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1 A Interpretação de Romanos 9 Daniel Gouvêa Introdução A presente monografia tem por objetivo a interpretação do capítulo 9 da carta de Paulo aos Romanos. Devido à forte ênfase que muitos cristãos têm dado ao seu próprio sistema teológico, a interpretação deste texto tem comumente chegado aos nossos seminários e púlpitos bastante impregnados pelos pressupostos de tais sistemas. Embora precisamos admitir que ninguém esteja totalmente livre ou isento de pressupostos, é a honesta tentativa do presente trabalho procurar apresentar o que o apóstolo Paulo queria dizer neste capítulo, esperando assim contribuir para o entendimento do mesmo. Para isso, usaremos os seguintes princípios: Primeiro, consideraremos o capítulo à luz de toda a epístola, bem como à luz dos capítulos 10 e 11 pois, do contrário, obteremos uma compreensão “inteiramente não paulina do texto”. 1 Segundo, procuraremos ao máximo possível utilizar uma terminologia bíblica, ou seja, aquelas palavras escritas no próprio texto bíblico, para tentar assim evitar que as terminologias peculiares dos sistemas teológicos dominem sobre as do texto bíblico. 2 Terceiro, tentaremos lidar com exegetas de diferentes confissões que vêm interpretando tal passagem. Finalmente, após tais princípios, ofereceremos uma proposta referente ao que Paulo escreveu em Romanos 9. O Capítulo 9 de Romanos à Luz de toda a Carta Há um consenso geral entre os estudiosos de que o tema da justificação pela fé permeia a carta aos romanos e que tal justificação é necessária tanto para o judeu 1 C.E.B. Cranfield, Comentário de Romanos, p. 202. 2 Não há problemas e é bastante natural adotar sistemas teológicos ou terminologias que facilitem o entendimento das questões pertinentes à teologia. Como dizem muitos teólogos sistemáticos e bíblicos, tal atitude é peculiar da natureza organizadora do intelecto humano. Contudo, a intenção desta monografia, é a tentativa de trafegar do texto para um sistema e não o contrário.

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A Interpretação de Romanos 9

Daniel Gouvêa

Introdução

A presente monografia tem por objetivo a interpretação do capítulo 9 da carta de

Paulo aos Romanos. Devido à forte ênfase que muitos cristãos têm dado ao seu

próprio sistema teológico, a interpretação deste texto tem comumente chegado aos

nossos seminários e púlpitos bastante impregnados pelos pressupostos de tais

sistemas. Embora precisamos admitir que ninguém esteja totalmente livre ou isento

de pressupostos, é a honesta tentativa do presente trabalho procurar apresentar o

que o apóstolo Paulo queria dizer neste capítulo, esperando assim contribuir para o

entendimento do mesmo. Para isso, usaremos os seguintes princípios:

Primeiro, consideraremos o capítulo à luz de toda a epístola, bem como à luz dos

capítulos 10 e 11 pois, do contrário, obteremos uma compreensão “inteiramente não

paulina do texto”. 1

Segundo, procuraremos ao máximo possível utilizar uma terminologia bíblica, ou

seja, aquelas palavras escritas no próprio texto bíblico, para tentar assim evitar que

as terminologias peculiares dos sistemas teológicos dominem sobre as do texto

bíblico.2

Terceiro, tentaremos lidar com exegetas de diferentes confissões que vêm

interpretando tal passagem.

Finalmente, após tais princípios, ofereceremos uma proposta referente ao que Paulo

escreveu em Romanos 9.

O Capítulo 9 de Romanos à Luz de toda a Carta

Há um consenso geral entre os estudiosos de que o tema da justificação pela fé

permeia a carta aos romanos e que tal justificação é necessária tanto para o judeu

1 C.E.B. Cranfield, Comentário de Romanos, p. 202.

2 Não há problemas e é bastante natural adotar sistemas teológicos ou terminologias que facilitem o

entendimento das questões pertinentes à teologia. Como dizem muitos teólogos sistemáticos e bíblicos, tal

atitude é peculiar da natureza organizadora do intelecto humano. Contudo, a intenção desta monografia, é a

tentativa de trafegar do texto para um sistema e não o contrário.

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quanto para o gentio. 3 Apesar de alguns entenderem Romanos 9 como algo abrupto

ao contexto da carta, 4 podemos observar ao longo da mesma que este não é o caso

e que, de fato, o tema judeus ocupa em grande medida o pensamento de Paulo na

epístola. Nos capítulos 1, 2, 3, 9, 10, 11 e 15 o apóstolo volta sua atenção para o

povo judeu e até mesmo no capítulo 4 o exemplo de justificação pela fé é de um

israelita: Abraão, o próprio pai da nação judaica.

Um dos motivos pelos quais os judeus estavam na mente de Paulo nesta carta

deve-se ao fato de que o apóstolo sabia muito bem das reações destes em relação

ao evangelho que pregava. Isso é evidente pelo tom retórico/apologético contido nos

textos onde os judeus são mencionados. Entretanto, não podemos olvidar do fato

que “Paulo estava respondendo a controvérsias existentes na igreja de Roma entre

judeus e gentios”, 5 especialmente devido ao fato de que um dos propósitos do

apóstolo era chegar à Espanha, e Roma serviria bem como uma estação de

passagem para cumprir tal objetivo. 6 Portanto, esclarecer qualquer dúvida para

judeus e gentios quanto ao evangelho que pregava era um imperativo para Paulo.

Por isso, observamos desde os primeiros versículos da carta expressões usadas por

Paulo que eram bem familiares aos judeus, tais como: a menção aos profetas (1:2),

as Escrituras (1:2), a linhagem davídica de Jesus (1:3), linhagem esta que, além de

ser judaica, é real. Vale lembrar que quando Mateus escreveu seu evangelho,

tipicamente endereçado a judeus, ele também menciona a linhagem real e judaica

de Jesus. Sabemos, entretanto, que Romanos não é uma carta tipicamente judaica,

mas sem dúvida a preocupação de Paulo para com os judeus, ou mais

especificamente solucionar controvérsias entre judeus e gentios, é assunto notório

nessa epístola.

Em linhas gerais, observamos que o argumento de Paulo trafega na direção de que

o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo o que crê, tanto judeus

como gentios (1:16). A razão disso é que tanto judeus como gentios estão debaixo

da ira de Deus (capítulos 1-2), logo, todos são culpados perante Deus (3:23). Tanto

3 Veja por exemplo em: J. Barmby, The Pulpit Commentary, p. x.

4 Segundo Agostinho, Sanday, Helddalm, Dood, e Beker, este capítulo não é consistente com a teologia Paulina.

Veja em: Grant R. Osborne, Romans: The IVP New Testament Commentary Series, p.233. Grant ainda observa

o fato de o próprio Beker ainda assim dizer que os capítulos 9-11 são o coração da epístola. 5 Douglas J. Moo, The Epistle to the Romans, The New International commentary on the New Testament, p. 548

6 Erich Mauerhofer, Uma Introdução aos Escritos do Novo Testamento, p.409.

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gentios como judeus precisam de justificação pela fé (3:29-30), e o exemplo que

Paulo menciona de justificação pela fé é o do pai da nação judaica, ou seja, Abraão

(capítulo 4). No capítulo 5 observamos que o objeto da fé para a justificação é Jesus

Cristo. No capítulo 6 notamos o estilo de vida santo peculiar dos justificados que

estão debaixo da graça e não da lei, enquanto no capitulo 7 observamos quão

frustrante é a tentativa de viver pela lei, 7 às expensas da obra de Cristo. Assim, o

capítulo 8 fala acerca do “poder da santificação que permite aos crentes desfrutarem

do ministério do Espírito, que dá segurança de vitória na vida cristã” 8. Diante de

tamanho benefício declarado ao cristão no capítulo 8, os capítulos 9-11 tornam-se

urgentes9, pois como fica o povo judeu nessa questão, uma vez que em sua maioria

estava rejeitando a mensagem do evangelho proclamado por Paulo e se estribando

em seus próprios méritos e descendência abraâmica? 10 Se o povo judeu, o povo de

Javé, estava sendo rejeitado, porque os cristãos não o haveriam de ser também? É

7 Existe aqui o antigo debate se o texto está falando de um convertido vivendo as lutas da vida cristã, ou se é a

descrição de um incrédulo frustrado por tentar viver a vida pela lei e não conseguir. Em minha opinião, a

segunda opção é mais coerente com o contexto da carta e do próprio capítulo, pois aqui parece apresentar uma

vida de derrota, que é amplamente minimizada no capítulo 8. Wallace faz uma tentativa de harmonizar as duas

coisas em Daniel B. Wallace, Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento p. 531-532. 8 Carlos Osvaldo Pinto, Foco e Desenvolvimento do N.T, p. 244

9 C.E.B. Cranfield, Comentário de Romanos, p.202

10 Ao mencionar os méritos da descendência abraâmica, não podemos ignorar os estudos paulinos realizados

desde Sthendahl na década de 60, bem como o provocativo trabalho de Sanders realizado posteriormente na

década de 70. Nesse trabalho intitulado Paul and Palestinian Judaism, Sanders pesquisou a literatura rabínica

disponível desde 200 a.C até 200 d.C. Após tal estudo Sanders cunhou o termo “nomismo da aliança”, que é a

visão de que o “lugar de uma pessoa nos planos de Deus está estabelecido com base na aliança e que a

exigência da aliança exige como resposta apropriada dos seres humanos sua obediência aos mandamentos da

aliança (Dunn)”. Em suma, a idéia é de que os judeus não acreditavam na salvação por obras, mas pela graça de

Deus em ter feito uma aliança com seu povo a partir de Abraão. Entretanto, a permanência dessa aliança

dependeria da obediência aos mandamentos. Como diz Schreiner: “Deus primeiro redime Israel do Egito e

depois dá a Lei, de modo que a obediência à Lei é uma resposta à graça de Deus e não uma tentativa de ganhar a

justiça por obras” (Paul Apostle of God’s Glory in Christ). Parece que Paulo está lidando precisamente com essa

questão em Romanos 9, isto é: o orgulho judaico de se estribar em sua descendência abraâmica e ainda assim ser

rejeitado por Deus. Vale lembrar que o apóstolo já havia provado que ninguém, judeus ou gentios, pode de fato

obedecer a Deus em Rm 1-3. Então os judeus, para não serem rejeitados, não podiam recorrer nem à sua

descendência e nem à sua obediência, mas tão somente à fé em Jesus Cristo. Precisamos, contudo, enfatizar que

embora o trabalho de Sanders, bem como de Dunn, Wright, dentre outros tenha suas contribuições, devemos

ainda assim evitar um estudo atomista dessa questão pelas seguintes razões: a) Os estudos em Paulo ainda não

constituem uma questão fechada em teologia. b) Embora os documentos pesquisados por Sanders revelem de

fato o chamado “nomismo da aliança” não podemos ser unilaterais a ponto de dizer que esse o é único

pensamento existente entre os judeus, até por que como Sanders mesmo admite o livro de 4 Esdras sugere

justificação por obras. E como diz Sttot: Se há um exemplo literário (de justifiação por obras), não poderia haver

outros? c) A linha pode ser tênue entre obedecer aos mandamentos para permanecer na aliança e entrar na

aliança por obedecer aos mandamentos. d) Dado a amplitude e diversidade da comunidade judaica,

especialmente a de caráter popular, não é de admirar que muitos mal-entendidos pudessem surgir no que diz

respeito a questões de mérito, demérito, permanência e entrada na aliança. Diante de todas as recentes pesquisas

e do contexto da carta, tudo indica que Paulo estava lidando em Romanos 9 com o pensamento judaico de que

todo judeu incondicionalmente estava justificado por pertencer à aliança abraâmica. Por isso há a necessidade do

apóstolo demonstrar que “nem todo aquele de Israel é de fato israelita”.

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aí, então, que o apóstolo usa um argumento lógico nos capítulos 9-11 para defender

a justiça de Deus na presente rejeição de Israel.

I O “tom” de Romanos 9.

Desassociar o teor dos primeiros versículos de Romanos 9 do restante do capítulo

pode trazer prejuízos ao intérprete. É bom lembrar que Paulo está profundamente

triste (v2) e sinceramente honesto (pois afirma solenemente estar dizendo a verdade

e não a mentira (v1) ao lidar com os seus patrícios que estavam, no presente, sendo

rejeitados por Deus. Com o uso da forma intensificada de summarture,w 11

(testemunhando) no v1, fica ainda mais evidente a ideia de que o testemunho da

consciência de Paulo acerca da situação dos judeus era realmente profundo. Murray,

citando H.P. Lindon, diz: “A intensidade da tristeza do apóstolo é assinalada pela

sua grandeza, continuação, e profundidade”. 12

Junto à tristeza expressa por Paulo, podemos notar seu amor profundo nas palavras

do versículo 3, onde ele diz que desejaria ser anátema, separado de Cristo, por

amor dos seus. Foi então uma prova do mais ardente amor de Paulo, “pois, não

hesitou o desejar para si mesmo a condenação que ele viu recair iminentemente

sobre os judeus, a fim de libertá-los”. 13 Contudo, ao analisarmos o desejo de Paulo

de ser avna,qema (anátema), chegamos à conclusão de que tal desejo era totalmente

verdadeiro, pois ele mesmo declarou estar solenemente falando a verdade no

versículo 1. Entretanto, tal desejo seria impossível de se cumprir. A primeira razão é

que em nenhum ponto dos ensinamentos de Paulo ou das Escrituras notamos a

possibilidade de tal desejo se realizar. O segundo fator que torna o verdadeiro

desejo de Paulo impossível é o próprio uso do imperfeito desiderativo huvco,mhn

(desejaria) que denota a expressão de um desejo apresentado, como algo

impossível de ser cumprido. 14 Certamente a intensa e constante tristeza do apóstolo

deve-se ao fato de que os judeus foram agraciados com grandes privilégios (vs 4-5)

sendo o maior deles, Cristo! Contudo, os judeus estavam negando, por sua rejeição

da justificação pela fé, o ensinamento de que “a salvação vem dos judeus” (Jo 4:22).

11

Daniel B. Wallace, Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento, p.160. 12

John Murray, Comentário Bíblico Fiel: Romanos, p.365. 13

João Calvino, Commentary on The Epistle to the Romans, p.259. 14

Wilfrid Haubeck e Heinrich Von Siebenthal, Nova Chave Linguidtica, p.1456.

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5

Em suma, o tom dos primeiros versículos de Romanos 9 é de solenidade, profunda

tristeza e amor que Paulo nutria pelo seu povo que estava sendo rejeitado pelo

Senhor. Provavelmente alguns dos próprios parentes do apóstolo estavam na triste

condição de rejeitar o evangelho da salvação de judeus e gentios, e

consequentemente à beira da perdição eterna. 15 Todavia, Paulo demonstrará que,

diante de tal situação de incredulidade, Deus é perfeitamente justo em rejeitar

alguns judeus.

II Deus nunca prometeu salvar irrevogavelmente todos os descendentes

físicos de Abrão (6-13)

Diante dos amplos privilégios dos judeus mencionados nos versículos anteriores e

ante a realidade de que grande massa deste povo estava sendo rejeitada, os judeus

poderiam argumentar que as promessas de Deus haviam falhado, já que a crença

básica dos mesmos era que, por serem descendentes de Abraão, estariam

irrevogavelmente, por direito de nascimento, desfrutando das promessas feitas a

ele16 (Mt 3:9; Jo 8:33-39). Rodge expressa com clareza este aspecto do pensamento

judaico: “Era a opinião comum entre os judeus, de que a promessa de Deus sendo

feita a Abraão e à sua descendência, todos os seus descendentes selados, pelo rito

da circuncisão, poderiam certamente entrar nas bênçãos do reino Messiânico. Isso

era suficiente para que eles, portanto, viessem a dizer, nós somos filhos de

Abraão”.17 Portanto, Paulo, sabendo que os judeus nutriam o pensamento de que

todo descendente de Abraão era irrevogavelmente participante das bênçãos

prometidas a este, declara que não há nenhuma falha com a palavra de Deus por

haver judeus sendo rejeitados no presente, mas o que os judeus precisavam

entender era que ouv ga.r pa,ntej oi` evx VIsrah.l ou-toi VIsrah,l. (nem todos os de

Israel são de fato Israelitas).

Paulo vai demonstrar isso usando dois exemplos para provar que a mera

descendência física de Abraão não garante irrevogavelmente a todo judeu a entrada

na herança abraâmica. O primeiro é a escolha de Isaque e rejeição de Ismael, e o

segundo, a escolha de Jacó e rejeição de Esaú.

15

F. Leroy Forlines, The Quest For Truth: Answering Life’s Inescapable Questions, p. 355. 16

Veja: F. Leroy Forlines, Commentary of Romans p.256. Piper, Study of Romans, p. 33. Grant Osborne,

Commentary of Romans, p.242. 17

Charles Hodge, Commentary on the Romans, p. 304

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6

a. A escolha de Isaque e rejeição de Ismael (7-9)

Para provar seu argumento de que a salvação (ou nas palavras da carta aos

Romanos, a justificação) não era garantida a todos os descendentes de Abraão

conforme acreditavam os judeus, Paulo reporta ao texto de Gênesis 21:12 - “Porque

por Isaque será chamada sua descendência”. Sabemos que naquele contexto

Abraão estava despedindo Ismael e Hagar e, nesse ínterim, Deus diz a Abraão que

sua posteridade viria através de Isaque e não de Ismael. Segundo Osborne, a

expressão “em Isaque será chamada” (v7) não reflete apenas o título pelo qual a

prole de tal descendência seria chamada, mas antes, reflete o próprio chamado de

Deus18 , ou seja, Deus chama os da verdadeira linhagem (Isaque) e rejeita ou

despede os da falsa (Ismael). Assim, Paulo está, com este exemplo, estabelecendo

o fato de que Deus, na história, já chamou alguns e rejeitou outros descendentes de

Abrão19, e tal fato não era desconhecido dos judeus. Ainda avaliando a rejeição de

Ismael e a escolha de Isaque, o verso 8 estabelece um contraste entre os filhos de

Deus que são os da promessa (de Isaque) e os filhos da carne (de Ismael). Ao

reportarmos novamente à narrativa de Gênesis, observamos a maneira precipitada e

carnal pela qual Ismael veio ao mundo. Todavia, por te,kna th/j evpaggeli,aj (filhos

da promessa) no v8, Paulo está se referindo a aqueles que “derivam sua origem da

promessa divina” 20, de fato, “promessa aqui representa a graciosa obra de Deus,

feita para o homem, não porque o homem mereça ou tenha se esforçado, (ou possa

herdar por descendência física) alguma coisa de Deus, mas porque Deus

simplesmente disse.” 21. A promessa mencionada aqui em Romanos 9 é aquela

relacionada ao nascimento de Isaque citada em Gênesis 18:10 e 14. Sabemos que

tal nascimento fora inteiramente miraculoso e proveniente da obra de Deus. Ainda

outra menção da mesma promessa está em Genesis15, onde Deus, no versículo 6,

diz o seguinte acerca de Abrão: “Ele creu e isso lhe foi imputado para justiça”. O

verbo traduzido na LXX por imputado (logi,zomai) em Gênesis 15:6 que é o

versículo dominante em tal capítulo 22 é o mesmo traduzido por considerados

18

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 243. 19

A discussão, se aqui está falando de chamado coletivo ou individual, em minha opinião não acrescenta muito

ao entendimento do texto, visto que um coletivo de pessoas só poderia existir, uma vez que existia vários

indivíduos. Assim, nessa passagem Paulo está falando de um coletivo de judeus que estavam individualmente

rejeitando seu evangelho e certamente cada um era responsável por isso. 20

John Murray, Comentário Bíblico Fiel: Romanos, p. 374. 21

Robert Picirilli, Romans, p. 177. 22

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 243.

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7

(logi,zomai) filhos da promessa em Romanos 9:8. Parece haver uma clara ligação

entre promessa e fé em Gênesis 15. Tal ligação é igualmente perceptível na carta

aos Romanos. Por exemplo, em Romanos 4, ao explicar em que base Abraão fora

justificado, Paulo diz no verso 14: “Pois, se os da lei é que são os herdeiros, anula-

se a fé e cancela-se a promessa”. Ainda no verso 16 encontramos: “Essa é a

razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme

a promessa para toda a descendência, não somente ao que está no regime da lei,

mas também ao que é da fé que teve Abraão”. 23 Murray acertadamente diz que “a fé

exercida por Abraão apegou-se a essa promessa” 24, pois Abraão fora justificado por

tal fé, e tal fé, é fortemente contrastada com as obras em Romanos 4; observe por

exemplo, Romanos 4:1-5. Vale ainda mencionar que Paulo nesta carta identifica

como filhos de Deus aqueles que são ou estão na fé (Rm 8:16, 17, 21). Em suma,

ao dizer que os verdadeiros israelitas são os filhos da promessa o apóstolo estava

certamente ligando-os com aqueles que tiveram a mesma fé de Abrão (Rm 4:12).

Como diz Bornschein: “Promessa sempre está relacionada com “fé” e nunca com

obras. Promessa implica em confiança naquele que a fez, a confiança de que ele irá

cumpri-la em seu tempo. A promessa está ligada indissoluvelmente à fé. Filhos da

promessa não são os simples descendentes de Abraão, mas aqueles que crêem em

Jesus Cristo Rm 4:24”. 25

Então, em seu primeiro exemplo Paulo demonstra que Deus era justo em rejeitar

certos descendentes de Abraão, como no caso de Isaque e Ismael. Também

observamos que existia um verdadeiro “Israel” dentro do Israel étnico e o

compromisso de Deus sempre foi com estes verdadeiros israelitas, ou seja, os da

promessa (devemos lembrar que a fé está associada a tal promessa) e não com os

da carne, descendentes de Ismael (que fora notoriamente fruto de uma obra humana

precipitada e descrente da promessa feita por Javé no episódio da escrava Hagar).

b. A escolha de Jacó e a rejeição de Esaú (vs 10-13)

Paulo acaba de demonstrar no exemplo acima que na história de Israel Deus já

havia rejeitado certos descendentes de Abraão; portanto, no presente, Deus ainda

23

ARA (grifo nosso). 24

John Murray, Comentário Bíblico Fiel: Romanos, p.374. 25

Fred. R. Bornschein, A Oliveira Santa, p.35 (grifo nosso).

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poderia rejeitar certos descendentes de Abraão. Todavia, o povo israelita poderia

concordar com Paulo que Ismael, embora descendente de Abraão, fora justamente

rejeitado, pois ele (Ismael) não era da descendência da promessa como Isaque.

Entretanto, Paulo usa o segundo exemplo demonstrando que até mesmo

descendentes de Isaque, que eram tipicamente da aliança abraâmica, foram

rejeitados, como no caso de Esaú e Jacó, onde ambos eram filhos dos mesmos pais.

De fato, Paulo agora deseja asseverar de vez por meio deste exemplo de que ouv

ga.r pa,ntej oi` evx VIsrah.l ou-toi VIsrah,l\ (nem todos os de Israel são de fato

israelitas), ou seja, ser descendente físico de Abraão não garante a justificação, pois

não somente Ismael (que era filho da escrava) fora rejeitado, mas também Esaú

(que era filho de Isaque e Rebeca, como Jacó). De fato, Paulo defende aqui o

princípio de que na justificação, “graça está sobre raça”. 26 Portanto, no versículo 10,

sendo de, (e) uma conjunção continuativa 27 , na expressão Ouv mo,non de (e não

somente [ela/isto]) podemos concordar com Forlines de que, “as palavras e não

somente isto no verso 10, nos informa que Paulo está desenvolvendo a mesma

linha de pensamento dos versos 7-9” 28, ou seja, Deus não é injusto na presente

rejeição de Israel, pois nunca prometeu salvar israelitas na base da descendência

física de Abraão. Como diz Piper: “... o propósito de Deus... era de “acordo com a

eleição” (9:11), e este propósito não era de salvar todo indivíduo israelita através de

Abraão, como que garantindo que alguém (nessa base) poderia ser um filho de

Deus...”. 29

Os judeus de fato criam que, por direito de nascimento e como povo de Deus,

incontestavelmente seriam salvos. Por isso, existe aqui a tensão com o evangelho

que Paulo pregava, pois, a justificação que os judeus pensavam ser por méritos30 e

descendência física, não era possível senão pela fé em Cristo. Portanto, o apóstolo

deixa claro que o propósito de Deus em salvar israelitas não era baseado em

descendência ou mérito próprio e, por isso, no verso 11, ele esclarece que os

gêmeos não haviam sequer nascido ou feito qualquer bem ou mal, ou seja, tal

26

Segundo Osborne, Moo e Wright fazem hábil uso dessa expressão conectando Rm 9:8, com Rm 4 e a graça de

Deus.Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 243. 27

Daniel B. Wallace, Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento, p. 671. 28

F. Leroy Forlines, The Quest For Truth: Answering Life’s Inescapable Questions, p. 359. 29

Piper, Studyof Romans, p. 136. 30

Vide rodapé 10.

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9

escolha não foi feita com base nas obras, seja de Jacó ou Esaú, quer sejam boas ou

más31. De fato, o que está claro aqui é que o propósito de Deus quanto a evklogh.n

(eleição ou seleção - v11) definitivamente não é baseado em obras meritórias, mas

em seu próprio chamado. “Não por obras é um componente essencial da teologia

paulina; observe Rm 4:2, 6; 9:11, 32; 11:6”. 32 É interessante a observação feita por

Picirilli ao comentar este versículo: “... são unânimes as declarações da Bíblia de

que a salvação não é pelas obras. Mas, segue-se que, a Bíblia não diz que a

salvação é por nada! O que a Bíblia diz é que a salvação é pela fé! 33 Contudo,

embora Paulo já tenha asseverado o fato de que a salvação é pela fé e não por

obras nos capítulos anteriores da epístola, e que o leitor original naturalmente já

tivesse fixado tal fato em sua mente, devemos lembrar que até essa altura do

capítulo 9 a palavra fé ainda não havia aparecido explicitamente, entretanto o

apóstolo está até aqui deixando claro que a eleição de Deus não é baseada na

descendência física de Abraão, e nem em obras, coisas estas em que os judeus se

estribavam34, e que estavam causando a profunda tristeza no coração do apóstolo.

Com a citação de Genesis 25:23 no versículo 12, temos por assim dizer, a base

bíblica para a afirmação do verso 11 de que a escolha de Deus se deu antes de

qualquer obra praticada pelos irmãos. Contudo, devemos entender que na ocasião

da profecia dada a Rebeca, Deus falou em termos de nações que descenderiam

daqueles indivíduos, ou seja, Israel e Edom. Como diz Murray: “Sem dúvida a

profecia anunciada a Rebeca contemplava mais do que os indivíduos Esaú e Jacó.

Isso se encontra evidente no trecho do Antigo Testamento”. 35 Embora isso seja

muito evidente, entendemos que Paulo usa este exemplo de dois indivíduos para

demonstrar sua tese de que não é o direito de nascimento que determina o destino

de todo descendente de Abraão como pensavam os judeus. Em suma, podemos

dizer que, enquanto os judeus acreditavam que a salvação de todo o povo judeu

estava irrevogavelmente garantida com base nos méritos e descendência abraâmica,

Paulo usa o conhecido e aceito exemplo da rejeição de Esaú para tornar irrefutável o

31

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 247. 32

Ibd. 33

Robert Picirilli, Romans, p. 178. 34

Vide rodapé 10. 35

John Murray, Comentário Bíblico Fiel: Romanos, p. 380

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10

fato de que judeus podem ser rejeitados e que a salvação destes não era apenas

corporativa, mas também, individual.

c. Amei a Jacó e odiei Esaú (v13)

Com o uso da expressão Kaqw.j ge,graptai (como está escrito) no início do

versículo, Paulo conclui seu segundo exemplo demonstrando que a citação de

Gênesis 25:23, feita no versículo anterior “...o mais velho servirá o mais moço”, fora

cumprida em Malaquias, onde o ódio do Senhor ficou demonstrado ao assolar os

montes de Edom e dar sua herança aos chacais (Ml 1:3). De fato, nesse texto de

Malaquias, não notamos uma punição estritamente ligada com salvação ou perdição

eternas e também não notamos algo explicitamente ligado com a pessoa de Esaú,

mas antes, com sua descendência. Contudo, é igualmente notório que Paulo, em

Romanos 9, esteja usando tal citação como exemplo claro de eleição e rejeição da

parte de Deus de descendentes físicos de Abraão como no caso de Malaquias.

Alguns tentaram suavizar a expressão mise,w, “ódio”, no versículo 13, por “amar

menos”, argumentando que no antigo oriente tal expressão poderia ser entendida

assim. 36 Contudo, tal pensamento não concorda com o contexto de Malaquias e

muito menos com o de Romanos. O que de fato podemos aqui observar é que Deus

escolheu um grupo sobre o outro, ou seja, em Gênesis e Malaquias, ele aceitou

Israel e rejeitou Edom, enquanto que em Romanos Deus escolhe os crentes e rejeita

os incrédulos dentre os israelitas. Ao contemplarmos textos como Amós 1:11-12 e

Obadias 1-14, que mencionam em que base se deu o julgamento de Deus sobre

Edom, observamos que o ódio de Deus é contra o pecado de Edom, e isso concorda

muito bem com o caráter santo de Deus que odeia e pune o pecado37, como cita o

próprio texto de Rm 1:18 a 2:1.

Assim, com estes dois exemplos o apóstolo deixa claro que nem todos os

descendentes físicos de Abraão fazem parte da aliança e nem estão

irrevogavelmente justificados como pensavam. Paulo também mostra que

36

Joseph Fitzmyer, Romans, p. 563. 37

Vários teólogos têm encontrado nessa passagem o subsídio para a doutrina da dupla predestinação. Entretanto,

devemos ter em mente que embora neste capítulo a ênfase recaia na escolha graciosa de Deus, não devemos em

hipótese alguma nos esquecer de que no fim deste mesmo capítulo e especialmente nos capítulos 10-11, forte

ênfase é dada à fé. É interessante o que diz Schreiner, mesmo como um adepto da doutrina da dupla

predestinação: “Isso não pode ser estabelecido (a dupla predestinação) sem enfatizar a responsabilidade humana

como em 9:30-33” ( Thomas Schreiner, Baker Commentary on the New Testament, p. 501).

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11

descendentes de Abraão já foram rejeitados por Deus ao longo da história de Israel

(vs 7-13). Portanto, o mesmo estava acontecendo no presente (vs 1-4) e por isso,

não há nenhuma falha com a palavra de Deus (v6).

III Deus é soberano e tem o direito de salvar ou condenar quem desejar (14-24)

Após estabelecer o fato de que Deus escolhe ou rejeita com base em seu próprio

chamado, e não baseado no mérito ou descendência abraâmica como firmemente

acreditavam os judeus, estes poderiam então levantar a questão mencionada no

verso 14 se mh. avdiki,a para. tw/| qew/|È (há injustiça da parte de Deus?). A resposta

é um enfático não! E para responder a tal pergunta o apóstolo lança mão de mais

três exemplos das Escrituras, isto é: o de Moisés, o de faraó, e o do oleiro e os

vasos, para mostrar que Deus pode salvar e condenar quem ele deseja.

a. O Exemplo de Moisés (vs15-16)

Com o uso do presente perfectivo, 38 Paulo demonstra que aquilo que será citado

das Escrituras, embora tivesse ocorrido no passado, ainda falava plenamente ao

ouvinte de seus dias. Ou seja, Deus tem compaixão de quem ele deseja ter. A

citação usada aqui é de Êxodo 33:19, na qual Moisés pede ao Senhor para mostrar

sua glória e o Senhor demonstra sua livre misericórdia para com o povo dizendo:

“Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu

me compadecer Ex33:19b”. Sabemos que nesse contexto Deus decidiu ter

misericórdia e compaixão por Israel mesmo após o episódio do bezerro de ouro.

Parece que mais uma vez Paulo deseja demonstrar que não são obras, nem tão

pouco o pertencer à linhagem de Israel que garantirá a salvação de todos os judeus.

Como afirma Picirilli: “Até mesmo no deserto quando nós poderíamos pensar em

toda a nação como tendo automaticamente o direito a seu favor, Ele diz: “Eu

mostrarei misericórdia a quem eu mostrar misericórdia”. Em outras palavras, Ele

desejava deixar claramente estabelecido que nem Moisés, nem Israel, tinham

alguma reivindicação especial sobre si que tirasse o soberano desejo de Deus de

agir como ele escolhe. Nem vai Ele mostrar misericórdia para com todos eles só

porque são israelitas na carne”. 39 Murray também menciona que “Nem Moisés, nem

o povo de Deus com ele poderia reivindicar para si mesmo qualquer favor divino;

38

Daiel B. Wallace, Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento, p. 533. 39

Robert Picirilli, Romans, p. 183.

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12

tudo dependia da escolha e da outorga gratuita da parte de Deus. 40 Portanto,

precisamos observar neste versículo que na eleição de Deus a ênfase está na sua

misericórdia. 41 O argumento de Paulo é que Deus não é injusto, pois ele age com

base em sua misericórdia. Em outras palavras, a eleição de Deus deriva de sua

misericórdia e compaixão. Isso nos leva a crer que a vontade de Deus é “livre,

porém não arbitrária”. 42 Portanto, no verso 16 é expresso que não depende de quem

quer, ou de quem corre, mas de Deus usar sua misericórdia. Isso coaduna com o

versículo 11 onde diz que não é por obras, mas por aquele que chama.

Em suma, para aqueles judeus que pensavam ser irrevogavelmente salvos nos

méritos de sua linhagem abraâmica e que poderiam pensar que Deus estaria sendo

injusto em rejeitá-los, Paulo declara mais uma vez que tal salvação não depende em

nada do querer ou correr do homem, mas que está atrelada unicamente à

misericórdia de Deus, como no caso de Ex 33:19.

Outro aspecto digno de menção é o fato de Paulo usar o singular quando cita “Terei

misericórdia o]n a'n (de quem)...”. Tal uso indica que a ênfase da eleição de Deus é

mais individual que necessariamente corporativa. E é interessante observar o uso do

singular nos versos 15-21 deste capítulo. No verso 16, que conclui o pensamento do

verso 15, o singular é usado: “Não depende de quem corre...”. No verso 18, quando

conclui o pensamento dos versos 15-17 o singular continua sendo usado: “Deus tem

misericórdia e endurece quem quer”. Paulo continua usando o singular no verso 19

quando diz: “quem jamais resistiu sua vontade”? E ainda no verso 21, quando lida

com os vasos de honra e desonra, usa o singular. Portanto, “isso milita contra

aqueles exegetas que argumentam que Paulo está usando apenas uma linguagem

corporativa ao invés de uma linguagem individual”. 43 Com isso Paulo estaria de fato

dando um golpe no pensamento judaico de que todos os judeus, como povo, seriam

salvos nos méritos da descendência de Abraão.

40

John Murray, Comentário Bíblico Fiel: Romanos, p. 388. 41

C.E.B. Cranfield oferece uma boa explicação para esse ponto. Vide em: C.E.B. Cranfield, Comentário de

Romanos, p. 217. 42

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 247. 43

F. Leroy Forlines, Classical Arminianism p. 129. Veja também o tratamento de Thomas Schreiner em Baker

Commentary on the New Testament, p. 511.

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13

Ao lermos este texto logo nos vem uma pergunta à mente: De quem Deus vai ter

misericórdia e compaixão? Embora a ênfase desse versículo seja na livre decisão de

Deus, sabemos que nos versos 30-33 e no capítulo 10:1-21, e por toda a carta de

Romanos, bem como em diversos trechos das Escrituras, Deus dispensa sua

misericórdia a todos que têm fé em Jesus Cristo, ou seja, Deus é soberano para

salvar ou condenar quem ele deseja. Ele desejou salvar os que tinham fé em Jesus

e condenar os que não tinham tal fé, (o que era o caso dos judeus, os quais Paulo

tinha em mente). Contudo, até aqui neste versículo, nada ainda fora dito além de

que Deus é soberano e tem o direito de salvar ou condenar quem ele deseja.

b. O Exemplo de Faraó (vs 17-18)

Enquanto os versículos 15-16 mostram uma ênfase positiva na misericórdia de Deus,

o segundo exemplo de Paulo, (o de faraó), possui uma ênfase negativa, ou seja, no

juízo de Deus. De fato, enquanto misericórdia é um atributo do caráter de Deus que

ele dispensa a todos que ele deseja, endurecimento é um juízo de Deus aos que

resistem a sua misericórdia (vs 17,18).

A citação aqui feita por Paulo como exemplo de resistência é de Êxodo 9:16. Este

episódio ocorre no contexto da sexta praga, quando Deus manda Moisés dizer a

faraó para libertar o seu povo. Após o aviso, Deus diz que poderia ter eliminado

faraó, bem como sua nação e terra, todavia, Deus não fez assim, porque tinha um

propósito: primeiro, mostrar seu poder em faraó. Como bem menciona Grant

Osborne, o poder de Deus demonstrado aqui pode ser ambos: tanto o de salvar,

como o de julgar, pois no episódio de Êxodo Deus com seu poder salvou seu povo e

com o mesmo poder condenou faraó. Também em Romanos, o poder de Deus salva

os da fé (Rm 1:16) e o mesmo poder condena os incrédulos. 44 Em segundo lugar,

Deus desejava que seu nome fosse proclamado em toda a terra. Em algumas

ocasiões no AT podemos observar a repercussão que o episódio do Êxodo e das

pragas teve no mundo de então (veja, por exemplo, Js 9:9). Parece-nos que, para

Paulo, a rejeição dos judeus ao evangelho (semelhante à dureza de faraó), em parte,

levou à proclamação do evangelho (aos gentios) através do mundo.

44

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 250.

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14

bb. A questão do endurecimento (v18)

Seguindo a conclusão natural dessa sessão o verso 18 diz: “logo, tem ele

misericórdia de quem quer e endurece a quem lhe apraz”. Muito se tem falado sobre

o endurecimento do coração de faraó. Primeiramente, devemos lembrar que Deus

de fato endureceu a cerviz do resistente monarca. Outro fato ainda pode ser notado

em Êxodo, mas que não parece ser o ponto principal de Paulo em Romanos 9: faraó

também era responsável pelo seu próprio endurecimento. 45 Stott, citando Morris, diz:

“Nem aqui nem em nenhum outro lugar, se vê que Deus endurece alguém que já

não tenha se endurecido a si mesmo”. 46 Moo também diz: “endurecimento de Deus

não faz, então, causar insensibilidade espiritual para as coisas de Deus, mas

mantém as pessoas no estado de pecado que as caracteriza”. 47 Sem dúvida, aquele

fora um ato justo da punição de Deus. Ainda outro fato é que Deus tinha um

propósito bem definido no endurecimento do ímpio faraó, isto é: demonstrar a

singularidade da onipotência de Deus sobre o Egito; fazer dos atos de Deus um

memorial para Israel e gerações posteriores; e trazer glória ao seu próprio nome. 48

Esses propósitos são semelhantes à mensagem de Romanos 9. Observando o

contexto maior de Romanos 9-11, outro fato notório é que Deus tem misericórdia

daqueles que retornam em fé e endurece os que se recusam a fazer isso. Trazendo

à mente o fato de que Paulo estava lidando com judeus que recusavam a

mensagem do evangelho acreditando que eram corporativa e irrevogavelmente

salvos nos méritos da descendência abraâmica, podemos observar quão pertinente

é a mensagem do apóstolo para eles, pois este apela para o testemunho das

Escrituras para mostrar que Deus justa e soberanamente tem o direito de endurecer

a resistentes (mesmo sendo descendentes de Abraão) e estender misericórdia a

crentes em Jesus Cristo. Contudo, tal conclusão será claramente percebida apenas

em 9:30-33.

45

Schreiner argumenta que Deus endureceu faraó antes do seu próprio endurecimento. Contudo, isso não exclui

o fato de que faraó era responsável. O próprio Schreiner quando menciona a questão da dupla predestinação

(doutrina da qual é adepto) não deixa de enfatizar o fato da responsabilidade humana. Thomas Schreiner, Baker

Commentary on the New Testament, p. 501, 511. 46

John Stott, A Bíblia Fala Hoje, Comentário de Romanos, p. 325. 47

Douglas J. Moo, The Epistle to The Romans, p. 599. 48

Ibd, 251.

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15

Em última análise, podemos concordar com Schreiner que Paulo está aplicando o

texto de faraó com referência a salvação, 49 e ainda concordamos que os usos para

a palavra endurecer no Corpus Paulinum, a saber, sklhro,thj pwrou=n pwro,w

denotam uma inflexibilidade e insensibilidade para com o evangelho, que impedem

as pessoas de serem salvas (Rm 2:5; 11:7; 2Co 3:14. Ef 4:18). 50 Entretanto,

podemos concordar também com que diz Piper em nota de rodapé em seu

comentário acerca do capítulo 9, que: “Isso não implica que a condição algumas

vezes chamada endurecimento do coração (Ef 4:18) ou mente (2Co 3:14) não pode

ser alterada pela misericórdia revivificadora da ação de Deus (Ef 2:1). 51 É

interessante notar que os versículos usados por Piper para demonstrar o coração

endurecido são os mesmos usados por Schreiner mas, mesmo assim, Piper admite

que tais corações podem ser mudados desse estado de endurecimento.

Ao analisarmos o contexto de Romanos e os usos da palavra endurecer no Corpus

Paulinum, podemos observar as seguintes questões acerca do endurecimento em

Romanos 9: primeiro, o endurecimento e o juízo mencionado aqui é de cunho

soteriológico. Se não fosse este o caso, por que estaria Paulo tão triste com a

situação dos seus patrícios? Segundo, Paulo esperava que nem todos os judeus

endurecidos naquele momento permanecessem para sempre em tal estado de

endurecimento (9:1-3; 10:1; 11:11-14, 28-32). Terceiro, assim como faraó fora

resistente até a morte, experimentando o justo juízo de Deus, judeus resistentes

experimentariam o mesmo, e não há injustiça da parte de Deus em agir assim (v14),

pois mesmo sendo da linhagem física de Abrão, eram igualmente pecadores,

estavam debaixo da ira de Deus (1:18, 2:1) e precisavam de justificação pela fé.

Portanto, Deus tem misericórdia de quem quer (crentes) e endurece a quem lhe

apraz (incrédulos).

C. O Exemplo do Oleiro e o Vaso (19-24)

Paulo continua usando o mesmo estilo de argumentação (diatrebe), como que

argumentando com um oponente imaginário. Portanto, no verso 19 ele diz: “porém tu

me dirás...”. Tal expressão vem logo após a explicação dos versos acima de que

49

Thomas Schreiner, Baker Commentary on the New Testament, p. 511. 50

Ibd, p. 511. 51

John Piper, study of Romans, p.275. Citado em: F. Leroy Forlines, Classical Arminianism p. 134.

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Deus pode estender misericórdia ou endurecer pessoas segundo a sua vontade.

Então vem a seguinte pergunta da qual os oponentes de Paulo poderiam lançar mão:

“De que se queixa ele ainda?, quem jamais resistiu a sua vontade? versículo19b”.

Em outras palavras, a questão aqui é a seguinte: Se Deus tem misericórdia de quem

quer e endurece quem quer, de que se queixa ele ainda, já que ninguém pode fazer

nada contra a sua bou,lhma (vontade ou propósito)? Sabemos que pessoas podem

se opor ao propósito de Deus, mas não destruí-lo ou derrotá-lo. 52 Precisamos ter

sempre em mente que Paulo está aqui argumentando com o povo judeu, o qual

pensava ser irrevogavelmente salvo nos méritos de obras e descendência

abraâmica e, como bem obeservou Grant Osborne, “Todo o capítulo 9 é uma

unidade, e o único assunto é como entender (à luz das promessas de Deus para

Israel) porque muitos de Israel não encontraram a salvação”. 53 Para lidar com isso,

Paulo, no versículo 20, diz: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?

Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?” Aqui,

Paulo lança mão de duas passagens de Isaías que fazem menção da figura do

oleiro para apresentar seu argumento, a saber: Is 29:16. “Que perversidade a vossa!

Como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra dissesse ao seu artífice: Ele não me

fez; e a coisa feita dissesse ao seu oleiro: Ele nada sabe”. E muito provavelmente a

de Is 45:9. “Ai daquele que contende com o seu Criador! E não passa de um caco de

barro entre outros cacos. Acaso dirá o barro ao que lhe da forma: Que fazes? ou: A

tua obra não tem alça? Na passagem de Isaías 45:9 o profeta demonstra como tema

central do capítulo a “futilidade de qualquer oposição ao plano de Deus”54 (e isso

estava sendo feito pelo “oponente” de Paulo em Romanos 9), e Is 29:16, que é de

fato a âncora de Paulo para o versículo 21, fala do juízo divino contra o povo de

Israel por não ter confiado em Deus mas, antes, ter confiado nos recursos políticos

e riquezas provindas das nações pagãs. Por isso é que o Senhor diz em Isaías

29:16, “Que perversidade a vossa! Como se o oleiro fosse igual ao barro, e a obra

dissesse ao seu artífice: Ele não me fez; e a coisa feita dissesse ao seu oleiro: Ele

nada sabe”. É pertinente Paulo usar, aqui, essas menções do Antigo Testamento

pois, assim como em Isaías, os israelitas dependiam de seus próprios esforços e

não de Deus para sua salvação, em Romanos também, os israelitas estavam

52

F. Leroy Forlines, Romans, p. 276. 53

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 253. 54

Carlos Osvaldo Pinto, Foco e Desenvolvimento do Velho Testamento, p. 595.

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17

dependendo de seus próprios méritos de descendência abraâmica para salvação e

não da justificação pela fé em Cristo. Portanto, nessas condições, seria fútil aos

judeus dos tempos de Paulo, assim como o foi aos do tempo de Isaías, se opor ao

juízo de Deus. Certamente a audiência do apóstolo entenderia bem a linguagem dos

próximos versículos, isto é, dos vasos de honra e desonra.

Assim, baseado nas citações do AT mencionadas anteriormente, Paulo diz no

versículo 21: “Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer

um vaso para honra e outro para desonra”? A figura de vasos para honra (para fins

nobres como recipiente para vinho, azeite etc.) e desonra (para fins desprezíveis

como lixos etc.) era muito comum entre os judeus. 55 O barro, nessa passagem, sem

dúvida é o povo de Israel e Deus, como o oleiro, tem o direito de fazer o que quiser

deste barro (Israel), ou seja, utensílios para honra e utensílios para desonra.

Portanto, o povo de Israel não poderia questionar os atos de Deus de salvar alguns

em Israel e não todos, irrevogavelmente nos méritos da descendência física de

Abraão como pensavam. Até aqui é precisamente isso que o apóstolo está dizendo.

Agora, quem são os vasos de honra e os de desonra dentre o povo de Israel, será

esclarecido mais adiante no capítulo.

Vale lembrar ainda que, tanto Paulo como os judeus, certamente estavam

familiarizados com o texto de Jeremias 18, onde a figura do oleiro com o vaso é

também usada em referência a Israel. Nessa passagem observamos que na visita

de Jeremias à casa do oleiro o vaso estraga-se na mão do oleiro (v4) e o problema

obviamente não está no oleiro, mas no barro. O oleiro reutilizou o barro como bem

lhe pareceu, não o jogando fora e pegando outro (v4). Assim, o Senhor pode

remodelar seu povo de acordo com seu comportamento (vs7-10). Contudo, seu povo

espantosamente rejeitou ser “remodelado” por Deus, mantendo uma atitude rebelde

(11-16). Consequentemente, o povo seria punido por tal rebeldia (v17). Se Paulo, ao

usar a analogia do oleiro e o vaso, trouxe à mente dos judeus de sua época

passagens como estas, eles poderiam certamente entender com mais propriedade

que Deus sempre teve vasos de honra (crentes) e de desonra (incrédulos) ao longo

da história (especialmente entre Israel). Ao falar dos temas teológicos de Romanos,

55

Robert Picirilli, Romans, p. 186.

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18

Marshall faz a mesma ligação entre este trecho de Romanos 9 e Jeremias 18, e diz:

“... ele (Paulo) também usa a metáfora do oleiro e dos vasos para explicar que os

seres humanos não podem se queixar de Deus pelo destino que lhes reserva”. 56 E,

em nota de rodapé, esclarece: “Quando essa metáfora é usada em Jeremias 18, ela

se refere à habilidade do oleiro de mudar sua ideia inicial sobre uma massa de barro

específica, dependendo de como o barro se comporta. Não se afirma que o modo do

barro se comportar depende de Deus, de fazê-lo se comportar assim”. 57 Ao

olharmos para o NT, a única passagem além de Romanos em que a palavra avtimi,a

(desonra) é usada em relação a vasos ou utensílios é 2Tm 2:20 - “Ora, numa grande

casa não há somente utensílios de ouro e de prata; há também de madeira e de

barro. Alguns, para honra; outros, porém, para desonra”. Contudo, no verso 21

notamos que estes utensílios poderiam vir a ser usados para fins nobres. “Assim,

pois, se alguém a si mesmo se purificar destes erros, será utensílio para honra,

santificado e útil ao seu possuidor, estando preparado para toda boa obra”. Portanto,

Deus tem o direito de agir como ele deseja acerca de Israel, tendo no mesmo povo

vasos de honra e de desonra.

Nos versos 22 e 23 Deus é claramente identificado como o oleiro, e a razão de

escolher alguns para honra e outros para desonra é para fazer seu poder e sua

glória conhecidos. 58 Como observa Osborne, Deus mostrou grande paciência com

os objetos de sua ira em Êxodo 4-14, no caso de faraó já mencionado acima. 59 O

verbo fe,rw (suportou) do versículo 22, por si só já quer dizer suportar

pacientemente, aturar com muita paciência. Contudo, Paulo ainda complementa a

maneira como Deus suportou os vasos de ira, ou seja: com muita longanimidade.

Paulo aqui está acumulando termos para mostrar “a inacreditável paciência de Deus

demonstrada no AT”. 60 Sabemos que no NT a paciência de Deus é também

dispensada com a finalidade de levar pessoas ao arrependimento. (Rm 2:4, 2 Pe

3:9). Logo, não podemos olvidar do fato de que nesta passagem o aspecto negativo

da ira de Deus esteja sendo mencionado.

56

I. Howard Marshall, Teologia do Novo Testamento, p. 291. 57

Ibd, p. 291. 58

Se o particípio qe,lwn (querendo ,desejando) é concessivo ou causal veja em : Grant Osborne, Commentary of

Romans, p.253 e F. Leroy Forlines, Classical Arminianism p. 137. 59

Grant Osborne, Commentary of Romans, p. 253. 60

Ibd, p. 254.

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19

Em suma, os vasos de ira preparados para destruição são aqueles judeus que não

aceitavam a justificação pela fé. Todavia, os objetos da ira de Deus aqui em

Romanos são os mesmos de sua paciência em Romanos 10:1-15 e 11:25-32.

Portanto, a destruição final mencionada em Romanos 9 é resultado de não se crer

na justiça de Deus revelada em Cristo.

III Deus Demonstra Que o Seu Propósito é Salvar os que Têm Fé em Jesus

Cristo (25-33).

Até aqui, por toda a extensão deste capítulo Paulo, com tristeza, deixa claro que

nem todos os de Israel seriam salvos nos méritos de obras e muito menos de

descendência abraâmica. Portanto, a maior parte de Israel estava condenada por

pensarem dessa forma. Paulo, desde então, estabelece o fato de que Deus não é

injusto por agir assim, pois ele nunca prometeu salvar todos os descendentes de

Abraão, e além do mais, Deus é totalmente soberano e tem o direito de agir como

deseja, tendo misericórdia de quem quiser e endurecendo quem quiser. Assim,

existiam nos seus dias muitos judeus que estariam destinados à perdição e judeus

(bem como gentios) destinados à vida eterna; e Deus é perfeitamente justo em agir

dessa forma.

Agora, neste trecho do capítulo, Paulo vai demonstrar que tal rejeição de Israel já

estava mencionada em profecia e que a grande falha dos rejeitados de Israel (ou

não eleitos) fora não ter fé em Jesus Cristo, e não um agir arbitrário da parte de

Deus.

a. As profecias acerca da rejeição de Israel (25-29)

Após deixar claro no verso 24 que Deus demonstra sua misericórdia também aos

gentios, nos versículos 25 e 26 Paulo faz a citações de Oséias 2:23 e 1:10

respectivamente, para demonstrar que Deus chamava também estes. Contudo, a

citação a que Paulo se refere, originalmente foi dada com referência ao julgamento

das dez tribos do norte e não aos gentios, mas Paulo aplica aqui esta profecia aos

gentios, indicando assim que estes seriam recebidos como povo, enquanto Israel,

confirmando os versículos anteriores, seria rejeitado. Paulo cita passagens de Isaías

nos versos 27-29 para deixar mais uma vez claro que judeus não eram salvos com

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base na descendência física de Abraão, mas que apenas um remanescente deste

povo seria salvo.

b. A razão pela qual israelitas estavam sendo rejeitados (30-33)

Finalmente, o apóstolo, com o mesmo estilo de argumentação usado por todo o

capítulo (diatribe), vai deixar claro porque Deus é justo em rejeitar muitos judeus. A

razão era que os judeus buscavam a justificação por seus próprios méritos e não

pela fé em Jesus Cristo. De fato, este tema domina o argumento de Paulo, pelo

menos até o capítulo 10:21. Entretanto, vamos nos ater aos últimos versículos do

capítulo 9. Nos versos 30-31 Paulo estabelece um contraste entre os gentios e os

judeus para esclarecer a questão da justificação.

Os gentios não buscavam a justificação pela lei, contudo, vieram a alcançá-la

mediante a fé em Cristo. Enquanto os judeus buscavam tal justificação por justiça

própria. Veja, por exemplo, Fp 3:4-10, onde o próprio apóstolo mostra a

dependência que tinha na lei e em sua linhagem judaica para alcançar ou manter

sua justificação. Entretanto, lembramos que Paulo considerou aquilo tudo como

esterco, no que se referia à sua justificação perante Deus (Fp 8-10). Portanto, este

fora o grande problema dos judeus: buscaram a justificação de justiça própria e não

a decorrente da fé em Cristo. Ao lermos o final do verso 31 e o início do 32 notamos

que Israel buscava a coisa certa (a justificação) todavia, com o método errado (obras

e descendência abraâmica), enquanto os gentios, que não buscavam a justificação

(1:18-32) vieram a alcançá-la por meio da fé (que é oposto a obras 3:20, 27-28;

4:2,6; 9:11).

Portanto, nos versos 32-33 a citação de textos como Isaías 8:14, 28:16 são

mencionados para demonstrar que o tropeço de muitos israelitas era não crer na

pedra angular que é Cristo. 61

Em suma, Deus era perfeitamente justo em sua maneira de agir porque é soberano

para salvar (justificar) e rejeitar (condenar) quem ele quiser, e ele (Deus) desejou

61

Ensinamentos de que Jesus é a pedra angular, e pedra rejeitada são largamente demonstrados pelos apóstolos

no N.T. Veja por exemplo em Mc 12:10-11; At 4:11; 1Pe 2:6-8.

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salvar (justificar) aqueles que tinham fé em Jesus Cristo, o que tristemente, como

menciona Paulo nos versos 1-3, não era o caso da maioria de seus patrícios.

Conclusão

Ao lermos este capítulo, observamos que o mesmo fora escrito em tom de tristeza

por parte do apóstolo. Tal tristeza se deve ao fato de que muitos judeus estavam

sendo rejeitados. Contudo, o capítulo presta a dizer que a palavra de Deus não tem

falhado e que ele não é injusto ao rejeitar judeus. Para esclarecer tal questão, o

apóstolo demonstra que nem todos os da descendência física de Abraão foram

justificados (v 6-13). A razão para isso é óbvia, pois a eleição de Deus é pela graça

e não por méritos humanos (v11). Paulo, então, esclarece que Deus é perfeitamente

justo em agir dessa forma, pois ele tem misericórdia e endurece quem quer. Com a

expressão quem quer ou quem quiser, observamos que o apóstolo fala em termos

pessoais, trafegando assim na contramão daquilo que os judeus pensavam, isto é,

que por serem descendentes físicos de Abraão entrariam irrevogavelmente e

corporativamente nas promessas deste. Também neste texto observamos os vasos

preparados para perdição e vasos de misericórdia (19-23). A pergunta que nos vem

à mente é: De quem Deus quer ter misericórdia ou a quem quer endurecer? E quem

são os vasos de ira e de misericórdia? Embora alguns acreditem que estes sejam

decididos arbitrariamente por Deus, notamos no restante do capítulo que este não é

o caso e que o grande erro dos judeus (por maioria) foi estabelecer sua própria

justiça, enquanto que os gentios que não buscavam, ou melhor, não possuíam

justiça própria, se submeteram à que decorre da fé (30-33).

Em suma, este capítulo diz que a justificação de Deus não está baseada em méritos

próprios (de obras ou descendência física); antes, é única e exclusivamente pela fé

(oposto a obras) em Jesus Cristo. E Deus é perfeitamente justo e soberano em agir

dessa forma.

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