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PINTURAS DO SÉCULO XIX EM UM GRAPHIC NOVEL DO SÉCULO XXI: A AGÊNCIA DE IMAGEM DE PINTURAS HISTÓRICAS EM INDEPENDÊNCIA OU MORTOS Laura Giordani [email protected] Resumo: O presente trabalho apresenta um breve estudo a respeito de algumas imagens presentes na graphic novel brasileira Independência ou Mortos cujo roteiro se baseia na História do Brasil -, que são o resultado do agenciamento de Pinturas Históricas de François-Rene Moreaux e Pedro Américo, que ilustram o momento em que a Independência do Brasil foi declarada por Dom Pedro I. Apesar dessas duas imagens ilustrarem o mesmo momento, a uma foi atribuído o papel de ilustrar o momento que a Independência ocorre na história, enquanto outra foi utilizada para ilustrar o que ocorreu após o evento. A escolha possivelmente se dá por conta do contexto de quando dada uma das pinturas foram elaboradas, assim como as circunstâncias por trás delas. Palavras-Chave: Cultura Visual; Independência, Brasil; Quadrinhos; Agenciamento de Imagem. As obras de arte produzidas pelos alunos, ex-alunos, professores e associados da Academia Imperial de Belas Artes durante o século XIX despertam a curiosidade de historiadores e estudiosos da arte até os dias atuais, pois a fundação e a atuação da instituição durante esse século permitiram que ela participasse das transformações culturais, políticas e sociais que ocorreram. Seu papel foi forte nas questões culturais e sociais, dado que sua fundação, em 1816, tinha como objetivo permitir que a produção da arte no Brasil se encaixasse com o gosto europeu por conta de que a corte portuguesa ter se estabelecido no Rio de Janeiro. A instituição também exercia alguns papeis políticos, visto que sua existência e financiamento se dava por conta do governo, o que fazia dela uma instituição de ensino que estava a serviço do Estado, status que a fez ser uma das mais importantes do gênero durante o século XIX.

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PINTURAS DO SÉCULO XIX EM UM GRAPHIC NOVEL DO SÉCULO XXI: A

AGÊNCIA DE IMAGEM DE PINTURAS HISTÓRICAS EM INDEPENDÊNCIA

OU MORTOS

Laura Giordani

[email protected]

Resumo: O presente trabalho apresenta um breve estudo a respeito de algumas imagens

presentes na graphic novel brasileira Independência ou Mortos – cujo roteiro se baseia na

História do Brasil -, que são o resultado do agenciamento de Pinturas Históricas de

François-Rene Moreaux e Pedro Américo, que ilustram o momento em que a

Independência do Brasil foi declarada por Dom Pedro I. Apesar dessas duas imagens

ilustrarem o mesmo momento, a uma foi atribuído o papel de ilustrar o momento que a

Independência ocorre na história, enquanto outra foi utilizada para ilustrar o que ocorreu

após o evento. A escolha possivelmente se dá por conta do contexto de quando dada uma

das pinturas foram elaboradas, assim como as circunstâncias por trás delas.

Palavras-Chave: Cultura Visual; Independência, Brasil; Quadrinhos; Agenciamento de

Imagem.

As obras de arte produzidas pelos alunos, ex-alunos, professores e associados da

Academia Imperial de Belas Artes durante o século XIX despertam a curiosidade de

historiadores e estudiosos da arte até os dias atuais, pois a fundação e a atuação da

instituição durante esse século permitiram que ela participasse das transformações

culturais, políticas e sociais que ocorreram. Seu papel foi forte nas questões culturais e

sociais, dado que sua fundação, em 1816, tinha como objetivo permitir que a produção da

arte no Brasil se encaixasse com o gosto europeu por conta de que a corte portuguesa ter

se estabelecido no Rio de Janeiro. A instituição também exercia alguns papeis políticos,

visto que sua existência e financiamento se dava por conta do governo, o que fazia dela

uma instituição de ensino que estava a serviço do Estado, status que a fez ser uma das

mais importantes do gênero durante o século XIX.

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Os trabalhos de arte produzidos dessa época eram de grande variedade, elas

ilustravam as paisagens da natureza, paisagens urbanas, retratos de indivíduos, cenas do

cotidiano e cenas do passado, todos eles visando guardar um pedaço do presente para os

olhares estrangeiros ou da posterioridade. Atualmente, essas obras podem ser vistas como

janelas para o passado, seja por conta das cenas que elas ilustram ou do discurso por trás

deles, atraindo o olhar de curiosos e de estudiosos que buscam compreender a sociedade

do passado através delas.

O impacto dessas obras não ocorreu apenas no quesito acadêmico da arte e seu

estudo, pois essas imagens se tornaram parte de como nós vemos o passado, unindo a

questão de como a História é contada e do que elas ilustram. As pinturas que pertenciam

ao gênero artístico de Pintura Histórica, em particular, fazem parte desse modo de ver o

passado, já que o objetivo delas, no contexto do século XIX, era criar “ilustração oficial

da História”, se tornando a imagem do acontecimento tal como ele ocorreu. As imagens

criadas para essas obras ilustravam o discurso oficial a respeito do acontecimento

histórico que ela retratava, assim se ela ilustrasse uma batalha militar que resultou em

uma vitória, ela seria feita de maneira que enaltecesse os soldados e os líderes que

participaram dela, a fim de dar um sentimento de orgulho e admiração ao observador; se

fosse a respeito de uma batalha que foi perdida, o tom seria menos heroico e mais triste,

a fim de dar um sentimento de tristeza e simpatia ao observador.

Essas pinturas afetaram o modo como a História é vista de tal maneira que não é

incomum que artistas as usem como modelo para a criação de novas imagens que conte

a história ou que possua um tema semelhante apresentados na pintura, realizando um

processo chamado de “Agenciamento de Imagem”.

Agenciamento de Imagem e a Graphic Novel

O Agenciamento de Imagem ocorre quando uma imagem é utilizada como base

para a criação de uma nova ilustração, ou seja, um artista, diferente daquele que produziu

a imagem original, pode a elaborar de uma nova maneira - usando novas cores, um novo

estilo artístico, um novo tema e um novo contexto -, porém mantendo características nela

que lembrem imagem original. Esse conceito vem da Theory of Agency, ou “Teoria da

Agência”, uma linha de estudos norte-americana que pesquisa o ato de agenciamento

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causado por um agente, em que o indivíduo exerce, de alguma maneira, o poder ou a

posse sobre uma ideia ou objeto, manuseando-o a fim de torná-lo em algo novo que

combine com o autor da agência (COHEN, 2003). Assim, esse processo de reapropriação

e ressignificação da imagem é o que caracteriza o Agenciamento de Imagem.

É importante apontar que o agenciamento não se trata de uma cópia, mas sim uma

forma de inspiração e composição de uma ilustração, tanto que um dos requisitos para

que uma imagem passe por esse processo é que ela tenha causado um impacto

significativo em seu meio e ter atingido um grande número de pessoas por conta da sua

estética e significado. Nem todas as imagens que passam por esse processo são

conhecidas ou alcançam diversos públicos-alvo, porém aquelas que conseguiram se

tornar consagradas têm maior probabilidade de passar por ele por conta de sua maior

exposição, já que ela precisa fazer é afetar ou despertar a curiosidade e criatividade de

um artista. Dado que diferentes indivíduos acabam por ter diferentes experiências e

leituras com a mesma imagem, permitindo que ela possua inúmeras leituras e

interpretações, nenhum agenciamento dela será igual ao outro, pois cada artista colocará

em seu trabalho sua experiência pessoal com ela e a mensagem que ele busca em

reproduzir ao criar a nova ilustração.

A graphic novel brasileira Independência ou Mortos – roteirizada por Fabio Yabu,

usando o pseudônimo “Abu Fobiya”, e ilustrada por Harald Stricker-, publicada em

setembro de 2012, tem como base a História do Brasil para a construção de seu roteiro, e

utiliza do recurso do Agenciamento de Imagem em algumas de suas ilustrações,

reformulando algumas das imagens elaboradas no século XIX como a historiografia a

respeito da Independência do Brasil a fim de contar uma história original. A história

contada pelo roteiro não possui o compromisso de contar os eventos históricos tal como

eles ocorreram, tanto que zumbis foram adicionados nele, e seus personagens são

caricaturados, demonstrando que o real objetivo da revista é entreter, porém é possível

ver em suas páginas que os autores da história em quadrinhos possuem interesse pela

História do Brasil e admiram o personagem de Dom Pedro I, já que ele foi retratado como

um herói e líder por eles.

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Essa forma de construir o personagem Dom Pedro I foi feita de modo que

valorizasse seu papel na Independência do Brasil, tal como foi afirmado pelos autores nas

notas finais da graphic novel:

Em meio a tantas distorções e absurdos, “Independência ou Mortos” tem

também seu lado fidedigno. Os autores sentem-se orgulhosos por ter mostrado

o protagonista “Mão de Martelo”, D. Pedro I, como um personagem falho e

inseguro que eventualmente encontrou seu caminho. Que, entendendo ao

chamado do dever, preferiu ficar no Brasil a voltar a Portugal. Que enfrentou

exércitos e poderes muito maiores do que os dele, e, mesmo sendo dono de

continental lista de defeitos, contou com o apoio da nação e reservou seu lugar

no estreito panteão de heróis nacionais. O D. Pedro I visto nessas páginas pode

não ser o mesmo que ilustra o célebre quadro de Pedro Américo ou os livros

escolares, mas acredite, tem muito em comum com aquele que o inspirou.

(YABU; STRICKER, 2012, p.147)

Por mais que a proposta da obra tenha sido ilustrar a coragem demonstrada por Dom

Pedro I ao enfrentar Portugal e eventualmente levar o Brasil à sua Independência, os

eventos históricos que ocorreram até o Sete de Setembro nela não são demonstrados como

sérios ou gloriosos em todos os momentos, demonstrando-os diversas vezes seguidos por

algum tipo de deboche ou escárnio. As ilustrações elaboradas para a graphic novel têm

um papel fundamental para cumprir com esses objetivos, pois é através delas que uma

obra dentro do gênero das histórias em quadris tem sua essência e conta sua história ao

leitor.

Como o tema central de Independência ou Mortos é demonstrar o heroísmo por trás

dos atos da proclamação da Independência do Brasil, Stricker, o ilustrador, bebeu das

fontes das Pinturas Históricas do século XIX para ilustrar esse momento no roteiro,

redesenhando-as a fim que pudessem se encaixar no estilo de arte escolhido para o

quadrinho.

Imagens da Independência em Independência ou Mortos

A graphic novel faz o agenciamento de dois quadros do século XIX que ilustram o

momento da Declaração da Independência do Brasil em suas páginas, uma ilustrando o

evento e outra a recepção dele: A obra de Pedro Américo Independência ou Morte!, de

1888; e a obra de François-René Moreaux A Proclamação da Independência, de 1844.

Por um lado, usar do recurso do Agenciamento de Imagem pode parecer uma cópia ou

falta de criatividade, porém usar uma obra de arte como base ou como uma inspiração

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nem sempre quer dizer que houve plagio ou falta de originalidade, pois arte com esse

princípio não quer dizer reproduzir obras antigas ou fazer mais do mesmo, significa criar

novas obras, ser criativo dentro de um parâmetro estabelecido (PAREYSON, 1997, p.

137). Por outro, o Agenciamento de imagem traz novas possibilidades para a imagem,

pois o seu uso e ressignificação através desse recurso dá a chance uma ou mais imagens

apresentarem a mesma face de um mesmo acontecimento ou de um indivíduo, tal como

foi feito em Independência ou Mortos.

O momento da Independência do Brasil na graphic novel ocorre em dois quadros

na página 107, quando Dom Pedro I está cruzando a Serra do Mar com uma comitiva de

soldados e recebe uma carta de Dona Leopoldina avisando-o sobre os planos das Cortes

Portuguesas em virem ao Brasil e retirá-lo do governo à força. Em um acesso de raiva,

Dom Pedro I declara o Brasil independente. Como pode ser visto na imagem 1, a cena foi

inspirada no quadro de Pedro Américo Independência ou Morte! (imagem 2).

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(Imagem 1) Fonte: FOBIYA, Abu; STRICKER, Harald. Independência ou Mortos. Curitiba: Nerdbooks,

2012, p.107.

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(Imagem 2) Pedro Américo. Independência ou Morte! [O Grito do Ipiranga]. Óleo s/tela, 1888,

414x760cm. Acervo do Museu Paulista.

As semelhanças entre as duas imagens são visíveis, assim como suas diferenças,

tanto que podemos identificar que imagem 1 inspirou a imagem 2. Se as semelhanças

entre as duas imagens se dão por conta de uma ser o agenciamento da outra, as suas

diferenças se dão por conta da diferença entre as mídias em que elas se encontram: a

imagem presenta na graphic novel necessita seguir a narrativa do seu roteiro, não

permitindo que o evento aconteça às margens do Riacho Ipiranga, local onde é atribuído

o ocorrido, além de possuir o mesmo espaço para adicionar mais detalhes à imagem.

Outra diferença notável entre as duas é que no agenciamento, o acontecimento continua

após a declaração da Independência, pois o segundo quadro da página 107 se passa

segundos após a ele, transformando o momento de glória e heroísmo protagonizado por

Dom Pedro I em uma chacota, como se lembrasse o leitor do quadrinho que ele está lendo

uma obra criada para seu entretenimento.

O agenciamento do quadro de François-René Moreaux está presente no primeiro

quadro da página 110, ilustrando o momento em que Dom Pedro I retorna ao Rio de

Janeiro após a Independência e é recebido pelo povo.

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(Imagem 3) Fonte: FOBIYA, Abu; STRICKER, Harald. Independência ou Mortos. Curitiba: Nerdbooks,

2012, p.110.

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(Imagem 4) François-René Moreaux. A Proclamação da Independência. Óleo s/tela, 1844, 244x383cm.

Museu Imperial de Petrópolis.

O agenciamento da pintura de Moreaux apresenta mais detalhes do que o feito a

partir da obra de Américo, fazendo com que a cena se passasse no porto do Rio de Janeiro

ao invés da margem do Riacho Ipiranga e adicionando algumas piadas visuais. Assim

como a imagem original, a ilustração presente na revista demonstra um aspecto mais

popular da Independência, apresentando Dom Pedro I como um herói que comemora com

o povo a independência conquistada e está ao meio dele, mostrando que esse ato foi uma

conquista de todos ao invés de apenas um indivíduo.

O uso do agenciamento da pintura de Américo como o momento da Independência

ao invés da de Moreaux no quadrinho pode ser justificado por dois motivos: o primeiro é

que quadro de Pedro Américo ilustra um Sete de Momento mais heroico e impactante do

que a François Moreaux, combinando com o papel de herói exercido por Dom Pedro I no

roteiro da graphic novel; o segundo é o quadro de Américo ser uma pintura muito mais

conhecida e como imagem da Independência.

Pedro Américo foi um aluno e professor da Academia Imperial de Belas Artes e é

um dos pintores mais conhecidos do século XIX, com sua obra mais conhecida sendo

justamente a Independência ou Morte!. A tela foi uma encomenda do Governo Paulista,

que na época estava construindo o Museu do Ipiranga, o atual Museu Paulista, espaço que

tinha como objetivo celebrar o Sete de Setembro, e o quadro seria colocado no Salão de

Honra do Museu, onde ele permanece até hoje. Américo possivelmente foi contratado

para o trabalho por, naquela época, já ser um artista conhecido e por conta de sua filiação

com a Academia Imperial de Belas Artes, assim facilitando o contato e a negociação do

que o quadro deveria esboçar visto que a instituição prestava alguns serviços ao poder

público por ser uma instituição pública. O objetivo da elaboração do quadro não estava

apenas em ilustrar a Independência do Brasil, mas sim o início de seu império, por conta

disso, era necessário que o ato e Dom Pedro I fossem ilustrados de maneira que pudesse

demonstrar o grau de importância desse acontecimento ao mesmo tempo que inspirasse

orgulho aos brasileiros.

Por outro lado, a obra de Moreaux foi elaborada quando as revoltas que ocorreram

durante o Período Regencial ainda estavam ocorrendo, sendo possível interpretá-la como

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a demonstração de como Dom Pedro I buscava criar um Brasil unido ao declamar a

Independência, que o fim para seu feito era unir o povo e não o separar. Por trás de sua

obra estava o nascimento de um país nas mãos de um herói que atendeu ao chamado do

povo. Apesar de ser uma Pintura Histórica conhecida, ela não conseguiu atingir o público

e se gravar na memória do povo como a obra de Pedro Américo fez dado que as

circunstâncias por trás de sua elaboração não foram tão favoráveis à exposição contínua

de seu trabalho como a de Américo foi.

A obra de Américo ficou disponível para a visitação em um local de destaque,

consolidando-a como a imagem da Independência e fazendo com que o painel se tornasse

o modo como concebemos visualmente o Sete de Setembro de 1822 (OLIVEIRA;

MATTOS, 1999, p.68-69). Por ela estar exposta em um local de destaque no museu,

acabou por receber um grau de oficialidade que fez com ela se tornasse a imagem mais

conhecida e difundida do evento e, de certa forma, a identidade visual desse

acontecimento histórico.

O quadro de Pedro Américo acabou por se fixar no entendimento a respeito da

História do Brasil. Essa noção de unir a imagem a um evento, mesmo quando produzida

posteriormente, combina com o conceito de Stuart Hall a respeito de “representação”

(HALL, 2016), pois foi concedido ao quadro de Américo uma tarefa associada à narrativa

da História da Independência do Brasil, atribuindo-lhe o papel de servir como

representação visual do acontecimento. Segundo Hall, dentro da cultura de um povo, algo

que é “representado” possui um sentido semelhante a “significa que” ou “atribui a”, ou

seja, quando dizer que o quadro de Pedro Américo “é a representação visual da

Independência do Brasil na cultura a respeito do evento”, é o mesmo que dizer que a

visualidade do acontecimento é reconhecida por ter ocorrido tal como foi ilustrado pelo

pintor.

Por conta desse reconhecimento como “a imagem do acontecimento da

Independência do Brasil”, Stricker deu ao agenciamento dela o papel de ilustrar o

momento em que o Brasil se torna independente, já que o quadro de Moreaux, por mais

que seja uma imagem bonita e demonstrar um aspecto mais caloroso a respeito do evento,

não é tão reconhecida para tomar esse papel. Isso de nenhuma maneira desmerece a obra

feita por Moreaux, pois a própria essência do agenciamento feito por Stricker está no

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deslocamento dessa imagem como o resultado da Independência do que como o

acontecimento dela, pois foi feito o julgando que ela se encaixava mais na questão da

“recepção do herói” do que “o grande feito do herói”.

Como cada uma das pinturas esboçava um aspecto diferente da Independência, o

agenciamento de cada uma delas preservou o que elas buscavam ilustrar a respeito do

ocorrido, assim a posição que cada uma tomou na narrativa da graphic novel se encaixava

com os diferentes aspectos do papel de herói exercido por Dom Pedro I em cada uma

delas: Um de um herói de ação e a outra de herói do povo.

Conclusão

As obras criadas no século XIX nos fornece um pequeno vislumbre do passado,

permitindo que nós do presente possamos ver como a sociedade percebia a eles mesmo

e, por vezes, e como vemos a nós mesmos. As obras a respeito da Independência

discutidas aqui foram elaboradas em dois momentos diferentes do mesmo século,

resultando em maneiras distintas de ver o ato e a ação de Dom Pedro I, assim o

caracterizando como se tratasse de dois personagens diferentes.

Em Independência ou Mortos, esses dois momentos puderam ser encaixados em

uma mesma narrativa, pois a construção do personagem de Dom Pedro I permitiu que ele

pudesse exercer esses dois papéis. O ato de agenciar essas duas imagens trouxe a

possibilidade que Dom Pedro I se apresentasse como um herói multifacetado, que é

possível que ele seja capaz de grandes atos que necessitaram de coragem individual, mas

que também possa ser uma conquista compartilhada. Essa conciliação foi possível graças

ao Agenciamento de Imagem, pois ele pode ser feito apenas quando as imagens de

Moreaux e Américo foram apropriadas e reelaboradas pelos autores da graphic novel,

assim dando a cada uma delas o papel que elas mereciam na sua história.

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