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CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 71, p.231-233, Maio/Ago. 2014 231 Nelson Baltrusis, Laila Nazem Mourad DOSSIÊ INTRODUÇÃO Nelson Baltrusis* Laila Nazem Mourad** POLÍTICA HABITACIONAL, REGULAÇÃO DO SOLO E ALUGUEL SOCIAL NO BRASIL * Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjunto do Programa de Pós-graduação em Planejamento Territorial da Universidade Católica do Salvador. Profes- sor da Universidade Católica do Salvador. Pesquisador colaborador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais. Av. Cardeal da Silva. 205. Cep: 40231902. Federação- Salvador - Bahia - Brasil. [email protected] ** Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Bolsista de pós- doutorado PNPD-Capes. Membro do grupo de pesquisa Lugar Comum. Rua Caetano Moura, 121, Sala de Pesquisa LUGAR CO- MUM. Cep: 40140-310. Ondina - Salvador - Bahia – Bra- sil. [email protected] A política habitacional no Brasil nunca pri- vilegiou a locação como uma possibilidade. Apesar de ser um dos componentes básicos da atual políti- ca, optou-se pela propriedade da casa, e isso contri- buiu para que as nossas cidades se esparramassem pela periferia, tornando-se entes ingovernáveis. O desejo da casa própria se tornou uma meta a ser conquistada por todos. Esse discurso hegemônico prevaleceu e ainda prevalece nos programas de ha- bitação. Na verdade, a locação nunca foi entendida pelos governos, técnicos e os movimentos como solução para o déficit habitacional. Considerando que a legislação de uso do solo, o zoneamento e os planos de desenvolvimento mu- nicipais devem ser mecanismos para regular o uso e a oferta de terra urbanizada, essas regulações não demarcam espaço para locação, apesar de interferi- rem sobremaneira na configuração do espaço urba- no, seja pelo seu cumprimento, seja por sua nega- ção. Já que a configuração do espaço urbano e seus usos resultam de uma disputa pelas melhores locali- zações, dividindo-se o território hierarquicamente – quanto mais poder melhor localização no espaço ur- bano –, caberia à União incentivar a utilização desse espaço para a criação de novos instrumentos de con- trole. E ela o fez realizando campanhas e apoiando a elaboração de Planos Diretores e Planos Locais de Habitação, embora se perceba que esse esforço do governo pouco tem repercutido. A legislação municipal consolida a divisão entre ricos e pobres. No entanto, o que a cidade orga- niza, bem ou mal, o mercado, em busca de novas oportunidades, desorganiza. Nesse sentido, a dis- puta para ocupar uma posição melhor na estrutura urbana não para. Pelo contrário, se acirra. Na medida em que o espaço é uma arena privilegiada, nota-se uma disputa entre os diversos segmentos da socie- dade, uma tensão visando a obter poder. Conside- rando que a urbanização é um processo no qual a força do mercado e as demandas sociais disputam o

Politica Habitacional, Regulação Do Solo e Aluguel Social

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O artigo disserta sobre a politica habitacional, a regulação do solo e a politica de aluguel social (locação social)

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    Nelson Baltrusis, Laila Nazem Mourad

    DOSS

    I

    INTRODUO

    Nelson Baltrusis*Laila Nazem Mourad**

    POLTICA HABITACIONAL, REGULAO DO SOLO EALUGUEL SOCIAL NO BRASIL

    * Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjuntodo Programa de Ps-graduao em PlanejamentoTerritorial da Universidade Catlica do Salvador. Profes-sor da Universidade Catlica do Salvador. Pesquisadorcolaborador da Pontifcia Universidade Catlica de SoPaulo, Instituto de Estudos, Formao e Assessoria emPolticas Sociais.Av. Cardeal da Silva. 205. Cep: 40231902. Federao-Salvador - Bahia - Brasil. [email protected]

    ** Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Bolsista de ps-doutorado PNPD-Capes. Membro do grupo de pesquisaLugar Comum.Rua Caetano Moura, 121, Sala de Pesquisa LUGAR CO-MUM. Cep: 40140-310. Ondina - Salvador - Bahia Bra-sil. [email protected]

    A poltica habitacional no Brasil nunca pri-

    vilegiou a locao como uma possibilidade. Apesar

    de ser um dos componentes bsicos da atual polti-

    ca, optou-se pela propriedade da casa, e isso contri-

    buiu para que as nossas cidades se esparramassem

    pela periferia, tornando-se entes ingovernveis. O

    desejo da casa prpria se tornou uma meta a ser

    conquistada por todos. Esse discurso hegemnico

    prevaleceu e ainda prevalece nos programas de ha-

    bitao. Na verdade, a locao nunca foi entendida

    pelos governos, tcnicos e os movimentos como

    soluo para o dficit habitacional.

    Considerando que a legislao de uso do solo,

    o zoneamento e os planos de desenvolvimento mu-

    nicipais devem ser mecanismos para regular o uso e

    a oferta de terra urbanizada, essas regulaes no

    demarcam espao para locao, apesar de interferi-

    rem sobremaneira na configurao do espao urba-

    no, seja pelo seu cumprimento, seja por sua nega-

    o. J que a configurao do espao urbano e seus

    usos resultam de uma disputa pelas melhores locali-

    zaes, dividindo-se o territrio hierarquicamente

    quanto mais poder melhor localizao no espao ur-

    bano , caberia Unio incentivar a utilizao desse

    espao para a criao de novos instrumentos de con-

    trole. E ela o fez realizando campanhas e apoiando a

    elaborao de Planos Diretores e Planos Locais de

    Habitao, embora se perceba que esse esforo do

    governo pouco tem repercutido.

    A legislao municipal consolida a diviso

    entre ricos e pobres. No entanto, o que a cidade orga-

    niza, bem ou mal, o mercado, em busca de novas

    oportunidades, desorganiza. Nesse sentido, a dis-

    puta para ocupar uma posio melhor na estrutura

    urbana no para. Pelo contrrio, se acirra. Na medida

    em que o espao uma arena privilegiada, nota-se

    uma disputa entre os diversos segmentos da socie-

    dade, uma tenso visando a obter poder. Conside-

    rando que a urbanizao um processo no qual a

    fora do mercado e as demandas sociais disputam o

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    POLTICA HABITACIONAL, REGULAO DO SOLO E ...

    territrio da cidade, ao demarcar a cidade em zonas,

    estabelecendo padres de uso e ocupao do solo

    urbano, a legislao est separando a cidade por fun-

    es e determinando valores diferenciados.

    Essa lgica, que opera a produo de provi-

    so para baixa renda, perversa. A maior parte dos

    programas de habitao social implantada nas re-

    as menos valorizadas do territrio, geralmente na

    periferia, carentes de infraestrutura e equipamentos.

    Entretanto, medida que tais programas se incorpo-

    ram cidade, eles ganham valor, empurrando novos

    projetos para localizaes mais distantes, num cir-

    culo vicioso. Algo semelhante acontece com os bair-

    ros populares autoempreendidos em loteamentos

    precrios: medida que se urbanizam, passam a se

    integrar cidade e ganham valor. Essa forma de ocu-

    pao do solo, caracterstica das grandes cidades bra-

    sileiras, foi amplamente descrita por Singer e

    Kowarick, tendo como base os loteamentos irregula-

    res em So Paulo, desde a dcada de 1940. Kowarick

    denominou esse processo de espoliao urbana. Em

    outras palavras, o investimento feito pelo poder p-

    blico para prover essas reas periurbanas de

    infraestrutura e servios resulta na valorizao de reas

    vazias particulares entre a cidade urbanizada e o novo

    empreendimento, resultando numa apropriao pri-

    vada indevida dos benefcios da urbanizao (inves-

    timento coletivo). O proprietrio de terra urbana re-

    tm lotes e at reas inteiras aguardando uma maior

    valorizao. Essa dinmica produz, de um lado, uma

    cidade espraiada, cada vez mais preocupada em

    ampliar as fronteiras para alm do municpio, de

    modo semelhante ao que ocorre em relao a Salva-

    dor e Lauro de Freitas; por outro lado, observa-se a

    existncia de vazios urbanos.

    Sabe-se que o dficit habitacional relativo era

    de 9,5% em 2011 e que boa parte desse dficit se deve

    ao preo excessivo do aluguel (FJP, 2012). Estima-se

    que esse item seja responsvel pelo aumento do dfi-

    cit relativo pelo menos nas metrpoles de So Paulo e

    Curitiba. Em Salvador e Belm, houve uma diminui-

    o do dficit. No entanto, o item nus excessivo de

    aluguel cresceu em todas as regies metropolitanas do

    pas. A nica exceo foi Porto Alegre.

    Em 2012, os componentes com maior peso

    no dficit habitacional eram: o nus excessivo com

    aluguel correspondendo a 2,660 milhes de uni-

    dades, ou seja, 45,9%; a coabitao, com 1,865

    milhes de domiclios ou 32,2%; a habitao pre-

    cria, com 883 mil, ou 15,3%; e o adensamento

    excessivo em domiclios alugados, 382 mil ou

    6,6%. Somente na regio Norte o componente do-

    miclios precrios tem um peso maior do que o

    nus excessivo com aluguel.

    De acordo com esses dados, parece-nos im-

    portante conhecer esse submercado de locao. Sabe-

    se que, muitas vezes, a poltica habitacional res-

    ponsvel pela relocao de pessoas de reas cen-

    trais para a periferia distante, inviabilizando, desse

    modo, o acesso s atividades econmicas, bem como

    s oportunidades e aos bens da cidade. Essa polti-

    ca cria vazios urbanos e imveis subutilizados. Ser

    que esses imveis no poderiam ser destinados a

    programas de habitao e de locao social?

    De acordo com uma apresentao do Minis-

    trio das Cidades, num seminrio realizado no

    Uruguai e que tinha como tema a Locao Social:

    Uma poltica bem sucedida deve oferecer diferen-

    tes solues, o que inclui o chamado ciclo de vida,

    tornando a locao social uma excelente soluo

    para jovens, migrantes recentes e idosos.

    Essa questo vem tona quando nos propo-

    mos a discutir uma poltica habitacional que incor-

    pore a locao social. Sabemos o quanto difcil

    trabalhar com esse tema num pas onde a proprie-

    dade privada da terra e de imveis tida como uma

    recompensa, uma vitria pessoal dos trabalhado-

    res, ainda que o acesso a essa moradia prpria sig-

    nifique morar na periferia, longe das reas centrais

    e das oportunidades, ou em habitaes precrias.

    Este dossi rene alguns pesquisadores que

    se propem a entender melhor como esse merca-

    do se estrutura no pas. Sabemos que compreen-

    der esse fenmeno uma forma de contribuir para

    o desenho de uma poltica habitacional mais com-

    pleta, que vise a atender a todos os estratos da

    populao. Nele, trata-se o problema da habitao

    do ponto de vista das polticas de locao social,

    ou da falta delas, elegendo o tratamento que a le-

    gislao de uso do solo e o plano diretor do a

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    essa questo. Num primeiro momento, trataremos

    de caracterizar o problema habitacional com apoio

    nas diretrizes e aes do Plano Municipal de Habi-

    tao de Interesse Social (PMHIS). Em seguida, tra-

    taremos das polticas implementadas pelos gover-

    nos dos estados e pelo governo federal, destacando

    a experincia do Programa de Arrendamento

    Residencial (PAR) e incorporando algumas consi-

    deraes sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida.

    Caracterizaremos o mercado de locao atravs do

    perfil de moradores e da dinmica do mercado.

    Iniciamos com Lcia Bgus e Suzana Pasternak,

    que realizam um estudo do mercado de aluguel no

    Brasil, comparando domiclios e populao mora-

    dora no Brasil em unidades prprias e alugadas.

    O trabalho de Camila DOttaviano pretende anali-

    sar os programas de locao social no mbito da

    poltica de habitao de interesse social no Brasil,

    em especial, na cidade de So Paulo, a partir do

    Programa de Locao Social de 2002, e o projeto

    de lei n 6.349 , de 2009, que tramita na Assembleia

    Legislativa Federal, propondo a criao de um Ser-

    vio de Moradia Social. Esse dossi ir focalizar a

    caracterizao das moradias alugadas no Brasil, e,

    em especial, nos municpios de So Paulo, Curitiba

    e Salvador. Em seguida Nelson Baltrusis e Laila

    Nazem Mourad procuram analisar a evoluo da

    legislao urbana em Salvador e seus impactos na

    produo de habitao social. O texto de Tomas

    Antnio Moreira visa a explorar as polticas

    habitacionais nas ltimas dcadas para pautar o

    cenrio atual da Poltica Habitacional de Curitiba.

    Para tanto se pautar no comportamento

    demogrfico atual da regio, as principais balizas e

    a estrutura do Plano Municipal de Habitao de

    Interesse Social, empreendido em 2008. E, por

    ltimo, destaca-se o texto de Simaia do Socorro

    Sales das Mercs, Helena Lcia Zagury Tourinho

    e Marco Aurlio Arbaje Lobo, que se propem a

    iniciar uma discusso sobre a possibilidade de

    utilizao da locao social como modalidade de

    proviso de moradia digna no Centro Histrico de

    Belm.

    Acreditamos que os trabalhos aqui apresen-

    tados podem suscitar o debate sobre a questo da

    locao social no Brasil. Enseja-se que essa questo

    deixe de ser tratada marginalmente e passe a fazer

    parte, de fato, de uma poltica de habitao social.

    Recebido para publicao em 01 de fevereiro de 2014Aceito em 02 de maro de 2014

    Nelson Baltrusis Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjunto do Programa de Ps-graduao emPlanejamento Territorial da Universidade Catlica do Salvador. Professor da Universidade Catlica do Salva-

    dor. Pesquisador colaborador da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Instituto de Estudos, Formao

    e Assessoria em Polticas Sociais. Foi consultor do processo de elaborao de planos diretores participativosno municpio de Jandira pela Fundao para o Desenvolvimento da UNESP, FUNDUNESP e nos de Guarulhos,

    Vitria e Mogi das Cruzes pelo Instituto Plis. Tem experincia na rea de Planejamento urbano, atua princi-

    palmente nos seguintes temas: planejamento urbano, favelas, instrumentos urbanisticos, economia urbana emercado imobiliario. Publicaes recentes: Poltica Nacional de Habitao hoje. Produo de mercado com

    recursos do SBPE como ao dominante. Arquitextos (So Paulo), v. 1, p. 1, 2013; Transformaes do modo de

    morar na metrpoles contemporneas. Novos discursos, velhos problemas. Caderno CRH (UFBA. Impresso),v. 23, p. 50-75, 2010; Ricos e pobres, cada qual em seu lugar? a desigualdade scio-espacial na metropole

    paulistana. Caderno CRH (UFBA. Impresso), v. 22, p. 135-149, 2009.

    Laila Nazem Mourad Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Bolsista de ps-doutorado PNPD-Capes.

    Membro do grupo de pesquisa Lugar Comum. Tem experincia na rea de Arquitetura e Urbanismo, com

    nfase em poltica urbana, planejamento urbano e regional, plano diretor, plano estadual e municipal dehabitao de interesse social, plano de bairro e processos de reabilitao em centro histrico. Publicaes

    recentes: Movimentos de resistncia ao processo de renovao conservadora do Centro Histrico do Salva-

    dor. In: Jos Rios Fernandes; Lcio Cunha; Pedro Chamusca. (Org.). Geografia & Poltica, Polticas e Planeamento.1ed.Porto: GEGOT, 2013, v. 1, p. 1-788; Centro Histrico: planejamento para o turismo. In: Centro Gaspar

    Garcia de Direitos Humanos. (Org.). Moradia Central: Lutas, Desafios e estratgias. 1ed.So Paulo: Centro

    Gaspar Garcia de Direitos Humanos, 2012, v. 1, p. 60-63; Lutas pela conquista do direito moradia no CentroHistrico de Salvador. In: Edsio Fernandes; Betnia Alfonsin. (Org.). Revisitando o instituto do tombamento.

    01ed.Belo Horizonte: Frum, 2010, p. 01-468.