazer valer algumas das suas propried a­des susceptíveis de funcionar como capital n a nova situação do campo, as empresas dominadas podem ut ilizar o seu capital social para exercer pressões sobre o Estado e con seguir que altere as regras em seu proveito24• A ssim, o que ch ama mos de mercado é o conjunto das relações de t roca entre os agentes em concorrên­cia, interacções directas que dependem, como d iz Simmel, de u m "conflito indirecto", ou seja, d a estrutura socialmente con struída das relações de força para que contribuem, em graus diversos, os diferentes agentes presentes no campo, através das modificações que con seguem impor, utilizando nomeadamente os poderes esta­tais que estão em condições de controlar e orientar. De facto , o Estado não é apenas o regulador que tem a seu cargo manter a ordem e a confiança e o árbitro encarregado de "controlar" as empresas e as suas interacções, como em geral se con sidera. No caso, verdadeiramente exemplar, do campo da produção de casas individuais, como em muitos outros, ele con t ribui, de maneira decisiva, para a construção e para a procura e oferta, exercendo-se

23 Cf]. Campbell, L. Lindberg, "Property rights and the organization of eco­nomic action by the State", American Sociological Review, 55, 1990, pp. 634-647.

24 Neil Fligstein demonstrou que não se pode compreender a transforma­ção da administração das firmas sem dissecar, a longo prazo, o t ipo das rela­ções que estabelecem com o Estado, e isto no caso mais favorável à teoria libera l, os Estados Unidos, onde o Estado continua a ser um agente decisivo na estruturação das indústrias e dos mercados (cf. N . Fligstein, The Transfor­mation of Corporate Contra!, Cambridge, Harvard U niversity Press, 1990). O ut ra confirmação da importância decisiva das regulamentações centrais, é a acção de lobbying organizado que as empresas europeias exercem junto das instân­cias de Bruxelas.

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cad a forma de intervenção sob a influência d irecta ou indirecta das partes mais directamen te interessadas25.

Outros factores externos susceptíveis de cont ribuir para um a t ransformação das relações de força no campo, são as t ra nsfor­m ações das fon tes de aprovisionamento (por exemplo, as gran­des descobertas de petróleo do início do século XX) e as mudan­ças n a procura determinadas por alterações demográficas (como a ba ixa de n atalidade e o prolongamen to da esperança de v ida) ou nos est ilos de vida (o aumento do trabalho das mulheres, por exemplo, que leva à queda de determin ados produtos, cuja u t ili­zação estava ligada à definição tradicion al do papel da mulher, e cr ia novos mercados, por exemplo, o dos congelados e dos fornos microondas). Na verdade, estes factores externos n ão exercem o seu efeito sobre as relações de força no campo sen ão at ravés da mesma lógica dessas relações de força, ou seja, na medida em que garantem vantagen s aos concorrentes: perm item a estes implan­tarem-se em nichos, mercados especializados, pois os first movers , concentrados n a grande produção estandardizada, têm dificu ldade em dar resposta a exigên cias muito específicas, próprias de u ma determ inada categoria de con sumidores ou de um mercado regio­nal, e que podem const ituir pontos de partida para posteriores desenvolvimentos.

25 O Estado, cujo papel é evidente no caso da economia da habitação, está longe de ser o ún ico mecan ismo de coordenação da oferta e da pro­cura. Outras institu ições, como as redes de con hecimentos para a venda do crack (P. Bourgois, Searching for respect: Selling crack in El Barrio, Cambridge, Cam­bridge University Press, 1996), as "comunidades" constituídas pelos habitués dos leilões (C. Smith, Auctions, Berkeley, University of California Press, 1990) ou os agentes expressamente encarregados de conciliar oferta e procura, como o matchmaker no negócio do pugilisn~o (L. Wacquant, "A Flesh Pedd ler at Work: Power, Pain, and Profit in the Prizefighting Economy", Theory and Society, 27 (1), Fevereiro 1998, pp. 1-42), intervêm também na regulação cria­t iva dos mercados.

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A empresa como campo

É evidente que as decisões em matéria de preços ou em qual­quer outro domínio não dependem de um único actor, um mito que encobre os jogos e paradas do poder no seio da empresa enquanto campo ou, mais precisamente, no seio do campo do poder de cada empresa. Dito de outro modo, ao entrarmos na "caixa negra" que é uma empresa, não encontramos apenas indiví­duos mas, uma vez mais, uma estrutura, a do campo da empresa, que dispõe de autonomia relativa tendo em conta os constrangi­mentos associados à posição da empresa no campo das empresas. Se o campo englobante afecta a sua estrutura, o campo englobado, enquanto relação de forças e espaço de jogo específico, determina os termos e as próprias apostas da luta, conferindo-lhes um carác­ter particular que por vezes os torna, à primeira vista, ininteligí­veis do exterior.

Se é verdade que as estratégias das empresas (nomeadamente no que diz respeito aos preços) dependem d a posição que ocu­pam na estrutura do campo, elas dependem igualmente da estru­tura das posições de poder constitutivas da direcção interna da empresa ou, mais precisamente, das disposições (socialmente defi­nidas) dos dirigentes agindo sob constrangimento do campo de poder no seio da empresa e do campo da empresa no seu con­junto (que se pode caracterizar através de índices como a posição hierárqu ica da mão-de-obra, o capital de escolaridade e em parti­cular o capital científico envolvente, o grau de diferenciação buro­crática, o peso dos sindicatos, etc.). O sistema de imposições e de solicitações inscrito na posição no seio do campo e que leva as empresas dominantes a agir no sentido mais favorável à perpetua­ção do seu domínio nada tem de fata lidade nem corresponde a uma espécie de instinto infalível que orientaria as empresas e os seus dirigentes para as opções mais favoráveis à conservação das vantagens adquiridas. É assim que é muito referido o exemplo de Henry Ford que, após o seu brilhante êxito na produção e distri­buição o ter tornado no produtor de automóveis com melhor posi­ção no mercado de todo o mundo, destruiu, após a Primeira G uerra Mundial, as capacidades competit ivas da sua empresa, ao afastar

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quase todos os seus directores mais experientes e competentes, que tinham estado na origem do seu êxito face à concorrência.

Dito isto, ainda que goze de uma relativa autonomia em relação às forças do campo, a estrutura do campo do poder no seio da firma está estreitamente ligada à posição da empresa no campo, nomeada­mente através da correspondência, por um lado, entre o volume (por sua vez ligado ao tempo de vida da empresa e à sua posição no ciclo de vida, ou seja, grosso modo, às suas dimensões e à sua integração) e a estrutura do capital da empresa (nomeadamente o peso relativo do capital financeiro, do capital comercial e do capital técnico) e, por outro, a estrutura de distribuição do capital entre os vários dirigentes da empresa, proprietários - owners - e "funcionários" - managers -, e, no meio destes últimos, entre os detentores de diferentes tipos de capital cultural, predominantemente financeiro, técnico ou comercial, ou seja, no caso da França, entre as instituições ou as grandes esco­las (ENA, X ou HEC) de que são provenientes26

É indiscutível que se podem discernir tendências, a longo prazo, da evolução das relações de força entre os principais agentes. do campo de poder na empresa: nomeadamente a superioridade, à par­tida, de empresários que dominam as novas tecnologias e capazes de mobilizar os fundos necessários para as aplicar, a que acresce a intervenção cada vez mais incontornável dos banqueiros e das ins­tituições financeiras, de par da ascensão dos gestores27• Mas por

26 Foi possível determinar, no caso do grande patronato francês, uma estreita ligação entre o espaço das empresas e o espaço dos seus dirigentes em função do volume e da estrutura do seu capital (cf. P. Bordieu, La Nob!esse d 'État. Grandes éco!es et esprit de corps, op. cit., pp. 428-481).

27 Cf. N . Fligstein, The Transformation of Corporate Contra!, op. cit., que des­creve como a d irecção da firma passa sucessivamente pelas mãos dos chefes dos sectores de produção, do marketing e das finanças, e também N. Fligstein e L. Markowitz, "T he finance conception of the corporation and the causes of the reorganization of large American corporations, 1979-1988", in W. J. Wilson (ed.) Socio!ogy and Sacia! Po!icy (Beverly Hills, Sage, 1993), e N. Fligstein e K. Oauber, "Strutural change in corporare organization", Annua! Review of Socio!ogy, 15 (1989, pp. 73-96); ou ainda "The lntraorganizational power strug­gle: The rise of finance presidents in large corporations", American Socio!ogica! Review, 52 (1987, pp. 44-58).

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muito importante que seja analisar a. forma particular que assume, em cada fase de cada campo, a configuração da distr ibuição dos poderes entre empresas, é analisando, para cada empresa e em cada momento, a forma da configuração dos poderes no seio do campo do poder sobre a empresa que passamos a dispor de todos os meios para compreender a lógica, das lutas através das quais se definem as perspectivas da empresa. É evidente que estes objectivos são palco de lutas e que se impõe substituir a imagem dos cálcu­los racionais de um "dirigente" iluminado pela luta política entre agentes que tendem a identificar os seus interesses específicos (liga­dos à sua posição na empresa e às suas próprias disposições) com os interesses da empresa e cujo poder se mede, sem dúvida, pela sua capacidade de identificar, para o melhor e para o pior (como nos mostra o exemplo de Henry Ford), os interesses da empresa com os seus interesses na empresa (cf. Anexo, p. 299).

A estrutura e a concorrência

Ter em conta a estrutura do campo, corresponde a conside­rar que a concorrência para chegar aos clientes não pode ser entendida como uma competição unicamente orientada pela refe­rência consciente e explícita aos concorrentes directos ou, pelo menos, aos mais perigosos de entre eles, segundo a expressão de Harrison White: "Os produtores observam-se mutuamente no con­texto de um mercado" 28

• Ou de forma ainda mais explícita em Max Weber, que vê aí um "conflito pacífico" tendo como objec­tivo tomar para si "oportunidades ou vantagens ambicionadas também por outros": "Os potenciais parceiros orientam as suas ofertas indistintamente em função da potencial acção de mui­tos outros concorrentes reais ou imaginários, e não apenas pela acção potencial dos parceiros da troca" 29

• Max Weber descreve

28 H. White, "Where do markets come from?", American ]ournal of Sociol­ogy, 87(3), 1981, pp. 517-547, em especia l a p. 518.

29 M. Weber, op. cit., p. 363.

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aqui uma forma de cálculo racional, mas claramente diferente, na sua lógica, da da ortodoxia económica: não a dos agentes que fazem as suas escolhas a partir da informação fornecida pelos pre­ços, mas de agentes que tomam em linha de conta as acções e reacções dos seus concorrentes "e se orientam em relação a elas", como tal detendo informações a seu respeito e capazes de agir contra eles ou com eles - como no regateio, "a forma mais con­sequente de formação do mercado", e do "compromisso de inte­resses" que a culmina. Mas, se ele tem o mérito de substituir a concepção de uma transação com um único parceiro, o cliente, pela relação com o conjunto dos produtores, redu-la a uma interacção

consciente e reflectida entre concorrentes que investem no mesmo objecto ("todos os potenciais interessados na troca"). O mesmo em relação a Harrison White que, embora considerando o mercado como uma "estrutura social que se auto-reproduz" (selfreproducing social structure), procura o princípio das estratégias dos produtores, não nos constrangimentos inerentes à sua posição na estrutura, mas na observação e decifração dos sinais emitidos pelo compor­tamento dos outros produtores: "Markets are selfreproducing structures among specific diques of firms and other actors who evolve roles from observa­tions of each other·s behavior"30

• Ou ainda: "Markets are tangible diques of producers watching each other. Pressure from the buyer side creates a mir­

rar in witch producers see themselves, not consumers3 11'.

32 Os produtores, armadas do conhecimento do custo da produção, tentam maximi­zar os seus lucros determinando o volume adequado de produção "com base nas posições observadas de todos os outros produto­res" (on the basis of observed positions of a!! other producers) e procuram um nicho no Mercado.

30 H. White, op. cit., em particular p. 518. 31 Ibid., em particular p. 543. 32 "Os mercados são estruturas que se auto-reproduzem entre grupos espe­

cíficos das firmas e dos outros actores que desenvolvem os seus papéis de acordo com a observação do comportamento de cada um." Ou ainda: "Os mercados são grupos tangíveis dos produtores que se observam entre si. A pressão por parte do comprador cria um espelho em que os produtores se vêem a si próprios e não aos consumidores". (N. do T.)

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Trata-se, com efeito, de subordinar esta descrição "interactiva"

das estratégias a uma análise estrutural das condições que deli­mitam o espaço das estratégias possíveis. E ter o cuidado de não esquecer que a competição entre um reduzido número de agentes em interacção estratégica pelo acesso (de uma parte deles) à troca com uma categoria particular de clientes é também e sobretudo o encontro entre os produtores que ocupam diferentes posições

na estrutura específica do capital (sob as suas diferentes formas) e os clientes que ocupam, no espaço social, posições homólogas às que esses produtores ocupam no campo. O que habitualmente se designa por nichos mais não é do que este sector de clientela que a afinidade estrutural atribui às diferentes empresas, e em particu­lar às empresas secundárias: como foi possível demonstrar em reJa­cão aos bens culturais, e aos bens com forte componente simbólica

~omo as roupas ou a casa, é provável que se possa observar, em cada campo, uma similitude entre o espaço dos produtores (e dos produtos) e o espaço dos clientes distribuídos segundo princípios de diferenciação adequados. Diga-se de passagem que os constran­gimentos, por vezes fatais, que os produtores dominantes impõem aos seus concorrentes actuais ou potenciais, só se concretizam atra­

vés do campo: de forma a que a competição n ão passa nunca de um "conflito indirecto" (no sentido que lhe atribui Simmel) que não é dirigido directamente contra o concorrente. No campo econó­mico tal como nos outros, não é necessário a luta visar a destrui­ção para que tenha efeitos destrutivos. (Pode-se retirar daqui uma

conclusão "ética" da perspectiva dos universos de produção como campos: tal como se pode dizer, com Harrison White, que "firm is distinctive", enquanto posição num campo, ponto num espaço, sem se ser obrigado a pensar que todas as estratégias se inspiram numa procura da diferença - sendo o mesmo válido em relação a qual­quer forma de produção cultural, de um artista, de um escritor ou de um sociólogo por exemplo -, da mesma forma, pode-se afir­mar que qualquer agente empenhado num determinado campo está envolvido num "conflito indirecto" com todos os que estejam envol­vidos no mesmo jogo: as suas acções podem ter por efeito destruí­

-los sem que haja qualquer intenção de os esmagar, ou mesmo de os ultrapassar, de rivalizar com eles.)

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O Habitu.l económico

O homo economicus tal como o concebe (de forma implícita ou explícita) a ortodoxia económica, é uma espécie de monstro antro­pológico: este prático com cabeça de teórico encarna, por excelên­cia, a forma da scholastic fallacy, erro intelectualista ou intelectua l­centrista, muito comum nas ciências sociais (nomeadamente em linguística e etnologia), pelo qual o cientista põe na cabeça dos agentes que estuda, donas de casa ou famílias, empresas ou empre­sários, etc., as considerações e construções teóricas que elaborou em relacão às suas práticas33

• Gary Becker, au tor das mais ousa­das tent~tivas para generalizar a todas as ciências sociais o modelo do mercado e da tecnologia, considerado como o mais poderoso e eficaz, do empreendimento neoclássico, tem o mérito de afir­mar com toda a clareza aquilo que por vezes fica encoberto nos pressupostos implícitos da rotina científica: "The economic approach ( .. .) now assumes that individuals maximize their utility from basic references that do not change rapidly over time and that the behavior of different individu­als is coordinated by explicit or implicit markets ( ... ). The economic approach is not restricted to material goods and wants or to markets with monetary transac­tions, and conceptually does not distinguish between major or minors decisions or between «emotional» and other decisions. Indeed ( .. .) the economic approach provides a framework applicable to all human behavior - to all types of deci-

k l·r. 34>13s N d . . l' sions and to persons for all wal s of l; e . a a escapa assnn a exp 1-

33 P. Bourdieu, Méditations pascatiennes, op. cit. 34 G. S. Becker, A Treatise on the Fami!y, Cambridge, Harvard University

Press, 1981, p. ix; e também T he Economic A pproaclt to Human Behavior, Chicago, The University of Chicago Press, 1976.

35 "A abordagem económica ( ... ) pressupõe actualmente que os indivíduos maximizem a sua utilidade através de referências básicas que não mudam rapidamente ao longo do tempo e o comportamento de diferentes indivíduos é coordenado através dos mercados explícitos ou implícitos ( ... ). A abordagem económica não se restringe aos bens materiais e necessidades ou aos merca­dos com transacões monetárias, e não pode distinguir conceptualmente entre decisões mais ~u menos importantes ou entre decisões emocionais e outras. Certamente ( ... ) a abordagem económica forne~e uma grelha aplicável a todo o tipo de comportamento humano - a todos os tipos de decisões e a pes­soas com diferentes percursos de vida." (N. do T.)

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cação do agente maximizador, nem as estruturas organizacionais, as empresas ou os contratos, nem os parlamentos e as municipalidades, nem o casamento (concebido como troca económica de serviços de produção e de reprodução), ou a família, nem as relações entre pais e filhos ou o Estado. Esta forma de explicação universal por um princípio explicativo ele próprio universal (as preferências individuais são exógenas, ordenadas e estáveis, como tal sem início nem futuro contingentes) deixa de ter limites. Gary Becker já não reconhece mesmo os que Pareto se viu obrigado a colocar nesse texto fundador em que, identificando a racionalidade dos comportamentos económi­cos com a racionalidade em si, distinguia as condutas propriamente económicas, que são o resultado de "raciocínios lógicos" apoiados na experiência, e as condutas "determinadas pelo hábito", como tirar o chapéu quando se entra numa sala36 (reconhecendo assim um outro princípio de acção, a prática corrente, tradição ou hábito, ao contrá­rio do individualismo metodológico que apenas reconhece a alterna­tiva entre a escolha consciente e deliberada, correspondendo a deter­minadas condições de eficácia e de coerência, e a "norma social", cuja eficácia passa também por uma escolha).

É talvez ao sublinhar o arbitrário da distinção básica (e ainda hoje presente nas cabeças dos economistas que deixam para os sociólogos as curiosa ou as fa lhas dos funcionamentos económicos) entre a ordem económica, regida pela lógica eficiente do mercado e votada às condutas lógicas, e a ordem incerta do "social", habitada pelo arbitrário "não lógico" do costume, das paixões e dos pode­res, que melhor podemos contribuir para a integração ou "hibri­dação" entre as duas disciplinas, sociológica e económica, drama­ticamente separadas, apesar dos esforços contrários de alguns dos seus fundadores, de Perto e Schumpeter, em relação à sociologia, de Durkheim, Mauss ou Halbwachs e sobretudo Weber, em rela­ção à economia37

• Só se pode reunificar uma ciência social artifi-

36 V. Pareto, Manuel d · économie politique, Geneve, Droz, 1964, p. 41. 37 CF. ]. C . Passeron, «Pareto: 1· économie dans la sociologie», in Le Cen­

tenaire du Cours d ' économie politique, Turin, Fondazione Luigi Einaudi, Atti Pare­tiani, Olschki (e.), 1999.

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cialmente d ividida tomando consciência de que as estruturas eco­nómicas e os agentes económicos ou, mais precisamente, as suas disposições, são construções sociais, indissociáveis do conjunto das construções sociais constitutivas de uma ordem social. Mas esta ciência social reunificada, capaz de construir modelos que já não será possível determinar se são económicos ou sociológicos, terá sem dúvida muita dificuldade em impor-se, tanto por razões políti­cas como por razões que têm a ver com a lógica própria do uni­verso científico. Na verdade, muitos são os que têm interesse em que não seja estabelecida a ligação entre as políticas económicas e as suas consequências sociais ou, mais precisamente, entre as polí­ticas ditas económicas cujo carácter político se afirma no próprio facto de recusar ter em conta o social e o custo social, e tam­bém económico - que, por pouco que se queira, não será difícil de quantificar - , e os seus efeitos a curto e longo prazo (estou a pensar, por exemplo, no crescimento das desigualdades económi­cas e sociais resultantes da aplicação das políticas neoliberais e nos efeitos negativos destas desigualdades, sobre a saúde, sobre a delin­quência e o crime, etc.). Mas se a parcial paralisia cognitiva a que estão actualmente condenados sociólogos e economistas tem fortes razões para se perpetuar, contra todas as tentativas, cada vez mais numerosas, para se libertar dela, é também porque as forças sociais que pesam nos universos pretensamente puros e perfeitos da ciên­cia, nomeadamente através dos sistemas de sanções e de recompen­sas materializados pelas revistas científicas, as hierarquias de casta, etc., favorecem a reprodução de espaços separados, associados a estruturas de possibilidades de êxito e de disposições diferentes, mesmo inconciliáveis, que provêm da divisão original.

O conceito de habitus tem como função primordial romper com a filosofia cartesiana da consciência e libertar-se, simultanea­mente, da ruinosa alternativa entre mecanicismo e finalismo, ou seja, entre a determinação pelas causas e a determinação pelos objectivos; ou ainda entre o individualismo d ito metodológico e o que por vezes chamamos (entre os •: individualistas") o holismo, oposição semi-lógica que mais não é do que uma forma eufemís­tica da alternativa, sem dúvida a mais decisiva no plano político,

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entre o individualismo ou o liberali smo, que considera o indiví­duo como a unidade elementar autónoma última, e o colectivi smo ou o socialismo, em que é suposto dar a primazia ao colectivo.

O agente social, na medida em que é dotado de um habitus, é um individual colectivo ou um colectivo individualizado pela incorporação das estruturas objectivas. O individual, o subjectivo, é social, colec­tivo. O habitus é a subjectividade socializada, transcendência his­tórica cujos esquemas de percepção e de apreciação (o sistema de preferência, de gostos) são o resultado da história colectiva e indi­vidual. A razão (ou a racionalidade) é bounded, limitada, não ape­nas, como pensa Herbert Simon, porque o espírito humano é em termos gerais limitado (o que não é uma novidade), mas porque é socialmente estruturado, determinado e, como tal, restrito. Aqueles que terão tendência a objectar de imediato que também nada disto é uma descoberta, deverão entretanto questionar-se sobre as razões que levam a que a teoria económica tenha permanecido tão total­mente surda a todas as chamadas de atenção destas constatações antropológicas. Já Vebelen, por exemplo, defendia que o agente eco­nómico não é "um pacote de anseios" (a bundle of desires), mas "uma estrutura coerente de tendências e de hábitos"38 (a coherent structure of propensities and habits) ; foi }ames S. Duesenberry que observou tam­bém que o principio da decisão de consumo n ão deve ser procu­rado do lado da planificação racional (rational planning), mas antes do lado da aprendizagem e da formação de hábitos (learning and habit formation) e que estabeleceu que o consumo dependia do rendi­mento anterior tanto como do rendimento actuaP9

• É ainda Veblen que, antecipando a ideia de procura interactiva, há muito sublinhou, como Jevons e Marshall, os efeitos da estrutura ou da posição na estrutura sobre a definição das necessidades e, assim, sobre a pro­cura. Em resumo, se alguma propriedade universal existe, é a de que os agentes não são universais porque as suas características, e em particular as suas preferências e os seus gostos, são o resultado

38 T. Veblen "Why is economics not an evolutionary science? ", The Quar­

terly ]ournal of Economics, Julho 1898, p. 390. 39 J. S. Duesenberry, Income, Saving and the Theory of Consumer Behavior, Cam­

bridge, Harvard University Press, 1949.

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da sua postçao e deslocações no espaço social, como tal da história colectiva e individual. A conduta económica socialmente reconhe­cida como racional é o produto de determinadas condições econó­micas e sociais. Só reportando-nos à sua génese individua l e colec­tiva, é possível compreender as condições económicas e sociais das diversas possibilidades e, assim, quer a necessidade e limites socio­lógicos da razão económica, quer noções, aparentemente não condi­cionadas, como as necessidades, o cálculo ou as preferências.

Dito isto, o lwbitus nada tem de um principio mecânico de acção ou, mais precisamente, de reacção (à maneira de um reflexo). Ele é espontaneamente condicionado e limitado. É esse princípio autó­nomo que faz com que a acção não seja simplesmente uma reac­ção imediata a uma rea lidade em bruto mas uma resposta "inteli­gente" a uma faceta activamente seleccionada do real: ligado a uma história grávida de um futuro provável, ele é o peso morto, resquí­cio da sua trajectória passada, que os agentes opõem às forças ime­diatas do campo e que leva a que as suas estratégias não possam ser directamente deduzidas nem da posição nem da situação do momento. Gera uma resposta cujo princípio não está inscrito no estímulo e que, sem ser totalmente imprevisível, não pode ser pre­visto a partir unicamente do conhecimento da situação; uma res­posta a um aspecto da realidade que se distingue por uma apreen­são selectiva, parcial e particular (sem portanto ser "subjectiva", no sentido estrito) de certos estímulos, por uma atenção ao aspecto particular das coisas de que se pode dizer indiferentemente que "suscita interesse" ou que o interesse a suscita; uma acção que, sem contradição, podemos considerar simultaneamente como determi­nada e expontânea, na medida em que é determinada por estímu­los condicionantes e convencionais que só existem enquanto tais atra­vés de um agente disposto e apto a percepcioná-los.

O filt ro que o habitus introduz entre o estímulo e a reacção é um filtro de tempo, na medida em que, resultante de uma histó ria, é relativamente constante e durável, como tal relativamente liberto da histó ria. Resultado de experiências passadas, e de todo um acervo colectivo e ind ividual, não pode ser adequadamente compreendido a não ser através de uma análise genética que se aplica tanto à histó­ria colectiva - por exemplo com a história dos gostos, que Sidney

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Mintz ilustrou mostrando como o gosto pelo açúcar, inicialmente produto exótico de luxo reservado às classes privilegiadas, se tornou paulatinamente um elemento indispensável da alimentação ordinária das classes populares40 - , como à história individual - com a an á­lise das condições económicas e sociais da génese dos gostos indi­viduais em matéria de alimentação, de decoração, de roupa e tam­bém de canções, de teatro, de música ou de cinema, etc.41

, e, mais geralmente, às disposições (no duplo sentido de capacidades e tendên­cias) para concretizar acções económicas ajustadas a uma ordem eco­nómica (por exemplo, calcular, poupar, investir, etc.).

O conceito de habitus permite igualmente escapar à alternativa entre finalismo - que define a acção como determinada pela refe­rência consciente a um fim deliberado e que como tal concebe todos os comportamentos como produto de um cálculo puramente instrumental, para não dizer cínico - e mecanicismo - para o qual a acção se reduz a uma pura reacção a causas indeferenciadas. Os economistas ortodoxos e os filósofos que defendem a teoria da accão racional oscilam, por vezes na mesma frase, entre estas duas ~pções teóricas logicamente incompatíveis: de um lado, um decisionismo finalista segundo o qual o agente é pura . consciência

40 S. Mintz, Sweetness and Power. The Sugar in Modern History, Nova Iorque, Viking Penguin, 1985.

41 P. Bourdieu, La Distinction. Critique sociale du jugement, op. cit., e L. Levine, High Brow/Low Brow. The Emergence of Cultural Hierarchy in America, Cambr idge, Harvard University Press, 1988. Como se vê no caso da análise das determi­nantes económicas e sociais das preferências de compra ou aluguer de uma casa, podemos recusar a definição a-histórica das preferências sem nos conde­narmos a um relativismo, que impossibilitaria qualquer conhecimento racio­nal, dos gostos à mercê do puro arbítrio social (como leva a crer a velha fórmula, invocada por Gary Becker, de gustibus non est disputandum). Somos pelo contrário levados a definir empiricamente as relações estatísticas neces­sárias que se estabelecem entre os gostos nos d iferentes domínios da prática e as cond ições económicas e sociais da sua formação, ou seja a posição no presente e no passado (trajectória) dos agentes na estrutura da distribuição do capital económico e do capital cultural (ou, se preferirmos, o estado no momento considerado e a evolução através do tempo do volume e da estru­tura do seu capital).

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racional agindo com pleno conhecimento de causa, constitu indo o princípio da acção uma razão ou uma decisão racionalmente deter­minada por uma avaliação racional das possibilidades; de outro, um psicanalismo que faz dele mera partícu la desprovida de inér­cia reagindo de forma mecânica e instantânea a uma determinada combinação de forças. Mas há tanto menos dificuldade em conci­liar o inconciliável quanto os dois ramos da alternativa formam de facto um único: sacrificando, em ambos os casos, à sholastic faHacy, projecta-se o sujeito racional, dotado de um conhecimento perfeito das causas e das possibilidades, no agente activo, que é suposto ser racionalmente propenso a considerar como fins as possib ilida­des que as causas lhe abrem (o facto de ser em plena consciência que os economistas sacrificam, em nome do "direito à abstracção", este paralogismo, n ão anula, obviamente, os seus efeitos).

O habitus é um princípio de acção muito económico, que garante uma enorme economia de cálculo (nomeadamente o cálculo dos custos de investigação e de quantificação) e também de tempo, recurso particularmente raro na acção. É assim sobremaneira adap­tado às circunstâncias comuns da existência que, seja ·pela urgência, seja devido à insuficiência dos conhecimentos necessários, n ão dei­xam qualquer espaço à avaliação consciente e pensada das hipóte­ses de ganho. Directamente saído da prática e ligado à prática na sua estrutura como no seu funcionamento, este sentido prático não pode ser avaliado fora das condições em que se concretiza n a prá­tica. Isto denota que as provas a que a "heurística da decisão"42

submete os sujeitos são duplamente inadequadas, na medida em que se tenta medir, numa situação artificial, uma aptidão para a avaliação consciente e calculada de possib ilidades cuja concretização pressupõe, à partida, uma ruptura com as tendências do sentido prático (esquece-se de facto que o cálculo das probabilidades foi ela­borado contra as tendências espontâneas da intuição inicial).

Obscura em termos práticos, porque situada para lá do dualismo entre sujeito e objecto, actividade e passividade, meios e fins, deter­minismo e liberdade, a relação do habitus no campo, através da qual

42 Cf. A. Tversky, D. Kahneman, loc. cit.

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o habitus se determina ao determinar o que o determina, é um cál­culo sem calculador, uma acção intencional sem intenção, de que temos muitas confirmações empíricas43• No caso específico (mas par­ticularmente frequente) em que o habitus é o resultado de condi­ções objectivas semelhantes àquelas em que funciona, engendra con­dutas perfeitamente adaptadas a essas condições sem que resultem de uma procura consciente e intencional da adaptação (é neste sen­tido que importa evitar que se tome estas "antecipações adaptativas", no sentido de Keynes, como "antecipações racionais", mesmo que o agente cujo habitus é bem ajustado seja de alguma maneira uma espécie de réplica do agente como produtor de antecipação racional). Neste caso, o efeito do habitus permanece de certa forma invisível, e a explicação pelo habitus pode parecer redundante relativamente à explicação pela situação (pode-se mesmo ter a impressão de que se trata de uma explicação ad hoc, na lógica da virtude soporífica). Mas a eficácia inerente ao habitus salta à vista em todas as situações em que não resulta das condições da sua actualização (cada vez mais frequentes à medida que as sociedades se diferenciam): é o caso quando os agentes formados numa economia précapitalista se defron­tam, desarmados, com as exigências de um universo capitalista44; ou ainda quando as pessoas idosas mantêm, à maneira de O. Q uixote, hábitos deslocados e ultrapassados; ou quando os comportamentos de um agente em ascenso ou em declínio na estrutura social, novo

43 Podemos apoiar-nos nos resultados da tradição behaviorista, represen­tada nomeadamente por Herbert Simon, mas sem aceitar a sua fi losofia da acção: Herbert Simon pôs o acento sobre o peso da incerteza e da incom­petência que afecta o processo de decisão e sobre a capacidade limitada do cérebro humano; ele rejeita a hipótese global de maximização, mas retém a noção de bounded rationality: os agentes podem não ser capazes de juntar e tratar toda a informação necessária para chegar a decisôes globais de maxi­mização, mas podem fazer uma escolha racional no quadro de um conjunto limitado de possibilidades. As empresas e os consumidores não maximizam mas tentam alcançar os mínimos aceitáveis (o que designam como satisficing) tendo em conta a impossibilidade de juntar e tratar toda a informação neces­sária para atingir um máximo (H. Simon, Reason in Human Affairs, Stanford, Stanford University Press, 1984).

14 Cf. P. Bourdieu, Algérie 60, op. cit.

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rico ou em perda de estatuto, estão em dissonância com a pos1çao que ocupa. Tais efeitos de histerese, de atraso na adaptação ou de recusa da adaptação, têm a sua explicação no carácter relativamente duradouro, o que não significa imutável, dos habitus.

Ao carácter (relativamente) constante dos comportamentos cor­responde a permanência (relativa) dos jogos sociais no quadro dos quais se formaram: como quaisquer jogos sociais, os jogos económi­cos não são jogos de azar; apresentam um certo número de regu­laridades e de recorrências de configurações semelhantes que lhes conferem uma certa monotonia. Como resultado, o habitus leva a antecipações razoáveis (e não racionais) que, sendo o resultado de comportamentos saidos da incorporação inconsciente da experiência de situações constantes ou recorrentes, adaptam-se automaticamente a situações novas mas não radicalmente insólitas. Enquanto propen­são para agir, fruto de experiências anteriores de situações semelhan­tes, garante um domínio prático das situações de incerteza e for­nece a base de uma relação com o futuro que não é a do projecto, enquanto prospecção dos possíveis concretizáveis ou não, mas a da antecipação prática: descobrindo, na própria objectividade do mundo, o que se apresenta como a única coisa a fazer, e apreendendo o futuro como um quase-presente (e não como um futuro contin­gente), a antecipação do futuro é entretanto estranha à lógica pura­mente especulativa de um cálculo de riscos, capaz de classificar as diferentes possibilidades existentes. Mas o habitus é também, como vimos, um princípio de diferenciação e de selecção que tende a con­servar o que o confirma, afirmando-se assim como uma potenciali­dade que tende a garantir as condições da sua própria realização.

Tal como a perspectiva intelectualista da ortodoxia económica reduz o domínio prático das situações de incerteza a um cálculo racional dos riscos, também, com base na teoria dos jogos, constrói a antecipação das condutas do outro como uma espécie de cálculo de intenções do adversár io, concebidas por h ipótese como inten­ções de enganar, em particular relativamente às suas próprias inten­ções. Na verdade, o problema que a ortodoxia económica resolve através da hipótese ultra-intelectualista da common knowledge (eu sei que tu sabes que eu sei) resolve-se, na prática, pela orchestration des habitus que, em virtude da sua própria congruência, faculta a ante-

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cipação mútua dos comportamentos dos outros. Os paradoxos da acção colectiva encontram solução nas práticas baseadas no postu­lado tácito de que os outros agirão de forma responsável e com essa espécie de constância ou fidelidade a si próprio inscrita no carácter duradouro dos habitus.

Uma ilusão bem enraizada

A teoria do habitus permite assim explicar a aparente verdade da

teoria que desmente. Se uma hipótese tão irrealista como aquela em que se baseia a teoria da acção ou da antecipação racional pode parecer confirmada pelos factos, é porque, como resultado da cor­respondência estatística, empiricamente estabelecida, entre compor­tamentos e posições, os agentes têm, na grande maioria dos casos (sendo as excepções mais notáveis os subproletários, os deserdados e os rebeldes, que este mesmo modelo pode aliás explicar), expec­tativas razoáveis, ou seja, ajustadas às possibilidades objectivas - e quase sempre controladas e reforçadas pelo efeito directo dos con­troles colectivos, nomeadamente os exercidos pela família. E a teo­ria do habitus permite mesmo compreender que uma construção teórica como a do "agente representativo" - baseada na hipótese de que as escolhas de todos os diferentes agentes de uma mesma cate­goria, os consumidores por exemplo, podem ser tratadas, a despeito da sua extrema heterogeneidade, como a escolha de um "indiví­duo representativo" standard que maximizaria a sua utilidade - não seja totalmente desmentida pelos factos. Assim, após ter mostrado não apenas que esta ficção se baseia em hipóteses muito limitadas e específicas, mas que nada permite afirmar que o conjunto dos vários indivíduos, ainda que todos fossem maximizadores, se com­porte como um indivíduo que maximizaria a sua utilidade e que, por outro lado, o facto de a colectividade apresentar um certo grau de racionalidade não implica que os indivíduos ajam racio­nalmente. Alan Kirman sugere que se pode basear uma função de procura global não sobre a homogeneidade, mas sobre a heteroge­neidade dos agentes, comportamentos de procura individual muito dispersos que podem conduzir a um comportamento global de pro-

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cura comum muito unificado e estabilizado45 • Ora uma tal hipótese encontra uma base realista na teoria do habitus e na representa­ção dos consumidores como um conjunto heterogéneo de agen­tes com comportamentos, preferências e interesses muito diferentes (tal como as suas condições de existência) mas ajustados, em cada caso, a condições de existência que implicam possibilidades d iferen­tes e, como tal, submetidos às limitações inscritas na estrutura do campo, a do campo económico no seu conjunto, e também nos subespaços mais ou menos restritos nos quais interagem com um subgrupo limitado de agentes. Não há assim lugar, no campo eco­nómico, para "loucuras", e os que nelas se deixam ir acabam por pagar, mais tarde ou mais cedo, com o seu desaparecimento ou falhanço, o preço do desafio às regras e regularidades imanentes da ordem económica.

Ao dar uma forma explícita e sistemática à fi losofia do agente e da acção que a ortodoxia económica aceita frequentemente de forma tácita (nomeadamente porque, com noções como as de pre­ferência ou de escolha racional, mais não faz que racionalizar uma "teoria" do senso comum da decisão), os defensores da teoria da acção racional (incluindo alguns economistas, como Gary Becker) e do individualismo metodológico (como }ames Coleman, Jon Elster e os seus discípulos franceses) deram sem dúvida um assinalável contributo à investigação: o seu ultra-racionalismo estritamente inte­lectualista (ou intelectual-centrado) contradiz frontalmente, pelo seu próprio exagero e o seu menosprezo pela experiência, as mais fun­damentadas conquistas da história das práticas humanas. Se nos pareceu necessário mostrar que mu itas das teorias da ciência eco­nómica são perfeitamente compatíveis com uma filosofia do agente, da acção, do tempo e do mundo social claramente diferente da que é produzida ou em geral aceite pela maioria dos economistas, não foi em nome de uma espécie de ponto de honra filosófico, mas apenas para tentar reunificar as ciências sociais trabalhando para que a economia reassuma o seu real carácter de ciência h istórica.

45 Cf. A. P. Kirman, 'Thypotheses de l'individu «représentatif»: une analyse critique", Problémes économiques, 2325, 13 Maio 1993, pp. 5-14.

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Anexos

O campo da empresa: um estudo de caso

No decurso de uma investigação levada a cabo em 1986 numa grande empresa cimenteira que, por ocasião de um processo de "deslocalização" de uma parte dos seus serviços até então implan­tados em Paris, pretendia reorientar a sua política financeira e comercial "associando" o pessoal (através nomeadamente da organi­zação de um grupo de trabalho interno), foi possível observar que os vários membros da direcção tinham, em relação à empresa e sobretudo em relação ao seu futuro, perspectivas estreitamente liga­das à sua posição na empresa e ao seu capital académico46• Os con­flitos, na maioria das vezes indirectos e minorados, entre os dife­rentes membros da "direcção", o presidente, tradicionalmente um politécnico, o director-geral, por ocasião deste estudo um antigo aluno de HEC, conhecido pela sua competência em matéria de ges­tão financeira, o director-geral adjunto, ou director de exploração, um politécnico que, dada a sua antiguidade e a sua função de res­ponsável do pessoal, detém um enorme capital de informação e de relações, o director das instalações industriais, um politécnico, o director comercial que, apesar da sua função, está pouco orientado para os contactos e finalmente o director da investigação e desen­volvimento, um jovem politécnico, têm sempre a ver, em último caso, com questões de orientação.

Os conflitos de orientação estão evidentemente ligados a conflitos relativos às prioridades, ou seja, ao destaque que convêm dar, nos futuros projectos, e nas necessárias reestruturações, a esta ou aquela função financeira, comercial ou de "contactos" por exemplo, e a

46 Contei, neste inquérito, com a participação de Pierre Delsaut.

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tal ou tal responsável: uns poderão invocar as características muito específicas do mercado do cimento, ou seja a situação de duopó­lio que exclui as batalhas de preços, e as características muito par­ticulares da distribuição, por preterir uma verdadeira política de contactos; outros defendem um desenvolvimento da empresa basea­do numa estratégia financeira, como o resgate de empresas no sec­tor, ou numa estratégia industrial, mas de novo tipo, ou seja, o alargamento e diversificação do mercado, a partir de um investi­mento na química (em função de diferentes definições do produto, o cimento, ora considerado como um produto tradicional relati­vamente simples manipulado por operações técnicas assimiláveis a uma espécie de "cozinha", ora como uma espécie de "cola", numa perspectiva da química, e associado a todo o género de deriva­dos susceptíveis de serem comercializados). Tendo em conta que as opções possíveis nunca são totalmente exclusivas e permitem combi­nações parciais, podem estabelecer-se alianças d iversas, muitas vezes tácitas, para fazer avançar os interesses ligados a um ou outro dos possíveis concorrentes. Nos conflitos para impor os seus pontos de vista, que seria naif (ou pretensamente subtil) reduzir a conflitos de interesses de carreira, na medida em que cada um de alguma forma encarna a "tendência a preservar o eu", o conatus, da posi­ção que ocupa, e que todo o seu ser social, o seu habitus, exprime e realiza, os protagonistas empenham o capital, sob as suas dife­rentes formas e nos diferentes estados, que detêm: mobilizam um capital burocrático específico, ligado à posição na hierarquia, e à antiguidade na empresa, um capital de informação que pode ir da competência comercial ou do domínio da química ou da informá­tica ao conhecimento do passado da empresa e de cada um dos seus membros, enfim um capital social de relações úteis.

Ainda que o respeito pelos compromissos de confidencialidade proíba de expor de forma detalhada o historiai das inúmeras inter­venções, "golpes" (nomeadamente os que um testemunho chamava de "golpes de bilhar"), negociações, e mesmo o inventário de estra­tégias utilizadas - nomeadamente para impor e fazer passar uma política arrastando a decisão do PDG - , pode-se pelo menos evo­car a lógica da luta no seio do campo do poder na empresa, ou seja a concorrência entre os detentores de um dos poderes. Tudo

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se passa como se a estrutura do campo do poder se organizasse em cada momento, segundo as diferentes oposições que, nomea­damente nos momentos de crise, podem cristalizar-se em alianças estratégicas entre os detentores das diferentes fo rmas de poder; por exemplo, no momento em que decorria este estudo, o direc­tor-geral, defensor de uma política financeira de expansão através do resgate de pequenas empresas do sector, apoiado pelo jovem director responsável da investigação e desenvolvimento, promotor de uma política de diversificação dos produtos (na base da prima­zia dada à "cola" e à "química"), confrontava-se com a resistência

de um dos respon sáveis técnicos da nova implantação, engenheiro civil que, animado de uma visão futurista da empresa, via no novo centro industrial uma Silicon Valley (exemplo típico de um inves­timento total, impossível de reduzir a simples oportunismo carrei­rista), do director da informática e do director-geral adjunto, téc­nico que detinha uma espécie de monopólio da informação sobre a empresa e o seu pessoal; e, entre os dois pólos, mas mais pró­ximos do segundo, os que designamos como os "cimenteiros", ou seja, os d irectores mais directamente ligados à produção, que admi­tem uma política de "diversificação" mas que tenha como objec­tivo "vender uma competência industrial ou produtos resultantes dessa competência".

Nesta luta pela definição da empresa, os seus objectivos e pers­pectivas, defrontam-se três princípios de legitimidade. Duas formas de legitimidade "cimenteira", como se diz na terminologia interna: uma, tradicional, dá a primazia ao cimento, forma primitiva de cola, produzido segundo as técnicas de um cozinhado relativarnente rotineiro; outra, igualmente técnica, mas modernista, e mais virada para o "betão", produto que, sendo menos normalizado que o cimento e susceptível de ser adaptado às necessidades dos utiliza­dores, leva à valorização das competências comerciais, e sobretudo virado para a "cola", produto resultante da investigação química que assim abre a porta a todo o tipo de derivados. Enfim, uma terceira for ma de legitimidade, neste caso financeira, nas mãos do

· director-geral proveniente do HEC, que, -na perspectiva da ortodo­xia da empresa ("normalmente, é um X - um politécnico - quem d ir ige este sector"), é suspeito de uma espécie de usurpação. É esta

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mesma dinâmica (ou o mesmo conatus) que leva este último a visar a presidência (então ocupada por um politécnico um pouco desva­lorizado) e a alterar a política financeira e comercial do seu pre­decessor. Ele só pode alcançar de facto estes do is objectivos inse­paráveis e objectivamente indestrinçáveis na medida em que esteja em condições de garantir· o apoio dos dois politécnicos, um que defende entusiasticamente a modernização técnica da química orgâ­nica, outro que opõe a inércia de uma adesão recuperadora e neu­tralizante a projectos de renovação que ameaçam o seu ascendente sobre o pessoal da empresa. Na verdade, este último, sem nunca se declarar abertamente como um porta-voz da resistência ao esforço de transformação empreendido pelo director-geral, surge como a encarnação da inércia da empresa, ou seja das tendências ineren­tes às estruturas institucionais e aos comportamentos dos agentes. (Uma análise da distribuicão de todos os assalariados de todos os ramos entre os diferentes grupos de trabalho constituídos aquando da realização do seminário sobre perspectivas permite constatar que os que escolheram o grupo virado para "a reorganização do pro­cesso de produção" são os mais antigos na empresa, menos dota­dos de capital académico e oriundos mais frequentemente das ofi­cinas do que dos escritórios. Enquanto que os que se orientaram para a comissão consagrada a um tema claramente mais prospec­t ivo, como o futuro da diferenciação da produção, detêm diplomas superiores - nomeadamente em química orgânica.)

Estas diferentes orientações, que se podem exprimir, por mime­tismo inconsciente ou numa intenção de resistência latente, através da mesma palavra "diversificação", estão em permanente oposição, e não apenas através dos confrontos abertos do comité de direcção ou nas deliberações das comissões de estudo, mais ou menos orien­tadas pelos responsáveis inovadores que tomaram a iniciativa, mas também, como refere um dos testemunhos, "na cabeça das pessoas e nas discussões entre elas". E é destas inúmeras interacções, sem­pre condicionadas pela estrutura da relação de forças entre as ins­tâncias e os agentes envolvidos, que surge, em última análise, o que poderá aparecer como a política livremente analisada e deci­dida por uma direcção considerada como um agente racional.

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3 Uma antropologia imaginária

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A S ESTRUTUR AS SOC I AIS D A EC O N OM IA

A dificuldade de qualquer tentativa de repensar livremente as bases da economia provém do facto de a ortodoxia eco­nómica ser sem dúvida hoje um dos discursos socialmente

mais fortes sobre o mundo social, nomeadamente porque a forma­lização matemática lhe confere um ar de ostensivo rigor e neutrali­dade. Ainda que a teoria económica esteja longe de uma unificação e se torne possível distinguir um hard core sociologicamente dominante, organizado em torno do individuo isolado e do mercado abstracto, das teorias complementares ou conectivas (teoria dos jogos, teoria das instituições, teoria evolucionista) e das teorias de contestação, ela organiza-se socialmente segundo o modelo da grande cadeia do ser (great chain of being), cara a Arthur Lovejoy, em que, numa extremidade, se encontram os matemáticos puros e perfeitos da teoria do equilíbrio geral e na outra extremidade os autores dos pequenos modelos da economia aplicada, servindo os primeiros de caução legit imadora dos segundos, enquanto os segundos dão aos primeiros a aparência de uma acção concreta sobre as realidades do mundo tal como ele é.

Para nos cingirmos ao essencial, podemos começar por analisar a construção teórica eclética, com fundamentos mais sociais que científi­cos, denominada Rational Action T heory ou Ind ividualismo Metodo­lógico, e que, em última análise, se baseia numa filosofia cartesiana da ciência, do agente (considerado como sujeito) e do mundo social.

É antes do mais uma epistemologia dedutivista que, identificando r igor com formalização matemática, entende deduzir "leis" ou "teo­remas" significativos a partir de um conjunto de axiomas funda­mentais, rigorosos mas omissos no que respeita às reais funções da economia. Podemos citar aqui Durkheim: "A economia política ... é uma ciência abstracta e dedutiva, menos empenhada em observar a realidade do que em construir um ideal mais ou menos desejável;

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porque o homem de que falam os economistas, esse sistemático egoísta, não passa de um produto artificial da razão. O . hçnnem que conhecemos, o homem real, é bem mais complexo; pertence a uma época e a um país, vive num determinado local, tem uma família, um país, uma crença religiosa e ideias políticas" 1•

Em segundo lugar, é uma filosofia intelectualista que concebe os agentes como puras consciências s~m história, capazes de defi­nir livre e instantaneamente os seus objectivos e de agir em plena consciência de causa (ou, numa variante que coexiste perfeitamente com a precedente, como átomos isolados, sem autonomia nem inér­cia e mecanicamente determinados por causas especificas). Podemos aqui invocar Veblen quando ele mostra como a filosofia hedonista em que se baseia a teoria económica leva a atribuir aos agentes, átomos sem inércia e "calculadores esclarecidos", uma "uma natu­reza passiva, substancialmente inerte e imutável": "The hedonistic con­ception of man of ligthning catculator of pleasures and pains, who oscillates like na homogeneous globule of desire of happiness under the impulse of stimuli that shift him about the area, but leave him intact. He has neither antecedent nor consequent. He is an isolated, definitive human datum, in stable equilibrium except for the buffets of the impinging forces that displace him in one direction or another. Self poised in elemental space, he spins symmetrically about is own spir­itual axis until the parallelogram of forces bears down upon him, whereupon he follows the line of the resultant. When the force of the impact is spent, he comes to rest, a self contained globule of desire as before2" 3•

1 E. Durkheim, "Cours de sciences sociales", in La science sociate et t ·action,

Paris, PUF, 1970 (1.' ed. 1888), p. 85. 2 Th. Veblen, "Why is Economics not an evolutio nary Science?", op. cit.,

pp. 373-397. 3 "A concepção hedonista do homem como uma máquina de avaliação auto­

mática dos prazeres e dores, que oscila como um glóbulo homogéneo de desejo de felicidade sob o impulso de estímulos que o empurram de um lado para o outro, mas o deixam incólume. Sem antecedentes nem consequências. U m ser humano isolado, um dado humano definitivo, em equilíbrio estável excepto face a conjuntos de forças que se impõem e que o deslocam num ou noutro sent ido. Equilibrado num espaço elementar, gira simetricamente em torno do seu eixo espiritual até que o paralelograma das forças circundantes o subjuga, levando-o então a seguir linha resultante. Q uando a força do impacto se esgota, entra em repouso, um glóbulo isolado de desejo como antes". (N. do T.)

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Por último e acima de tudo, é uma vtsao estritamente atomística e descontínua (ou instantânea) do mundo social, que está na base do modelo de concorrência perfeito ou do mercado perfeito. Esta filo­sofia t ipicamente cartesiana exclui pura e simplesmente a história. Tal como, ao situar o principio da acção nas intenções explicitas e razões (ou mais simplesmente, segundo Friedrich Hakey, na psicolo­gia), a filosofia da consciência da ortodoxia económica exclui a histó­ria dos agentes e como tal as preferências, que nada têm a ver com as experiências passadas, são inacessíveis às flutuações e variações históricas, sendo a função de utilidade individual decretada como imutável ou desprovida de pertinência analítica\ assim, a filosofia da ordem económica inscrita na noção de mercado evoca muito directa­mente o universo físico tal como é descrito por Descartes, ou seja, desprovido de força imanente, e como tal votado a uma desconti­nuidade radical (a dos actos do criador divino, segundo Descartes). Ficção matemática que remete para o mecanismo abstracto de for­mação dos preços descrito pela teoria da troca (à custa de colocar entre parênteses, de forma consciente e assumida, as instituições jurídicas e estatais), o mercado perfeito, caracterizado pela concorrên­cia e informação perfeitas, mais não é do que a designação ideali­zada do mecanismo abstracto encarregue de garantir o ajustamento automático dos preços, na situação limite de um mundo sem atrito, ou seja, o equilíbrio do mercado que é suposto coordenar as acções individuais através da variação dos preços5

Regressando ao modelo da "grande cadeia do ser", pode com­preender-se como uma noção como a do mercado, de que é par­ticularmente fácil mostrar as fraquezas e insuficiências cient íficas6

,

4 G . J. Stigler, G. S. Becker, "De G ustibus non est d isputandum", Amer· ican Economic Review, 67, March 1977, pp. 76-90.

5 Encontramos uma crítica a esta pretensa idealização em A. Hirschman, "Riva lnterpretations of Market Society: C ivilizing, Destructive or Feeble?", ]ournat of Economic Literature, 20(4), 1982, pp. 1463-1484.

6 Assim Douglas North observa: "it is a p eculiar fact that the literature on economics (. .. ) conta ins so little discussion of t he central instit ution that underl ies neo-classical economics - the market" (D. North, "Markets and other Allocations Systems" in "History: The Challenge of Karl Po lanyi",

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e que, devido à sua ambiguidade, e aos seus diferentes sentidos, permite evocar alternativa ou simultaneamente, o sentido abs~racto, matemático, com todas as consequências científicas associadas, ou um ou outro dos sentidos concretos, mais ou menos próximos da experiência quotidiana, como o local onde têm lugar as trocas - marketplace - , o acordo relativamente aos termos de transação numa troca - concluir um negócio,. as saídas de um produto -conquista do mercado -, o conjunto das transações ligadas a um determinado bem - o mercado do petróleo -, o mecanismo eco­nómico característico das "economias de mercado", tende a jogar o papel de "mito omnisciente", disponível, seja qual for o nível da cadeia em que nos situemos, para qualquer tipo de utilização ideo­lógica. É assim que, no extremo "divino" da cadeia, a Escola de Chicago, e muito em particular Milton Friedman7, puderam basear os seus esforços para reabilitar o mercado (nomeadamente contra os intelectuais, considerados como hostis8) na identificação entre mercado e liberdade, fazendo, sem recurso a qualquer outro pro­cesso, da liberdade económica a condição da liberdade política.

]ournat of European Economic History, 1977, 6, pp. 703-716; podemos relembrar as duas transgressões, sempre citadas, desta lei do silêncio: Marshall, Principies of Economics, 1890 - com o capitulo "On Markets" - e Joan Robinson, ar tigo Market da Encyclopedia Britannica - retomado in Cot!ected Economic Papers). Sabe­·se, por outro lado, que as condições que devem ser cumpridas para que o equilíbrio do mercado atinja o óptimo (a qualidade do produto é bem defi­nida, a informação é simétrica, os compradores e os vendedores são suficien­temente numerosos para excluir q ualquer cartel monopolístico) praticamente nunca se realizam e que os raros mercados conformes ao modelo são artefac­tos sociais baseados em condições de viabilidade excepcionais como as redes de regulação públicas ou de organizações. E encontram-se ainda testemunhos inequívocos no próprio núcleo da or todoxia - por exemplo no manual de referência dos "industrial organization theorists!' (cf. ). Tirole, op. cit. , p. 12).

7 M. Friedman, Capita!ism and Freedom, Chicago, C h icago University Press, 1962.

8 G. Stigler, The lntet!ectuat and the Marketplace, Cambridge, Harvard Uni­versity Press, 1963 (1984), espec. pp. 143-158.

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Po.Jt-.Jcriptum: Unificar para melhor dominar

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A 5 ESTRUTURAS SOCIAIS D A ECON OMIA

H istoricamente, o campo económico construiu-se no qua­dro do Estado nacional a que está ligado. O Estado con­tribui de facto de múltiplas formas para a unificação do

espaço económico (que por seu turno contribui para a emergên­cia do Estado). Como Polanyi mostra em The Great Transformation,

a emergência dos mercados nacionais não é o resultado automático de um gradual alargamento das trocas, mas consequência de uma política de Estado deliberadamente mercantilista visando o cresci­mento do comércio externo e interno (nomeadamente ao favorecer a comercialização da terra, do dinheiro e do trabalho). Mas, a uni­ficação e a integração, longe de levar, como poderíamos pensar, a um processo de homogeneização, é acompanhada de uma concen­tração do poder, que pode ir até à monopolização, e simultanea­mente, do desapossamento de uma parte da população assim inte­grada. Ou seja, a integração no Estado e no território que este controla é de facto a condição de dominação (como é particular­mente evidente em todas as situações de colonização). Na verdade, como pude observar na Argélia, a unificação do campo económico tende, nomeadamente através da unificação monetária e a corres­pondente generalização das trocas monetárias, a lançar todos os agentes sociais num jogo económico para o qual não estão igual­mente preparados e equipados, cultural e economicamente; tende simultaneamente a submetê-los à norma objectivamente imposta pela concorrência das forças produtivas e dos modos de produ­ção mais eficientes, como ressalta no caso dos pequenos agriculto­res cada vez mais completamente arredados da auto-suficiência. Em resumo, a unificação favorece os dominadoies, de que a diferença em capital se afirma pelo simples facto de se estabelecer uma, relação. (É assim que, para referir um exemplo recente, Roosevelt, nós anos

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30, teve que estabelecer regras soetats comuns em matéria de tra­balho - como o salário mínimo, a limitação do tempo de traba­lho, etc. - para evitar a degradação dos salários e das condições de trabalho na sequência da integração num mesmo espaço nacio­nal de regiões com desigual desenvolvimento).

Mas antes, o processo de unificação (e de concentração) manti­nha-se confinado às fronteiras naci-onais: era limitado por todo o tipo de barreiras, nomeadamente juríd icas, à livre circulação dos bens e das pessoas (direitos aduaneiros, controle cambial, etc.); limi­tado ainda pelo facto de a produção e sobretudo a circulação de bens se manter estreitamente ligada a locais geograficamente defini­dos (nomeadamente por causa do custo dos transportes). São estes limites, tanto técnicos como jurídicos, ao alargamento dos campos económicos, que tendem actualmente a desvanecer-se ou a desapa­recer sob o efeito de diferentes factores: por um lado, de factores puramente técn icos, como o desenvolvimento de novos meios de comunicação como o transporte aéreo e a Internet; por outro, de factores mais especificamente políticos, ou jurídico-políticos, como a liberalização e a desregulamentação. Todo um conjunto de facto­res favoráveis à formação de um campo económico mundial, nomeada­mente no domínio financeiro (em que os meios de comunicação informáticos tendem a fazer desaparecer as dis tâncias temporais que separam os diversos mercados nacionais).

O duplo sentido da "glohalização"

Impõe-se regressar ao termo globalização (ou, em francês, mun­dialização): vimos que, em sentido restrito, poderia designar a uni­ficação do campo económico mundial ou o alargamento deste campo à escala do mundo. Mas ele é também interpretado de outra forma, passando-se subrepticiamente de um sentido descritivo do conceito, como acabei de formular, para um sentido norma­tivo ou, melhor dizendo, performat ivo: a globaliazação passa assim a designar uma política económica que tem como objectivo unificar o campo económico através de todo um conjunto de medidas jurí­dico-políticas destinadas a derrubar todas as barreiras a esta unifi-

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cação, todos os obstáculos, na sua maioria ligados ao Estado-nação, a este alargamento. O que corresponde exactamente à política neo­liberal, inseparável de uma verdadeira propaganda económica que lhe confere uma parte da sua força simbólica, jogando com a ambi­guidade do conceito.

A globalização económica não é uma consequência automática das leis da tecnologia ou da economia, mas o produto de uma política levada a cabo por um conjunto de agentes e de institui­ções e o resultado da aplicação de regras deliberadamente criadas com fins específicos, concretamente a liberalização do comércio (trade liberalization), ou seja, a eliminação de todas as regulamenta­ções nacionais que criam obstáculos às empresas e aos seus inves­t imentos. Por outras palavras, o "mercado mundial" é uma cria­ção política (como o t inha sido o mercado nacional), o produto de uma política estabelecida de forma mais ou menos consciente. E esta política, tal como, num plano diferente, a que tinha levado ao nascimento dos mercados nacionais, tem como efeito (e talvez também como fim, pelo menos entre os mais lúcidos e mais cíni­cos defensores do neoliberalismo), criar as cond ições de domínio, confrontando brutalmente os agentes e empresas, até então encer­rados nos limites nacionais, com a concorrência de forças pro­dutivas e modos de produção mais eficazes e poderosos. Assim, nas economias emergentes, o desaparecimento de barreiras protec­toras condena à ruína as empresas nacionais e, para países como a Coreia do Sul, Tailândia, Indonésia ou Brasil, a supressão de todos os obstáculos ao investimento estrangeiro leva ao afunda­mento das empresas locais, adquiridas, por vezes a preços irr isó­rios, pelas multinacionais. Para estes países, os mercados públicos são a única forma que resta às empresas locais de competir com as grandes empresas do norte. Apresentadas como necessárias para a criação de um "campo de acção global", as d irectivas da OMC sobre as políticas de concorrência e o mercado público têm como efeito, ao estabelecer uma concorrência "em igualdade de circuns­tâncias" entre as grandes multinacionais e os pequenos produtores nacionais, o desaparecimento em massa destes últ imos. É sabido que, de uma forma geral, a igualdade formal na desigualqade real é favorável aos mais poderosos.

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A palavra globalização não passa, como se vê, de um pseudo-con­

ceito simultaneamente descritivo e prescritivo que tomou o lugar da pala­vra "modernização", há muito utilizada pelas ciências sociais ame­ricanas como uma forma eufemística de impor um modelo de evolução ingenuamente etnocêntrico que permite a classificação das diferentes sociedades de acordo com as distâncias relativall?-ente à sociedade economicamente mais avançada, ou seja, a sociedade americana, considerada como o culminar e o objectivo de toda a história humana (é o caso, por exemplo, quando se toma como critério de desenvolvimento uma das características, aparentemente neutra e indiscutível, desta sociedade, como o consumo de ener­gia por habitante, segundo o modelo criticado por Lévi-Strauss em Raça e história). Esta palavra (e o modelo que traduz) encarna a forma mais acabada de o imperialismo do universal, que consiste, para uma dada sociedade, em universalizar a sua própria particu­laridade apresentando-a tacitamente como modelo universal (como o fez durante muito tempo a sociedade francesa, enquanto suposta encarnação dos direitos do homem e da herança da Revolução Francesa, apresentada, nomeadamente através da tradição marxista, como modelo de toda e qualquer revolução).

Assim, com esta palavra, é o processo de unificação do campo mundial da economia e da finança, ou seja, a integração de uni­versos económicos nacionais até então fechados e doravante organi­zados segundo o modelo de uma economia enraizada nas part icula­ridades históricas de uma tradição social particular, a da sociedade americana, que se assume simultaneamente como destino inevitá­vel e projecto político de libertação universal, numa perspectiva de evolução natural, e como ideal cívico e ético que, em nome da suposta ligação entre democracia e mercado, promete uma emanci­pação política aos povos de todos os países. A forma mais acabada deste capitalismo utópico é, sem dúvida, o mito da "democracia dos accionistas", ou seja, de um universo de assalariados que, pagos em accões, se tornariam colectivamente "proprietários das suas empre­sa;", concretizando a perfeita associação ~ntre capital e trabalho: e o etnocentrismo triunfante das teorias da "modernização" atinge alturas sublimes com os mais inspirados profetas da nova religião económica que vêem nos Estados Unidos a nova pátria do "sacia-

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lismo concretizado" (registe-se de passagem que uma certa loucura científica que se afirma actualmente das bandas de Chicago não fica nada a dever aos delírios mais exaltados do "socialismo cien­tífico" que se desenvolveu, noutros tempos e noutros lugares, com os resu ltados que se sabe).

Impõe-se parar um momento para demonstrar, antes do mais, que aqu ilo que é universalmente apresentado e imposto como a norma de qualquer prática económica racional não passa na rea­lidade de uma universalização das características particulares de uma economia que emergiu no quadro de uma história e de uma estrutura social particular, a dos Estados U nidos'; e que, ao mesmo tempo, os Estados Unidos são, por definição, a concreti­zação de um ideal polít ico e económico que, no essencial, resulta da idealização do seu próprio modelo económico e social, caracte­rizado nomeadamente por um Estado fraco. Mas importa também demonstrar, em segundo lugar, que os Estados Unidos ocupam no campo económico mundial uma posição dominante que devem ao facto de acumular um excepcional conjunto de vantagens competi­tivas: vantagens financeiras, com a posição excepcional do dólar que lhes permite drenar de todo o mundo (ou seja, de países com fo·r­tes reservas como o Japão, mas também de oligarquias de países pobres ou de redes mundiais de tráfico) os capitais necessários para financiar o seu enorme défice e compensar uma taxa de poupança e de investimento muito baixa e que lhes permite concretizar a sua política monetária sem se preocuparem com as repercussões nos outros países, em particular os mais pobres, que estão objec­tivamente dependentes das decisões económicas americanas e que têm contribuído para o crescimento americano, não apen~s mercê dos baixos custos em divisas do seu trabalho e dos seus produtos - nomeadamente as matérias-primas -, mas também dos adianta­mentos que lhes foram impostos e de que beneficiaram os bancos e a Bolsa americanos; vantagens económicas, com a força e a compe­titividade do sector dos bens de capital e de investimento, e em

1 Ver mais adiante "A imposição do modelo americano e as suas conse­quências".

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particular da micro-electrónica industrial, ou o papel da banca no financiamento privado dá inovação; vantagens políticas e militares, com o seu peso diplomático que lhes permite impor normas económi­cas e comerciais favoráveis aos seus interesses; vantagens culturais e

linguísticas, com a excepcional qualidade do sistema público e pri­vado de investigação científica (mensurável pelo número de prémios Nobel), o poder dos lawyers é das grandes law firms e, finalmente, a universalidade na prática do inglês que domina as telecomunica­ções e toda a produção cultural comercial; vantagens simbólicas, com a imposição de um estilo de vida quase universalmente reconhe­cido, pelo menos pelos adolescentes, nomeadamente através da pro­dução e divulgação de representações do mundo, nomeadamente cinematográficas, a que está associada uma imagem de moderni­dade. (Anote-se de passagem que a superioridade da economia ame­ricana - que, aliás, se afasta cada vez mais do modelo da concor­'rência perfeita em nome da qual se tenta impô-lo - tem a ver com

efeitos estruturais e não com a particular eficácia de uma política económica -,

mesmo que não seja considerado o efeito da intensificação do tra­balho e do alongamento da jornada de trabalho a par dos salários muito baixos para os menos qualificados e ainda o papel de uma nova economia com uma dominante técnico-científica).

Uma das manifestações mais indiscutíveis das relações de força que se estabelecem no seio do campo económico mundial é sem dúvida a assimetria e a lógica do double standard (dois pesos, duas medidas) que leva por exemplo a que os mais poderosos, e em particular os Estados Unidos, possam recorrer ao proteccionismo e aos subsídios que interditam aos países em vias de desenvolvi­mento (impedidos, por exemplo, de limitar as importações de um produto, com graves prejuízos para a sua indústria, ou de impor normas aos investimentos estrangeiros). E é preciso muito boa von­tade para acreditar que a preocupação pelos direitos sociais nos países do Sul (ou, por exemplo, a proibição do trabalho infantil) não tem a ver com qualquer forma de proteccionismo, quando se sabe que é prática corrente em países que, como os Estados Unidos, estão envolvidos em processos de desregulamentação, de flexibilização, de limitação dos salários e dos direitos sindicais. E a política de globatização é ela própria, sem dúvida, a melhor ilus-

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tração desta assimetria, na medida em que visa estender a todo o mundo, mas sem reciprocidade, em sentido único (ou seja, asso­ciada ao isolacionismo e ao particularismo), o modelo mais favo­rável aos poderosos.

A unificação do campo económico mundial pela imposição do reinado absoluto da livre-troca, da livre circulação do capital e do crescimento orientado para a exportação, apresenta a mesma ambi­guidade que a integração do campo económico nacional noutros tempos: sob a aparência de um universalismo sem limites, uma espé­cie de ecumenismo que encontra a sua justificação na difusão uni­versal dos estilos de vida cheap da "civilizacão" do McDonald ·s dos ' , jeans e da Coca-Cola, ou na "homogeneização jurídica", muitas vezes considerada como um índice de "globalização positivo", este "projecto de sociedade" serve os poderosos, ou seja, os grandes investidores que, situando-se embora acima dos Estados, podem contar com os grandes Estados, e em particular com o mais poderoso de entre eles, política e militarmente, os Estados Unidos, e com as gran­des instituições internacionais, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, que controlam, para assegurar as condicões favoráveis à conducão das suas activida­des económicas. O efeit~ de dominação ligado à int~gração na desigualdade

está bem patente no destino do Canadá (que bem poderá ser o da Europa se esta se orientar para uma espécie de união aduaneira com os Estados Unidos): como resultado do baixar das formas tra­dicionais de protecção, que o deixaram indefeso, nomeadamente em matéria de cultura, este país está em vias de sofrer uma verdadeira assimilação económica e cultural à potência americana.

Tal como nos antigos Estados nacionais, as forcas económicas dominantes estão com efeito em condições de colo~ar ao seu ser­viço o direito (internacional) e os grandes organismos internacio­nais, nas mãos dos lobbies. Estes esforçam-se por encobrir com jus­tificações jurídicas os interesses económicos das empresas ou das nações (por exemplo, garantindo aos investidores industriais o máximo de garantias e de direitos); e consagram grande parte da sua energia intelectual para revogar ·as legislações nacionais, como é o caso das leis e regulamentações que garantem a protecção dos consumidores. As instâncias internacionais, sem preench •r todas

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as funções normalmente atribuídas aos Estados nacionais (como as relativas à protecção social), governam de forma invisível os gover­nos nacionais que, cada vez mais reduzidos à gestão de questões secundárias, não passam de um ecrã de ilu são política destinado a ocultar os verdadeiros locais de decisão. Elas vêm reforçar no plano simbólico a acção quase automática da competição económica que impõe aos Estados nacionais que joguem o jogo da concorrência no terreno fiscal (concedendo isenções) ou vantagens competitivas (oferecendo infra-estruturas gratuitas).

O estado do campo económico mundial

O campo mundial apresenta-se como um conjunto de subcam­pos mundiais em que cada um corresponde a uma industry enten­dida como um conjunto de empresas em concorrência pela produ­ção e comercialização de uma categoria homogénea de produtos. A estrutura, quase sempre oligopolistica, de cada um destes subcam­pos, corresponde à estrutura da distribuição do capital (nas suas diferentes formas) entre as diferentes empresas capazes de adqui­rir e conservar um estatuto de concorrente eficaz a nível mundial, dependendo a posição de uma empresa em cada pais da sua posi­ção em todos os outros países. O campo mundial está fortemente polarizado. As economias nacionais dominantes tendem, pelo sim­ples facto do seu peso na estrutura (que funciona como barreira à entrada), a concentrar os activos das empresas e a apropriar-se dos respectivos lucros, assim como a orientar as tendências inerentes ao funcionamento do campo. A posição de cada empresa no campo nacional e internacional depende, na verdade, não apenas das van­tagens próprias, mas também das vantagens económicas, políticas, cultura is e linguísticas que decorrem da sua pertença nacional, esta espécie de "capital nacional" que exerce um efeito multiplica­dor, positivo ou negativo, sobre a competitividade estrutural das diferentes empresas. Estes diferentes campos estão hoje estrutural­mente submetidos ao campo financeiro mundial. Este campo foi radicalmente liberto (através de medidas como, em França, a lei da desregulamentação financeira de 1985-86) de todas as regula-

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mentações que, com quase dois séculos, tinham sido particular­mente reforçadas após as grandes séries de falências bancárias dos anos 30. Tendo assim alcançado uma autonomia e uma integra­ção quase totais, tornou-se um dos locais de valorização do capi­tal. O dinheiro concentrado pelos grandes investidores (fundos de pensões, companhias de seguros, fundos de investimento) torna-se uma força autónoma, controlada exclusivamente pelos banqueiros, que apostam cada vez mais na especulação, nas operações finan­ceiras com objectivos exclusivamente financeiros, em detrimento do investimento produtivo. A economia internacional da especulação encontra-se assim liberta do controlo das instituições internacionais que, como os bancos centrais, regulamentavam as operações finan­ceiras, e as taxas de lucro a longo prazo tendem doravante a ser definidas, não mais por instâncias nacionais, mas por um redu­zido número de operadores internacionais que lideram as tendên­cias dos mercados financeiros.

A concentração do capital financeiro nos fundos de pensão e nos fundos mutualistas que atraem e gerem as poupanças colecti­vas, permite aos gestores internacionais desta poupança impor às empresas, em nome dos interesses dos accionistas, exigências de rentabilidade financeira que paulatinamente vão orientando as suas estratégias. Isto limitando nomeadamente as suas possibilidades de diversificação e impondo-lhes decisões de downsizing, a redução dos custos e dos efectivos, ou fusões-aquisições que fazem recair todos os riscos sobre os assalariados, por vezes ficticiamente asso­ciados aos lucros, pelo menos no que respeita aos mais bem colo­cados, através de pagamentos em acções. A liberdade acrescida de mobilizar e sobretudo, talvez, de resgatar capitais, de os investir ou desinvestir, tendo em vista a melhor rentabilidade financeira, favorece a mobilidade dos capitais e uma deslocalização generali­zada das empresas industriais ou bancárias. O investimento directo no estrangeiro permite explorar as diferenças entre as nações e as regiões em matéria de capital mas também de custo da mão de obra, e ainda procurar a proximidade do mercado mais favorável. Tal como as nações emergentes transformavam os feudos autóno­mos em províncias subordinadas ao poder central, assim as "fir­mas em rede" encontram num mercado simultaneamente ·interno

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e internacional um meio de " internalizar" as transações, como diz Williamson, quer dizer, organizá-las no interior das unidades de produção integrando as firmas absorvidas e assim reduzidas ao estatuto de "filiais" de uma "casa mãe"; enquanto outros procuram com a sub-contratação uma outra maneira de estabelecer relações de subordinação no quadro de uma relativa independência.

Assim, a integração no campo económico mundial tende a enfra­quecer todos os poderes regionais ou nacionais e o cosmopolitismo que arvora, ao desacreditar todos os outros modelos de desenvolvi­mento, nomeadamente nacionais, automaticamente condenados como nacionalistas, deixa os cidadãos impotentes face às potências trans­nacionais da economia e da finança. As políticas ditas de "ajusta­mento estrutural", visam garantir a integração, na subordinação, das economias dominadas; isto reduzindo o papel de todos os mecanis­mos ditos "artificiais" e "arbitrários" de regulação polít ica da econo­mia associados ao Estado social, a única instância capaz de se opôr às empresas transnacionais e às instituições financeiras internacio­nais, em benefício do mercado dito livre, através de um conjunto de m.edidas convergentes de desregulamentação e de privatização, como a abolição de todas as medidas de protecção do mercado nacional e o afrouxamento dos controles impostos aos investimentos estran­geiros (em nome do princípio darwiniano que a exposição à con­corrência tornará as empresas mais eficazes). Desta forma, tendem a garantir uma liberdade praticamente total ao capital concentrado e a abrir portas às grandes empresas multinacionais que inspiram de forma mais ou menos directa estas políticas. (Inversamente, con­tribuem para neutralizar as tentativas das nações ditas "emergentes", ou seja, capazes de opôr uma concorrência eficaz, de se apoiarem no Estado nacional para construir uma infra-estrutura económica ou criar um mercado nacional, protegendo as produções nacionais e encorajando uma procura real ligada ao acesso dos camponeses e dos operários ao consumo através do aumento de poder de com­pra, estimulada, por exemplo, por decisões a nível estatal como uma reforma agrária ou a imposição de urn imposto progressivo).

As relações de forças de que estas polít icas são uma expres­são vagamente eufemística e que tendem cada vez mais a redu­zir as nações mais desfavorecidas a uma economia baseada quase

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exclusivamente na exploração extensiva ou intensiva dos recursos naturais, manifestam-se também na assimetria do tratamento con­cedido pelas instâncias mundiais às diferentes nações, de acordo com a posição que ocupam na estrutura da distribuição do capital: o exemplo mais típico é sem dúvida o facto de os pedidos diri­gidos pelo FMI aos Estados Unidos no sentido de reduzirem um défice persistente, terem ficado muito tempo sem efeito, enquanto a mesma instância impôs a inúmeras economias africanas, já clara­mente periclitantes, uma redução do seu défice que mais não fez do que aumentar o desemprego e a miséria. E sabe-se aliás que os mesmos Estados Unidos que pregam ao mundo inteiro a aber­tura das fronteiras e o desmantelamento do Estado, praticam for­mas mais ou menos subtis de proteccionismo, através da limitação às importações pela imposição de quotas, restrições voluntárias das exportações, a imposição de normas de qualidade ou de segurança e reavaliações monetárias forçadas, sem falar de certas virtuosas exortações ao respeito universal pelo direito social; ou ainda sujei­tam-se a formas de apoio estatal, através, por exemplo, dos cha­mados "oligopólios mistos", baseados em intervenções do Estado visando garantir a partilha dos mercados através de acordos de res­trição voluntária da exportação, ou pela fixação de quotas de pro­dução nas filiais estrangeiras.

Esta unificação, ao invés da outrora realizada na Europa, à escala do Estado nacional, é feita sem Estado - contra o desejo de Keynes de se criar um banco central mundial a produzir uma moeda de reserva neutra capaz de garantir trocas iguais entre todos os países - e ao serviço exclusivo dos interesses dominantes que, diferentemente dos juristas ligados às origens do Estado euro­peu, não têm qualquer necessidade de dar uma aparência de uni­versalidade a uma política moldada segundo os seus interesses. É a lógica do campo, e a força inerente à concentração do capital, que impõem as relações de força favoráveis aos interesses domi­nantes. Estes dispõem dos meios para transformar estas relações de força em regras do jogo aparentemente universais através das intervenções supostamente neutras das · grandes instâncias interna­cionais (FMI, OMC) que dominam, ou a coberto de representações da economia e da política que estão em condições de inspirar e

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de impor e que tiveram a sua mais acabada expressão no projecto AMI (Acordo Multilateral de Investimento): esta espécie de uto­pia de um mundo livre de quaisquer barreiras estatais e entregue ao arbítrio exclusivo dos investidores permite termos uma ideia do mundo realmente "mundializado" que a internacional conservadora dos dirigentes e dos quadros das multinacionais industriais e finan­ceiras de todas as nações· visa impor, apoiando-se no poder polí­tico, diplomático e militar de um Estado imperial progressivamente reduzido às funções de manutenção da ordem a nível interno e externo2

• Não faz assim sent ido esperar que esta unificação garan­tida pela "harmonização" das legislações conduza pela força da sua lógica a uma verdadeira universalização, assumida por um Estado universal. Mas não será irrealista esperar que as consequências da política de uma pequena oligarquia exclusivamente virada para os seus interesses económicos de curto prazo, criem as condições para a emergência progressiva de forças políticas, também elas mundiais, capazes de impor pouco a pouco a criação de instâncias transna­cionais que tenham como função controlar as forças económicas dominantes e subordiná-las a objectivos realmente universais.

2 Cf. François C hesnais, La mondialisation du capital, Paris, Syros, 1994 e M. Freitag e E. Pineault (sob a direcção de), Le Monde enchainé, Montreal, Edic­ções Nota Bene, 1999.

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Índices

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AS ESTRUTURAS SOCIAIS DA E CO N OM I A

Índice onomástico·

Aliais, M. 22 Augé, M. 43

Bain, ]. 272 Balland, G. 48, 55 Ballester, G. 55 Becker, G. 14, 15, 20, 269, 287. 288, 292, 297. 307 Bergson, H. 13 Berniard, S. 47, 56, Boltanski, L 164 Bonvalet, C. 47, 57, 64 Bouhedja, S. 13, 37 , 201 Bourgois, P. 281 Bringué, A. 47

Campbell, ]. 280 Cassirer, E. 29, 44 Chamboredon, ].-C. 13 Chandler, A. D. 275, 277 Chesnais, R. 322 Christin, R. 13, 37, 125 Claverie, A. 39 Clergue, L 44 Coase, R. H. 268 Coleman, ]. 14, 297 Crétin, L. 39, 46 Culturello, P. 58

D arbel. A. 17, 57 Dauber, K. 283 Duesenberry, J. S. 290 Durif, P. 47, 55, 56, 133, 136, 148, 149, 157. 163 Durkheim, É. 250, 288, 305, 306

Eenschooten, M. 64 Elster, ]. 297

Fligstein, N. 280, 283

Gadamer, H.-G. 178 Givry, C. 13, 37, 201 Granelle, ].-]. 68 Granovetter, M. 270, 271 Grémion, P. 188 Guibert, B. 163

H albwachs, M. 288 Hamilton, W, H. 264 Hart, O. 220 Hegel, G.W.F. 22 Holmstrom, B. 220 Husserl, E. 173

Jevons, S. 290

· Este índice e o índice temático foram realizados por Franck Poup '<lu .

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Kahneman, D. 270, 293 Keynes, J. M. 265, 294, 321 Kirman, A. 296, 297 Kotler, P. 274 Kregel, J. A. 267

L'Hardy, P. 39, 46 Lamaison, P. 39 Lebart, L. 167 Le Roux, B. Lévi-Strauss, C. 39, 40, 314 Levine, L. 292 Lewin, M. 176

Madelin, P. 68, 101 Markowitz, L. 283 Marshall,A. 290, 308 Martinet, A. 4 3 Marx, K. 22 Mason, E. 272, 273 Mauss, M. 13, 288 Minth, B. 266 Mintz, S. 292 Morineau, A. 167 Mounin, G. 43

P anofsky, E. 93 Pareto, V. 288 Passeron, J.-C. 14, 288 Pelege, M. 68 Polanyi, K. 13, 307, 311

Reddy, W. 18 Reynaud, B. 177 Riandey, B. 47 Ross, D. 27 Rouanet, H. 142 Russell, B. 9

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Saint-Martin, M. de, 13, 37 Sayad, A. 17 Schumpeter, J. 288 Schwartz, M. 266 Simmel, G. 280, 286 Simon, H. 14, 157, 169, 290, 294 Smith, A. 27 5 Smith, C. 281 Strauss, A. 271

Tabard, N. 47, 56, 58, 64, 167 Taffin, C. 46 Tirole, J. 269, 272, 308 Tool, M. R. 264 Topalov, C. 61, 65 Touchard, L. 48, 55 Tversky, A. 270, 293

Veblen, T. 265, 290, 306 Villac, M. 48, 55

Wacquant, L. 27, 281 Weber, M. 22, 27, 129, 174, 180 274 284, 288 White, H. 284, 285, 286 Williamson. 320 Wrong, D. 271

Índice temático

acção racional 274, 292, 297 agente eficiente 278 agente representativo 296 aluguer 34, 86, 116, 141, 224, 292 amnésia da génese 19 antecipação do futuro 295 antecipações 19, 23, 206, 219, 294, 294, 295 antecipações razoáveis 219, 295 a oferta e a procura 42 arquitectos 69, 83, 97, 125, 139, 165, 174, 183, 184, 185, 187, 191, 191, 192, 194, 197, 199 assalariado burguês 206

banca 265, 250, 316, 13, 149, 164, 202, 206, 207, 208, 209, 213, 214, 216, 217, 218, 219, 220, 219 barreiras à entrada 277 Bouygues 71, 76, 78, 79, 82, 83, 87, 88, 89, 257, 251, 89, 97, 101, 102, 104, 106, 123, 202, 204, 212 burocracia 24, 133, 142, 146, 157, 158, 160, 161, 162, 172, 177, 180, 181, 188, 209

cálculo racional 23, 284, 295 campo 269, 270, 271, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279, 280, 281, 282, 268, 267, 266, 264, 263,

282, 283, 284, 286, 291, 293, 297, 299, 300, 301, 312, 313, 314, 315, 316, 317, 318, 320, 321, 312, 311, 312, 123, 108, 107, 106, 104, 103, 130, 129, 128, 75, 123, 143, 142, 137, 134, 155, 152, 151, 148, 162, 160, 233, 230, 188, 181, 177, 147, 146, 145, 144, 165, 164, 103, 4, 14, 19, 20, 22, 23, 24, 28, 29, 34, 35, 37, 42, 50, 60, 63, 65, 66, 67, 70, 72, 84, 87, 88, 91, 96, 97, 100, 103, 269 campo burocrático 29, 134, 137, 143, 143, 148, 155, 160 campo do poder 50, 104, 282, 283, 284, 300, 301 campo económico 312, 315, 316, 317, 318, 320, 311, 312, 19, 22, 23, 297, 311, 297, 286, 273, 271, 270, 267, 263, 24, 28, 29, 263 campo financeiro 318 campo político 60 capital burocrático 158, 300 capital cultural 265, 283, 292, 181, 14, 28, 46, 47, 48, 50, 51, 220, 202, 51, 52, 59, 109, 112, 264 capital económico 28, 46, 47, 48, 50, 51, 53, 59, 109, 112, 116, 206, 217, 220, 292 capital escolar 52, 104 capital humano 14, 1~, 264 capitalismo 20, 27, 314

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capital simbólico 277, 265, 264, 180, 179, 178, 107, 28, 180, 277, 14, 15 capital social 265, 264, 180, 271, 300, 280, 271, 265, 14, 15, 104, 155, 178, 179 capital técnico 52, 101, 107, 115, 116, 265, 283 carisma 178 carreira 24, 53, 112, 155, 159, 183, 205, 206, 219, 250, 300 casa 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 286, 287, 292, 320, 194, 31, 33, 35, 38, 39, 40, 247, 246, 245, 244, 242, 241, 238, 235, 234, 233, 232, 231, 230, 229, 228, 227, 225, 224, 222, 218, 217, 216, 214, 213, 206, 205, 203, 202, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 48, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 59, 63, 64, 65, 67, 68, 70, 73, 77, 78, 79, 82, 83, 84, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 96, 97, 99, 100, 101, 104, 106, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 121, 122, 123, 49, 62, 125, 126, 127, 133, 188, 192, 193, 194, 195, 194, 250 casa individual 133, 42, 55, 56, 64, 68, 70, 78, 79, 82, 83, 88, 97, 99, 104, 109, 121, 122, 123, 126, 127, 188, 127, 253 casa industrial 33, 41, 68, 84 casa prefabricada 55 challengers 276 ciência económica 18, 19, 25, 18, 19, 25, 272, 297, 25, 18, 297, 272 clientes 26, 83, 85, 86, 88, 89, 100, 110, 125, 127, 192, 202, 205,

206, 208, 209, 210, 211, 212, 214, 215, 216, 217, 219, 220, 221, 232, 233, 238, 284, 286 . comissão 131, 135, 136, 143, 146, 148, 148, 160, 162, 173, 189, 302 competição 318, 286, 156, 277, 279, 280, 284, 286 compra 292, 320, 252, 250, 173, 39, 40, 42, 46, 48, 50, 56, 57, 59, 68, 82, 88, 109, 244, 230, 224, 222, 221, 216, 202, 131, 140, 268 conatus 300, 302 concentração do capital 319, 321 concorrência 307, 311, 313, 316, 318, 301, 284, 283, 280, 279, 276, 275, 268, 264, 320, 184, 183, 182, 129, 106, 216, 203, 202, 185, 104, 21, 60, 66, 67, 70, 76, 78, 89, 100, 307 conflito 103, 136, 186, 280, 284, 286 construtores 153, 152, 142, 141, 140, 138, 135, 128, 127, 126, 187, 191, 126, 125, 75, 123, 102, 100, 99, 98, 97, 90, 89, 87, 86, 85, 202, 203, 215, 230, 238, 84, 75, 74, 73, 71, 70, 69, 68, 66, 46, 34, 33, 155, 153 consumidores 297, 296, 294, 317, 41, 98, 129, 264, 281, 285 contrato 17, 29, 127, 173, 206, 207, 208, 210, 212, 214, 216, 221, 221, 221, 230, 240, 250 controle 96, 105, 106, 128, 154, 177, 180, 181, 182, 183, 187, 198, 266, 312 cooptação 156

328

corpo 45, 104, 128, 133, 141, 154, 155, 157, 158, 161, 168, 210 corpos 104, 151, 151, 155, 156, 157, 167, 181, 187 cosmos económico 14, 18, 21, 23, 24 crédito imobiliário 126, 132, 153, 202 crença 19, 24, 26, 265, 306

decisão 290, 293, 294, 297, 300, 318, 179, 15, 234, 230, 222, 214, 208, 207, 35, 74, 103, 104, 158, 269 decisões 287, 282, 287, 294, 315, 31~ 320, 275, 274, 268, 265, 26~ 222, 188, 186, 185, 270, 287, 23, 38, 42, 103, 104, 125, 132, 145, 171, 181, 183 desemprego 26, 163, 223, 240, 321 desinvestimento 127, 146, 151, 153, 218, 221 deslocalização 299, 319 desregulamentação 312, 316, 318, 320 direito 105, 126, 128, 129, 130, 131, 163, 177, 178, 180, 181, 189, 203, 204, 206, 210, 212, 213, 224, 225, 231, 266, 270, 293, 317, 321 disciplina 79, 175, 178 disposição 15, 33, 106, 127, 217, 238 distribuição 272, 267, 265, 266, 267, 275, 276, 278, 282, 283, 284, 292, 300, 302, 318, 321, 154, 35, 66, 74, 90, 129, 137, 142, 153, 154, 274

329

dominantes 318, 317, 322, 321, 286, 282, 278, 277, 276, 267, 266, 186, 97, 101, 136, 147 double bind 217

economia 320, 319, 316, 315, 314, 294, 297, 305, 269, 272, 275, 281, 288, 293, 140, 141, 149, 202, 218, 265, 29, 27, 314, 313, 33, 66, 26, 321, 33, 29, 25, 3, 5, 13, 14, 17, 19, 20, 25, 24, 20, 21, 22, 23 economia da honra e da "boa­-fé" 13, 14 economia doméstica 19, 20 economia industrial 272 economia neoliberal 25 educação 15, 57, 60, 118, 163, 197, 249, 257 eleitos locais 135, 141, 142, 144, 148, 149, 150, 153, 154, 157, 185, 186 empresas 278, 277, 276, 275, 273, 269, 268, 267, 266, 263, 278, 279, 280, 282, 283, 284, 286, 287, 288, 294, 300, 301, 320, 319, 318, 317, 314, 313, 241, 37, 42, 50, 51, 54, 60, 63, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 83, 84, 85, 86, 87, 89, 90, 94, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 107, 123, 257, 62, 75, 127, 128, 139, 155, 185, 187, 203, 215, 216, 222, 278 escola 13, 22, 29, 52, 109, 118, 133, 143, 167, 256 escCJlas 85, 115, 142, 155, 167, 233, 253, 274, 283 escolástica 21, 21

Page 164: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

escolha 252, 273, 288, 252, 250, 288, 294, 296, 297, 273, 288, 294, 296, 297, 222, 50, 246, 238, 223, 222, 216, 55, 88, 109, 50, 55, 88, 109, 178, 182, 178, 182, 216, 246, 238, 223, 250 espaço dos possíveis 266, 273 espaço social 37, 45, 53, 59, 60, 107, 112, 143, 148, 174, 202, 286, 291 espe~anças 19, 204, 218, 249 estado 33, 23, 167, 318, 292, 283, 276, 264, 292, 283, 276, 264, 34, 23, 33, 34, 42, 65, 42, 65, 134, 135, 136, 141, 151, 167, 134, 135, 136, 141, 151, 34 estratégia 39, 79, 82, 88, 98, 99, 162, 175, 204, 211, 300 estrategtas 267, 266, 274, 275, 276, 277, 278, 282, 285, 286, 291, 300, 319, 187, 14, 22, 23, 35, 39, 41, 42, 59, 60, 67, 70, 84, 87, 219, 218, 216, 215, 213, 212, 209, 208, 207, 205, 204, 89, 90, 97, 99, 103, 104, 106, 107, 108, 137, 142, 154, 171, 176, 180, 184, 269 estratégias de reprodução 35, 39, 60 estratégias publicitárias 84, 87, 89 estrutura 28, 34, 35, 37, 46, 48, 50, 55, 58, 59, 66, 70, 72, 74, 75, 76, 90, 91, 93, 101, 103, 104, 105, 106, 107, 113, 123, 128, 137, 142, 143, 172, 176, 178, 188, 197, 203, 219, 223, 224, 263, 264, 266, 267, 268, 269, 270, 27 1, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 280, 282,

283, 284, 285, 286, 290, 292, 293, 294, 297, 301, 302, 315, 318, 320, 321, 321 estrutura do capital 46, 50, 55, 58, 59, 75, 264, 283 estruturalismo 268

fabrico 41, 67, 70, 75, 76, 77, 78, 83, 84, 89, 90, 93, 97, 234, 246, 265 família 13, 15, 20, 28, 35, 38, 39, 40, 41, 45, 46, 49, 50, 53, 56, 57, 58, 72, 82, 93, 96, 115, 116, 118, 139, 142, 153, 156, 163, 177, 206, 212, 232, 238, 244, 288, 296, 306 favor 41, 98, 151, 152, 161, 178, 180, 213, 214, 240, 277, 280 fi rmas 73, 280, 285, 319, 320 fronteiras , 312, 321, 157, 279 função pública 51, 53, 129, 142, 143, 149, 152, 161 funcionários superiores 134, 137, 142, 143, 149, 150 futuro , 18, 39, 40, 50, 92, 104, 118, 119, 156, 219, 267, 288, 291, 295, 299, 302

génese 19, 34, 45, 103, 128, 291, 292 gosto 55, 107, 113, 223, 252, 292 grandes escolas 283

habitação 26, 33, 34, 35, 38, 39, 41, 67, 68, 69, 96, 97, 111, 113, 116, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 144, 145,

330

146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 154, 158, 159, 161, 162, 163, 164, 165, 171, 173, 174, 186, 187, 188, 195, 196, 202, 203, 204, 222, 224, 234, 250, 253, 280, 281 habitus 295, 294, 295, 296, 297, 300, 295, 296, 14, 108, 128, 134, 160, 294, 293, 292, 291, 290, 289, 271, 179, 177, 176 herança 46, 40, 38, 60, 314, 57, 50 histerese 295 holismo 268, 271, 289 homo economicus 287 homologia 107

iltusio 24 ilusão 18, 21, 250, 18, 87, 318, 250, 296, 87, 21 individualismo metodológico 271, 288, 297 indústria 50, 61, 65, 66, 67, 78, 93, 109, 152, 257, 264, 275, 279, 316 inércia 302, 306, 101, 142, 148, 154, 159, 167, 176, 264, 302, 293 informação 100, 141, 158, 167, 186, 198, 207, 212, 213, 214, 215, 217, 220, 224, 226, 237, 241, 242, 264, 265, 267, 274, 285, 294, 299, 300, 301, 307, 308 integração 39, 266, 272, 283, 288, 311, 312, 314, 317, 319, 320, 320 interacção 286, 201, 285, 271, 266, 264, 224, 201, 202, 212, 223 interesse geral 26, 144, 148, 172, 174

331

investimento 272, 269, 300, 301, 313, 315, 301, 300, 273, 272, 269, 315, 319, 131, 13, 16, 17, 23, 24, 29, 13, 16, 17, 23, 24, 29, 38, 39, 40, 50, 67, 72, 96, 117, 38, 39, 40, 50, 67, 72, 96, 117, 131, 273

jurídico 71, 75, 138, 212, 217, 264, 312

leis 19, 21, 24, 26, 28, 34, 66, 128, 148, 161, 165, 189, 305, 313, 317 liberalismo 60, 135, 153, 163, 164, 165, 250, 290 liberdade 112, 162, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 181, 186, 203, 218, 223, 249, 268, 269, 274, 293, 308, 319, 320 linguagem 211, 210, 270, 273, 210, 209, 197, 43, 25, 15 linguagem técnica 197, 210, 211 local 253, 254, 255, 241, 235, 231, 225, 224, 222, 253, 254, 255, 306, 308, 306, 308, 168, 18, 64, 65, 66, 67, 70, 72, 74, 241, 235, 231, 225, 224, 222, 84, 86, 90, 96, 101, 111, 112, 113, 118, 123, 75, 64, 65, 66, 67, 70, 72, 74, 84, 86, 90, 96, 101, 194, 189, 188, 185, 184, 172, 171, 111, 112, 113, 118, 123, 75, 126, 129, 134, 140, 141, 157, 158, 167, 168, 126, 129, 134, 140, 141, 157, 158, 167, 194, 189, 188, 185, 184, 172, 171, 167, 168, 253 locatário 224 luto 218, 222

Page 165: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

management 274 margem de liberdade 175, 177, 218 mercado 272, 268, 266, 263, 275, 276, 278, 280, 281, 282, 284, 285, 287, 288, 300, 305, 307, 308, 320, 319, 314, 313, 319, 222, 13, 14, 17, 24, 26, 28, 31, 33, 34, 42, 63, 66, 68, 69, 70, 74, 76, 77, 78, 256, 79, 82, 83, 97, 99, 101, 102, 104, 105, 109, 123, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 132, 133, 137, 140, 141, 154, 155, 165, 188, 192, 206, 275 modelo 270, 287, 296, 305, 307, 308, 314, 315, 316, 317, 188, 14, 19, 20, 22, 26, 38, 40, 53, 72, 84, 86, 90, 106, no, 132, 133, 142, 160, 184, 238, 229, 227, 210, 269 modelo económico 22, 315 monopólio 28, 105, 129, 139, 144, 145, 148, 172, 174, 174, 180, 182, 189, 192, 275, 301 movimento dos HLM 134, 135, 136, 141, 161, 162

neoliberalismo 313 nicho 285 no futuro 92 nomos 19 normas 316, 321, 173, 189, 173, 246, 212, 266, 267, 271, 67, 125, 161 notáveis 180, 188, 189, 296

oferta 33, 34, 42, 47, 65, 99, 107, 123, 280, 281 opinião mobilizada 130 oportunidades 19, 26, 48, 90, 103, 265, 269, 270, 284

ordem 250, 254, 256, 307, 297, 292, 289, 288, 280, 277, 269, 193, 13, 26, 27, 34, 44, 65, 74, 97, 102, 111, 206, 126, 164, 167, 178, 188, 322

pequena burguesia 177, 181, 257 personalização 99, 100, 152, 205, 220 poder 14, 17, 18, 21, 24, 26, 28, 37, 43, 44, 50, 67, 88, 101, 103, 104, 112, 119, 129, 138, 155, 156, 159, 164, 171, 175, 178, 179, 180, 182, 183, 184, 186, 188, 189, 195, 196, 202, 213, 214, 217, 245, 252, 265, 266, 267, 268, 271, 278, 280, 282, 283, 284, 300, 301, 31l, 316, 319, 320, 322 posição 274, 271, 269, 266, 276, 277, 278, 282, 283, 284, 285, 286, 290, 291, 292, 295, 299, 300, 315, 318, 321, 197, 23, 33, 34, 45, 46, 50, 55, 60, 66, 79, 84, 88, 100, 103, 104, 107, 108, 133, 134, 135, 137, 226, 221, 216, 213, 207, 144, 151, 152, 153, 154, 156, 160, 164, 171, 174, 175, 176, 177, 179, 181, 183, 184, 186, 187, 274 posSLVets 267, 268, 273, 278, 279, 295, 300, 286, 300, 34, 42, 179, 266, 253, 219, 180, 181, 186, 188, 209, 213 preço 16, 21, 68, 89, 102, 111, 113, 117, 176, 206, 223, 224, 227, 228, 229, 235, 237, 243, 245, 247, 249, 251, 268, 272, 275, 297 precocidade 155, 156, 157 preconceito anti-genético 18

332

preferências 288, 270, 269, 268, 297, 292, 268, 269, 270, 288, 290, 291, 292, 291, 292, 297, 268, 269, 270, 288, 290, 291, 292, 297, 307, 125, 213, 125, 213, 125, 46, 23, 42, 45, 46, 42, 45, 46, 42, 45, 290 processos de fabrico 84, 97 procura 276, 281, 285, 286, 290, 294, 296, 320, 241, 34, 42, 70, 83, 84, 97, 100, 101, 102, 107, 117, 125, 211, 224, 225, 230, 235, 280 propriedade 156, 153, 152, 140, 137, 128, 127, 126, 62, 113, 112, 86, 64, 63, 61, 60, 59, 58, 57, 56, 250, 256, 52, 51, 48, 46, 41, 37, 34, 165, 290, 280, 164 proprietário 37, 38, 48, 51, 52, 58, 60, 63, 76, 88, 89, 224 publicidade , 34, 42, 75, 78, 79, 82, 83, 85, 86, 251, 86, 87, 90, 93, 96, 99, 106, 107, 108, 125, 216, 232

ramo 66, 93, 106, 264 razoável 15, 221 reformadores 130, 132, 133, 134, 135, 146, 149, 150, 152, 155, 156, 157, 159, 160, 160 regulamentação 33, 128, 129, 131, 141, 173, 193, 280 regulamento 173, 174, 175, 176, 177, 179, 180, 182, 212 representação 18, 40, 45, 55, 60, 68, 136, 188, 189, 269, 270, 274, 279, 297 reprodução 288, 289, 267, 288, 289, 60, 24, 29, 35, 24, 29, 35,

333

39, 40, 41, 50, 53, 60, 39, 40, 41, 50, 53, 267

sector 273, 286, 300, 301, 302, 315, 192, 26, 47, 50, 51, 53, 54, 57, 59, 61, 66, 68, 72, 75, 82, 85, 88, 105, 112, 114, 49, 62, 75, 126, 127, 140, 247, 242, 241, 240, 222, 206, 140, 141, 143, 146, 148, 149, 150, 151, 153, 162, 168, 185, 264 sociahsmo 290, 314, 315, 250, 34, 163, 164

tempo 20, 37, 38, 40, 43, 45, 55, 58, 63, 64, 66, 69, 73, 76, 89, 101, 103, 105, 110, l17, l18, 136, 137, 158, 183, 189, 194, 197, 203, 204, 205, 206, 210, 214, 222, 223, 226, 229, 230, 232, 233, 234, 235, 238, 245, 247, 256, 264, 265, 277, 278, 283, 287, 291, 292, 293, 297, 312, 314, 315, 321 teoria da acção racional 292, 297 teoria dos jogos 22, 270, 273, 295, 305 teoria económica 17, 18, 21, 25, 26, 33, 290, 305, 306 territorial 171, 182, 183, 184, 186 tomada de posição 55 trabalho 251, 253, 256, 268, 281, 299, 302, 312, 314, 315, 316, 311, 312, 198, 16, 17, 19, 20, 24, 25, 246, 244, 243, 234, 224, 223, 222, 221, 218, 216, 207, 203, 29, 34, 35, 38, 39, 40, 44, 47, 63, 64, 65, 67, 73, 74, 87, 100, 109, 117, 119, 128, 129, 131, 135, 136,

Page 166: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

147, 148, 150, 157, 158, 161, 162, 163, 178, 181, 189, 192, 195, 196, 197, 198, 249 trabalho de luto 218, 222 trabalho de universalização 148 troca 308, 317, 288, 286, 274, 280, 284, 285, 307, 17, 18, 20, 273, 224, 223, 203, 202, 179, 180, 184, 189, 201

unificação 28, 305, 311, 311, 312, 314, 317, 321, 322 universal 290, 314, 317, 321, 322, 288, 17, 18, 19, 20, 23, 26, 28, 171, 288, 174, 173, 172 universalização 315, 322, 26, 148, 161 utente 173, 179, 185, 189, 211, 212, 213

valor 24, 38, 65, 68, 106, 163, 164, 179, 201, 206, 208, 247 vendedor 203, 204, 205, 206, 211, 212, 213, 214, 216, 217, 218, 221, 223, 224, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 239, 203, 202, 201, 239, 240, 246, 247, 250, 273, 112, 85, 100, 108, 203 violência 28, 129, 172, 174, 189, 249 violência simbólica 172, 174, 249 volume do capital 48

334

Índice dos documentos e quadros

Documentos

Maison Bouygues: uma marca que se impõe Maison Dégut Maisons Houot Maisons de l'Avenir Sergeco Maisons Sprint

Quadros e diagramas

A taxa de proprietários e de arrendatários de uma casa

80-81 91 92

94 95 95

ou de um apartamento 49 O modo de construção da casa 54 Os "primeiros proprietários" de casas em 1984 60-61 Modo de acesso à propriedade de uma casa ou de um apartamento 62 O campo dos construtores de casas individuais 75 Proprietários e locatários de casas e de apartamentos 120 Divisão por categoria socioprofissional Divisão por diploma 121 Divisão por rendimento 121 O campo dos agentes eficazes na área do financiamento da habitação em 1975 144-147

335

Page 167: Pierre Bourdieu - As Estruturas Sociais Da Economia

Índice

Introdução

O mercado da casa

1. D isposições dos agentes e estrutura do campo de produção Anexos

1. Entrevistas 2. Quadros estatísticos 3. A Feira da Casa Individual

2. O Estado e a construção do mercado Anexos

1. Análise das correspondências múltiplas 2. Fontes

3. O campo dos poderes locais Anexo

Entrevistas

4. Um contrato sob pressão Anexos

O argumentário e a sua utilização Duas entrevistas

Conclusão: As bases da miséria pequeno-burguesa Anexo

Lista das siglas

Princípios de uma antropologia económica

Anexo

O campo da empresa: um estudo . qe

337

11

31

37 109 109 120 122

125 167 167 169

171 191 191

201 237 237 244

249 259 259

261

299 299

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Uma antropologia imaginária

Post-scriptum: Unificar para melhor dominar

Índices Índice onomástico Índice temático ·

Índice de documentos e quadros

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ . . ~ ~STITUTO DE FILOSOfiA. E CltttCt~~ HUMANii-SJ : DIVISÃO DE DOCUMENyAt,-AO , A

338

' , ·· .-·., ~ N PÓS-GR/I.OUI\Ç~O E PESQUIS.

303

309

323 325 327 335

J