Platão e Benjamin

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    1/11

    Cultura Prtica social como objeto de investigao

    Culture Social practice as object of investigation

    Prticas culturais de leitura e construo da subjetividade

    Solange Jobim e Souza, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Faculdade de

    Educao, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

    O mundo atual se caracteriza pela pluralidade das formas de compreender a realidade,

    exigindo o surgimento de novas narrativas no processo de produo de conhecimento. Este

    fato sugere a necessidade de reavaliarmos as condies da produo do saber hoje e os

    efeitos da diversidade de experincias scio-poltico-econmicas e das novas tecnologias

    nas prticas culturais de leitura / escrita. Dito isto, nos indagamos: quais as condies sociais

    e culturais da leitura e da escrita nos dias de hoje? Como crianas, jovens e adultos lem, o

    que lem, como lem? Estas questes esto diretamente relacionadas com as formas deproduo do conhecimento na contemporaneidade, exigindo uma reflexo que explicite os

    condicionamentos que levam s transformaes do ato de ler e de escrever. Estes se

    apresentam como uma conseqncia de toda uma evoluo, ao longo dos sculos, das

    foras produtivas. Isto significa dizer que as mudanas que vem ocorrendo nos modos de

    produo de bens materiais no mundo globalizado refletem-se em todos os setores da

    cultura e da subjetividade.

    Atravs da leitura e da escrita o homem conquistou o instrumento tcnico que lhe faltava, em

    um dado momento da sua histria, para instrumentalizar suas criaes, preservar e exercer

    controle sobre a memria dos acontecimentos e fazer o pensamento circular entre pessoas

    atravs dos tempos. A escrita , portanto, uma tecnologia criada pelo homem para preservar

    as lembranas, alm de potencializar as criaes culturais. Entretanto, Plato, em Fedro,

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    2/11

    desafia nossa reflexo sobre escrita e memria, nos conduzindo a uma outra direo,

    dizendo o seguinte:

    ... quando chegou a vez da inveno da escrita, exclamou Thoth: Eis, oh Rei, uma

    arte que tornar os egpcios mais sbios e os ajudar a fortalecer a memria, pois com

    a escrita descobri o remdio para a memria.

    - Oh, Thoth, mestre incomparvel, uma coisa inventar uma arte, outra julgar os

    benefcios ou prejuzos que dela adviro para os outros! Tu, neste momento e como

    inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrrio do que ela pode

    vir a fazer! Ela tornar os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever,

    deixaro de exercitar a memria, confiando apenas nas escrituras, e s se lembraro

    de um assunto por fora de motivos exteriores, por meio de sinais, e no dos assuntos

    em si mesmos. Por isso, no inventaste um remdio para a memria, mas sim para a

    rememorao. Quanto transmisso do ensino, transmites aos teus alunos, no a

    sabedoria em si mesma mas apenas uma aparncia de sabedoria, pois passaro a

    receber uma grande soma de informaes sem a respectiva educao! Ho de parecer

    homens de saber, embora no passem de ignorantes em muitas matrias e tornar-se-

    o, por conseqncia, sbios imaginrios, em vez de sbios verdadeiros! (Plato,

    Fedro, 1994, p. 121)

    Plato nos chama a ateno para o momento histrico em que a narrativa comea a ser

    gradualmente expulsa da esfera do discurso vivo, alertando para as conseqncias

    subjetivas de tal transformao mediada pelo advento da escrita. A presena do outro,

    mensageiro da palavra prpria e da palavra alheia, no mais necessria. Para Walter

    Benjamin (1996) esta mudana se reflete na figura do narrador, aquele que se encontrava

    entre os mestres e os sbios, homem que sabia dar conselhos. Mas dar conselhos tornou-se

    antiquado na sociedade em que as informaes so incontveis e circulam velozmente. Asexperincias, ponto de encontro da vida e dilogo entre geraes, esto deixando de ser

    comunicveis. Em conseqncia, diz Benjamin, no podemos dar conselhos nem a ns

    mesmos nem aos outros. A reminiscncia o fundamento da tradio, pois permite a

    transmisso dos acontecimentos de gerao em gerao, tecendo uma rede na qual todas

    as histrias se constituem entre si. Deste modo, aconselhar, para Benjamin, menos

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    3/11

    responder a uma pergunta que fazer uma sugesto sobre a continuao de uma histria que

    est sendo narrada. ... O conselho tecido na substncia viva da existncia tem um nome:

    sabedoria (p.200).

    O que est em discusso atravs das palavras de Walter Benjamin, e num certo modo

    tambm em Plato, que as transformaes da narrativa no mundo contemporneo no

    podem ser analisadas fora do contexto mais amplo das relaes de produo da sociedade

    atual. Se o narrador sabia contar histrias e mantinha uma relao artesanal entre a

    linguagem e a vida humana, hoje a informao um jogo de linguagem que se assemelha

    velocidade com que as coisas do mundo moderno so rapidamente substitudas,

    transformam-se em mercadoria, at mesmo as palavras que circulam entre as pessoas. A

    informao, desvinculada do dilogo vivo, pode nos conduzir, como diz Plato, a umaaparncia de sabedoria, nos tornando a todos sbios imaginrios e no verdadeiros sbios.

    E Benjamin, continuando esta reflexo, acrescenta que ... a arte de narrar est definhando

    porque a sabedoria o lado pico da verdade est em extino(p.201).

    Para Benjamin, contar histrias ... sempre foi a arte de cont-las de novo, e ela se perde

    quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou

    tece enquanto ouve a histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais

    profundamente se grava nele o que ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele,

    ele escuta as histrias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narr-las.

    Assim se teceu a rede em que est guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz

    hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, h milnios, em torno das mais antigas

    formas de trabalho manual. ....

    Na verdadeira narrao, a mo intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na

    experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que dito. (p. 205 -

    221).

    Mas as relaes de produo, alm de alterarem o fluxo da narrativa, alteram de forma

    radical a relao com o tempo. A escrita estabelece uma mediao necessria entre a

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    4/11

    linguagem falada e a experincia com a temporalidade. O conhecimento e a experincia do

    homem com a temporalidade se implicam mutuamente, modificando tanto as formas de gerar

    conhecimento, como alterando o prprio sentido do tempo para cada um de ns. Deste

    modo, o conhecimento e a experincia com a temporalidade se transformam medida em

    que novas tecnologias vo sendo criadas e redefinem, portanto, o tempo e o saber.

    Mais recentemente, estas mesmas questes foram retomadas por Pierre Levy (1995), que

    apresenta, de um modo mais sistemtico, ou didtico, os diferentes momentos de

    transformao do homem na sua relao com a linguagem. Porm, o seu propsito discutir

    os efeitos das tecnologias da inteligncia nos modos de conhecimento e subjetivao na

    contemporaneidade. No primeiro tempo, denominado tempo da oralidade primria,

    linguagem e memria eram dois aspectos de um mesmo fenmeno. A organizao temporalda narrativa desenhava o tempo como circular. As histrias eram contadas de boca em boca,

    preservando uma estreita relao entre a vida, a linguagem e a memria. O tempo se repetia

    na linguagem, no contar sempre de novo as histrias. A idia que no fosse retomada e

    repetida em voz alta estava condenada ao desaparecimento. O conhecimento ento se

    constitua na reiterao da narrativa oral e a linguagem revelava a experincia circular com o

    tempo. Todo o acervo cultural do homem estava na manuteno do crculo progressivo das

    lembranas. A inveno da escrita vai, contudo, interromper a cadeia da circularidade das

    narrativas orais. O segundo tempo, tempo da escrita, vai interferir de forma decisiva no modo

    de conhecer. Ao escrever a sua histria o homem rompe com a circularidade temporal e

    inaugura uma nova experincia com a temporalidade, o tempo cronolgico e linear. Neste

    momento, opera-se uma transformao fundamental, pois o conhecimento comea a ser

    separado do sujeito que o produz e um novo problema se coloca: a questo da verdade,

    principal preocupao da cincia moderna. Enquanto os homens contavam uns para os

    outros as suas histrias, o sentido ia sendo construdo no dilogo. A presena do falante e do

    ouvinte garantia a compreenso e o controle da verdade. Esta preocupao j estava

    presente no dilogo entre Scrates e Fedro, como podemos constatar a seguir:

    Socrtes O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com

    a pintura. As figuras tm atitudes de seres vivos mas, se algum as interroga, manter-

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    5/11

    se-o silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se

    estas estivessem vivas, mas, se algum os interroga, no intuito de obter um

    esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um

    discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que no podem

    compreend-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem no serve.Quando menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda

    do seu autor, pois no capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo

    ( Plato, 1994, p. 122-123).

    A escrita vai, portanto, marcar uma primeira e grande ciso do homem no s com a sua

    memria, mas, tambm, com os modos anteriores de gerar conhecimento. A memria natural

    vai sendo substituda pela memria artificial. Quanto mais o mundo avana e se torna

    complexo e sofisticado, mais o homem necessita de novas tecnologias para dar conta do

    enorme turbilho de informaes que circulam velozmente entre ns. Hoje vivemos o terceiro

    tempo, tempo da informtica, da telemtica, ou seja, tempo da mais absoluta digitalizao e

    condensao da experincia humana em chips, imagens, impulsos eletrnicos, etc. A

    objetificao da memria se automatiza a tal ponto que nos indagamos se a noo que

    temos de memria ainda pertinente. A tecnologia nos conduz a novas indagaes e a uma

    nova conscincia dos movimentos da memria, materializando uma experincia que imita a

    mente humana no seu modo de associao simultnea de idias. O pensamento pode serrepresentado como um texto que se ramifica, construindo, na confluncia de diferentes vozes

    e imagens, um equilbrio entre o espao, o tempo e o sujeito. Torna-se possvel intervir no

    fluxo da narrativa permitindo que a simultaneidade e a transversalidade da experincia

    subjetiva seja representvel no espao e no tempo. A tcnica permite ampliar, para fora do

    sujeito, o prprio processo de cognio, produo e transmisso de conhecimentos. Cada

    vez mais o conhecimento se equipara a processos hbridos, compondo uma rede que liga

    lembranas, acontecimentos, textos, imagens, objetos, etc. O pensamento, com ajuda da

    tecnologia, revela-se como um imenso hipertexto. Com a tecnologia conquisto uma

    conscincia mais profunda do modo de funcionamento do pensamento humano, o que acaba

    por transformar o prprio pensamento em produto da cultura.

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    6/11

    Walter Benjamin (1996) afirma: Nunca houve um monumento de cultura que no fosse

    tambm um monumento de barbrie. E, assim como a cultura no isenta de barbrie, no

    o , tampouco, o processo de transmisso da cultura (p.225). Esta frase exige reflexo e

    tomada de conscincia dos efeitos que a tecnologia traz para a experincia humana. Embora

    seja evidente toda a positividade da tecnologia para o progresso da humanidade, a atitude

    crtica indispensvel para no sermos contagiados pela euforia ingnua que tomou conta

    da humanidade na poca moderna. talo Calvino (1990) nos alerta:

    Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de no

    podermos distinguir a experincia direta daquilo que vimos a poucos segundos na

    televiso. Em nossa memria se depositam por extratos sucessivos mil estilhaos de

    imagens semelhantes a um depsito de lixo onde cada vez menos provvel que umadelas adquira relevo (p. 107).

    Que transformaes culturais esto na base das novas prticas sociais de leitura e escrita

    hoje? Walter Benjamin responde:

    ... A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua

    existncia autnoma, inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e

    submetida s brutais heteronomias do caos econmico. Essa a rigorosa escola desua nova forma. Se h sculos ela havia gradualmente comeado a deitar-se, da

    inscrio ereta tornou-se manuscrito repousando oblquo sobre a escrivaninha, para

    afinal acamar-se na impresso, ela comea agora, com e mesma lentido, a erguer-se

    novamente do cho. J o jornal lido mais a prumo que na horizontal, filmes e

    reclames foram a escrita a submeter-se de todo ditatorial verticalidade. E, antes que

    um contemporneo chegue a abrir um livro, caiu sobre os seus olhos um to denso

    turbilho de letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua

    penetrao na arcaica quietude do livro se tornaram mnimas. Nuvens de gafanhotosde escritura, que hoje j obscurecem o cu do pretenso esprito para os habitantes das

    grandes cidades, se tornaro mais densas a cada ano seguinte (p.28, 1986).

    Escrito em 1930, o prognstico de Benjamin ainda atual. Porm cabe a ns continuarmos a

    encontrar respostas s novas indagaes que o nosso tempo suscita. Estas novas

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    7/11

    modalidades de leitura esto nos formando, habilitando nossos rgos perceptivos e

    intelectuais em novas direes, transformando nossa relao com o conhecimento. Se o livro

    exige concentrao, um mergulhar atendo e intencional nos signos impressos para extrair

    sentidos da narrativa textual, por outro lado a leitura que fazemos das imagens-signos que

    circulam de forma intermitente requer disperso. Ou seja, uma nova forma de lidar com a

    informao e o conhecimento j nos habita e entra em conflito com antigas formas de leitura.

    Que aprendizado podemos desenvolver a partir desta experincia?

    As diferentes possibilidades de leitura que vo sendo criadas com base nas novas

    tecnologias da linguagem um renovado desafio para o potencial criativo do homem. Desde

    as primeiras formas de impresso, at as formas mais contemporneas de leitura (cinema,

    TV, vdeo, computador, etc), percebemos como cada vez mais difcil uma definio precisae nica de leitura e escrita. O turbilho de imagens que nos atravessa cotidianamente

    anuncia a necessidade de construirmos novos conceitos sobre leitura e escrita que

    incorporem a experincia com imagens-signos, enfim, que explicitem uma compreenso

    crtica da experincia do homem com o mundo virtual. Entretanto, cabe ressaltar que o livro

    continua tendo um lugar fundamental nesta rede hbrida. Na verdade o livro se afirma como

    um dos elos neste imenso hipertexto que atualiza a nossa relao com a cultura. O

    hipertexto o exemplo mais marcante e atual da transformao do ato de leitura como

    recriao dos movimentos do pensamento, ou melhor, da subjetividade do leitor; mas o

    hipertexto tambm configura a experincia do sujeito com a realidade externa, impregnada

    por uma multiplicidade de imagens-signos. A cada instante surgem novas narrativas para

    serem decifradas e interpretadas pelos sujeitos que nascem e se criam na civilizao da

    imagem.

    Nos indagamos, junto com talo Calvino, que futuro estar reservado imaginao individual

    no contexto do que se convencionou chamar civilizao da imagem? O poder de evocar

    imagens na ausncia delas continuar a se desenvolver numa civilizao inundada pelo

    dilvio das imagens pr-fabricadas? Estas questes so cruciais para a educao e orientam

    o re-encontro com a literatura como forma de resgate da dimenso criativa do ato de ler.

    Calvino assegura que se a criao da escrita foi o fato cultural que desencadeou o processo

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    8/11

    de ciso entre o homem e a linguagem, somente atravs dela possvel superar essa ciso,

    ou seja, trabalhando com a escrita que construmos os instrumentos necessrios para

    superar a ciso constituda a partir dela. Portanto, a tarefa do educador hoje incentivar a

    pedagogia da imaginao e, desta forma, redefinir os caminhos para a realizao do

    verdadeiro leitor e escritor contemporneos. Mas, como definir o verdadeiro leitor e o ato de

    ler?

    A verdadeira leitura para Walter Benjamin (1987) o encontro do mgico e do profano no ato

    de ler:

    O colegial l o abecedrio e o astrlogo o futuro contido nas estrelas. No primeiro

    exemplo o ato de ler no se desdobra em seus dois componentes. O mesmo noocorre no segundo caso e torna manifesto os dois extratos da leitura. O astrlogo l no

    cu a posio dos astros e l ao mesmo tempo nessa posio o futuro e o destino (p.

    112).

    O profano o aspecto instrumental da leitura, o reconhecimento das letras, a formao das

    palavras, frases, textos.... Porm, o aspecto mgico que permite recuperar o sentido

    daquilo que se est lendo, ou seja, o verdadeiro ato de ler acontece no cruzamento da leitura

    profana com a leitura mgica. A leitura profana deve submeter-se ao momento crtico do

    leitor, pois o momento crtico o momento mgico, quando o sentido emerge e ilumina a

    alma do leitor de sabedoria. Com a leitura nos tornamos capazes de recuperar a

    continuidade de uma histria, que j no mais se d de um modo circunstancial e restrito,

    entre um narrador e um ouvinte, mas na grande temporalidade, ampliando

    incomensuravelmente as possibilidades infinitas de encontros entre comunidades de leitores

    e escritores que esto em espaos e tempos diferentes.

    Mas ser que o duplo sentido da palavra leitura (o profano e o mgico) se realiza plenamente

    entre ns? Lamentavelmente, temos constatado que este leitor vem se tornando cada vez

    mais raro entre ns. Como compreender este fato?

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    9/11

    A escola, ao se preocupar apenas com o lado profano da leitura, elimina a relao com o

    mgico e faz da leitura uma prtica burocrtica, desprovida de saber e de afeto. Desprovida

    da sua capacidade de impregnar o leitor com imagens, a leitura torna-se tarefa,

    decodificao de signos, trabalho que desconhece o ldico e nega o prazer no ato de ler.

    Neste aspecto, o educador contemporneo enfrenta um grande desafio. Se verdade que

    na escola que a criana tem oportunidade de entrar em contato, de forma sistemtica, com

    as prticas de leitura e escrita, tambm neste espao onde ela perde talvez a possibilidade

    de construir uma relao amorosa com a leitura e a escrita. Uma pedagogia da imaginao

    dever, antes de mais nada, colocar a leitura a servio da emancipao criativa do aluno.

    O verdadeiro ato de ler no perde o seu entrelaamento original com a oralidade primria,aquela fase da experincia humana que, segundo Levy, linguagem e memria eram

    elementos indissociveis e complementares. A leitura implica sociabilidade, ou melhor, a

    leitura s se realiza plenamente quando o leitor sabe compartilhar com outras pessoas,

    presentes ou ausentes, significaes. Benjamin nos traz a figura do narrador como aquele

    que pode recorrer ao acervo de toda uma vida, uma vida que no inclui apenas a prpria

    experincia, mas em grande parte a experincia alheia, assimilando sua substncia mais

    ntima aquilo que sabe por ouvir dizer.

    A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de arteso no campo, no

    mar e na cidade -, ela prpria, num certo sentido, uma forma artesanal de

    comunicao. Ela no est interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada

    como uma informao ou um relatrio. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para

    em seguida retir-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador,como a

    mo do oleiro na argila do vaso. (p. 205).

    A leitura que conjuga o profano e o mgico no um ato solitrio, mas o encontro com as

    muitas vozes que ecoam no texto de um escritor e que s tero oportunidade de se

    manifestarem atravs do encontro marcado entre o leitor e o texto. A leitura comunho, o

    momento em que o indivduo isolado se v frente possibilidade de reconhecer a sua

    insero particular na histria de uma poca. Com base na narrativa de outrem, a minha

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    10/11

    prpria identidade se restabelece. Ler um modo de viajar e se deixar impregnar pela nvoa

    do desconhecido. O desafio maior que enfrentamos hoje preservar a dimenso mgica da

    leitura no contexto da utilizao da tecnologia. O duplo sentido da palavra leitura incorpora as

    novas mediaes tcnicas. Entretanto, este novo modo de leitura instrumental precisa

    partilhar com a leitura mgica a possibilidade de submeter-se ao tempo do leitor. O tempo do

    leitor a garantia da atividade crtica, dando uma nova permanncia histrica e cultural s

    narrativas que se constituem e se renovam na grande temporalidade.

    Entre o mgico e o profano, ou entre o profano e o mgico, h uma idia de literatura que

    no pode ser abandonada, mas em que forma textual do futuro esta idia continuar se

    revelando para ns? Que novas formas de sociabilidade a tecnologia nos proporciona?

    Referncias bibliogrficas

    BENJAMIN, Walter (1996) O Narrador. Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In:

    Walter Benjamin Obras escolhidas, Vol. I, Brasiliense, So Paulo (10a reimpresso).

    ________ A doutrina das semelhanas. In: Walter Benjamin Obras escolhidas, Vol. I,

    Brasiliense, So Paulo (10a reimpresso).

    CALVINO, Italo (1990) Seis propostas para o prximo milnio, Companhia das Letras, So

    Paulo.

    JOBIM e SOUZA, Solange (1996) Leitura: entre o mgico e o profano. Os caminhos

    cruzados de Bakhtin, Benjamin e Calvino. In: Faraco, C. et alli. Dilogos com Bakhtin.

    Editora UFPR, Curitiba.

    LEVY, Pierre (1995) As tecnologias da inteligncia. O futuro do pensamento na era da

    informtica. Editora 34, Rio de Janeiro.

    PLATO (1994) Fedro ou da Beleza. Guimares Editores, Lisboa (5a edio).

  • 8/9/2019 Plato e Benjamin

    11/11

    Abstract

    The contemporary world is characterized by the plurarity of forms to comprehend reality,

    demanding the appearance of new narratives. This fact suggests the necessity to reappraise

    the conditions of construction of knowledge today and the effects of the diversity of social,

    political and economical experiences, but mainly the effects of new technologies in the

    cultural practices of reading and writing. The aesthetic fascination is everywhere, making

    contemporary culture a figurative culture, in which the emphasis on images, rather than on

    words, creates new relations of man with desire and knowledge. The interest here is to

    comprehend how these practices mediate the process of constitution of subjectivity and

    globalization.

    The sense of the image is formed in its relation with other people, leading either to

    regressive or emancipatory solutions. Therefore, the comprehension of the effects of image

    on the constitution of subjectivity and also in the forms of knowledge nowadays, must take

    into account the communication contexts in which it is produced, the history of its

    interpretation and its cultural specifications.

    Our purpose is to provoke a discussion that will lead to new comprehension possibilities ofthe effects that the culture of image has over us, confronting the reading of images with the

    canonical forms of reading and writing in present times.