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O TAXIDERMISTA RENÉ PIAZENTIN

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O TAXIDERMISTA René Piazentin

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O TAXIDERMISTA René Piazentin

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ApRESEnTAçãO

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Respeitável público, atenção: aqui nessa peça, girafas, cavalos, cachorros e zebras falam. E eles estão mortos. O mundo, como o conhecemos, está acabando e um homem empalha seres outrora vivos para que restem algumas lembranças do que fomos. Um médico legista larga o hospital onde disseca corpos porque a realidade ficou demais para ele e vira entregador de pizza – “É um trabalho bom. Você não precisa pensar em muita coisa. Eles te dão um endereço e uma pizza e pronto”. E a menina que perdeu pai e mãe em meio a todo esse caos quer aprender a empalhar o próprio cão, único elo com o curto espaço de tempo em que foi feliz: Dr. Sharif - Como você se imagina, para sempre?

Lola - Não sei. (tempo) Brincando com Toy (o seu cão)... Sentada à mesa da cozinha enquanto minha mãe faz o almoço e meu pai reclama... Olhando meu irmão dormir... Casando com o menino que morava perto da nossa casa. Nessa comovente fábula sobre nossa existência, René narra o fim do mundo, não do jeito que sempre imaginamos e que os filmes americanos nos vendem, um apocalipse, uma solução final que termine com tudo de uma vez. O universo de René está acabando aos poucos, como o nosso. Pequenas catástrofes naturais, conflitos localizados, radicalismos, tiros e balas perdidas e talvez não saiamos dessa como heróis, mas, ao contrário, derrotados numa batalha que ajudamos a criar a cada tiro disparado, a cada palavra pronunciada que mata o outro, a cada vez que viramos as costas àquilo que aparentemente não nos diz respeito. Nesse mundo taxidermizado do autor, nossas almas são de plástico bolha e nossos polegares opositores, que nos distinguiam dos outros animais, destruíram o que podíamos ter sido. Mas o Dr. Sharif, em seu trabalho obstinado como no mito de Sísifo, não se importa em começar tudo outra vez, para ele “tem que ter um espaço para alguma outra coisa além do que é simplesmente necessário. Um lugar onde as pessoas possam ir para passear, divertir-se, coisas assim. Isso também faz parte da sobrevivência.” Nessa peça que nos disseca como raça, onde o crânio pode ou não ser usado, René recorre aos egípcios onde “o ser humano era formado não só pelo corpo, mas por outras oito partes imortais” – o coração é a parte mais importante. Permita-se comover-se. Nelson Baskerville

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O TAXIDERMISTA

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PeRsonagens

Lola, menina

Dr. sharif, taxidermista

Jamal, entregador de pizza, antes médico

Brownie, girafa

Rudy, girafa

toy, cachorro

Cavalo 1, um cavalo

Cavalo 2, outro cavalo

Cavalo 3, outro cavalo

Cavalo 4, mais outro cavalo

zebra, uma zebra

(Todos os animais estão empalhados)

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Cena 1(Luz abre. Atores entram em cena e se dispõem atrás de cadeiras vazadas onde estão colocadas, no encosto, peças de roupa que representarão cada uma das figuras: paletós, vestido de noiva, fraque, etc. Os atores vestem-se, em um jogo de cena que se repetirá ao longo da peça todas as vezes em que as figuras forem se transformando, com atores diferentes passando a representá-las.) narração 1 Quando os europeus descobriram o ornitorrinco, em 1798, algumas pessoas no Reino Unido pensaram que aquilo era uma fraude: a brincadeira de mau gosto de um taxidermista, costurando um bico de pato no corpo de um castor. narração 2 O primeiro problema é você garantir que o animal seja usado o mais rápido possível. A decomposição começa assim que o animal morre: sem oxigênio as células entram em desequilíbrio, as bactérias que estão no corpo invadem os tecidos e as que estão no meio ambiente vão agindo até deixar o animal irreconhecível.

narração 3 Dois organismos diferentes não se decompõem de maneiras iguais, mas as etapas são as mesmas. Não importa se o animal em questão é um ser humano, uma zebra, uma girafa, um cavalo ou um cachorro: todos passam pelo mesmo processo.

(Dr. Sharif está sentado à mesa. Entra uma menina carregando uma mala) Lola (Entrando) Dr. Sharif? (Sem responder, ele apenas ergue os olhos e vê Lola) O senhor é o Dr. Sharif?

Dr. sharif (Acenando positivamente com a cabeça, concorda quase sem som) Uhum.

Lola (Aproximando-se, estendendo a mão) Muito prazer, Dr. Sharif. Meu nome é Lola.

Dr. sharif (Sem retribuir o cumprimento) E o que eu posso fazer por você, Lola?

Lola Eu queria aprender a empalhar animais.

Dr. sharif (Levanta e entre irônico e espantado) Você quer um curso de taxidermia?

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Lola Taxidermia, isso. Posso deixar minha mala aqui?

Dr. sharif (Observando) Você trouxe uma mala.

Lola É. É o meu cachorro. Ele morreu ontem.

Dr. sharif (Afirmando, como que para se certificar do que ouviu) Você tem um cachorro dentro da mala. Lola É, o Toy. Ele foi meu companheiro por onze anos. Eu queria muito que ele fosse empalhado. Dr. sharif E o Toy está aí, nessa mala. Lola Isso. O senhor quer ver, ele... Dr. sharif (Interrompendo) Como você conservou o Toy? Lola Na mala tem bastante gelo. Dr. sharif Desde ontem? Lola Eu fui repondo. Minha casa não é longe daqui. Eu podia ter chegado mais cedo, mas antes de sair eu troquei o gelo. (Tempo) O senhor pode me ensinar a empalhar? Dr. sharif Você quer o seu cachorro empalhado ou quer aprender a fazer isso? Lola As duas coisas. Quero que o senhor me ensine para que eu possa empalhar, eu mesma, o Toy. Me disseram que o senhor empalha animais. Me disseram que o zoológico inteiro é obra sua. Dr. sharif Você já visitou o zoológico? Lola Uma vez. Mas era muito pequena. Para mim tudo aquilo era maravilhoso. Eu lembro que o meu pai me levava pela mão o passeio todo e tinha que me colocar nos ombros para eu poder ver os bichos por cima das cercas. Na época eu nem percebi que eles eram empalhados. Acho que eu pensei que os bichos estavam só parados no tempo. (Pausa) Dr. Sharif, é verdade que antigamente os zoológicos tinham animais vivos?

Dr. sharif É sim. Há muito tempo.

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Lola Eu achava que eles eram sempre empalhados.Dr. sharif “Empalhar” é um termo que não se usa mais. Lola Por quê? Dr. sharif Porque hoje em dia as pessoas usam algodão ou serragem de parafina. Só se usa palha quando não se tem outra coisa. Lola Entendi. Como é essa serragem de parafina? Dr. sharif Serragem, ora. O que sobra da parafina industrializada. Lola Posso ver? Dr. sharif Não, Infelizmente eu não tenho aqui. Lola O senhor faz... com algodão? Dr. sharif Não. Com a guerra ficou difícil conseguir. Se até nos hospitais não há algodão suficiente, quanto mais para taxidermizar animais. Lola O que o senhor usa, então? Dr. sharif (Depois de um tempo) Palha.

Lola Ah... Dr. sharif O problema da palha é que é um material orgânico. Uma coisa ótima para criar cupim e outros bichos. Até plástico bolha é melhor para preencher. Lola Plástico o quê? Dr. sharif Bolha. “Plástico bolha”. Aquele cheio de bolinhas, que as pessoas estouram. Você nunca viu? Lola Não. Dr. sharif É uma coisa divertida. Faz tempo que não temos por aqui. Lola Eu nem imagino isso. Para que serve?

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Dr. sharif Para empacotar, para embalar coisas em mudanças. A gente sempre vê o plástico sendo usado para fora... Eu achava engraçado pensar nele por dentro. Não deixa de ser uma mudança ou uma viagem também. Só que do bicho. (Tempo) Onde estão os seus pais, Lola? (Ela balança negativamente a cabeça) A guerra? Lola Meu pai levou um tiro. Minha mãe ficou doente.

(Silêncio) Dr. sharif Você não tem irmãos? Lola Tinha um irmão menor. (Pausa. Ele pega a mala e vai saindo) Dr. sharif Tudo bem. Volte na sexta-feira. Acho que até lá eu termino. Lola Mas eu quero ajudar, esqueceu? Dr. sharif Por que você quer aprender isso? Lola Eu quero fazer isso pelo Toy. Dr. sharif Não é suficiente vir buscar ele pronto? Lola (Tempo) Eu quero estar junto, pelo menos. Dr. sharif Você realmente acha que faz diferença? Lola Não sei.

Dr. sharif Ele não vai se importar, eu garanto. Não é melhor ficar com a lembrança dele vivo?

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Lola Eu prefiro estar junto. O senhor se importa? Dr. sharif Você é quem sabe. Lola (Depois de tempo) Vai cheirar mal? (Com curiosidade, falando hesitante)

Dr. sharif Fazendo a incisão certa, não. A pele sai inteira, sem necessidade de evisceração. Não tem derramamento de sangue, nem de bile, de nada. Quatro bolinhas dessas: fazemos os olhos com duas e o escroto com outras duas.

Lola Escroto? Dr. sharif Escroto. O saco. Lola Ah... Dr. sharif Eu nunca sei quando usar termos técnicos ou não. Lola Não tem problema. Dr. sharif Vamos tirar toda a pele e tratar, para que ela fique conservada. Depois moldamos mais ou menos os volumes do corpo com arame.

Lola O senhor aproveita só a pele? Dr. sharif É. Só a pele. (Pausa) Você não vai querer o resto, eu acho. Lola Não. Acho que não. Eu posso ajudar o senhor então? Dr. sharif Pode. E não precisa me chamar de senhor. narrador 2 (toy) Na verdade tudo é uma questão de pele, daquilo que envolve, mais do que o que está por dentro. Diferente dos outros animais, a visão é o que o ser humano tem de mais desenvolvido. Aquilo que está por fora, que é visível, dá mais identidade do que todo o resto. Mesmo assim, o olfato se mantém como testemunha do nosso lado animal: um perfume que percebemos de repente nos traz de volta a memória da infância, de lugares ou de pessoas, instantaneamente.

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Cena 2

girafa (Rudy) Eu sou Rudy. A girafa. Um mamífero artiodátilo e ruminante do gênero Giraffa, da família dos girafídeos e, no meu caso, com cinco metros de altura. Uma noite um grupo de soldados entrou no zoológico atirando e eu fiquei assustado. Na verdade eu fiquei muito assustado. Estava escuro e eu comecei a correr, sem enxergar muito bem para onde ia. girafa (Brownie) Eu sou Brownie. A Girafa. Na realidade Rudy é uma girafa macho e eu sou uma girafa fêmea. Então vou chamar Rudy de “o” Rudy.

Rudy Eu corri tanto, apavorado com o barulho, que bati minha cabeça em uma viga do teto e caí.

Brownie A queda não matou o Rudy. O problema veio depois.

Rudy Eu tentei me levantar da queda para fugir. Isso me fez ter um derrame.

Brownie Quando uma girafa tenta se levantar depois de uma queda, a pressão do sangue do coração até o cérebro é grande demais.

Rudy As girafas só se deitam quando estão em segurança, porque para levantar leva muito tempo. Fazer isso com pressa e com medo é fatal.

Brownie Não sei se ficou claro, mas eu e o Rudy éramos um casal. Depois que ele morreu eu chorei por dias. Não tinha mais vontade de comer e quando nasceu nosso filhinho eu não conseguia cuidar dele direito.

Rudy Brownie estava grávida quando eu morri.

Brownie Eu vi o Rudy morrendo.

Rudy Um dia uma bomba de gás caiu no zoológico e Brownie morreu sufocada.

Brownie E então o Dr. Sharif taxidermizou Rudy e eu. (Se olham e Beijo de esquimó) E agora estamos juntos de novo.

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Cena 3

Cão (toy) Eu sou Toy, o cachorro. Eu estou aqui, mas estou lá também, sendo aberto pelo Dr. Sharif. Uma lástima eles não terem plástico bolha. Um cachorro, mesmo sendo um animal médio, pode ficar bastante deformado depois de taxidermizado. É muito estranho falar sobre você mesmo quando você já está morto, ainda mais enquanto assiste a duas pessoas te abrindo para tirar a sua pele e depois forrar uma réplica sua com ela. Esse processo não tem vida útil determinada, então provavelmente eu vou virar um enfeite ou algo assim por muito tempo. Isso se a Lola me deixar em um lugar protegido de umidade, claro. Sinceramente, depois de morto, eu não vejo muita vantagem nisso... Acho até um pouco bizarro. E ela ainda acha que isso é uma espécie de homenagem. Uma pessoa normal não empalharia sua mãe ou seu pai, por exemplo. Não que não seja possível, mas a aparência não seria muito agradável. A pele humana não tem tanto pelo e ficaria difícil esconder as manchas marrons e pretas depois do processo de conservação. Mas mesmo que o resultado fosse perfeito, a chance de a pessoa ser considerada psicopata seria grande. Então por que com um bicho de estimação tudo bem? Nesse momento eles já retiraram toda a minha pele e limparam toda a carne que ainda tinha ficado grudada. Já removeram o esqueleto e estão tirando ossos das patas e estão decidindo se vão aproveitar o meu crânio ou não.

narração 1 A girafa foi um dos animais preferidos dos surrealistas, provavelmente porque eles enxergavam ali uma cabeça de camelo presa em cinco pescoços de cavalo unidos em um corpo de dromedário sem a corcova, tudo isso em uma pele de onça. Não se sabe ao certo o que motiva uma pessoa a imaginar girafas pegando fogo, mas Salvador Dalí pintou cinco obras assim.

narração 3 Talvez a morte, no fim das contas, seja mais forte do que a vida, já que viver sempre demanda algum esforço enquanto a morte é algo para o qual todos escorregamos sem trabalho nenhum. Talvez o Nada vença ao final. Talvez o Nada seja inevitavelmente a outra face de tudo o que existe. Mas ainda assim existe alguma beleza nisso.

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Cena 4 Dr. sharif Amanhã eu faço a estrutura para ele ficar de pé. Você sabe em qual posição vai querer?

Lola Posição? Dr. sharif Sentado, em pé, dando a pata, deitado, correndo atrás do próprio rabo...

Lola Acho que tanto faz. Ele já era velho. Fica um pouco ridículo colocar o Toy numa postura muito ativa. Dr. sharif Sempre achei isso.

Lola Seria como colocar uma pessoa de oitenta anos em uma pose de filme de ação.

Dr. sharif De qualquer forma não é muita gente que pede para conservar bichos de estimação. Então é melhor perguntar. Lola Achei que fosse o contrário.

Dr. sharif Eu trabalho mais com os animais que morreram aqui. Quando a guerra começou só eu fiquei aqui. Era impossível dar conta do zoológico sozinho. Alguns bichos morreram com balas perdidas e com as bombas de gás. Outros morreram por causa do stress, do medo. Mas a maioria morreu de fome ou doente. Não dava para tratar de todos ao mesmo tempo nem tinha comida suficiente. Lola E por que o senhor começou a empalhar os bichos mortos? Dr. sharif Tinha um menino que morava aqui perto. Ele gostava muito do casal de girafas. Quando a coisa ficou feia e os bichos não tinham o que comer, ele jogava ossos por cima do muro para eles. Engraçado que justamente as girafas não comem isso. Quando a primeira morreu, eu decidi começar por ela. Eu arranjava todo o tipo de desculpas para ele não entrar aqui. Lola Quanto tempo levou? Dr. sharif Um mês.

Lola E depois ele viu?

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Dr. sharif Depois ele também sumiu. Nunca soube o que aconteceu com ele. Mas como eu já tinha começado, resolvi continuar. (Pausa) Bom, por hoje chega. Vamos deixar o Toy descansar. Amanhã, continuamos. (Tempo) Você pode vir cedo. Prometo que não vou fazer nada sem você aqui.

Lola Combinado. Até amanhã então. (Sai)

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Cena 5

Rudy Bonito trabalho.

Brownie Muito limpo. Nem uma gota de sangue.

Rudy Você está pegando o jeito, doutor. Dr. sharif Obrigado, Rudy. Brownie Na nossa época você não tinha essa maestria toda. Dr. sharif Sempre se começa de algum lugar. Rudy Por isso a minha orelha esquerda ficou assim, doutor? Dr. sharif Eu achei o resultado ótimo. Brownie Da última vez que o Rudy reclamou, o seu argumento para se defender foi bem grosseiro. Antes de repetir, espero que você pense um pouco dessa vez. Dr. sharif Eu fiz com a melhor das intenções. Vocês estão juntos de novo, não estão? Ou será que iam preferir que eu simplesmente tivesse enterrado as duas ali fora? Rudy Eu não reclamei de ter sido taxidermizado, doutor. Reclamei da minha orelha. Brownie Da esquerda, querido. Você tem que admitir que a direita ficou ótima. Dr. sharif A sua orelha esquerda foi a primeira coisa que eu taxidermizei na vida. Eu acho que vocês podiam levar isso em consideração. Rudy Se a evolução tivesse acontecido de outra maneira e fossem as girafas que empalhassem os humanos o senhor ia ver, doutor. Brownie Nós dois íamos caprichar na sua orelha. Pode ter certeza. (Entra um homem de capacete, com uma pizza) entregador Boa noite. Entrega da pizzaria Halal. Meia pepperoni com queijo extra, meia frango.

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Dr. sharif (Mexendo nos bolsos) Quanto ficou? entregador Vinte e dois e cinquenta. Dr. sharif (Estende o dinheiro. O Entregador pega e lhe estende a pizza, evitando o olhar do Dr. Sharif) Aqui está. Pode ficar com o troco. entregador (Nervoso, tentando guardar o dinheiro no bolso e se livrar rapidamente da pizza ao mesmo tempo) Sua pizza. Obrigado. Rudy Pepperoni com queijo extra. Brownie Parece bom. Frango é que é sempre meio sem graça. Dr. sharif (Para o entregador) Algum problema? entregador Nada. Obrigado. Eu já vou indo. Dr. sharif Sua voz não é estranha. Eu conheço você? entregador Acho que eu já entreguei pizza aqui antes. Dr. sharif Jamal? Rudy Ele conhece o entregador? Brownie Parece que sim. entregador Vou deixar aqui um cardápio com as nossas promoções, boa noite... Dr. sharif Jamal! Rudy Conhece. Brownie Curioso isso não? entregador (Tirando o capacete) Como vai, Sharif? Dr. sharif Você virou entregador? Jamal É um trabalho bom. Você não precisa pensar em muita coisa. Dr. sharif Desde quando você...?

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Jamal Eles te dão um endereço e uma pizza e pronto. As ruas não estão tão perigosas agora. Eu tenho um fixo e uma comissão por entrega... Dr. sharif Você deixou o hospital? Jamal Muita responsabilidade. Muito trabalho. Eu queria mais tempo para mim, sabe? Dr. sharif Claro, claro... (Aponta uma cadeira) Você não quer se sentar um pouco? Jamal (Sentando-se) Obrigado. Eu acho que aqui era a última entrega, de qualquer jeito. As pessoas confundem muito, sabe? Acham que “Halal” é nome de restaurante de comida árabe, eu fico mais tempo explicando que é uma pizzaria do que fazendo as entregas. (Enquanto a conversa segue, Rudy e Brownie comem a pizza) Dr. sharif Desde quando você largou o hospital? Jamal Uns cinco anos já. Dr. sharif E a Offa?

Jamal Foi embora.

Dr. sharif Ela conseguiu sair? Jamal (Acenando positivamente com a cabeça) Eu estou juntando dinheiro para ir também. Acho que mais um ano e eu consigo. Ela tem um primo do outro lado. Ele recebeu a Offa lá. Logo eu vou também. Dr. sharif Se precisar, eu tenho algum dinheiro guardado... Jamal Você nunca pensou em sair? Dr. sharif Não. Jamal Por quê? Dr. sharif Agora que as coisas estão melhorando não faz mais sentido. Jamal Você acha que estão melhorando?

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Dr. sharif Você não?

Jamal Um pouco. Mas ainda não é o melhor lugar para se viver. Dr. sharif De qualquer jeito eu preciso cuidar das coisas aqui.

Jamal De um zoológico de bichos empalhados. Não acho que os seus bichos iam sentir sua falta. Rudy (Comendo) Eu não. O que você acha, Brownie? Brownie (Comendo) Um pouco, acho. Dr. sharif Tem que ter um espaço para alguma outra coisa além do que é simplesmente necessário, Jamal. Um lugar onde as pessoas possam ir para passear, divertir-se, coisas assim. Isso também faz parte da sobrevivência. Jamal E você acha que um zoológico de bichos mortos é uma espécie de diversão? Dr. sharif As pessoas vão a museus de cera, não vão? Qual o problema de um zoológico com animais taxidermizados? Jamal Um museu de cera não é feito de pessoas mortas, é feito de réplicas. A diversão também pode ser duvidosa, mas é bem diferente. Dr. sharif É uma tentativa de deixar as coisas paradas no tempo, de qualquer jeito. Rudy Eu achei a comparação ruim. Brownie Eu também. Jamal Lembra da história do barco de Teseu? Dr. sharif O da mitologia? Jamal Isso. Dr. sharif Não.

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Jamal Dizem que os atenienses conservaram o navio de Teseu na cidade. Mas eles iam trocando as partes podres por novas, até que chegou uma hora em que já tinham trocado praticamente tudo. Daí começou uma discussão: alguns filósofos achavam que o navio era o mesmo e outros achavam que não era. Dr. sharif E você acha o quê? Jamal Quando você taxidermiza os bichos usa só a pele, não? Dr. sharif O crânio, às vezes. Jamal E o resto? Os órgãos, os outros tecidos, a carne...? Joga fora? Dr. sharif Jogo. Jamal E isso tudo não é o bicho também? Juntando tudo, talvez mais o bicho do que só a pele, não acha? Dr. sharif Raciocínio perfeito para um médico legista. Rudy Faz sentido. Brownie Todo sentido.

Dr. sharif Você pensou nisso tudo enquanto entregava pizzas?

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Jamal A história tem uma continuação: alguns atenienses foram recolhendo as peças velhas do navio toda vez que ele era restaurado. Um dia, chegou a Atenas um forasteiro e pediu para ver o barco. Mas qual era “o barco de Teseu”? O navio restaurado ou os destroços guardados? Dr. sharif As duas coisas. Jamal E como uma coisa pode virar duas, ao mesmo tempo? Dr. sharif Ter deixado o hospital realmente fez você ter mais tempo. Jamal Você lida com as aparências, Sharif. Dr. sharif E você? Jamal Eu lidava com a realidade. Abria pessoas mortas para dizer para os vivos por que elas estavam ali. Ou por que elas não estavam mais ali. Como quiser. Até que a realidade ficou demais para mim. (Vai saindo) Espero que você goste da sua pizza. Dr. sharif Você pode voltar mais vezes.

Jamal Você tem o número. Experimente a de queijo de cabra. É ótima. (Sai)

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Cena 6

Rudy Sobrou um último pedaço de frango, você quer? Brownie Pode comer, eu não gosto muito. Dr. sharif Vocês comeram a pizza toda? Rudy Tem um pedaço de frango ainda. Eu ia pegar, mas se você quiser... Dr. sharif Pode comer, Rudy. Vou fazer outra coisa. Brownie Ainda bem que os herbívoros somos nós. (Sai. Brownie passa para Rudy o último pedaço. Saem as duas.)

toy Nesse momento o Dr. Sharif passa pela sala onde me deixou. Quer dizer, onde deixou o que ele aproveitou de mim. Ele vai ficar algum tempo lá, pensando no próximo passo e aplicando um pouco de formol nas patas. Aqui tem uma passagem de tempo. Pela manhã Lola vai chegar e pedir para me ver. Ele vai arrumar a estrutura de arame que vai me sustentar de pé, ajeitar as bolinhas de gude dos olhos... E as outras duas. Ela vai gostar do resultado, mas eu não. A vantagem é que a partir do momento em que eu estiver pronto só vou aparecer deste jeito (aponta para si mesmo). O Dr. Sharif melhorou muito desde a orelha esquerda do Rudy, mas precisa treinar mais. Infelizmente eu ainda faço parte desse momento intermediário.

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Cena 7

Dr. sharif Você gostou do resultado?

Lola Acho que sim. (Tempo) O senhor acha que o Toy está em algum lugar agora?

Dr. sharif Claro. Ele está lá, na outra sala.

Lola Não. Não o Toy empalhado. O Toy mesmo.

Dr. sharif O “Toy mesmo” morreu, não?

Lola Eu sei. Mas o senhor acha que acontece alguma coisa depois? Dr. sharif Alguma coisa sempre acontece. No caso dele, aconteceu aquilo lá (aponta para a outra sala).

Lola Mas muita gente acha que não é só isso, não?

Dr. sharif Muita gente acha.

Lola No Egito eles mumificavam as pessoas. É um pouco o que o senhor faz, não é?

Dr. sharif Não eram exatamente “as pessoas” que eles mumificavam. Eram os faraós.

Lola Os faraós eram pessoas, não?

Dr. sharif (Irônico) Pessoas mais “pessoas” que as outras pessoas. Mas de qualquer forma sim, eles acreditavam na vida após a morte.

Lola E o senhor não.

Dr. sharif Acho que nunca parei para pensar no assunto.

Lola O senhor tem um zoológico de bichos empalhados, trabalha com animais mortos e nunca pensou nisso?

Dr. sharif Eu não vejo a menor necessidade em acreditar em alguma coisa “depois”. O agora já dá muito trabalho.

Lola O senhor não acha que existe alguma coisa tipo uma “alma”?

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Dr. sharif O que eu acho não vem ao caso.

Lola Mas no Egito eles acreditavam.

Dr. sharif Só que a ideia de “alma” para eles era bem mais complicada. Ela tinha oito partes que sobreviviam à morte, fora o corpo.

Lola Oito partes fora o corpo?

Dr. sharif Isso. Para eles o ser humano era formado não só pelo corpo, mas por outras oito partes imortais.

Lola E o senhor sabe isso tudo sem nunca ter se interessado pelo assunto.

Dr. sharif Eu nunca me preocupei se esse tipo de crença tem algo de real ou não. Isso não me impede de me interessar por mitologia, por exemplo.

Lola Eu me lembro das pirâmides e das múmias. É tudo o que eu aprendi na Escola sobre o Egito. Dr. sharif Bem, a parte mais importante das oito imortais era o coração. Mas a mais interessante era a que eles chamavam de Ka: uma espécie de sombra que seguia a pessoa durante a vida. O Ka podia aparecer para os outros como um fantasma, independentemente de a pessoa estar viva ou morta.

Lola Como assim? Eu podia ter um fantasma mesmo estando viva?

Dr. sharif Podia. Podia inclusive assombrar as outras pessoas.

Lola Nossa, bem legal.

Dr. sharif Depois vinha o Ba, que podia assumir a forma que quisesse, mas geralmente era representado como um pássaro com cabeça de gente, que flutuava em torno da tumba durante o dia, alimentando o falecido com água e comida.

Lola O morto comia e bebia?

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Dr. sharif (Assentindo com um gesto de cabeça) Uhum. A função do Ba era fazer o morto se juntar ao Ka. A soma dos dois era o Akh, a parte imortal que vive dentro do Sahu, o corpo espiritual. Caso o morto se saísse bem no Julgamento Final, esse corpo espiritual subia aos céus saindo do corpo físico... Eles ainda tinham outra parte, o Sekhem, que era a personificação da força vital do homem que vivia entre as estrelas junto com o corpo espiritual e o que eles chamavam de Ren, o “nome verdadeiro”, a parte vital do homem em sua jornada através da vida e do pós-vida. Por último vinha o Shwt, a sombra, que eles acreditavam que também era uma entidade, já que pode se descolar do corpo. Lola Eu perdi a conta... Foram as nove partes já?

Dr. sharif Que eu me lembre já. No final das contas o coração do defunto era pesado numa balança e tinha que ser mais leve que uma pena.

Lola Dava muito trabalho morrer no Egito.

Dr. sharif Não, era a mesma coisa. Dava trabalho só enquanto você estava vivo e acreditava nisso tudo.

Lola Eles gostavam de misturar bichos com gente também não é? Eu me lembro de uns desenhos de gente com cara de cachorro, de gato, essas coisas.

Dr. sharif Não só eles. O ser humano sempre gostou de colocar animais no meio das coisas. Isso não só na mitologia, mas nas idiotices que faz. Nas guerras, por exemplo.

Lola Tipo cavalos.

Dr. sharif É, o cavalo é um bom exemplo. Eles foram tão importantes que os povos que não tinham cavalaria se deram muito mal. Só quando inventaram os tanques de guerra é que eles começaram a ficar ultrapassados. Lola Nossa. Não é justo colocar um cavalo para combater um tanque mesmo. Dr. sharif Não é justo colocar um cavalo para combater. No zoológico tem um espaço com quatro cavalos empalhados. Eles morreram em uma batalha aqui perto. Eu estava escondido aqui dentro. O barulho dos tiros e das bombas dava medo. Depois de um tempo, ficou tudo em silêncio. Até o ouvido se acostumar, depois de tanto estrondo, demora um pouco. Depois de um tempo o zumbido foi passando e eu comecei a ouvir, meio longe, um som de gritos de dor.

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Eu saí para olhar e percebi que os gritos não eram humanos. Eram horríveis demais para sair da boca de um homem, mesmo sofrendo, mesmo ferido. Aí eu vi quatro cavalos caídos. Dois já estavam mortos, outros dois estavam com os olhos arregalados de um jeito que achei que eles iam pular das órbitas e urravam, berravam, eu nem sei como explicar. Lola E o que o senhor fez? Dr. sharif Eu fiz o que eu tinha que fazer. O que qualquer um tinha que fazer. (Tempo) Você quer ver os cavalos? (Ela faz que sim com a cabeça. Os dois saem)

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Cena 8

(Os quatro cavalos vêm até a boca de cena e começam a jogar cartas)

Cavalo 1 A gente não devia estar lá? Cavalo 2 Por quê? Cavalo 1 Eles estão indo ver a gente, não? Cavalo 3 Que se danem. Cavalo 4 Por alguma convenção que eu não vou saber explicar, eles estão vendo. Cavalo 1 Mesmo com a gente aqui? Cavalo 4 É. (Apontando para as cartas na mão do outro cavalo) Você descarta. Cavalo 1 (Observando uma das cartas que tem na mão) Minha carta preferida. Cavalo 2 Valete? Cavalo 1 É. As pessoas sempre se lembram da roda, do fogo e da agricultura quando falam dos acontecimentos importantes para o desenvolvimento do homem, mas pouca gente se lembra dos cavalos. Cavalo 2 E o Valete é a sua carta preferida por causa disso? Cavalo 1 Valete é meio um cavaleiro, não é? Cavalo 3 Não. Valete era um empregado doméstico na França. Cavalo 2 Você confundiu com “ginete”, seu burro. Cavalo 1 Ah. (Tempo de constrangimento) Cavalo 3 (Retomando a discussão) E mesmo que fosse um cavaleiro, isso seria motivo para gostar da carta?

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Cavalo 1 Você não acha que a gente foi importante para a civilização? Cavalo 2 Muito. Cavalo 3 Para qual civilização mesmo? Cavalo 1 Dos homens, ora. Cavalo 3 E qual a nossa vantagem nisso tudo mesmo? Cavalo 1 Ser o animal mais importante para a civilização humana, ora essa! Cavalo 2 (Para o Cavalo 3) Pensei que fosse o cachorro. Cavalo 1 Cachorro? Cavalo 3 O doutor Sharif inclusive acabou de taxidermizar um, aqui mesmo. Cavalo 1 Um! Nós somos quatro! Cavalo 4 Só um instante. Ele tem um ponto. Cavalo 3 Tem? Cavalo 1 É verdade que a gente é o animal mais importante para o desenvolvimento da humanidade. Tem argumentos para isso. Desde a Grécia os homens nos adoram. O mito do centauro, por exemplo. Apareceu lá. Cavalo 2 Nossa, que honra não? Uma mistura da inteligência do ser humano com a força bruta dos imbecis aqui. Cavalo 4 Eu acho que é uma forma de demonstrar importância sim. Cavalo 1 E os hunos? Cavalo 2 O que tem eles? Cavalo 3 Hunos? Cavalo 2 De onde você tirou os hunos agora?

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Cavalo 3 Os bárbaros? Cavalo 1 Eles passavam boa parte de seu tempo montados no lombo dos cavalos. Cavalo 4 É verdade. Eles guerreavam e dormiam nos cavalos. Cavalo 3 Provavelmente eles não desmontavam para fazer suas necessidades também. Cavalo 2 Uma honra mesmo ter um bárbaro mijando e cagando em cima de você enquanto mata outras pessoas. Cavalo 1 Que engraçado. Sabia que os cavalos eram disputados a tapa pelos guerreiros? Cavalo 2 O que não era disputado a tapa por essa gente? Cavalo 4 E os cavalos que viraram heróis? E o cavalo de Alexandre, o Grande? E o de Napoleão, que ele mandou empalhar de tanto que gostava dele? Cavalo 2 O cavalo de Napoleão, que ninguém sequer lembra o nome, só repete aquela piada imbecil? Cavalo 1 Piada? Cavalo 2 “Qual era a cor do cavalo branco de Napoleão?” (Todos os outros riem) Cavalo 2 Vocês não conheciam? Cavalo 1 Muito boa! Cavalo 4 “Cavalo branco!” Qual a cor! Cavalo 3 Genial! Cavalo 4 “Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?” Cavalo 3 Branco! (Mais risadas)

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Cavalo 2 A questão é a seguinte: se os humanos não tivessem usado cavalos como nós nas guerras talvez nós não tivéssemos morrido. (Silêncio) Cavalo 4 Ele tem razão. Cavalo 1 É, pensando por esse lado... Cavalo 3 É... Cavalo 2 Aliás, pensando cientificamente, nós nem poderíamos estar aqui agora. Cavalo 4 Por que estamos mortos? Cavalo 2 Não. (Para o Cavalo 1) Você se esqueceu de um detalhe, mais importante que o fogo, a roda, a agricultura e os cavalos. Cavalo 1 O quê? Cavalo 2 Polegares opositores. (Silêncio constrangedor. Eles se entreolham) Nós jamais poderíamos estar jogando cartas. (Ele recolhe o baralho. Saem todos)

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Cena 9

(Jamal volta. Ele observa o ambiente por um tempo, em silêncio. Senta-se. Entra o Dr. Sharif)

Dr. sharif Dessa vez você veio sem uma pizza.

Jamal A menina ainda está aqui?

Dr. sharif Ficou olhando o zoológico.

Jamal Os seus bichos empalhados. Você tem um cigarro?

Dr. sharif Parei.

Jamal Merda.

Dr. sharif O que está acontecendo, Jamal?

Jamal Eu preciso ir embora. Hoje.

Dr. sharif Você não estava juntando dinheiro?

Jamal Não dá para ser do jeito mais seguro. Eu não tenho tempo. Certeza de que não sobrou nenhum cigarro aqui? Dr. sharif (Faz um gesto positivo com a cabeça) O que aconteceu?

Jamal A Offa. Ela foi ferida. Acho que as coisas estão piorando do lado de lá também.

Dr. sharif Ferida como?

Jamal Bala perdida. Parece que não é nada sério, mas eu tenho medo de deixar ela lá assim.

Dr. sharif E a família dela? Jamal O primo sumiu faz uma semana. Ela estava sozinha na casa, escondida. Quem me mandou o recado foi um vizinho que atravessou hoje pelos túneis.

Dr. sharif Agora eles estão vindo para o lado de cá também?

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Jamal Eu vou hoje.

Dr. sharif Você não precisa ir pelos túneis. Eu posso emprestar um dinheiro, eles atravessam você.

Jamal Não precisa. Eu já resolvi.

Dr. sharif Isso é suicídio.

Jamal Eu só vim aqui me despedir.

Dr. sharif Leva o dinheiro.

Jamal A não ser que você queira vir junto.

Dr. sharif Eu fico.

Jamal Eu tenho um contato bom lá. Honesto. Para ele atravessar um ou dois ao mesmo tempo é o mesmo risco. Não dá tempo de querer barganhar muito. Vem junto. Traz a menina também.

Dr. sharif A menina?

Jamal Ela também não tem mais ninguém aqui.

Dr. sharif Como você sabe?

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Jamal Meu último paciente foi o pai dela. Fui eu quem o atendeu quando chegou na emergência do hospital. Ela estava junto. A mãe eu soube que morreu depois. Não é muito difícil saber o que acontece com as pessoas por aqui. Até porque não sobrou muita gente. (Entram Rudy e Brownie) Dr. sharif Você pode tentar fazer ela ir junto. Mas pelos túneis não. Jamal Eu só aceito o seu dinheiro se você também for. Dr. sharif Eu dou o dinheiro para vocês irem. Mas eu fico. Jamal Por quê? Logo não vai ter ninguém para visitar o seu zoológico de qualquer jeito. Dr. sharif Você gosta de mitologia, Jamal? Ou só do barco do Teseu? Jamal Por quê?

Dr. sharif Esse zoológico é a minha pedra, Jamal. Como o Sísifo.

Jamal Uma pedra que toda vez que chega ao topo, rola até embaixo.

Dr. sharif Isso.

Jamal Um passatempo absurdo em um mundo cada vez mais absurdo.

Dr. sharif É um pouco sem sentido. Mas é a minha paixão. É possível viver de outro jeito?

Jamal Fala com a menina. Eu vou avisar que vamos sair hoje à noite.

Dr. sharif (Tempo) Eu tento. (Antes que Jamal saia) Traz a tal pizza de queijo de cabra.

Jamal O sujeito para quem eu trabalhava foi embora ontem.

(Sai)

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Cena 10

Rudy Então quer dizer que você vai ficar aqui com seus bichinhos e mandar a menina ir embora junto com o entregador de pizza.

Dr. sharif Vocês ficam escutando tudo, sempre?

Brownie Eu mais do que ele. Afinal a orelha esquerda ficou péssima.

Dr. sharif Ela precisa ir embora. Eu não faço questão.

Rudy O que você acha, Brownie?

Brownie Se for por nossa causa não se acanhe, doutor. Há muito tempo você não precisa mais alimentar a gente.

Rudy Claro que uma pizza de vez em quando cai bem, mas é pura gula mesmo.

Dr. sharif Eu não tenho mais o que fazer aqui, nem em nenhum outro lugar, Rudy.

Brownie (Para Rudy) Deu uma certa pena agora.

Rudy (Para Brownie) Também fiquei.

Dr. sharif Eu estou falando sério.

Brownie Ok, desculpe.

Rudy Foi mal.

Dr. sharif Mas a menina ainda tem uma vida pela frente. Ela pode seguir adiante, fora desse lugar.

Brownie E você acha que do outro lado do túnel vai ser melhor?

Rudy Como uma “luz no fim do túnel”?

Dr. sharif Por que não?

Brownie E se ele for um psicopata?

Rudy Um pedófilo?

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Brownie E se ele quiser a menina para vender os órgãos dela?

Rudy Ou como escrava sexual?

Brownie Uma “boneca viva”?

Rudy Você não pensou nisso?

Dr. sharif Não. Provavelmente meu lado psicótico se limita a imaginar que duas girafas mortas e empalhadas conversam comigo.

Rudy Você pode responder só “sim” ou “não”.

Brownie Não precisa ser grosseiro.

Dr. sharif Não, não pensei em nada disso. Eu conheço o Jamal. O único risco que ela corre é se o contato dele der para trás e ele cismar em ir hoje de qualquer jeito, pelos túneis.

Brownie Agora ela está lá, olhando os leões.

Rudy Deve estar se perguntando por que você criou um ambiente com uma zebra caída e dois leões se aproximando.

Brownie “Será que nem depois de morta a zebra pode descansar em paz, sem ser apenas uma presa”, ela deve estar pensando.

Rudy Você sabia que a zebra é o quarto animal mais querido pelas crianças?

Brownie Só perde para o cachorro, o urso e a girafa.

Rudy Elas acham que é um cavalinho com pijamas.

Brownie Você deve ter acabado de deixar a menina traumatizada.

Rudy “Nem depois de morta a pobre zebra descansa...”

Dr. sharif É uma espécie de instalação que recria o ambiente natural desses animais. A culpa de um leão caçar uma zebra não é minha. Culpem a natureza!

Brownie Que mau gosto, doutor.

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Rudy Francamente.

Dr. sharif E depois essa história de que a zebra é um dos animais pelos quais as crianças mais tem afeto é pura invenção de vocês.

(Entra Lola)

Lola Dr. Sharif... (Dr. Sharif olha para ela) Por que a zebra tem que ficar cercada pelos leões mesmo depois de empalhada?

(Silêncio. Rudy e Brownie olham para o doutor)

Dr. sharif É uma instalação que recria o ambiente natural desses animais, Lola. Os leões caçam zebras.

Lola Poxa, mas nem depois de morta e empalhada ela pode ter sossego...

Dr. sharif É uma situação que vemos na Natureza. A culpa não é minha.

Lola Eu gosto das zebras, doutor. Depois dos cachorros e dos ursos, acho que é o bicho que eu mais gosto.

Dr. sharif (Olhando para Rudy e Brownie) Sério? Mais até que das girafas?

Lola Girafas? Acho que sim, por quê?

Dr. sharif Por nada.

Lola Eu acho as zebras bonitas...

Dr. sharif Uma espécie de cavalo de pijama.

Lola Isso! Por isso eu achei de mau gosto ver o bicho ser caçado mesmo depois de morto, sabe?

Dr. sharif Nos museus de cera as pessoas são retratadas em poses que lembram o que elas eram quando vivas.

Rudy Ou o que elas são. Nem toda personalidade em um museu de cera está morta.

Brownie Verdade.

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Lola Pois é. Então a zebra vira só uma caça?

Dr. sharif Tudo bem. Podemos mudar a zebra de posição.

Lola Sério?

Dr. sharif Sério.

Lola Agora?

Dr. sharif Depois. Sabe o que eu penso às vezes, Lola?

Lola Não.

Rudy Claro que ela não sabe.

Brownie Ele acha estranho conversar com girafas mortas, mas pensa que a menina pode ler pensamentos agora?

Dr. sharif (Voltando-se para as girafas) Foi uma pergunta retórica. (Para Lola) Se eu fosse taxidermizado, iam me colocar exatamente aqui. Do jeito que eu estou agora. Ou taxidermizando outro bicho.

Lola É assim que você se imagina, para sempre?

Dr. sharif É. E você?

Lola Eu o quê?

Dr. sharif Imagina-se como?

Lola Empalhada?

Dr. sharif É. Como você se imagina, para sempre?

Lola Não sei. (Tempo) Brincando com o Toy... Sentada na mesa da cozinha enquanto minha mãe faz o almoço e meu pai reclama... Olhando meu irmão dormir... Casando com o menino que morava perto da nossa casa.

Dr. sharif O que aconteceu com ele?

Lola Morreu. Faz um mês e quatorze dias.

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Dr. sharif Você contou? (Ela faz que sim com a cabeça. Tempo) Você notou uma coisa, Lola?

Lola O quê?

Dr. sharif Nas cenas que você imaginou, todas as outras pessoas já estão mortas.

Lola É.

Rudy É verdade.

Brownie Ele percebeu bem.

Dr. sharif As únicas coisas que prendem você aqui já morreram.

Lola Não é a mesma coisa com você?

Dr. sharif (Depois de tempo) Certo. Vamos mudar a zebra de lugar.

(Saem os dois)

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Cena 11

Rudy A menina é mais esperta que ele.

Brownie É.

(Entra Toy com uma mala)

Rudy O cachorro.

Brownie Com uma mala.

Rudy Para onde você vai, Toy?

toy Vou embora. Acho que as coisas vão ficar mais fáceis para a Lola se eu sumir.

Brownie E o que tem nessa mala?

toy Eu. Por alguma convenção estranha eu estou aqui e dentro da mala ao mesmo tempo.

Rudy Eu ouvi o amigo do doutor falando sobre isso.

Brownie A história do barco de Teseu.

toy Deve ser. Eu também acho melhor ela ir embora. De preferência sem nenhuma lembrança minha.

Rudy Especialmente de você empalhado.

Brownie Não é uma lembrança muito boa.

toy O resultado não ficou muito bom, para ser sincero. Sem falsa modéstia, eu acho que era melhor do que isso aqui (aponta a mala).

Rudy Eu acredito. A julgar pela minha orelha. Ela também era bem melhor que isso.

Brownie A esquerda só, querida. A direita é linda.

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toy Agora eles estão lá, mudando a zebra de lugar. Provavelmente não vão perceber se eu for embora.

Rudy Aproveite. Você é um cachorro. Mais fácil fugir sem ser percebido.

Brownie Imagine duas girafas fazendo isso.

toy Vou aproveitar a minha imortalidade conseguida a contragosto e sair por aí, já que esse nosso processo não tem vida útil determinada. Melhor que virar enfeite ou algo do tipo na casa dela.

Rudy Uma mesa de centro.

Brownie Um apoio para os pés.

Rudy Um criado-mudo.

toy É, vocês entenderam a ideia.

Brownie (Para Rudy) Nossa! “Criado-mudo”. Boa.

Rudy O que é que tem?

Brownie Você pensou de forma literal ou como um exemplo a mais de mobília?

Rudy Como assim?

Brownie “Criado”... “mudo”... Hein?

toy Bom, adeus. Espero que ela vá embora também. E logo.

Rudy Até mais ver, Toy.

Brownie Cuide-se.

toy Vocês também. Até.

(Sai Toy)

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Brownie Você sabia que “Toy” é “brinquedo” em inglês?

Rudy Sabia.

Brownie Não é irônico um cachorro com nome de “brinquedo” terminar empalhado?

Rudy Ele não “terminou” empalhado, Brownie. Todos nós aqui “terminamos” antes do doutor nos empalhar.

Brownie É, tem razão.

(Vão saindo)

Rudy E não, não pensei na ironia quando falei do criado-mudo. Pensei só no móvel mesmo.

(Saem)

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Cena 12

(Voltam os quatro cavalos)

Cavalo 2 O doutor é muito influenciável.

Cavalo 1 Ela ficou mesmo com pena da zebra.

Cavalo 4 Da gente ninguém tem pena.

Cavalo 3 “Cavalo de pijamas”. Que piada!

Cavalo 1 Bom, mas elas são da nossa família, sim.

Cavalo 2 Nós morremos no meio de uma batalha e ela tem pena da zebra por causa da cor da pele!

Cavalo 4 E correm mais que nós.

Cavalo 3 A coitadinha de pijama parece muito inofensiva, mas o coice dela é mais forte que o nosso.

Cavalo 2 Ela podia até quebrar a mandíbula de um leão daqueles.

Cavalo 1 Daqui a pouco vocês vão ficar com pena do leão. A zebra é a vítima, não vamos começar com inversões de valores.

Cavalo 2 Ah, você defendendo as minorias! E a gente?

Cavalo 3 É. Você nem zebra é. É um cavalo.

Cavalo 2 Cavalo!

Cavalo 1 Eu não preciso ter nascido zebra para ser simpático a elas. E denunciar a violência que elas sofrem. Assim como nós sofremos. Todos nós somos vítimas aqui.

Cavalo 2 Até o leão.

Cavalo 1 Nesse caso, até o leão sim.

Cavalo 3 Tudo bem, eu não sou contra as zebras. Mas acho que você deveria se preocupar mais com os seus semelhantes.

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Cavalo 2 Uma hora você defende a civilização humana. Outra hora, as zebras. Não podia se preocupar um pouco com os cavalos, seus iguais?

Cavalo 1 Uma coisa não tem a ver com a outra. E a zebra é nossa igual!

Cavalo 2 Você é burro, cara! Somos de subespécies diferentes!

Cavalo 1 “Burro”? Olha, da primeira vez que você disse isso eu não comentei nada, mas agora chega: você acha bacana usar o nome de outro animal para me ofender?

Cavalo 3 Mas são subespécies diferentes mesmo.

Cavalo 1 São! Somos de subespécies diferentes sim! E o que isso quer dizer?

Cavalo 4 Que ela não é nossa igual.

Cavalo 1 Claro que é! E se não fosse? Mesmo assim eu poderia ser solidário com a zebra! E se é para falar sobre diferentes, os humanos são muito mais diferentes dos cavalos que as zebras e você se orgulha de eles darem importância para nós!

Cavalo 3 (Para o Cavalo 4) É, isso foi um pouco colonizado da sua parte.

Cavalo 1 A questão não é essa! Que se danem as diferenças, vocês não percebem? Leões, zebras, cachorros, cavalos, girafas, no final estamos todos aqui, juntos. E qual a nossa vantagem nisso tudo?

Cavalo 2 Eu só acho que ela podia ter se importado mais com a gente.

Cavalo 1 Ela se importou muito com o cachorro que morreu. Pediu para o doutor empalhar, inclusive. Sabe de que adiantou? De nada. Ele está tão morto quanto a gente. Assim como a zebra. Talvez com um pouco mais de técnica no processo porque ao longo dos anos o doutor melhorou nisso, e só.

Cavalo 3 Mas isso não muda o fato de que a zebra...

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Cavalo 1 A zebra é nossa igual sim! E, se não fosse, o que muda? E mesmo sabendo que o leão come a zebra porque tem que se alimentar, eu concordo com a menina: depois dos dois mortos eles não precisam ficar mais presos nesta cena pela eternidade! E se alguém é responsável por essa merda toda são os homens! Você sabia que existem negros, brancos, orientais e mais um monte de raças que vieram a partir da mistura dessa gente toda? E eles nem sabem se o termo “raça” é o melhor, porque no fundo são de uma única espécie! Não são zebras e leões uns dos outros. Nem são subgrupos! Nem são zebras e cavalos! E ainda assim se matam! E ainda colocam a gente no pacote!

Cavalo 4 (Depois de um tempo) É. Ele tem um ponto.

Cavalo 2 É.

Cavalo 3 Que merda, não?

Cavalo 4 Poxa, fiquei com pena da zebra.

Cavalo 2 Eu também. Maldito seja o polegar opositor.

Cavalo 1 Maldito seja.

(Saem)

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Cena 13

(Entra a Zebra)

zebra São cinco e meia da tarde, é um domingo. Lola e o Dr. Sharif acabaram de me mudar de lugar. Em algum ponto da cidade, perto dos túneis, o amigo do Dr. Sharif – o médico que virou entregador de pizzas – negocia que os três sejam levados para o outro lado. De lá, ele pretende encontrar ajuda para sair do país e começar a vida em outro lugar. Ele dá todas as suas economias como parte do pagamento e diz que o Dr. Sharif ajudará com pelo menos o mesmo tanto. O sujeito olha as notas, conta uma a uma e acena com a cabeça afirmativamente. São quase seis horas da tarde quando Jamal volta. Eu ainda estou sendo admirada por Lola e pelo doutor quando ele entra e conta as novidades. Lola, que não sabia de nada, diz que só concorda se o doutor for junto. Ele reluta. Jamal tenta convencer os dois. No começo da noite todos devem estar lá com o resto do dinheiro. São seis e quinze da tarde quando os primeiros disparos e explosões começam a ser ouvidos aqui perto. Seis e dezesseis: eles continuam a discussão sobre a importância de ir embora. Seis e dezoito: Jamal vai até a janela. Seis e dezenove: o doutor se aproxima dele. Seis e dezenove e trinta e dois: Lola grita para que eles se afastem. Seis e vinte: os sons de tiros e explosões ficam mais altos, pessoas gritam lá fora. Seis e vinte e um: Dr. Sharif e Jamal se afastam da janela e gritam para que Lola se deite no chão. Seis e vinte e um: a duzentos metros de distância um soldado atira, sem mirar, para a frente. Seis e vinte e um e cinco: Lola cai no chão. Seis e trinta: o barulho cessa e os dois, que estavam deitados até esse momento, voltam a olhar pela janela. Seis e trinta e vinte segundos: convencidos de que o perigo passou, voltam-se para Lola, e só então percebem que ela não está mais viva.

(Sai)

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Cena 14

(Palco vazio. Entra Lola)

Lola A pele dos seres humanos é diferente da dos animais, que tem muito pelo. Ela fica muito mais aparente. Como o processo de taxidermização acaba causando manchas amarronzadas e pretas, fazer isso com um ser humano é arriscado porque o resultado pode ser bem feio. Acho que no meu caso foi quase um milagre. Sei lá. Às vezes eu penso que o Dr. Sharif estava esse tempo todo se preparando para quando chegasse a minha vez. Ele queria me convencer a ir embora e no final das contas eu acabei aqui, para sempre. E virei mais um motivo para ele não ir. Algumas coisas me deixaram surpresa nessa minha vida depois da morte: não ter encontrado minha mãe, nem meu pai, nem meu irmão, nem o menino que morava perto. Nem o Toy. Eu também achava que o Dr. Sharif falava com os animais que ele empalhou quando ninguém estava vendo. Mas pelo menos comigo ele nunca falou. Eu também não tentei falar com ele. Talvez ele não queira falar comigo. Não sei. Mas eu não me arrependi de mudar a zebra de lugar. Acho que foi a coisa certa. Acho que foi a coisa certa sim. (Dr. Sharif, ao fundo, fuma um cigarro)

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Prefeitura de são Paulo Fernando Haddad secretaria de Cultura Nabil Bonduki Centro Cultural são Paulo | Direção geral Pena Schmidt Divisão administrativa Diogo Lima Oliveira e equipe Divisão de Curadoria e Programação Branca López Ruiz e equipe Divisão de acervo, Documentação e Conservação Aloysio Lazzarini de Almeida Nogueira Divisão de Bibliotecas Waltemir Jango Belli Nalles e equipe Divisão de Produção e apoio a eventos Luciana Mantovani e equipe Divisão de informação e Comunicação Marcio Yonamine e equipe Divisão de ação Cultural e educativa Alexandre Araujo Bispo e equipe Coordenação técnica de Projetos Priscilla Maranhão e equipe o taxidermista estreou em 10 de julho de 2015 no Centro Cultural São Paulo | texto e Direção René Piazentin elenco Aline Baba, Kedma Franza, Luana Frez, Renata Weinberger, Rodrigo Sanches e Waldir Medeiros assistência de Direção Alexandre Passos e Vanusa Costa iluminação René Piazentin e Rodrigo Sanches Figurinos René Piazentin e Vanusa Costa Cenário René Piazentin

CCsP | Curadoria de teatro Kil Abreu Projeto gráfico Solange de Azevedo impressão Gráfica do CCSP

texto vencedor do edital i Mostra de dramaturgia em pequenos formatos cênicos do Centro Cultural são Paulo 2014

distribuição: gratuita, no CCSP tiragem: 2000 exemplares são Paulo, 2015

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