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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL LUCIANA MOUTINHO DIÁLOGOS COM O ORIENTE. PSICANÁLISE E ZEN, DOIS MÉTODOS PARA ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO SÃO PAULO 2015

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP … · 2019. 11. 8. · O Zen, como escola de Budismo, proporia ao seu praticante chegar a um estado de “não mais desejar”

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

LUCIANA MOUTINHO

DIÁLOGOS COM O ORIENTE. PSICANÁLISE E ZEN, DOIS MÉTODOS PARA

ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO

SÃO PAULO

2015

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LUCIANA MOUTINHO

DIÁLOGOS COM O ORIENTE. PSICANÁLISE E ZEN, DOIS MÉTODOS PARA

ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social. Orientador: Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho.

SÃO PAULO

2015

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ERRATA

MOUTINHO, Luciana. Diálogos com o Oriente. Psicanálise e Zen, dois métodos

para além do sentido: A dimensão do Ato. 2015, 83 p. Dissertação de Mestrado.

Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social – PUC – SP.

Página Linha Onde se lê Leia-se

29 3 discurso.¹³ discurso.

30 12 O que prospera é:

“A ontologia (...)

O que prospera é a

queda da “ontologia

(...)

33 17 engodo. . engodo.

33 18 “Eu minto.”. “Eu minto.”

38 19 (Cf. explicação

elucidativa sobre

método lacaniano

na p.9).

(Cf. explicação

elucidativa sobre

método lacaniano

na p. 19).

49 7 Feitas esses

esclarecimentos

Feitos esses

esclarecimentos

51 26 afirmamos no início

do capítulo 3

Afirmamos no

início deste trabalho

64 25 sua especificidade

de ato não é o

sentido apenas

sua especificidade

de ato não é o não-

sentido apenas

65 1 ato(do analista e do

mestre zen)

ato (do analista e do

mestre zen)

67 9 [inédito],, pp [inédito], pp

67 26 Da sua inigualdade

do sujeito ao objeto

da inigualdade do

sujeito ao objeto

65 3 passagem para o ato analítico

passagem ao ato para o ato analítico

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72 19 A psicanalista

Collete Soler

A psicanalista

Colette Soler

78 23 La incención

sintoma.

Del La invención

sintoma.

del

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LUCIANA MOUTINHO

DIÁLOGOS COM O ORIENTE. PSICANÁLISE E ZEN, DOIS MÉTODOS PARA

ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social.

Aprovada em: ___/___/____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho (orientador)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

___________________________________________ Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

___________________________________________ Prof. Dr. Ronaldo Silva Torres

Universidade de São Paulo (USP)

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Dedico este trabalho a todos aqueles que

fazem de suas vidas atos de transmissão...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao meu orientador, o professor Dr. Raul Albino Pacheco

Filho, por ter inicialmente me aceitado como sua aluna ouvinte, e a seguir acolhido meu

interesse de pesquisa. Agradeço suas orientações extremamente perspicazes e que me

trouxeram grande crescimento acadêmico durante este processo.

Agradeço ao professor Dr. Ronaldo Torres, por seus apontamentos em meu exame de

qualificação, certamente este trabalho teve seu percurso em grande parte guiado por seus

comentários esclarecedores, principalmente no que se refere à teoria do Ato Psicanalítico.

Agradeço ao Professor Dr. Antonio da Costa Ciampa, por suas conversas intrigantes

sobre o Oriente e por suas indicações de leitura no breve período em que tive o prazer de

cursar uma de suas disciplinas.

Agradeço a todos colegas que de alguma forma me auxiliaram e incentivaram antes e

durante a feitura deste trabalho de dissertação. Agradeço à Brendali Dias por ter me

apresentado ao núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC-SP, e ao colega Isaias Gonçalves

por nossas conversas.

Agradeço ao apoio das colegas Ivone Varoli, Sandra Mallar, Nilva Couto e Márcia

Regina Lovatto, durante este período.

Agradeço a disponibilidade do Templo Tzong Kwan de São Paulo, por me ceder

materiais bibliográficos sempre que necessário e por seu acolhimento.

Agradeço ao amigo Aristides dos Santos Dias do templo Zu Lai, por me auxiliar nas

discussões sobre o Zen, sempre me desalojando de qualquer tipo de vaidade intelectual acerca

do Zen.

Agradeço ao meu analista Adriano Perez Clímaco de Freitas, por me auxiliar no

processo de não ceder de meu desejo.

Agradeço ao querido amigo Umbelino Gonçalves Neto, por sua amizade e carinho, por

me ouvir quando estava angustiada, por revisar o presente texto e por suas sugestões.

Agradeço à minha família, sobretudo minha mãe Aparecida Noêmia Moutinho, que

sempre está ao meu lado em todos os momentos de minha vida, e ao meu namorado Fernando

Chang, com quem divido minha vida e partilho agora este momento especial de conclusão.

Agradeço ao CNPq por ter financiado esta pesquisa e possibilitado a elaboração e

conclusão desta por mim tão desejada Dissertação.

Por fim agradeço a todos os mestres Zen e a todos os Psicanalistas que de certa forma

me inspiraram neste tema...

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“Obrigado Mestre, por não me ensinar nada.”

(anedota Zen)

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RESUMO

MOUTINHO, Luciana. Diálogos com o Oriente. Psicanálise e Zen, dois métodos para

além do sentido: A dimensão do Ato.

Podemos encontrar na obra de Jacques Lacan diversas menções ao Zen Budismo, mas que são

pouco exploradas pelos pesquisadores em Psicanálise. Considerando que essas menções

dizem respeito a elementos importantes da teoria lacaniana, buscamos localizá-las nos textos

de Lacan, especificamente em seus seminários e escritos. Concomitantemente, também

buscamos compreender historicamente o aparecimento do Zen Budismo no Oriente e quais

seus principais princípios filosóficos e metodológicos em textos de antropólogos, em textos

de outros estudiosos do Oriente, bem como em textos de autores do próprio Zen. Isso

possibilitou identificar as possíveis semelhanças e diferenças entre a Psicanálise de Lacan e o

Zen Budismo. Os elementos que se destacaram nesta pesquisa foram os que diziam respeito

ao método do analista clínico lacaniano e o método do mestre Zen. Assim, verificamos as

semelhanças entre o método de transmissão da Psicanálise lacaniana e o método utilizado

pelos mestres Zen budistas em sua transmissão, que ambos prezam por uma linguagem que

quebra a lógica aristotélica, ambos se colocam como não-dualistas (mas com suas respectivas

especificidades) e ambos prezam por um esvaziamento do “eu” (também com suas respectivas

especificidades). Também observamos as diferenças entre ambos os métodos, tal como a

especificidade do Ato analítico em relação ao Nirvana enquanto um “fim” a que visa o Zen

Budismo. O Zen, como escola de Budismo, proporia ao seu praticante chegar a um estado de

“não mais desejar” ou “ceder de seu desejo”; enquanto que em Psicanálise se entende que

“não desejar” não é possível por ser um fator constituinte do sujeito enquanto ser faltante, e

sendo assim o fim de análise se dá pela responsabilização e pelo empoderamento do sujeito

perante um gozo que antes o assujeitava. A especificidade do ato analítico preconiza que o

sujeito permanece barrado, dividido, não sendo restituído do objeto pequeno a, e nem sendo

tomado como parte de um todo ou de um grande Outro não barrado (A). O passe, ou ato de

conclusão de uma análise tem como especificidade ser o que qualifica o analisante a ocupar o

lugar de analista.

Palavras-chave: Psicanálise, Método lacaniano, Zen budismo, Ato psicanalítico.

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ABSTRACT

MOUTINHO, Luciana. Dialogue with the East. Psychoanalysis and Zen, two methods

beyond the meaning: The dimension of the Act.

We can find in the work of Jacques Lacan several references to Zen Buddhism, which are,

however, little explored by researchers in Psychoanalysis. Considering such references relate

to important elements of Lacanian theory, we seek to locate them in Lacan's texts, specifically

in his seminars and writings. At the same time, we also seek to understand historically the

emergence of Zen Buddhism in the East and which were its main philosophical and

methodological principles, searching in anthropologists texts, in texts of other scholars of the

East as well as in texts by Zen Buddhist authors. This made it possible to identify the possible

similarities and differences between Lacanian psychoanalysis and Zen Buddhism. The

elements that stood out in this study were those concerned with the method of the Lacanian

clinical analyst and the Zen master method. Thus, we see the similarities between the

transmission method of Lacanian Psychoanalysis and the method used by Buddhist Zen

masters in their transmission. Both cherish for a language that breaks the Aristotelian logic,

both stand as non-dualistic (but with their respective specificities) and both cherish for an

emptying of the "I" (also with their respective specificities). We also observed differences

between both methods, such as the specificity of the analytical Act regarding to Nirvana as an

"end" that Zen Buddhism aims. Zen, as a school of Buddhism, would propose to its

practitioner reach a state of "no longer desire" or "do not give in to his/her desire"; while in

psychoanalysis is understood that "not to want" is not possible for it being a constituent factor

of the subject as a missing being , and therefore the end of the analysis is given by the

accountability and the empowerment of the subject facing a jouissance wich he was subjected

to. The specificity of the analytical act stipulates that the subject remains barred, divided, not

being refunded the small object "a", and not being taken as part of a whole or a not barred big

Other (A). The pass, or act of completion of an analysis, has as specific feature being what

qualifies the analysand to occupy the analyst place.

Keywords: Psychoanalysis, Lacanian Method, Zen Buddhism, psychoanalytic Act.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................................10

OBJETIVOS E PERCURSO METODOLÓGICO............................................................14

1 DIÁLOGOS COM O ORIENTE.......................................................................................17

1.1 Referências ao Taoísmo no ensino de Lacan: o conceito de vazio e o não-

dualismo.......................................................................................................................17

1.2 Lacan e a arte enigmática do Oriente..................................................................22

1.3 O não-dualismo......................................................................................................24

1.4 A leitura de Lévi-Strauss sobre o Japão..............................................................27

2 A PSICANÁLISE E OS IMPASSES DO SENTIDO........................................................30

2.1 Fala plena, fala vazia e o furo no sentido............................................................31

2.2 Enunciado e enunciação........................................................................................33

2.3 O Sujeito suposto (não saber) pela Psicanálise...................................................34

2.4 O objeto a...............................................................................................................36

3 O ZEN...................................................................................................................................38

3.1 O Zen em uma pincelada......................................................................................38

3.2 O vazio no Zen.......................................................................................................40

3.3 O desenvolvimento do Zen-Budismo...................................................................41

4 DOIS MÉTODOS PARA ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO................46

4.1 O Ato Analítico e os Atos......................................................................................46

4.1.1 As modalidades de ato: o objeto a na cena.............................................48

4.2 O(s) Ato(s) de transmissão na experiência..........................................................49

4.2.1 O método Zen e o método da Psicanálise...............................................51

4.2.2 O Koan, a Psicanálise e o apreço ao enigma.........................................55

4.2.3 O Silêncio e o Vazio – um método de apontar a verdade.......................59

4.2.4 A atuação do analista e a atuação do mestre Zen..................................62

4.3 O Ato de conclusão da experiência......................................................................66

4.3.1 O ato bem sucedido e o desaparecimento do Sujeito ($)........................67

4.3.2 A ética do Desejo......................................................................................68

4.3.3 O “não ceder” versus o “abandonar”.....................................................70

4.3.4 A dimensão do objeto a(to) na conclusão da experiência analítica e o

Satori no Zen....................................................................................................72

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................74

REFERÊNCIAS......................................................................................................................78

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10

INTRODUÇÃO

A presente dissertação consta de um diálogo entre o ocidente e o oriente, mais

especificamente ao que concerne a Psicanálise e o Zen, no que problematizamos as possíveis

homologias e dissimetrias entre o método da Psicanálise e o método utilizado pelos mestres

Zen budistas. Para isso, inicialmente abordaremos o diálogo entre o pensamento ocidental e o

oriental via Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss. Após este diálogo, traremos uma

apresentação sintética da localização da Psicanálise em relação ao sentido, bem como da

escola budista Zen, para finalmente estabelecermos um estudo acerca da articulação entre a

teoria da Psicanálise e o Zen, partindo principalmente das menções ao Zen feitas por Lacan

em seu ensino. Enfatizaremos nesta articulação o conceito psicanalítico de Ato, localizando

sua especificidade e seus desdobramentos, principalmente no que concerne ao que

denominaremos de dois aspectos de sustentação do ato: o ato enquanto suporte de uma

experiência de transmissão e o ato como um momento de passagem, ou o fim de uma

experiência.

Lacan teve contato com a cultura oriental, especialmente com o Taoísmo e com o Zen,

pois temos o relato de ao menos uma visita sua a um mosteiro Zen no Japão (Cf. LACAN,

1962-1963/2005, p. 235). Também sabemos de seus estudos sobre Chinês com François

Cheng, com quem estudou o Taoísmo e o livro de Mencius – livro este que contribuiu para o

desenvolvimento do confucionismo na China (Cf. IANNINI; VILELA, 2012, p. 21).

Veremos que o Taoísmo é uma filosofia importante no quadro de desenvolvimento do

Zen, e que tal como o Taoísmo propõe, o Zen não se transmite apenas pela via da fala e do

sentido, e que seu desenvolvimento influenciou a atuação dos mestres budistas inicialmente

do Japão, bem como sua expressão cultural e artística.

Por outra via, propomos através da leitura de Lévi-Strauss sobre o Japão elencar

aspectos da cultura japonesa que certamente influenciaram o Zen em seu desenvolvimento

final. Desta forma, estes diálogos iniciais com o oriente, via Lacan e Lévi-Strauss, já

localizam o início de nossa apresentação sobre o Zen, ainda que por seus aspectos

emoldurantes.

O interesse desta pesquisa nos surge a partir de nossa experiência mesma na clínica

(fazendo análise com um psicanalista lacaniano e buscando esta diretriz enquanto atuação

clínica), e das leituras dos seminários e escritos de Lacan, nos quais encontramos o possível

diálogo entre o Zen e a Psicanálise – uma vez que algum conhecimento da filosofia oriental já

nos era prévio por vias de estudo autodidata e algumas vivências pessoais em mosteiros Zen.

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Assim, a leitura dos textos de Lacan e a vivência clínica suscitaram o maior interesse e

curiosidade em trabalhar o tema para extrair daí consequências importantes ao arcabouço

teórico psicanalítico.

Partimos de uma pesquisa teórica e de revisão bibliográfica específica para articular o

diálogo entre o Zen e a Psicanálise iniciado por Lacan. Privilegiamos estas menções de Lacan

no geral, destacando-as na epígrafe de nossos capítulos e subcapítulos. Tais menções serão,

muitas vezes, o gatilho para nossa discussão.

Escrever sobre métodos que abordam – fazem borda – ao inefável, como o Zen e a

Psicanálise, e ainda assim fazer-se entendida em uma linguagem estritamente acadêmica e

rigorosa, não nos foi uma tarefa fácil. Somou-se a este desafio, a grande responsabilidade de

manejar conceitos oriundos de uma renomada e milenar tradição como o Budismo, e do

ensino de um dos maiores psicanalistas desde Freud, Jacques Lacan.

Mais do que se situar dentro do que se ampara simbolicamente – que a Psicanálise de

Lacan tenha em certa medida “bebido” nas fontes da cultura oriental, e mais especificamente,

do Zen –, é preciso chegar até às fontes da cultura oriental por si próprio e, dentro do possível,

experimentar o sabor de suas águas se quisermos minimamente estreitar os laços que fizeram

com que o psicanalista se servisse delas. E foi esta a primeira tarefa cumprida no deslindar

dos estudos que culminaram na presente dissertação.

Desta forma, inicialmente selecionamos dentro do vasto compêndio de textos budistas

(os já traduzidos ou escritos em inglês e português) aqueles que se enquadram dentro do que

se trata especificamente nas menções feitas por Lacan e então articulamos a partir desta

localização possíveis ecos e elaborações teóricas pertinentes ao método da Psicanálise.

Dentro do Zen há uma multiplicidade de escolas, e discernir a especificidade de uma

(no caso duas), como sendo aquela que Lacan citou sem denominar, nos foi uma tarefa

trabalhosa, porém importante, uma vez que esta escolha e denominação da escola, direciona

toda a leitura e formulação dos pressupostos do presente texto no que concerne à localização

do Zen influenciando de maneira direta o trabalho de nossa articulação teórica com a

Psicanálise.

A segunda tarefa foi estabelecer de forma original e inédita este diálogo, uma vez que

outros autores já se debruçaram sobre a temática do Zen e o ensino de Lacan. A singularidade

de nosso trabalho está no estudo mais detalhado do Zen (enquadrando qual escola específica

de Zen se trata, para assim selecionar os textos e colocações pertinentes), a fim de estabelecer

articulações teóricas específicas de um ramo tão vasto e complexo, e tirar disso algum

proveito para a Psicanálise e sua teoria do ato.

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Durante todo o processo de escrita, principalmente ao abordarmos o Zen, fez-se

necessário abolir definições muito fechadas e conceituais acerca deste, o que pode ter tornado

o texto um tanto quanto “poético”. Tal empreitada, visou trazer ao leitor uma certa

familiaridade com esta escola Budista. Parecia não haver outra maneira de apresentar o Zen

ao leitor, ou pelo menos uma de suas facetas, sem torcer um pouco as palavras...

É importante ressaltar, logo de início, as limitações, as dissensões e as divergências

entre a Psicanálise e o Zen. Tal como o próprio Lacan elucida, sua inspiração metodológica

pelo Zen tem ressalvas e limitações (Cf. LACAN, 1966-1998, pp. 316-17), fato que nos levou

a trazer a este trabalho a dimensão da disjunção entre o Zen e a Psicanálise, para além de suas

possíveis homologias. Iremos correlacionar o método Zen e o método da Psicanálise, mas vale

salientar que ambas as experiências não se equivalem, ou não seria o intuito deste trabalho

equivale-las.

De fato, a Psicanálise faz uso da literatura, da filosofia, das obras de arte, etc., sem

contudo se confundir ela própria com aquilo de que se serve (ou seja, não se equivale à

literatura por se utilizar da mesma, etc.). Do mesmo modo, não é tencionando igualar a

experiência do Zen à da Psicanálise que pensamos ter Lacan aludido a este em seus escritos e

seminários, muito menos é o que faremos aqui.

O que de cara está posto, é que esta experiência (a do Zen) pode trazer à Psicanálise

representações e desdobramentos desejáveis ao que propõe Lacan como método. Um método

que não se encerra na dimensão do sentido. O rompimento com a lógica formal, o pensamento

não-dualista, o conceito de vazio no Tao, os koans e os mondos no Zen, ecoam no método da

Psicanálise lacaniana, um método que dá suporte à subversão do sujeito, e a subversão de uma

prática psicanalítica que se encerre no sentido e no reforçamento do eu, e abre as portas para

uma clínica do Ato.

A possibilidade de interesse da Psicanálise pelo Zen advém sobretudo no que diz

respeito ao método, ou do que poderíamos chamar de um saber-fazer com a linguagem, tal

qual o mestre Zen o faz, ou mesmo com alguns atos presentificados nas histórias enigmáticas

(Koans) e nos diálogos entre mestre e discípulo zen (Mondos), que serão abordados

amplamente no presente estudo, já que foram diretamente citados por Lacan em seu ensino,

como veremos. Assim, este trabalho de cunho teórico tem o intuito de explanar a

especificidade do método analítico destacando a dimensão do Ato, tendo como desengatilhar

para tais explanações teóricas as menções de Lacan em seu ensino, que situam algo no Zen

que pode ecoar no método Psicanalítico. Desta forma, fundamentamos nossa abordagem ao

Zen, não pelo viés religioso, mas como dito, pela via do seu método.

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13

Uma inspiração metodológica, a qual possa interessar à Psicanálise, especificamente, a

que tenha interessado a Jacques Lacan e que damos continuidade neste trabalho.

Como dissemos, o Budismo se ramifica em diversas escolas. E sendo assim nós temos

aqui em vista a especificidade das escolas Zen Rinzai e Soto, já que nestas escolas que se

localizam alguns dos elementos que interessaram a Lacan enquanto método, como o Koan, e

os atos fora de sentido dos Mestres, ainda que Lacan não nomeie tais escolas, identificá-las foi

parte de nosso trabalho de pesquisa.

Outros renomados psicanalistas já se interessaram pelo Zen, tais como Erich Fromm

(1960), em seu congresso sobre Psicanálise e Zen Budismo, apresentado juntamente com D.

T. Suzuki (um dos mais reconhecidos estudiosos do Zen no ocidente). Lacan, entretanto,

diferentemente de Fromm, não abordou o Zen pela via da religiosidade – ele o fez em

referência a um método. Abordaremos o método pela via da transmissão e pela via da

conclusão da experiência, privilegiando o conceito de ato analítico nesta articulação.

Iremos nos circunscrever principalmente nos trabalhos de Lacan até seu seminário XV

– O Ato psicanalítico, embora por vezes acabemos esbarrando em alguns conceitos

formulados por Lacan posteriormente a este seminário, que no entanto dialogam com a

temática do Zen. Como exemplo, temos uma menção ao Zen feita por Lacan em seu

seminário XX, onde está tratando do gozo. Não nos debruçaremos acerca da dimensão do

gozo especificamente, uma vez que com este intuito nos afastaríamos demais de nossa

empreitada, mas alinharemos o tema dentro do que ampara a sustentação da experiência, do

enquadramento do ato – e sua articulação ao ensino de Lacan, vale ressaltar.

No capítulo final articularemos o método Zen ao método da Psicanálise, partindo do

conceito de Ato Psicanalítico e sua especificidade, entre outras modalidades de Atos. Iremos

nos circunscrever então em relação aos atos de transmissão e de conclusão no Zen e na

Psicanálise, localizando suas similitudes, suas especificidades e disjunções.

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14

OBJETIVOS E PERCURSO METODOLÓGICO

O objetivo deste trabalho de cunho teórico, de uma forma geral, foi o de estabelecer o

diálogo entre o Zen e a Psicanálise, dando continuidade às citações de Lacan e privilegiando o

conceito de ato nestas articulações. Também constituiu-se como objetivo abordar a

problemática dos impasses da clínica psicanalítica perante a interpretação da fala via sentido

ou do sujeito pela via do eu e do pensamento. Temos como marco teórico as elaborações

feitas por Lacan principalmente até seu seminário XV – O Ato Psicanalítico.

A fim de aquiescer ao nosso objetivo principal, iniciamos estabelecendo possibilidades

de diálogos entre o ocidente e o oriente, via Lacan e Lévi Strauss, elegendo pontos que

certamente amparam o desenvolvimento central deste trabalho como sendo o que ecoa e o que

não ecoa em relação ao método da Psicanálise de Lacan e o método Zen.

Durante estas articulações teóricas, visamos estabelecer pontos de similaridade e de

disjunção entre o Zen e a Psicanálise, uma vez que Lacan sugere estas inspirações e também

estas limitações. O nosso percurso metodológico pode ser descrito da seguinte forma:

No primeiro capítulo, será iniciado o diálogo com o oriente. Trataremos a respeito do

vazio no Tao e sobre a utilização do conceito de vazio feita por Lacan em seu seminário VII –

A ética da Psicanálise, onde Lacan utiliza o conceito de vazio no vaso, partindo de um

exemplo de Heidegger para explicitar a função significante que contorna o vazio. Articulamos

então esta utilização metafórica de Lacan ao conceito de vazio Taoista. Abordaremos o

contato de Lacan com a arte Zen e o conceito de não-dualismo (pertencente ao Taoísmo e

agregado pelo Zen), e a discussão que Lacan inicia acerca da lei moral a partir de pontuações

sobre o Taoísmo. Em seguida traremos uma leitura do Japão feita por Lévi-Strauss, dada a

relevância de alguns aspectos presentes nesta leitura que certamente apontam para aspectos

centrais do Zen, uma vez que este se desenvolve em sua forma final no Japão, podendo-se

dizer que certamente é influenciado por aspectos culturais como os que nos aponta Lévi-

Strauss. Veremos que Lévi-Strauss destaca desta leitura dois elementos que certamente

influenciaram o Zen e que parecem dialogar com a Psicanálise ao nosso ver: a não utilização

da “linguagem a serviço da razão” e o sujeito como não estando alocado no Eu (LÉVI-

STRAUSS, 2012, p. 34).

A despeito de que, no primeiro capítulo de nosso trabalho estejamos abordando um

diálogo mais amplo com o oriente e não estejamos falando stricto sensu, da escola budista

denominada de Zen, já estamos adentrando este tema através de alguns aspectos emoldurantes

desta escola. Alguns destes aspectos, como dissemos; o Taoísmo (que como veremos

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15

influencia diretamente o Zen na China), a arte e a cultura nipônica - onde se desenvolve a

faceta final do Zen – e a leitura Straussiana sobre o Japão

No segundo capítulo, será abordado o impasse da Psicanálise perante o uso da fala

circunscrita ao sentido. Trataremos também sobre o sujeito da Psicanálise, o processo de

alienação e separação estabelecido por Lacan, e do resto desta operação, o objeto a, que não

pode ser restituído ao sujeito. Iremos discutir a subversão do sujeito da Psicanálise em relação

ao sujeito da consciência e da razão, da sua posição de certeza como antecipada e não como

premissa do pensamento. Também veremos como se dá o distanciamento da Psicanálise ao

abordar o sujeito pela via do sentido e a contraposição que a Psicanálise faz ao pensamento

marcado pela certeza do sujeito cartesiano, que não percebe sua escotomização de ser.

No terceiro capítulo, iremos abordar o desenvolvimento histórico e alguns

pressupostos importantes da escola Budista Zen a partir de renomados teóricos do Zen no

ocidente. Enfatizaremos algumas vertentes essenciais de atuação dos mestres Zen, como os

Koans e os Mondos, que se apoiam na via de sustentação e transmissão do Zen enquanto uma

experiência, que aborda o discípulo pela via do Não-eu e do não sentido. Trataremos ainda

dos atos do mestre Zen que se servem da fala e da ação sem se alocar no sentido, mas

principalmente fazendo flerte ao enigma, apostando na suspensão da resposta e na ausência de

direcionamentos, e que são tomados aqui como atos de transmissão.

No quarto e último capítulo, finalmente chegaremos ao objeto maior de nosso estudo:

a articulação entre a Psicanálise de Lacan e o Zen. Trataremos de uma localização breve do

ato na Psicanálise e da especificidade do ato analítico como um ato de mudança subjetiva

(GUIMARÃES, 2007, p. 78), diferenciando-o da passagem ao ato e do acting out como

modalidades de repetição do ato para o sujeito e não de renovação, estando os dois últimos do

lado do sujeito enquanto o ato permanece de certa forma do lado do analista (LACAN, 1967-

1968 /(inédito), p. 139).

Ainda no quarto capítulo, serão elaboradas possíveis tessituras entre o método Zen e o

método da Psicanálise, a partir das menções ao primeiro feitas por Lacan em seu ensino.

Tratar-se-ão de questões referentes ao método analítico e sua transmissão, articulando tal

método ao método utilizado na transmissão do Zen. Neste capítulo, inicialmente

trabalharemos as possíveis homologias e divergências entre o aspecto de ato na transmissão,

do seu aspecto no percurso da experiência, tanto a do Zen quanto a da Psicanálise. E

posteriormente abordaremos o ato como o momento de fim na experiência, como momento de

passagem, onde há a ruptura, a modificação radical do sujeito. Especificaremos o ato analítico

e as disjunções entre este e o ato de conclusão no Zen e articularemos a questão da ética do

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sujeito perante seu desejo, incentivada pela análise e a disjunção acerca de tal direcionamento

diante da proposta Zen.

Sem pretender esgotar um tema tão vasto como o diálogo entre o Zen e a Psicanálise

de Lacan, marcamos a partir de nossa elaboração teórica uma certa continuidade da discussão

iniciada por Lacan entre a Psicanálise e o Zen, abordando especificamente o que em nossa

leitura – que tem o ato como conceito privilegiado para amparo destas articulações –, ecoa e o

que não ecoa entre ambos os métodos de transmissão.

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1 DIÁLOGOS COM O ORIENTE

Neste capítulo abordaremos o interesse de Lacan pelo oriente, especificamente os

conteúdos de sua obra tidos como legados do seu contato com o Japão e com a cultura

chinesa, conteúdos que culminam no desenvolvimento conceitual e histórico do Zen. Também

traremos uma leitura de Lévi-Strauss sobre o Japão que justamente se alinha com o nosso

tema, uma vez que articula aspectos centrais do Zen que se desenvolve nestas terras. Uma vez

elucidado isto, fica também esclarecido o nome do capítulo, “Diálogos com o oriente”, uma

vez que pretendemos dialogar com estes aspectos não de forma aleatória, mas, como

dissemos, de forma alinhada ao nosso tema, e assim construir uma ponte inicial de

aproximação ao Zen e localizar de forma mais ampla este diálogo, esta articulação entre a

Psicanálise de Lacan e o oriente.

1.1 Referências ao Taoísmo no ensino de Lacan: o conceito de vazio e o não-dualismo

“No taoísmo, por exemplo – vocês não sabem

o que é isto, muito poucos sabem, mas eu, eu o

pratiquei, pratiquei os textos é claro –, o

exemplo é patente na prática mesma do sexo.

É preciso reter a resposta para ficar bem.

(...)” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 123).

O conceito de vazio é presente tanto no Taoísmo como no Zen e é um conceito não-

dualista. O não-dualismo é marcado nas filosofias orientais do Tao e do Budismo Zen – como

veremos –, enquanto posicionamento de não utilizar categorias separativistas para a

compreensão dos fenômenos. Em outros termos, o não-dualismo é, para estas escolas, um

modo de compreensão que não cria contradições, um estado de indiferenciação, de não-

discriminação, onde opostos podem se complementar de forma harmônica.

Temos como exemplo um sutra1 utilizado pelos mestres Zen Budistas, que declara que

“a forma não é diferente do vazio”2. Neste aspecto, o simbólico, a forma, a fala e mesmo a

ordem dos fenômenos não estão em oposição à dimensão do vazio. A ordem dos fenômenos,

1 Sutra é um termo sânscrito que significa costurar, no budismo sutra é uma espécie de escritura, são textos que remetem aos discursos do Buda histórico (Sidarta Gautama). 2 Prajna-Paramita-Sutra, ou Heart Sutra, é um trecho central do Maha-Prajna-Paramita-Sutra, atribuído a Nagarjuna.

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ou das formas, não estaria do lado oposto da não-forma, da não-existência, o que é tomado de

forma genérica como o estatuto de não-dualidade, onde o pretenso concreto e o pretenso

figurado não se excluem, mas se complementam enquanto pura possibilidade.

Pode-se notar que o Taoísmo e o Zen propõem um contato direto com aquilo que a

estrutura mesma da linguagem cinge: o Vazio – conceito extremamente caro a tais escolas.

Veremos que o vazio também aparece no ensino de Lacan, mas neste certamente o vazio não

visa a complementaridade de opostos como nas filosofias orientais tratadas acima, mas

principalmente trata da instauração da dimensão da falta, da impossibilidade de entendimento

da linguagem apenas via sentido, ou significado, e da importância de levar em conta o furo

instaurado na ordem do simbólico, o vazio.

Como dissemos, Lacan se interessou pela cultura oriental3, chegou a viajar ao Japão

duas vezes, estudou a língua chinesa, visitou um mosteiro Zen e fez menções ao Zen em seu

ensino. Lacan também estudou elementos hauridos do legado clássico do pensamento chinês,

como o Confucionismo, além do já citado Taoísmo – elementos estes que influenciaram

diretamente o desenvolvimento do Zen como veremos (CHENG, 2012, p. 165).

Lacan traz ao método da Psicanálise a dignidade do furo, resguardando a dimensão

privilegiada da falta de sentido na condução de sua clínica. Cabe aqui uma pequena digressão

acerca do método psicanalítico pressuposto por Lacan, e que nesta pesquisa será

correlacionado a alguns aspectos do ¨ método ¨ Zen . É importante deixar claro, todavia, que

temos em vista a problemática de falar em um “método lacaniano”, uma vez que, como

esclarece o psicanalista Ronaldo Torres,

(...) o fazer do analista não pode ser determinado positivamente, no sentido de que se construa um guia de intervenções para analistas, dentro de um debate puramente técnico, talvez ele possa ser dirigido pela orientação dada pela transferência, neste diferente jogo de tensão, agora não mais colocado pela tentativa de precisar ações que deslizam entre o extremo da sugestão ao oposto da abstinência, mas uma tensão posta na posição mesma do analista diante do analisante em transferência. Posição em que deve sustentar a relação sintomática para com ela operar. (TORRES, 2010, p. 33).

Lacan no texto A direção do tratamento (1958/1998, p.595-596), vai dizer que o

analista é mais livre em sua tática do que em sua estratégia, sendo esta última, a de ocupar 3 Na história da Psicanálise, entretanto, o diálogo com o Oriente não se deu primeiramente com Lacan. Freud já chegara a estabelecer linhas comparativas entre o estudo do inconsciente e a configuração da língua chinesa no célebre marco da Psicanálise, a obra “A interpretação dos sonhos” (FREUD, 1900/2006). Em uma passagem deste escrito, ao analisar os mecanismos do sonho, percebe na língua egípcia e na chinesa um estatuto de decifração e de emprego de termos não-duais3 que admitem a duplicidade de significados. Freud retoma essa questão no texto sobre “A significação antitética das palavras primitivas” (FREUD, 1910/2006, p. 163).

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para o analisante o lugar do morto. O analista seria menos livre ainda no que concerne a sua

política, onde deveria apostar em sua falta-a-ser ao invés de em seu ser. Mais adiante, no

mesmo texto, Lacan preconiza alguns meios para assegurar a condução correta do tratamento

- o que ao nosso ver, mais se aproxima, em última instância de qualquer direcionamento

metodológico para a Psicanálise, de acordo com Lacan -, após já ter demarcado que o analista

deve conduzir o tratamento e não o analisante. Eis aqui suas coordenadas:

1. Que a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento; 2. Que estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou para o discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso; 3. Que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar; 4. Que a demanda é propriamente aquilo que se coloca entre parênteses na análise, estando excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma; 5. Que, não sendo colocado nenhum obstáculo à declaração do desejo, é para lá que o sujeito é dirigido e até canalizado; 6. Que a resistência a essa declaração, em última instância, não pode ater-se aqui a nada além da incompatibilidade do desejo com a falta. (LACAN, 1958/1998, p.647).

Esta pequena digressão do texto sobre a questão do método lacaniano, demonstra tão

somente a dificuldade de colocar no plano de uma condução descritiva as ações do analista.

Demarca-se então, através das explanações acima, o viés utilizado na presente pesquisa para

abordar o que poderia ser denominado um método da Psicanálise, ou seja, a estratégia, a

tática e a política do analista.

Veremos então, como a questão da falta de sentido privilegiado pelo método

lacaniano dialoga com o Taoísmo, o Zen e a cultura Japonesa, de forma que este diálogo

desponte na localização do conceito de vazio e não-dualismo4.

De acordo com Roudinesco (1994), o Tao5 admite a dimensão do vazio e do inefável,

culminando esta dimensão no Um. Existem no Tao, no entanto, não apenas a dimensão do

vazio como este inefável, mas também a dimensão do vazio mediano que pode estabelecer

relações entre este Um engendrado em duas divisões: o Yin e o Yang. Assim, o vazio em seu

desdobramento posterior no Tao, ou seja, o de vazio-mediano, teria sido utilizado por Lacan

para auxiliar na sua definição do conceito de “Real” no estabelecimento da teoria dos nós

(ROUDINESCO, 1994, p. 353).

Ao tratar a problemática da Ética na Psicanálise, Lacan (1959-1960/2008, pp. 147-

148) aborda o conceito de vazio e o relaciona ao conceito ex-nihilo – do latim, traduzido como

4 O não-dualismo como utilizado no Taoísmo e no Zen é um conceito sinônimo ao conceito de vazio para estas escolas. 5 A palavra “Tao” se refere ao objeto de contemplação e reflexão do Taoísmo, mas por vezes é utilizada pelos autores como sinônima à palavra “Taoísmo”.

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“a partir do nada”. Ele toma o caso de um vazio tal como visto num vaso, a exemplo de

Heidegger6. O vazio serve a Lacan, pois, como é visto no Taoísmo – é diferente do nada, ou

da Coisa - E aqui Lacan afirma que o que lhe interessa nesse aspecto do vazio do vaso é uma

certa função Significante.

Lacan destaca do vaso sua função de utensílio, enquanto metáfora da dimensão

significante. Significante justamente por não estar atrelado a nenhum significado particular. E

com essa metáfora do vaso ele retira a oposição entre o “pretenso concreto e o pretenso

figurado”, apostando em uma homologia entre esta função do vaso como estando pleno por

ter em seu centro o vazio, e a fala e o discurso que também aparecem como “plenos ou

vazios” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 147).

Lacan utiliza, como visto na metáfora acima, o vaso como uma função, algo que

também encontramos de modo parecido no único livro de Lao Tsé, o Tao Te Ching. No Tao

Te Ching, encontra-se desta forma7:

Trinta raios convergentes, unidos ao meio, formam a roda, mas é seu vazio central que move o carro. O vaso é feito de argila, mas é seu vazio que o torna útil. Abrem-se portas e janelas nas paredes de uma casa, mas é seu vazio que a torna habitável. O ser produz o útil, mas é o não-ser que o torna eficaz. (LAO TSÉ, verso 11).

Lacan, no referido seminário sobre a ética, prossegue abordando a questão do vazio e

do significante, articulando o vazio e o pleno:

O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante. É a partir desse significante modelado que é o vaso, que o vazio e o pleno entram como tais no mundo, nem mais nem menos, e com o mesmo sentido. Esta é a ocasião de sentir de perto o que há de falaz na oposição entre o pretenso concreto e o pretenso figurado – se o vaso pode estar pleno é na medida em que, primeiro, em sua essência ele é vazio. (LACAN, 1959-1960/2008, p. 147).

Como dito anteriormente, Lacan relaciona o conceito de vazio ao conceito de ex-

nihilo, e o faz em comparação a uma função que abarca o furo, e no caso do significante, o

furo no simbólico. Entretanto, o significado teísta do conceito permanece alheio ao

pensamento de Lacan ou mesmo do Taoísmo.

O Taoísmo, vale ressaltar, outorga importância não à dimensão de um Deus criador,

mas à natureza. Para o taoísta, o nada (Mu) é a origem de tudo. Esta concepção se assemelha à

6 Lacan utiliza aqui a metáfora do vaso utilizada por Heidegger em sua dialética. 7 De modo semelhante ao que é praticado em textos da Filosofia – que citam os textos filosóficos se referindo aos seus parágrafos, usando o símbolo § – iremos citar o Tao Te Ching indicando seus versos. Esse método se mostra prático para textos clássicos que possuem um grande número de edições. Também tem a vantagem de permitir ao leitor localizar a citação em diferentes edições, independente do número da página.

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mentalidade mítica que coloca a relativa importância de todos os fenômenos da natureza

(OSHIMA, 1991, pp. 48-49).

Lacan em Televisão (1972/2003) cita o Tao, colocando-o ao lado de uma tradição mais

sensata que a nossa. Para ele, uma vez que o Tao não aborda a ex-sistência de Deus como o

paganismo, por exemplo, o fez, isso trará consequências à dimensão do gozo (LACAN,

1972/2003, p. 532). No Taoísmo, como se sabe, não se conta nem com uma confrontação de

Deus, tal como no monoteísmo, nem com a sua negação (ex-sistência), tal como no

paganismo. Lacan fala sobre esta ausência do criador no Tao e retira daí consequências

importantes acerca da estrutura de gozo do sujeito em comparação às sociedades monoteístas.

Deus, ao contrário, ex-sistiu tão bem que o paganismo povoou o mundo com ele, sem que ninguém entendesse nada do assunto. Eis ao que retornamos. Graças a Deus, como se costuma dizer, outras tradições nos garantem que houve pessoas mais sensatas, no Tao, por exemplo. É pena que o que fazia sentido para elas seja sem importância para nós, por deixar frio o nosso gozo. (LACAN, 1972/2003, p. 532).

De acordo com Werneck (2006), o psicanalista Jacques Allain Miller também aborda

este tema em sua leitura de um texto de Lacan, muito pertinente ao presente trabalho:

Lituraterra. Sabemos que Lacan escreve este texto logo após voltar de uma de suas viagens

ao Japão. No texto de Werneck fica claro que a leitura de Allain Miller acerca de Lituraterra

destaca uma confrontação de Lacan entre a escrita ocidental e a oriental, partindo

principalmente da oposição entre a crença no criacionismo versus a ausência de criação

respectivamente (no Tao, por exemplo), que culmina na diferenciação do Um ocidental e do

Um chinês (WERNECK, 2006, p. 6).

Lacan desta feita, trata do Um. Não do Um da criação no monoteísmo ocidental, mas

do Um do Tao, do Um que admite a dimensão do vazio, do Um da diferença, apoiado na

existência lógica8.

Lacan estudou chinês com François Cheng e fez a leitura do primeiro capítulo do Tao

Te Ching, onde descobriu que a significação da palavra “Tao” envolve ao mesmo tempo o

caminho e a fala (VILEVA; IANNINI, 2012, p. 21).

Para responder a esse duplo sentido do Tao, Lacan propõe, em francês, o seguinte jogo fônico: La Voie, c´est La Voix (o Caminho/Via é a Voz). A partir daí, Lacan

8 Não abordaremos mais profundamente a questão do Um em Lacan, uma vez que este trabalho está localizado principalmente na Teoria Lacaniana desenvolvida até o ano de 1968, onde o autor trata do Ato Analítico, e no qual traz a afirmativa de que “há o Um” em seu seminário de 1972 (GORSKI et al., 2013, p.1). Ademais, este tema por si só certamente demandaria uma nova pesquisa.

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isola dois registros do Tao: por um lado, o fazer (que é sem nome, aquilo que é não tendo desejo), por outro lado, o falar (o nome, aquilo que é tendo desejo). O que propõe Lao Tsé? Como podem registros distintos se manter juntos? François Cheng observa que respondeu a essa pergunta de Lacan sem refletir muito: “pelo Vazio-mediano”. (VILEVA; IANNINI, 2012, p. 21).

Desta forma, o Taoísmo – uma filosofia que emoldura a prática Zen historicamente –

também interessou a Lacan. E esse interesse, como sugere Roudinesco (1994, p. 353), está

principalmente na centralidade do conceito de vazio.

1.2 Lacan e a arte enigmática do Oriente

Outro aspecto relevante do interesse de Lacan pelo Oriente envolve a arte Oriental,

pois o psicanalista apreciava demasiadamente a Arte e entre seu interesse consta a apreciação

da arte chinesa. Lacan por pouco não visitou a China – chegou a declinar de um convite

devido à sua aversão ao Maoísmo –, mas foi ao Japão duas vezes, uma em 1963 e outra em

1971 (ROUDINESCO, 1994, p. 157). E foi lá, no país do sol nascente, que Lacan teve contato

com o Zen – ainda que brevemente – e sua arte.

Segundo Roudinesco (1994, p. 357), Lacan possuía um grande apreço pela arte

oriental, e tal apreço o levou a adquirir diversas peças de cerâmica entre outras, as quais,

juntamente com os demais objetos de arte que possuía oriundos de diversos lugares, poderiam

constituir um pequeno museu. Roudinesco (1994, p. 357) também destaca que um dos

aspectos mais valorativos da arte para Lacan advinha de seus mistérios e enigmas.

Em se tratando desse enigma suscitado pela obra de arte, Lacan (1962-1963/2005),

logo após voltar de sua primeira viagem ao Japão, apresenta aos seus seminaristas uma foto

tirada de uma estátua em um mosteiro que visitou na cidade de Kamakura. A estátua na foto

era Kuan Yin Bodhisatwa 9 , cujas pálpebras pareciam a Lacan ter um aspecto deveras

enigmático. Tal estátua também lhe sugeria uma forma andrógena, não lhe estava claro ser

uma imagem feminina ou masculina, e a seu ver não suscitava nenhum interesse aos

japoneses desvelar de fato o sexo da imagem em questão. Lacan sugere que, ainda que a

estátua religiosa não tenha sido forjada propositalmente como representação artística, ela pode

nos representar a “relação do sujeito humano com o desejo” (LACAN, 1962-1963/2005, p.

245).

9 As figuras dos Bodhisatwas são pertencentes ao Budismo Chinês Mahayana, algumas escolas e templos Zen incorporam estas figuras à sua doutrina.

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Neste momento de seu ensino, Lacan (1962-1963/2005) problematiza ser o desejo

como deslocado da dialética da angústia e então inicia o processo de dar forma ao objeto a

como causa de desejo, fundamentando o corte como elemento de função neste processo.

Lacan trata da síncope do objeto e daquilo que resta, o que fica de fora na economia de

barganha do Sujeito ao Outro. Para isso coloca a cultura oriental como sendo aquela em que

sua hipocrisia não é a de angustiar o Outro, opostamente à cultura ocidental cristianizada, que

sem dúvida exerce sua hipocrisia em termos de provocar a angústia de Deus (LACAN, 1962-

1963/2005, p. 244).

Dando continuidade a essa discussão, Lacan se esquiva de explicar uma “psicologia

oriental” e declara que esta sequer existe, além do que não é isto o que lhe interessa: “Não é

por aí que quero levá-los hoje. Quero tomar uma via indireta, utilizar uma experiência,

estilizar um encontro que foi meu, para abordar algo do campo do que ainda pode viver das

práticas budistas, especificamente as do Zen.” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 244).

Lacan (1962-1963/2005, p. 246) prossegue relatando sua experiência no mosteiro de

Kamakura, onde presenciou a imagem da estátua de Kuan Yin Bodhisatwa – sendo não

apenas uma, mas uma dentre mil estátuas idênticas –, e que agora mostrava aos seminaristas

em forma de fotografia. Localizou brevemente o conceito de Bodhisatwa como um quase

Buda e o conceito de Buda como suas infinitas formas humanas, estendendo tal relato ao não-

dualismo oriental, ou seja, a ausência de um Deus único versus a humanidade.

Lacan marca a oposição entre o monoteísmo e o politeísmo a partir da explicação da

disposição das estátuas de Kuan Yin, como sendo representantes de qualquer um ser humano e

não de um Deus, uma vez que para o Budismo cada um é um Buda. O próprio autor relata a

visão budista sobre essa questão: “cada um de vocês é um Buda – de direito, porque, por

razões particulares, vocês podem ter sido lançados no mundo com claudicações que criarão

para esse acesso um obstáculo mais ou menos irredutível.” (LACAN, 1962-1963/2005, p.

247).

Após esta explanação, Lacan afirma que a multiplicidade das estátuas aponta para o

Um derradeiro e culmina na dimensão do não-dualismo, o que não deveria causar interesse

enquanto fenômeno, mas “pelo que ele nos permite abordar das relações que demonstra,

através das conseqüências que teve, histórica e estruturalmente, no pensamento dos homens.”

(LACAN, 1962-1963/2005, p. 247).

Estas consequências históricas e estruturais serão abordadas mais adiante na seção

“1.4 A leitura de Lévi-Strauss sobre o Japão”. Ora, uma vez que Lacan sugere estas

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dissimetrias entre o método Zen e o método da Psicanálise, buscamos de algum modo abordá-

las, principalmente no que concerne ao país de desenvolvimento final do Zen.

A partir do exposto, verificamos uma certa familiaridade de Lacan com alguns

aspectos da cultura oriental; a língua (a chinesa), a arte nipônica, o Tao e o Zen, sempre

destacando destas vivências diálogos e possíveis representações pertinentes ao campo da

Psicanálise.

1.3 O não-dualismo

“Aquilo que se trata, pelo menos na etapa

mediana da relação com o nirvana, é sempre

articulado, de maneira difundida em toda e

qualquer formulação da verdade budista, no

sentido de um não-dualismo. Se existe um

objeto de teu desejo, ele não é outro senão tu

mesmo.” (LACAN, 1962-1963/ 2005, p. 245).

De acordo com Gonçalves (1976), existe um certo perigo ao nos aproximarmos das

escolas orientais sem diferenciá-las do ponto de vista das religiões cristãs. Gonçalves (1976,

p. 13) aponta que as escolas orientais estão baseadas mais no exercício da própria

autorrealização do que em postulados religiosos, tal como estamos comumente acostumados.

Vimos que Lacan marca esta diferenciação principalmente ao confrontar o Tao e o

Criacionismo tirando daí consequências importantes em relação ao gozo e a posição do sujeito

perante o Outro. Lacan marca a posição não-dualista do Zen amparada pelo pressuposto do

Um oriental como vimos.

O estudo do Tao feito por Lacan com o auxílio de François Cheng (ROUDINESCO,

2008, p. 474) denuncia o interesse do psicanalista por esta filosofia, talvez pelo fato de que,

entre outros aspectos, o texto do Tao Te Ching de Lao Tsé é escrito de forma altamente

enigmática e poética. Sobre esse texto, é inclusive interessante o comentário de Capra (1983,

p. 44): “Acha-se repleto de contradições que despertam a curiosidade e sua linguagem

compacta, poderosa e extremamente poética busca interromper a atividade mental do leitor e

afastá-lo dos trilhos familiares do raciocínio lógico.”

Essa localização simbólica, deveras diferente da ocidental, de uma lógica outra que a

aristotélica a ordenar o pensamento, dialoga diretamente com a Psicanálise, uma vez que esta

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não se apoia na lógica formal para estruturar seu sujeito ($), e mesmo para localizar a

dimensão de seus atos de transmissão em seu método. Veremos no decorrer do presente

trabalho que a Psicanálise, ao contrário, subverte a lógica aristotélica ao pensar o estatuto do

sujeito e as dimensões do ato.

Ainda sobre esta dicotomia oriente-ocidente, temos a questão da Lei moral que Lacan

aborda no já referido seminário sobre A ética da Psicanálise, em que vem nos assinalar a

diferença entre as religiões monoteístas ocidentais e as religiões orientais. Estas últimas,

aponta Lacan, foram tomadas genericamente por Freud. Segundo ele (LACAN, 1959-

1960/2005, p. 211), Freud, quando aborda a lei moral em Moisés e o monoteísmo e em sua

obra no geral, toma as religiões orientais de forma vaga, não destacando os desdobramentos

das variações acerca da lei moral e singulariza a leitura do “Cristocentrismo” da posição

judaico-cristã. No entanto, para Lacan tal discussão culmina em leituras específicas da própria

vivência da Lei moral. Lacan complementa esta discussão, como vimos, implementando as

consequências disto nas modulações (oriental-ocidental) de gozo em relação ao Outro.

Outrossim, temos a escola Zen opondo-se a uma noção de sujeito como alocado no

pensamento, tal qual a Psicanálise o faz. Com o uso dos koans por exemplo, paradoxalmente,

aposta-se nem no significado nem no significante linguístico tal qual estruturado por

Saussure10, mas busca-se abarcar o vazio. Tanto o Tao quanto o Zen subvertem o que nos

parece ser comum à cultura ocidental, isto é, subvertem o ideal racionalista, o princípio lógico

de identidade e de não-contradição, a unidade cartesiana da consciência e a fala circunscrita

ao sentido ou ao conceito.

Lacan se depara com o que fundamenta o pensamento oriental como sendo um

pensamento não-dualista, e especificamente o do Budismo Zen influenciado pelo Tao. E de

fato esse é o cerne do pensamento budista, pois neste há o pressuposto de que o ego e o desejo

são inconsistentes, são vistos como ilusão. Daí o budismo preconizar que o praticante chegue

a um estágio indiferenciado, uno, entre interior e exterior – o estado de Nirvana.

O conceito de não-dualismo marca um estatuto de não discriminação entre opostos, de

uma certa complementaridade entre ambos, ao se ascender a este tipo de entendimento

integracionista. Certamente, como veremos no desenvolvimento deste trabalho, existe aí uma

posição avessa à da Psicanálise, que exclui a possibilidade que qualquer visão que leve o

10 O signo linguístico de acordo com Ferdinand de Saussure é formado por um significado e um significante. “O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (SAUSSURE,1916 / 2008, p. 80). Ou seja, o signo remete a uma amarração comum na língua, algo que remete a um sentido universal. Sabemos que Lacan inverte o algoritmo saussuriano, dando primazia não ao significado, mas ao significante, além disso retirando deste conceito a amarração entre ambos, de modo que o significado passa a circular.

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sujeito a um estado de harmonia e coesão completas, uma vez inserido nos mal-entendidos da

linguagem. O que nos interessa acerca deste termo, o não-dualismo, que permeia a visão Zen,

marcamos como sendo o que se desdobra a partir do método empregado para transmiti-lo e

não a sua meta final.

Assim, o estudo do Zen e seus desdobramentos metodológicos nos interessam muito

mais do que, como disse Lacan, uma “Psicologia oriental” (1962-1963/2005, p. 244), ou uma

harmonização dos conceitos orientais aqui tratados à visão da filosofia ocidental ou da

Psicanálise. É evidente que tal qual Lacan o fez, não abordaremos o Zen pela via da

religiosidade, mas pela via do seu método (ou técnica), como discutiremos ao longo deste

trabalho.

Desta forma, explorar a noção de não-dualismo é importante por se tratar de um

pressuposto central do Zen e por nos permitir localizar os convites e as limitações que podem

ser suscitadas nestas aproximações entre o Zen e a Psicanálise, iniciadas por Lacan em seu

ensino.

De acordo com Werneck (2006), a lógica chinesa não se ampara nos pressupostos da

lógica aristotélica, como o princípio de Identidade. Na lógica chinesa, o raciocínio é

“correlacional” e “analógico”. Os chineses não contam com o verbo “ser” e se apoiam em

“uma lógica que não exclui os contrários, mas os integra, como o demonstram os conceitos do

Yin e Yang, que são opostos complementares, ‘vazio-pleno’.” (WERNECK, 2006, pp.3-4).

Segundo Humpheys (1977), um renomado teórico do Zen, o método do Zen admite o

“contra-senso”, propositalmente com a finalidade de que o praticante rompa as limitações da

mente conceitual. Este método, no entanto, não visa a resolução entre opostos de maneira a

resolvê-los (HUMPHEYS, 1977, p. 22). E justamente a não tentativa de superação dos

opostos para o Zen se explicita no conceito de não-dualidade.

Abordar um método que se ampara na visão não-dualista pode ter serventia para a

Psicanálise, sobretudo se considerarmos o texto “a Negativa” de Freud (1925/2006), no qual

ele observa que a negação é a própria expressão de seu exato oposto, uma vez que para o

inconsciente não existe o não. A não-dualidade, o não dualismo poderia ser uma via de escape

ao circuito infinito de significações e ressignificações. Enquanto método de transmissão,

sugerimos ser esta uma via de ato de transmissão no Zen que pode ecoar na Psicanálise

enquanto método.11

11 O que será abordado no capítulo 4.

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Passemos à próxima seção tratando de uma leitura específica da cultura oriental, mais

especificamente daquele país do oriente que dá a forma final ao Zen: o Japão. Continuaremos

então com esta discussão sobre o conceito de não-dualidade, que pode nos auxiliar em nosso

percurso de localização do ato como não estando totalmente alocado no simbólico ou no

sentido.

1.4 A leitura de Lévi-Strauss sobre o Japão

O Japão é considerado como o país que emoldura, que dá a “forma final” ao Zen, e daí

a serventia de fazer aqui uma aproximação com sua cultura. Ter contato assim, ainda que

brevemente, com a cultura japonesa, irá nos ajudar a contextualizar o próprio Zen. Isto será

feito via um pensador caro ao ensino de Lacan: Lévi-Strauss. Sabemos que a cultura japonesa

viabiliza e modifica o Zen que havia sido desenvolvido na China, como veremos no capítulo 3

sobre o Zen. Mas neste momento destacamos a leitura da cultura japonesa feita por Lévi-

Strauss, privilegiando o que desta leitura aponta justamente para aspectos emoldurantes e

essenciais do Zen.

De acordo com Roudinesco (2008, p. 286), Lacan conheceu Lévi-Strauss no ano de

1949, em um jantar que foi organizado por Alexandre Koyré, resultando tal encontro em uma

relação de amizade, na qual ambos compartilharam entre outros aspectos, o interesse pela

arte. O ensino de Jacques Lacan também teve influências diretas do estruturalismo levi-

straussiano, pois Lévi-Strauss, enquanto antropólogo e estruturalista, estudou debruçadamente

a cultura japonesa, tendo declarado uma paixão pelo Japão desde a infância, tendo em sua

vida visitado o país por cinco vezes.

Porém, sabendo desta aproximação entre ambos os pensadores e a influência do

estruturalismo no ensino de Lacan, não queremos afirmar que o contato de Lacan com o

oriente se equivalha ou provenha especificamente da leitura lévi-straussiana sobre a cultura

japonesa. Ainda assim, devido mesmo a esta influência, julgamos relevante trazer aqui as

contribuições do antropólogo.

Depois da Segunda Guerra mundial, o mundo intelectual do ocidente pôde se abrir ao

Japão de maneira mais intensa (SAKURAI, 2011), e os próprios, Lacan e Lévi-Strauss, dentre

outros pensadores europeus, se serviram desse período promissor do transculturalismo

oriente-ocidente. Além disso, desde a década de 1980, houve um grande interesse em torno do

Budismo Zen por parte do mundo artístico e intelectual do ocidente, bem como um grande

entusiasmo pela cultura oriental, especificamente a japonesa (WATTS, 2000, p.11).

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A despeito de o interesse maior de Lévi-Strauss pelo Japão ser um diálogo acerca

principalmente das relações de parentesco e dos mitos, o fundador do estruturalismo nos

aponta alguns aspectos cruciais do pensamento nipônico versus o pensamento ocidental –

especialmente a se pensar quais destes aspectos confluem na direção do que possibilita o

desenvolvimento do Zen no Japão. Segundo Lévi-Strauss (2012), como já apontamos

anteriormente, dois importantes aspectos que divergem entre o pensamento do oriente e o do

ocidente são duas recusas feitas pelo oriente: a recusa do sujeito e a recusa do discurso12.

Abordaremos o que Lévi-Strauss nomeia de recusa do sujeito e recusa do discurso, apontando

uma semelhança entre a recusa do sujeito como alocado na razão ou no pensamento feita pela

Psicanálise.

Lévi-Strauss vai apontar que o cogito cartesiano sequer pode ser traduzido em

japonês, uma vez que o Japão recusa o sujeito de maneira totalmente original em relação ao

ocidente, “não faz dele o ponto de partida obrigatório de toda a reflexão filosófica, de toda

empreitada de reconstrução do mundo pelo pensamento.” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 35).

Lévi-Strauss (2012) localiza essa recusa do sujeito inclusive na língua japonesa, contudo

observando que o que há aí não é um aniquilamento do sujeito, mas uma outra sintaxe.

Os estudos de Lévi-Strauss certamente tocam em alguns aspectos de ruptura e outros

de complementaridade entre a cultura ocidental e a japonesa. Suscitam acima de tudo uma

abolição do exotismo e do misticismo ao propor paralelos entre a cultura e os mitos japoneses,

os europeus e os americanos.

O fator de maior diálogo entre a leitura lévi-straussiana e esta pesquisa se situa nos

fenômenos da língua e cultura japonesa que podem subverter a lógica aristotélica ou um

paradigma cartesiano para se pensar o sujeito, tal qual a Psicanálise o faz. Este interesse de

pesquisa vai justamente ao encontro do que nestes elementos possa ter inspirado os paralelos

lançados por Lacan em seu ensino, ao citar o não-dualismo oriental e o Zen.

A partir do exposto, entendemos que coincidem alguns aspectos da abordagem do

sujeito na ótica da Psicanálise lacaniana e na ótica do Zen oriundo do Japão, atestando a

serventia de nos aproximarmos, ainda que brevemente, de sua cultura. Lévi-Strauss chega a

afirmar que o espírito francês se alinha ao do Japão, a despeito de suas divergências. Em suas

palavras, eles “se exercem em campos antitéticos e, no entanto, se equiparam.” (LÉVI-

STRAUSS, 2012, p. 32).

12 É importante esclarecer aqui que o conceito de discurso para Lévi-Strauss não é correlato do conceito de discurso para Lacan, que entende o discurso como sendo “sem palavras”. Apenas utilizamos o conceito de discurso aqui para fazer referência a uma leitura antropológica de Lévi-Strauss que parece se alinhar com a visão psicanalítica de Lacan em relação à localização de seu sujeito.

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Como dissemos, Claude Lévi-Strauss (2012) coloca que podemos elencar

primordialmente dois aspectos de divergência entre a cultura ocidental e a oriental: a recusa

do sujeito e a recusa do discurso.13 Segundo nossa interpretação, estes dois aspectos estão em

confluência ao que inspirou Lacan em seu olhar sobre o oriente e a contribuição deste olhar à

Psicanálise. Tais recusas, a do eu e a do discurso, além de estarem presentes no Zen, também

se fazem na Psicanálise. Todavia, julgamos necessário esclarecer aqui tais recusas: a recusa

do sujeito segundo Lévi-Strauss não se trata do mesmo Sujeito abordado pela Psicanálise

lacaniana, como sendo o Sujeito barrado ($). Lévi-Strauss utiliza o termo sujeito como

sinônimo de eu. Da mesma forma, a recusa do discurso é tomada aqui como sendo a

direcionada ao discurso em sua dimensão de linguagem racional, das premissas estruturadas

de acordo com a lógica clássica ou aristotélica. Duas recusas certamente caras à Psicanálise.

Recusa do sujeito, primeiro; pois sob modalidades diversas, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo, negam o que para o Ocidente constitui uma evidência primeira: o eu, cujo caráter ilusório essas doutrinas tentam demonstrar. Para elas, cada ser não passa de um arranjo provisório de fenômenos biológicos e psíquicos sem elemento durável tal como um “si”: aparência vã, fadada inelutavelmente a se dissolver. A segunda recusa é a do discurso. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34).

Por sua vez, a Psicanálise não recusa o eu, tal qual uma ilusão, como Lévi-Strauss

sugere que a filosofia oriental faça. O ponto é que a Psicanálise não aborda o sujeito pela via

do eu, ou da consciência, mas sim pela via do inconsciente, como sabemos. Assim,

entendemos que as recusas do eu e do discurso feitas pelo pensamento oriental se aproximam

à recusa que a Psicanálise faz sobre o sujeito cartesiano racional, caro à cultura ocidental.

Vemos tanto na Psicanálise quanto no pensamento oriental a não localização do sujeito, bem

como a recusa da “linguagem a serviço da razão.” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34).

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2 A PSICANÁLISE E OS IMPASSES DO SENTIDO

No texto O fracasso do sentido em Psicanálise, a psicanalista Lucíola Freitas de

Macêdo (2012, p. 2), afirma que, para que a Psicanálise prospere, é necessária a existência de

uma dimensão de fracasso. Mas não qualquer fracasso, um fracasso muito específico, o

fracasso do sentido. Neste texto a autora retoma a assertiva de Lacan de que “a Psicanálise

prospera no fracasso”, e um texto do psicanalista Jacques-Alain Miller, para chegar a esta

constatação.

E do que se trata esse fracasso do sentido? Ora, estamos falando dos atos falhos, o

sintoma, a parapraxia, os tropeços na fala, pois desde o início a Psicanálise se interessou pelo

que não pode ser compreendido pela via exclusiva do sentido. Também podemos nos

perguntar sobre qual é o intuito de a Psicanálise sobre este fracasso. O que pode prosperar

enquanto o sentido declina? O que prospera é: “A ontologia, enquanto discurso do ser, eixo

fundamental do discurso do mestre, o amor transferencial em sua vertente narcísica, e o saber

como doação de sentido”(MACÊDO, 2012, pp. 4-5). Mas também: a possibilidade de utilizar

a linguagem resistindo à sua estrutura única de significação, o giro, ou mudança subjetiva

através do furo no sentido, onde o sujeito tem que se reposicionar perante os seus próprios

impasses (de sentido).

É caro à Psicanálise o entendimento de que o fracasso de sentido é uma possibilidade

da inserção da falta, sendo esta admitida no âmbito da utilização da linguagem. E a falta é

vista como possibilidade de não sucumbir perante as determinações do sentido, bem como do

saber via sentido.

De fato, a Psicanálise se posiciona muito peculiarmente em relação ao saber. Há

diversas vias de abordar a questão do saber para a Psicanálise, de forma geral sempre

apontando para o próprio furo do saber, para as limitações do sentido. Sabemos que o

analisante busca a análise para desvendar um saber sobre seu sintoma, e para isso coloca o

analista em posição de saber, “Sujeito Suposto Saber”. Lacan preconiza que este saber

desvendado em uma análise não é o saber do sentido, mas sim o da falta de sentido, o saber do

inconsciente como o “saber que não se sabe”. Desta forma, Lacan marca um avanço da

Psicanálise em relação ao não sentido, que lhe permitiu ultrapassar a rocha da castração,

ponto limite para a Psicanálise de Freud.

Se Freud recuou perante a rocha da castração – um significante último da ordem do

recalque –, Lacan foi mais além ao introduzir o furo, ao admitir a falta de um significante

último que “desse conta” do sintoma. Logo, ao admitir a castração na ordem da linguagem,

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instrumentalizou os sujeitos a saber fazer (savoir-faire) com a linguagem algo que possa estar

para além da significação ou do sentido.

Assim, observa-se um aspecto de ruptura que fundamenta o ensino de Lacan em

relação interpretação via sentido, bem como à Psicanálise do Ego como veremos a seguir. So

para falarmos de alguns aspectos de ruptura que Lacan estabelece para a Psicanálise.

Observamos que o método proposto por Lacan e desenvolvido posteriormente a sua crítica da

Psicanálise do ego, admite o furo, o vazio no sentido, e que se serve da imprevisibilidade de

atos14 em sua transmissão, em detrimento do uso da fala e da ação que apostam no sentido.

Principalmente posteriormente ao ano de 196315 na teoria de Lacan, podemos perceber

que, se por um lado a Psicanálise atua via fala, não é qualquer verborragia que interessa ao

psicanalista. Aqui começa-se a ir para além do simbólico e do sentido. Na contramão do que

se possa pensar, o que interessa ao psicanalista na fala do analisante são os tropeços deste em

relação ao sentido, a fala apostando no não sentido, em detrimento de um discurso ordenado e

coerente.

Diferentemente de Jean Piaget, Lacan (1962-1963/2005) não defendia a possibilidade

de uma linguagem sem erros de comunicação. Ele discute este entendimento da linguagem

apontando o furo que se instala na compreensão piagetiana, propõe então que o entendimento

da fala como algo que serve para comunicar cria um ponto cego, um gap, que o próprio Piaget

aponta sem se dar conta. “A essência do erro está em acreditar que a fala tem como efeito,

essencialmente, comunicar, quando o efeito do significante é fazer surgir a dimensão do

significado.” (LACAN, 1962-1963/2005, pp. 310-311).

2.1 Fala plena e fala vazia16

Já tendo situado a posição teórica de Lacan perante ao não sentido, iremos fazer um

breve retrocesso em seu desenvolvimento teórico, para apontar alguns aspectos importantes

em sua crítica à Psicanálise de sua época. Tais desenvolvimentos aqui apontados relatam a

14 Para existir uma fundação, um novo começo, o ato preconiza um fim. Lacan utiliza o grupo de Klein para fundamentar em termos matemáticos o ato, mas ele rompe com alguns pressupostos do grupo de Klein, que preconizavam que o começo será idêntico ao final no processo dinâmico de transformação. Na dimensão do ato, o começo é sempre diverso daquele existente antes da ruptura de corte (TORRES, 2010, p.170). Ao ter um novo começo diverso do fim, colocamos o ato do lado do imprevisível e da falta de garantias. 15 Colocado aqui como teoria, pois é efetivamente após aos seus seminários X -A Angústia (1962-1963/2005) e XI-Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964/2008), que Lacan começa a teorizar sobre o real e o furo no sentido. O que não quer dizer que a Psicanálise não se interessasse pelo furo do sentido mesmo antes destas teorizações, como dito no início do capítulo. 16 O termo “vazia” aqui não se equipara ao conceito oriental de vazio tratado anteriormente. Aqui se trata de uma certa forma pejorativa do uso da fala em análise.

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oposição de Lacan à Psicanálise do Ego.

Neste tópico nos situaremos principalmente no texto de Lacan “Função e campo da

fala e da linguagem”, que consiste em um relatório que formaliza um discurso de Lacan

apresentado no Istituto di Psicologia della Universitá di Roma, em 26 e 27 de setembro de

1953. Lacan formulava seu ensino nesta época em termos de estabelecer uma primazia e uma

autonomia do significante, do estatuto simbólico do inconsciente. E isto estava em oposição

às escolas de Psicanálise que, em detrimento da fala e da linguagem, elencavam elementos

legitimadores dos desvios técnicos em relação ao método freudiano, o que para Lacan

evidentemente era um disparate. Tais elementos desnorteadores das regras analíticas (os quais

se poderiam considerar os principais problemas da Psicanálise de sua época), seriam “a) A

função do imaginário [...]; b) As noções das relações libidinais de objeto [...]; c) A

importância da contratransferência (...)” (LACAN, 1953/1998, pp. 243-44).

Segundo Lacan, tais desvios tratavam “da tentação que se apresenta ao analista de

abandonar o fundamento da fala, justamente em campos em que sua utilização, por confinar

com o inefável, exigiria mais do que nunca seu exame” (1953/1998, p. 244). O que Lacan

evidencia ao abordar o inefável é que a Psicanálise não deve recuar perante o furo no

simbólico, tampouco deve se servir de outras ferramentas que estejam para além do campo da

fala e da linguagem para lidar com este furo, ou para suturar o que se eclipsa na fala.

Com essas concepções, dentre outras, Lacan rompe com a IPA (International

Psychoanalysis Association) e com a Psicanálise do ego então vigentes em sua época, e

juntamente com isso ele passa a propor uma subversão de alguns elementos cruciais do

método psicanalítico, como a questão do tempo e do dinheiro no manejo clínico, além de

mudanças sobre como devem ser as intervenções do psicanalista.

Ironizando sobre o destino da psicologia do ego, Lacan diz que “a síntese de um eu forte se emite como uma palavra de ordem, no coração de uma técnica em que o praticante se concebe como obtendo efeitos por encarnar ele próprio esse ideal”17. (COTTET, 1989, p. 130).

Como Serge Cottet (1989) nos aponta, Lacan se posicionava perante à Psicanálise de

sua época como um desvirtuamento da própria Psicanálise que Freud formulara. A

“Psicanálise do Ego” estava, como o nome sugere, direcionada ao fortalecimento do Ego, e a

posição do psicanalista nesta proposta ia contra o que o próprio Freud preconizara. Nesta

clínica da Psicanálise do Ego se visava que o analisante chegasse a uma identificação com o

17 Em nota de rodapé, Cottet (1989, p. 130) localiza sua citação: J. Lacan, “Remarque...”, in Écrits, p.678.

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ego do analista, numa relação de paridade que tinha como meta o desenvolvimentismo, e que

pressupunha, além disso, o ego do analista como algo ideal (COTTET, 1989, p. 159). Assim,

a ego-psicanálise reduzia a experiência analítica a uma relação dual. E a isto Lacan procurou

se opor terminantemente, demarcando sua aversão aos desvios técnicos de uma clínica

ideológica.

2.2 Enunciado e enunciação

De acordo com Lacan (1960/1998, p. 816), o sujeito se encontra na discordância entre

o enunciado e a enunciação. E em seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da

Psicanálise (1964/2008), Lacan afirma ser a relação do sujeito com o significante algo

primordial à teoria analítica, uma vez que esta relação é constituinte “na função radical do

inconsciente” (1964/2008, p. 137). Para desvelar esta relação, e ele trabalha com a distinção

entre enunciado e enunciação, demarcando o efeito de mentira do ponto de vista do

enunciado, do eu enuncio, do eu penso, e sobre isso “o pensamento lógico demasiado formal

introduz absurdos” (1964/2008, p.138).

O “eu minto”, presente no enunciado, estaria dividido do “eu o engano” da

enunciação. ao tentar mentir no enunciado o sujeito diz a verdade, uma vez que o enunciado é

por sua vez primordialmente engodo. . Essa distinção fica clara quando se observa uma

afirmação como “Eu minto.”. Esta afirmação indica que o sujeito falta com a verdade em seus

enunciados, sugerindo que ele faltaria com a verdade inclusive neste enunciado que acaba de

ser proferido. Tentar fingir no enunciado é dizer a verdade da enunciação inconsciente. Por

isso a posição do analista de valorar a fala do paciente enquanto verdade, mesmo que baseada

na mentira ou no fingimento, ou ainda que seja a verdade da tapeação.

O que Lacan (1964/2008) demonstra com esta divisão entre enunciado e enunciação

são localizações do sujeito perante sua fala, apropriações mais ou menos comprometidas com

algum efeito de verdade. Quanto mais fortalecido o discurso do racional do enunciado, mais

avesso ao seu conteúdo de enunciação. Enquanto que, ao mentir ou fingir, o sujeito mente não

uma, mas duas vezes, desmentindo a própria posição do enunciado e apontando ao seu furo

que é a dimensão da enunciação.

Isto nos serve para destacar de que maneira Lacan aborda a fala, o dizer, o

significante, sem deixar de lado os mal-entendidos da linguagem, principalmente daquela

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pautada na posição lógica formal, no conteúdo manifesto da fala, do significado e do

pensamento.

Quanto a isto, o trecho de Lacan a seguir vale ser citado como guisa de conclusão

deste tópico:

Certamente, a distinção da enunciação e do enunciado é o que faz seu deslizamento sempre possível e o eventual ponto de tropeço. Com efeito, se algo é instituído pelo cogito, é o registro do pensamento, no que ele é extraído de uma oposição à extensão – estatuto frágil, mas estatuto suficiente na ordem da constituição significante. Digamos que é por tomar seu lugar no nível da enunciação que o cogito tem sua certeza. Mas o estatuto do eu penso é tão reduzido, tão mínimo, tão pontual – e poderia também ser afetado por essa conotação do isso não quer dizer nada – quanto o do eu minto de há pouco. (LACAN, 1964/2008, p.139).

2.3 O Sujeito suposto (não saber) pela Psicanálise

Iniciemos a discussão acerca do sujeito para a Psicanálise e do seu saber como um

não-saber, partindo da posição de Lacan acerca do cogito cartesiano, como sendo um ponto

de desvanecimento do saber (LACAN, 1964/2008, p. 219). Lacan aponta o erro do cogito em

localizar neste pensar o seu ponto de certeza e o seu saber. O sujeito do “eu penso” e da

certeza via pensamento não abre portas a outros saberes, mas niilifica o sujeito perante o

saber que não se sabe ou que não se pensa: o inconsciente.

O sujeito da Psicanálise, diferentemente do sujeito lógico-racional de Descartes, não

encontra seu ponto de apoio no pensar ou na “linguagem a serviço da razão” (para usar aqui a

expressão de Lévi-Strauss). O sujeito, na perspectiva da Psicanálise, é evanescente, existe

ainda que oculto ao pensamento, e denomina-se “sujeito do inconsciente” ou, como nomeia

Lacan, Sujeito Barrado ($).

Lacan (1964/2008, p. 207) transfere a discussão da estruturação do sujeito para o

processo de alienação e separação na linguagem (no caso do neurótico). Através do processo

de alienação, o pensar passa a ser não correlato do ser, mas justamente o seu oposto. O sujeito

se aliena do 'eu sou' ao se localizar no 'eu penso', pois é condição para a sua estruturação a

alienação ao Outro, à linguagem e ao sentido.

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Figura 1: A Alienação (Retirada de LACAN, 1964 /2008, p. 207).

Lacan aloca o sujeito em uma posição de divisão, em que este se alterna quanto ao ser

e ao sentido. Ilustra isso pela intersecção dos conjuntos acima e localiza o sujeito perante uma

escolha forçada: escolhendo o sentido, o ser desaparece (o não-senso ou o inconsciente);

escolhendo o ser, quem desaparece é o sentido. O sentido como parte do campo da linguagem,

do Outro, acaba por solapar do sujeito a dimensão de seu ser. (LACAN, 1964 /2008, p. 206).

O conceito de Sujeito é para Lacan tomado em sua totalidade quando se leva em conta

a parte que se subscreve debaixo da barra, o não-senso, o não sentido, o não-penso. O

conceito de Sujeito admite em si uma contradição: o sujeito é onde não pensa.

Sobre o processo da Alienação, Torres (2010, p. 181) afirma que “Lacan assimila esse

não pensar a uma forma do ser. Assim a alienação aqui não parte do ser, mas sim determina

um ser, resulta um ser e está nesse ser. (...)”. De acordo com Graciela Brodsky (2004 apud

CALAZANS; MARÇAL, 2011), pode-se tecer uma série de esquemas para pensar a relação

entre o ser e o pensamento, além de fazer uma distinção entre alienação e separação. O

primeiro esquema apresentado por Brodsky é o seguinte,

Figura 2: Ou não-penso ou não-sou.

(Retirado de: BRODSKY, 2004, p. 64 apud CALAZANS; MARÇAL, 2011, p. 2).

Como percebemos, o esquema de Brodsky parte da leitura do esquema de Lacan

apresentado anteriormente na Figura 1. Ela elabora uma relação do sujeito e da certeza do

cogito baseado no pensamento, sugerindo o ser ou o sentido, mas marcando o “ou não penso,

ou não sou”.

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Descartes partiu de uma dúvida metódica e radical que colocava em questão a própria

existência do eu, e dessa dúvida (que é um ato de pensar do eu) retirou a sua certeza. Porém,

para a Psicanálise, a certeza que possibilita alguma conclusão leva em conta a dimensão do

objeto que é excluído, o objeto a; leva em conta o que fica de fora. Note-se que é diferente de

Descartes, que se localiza em uma dimensão decepada do sujeito para daí retirar

consequências de sua certeza. Por outro lado, a Psicanálise considera o sujeito enquanto

dividido, e dessa perspectiva não busca uma certeza que não leve em conta o que esta para

além do pensamento.

Se a certeza do sujeito cartesiano se localiza no pensamento, o furo apontado por

Lacan é que esta escolha deixa de fora o ser, o não-senso, o inconsciente. O sujeito da

Psicanálise, por sua vez, leva em conta a intersecção dos dois conjuntos, não estabelece uma

certeza apenas pela via do pensamento.

Deste modo, para Lacan, uma conclusão só é extraída pela via do objeto, e não pela via de uma conclusão lógica do pensamento do sujeito. É por esta via que, como diz Lacan, a certeza é extraída por um ato. “Agir é arrancar da angústia a própria certeza”18.( CALAZANS; MARÇAL, 2011, p. 2).

Sabemos que Lacan se serve da teoria dos conjuntos para amparar logicamente o

conceito de Ato, e que, nesta teoria, “o vazio não é o ‘nada’”, mas uma forma de

negatividade, como a negatividade do eu “o não-eu” (pas je). ¨Assim, esse pas je é o vazio

que nega o cogito cartesiano (...), mas que continua sendo o conjunto de intersecção entre o

‘não penso’ e o ‘não-sou’, mesmo como conjunto vazio¨ (TORRES, 2010, p.181).

2.4 O objeto a

Retornemos às operações de estruturação do sujeito distinguidas por Lacan

(1964/2008, p. 208), a Alienação e a Separação, para destacar daí a dimensão do que fica de

fora neste processo, o seu resto, ou seja, o objeto a. É por esta noção de sujeito enquanto

dividido que a Psicanálise busca alguma possível conclusão, desde que esta leve em conta o

que fica de fora.

Entende-se que o objeto a é o resto justamente no processo de inserção do sujeito na

linguagem. Sendo a alienação a primeira operação, o processo de Separação seria a segunda

operação de estruturação do sujeito segundo Lacan (1964/2008, p. 208). A Separação

18 Os autores citam Lacan (1962-63, p. 88).

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possibilita ao sujeito um afastamento do Outro da linguagem, no sentido de situar o que está

de fora, o que não pode ser dito ou pensado. E desse afastamento surge um resto

“inquantificável, irredutível, denominado por Lacan de objeto pequeno a” (GUIMARÃES,

2007, p. 28).

Desta forma, marca-se aqui apenas o fundamental para assinalar a estruturação do

sujeito e do objeto a, uma vez que para a Psicanálise segundo Lacan, o objeto a é um objeto

“comum ao sujeito e ao outro” (GUIMARÃES, 2007, p. 34), e passa por uma perda que os

relaciona, juntamente com os demais objetos existentes no mundo.

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3 O ZEN

Para discutir as menções feitas por Lacan acerca do Zen, e dar prosseguimento a esta

articulação retirando algo que possa servir à Psicanálise e à teorização do Ato, faz-se

necessária uma breve aproximação ao contexto de surgimento e desenvolvimento do Zen

budismo, bem como trazer o principal de seus postulados, além de situar historicamente a sua

chegada ao ocidente e a possibilidade de sua presença no ensino de Lacan. Descreveremos

também como se davam as atuações dos mestres Zen enquanto modalidade de Ato de

transmissão e sustentação de uma experiência. Com isso poderemos esclarecer mais as

homologias e disjunções entre o método da Psicanálise e o método do mestre Zen, destacando

aí o conceito de ato analítico em sua especificidade.

Para tanto, não será despropositado seguir com uma apresentação sumária do Zen

dentro dos limites que nos são impostos. Abordar-se-ão basicamente aspectos históricos,

filosóficos e metodológicos acerca do Zen. Importante dizer que realizar essa tarefa é um

verdadeiro desafio, porque o Zen é avesso a conceitualizações. A filosofia do Zen é um tipo

de anti-filosofia, propõe justamente o não pensar, e mais ainda o nem pensar em não pensar,

sendo isso realizado a partir da prática da meditação ou zazen, que se articula à experiência

direta do agora entre outros métodos, como o koan e o mondo.

Compreender esses elementos do Zen nos permitirá compará-los ao que Lacan propõe

com seu método (Cf. explicação elucidativa sobre método lacaniano na p.9). Este caráter de

imprevisibilidade que contém o que denominamos aqui como método psicanalítico também o

encontramos desta forma pouco categórica e de difícil conceitualização no fazer dos mestres

Zen, como veremos.

3.1 O Zen em uma pincelada

“O Zen em uma pincelada”. Assim se intitula a presente seção para indicar que não

iremos abordar o Zen budismo em todos os seus aspectos históricos, filosóficos e

metodológicos (para tanto seriam necessários muitos anos de pesquisa, além do que não é

nosso objetivo numa pesquisa de Psicanálise). Mas é interessante dizer do Zen “em uma

pincelada” para começarmos com uma alusão à arte da escrita chinesa e japonesa pautadas na

prática Zen. Esta arte busca confluir em um só gesto o autor e a produção, o escritor e a

escrita, de tal feita que ambos desapareçam como entidades separadas. Cada pincelada é única

com a experiência de sua totalidade, e é desta forma (buscando a não-dualidade), que se

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aprende o Zen no Japão e em qualquer outro lugar.

De fato, o Zen e a cultura japonesa estão bastante interligados, de modo que esta

'filosofia' pode ser entendida tendo uma abrangência para além do Budismo. O Zen

influenciou a arte, a escrita, a arquitetura e até a forma de beber chá dos japoneses, a exemplo

da cerimônia do chá (HAMMITZSCH, 1993).

O símbolo do Zen é um círculo feito em uma única pincelada, e que não se fecha

completamente, ficando indistintos o dentro e o fora.

Figura 3: círculo Zen.

De acordo com Herrigel, o pintor Zen eleva a dimensão do vazio em sua arte, em sua

pintura o vazio não é rejeitado, mas antes disso assume um aspecto central (HERRIGEL,

1958/2010, pp. 55-56), que convida os olhos para contemplação, uma vez que pontua a

originalidade da vida sem-forma definida, e a faceta vazia de toda experiência.

Uma obra que, pela via da linguagem, nos aproxima da experiência da pincelada Zen é

o livro “A arte cavalheiresca do arqueiro Zen” (1975), do filósofo alemão Eugen Herrigel.

Neste livro ele relata não menos do que sua própria experiência Zen como aprendiz da arte do

tiro com o arco e flecha em um mosteiro no Japão. Entretanto, o seu livro não é de forma

alguma um manual, pois de fato sequer existe um acerca do Zen.

A introdução de Daisetz Teitaro Suzuki ao livro de Herrigel é bastante elucidativa e o

seguinte trecho vale ser citado:

No tiro com o arco, arqueiro e alvo deixam de ser entidades opostas, mas uma única e mesma realidade. O arqueiro não está consciente de seu “eu”, como alguém que esteja empenhado unicamente em acertar o alvo. Mas esse estado de não-consciência só é possível alcançar se o arqueiro estiver desprendido de si próprio, sem, contudo, desprezar a habilidade e o preparo técnico. Dessa maneira, o arqueiro consegue um resultado em tudo diferente do que obtém o esportista, e que não pode ser alcançado simplesmente com o estudo metódico e exaustivo. (HERRIGEL, 1975, p.10).

Assim, a arte do arco e flecha pode ser uma arte Zen, bem como a pintura, ou como

dito, uma imensa gama de atividades humanas, desde que estas contemplem o vazio.

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3.2 O vazio no Zen

A respeito do vazio no Zen, não entraremos em sua fundamentação filosófica

complexa e extensa, iniciada entre os séculos II e III d.C. por Nagarjuna no texto

Mulamadhyamaka-karika (YOSHINORI, 2006), mas achamos interessante contextualizar

essa noção minimamente ao leitor e apresentar este importante lógico oriental que amparou e

deu suporte ao desenvolvimento do conceito de vazio que posteriormente vem a ser um

aspecto central no Zen.

De acordo com Yoshinori, Nagarjuna estudou os conceitos budistas a partir de uma

perspectiva lógica, que o permitiu estabelecer o vazio como cerne de todos os fenômenos,

concluindo que “tudo tem uma origem interdependente, todas as coisas são vazias de uma

natureza própria, ou ser próprio; o vazio é a verdadeira natureza do real, que não pode ser

captado por nossas palavras ou conceitos, mas apenas numa meditação que se afasta do

pensamento.” (YOSHINORI, 2006, p. XIX).

Temos que o conceito de vazio é parte fundamental do entendimento do Zen e ampara

o desenvolvimento desta escola. Acerca do vazio, nos permitiremos uma digressão a uma

famosa passagem que conta uma visita de Bodidharma (o mestre que levou o Zen à China) ao

imperador Wu de Liao. Nesta historieta, o imperador recebe a visita de Bodhidharma e lhe

pergunta: “Qual é a realidade última e sagrada?”, ao que este responde: “Tudo é vazio e não

existe nada de sagrado!”. Novamente o imperador lhe dirige um questionamento: “Quem és

tu, que te apresentas ante mim?”. E Bodhidharma respondeu: “Não sei!” (GONÇALVES,

1976, p. 131).

A historieta expressa a subversão do Zen frente ao Budismo de sua época. Wu de Liao

já sabendo que Bodhidarma era reconhecido como importante representante do Budismo,

esperava uma resposta coerente e erudita. Mas Bodhidharma se recusa a dar-lhe uma resposta

conceitual ou teórica, ao mesmo tempo que se utiliza de um enigma em sua resposta: como

pode um importante mestre da ascese budista afirmar que “nada é sagrado”? Tal colocação só

tem possibilidade no Budismo a partir do Zen, que instaura determinados posicionamentos

dos mestres como avessos a saberes dogmáticos e acabados, e que utilizam a linguagem e os

atos de forma a chacoalhar, “desorientar e exaurir o intelecto” (HUMPRHEYS, 1977, p. 103).

Este posicionamento marca a distância do Zen das outras linhas de Budismo. O Zen se

esquiva de respostas completas e de qualquer transmissão apenas pela via do conceito, sem

partir da experiência, e neste ponto rompe com as demais escolas budistas.

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De acordo com Brandon, é impossível definir o Zen, uma vez que “ele está em todos

os lugares” (BRANDON, 1976, p. 15). Tal qual a dimensão do vazio para Nagarjuna, o Zen

está em todos os lugares, uma vez que, se fizesse a tentativa de se alojar em um lugar

específico, estaria criando uma dimensão negativa de sua existência e assim trazendo a esta

uma forma que não a vacuidade.

É então pela via do vazio mediano, tal qual postulado pelo Tao, que se pode, também

no Zen, abordar o vazio pela via da linguagem – sendo este o interesse de Lacan pelo Tao em

sua utilização da teoria dos nós como vimos no capítulo inicial desta dissertação.

Como vimos, a experiência Zen se ampara na dimensão do vazio, em detrimento da

afirmação-negação, de modo que aqui o vazio é um conceito similar ao de não-dualidade. O

Zen pressupõe que se destaque da experiência a incapacidade da verbalização sobre esta, e

assim os mestres buscavam apontar diretamente, em atos, a própria experiência para além das

palavras, com ou sem elas.

3.3 O desenvolvimento do Zen-Budismo

O Budismo é uma das mais antigas religiões da humanidade, datando por volta de 500

a.C. Os Budistas no geral têm como um dos fundamentos essenciais a Joia Tríplice, que se

compõe pela figura histórica do mestre Sakyamuni Buda – nome dado posteriormente a

Sidarta Gautama –, o Dharma – os ensinamentos deixados por Buda e por mestres posteriores

– e o Sangha – a comunidade budista (YOSHINORI, 2006, p. XI). Estes três elementos dão

uma identidade ao Budismo, entretanto nele existe uma multiplicidade de escolas, o que torna

difícil falar do Budismo de maneira genérica.19

Tendo já cerca de 2.500 anos de história, o Budismo começou na Índia, posteriormente

se difundindo a partir da Ásia para todo o mundo. Podemos dizer que ele se divide hoje em

três grandes correntes, o Theravada (Veículo dos antigos), o Mahayana (Grande veículo) e o

Vajrayana (Veículo do diamante), que se dividem por sua vez em centenas de escolas

budistas. As escolas Zen encontram-se dentro da corrente denominada Mahayana (Grande

veículo).

Segundo Yoshinori (2007), a escola Zen floresceu na China durante o período T'ang

(618-907 d.C.) e diversos mestres Zen foram para o Japão durante essa época. Entretanto, foi

19 Não caberá neste trabalho nos debruçarmos sobre as diferenças das diversas escolas budistas, o que nos desviaria do objetivo desta pesquisa. Como já foi colocado, abordaremos especificamente as escolas Zen Rinzai e Soto, como trataremos adiante.

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somente no período Kamakura (1185-1333 d.C.) que o Zen se estabeleceu no Japão como

uma escola budista independente. “Três homens em particular podem receber os créditos pela

introdução precoce do Zen no Japão: Myoan Yosai, em geral conhecido como Eisai (1141-

1215), Dainichi Nonin (que morreu por volta de 1196) e Dogen (1200-1253)” (YOSHINORI,

2007, p. 265).

Daisetz Teitaro Suzuki é reconhecido por ter introduzido o estudo do Zen no ocidente

na década de 1950. Professor da Otani University em Kyoto, Japão, participou de diversas

conferências em universidades da América e Europa. Segundo D. T. Suzuki (1970/1989), o

Zen floresce no Japão do século XIII, sendo herança do primordial Budismo Indiano, que

posteriormente migrou para a China através de Bodhidharma – o 28º patriarca do Budismo

Indiano –, onde se amalgamou com a cultura chinesa e ganhou um aspecto altamente prático.

Se o Budismo nasce na Índia, é na China que ele começa a tomar a forma do Zen.

Uma das características marcantes do Budismo Indiano é sua alta conceitualização

filosófica e estrutura lógica, enquanto que o Zen, ao aderir à praticidade dos chineses, começa

a tomar uma forma de um “método”. Neste ponto podemos começar a entender porque Lacan

possa ter se interessado pelo Zen e o tenha citado enquanto uma certa “inspiração

metodológica”, como o faz na abertura de seu primeiro seminário. (LACAN, 1953-1954/1983

p. 9).

Como já citado, foi Bodhidharma quem levou o Budismo da Índia para a China no

século V (YOSHINORI, 2007, p. 3), e ele se estabeleceu em um templo Budista.

Bodhidharma é também um dos fundadores das artes marciais na China, de forma que a sua

prática também era vinculada ao Zen, sendo considerada uma experiência que abarcava a

dimensão do vazio. Ao chegar à China, Bodhidharma percebe a defasagem prática dos

monges chineses em relação ao conceito de não-violência, que os imobilizava. Bodhidharma

então introduz as práticas Zen de artes marciais, admitindo o vazio da forma e possibilitando

aos monges defenderem a si mesmos e ao templo.

Trata-se do templo Shaolin, ainda existente na República popular da China, na

província de Henan. Podemos perceber desde então a aplicabilidade prática do Zen. De uma

maneira geral, ao entrar em contato com o Budismo Indiano via Bodhidharma, os chineses lhe

emprestaram (ao Budismo) um alto aspecto pragmático, em detrimento do Budismo Indiano

altamente conceitual (CAPRA, 1983, p. 95).

O Budismo Indiano enfatizava a prática de Dhyana (termo sânscrito comumente

traduzido como meditação), mas na China se amalgamou com a cultura local e foi altamente

influenciado pelo Taoísmo e também pela doutrina de Confúcio. A transliteração do termo

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sânscrito Dhyana passa a ser Ch’an (com o equivalente significado de meditação), e na China

o budismo ensinado por Bodhidharma se chamará Ch’an. A partir do mestre japonês Dogen,

que viajou à China, essa escola de budismo é levada para o Japão adquirindo peculiaridades

técnicas próprias, desenvolvidas pelos mestres japoneses. E finalmente é designado como

Zen – aqui o termo japonês também é traduzido como meditação (YOSHINORI, 2007).

De acordo com Suzuki, destacam-se dois nomes importantes na história do

desenvolvimento do Zen na China: Bodhidharma, o seu fundador e Hui-neng, que ocupou no

século VII um importante lugar no Budismo e é considerado o sexto patriarca do Zen

(SUZUKI, 1989, p. 9).

Hui-neng é admitido como sexto patriarca do Zen após cunhar20 um verso em resposta

a Shen-hsiu, quando esta seria a tarefa mesma para a eleição do substituto do quinto

patriarca.21 O verso de Shen-hsiu é o seguinte:

Este corpo é a árvore Bodhi, A mente é como um espelho iluminado; Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa Sem deixar que nela se assente o pó. (SHEN-HSIU apud SUZUKI, 1989, p.21).

E este é o verso de Hui-neng que o transforma em patriarca:

Não há árvore Bodhi, Nem o cessar no brilho do espelho, Sendo tudo vazio, Onde poderia assentar o pó? (HUI-NENG apud SUZUKI, 1989, p.21).

Existe na transmissão do Zen momentos de passagem como este, momentos de

conclusão via de regra não estando aprisionados no sentido, como a poesia, ou a um gesto que

flerte com a função do vazio. Desta forma, é entendido o primeiro ato de transmissão do Zen,

como estando para além do conceito ou do sentido, e se localiza em uma passagem acerca do

Buda histórico, Shakyamuni.

Nesta passagem Buda estava perante uma plateia de discípulos no Monte dos Abutres,

quando simplesmente sem dar qualquer explicação, levantou um buquê de flores. O discípulo

Mahakashyapa sorriu e diante deste gesto Buda afirma que apenas Mahakashyapa pôde

20 De acordo com a maioria dos relatos, na verdade Hui-neng pede para que outra pessoa escreva o verso enquanto este é ditado, uma vez que ele era um simples camponês e não sabia escrever. Este fato, ao nosso ver, revela a total ausência de erudição no Zen, onde a eleição do patriarca desde Hui-neng leva em conta aspectos como o vazio em detrimento do sentido argumentativo, por exemplo. Demonstra mais uma vez o aspecto de ruptura do Zen perante o Budismo vigente até em sua época. 21 Os historiadores do Zen estão certos de que o quinto patriarca levou em conta também e principalmente o percurso de Hui-neng no mosteiro.

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compreender o ensinamento (DOUBLEDAY; SCOTT, 1944/2000, p. 37). Esta é mais uma

historieta clássica entre a grande maioria de escritos sobre Zen. Buscamos estas passagens

para apontar a leitura do Zen em relação a seu método de transmissão específico, não

estritamente preso à razão, às palavras, à teorização ou ao conceito.

O Budismo Zen apresenta, assim como o Budismo em geral, um vasto compêndio de

escrituras. Existe no Budismo o Tripitaka, ou três cestos, que é a somatória de todos os

discursos do Buda histórico (Shakyamuni), e todos os escritos elaborados por mestres

posteriores a ele. No Zen há a concordância com tais escritos, porém a novidade é que no Zen

a transmissão destes conhecimentos subverte a metodologia clássica até então aplicada no

Budismo, e passa a dispensar tais escritos em favor da própria experiência, ou da fala em

favor da experiência direta, o que o torna “meio sem sentido”.

Os mestres Zen desenvolvem então uma nova metodologia de transmissão, não

meramente amparada nas escrituras, o que não quer dizer que as ignorem ou que os escritos

não tenham parte importante no Zen. O Zen também se baseia no Sutra da Perfeição da

Grande Sabedoria ou Maha-prajna-Paramita (sânscrito),22 Sutra atribuído a Nagarjuna, e que

aborda o vazio, o Sutra do Lótus (DRAGONETTI; TOLA, 2006) ou Saddharmapuṇḍaríka-

Sutra e no Sutra Diamante 23 Vajracchedika-Prajnaparamita-Sutra (TEMPLO TZONG

KWAN, 2001). Tais Sutras têm em comum a novidade da linguagem utilizada em sua

escritura, tal qual os escritos do mestre Dogen no Shôbôgenzô ou no seu Shinji Shôbôgenzô24.

Mas a questão em relação às outras escolas de Budismo é que, como foi dito, no Zen o

método de transmissão desses Sutras não se focará na transmissão via palavra (escrita ou

falada). O mestre Zen buscará que seu aluno experiencie tais ensinamentos, mais do que

simplesmente saiba repetí-los verbalmente.

Existem basicamente quatro subdivisões da escola de Budismo Zen, sendo as

principais: a Rinzai e a Soto. As outras duas escolas que ainda existem no Japão são a Obaku e

a Sambo Kyodan. Como já foi demarcado, focalizaremos neste trabalho aquelas a que mais se

assemelham aos exemplos dados por Lacan em seu ensino: o Zen da escola Rinzai e da escola

22 Os Sutras têm seus nomes originais em sânscrito, que era a língua utilizada nas escrituras indianas antigas, hoje chamada de língua morta, mas ainda muito presente nos estudos das escrituras indianas clássicas. Os Sutras relacionados a nomes em sânscrito fazem parte do compêndio antigo do Budismo indiano, o qual também e principalmente é utilizado pela escola Zen. 23 O nome original do Sutra Diamante é Vajracchedika-Prajnaparamita-Sutra. Nesta edição dele, aqui citada, tive a oportunidade de acompanhar e auxiliar na tradução ao português, no Templo Tzong Kwan, situado em São Paulo, tendo sido publicado no ano de 2011. 24 O Shinji Shôbôgenzô escrito pelo mestre Dogen, é uma valiosa coletânea de trezentos Koans escritos em japonês, mas que não pudemos contar no presente trabalho, pois não encontramos uma tradução para o inglês ou para o português. Contamos, no entanto, com uma tradução de um conjunto de escritos do importante mestre Zen Dogen organizada por Tanahshi (1985/1993).

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Soto.

Para Gonçalves (1976), as escolas Soto e Rinzai são as duas escolas mais importantes

ainda hoje no Japão. A escola Soto dá ênfase ao método da meditação, sentar-se em silêncio

(Zazen), enquanto que a escola Rinzai dá ênfase à prática dos Koans, que são anedotas e

passagens enigmáticas oferecidas pelos mestres. O Koan “é um absurdo, um paradoxo

insolúvel pelo intelecto e pela lógica, como por exemplo: — ‘você pode ouvir um ruído de

suas duas mãos batendo uma na outra; ouça agora o ruído de uma mão só’ (...).”

(GONÇALVES, 1976, p. 25). Tais escolas enfatizam uma prática ou outra, o que não quer

dizer que no Zen Rinzai não exista a prática da meditação ou no Soto Zen não exista a prática

dos Koans, vale ressaltar.

É dada uma grande importância à prática da meditação em todas as escolas, pois se

trata de uma medida de solapar a mente racional e os pensamentos. Neste caso, poderia esta

prática se assemelhar ao processo de associação livre da Psicanálise? É o que sugere Alan

Watts, um importante estudioso do Zen:

O Zen não é um mero culto da ação impulsiva. A intenção de mo chih ch'u não é eliminar o pensamento reflexivo, mas sim eliminar o “bloqueio” tanto na ação como no pensamento, de modo a que a reação seja sempre como uma bola num rio da montanha, um pensamento após o outro sem hesitação. Algo de semelhante se encontra na prática psicanalítica das associações livres, utilizada como técnica para libertar dos obstáculos a corrente de pensamentos do inconsciente. (WATTS, 2000, p. 152).

Traçadas essas pinceladas sobre o Zen Budismo, e esboçada como se concebe a

transmissão desse saber para além do sentido, abordaremos no próximo capítulo o conceito de

ato, buscando articular alguns pontos de contato entre o método da Psicanálise e o método do

Zen.

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4 DOIS MÉTODOS PARA ALÉM DO SENTIDO: A DIMENSÃO DO ATO

Antes de iniciar este capítulo, julgamos importante salientar que localizaremos o ato

inicialmente via genérica enquanto atos de transmissão possíveis de serem localizados tanto

no Zen quanto no processo de análise e, posteriormente, o ato no seu sentido stricto sensu, ou

seja, o ato analítico da alçada específica da Psicanálise. Como observa Guimarães (2007), o

ato, nesse contexto, tem como principais características o poder significante, o corte subjetivo,

a instauração do novo e a mutação do sujeito, “mas somente na medida em que elas são

assimiladas, assumidas e afirmadas pelo sujeito agente, que no movimento dessa afirmação

passa de analisando a analista.” (GUIMARÃES, 2007, p.13). Com essa perspectiva, iremos

tratar nas linhas a seguir algumas abordagens sobre o ato, suas modalidades e relações entre

ato analítico, atos de transmissão no Zen e na Psicanálise.

4.1 O Ato Analítico e os Atos

Algumas abordagens do ato e seus desdobramentos são possíveis a partir

principalmente da leitura do seminário XV de Lacan, “O Ato Psicanalítico”. Torres (2010), ao

abordar as “Dimensões do ato em Psicanálise”, privilegia uma leitura do ato a partir de seu

desenvolvimento conceitual desde Freud25 e faz uma leitura muito detalhada acerca da lógica

do ato, partindo da leitura e explicação do grupo de Klein, utilizado por Lacan26 para então

tirar consequências lógicas importantes sobre o conceito de ato, principalmente no que

concerne à possibilidade de que, “adotando esse grupo para a abordagem do ato no Seminário

15, talvez Lacan estivesse exatamente interessado em demonstrar como, no caso da

psicanálise, pode-se, de uma estrutura (poderíamos dizer simbólica), derivar consequências

heterogêneas a ela.” (TORRES, 2010, p. 173).

Nosso percurso será o de levar em conta a dimensão do ato não apenas de maneira

restrita ao ato na Psicanálise (ato psicanalítico), mas levando em conta a especificidade deste

em relação às outras dimensões de ato de transmissão – no caso o Zen.

Articularemos neste capítulo o ato na Psicanálise e o ato no Zen, uma vez posta a

existência do ato fora da Psicanálise, ainda que não exista ato fora de determinadas

coordenadas, como é o caso da transferência por exemplo (Cf. LACAN, 1967-1968/[inédito]),

25 Não pretendemos aqui esgotar a complexa e articulada leitura de ato feita pelo autor, mas apenas incluir algumas de suas leituras na nossa. Certamente este trabalho possui grande número de detalhes e muitos mais desdobramentos importantes em referência ao ato. 26 Se trata de uma estrutura matemática, a qual Lacan utiliza de maneira muito peculiar.

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p. 46), esta existindo claramente também fora do setting analítico, como foi observado já por

Freud (FREUD, 1912 /2004, p. 113).

Ou seja, é possível falar de ato fora da análise, ainda que o ato analítico contenha em

si características que o especifiquem e o diferenciem das outras modalidades de ato, como

veremos. Vale lembrar que Lacan adverte que o ato não tem seu interesse restrito aos

psicanalistas (LACAN, 1967-1968/[inédito]), p. 23), e desde Freud(1901/2006) a dimensão

do ato enquanto falho já havia sido abordada na dimensão da (Psicopatologia da) vida

cotidiana. Não entraremos neste texto clássico de Freud, onde o ato nos é apresentado em sua

modalidade falha, mas vale ser mencionado pois ele nos alerta para a não possibilidade de

restringir o ato à Psicanálise.

O ato pode ser qualificado como sendo uma dimensão não-toda27 simbólica. Lacan

define a posição lógica do ato psicanalítico enquanto ruptura de um conjunto universal (não

há relação sexual), e define a posição privilegiada da exceção na Psicanálise, o não-todo

(LACAN, 1967-1968/[inédito]), p. 187). O direcionamento da análise é feito levando-se em

conta essa duplicidade ou essa não-totalidade do sujeito. Esta posição lógica ampara o sujeito

enquanto não estando todo alocado no pensamento, como já discutido anteriormente, bem

como ampara a posição não-toda simbólica do ato.

Para definirmos nossa modalidade de ato, enquanto desdobramentos do tempo28 do ato

analítico, ou do ato como transmissão e conclusão (no Zen), é importante enquadrar a relação

do sujeito perante o objeto a e o saber. Desta forma nos distanciaremos de outras modalidades

de ato que dizem respeito ao sujeito, como o acting out e a passagem ao ato, uma vez que,

como veremos, estas são modalidades de ato que preconizam o fator da repetição sintomática

(BASTOS; CALAZANS, 2010, p. 254). Por outro lado, o ato enquanto transmissão e

momento de conclusão (passe) – dimensões do ato que nos interessam nesta pesquisa – se

distingue justamente por permitir ao sujeito uma mudança subjetiva e uma destituição

subjetiva respectivamente. O ato analítico está de certa forma localizado do lado do analista

(LACAN, 1967-1968/[inédito], p.139) e não do sujeito como o acting out e a passagem ao

ato, ainda que no instante do ato não exista nem Sujeito e nem Outro, isto acontecendo, esta

27 Lacan(1972-1973/2008) vai dar continuidade a esta leitura lógica do não-todo no Seminário XX. Embora também localizemos esta discussão neste seminário, não pretendemos esgotar o tema ou adentrar na articulação lógico-gramatical iniciada aí por Lacan, o que nos exigiria um grande desvio de nossa proposta. Aqui bastará apenas utilizar esta particularidade do ato como modo de destacar o seu aspecto não-todo simbólico. 28 Observaremos o ato analítico em sua dimensão do tempo para compreender a análise, o seu percurso e o momento de concluí-la, o passe.

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mudança, esta recolocação do sujeito, apenas a posteriori (LACAN, 1967-1968/[inédito]), p.

58).

4.1.1 As modalidades de ato e o objeto a na cena

Trataremos a seguir de uma localização do conceito de ato para a Psicanálise e da

especificidade do ato analítico como um ato de mudança subjetiva, diferenciando-o da

passagem ao ato e do acting out, como modalidades de repetição sintomática e não de

mudança, não de modificação subjetiva.

É preciso demarcar que, a despeito de no instante do ato não existir nem sujeito nem

Outro, o ato está, de certa forma, do lado do analista (Cf. LACAN, 1967-1968/[inédito]), p.

59, p. 139; GUIMARÃES, 2007, p.75). Ainda que não seja um fazer relacionado à

motricidade, o ato é uma ação que admite a dimensão significante. Em relação ao ato

especificamente analítico, é no manejo da transferência e em seus efeitos que se encontra a

possibilidade da existência do ato analítico. O ato acontece em um momento onde ocorre a

queda da dualidade do sujeito, ao se colocar na intersecção dos conjuntos não-penso e não-

sou. Ocorre neste momento a ausência de sujeito e do Outro, no entanto, esta ausência é

momentânea, pois em seguida o sujeito retorna com sua “presença renovada” (GUIMARÃES,

2010, p.78). Após o ato o sujeito reaparece ainda no seu estatuto de sujeito barrado,

permanece sua falta-a-ser, sua incompletude.

Entendemos, no entanto, que o ato na sua dimensão de transmissão e de conclusão em

um processo analítico possibilita ao sujeito um rearranjo de sua relação com o objeto a. Esta

modalidade de ato como transmissão e conclusão de um processo é que possibilita uma

articulação entre o método da Psicanálise e o do Zen.

No entanto, as modalidades de ato como o acting out e a passagem ao ato não

permitem uma mesma articulação entre métodos, uma vez que são modalidades de ato em que

o sujeito estabelece uma relação extrema perante o objeto a, encenando no primeiro caso

(acting out) e caindo da cena no segundo (passagem ao ato29). Em suma, estas não são

modalidades de ato onde se instaura uma mudança do sujeito e uma possibilidade de se situar

diversamente diante do objeto a. São situações extremas onde o sujeito alterna sua presença

29 Existe, todavia, uma correlação possível entre passagem ao ato e ato analítico. Estamos falando da passagem ao ato falho, uma vez que a passagem ao ato bem sucedida apenas aparece como possível através do suicídio, pois seria o que aniquila o sujeito. Sem entrar nos detalhes desta semelhança, nos amparamos em sua distinção como sendo principalmente a relação do ato com o saber (GUIMARÃES, 2007, p. 83). No ato analítico, o Sujeito está advertido da inconsistência do Outro abordando o saber como impossível, enquanto na passagem ao ato existe uma “recusa de saber” (GUIMARÃES, 2007, p. 84).

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na cena do objeto, não possibilitando que possa se situar nesta relação, sustentar a dimensão

do que insiste em se repetir como falta (de sentido).

Ainda que Lacan preconize o acting out como uma transferência sem análise,

destacamos que, mesmo ao abordar o ato em nossas articulações em referência ao Zen (que

não é análise), não nos referiremos a este utilizando o conceito de acting out. Isso é

importante de ser destacado.

Feitas esses esclarecimentos sobre o acting out e a passagem ao ato, iremos na seção

seguinte tratar especificamente do conceito de ato como transmissão e conclusão de um

processo, que é o ato presente no método do Zen e no da Psicanálise, e não do seu recorte

como sintoma do sujeito. O que nos interessa na presente pesquisa é esta leitura do ato como

o que insiste para o que está fora do sentido – sem contudo fazer com que o sujeito encene ou

caia perante o objeto a, mas que faça com que o sujeito se renove.

4.2 O(s) Ato(s) de transmissão na experiência

“Quero tomar uma via indireta, utilizar uma

experiência, estilizar um encontro que foi meu,

para abordar algo do campo do que ainda

pode viver das práticas budistas,

especificamente as do Zen.” (LACAN, 1962-

1963/2005, p. 244).

Entre outros motivos, o Zen foi desenvolvido a fim de comunicar o incomunicável,

bem como para transmitir o que não poderia ser transmitido pela via da linguagem, criando

assim paradoxos e levando os adeptos a responder às suas próprias perguntas, já que os

mestres lhes ofereciam não mais do que apontamentos, ou atos, muitas das vezes

aparentemente sem sentido.

Desde o início é importante ressaltar que o Zen não se captura a si próprio, ou seja,

não é em si uma filosofia tal qual estamos comumente acostumados. O Zen é acima de tudo

uma experiência. O que se traduz do inefável é o que poderemos abordar sobre o Zen, que em

si mesmo continua intacto. O que se traduz na linguagem – mesmo a dos Mestres Zen, cuja

linguagem muitas vezes parece sem sentido – é o que nos ateremos enquanto apontamentos

do Zen, e não ao Zen em si.

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Segundo Shunryu Suzuki , o mestre Zen Rinzai preconizava que a melhor maneira de

ensinar seus discípulos era aquela onde o mestre não oferecia nenhuma interpretação pessoal,

nem tampouco estímulos próprios (SUZUKI, 1994/2012, pp.72-73). Tal sugestão parece

bastante paradoxal. Alguém poderia perguntar: “Como pode? A melhor instrução é aquela

onde não há instrução? A melhor condução está na ausência de condução?”. Esse

posicionamento colocado pelo mestre Zen possibilita assinalar uma discreta semelhança para

com o modo de condução do psicanalista na sessão analítica. Sabemos que Lacan (1958/1998,

p. 595) preconiza para o analista um lugar específico, que chama de “lugar do morto”,

situando o analista em sua falta-a-ser em detrimento de seu ser. Assim, Lacan,

semelhantemente ao mestre Zen Rinzai, solicita que o analista não dê instruções (sugestões)

aos analisantes.

De forma parecida ao psicanalista, o mestre Zen evita ensinar de forma direta, de

modo que sua transmissão parece bem próxima ao Ato. Como lançada na epígrafe deste

trabalho, “Obrigado Mestre, por não me ensinar nada.” (antiga anedota Zen), fica a questão:

Como ensinar sem ensinar? Como conduzir para além do dito e como ultrapassar os liames do

simbólico em uma transmissão? Diante de tais questionamentos, cabe trazer um poema Zen

budista citado por Quinet:

Quando curiosamente te perguntarem, buscando saber o que é aquilo, não deves afirmar ou negar nada. Pois o que quer que seja afirmado não é a verdade, e o que quer que seja negado não é verdadeiro. Como alguém poderá dizer com certeza o que aquilo possa ser, enquanto por si mesmo não tiver compreendido plenamente o que É? E, após tê-lo compreendido, que palavra deve ser enviada de uma região onde a carruagem da palavra não encontra uma trilha por onde possa seguir? Portanto, aos seus questionamentos oferece-lhes apenas o silêncio, Silêncio – e um dedo apontando o caminho. (VERSO ZEN BUDISTA apud QUINET, 2009, p. 13).

Ousamos aproximar a conduta do psicanalista em suas intervenções a uma

admoestação do mestre introdutor do Zen no Japão, Dogen: “Quando você diz algo a uma

pessoa, ela pode não aceitar, mas não tente convencê-la intelectualmente. Não discuta; apenas

ouça as objeções até que a própria pessoa encontre algo errado nelas” (DOGEN apud

SUZUKI, 1994, p. 87). Evidentemente na Psicanálise não se trata de encontrar algo de errado

nas objeções do sujeito, mas de levar o sujeito a escutar seu próprio dizer e desvelar o saber

que não se sabe, o saber do inconsciente. O silêncio do analista desta forma vem a intervir em

ato, possibilitando uma mudança do sujeito a partir de sua própria fala.

Feitas essas observações, partiremos a seguir a alguns recortes do método da

Psicanálise lacaniana, como os atos do analista, o uso das pontuações fora do sentido

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(enigmas) e o uso do silêncio, articulando o método utilizado pelos mestres Zen em sua

transmissão. Iremos enfatizar o caráter de Ato como sustentando a transmissão destas

experiências.

4.2.1 O método Zen e o método da Psicanálise

(…) aliás, não estamos aqui para defender

esse método, mas para mostrar que ele tem

sentido dialético preciso em sua aplicação

técnica. E não somos o único a ter feito a

observação de que ele se aproxima, em última

instância, da técnica designada pelo nome de

Zen, e que é aplicada como meio de revelação

do sujeito na ascese tradicional de certas

escolas do extremo Oriente. Sem chegar aos

extremos a que é levada essa técnica, uma vez

que eles seriam contrários a algumas

limitações que a nossa se impõe, uma

aplicação discreta de seu princípio na análise

parece-nos muito mais admissível, na medida

em que ela não comporta em si nenhum perigo

de alienação do sujeito. Pois ela só rompe o

discurso para parir a fala. (LACAN,

1966/1998, pp. 316-17).

Passemos agora a localizar esta questão da relação entre Psicanálise e Zen de modo

mais circunscrito, levando em conta as peculiaridades deste “sistema” oriundo do Budismo e

o quanto seu método possa ter interessado a Lacan no que se refere a algumas homologias ao

método da Psicanálise. Vale lembrar aqui o que afirmamos no início do capítulo 3, que temos

clareza de poder ser problemático falar de um “método lacaniano”, pois o fazer do analista

não pode ser determinado positivamente, como se poderia esperar de uma abordagem clínica.

Como sabemos, em Psicanálise não faz sentido, diferentemente de outras abordagens,

construir um guia de intervenções para analistas. Não cabe na Psicanálise um debate

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puramente técnico. Mas isso justamente é uma vantagem deste saber clínico em sua prática,

considerando aquilo que se propõe como um “objetivo” da análise.

O primeiro ponto que devemos falar é justamente da dificuldade em discursar sobre

uma experiência relativa ao vazio. Ora, o vazio tem um sentido "sem sentido". Como falar,

como colocar no plano do simbólico algo "sem sentido"? Talvez, pelo menos, apontando para

a experiência direta tal como é referida no Zen. Entretanto, essa dificuldade parece culminar

justamente no que pode ter serventia para a Psicanálise, já que esta opera com a fala e com a

linguagem não se encerrando no sentido ou no significado. Como Lacan afima, “o de que se

trata no discurso analítico é sempre isto – ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre

uma leitura outra que não o que ele significa” (LACAN, 1972-1973/2008, p. 43).

De acordo com Humphreys (1977, p. 23), os mestres Zen utilizavam métodos que

confundiam e perturbavam a mente do discípulo, mas não conduziam os discípulos a alguma

resposta, a não ser pela via de uma elaboração enigmática. Os discípulos Zen chegavam com

questionamentos muito pontuais aos mestres, mas estes, por sua vez, respondiam com uma

risada ou questionavam de volta de maneira aparentemente sem sentido, levando os discípulos

a uma nova busca de sentido, e isto se desenrolando através de muitos encontros com o

mestre, até que por fim houvesse a transmissão final do mestre ao discípulo. Essa transmissão

final é referida pela palavra Satori, traduzível no português por iluminação ou esclarecimento.

Desta feita, os mestres conferiam aos dizeres do discípulo uma possibilidade de giro e

deslizamento que operava desatravancando a estaticidade dos significados, o que notamos ser

algo muito parecido ao ofício do psicanalista.

Antônio Quinet (2009) dedica uma parte do seu livro “As 4+1 condições da análise” à

técnica Zen, elucidando o interesse de Lacan sobre esse saber, localizando o método de

transmitir ensinamentos do Zen, especificamente o Koan, como um método enigmático. O

processo de deciframento do Koan pelo discípulo era acompanhado pelo mestre em

entrevistas breves, e este último conferia como estava o estado do discípulo frente a esta

resolução. Neste sentido podemos comparar as sessões curtas da análise lacaniana ao

procedimento Zen de entrevistas breves e pautadas no enigma (QUINET, 2009, p. 68).

De acordo com Quinet (2009), o Zen tem como objetivo uma experiência súbita, o

Satori (a palavra Satori também se refere a tal experiência), onde a certeza parte deste giro, e

não do pensamento. O discípulo tem de chegar a uma experiência que parte desta reviravolta

da mente. Nas palavras do autor:

A experiência zen é descrita pelo mestre Hui-neng: “ver dentro de sua natureza-

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própria”, que, sendo coisa alguma, não é. “Ver dentro da natureza-própria é, portanto, ver dentro do nada”. Ela se reduz ao instante de olhar, que aqui não é vinculado à ação, mas à falta absoluta de representação. [...] O que é visado na doutrina zen é algo que poderíamos situar como o que está fora da cadeia significante do pensamento tanto consciente quanto inconsciente. Essa doutrina é indissociável da técnica zen que vai consistir no meio utilizado pelo mestre de levar o discípulo ao abandono, à libertação da cadeia significante. (QUINET, 2009, p. 67).

Prossegue Quinet com o que mais nos interessa destacar aqui, o fato de que a técnica utilizada

pelos mestres é o recorte possível de interesse de Lacan sobre o Zen. Em suas palavras: “O

que interessa a Lacan no Zen é menos a vivência dessa experiência de iluminação, também

chamada de despertar, do que a técnica empregada para alcançá-la. É com esta, e não com a

ascese mística, que ele compara o procedimento das sessões curtas.” (QUINET, 2009, pp.67-

68).

Para praticar o Zen, faz-se necessário despojar-se de quaisquer conceitos

preestabelecidos. Os mestres Zen visavam a que os discípulos inaugurassem toda experiência

possível em relação aos seus atos e à própria utilização da linguagem.

Em se tratando do signo linguístico, tal qual estruturado por Ferdinand de Saussure e

subvertido por Lacan 30 , o despojamento conceitual do Zen soa familiar em relação ao

conceito de significante e letra para a Psicanálise lacaniana. “Através da nomeação

proporcionada pelo simbólico, o significante poderá, também, adquirir outros efeitos além de

significar. O significante, como letra, possui também uma ex-sistência para além e fora do

fazer sentido” (COSTA et al., 2007, p. 123, grifo do autor).

O Zen se esquiva das conceitualizações, categorizações, intelectualizações ou

racionalizações de um modo tão radical que, ao ser interrogado acerca do Zen, não raramente

o mestre de tal escola se calaria ou quem sabe responderia com um latido, ou arremessaria o

discípulo contra um lago. O que num primeiro momento pode parecer absurdo, é porém um

método utilizado pelos mestres, que buscavam para além das palavras que os discípulos

chegassem às respostas por si próprios.

Um dos métodos de transmissão do Zen, denominado mondo, consiste de pequenas

conversas entre mestre e discípulos. Em um desses mondos:

Fu-Ch´i (o mestre) exclamou: Ó irmão! – e o monge respondeu: – Sim, mestre!; o monge perguntou: – Onde está o Vazio?; O pobre monge ainda estava à procura de imagens conceituais e fracassou completamente ao conceber uma idéia sobre o paradeiro do Vazio. Então, fez novo pedido: – Tenha a bondade de me falar sobre

30 O conceito de signo linguístico para Saussure “une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (SAUSSURE, 2008, p. 80). Sabe-se que em seu conceito de signo, Saussure dá primazia ao conceito em detrimento da imagem acústica.

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isso mestre; O mestre não tinha mais o que dizer; mas, enigmaticamente, conclui: – é como um persa31 provando uma pimenta vermelha. (SUZUKI, 1989, p. 116).

Em um outro mondo: “O discípulo para o mestre: Todos os sons são sons de Buda?;

Mestre – Sim!; Discípulo – Posso te chamar de macaco?; O mestre o acerta com uma

pancada.” (SUZUKI, 1989, p. 70). Esses mondos aparentemente sem sentido contêm em si a

derrogação da lógica binária, fundamentam-se no pressuposto do vazio, da lógica do sim e

não ao invés da lógica do sim ou não. Justamente por isso interessam à Psicanálise, pois em

seu Seminário XV “O ato analítico”, Lacan (1967-1968/ inédito), irá utilizar um estudo da

lógica muito específico que possa ser coerente à lógica Psicanalítica.

Em um outro mondo, ainda:

Um monge perguntou a Pai-Chang Hui-Hai, o fundador do mosteiro Zen: Quem é o Buda?; Chang – Quem és tu?; monge – Sou fulano de tal; Chang – Conheces esse fulano de tal?; Monge – é claro!; Chang então levantou o seu hossu32 e disse – Estás vendo?; Monge: – Estou vendo!; O mestre nada mais disse. (SUZUKI, 1989, p.70).

Temos de pano de fundo a ideia de que o Zen busca a experiência direta e não apenas

racionalizações ou verbalizações. Podemos arriscar uma comparação, uma homologia, entre

os mondos e a sessão analítica, situando ambos como apontamentos que partem da linguagem,

mas sempre para situar o seu para além, o seu impossível.

Vimos que o mestre Zen (Cf. Capítulo 3) não se ampara exclusivamente no simbólico

e no sentido como via de transmissão de seu saber, ou deveríamos dizer, de seu saber-fazer. O

mestre Zen irrompe no sem-sentido, e com o uso dos Koans e dos Mondos ele vislumbra um

enfrentamento dos discípulos perante seus saberes e dizeres, obrigando-os a reformular o falar

e o agir tendo em vista a inserção da dimensão do vazio nestes fazeres.

Na psicanálise não se trata exatamente do vazio tal qual o Zen, mas sim do objeto a e

da operação feita por um sujeito em sua análise em relação a este a, este resto, este dejeto. Tal

operação é conduzida por um analista que, para aquiescer tal posição deu cabo a sua análise, o

que quer dizer que este terminou o processo analítico encerrando-se como analisante e

iniciando-se como analista (o que é diferente de afirmar que este tenha esgotado seu

inconsciente).

31 Os persas seriam os estrangeiros. 32 Artefato dos mestres Zen budistas, uma espécie de bastão de mais ou menos 30 cm de comprimento que conta em sua ponta com pelos de Iaque. Os mestres usavam para afastar moscas mas também para simbolizar a transmissão do ensinamento (dharma).

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No seminário Mais, ainda... (1972-1973/2008), Lacan trata da questão do gozo e nesse

seminário, ele se serve de um exemplo do mestre Zen, apontando que o mestre Zen, diante de

um questionamento aborda esse saber "para além das palavras". Diante de um questionamento

racional que visa ao saber com palavras, o mestre responde com um mugido. Lacan neste

momento faz alusão a um famoso Koan Zen, o Koan Mu de Joshu (Cf. nota de rodapé, a

primeira da seção a seguir.).

Como veremos adiante, com a utilização dos Koans, os mestres derrogavam da fala a

dimensão do sentido. Ao derrogar o sentido da fala do discípulo, o mestre Zen, assim como o

psicanalista, confere um outro valor ao dito, ultrapassando o representar e o significar. E

assim traz uma dimensão de Ato, de ruptura, de fissura no discurso. Estando para além do

sentido, apenas desta forma, segundo Lacan (1970/1992, p. 108), um discurso poderia se

colocar do lado da verdade, já que esta é entendida como castrada, tendo a estrutura de um

enigma e de um semi-dizer.

4.2.2 O Koan, a Psicanálise e o apreço ao enigma

“O Budismo, este é o exemplo trivial por sua

renúncia ao próprio pensamento. O que há de

melhor no budismo é o Zen, e o Zen consiste

nisto: em te responder com um mugido, meu

amiguinho.” (LACAN, 1972-1973/2008, p.

123)33

Non sense, ab-sense, semi-dizer, enigma, todos estes conceitos são colocados por

Lacan como sendo setas para a verdade (LACAN, 1970/1992, pp. 33-34). Da mesma forma,

podemos encontrá-los no método Zen denominado por Koan, um “problema” antitético,

ilógico, paradoxal, que o mestre dirigia ao discípulo, a fim de que este rompesse com a

mentalidade racional e chegasse ao Satori – iluminação súbita.

Alguns famosos Koans:

“Qual o som de uma só mão batendo palmas?”

“Como era seu rosto antes do nascimento de seus pais?”

33 Aqui Lacan está se referindo ao famoso Koan do mestre Joshu: “Um monge perguntou para o mestre Joshu: O cachorro tem a natureza búdica? Joshu respondeu: MU” (KAPLEAU apud ANDRADE, 2003, p. 6).

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“Considere um ganso vivo, no interior de uma garrafa. Como retirá-lo sem

que o machuquemos ou quebremos a garrafa?”

Tal como na Psicanálise, podemos dizer que com o uso dos Koans o mestre Zen faz

frente ao impossível de ser dito, aborda o inefável, faz borda ao vazio. Sunyata34 para o Zen,

objeto a para a Psicanálise?

O Psicanalista resiste em utilizar a linguagem apostando unicamente no sentido ou em

fazer o uso da fala restrito à comunicação ou à estrutura do simbólico. Do mesmo modo que a

clínica psicanalítica não se encerra no sentido, o Ato psicanalítico está para além do sentido e

implica a dimensão do risco. Admitir o risco desvela a falta de garantias.

Tal como o mestre Zen não poderia supor o tipo exato de atitude compreensiva, que

teria como eco suas atuações enquanto mestre, o psicanalista não pode a priori oferecer

garantias de seu serviço, não estando sua ética ao lado do serviço de bens – o que Lacan

elucida em seu seminário sobre “A ética da Psicanálise” (1959-1960/2008, p. 355). Em suma,

o psicanalista não visa sedimentar um laço social pautado pelo ideal.

O que nos parece é que Lacan se utiliza dos exemplos dos Koans e da atuação do

mestre Zen para elucidar claramente sua crítica a uma clínica psicanalítica que vise ao

sentido. O significante não é o sentido, é onde não se tem sentido que ele opera. O sujeito não

percebe este pas de sense antes de escandir o significante do significado.

Outro dado curioso é o constrangedor escrito lacaniano. Propositadamente ou não, Lacan não deixa chance a autodidatas que pretendam se introduzir em sua obra. Seu texto parece forçar uma transmissão ativa, que envolva mais de um sujeito. Sua cifra produz um enigma constante; constrangimento que ressoa ao mais delicado dos koans. (ARANTES, 2007, p. 9).

Enquanto método clínico, a Psicanálise deveria, segundo Lacan, levar o sujeito a se

confrontar com o nonsense em seu discurso, a falta de sentido. Lacan elucida a questão

denominando o discurso racional de semblante: “é por um discurso centrar-se como

impossível, por seu efeito, que ele teria alguma chance de ser um discurso que não fosse

semblante” (LACAN, 1971/2009, p. 21).

Dessa forma, não seria ao discurso racional que a Psicanálise visaria, posto que sua

regra técnica fundamental é a associação livre – desde Freud em “Recomendações aos

34 Do sânscrito, traduzido como vazio. “Sunya ou vazio que expressa ao mesmo tempo a relatividade do mundo fenomênico e o caráter absoluto de um Real que embora não seja o mundo fenomênico em si, não pode ser encontrado fora dele; o conceito de Tathagata (aquilo que é assim mesmo), outra maneira de expressar o Real (...)” (GONÇALVES, 1976, p.19).

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médicos que exercem a psicanálise”: “...exigência feita ao paciente, de que comunique tudo o

que lhe ocorre, sem crítica ou seleção” (FREUD, 1912/2006 p. 126). Nota-se aí uma recusa a

todo direcionamento racional da fala.

Se isso quer dizer, por exemplo, semblante de discurso, teremos como vocês sabem, a chamada posição lógico-positivista. Trata-se de submeter um significado à prova de alguma coisa que se decida por um sim ou por um não. O que não se permite ser oferecido a essa prova, eis o que é definido como não querendo dizer nada. (LACAN, 1971/2009, p. 13).

De maneira semelhante se observa um total desinteresse dos mestres Zen pela

interpretação via sentido. O sentido remete a um todo, a uma possibilidade de apostar na

coerência da fala e dos seus significados. Sendo assim, na Psicanálise, desinteressar-se pela

via do sentido é o que poderíamos designar como sendo um processo de dissolução da

identificação alienante ao eu imaginário, tendo em vista a emergência do sujeito (Sujeito

barrado $).

Desse modo, verifica-se no Zen algo que pode ser consonante ao método psicanalítico,

já que aquele floresce em uma cultura em que o racionalismo não teve tantas “luzes” como no

ocidente. Possivelmente esse tenha sido um dos fatores que levaram Lacan a se interessar pelo

país nipônico e citar o Zen em seus seminários.

Segundo Allan Watts (2008, p. 69), um dos principais métodos de transmissão do Zen

é o Koan, um questionamento enigmático que o mestre direciona ao discípulo. O enigma é

parte estruturante da aplicação do Zen pela via da linguagem, posto que permite ao sujeito

encontrar sua verdade. Do mesmo modo, existe uma apreciação muito significativa do

enigma pelo método da psicanálise, tal como aquele colocado pela Esfinge ao Édipo

sofocliano.

Se a experiência analítica acha-se implicada, por receber seus títulos de nobreza do mito edipiano, é justamente por preservar a contundência da enunciação do oráculo e, eu diria ainda, porque a interpretação permanece sempre nesse mesmo nível. Ela só é verdadeira por suas consequências, tal como o oráculo. A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decida por um sim ou por um não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida. (LACAN, 1971/2009, p. 13).

Enigma é tudo aquilo que supõe uma decifração, e que é exposto em termos obscuros

ou ambíguos. Édipo decifrou o enigma da esfinge. Fazendo alusão a este mito, a Psicanálise

pode representar a posição de um analisante que busca dar sentido ao seu sintoma, ou que de

um modo geral busca sentido para as manifestações do inconsciente.

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No seminário XVII, O avesso da psicanálise, Lacan dá lugar em seu ensino ao

enigma:

O que é a verdade como saber? Seria o caso de dizê-lo: – Como saber sem saber? É um enigma. Esta é a resposta – é um enigma –, entre outros exemplos. E vou dar-lhes um segundo. Os dois têm a mesma característica, que é o próprio da verdade – a verdade nunca se pode dizê-la a não ser pela metade. (LACAN, 1970/1992, pp. 33-34).

Para tratar da interpretação psicanalítica, Lacan a define como aquela que é

estruturada por um “saber como verdade” (LACAN, 1970/1992, p. 34). Logo, ao equiparar a

verdade ao enigma – sendo ambos semi-dizeres – e ao afirmar que a interpretação tem a

estrutura de um saber como verdade, o método de interpretação analítica, segundo Lacan,

parece se assemelhar, aqui, ao método Zen. Método esse que busca, por meio de um paradoxo

(ou, como já dito, um “semi-dizer”, já que os mestres Zen nunca dão a resposta), a verdade

dos praticantes – sempre um a um –, não sendo compartilhável a resolução de um Koan, por

exemplo.

A estrutura do inconsciente, para Lacan, é marcada pelo significante, especificamente

pelo significante do nonsense, fora do sentido. É pela via da singularidade que se pode

encontrar algum significado no discurso do sujeito e levá-lo à máxima contradição conceitual

no que toca ao enunciado35 de seu discurso, e esse é um modo de fazer com que o sujeito se

aproprie de seu dizer.

Nesse aspecto, a prática dos Koans e dos Mondos – que embasam a transmissão do

Zen, principalmente na escola Rinzai do Japão –, bem como as intervenções do mestre, muitas

vezes apontam para o “ser” enquanto sujeito, para além do pensamento, haja vista que se

baseiam na experiência direta, objeto máximo da prática Zen. “As atitudes do mestre apontam

sempre para o não sentido, para fora do significante, para o nível de algo da ordem do real, e

não da ordem do deciframento, que ele presentifica com seu ato” (QUINET, 2009, p. 69).

Entendemos que as pontuações do Psicanalista, pautadas não na tentativa de uma

comunicação sem erros, mas no não sentido, no tropeço da fala, na parapraxia como

denomina Freud, parecem ter, como sugere Lacan, uma certa semelhança ao método dos

mestres zen-budistas. Estes, sempre se esquivando da fala circunscrita ao sentido, preferiam

35 “(...) Com efeito, se algo é instituído pelo cogito, é o registro do pensamento, no que ele é extraído de uma oposição à extensão – estatuto frágil, mas estatuto suficiente na ordem da constituição significante. Digamos que é por tomar seu lugar no nível da enunciação que o cogito tem sua certeza. Mas o estatuto do eu penso é tão reduzido, tão mínimo, tão pontual – e poderia também ser afetado por essa conotação do isso não quer dizer nada – quanto o do eu minto (...)” (LACAN, 1964/1995, p.139).

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muitas vezes chacoalhar as palavras e responder com um mugido, com um pontapé, com um

ato, contanto que este servisse não de ponto final no discurso mestre-discípulo, mas de

vírgula, de enigma, suscitando a elaboração, o desdobramento de significante em significante,

ou seria melhor dizer no caso do Zen, de Koan em Koan...

4.2.3 O Silêncio e o Vazio36 – um método de apontar a verdade37

No que diz respeito à similaridade entre um mestre Zen e um analista, na resposta com

um silêncio aos “por quês?”, temos uma passagem de Herrigel (1975) a respeito da

transmissão Zen via silêncio:

A simples decisão de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um sério exame de consciência, pois tem diante de si o célebre exemplo de um dos maiores mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silêncio, imutável como se nada tivesse ouvido. (HERRIGEL, 1975, p. 23).

O mestre com seu silêncio transmite algo que não se encerra no sentido. Busca

transmitir a própria experiência, e se furta de conceituar o Zen, demonstrando a quem o

interpele, infinitas possibilidades de interpretação, que não apenas uma única. O Zen utiliza a

linguagem como método de transmissão de uma experiência e não somente como meio de

comunicação.

O douto conhecimento acerca do Zen por vias de leitura ou outra prática indireta não

equivale à sua vivência ou à dimensão de sua experiência. Levando-se em conta que o

mestre38 conduz o discípulo em direção ao Satori39, questionamos a eficácia de quaisquer

jogos de palavras que esbocem uma atitude de aprisionar o seu sentido (se é que ele existe).

Seria o mesmo que dizer que o interesse de alguém pela Psicanálise o tivesse feito ler toda a

obra clássica, de Freud à Lacan, e acreditasse por isso se eximir da necessidade de passar por

um processo de análise para lidar com seu sintoma. De fato, aquilo que cala, aquilo que não se

inscreve e que se mostra impossível de simbolizar, tem lugar no Zen, bem como na

36 Cf. explanação acerca do vazio, tópico 3.2. 37 É importante ter em mente que o que se assemelha em relação à verdade em ambos os casos (Zen e Psicanálise) é sua estrutura não-toda, de enigma e semi-dizer. 38 Se relacionamos neste capítulo o psicanalista e o mestre Zen, cabe aqui uma ressalva aos leitores familiarizados com a aversão de Lacan a que uma posição de Mestre seja ocupada pelo psicanalista em seu ofício. De fato, o mestre Zen não é mestre no sentido lacaniano. Ao que defendemos, parece se colocar em um discurso mais próximo do discurso do analista do que do discurso do mestre em Lacan, posto que o mestre Zen, semelhante ao psicanalista, não se coloca no lugar de saber para o sujeito, mas faz semblante, e conduz o sujeito através de um discurso faltante. 39 Objetivo da prática Zen, ou Iluminação, tomada como “ver as coisas como são” ou em sua experiência direta.

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Psicanálise lacaniana.

Em sua estruturação, o sujeito que se alienou na linguagem ($), já apostou no sentido,

e moldou o quadro de sua fantasia ($ <> a) em sua relação com o mundo, tendo escolhido o

sentido e cedido parte de seu ser (como a libra de carne). Resulta disso a perda de um resto

que não pode ser simbolizado, o objeto a, uma vez que através da nomeação simbólica busca

dar sentido ao Real, ou àquilo que escapa à significação, a Psicanálise por sua vez, é por outra

via que exerce seu método de utilização da fala, que não a via exclusiva da comunicação e do

sentido.

O psicanalista derroga a dimensão da fantasia e leva o sujeito ao saber-fazer implicado

por uma falta de sentido presente em suas intervenções. Além disso, ele busca fazer com a

linguagem algo que resista à estrutura última de significação e procura justamente quebrar o

sentido para desalienar o sujeito de sua fantasia limitante, produzindo efeitos novos em sua

relação com a linguagem, que não o sentido.

A analogia da entrevista zen com a sessão analítica nos leva a considerar a interrupção desta como uma modalidade em que o analista vem fazer-de-conta de objeto a40, em que ele é ativo dentro dessa estrutura paradoxal do ato psicanalítico que subverte o sujeito; o objeto faz parte desta estrutura sendo, no entanto, exterior à linguagem. (QUINET, 2009, p. 69).

Tanto o psicanalista quanto o mestre zen, muitas vezes, não dão resposta direta aos

questionamentos do analisante ou do discípulo, respectivamente. Ao utilizar o silêncio, ambos

permanecem em suspensão em relação a um direcionamento do sujeito e nesse sentido trazem

a possibilidade de que o sujeito construa um saber-fazer, que admita um objeto estrutural

exterior à linguagem ou, mais exato dizer: nem interior, nem exterior a ela, como a banda de

Moebius utilizada por Lacan (1962-1963 /2005) em referência ao objeto da angústia.41

Existe certamente uma dificuldade em manejar conceitos oriundos de experiências que

admitem o vazio, como na Psicanálise e no Zen. Outra dificuldade ainda em manejar os

“conceitos” do Zen advém do fato que este não pode ser entendido pela via do sentido em sua

totalidade pela via racional, e neste aspecto pode-se fazer uma ponte com a prática clínica da

Psicanálise. Além disso, o Zen aborda o dito e também o não-dito, e sabe-se o quanto isso

interessa à Psicanálise. O dizer, mas também o não-dito sugere que nem tudo pode ser

representado pelo âmbito do significante, seja por impossibilidade sintomática ou estrutural –

40 Faire semblant: fazer-de-conta ou bancar. 41 É evidente que o mestre Zen não se norteia a partir da escansão do objeto a, tal como o psicanalista o faz. Porém aproximamos a estratégia do silêncio em ambos para refletir sobre um desdobramento possível e semelhante: o saber-fazer perante a falta de instruções.

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da impossibilidade da própria linguagem42.

Pode-se notar um ponto em comum no silêncio do psicanalista e no do mestre Zen: ao

se calarem, ambos mostram um saber não-todo, uma verdade castrada, uma posição avessa a

revelações acabadas ou dogmáticas.

“(...) à livre expressão que emana do analisante, isto é, à expressão liberada da exigência de apropriação inerente à enunciação, responde, do lado do analista, um certo tom, uma certa posição de repouso na voz. E já está aqui engajada toda a arte da intervenção”43. (COTTET, 1989, p. 25).

Desta forma, como sugere Serge Cottet (1989) acima, o próprio silêncio pode exercer

uma intervenção, e o silêncio desta forma pode exercer função de ato, de corte, de ruptura,

desde que nos atenhamos aos seus efeitos. A isto se relacionam os efeitos a posteriori, tal

como preconiza Lacan como sendo a plenitude do ato (GUIMARÃES, 2007, p.77). O ato só

pode ser qualificado como tal de acordo com seus efeitos, a partir de sua possibilidade de

surtir no sujeito sua “presença renovada”44 (LACAN, 1967-1968/[inédito], p.58). Para tanto,

para qualificar o silêncio como tendo estatuto de ato, é necessário verificar nesta relação os

seus desdobramentos, seus efeitos.

Se há corte e rupturas em uma relação onde existe ato, então há a não aposta total na fala

baseada no sentido, no fazer Um (a não-relação sexual). Ao silenciar perante um

questionamento, o psicanalista e o mestre Zen se colocam em disparidade com o diálogo

racional, que busca em premissas lógicas argumentar e chegar a conclusões satisfatórias via

certeza baseada no pensamento. Desta feita, ambos (Zen e Psicanálise) não endossam o

discurso centrado no ego ou o discurso racional, os quais são tomados por Lacan (1953/1998,

p.255) como discursos de falas vazias.

42 Ainda que o ensino de Lacan tenha surgido com a especificidade da supremacia e autonomia do significante, e conceitos mais elaborados que abarcam a função do furo na linguagem só tenham sido formalizados posteriormente em seu ensino, defendemos aqui a posição de Lacan, desde o início como abordando e enfrentando metodologicamente na Psicanálise aquilo que não se encerra no âmbito do sentido e do significado. 43 Trata-se de uma citação de Freud por Cottet. 44 Aqui Lacan fala da passagem ao ato, no entanto, dentro do contexto, este conceito aparece como sinônimo de ato analítico. Guimarães(2007), esclarece que Lacan utiliza o conceito de passagem ao ato como sinônimo de ato analítico com a ressalva de que esta seja a passagem ao ato advertida, ou esclarecida(GUIMARÃES, 2007, p.83). Importante marcar esta diferença entre passagem ao ato advertida ou esclarecida (como sinônimo de ato analítico), e passagem ao ato como diferenciamos do ato analítico anteriormente nesta dissertação.

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4.2.4 A atuação do analista e a atuação do mestre Zen

“O mestre interrompe o silêncio com qualquer

coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que

procede, na procura do sentido, um mestre

budista, segundo a técnica Zen. Cabe aos

alunos, eles mesmos, procurar a resposta às

suas próprias questões. O mestre não ensina

ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a

resposta quando os alunos estão a ponto de

encontrá-la. Essa forma de ensino é uma

recusa de todo sistema. Descobre um

pensamento em movimento – serve entretanto

ao sistema, porque apresenta necessariamente

uma face dogmática. O pensamento de Freud

é o mais perpetuamente aberto à revisão. É

um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele cada

noção possui vida própria. É o que se chama

precisamente a dialética.” (LACAN, 1953-

1954/1983, p. 9).

O analista não se deixa capturar na transferência, ele se esquiva da relação de

alteridade para ficar na posição de objeto e assim possibilitar que o sujeito possa se haver com

a questão do seu desejo e do seu (não) saber. Através de seus atos, de sua imprevisibilidade, o

analista transforma a sessão em motor de saber para o sujeito, na medida em que isso implica

o sujeito em sua divisão e flerta com a dimensão do saber alocado na descoberta do

inconsciente feita em cada análise.

O Psicanalista, a despeito de estar em uma posição passível de poder, coloca-se como

“castrado”. O analista intervém com um semi-dizer, com um enigma, com o silêncio, com um

ato. Desvia do lugar de saber, o lugar que o analisante o coloca, Sujeito Suposto Saber, e

apenas faz semblante de saber para encarnar a causa do desejo e interpelar ao saber do próprio

sujeito ($), o saber que não se sabe, o Unbewusste, o saber do inconsciente (NASIO, 1993, p.

21).

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Ainda que não seja possível estabelecer à prática clínica da Psicanálise um manual de

condução metodológica, podemos destacar desta alguns aspectos importantes que dão suporte

a este processo. Isto se mostra uma via interessante de se estabelecer articulações entre a ação

e o simbólico, visando a recolocação do sujeito perante o saber na relação transferencial.

Alguns dos dispositivos estabelecidos por Lacan pertencentes à “clínica de sessões

curtas”, também chamados de dispositivos de Atos clínicos, são a Antecipação da certeza

precedida por um ato, a pressa, a conclusão e o fim antes do começo (corte). Semelhante aos

encontros dos discípulos com os mestres Zen, os analisantes nunca sabem a priori o tempo de

sua estadia, ou mesmo se sairão de tais encontros com uma resposta enigmática ou com algum

ato (ato de palavra) aparentemente sem sentido algum.

Sobre uma destas particularidades do ato da análise, o corte, Lacan diz (como já citado

anteriormente) que:

...não somos o único a ter feito a observação de que ele [o corte da sessão] se aproxima, em última instância, da técnica designada pelo nome de zen, e que é aplicada como meio de revelação do sujeito na ascese tradicional de certas escolas do Extremo Oriente. Sem chegar aos extremos a que é levada essa técnica, uma vez que eles seriam contrários a algumas limitações que a nossa se impõem, uma aplicação discreta de seu princípio na análise parece-nos muito mais admissível, na medida em que ela não comporta em si nenhum perigo de alienação do sujeito. Pois ela só rompe o discurso para parir a fala. (LACAN, 1966/ 1998, pp. 316-17).

O mestre Zen budista, por sua vez, é aquele que prepara o discípulo para a experiência

do Satori através de uma inusitada e enigmática atuação. Algumas escolas budistas acreditam

na iluminação súbita, outras a veem como um processo cumulativo, o fato é que para ambas

as perspectivas, o momento de iluminação é visto como uma passagem, como um Ato de

mudança.

Guimarães (2007, p. 79), em sua leitura do Ato, vai sublinhar o aspecto de mudança

do sujeito, concluindo que o ato ¨ produz o efeito de resgatar a presença do sujeito do desejo –

anulada no instante do ato – mas, depois dele, necessariamente renovada.(...). O sujeito após

um ato já não é o mesmo que antes dele.¨ (GUIMARÃES, 2007, p. 79).

Encontra-se aqui uma semelhança entre este ato de passagem amparado por diversos

atos de percurso e o ato analítico formulado por Lacan, enquanto suportado por um

dispositivo de longo e intenso trabalho, mas culminando em um momento de travessia da

fantasia, de ruptura, de destituição subjetiva.

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Nas entrevistas com o mestre Zen é que o discípulo se qualificava em direção ao

Satori, sendo somente qualificado como mestre aquele que já atravessou o processo45.

...a experiência Zen pode ser transmitida do mestre ao discípulo, o que tem ocorrido ao longo dos séculos fazendo-se uso de métodos especiais, próprios do Zen. Num resumo clássico de quatro linhas, o Zen é descrito como: “Uma transmissão especial fora das escrituras, Que não se baseia em palavras ou letras, Que aponta diretamente para a mente humana, Olhando dentro da natureza-própria do homem e alcançando o estado de Buda”. Essa técnica de “apontar diretamente” constitui o sabor especial do Zen. (CAPRA, 1983, p. 96).

Trazer o estatuto de ato, de falta de sentido, de corte, tem lugar na análise como via de

escapar da cadeia infinita e infernal (como disse Lacan) de pensamentos e significações

(LACAN, 1972-1973/2008, p. 123). Tal como o mestre Zen, o analista busca em sua

transmissão um saber fazer com a linguagem que resista à estrutura última de significação e

de sentido.

Frente à hesitação do discípulo, o mestre quebra o silêncio com qualquer coisa – um pontapé, um sarcasmo, um tapa, um berro – suspendendo a entrevista. Vemos então que a função do mestre é de corte, deixando cair por terra toda a significação. Assim, na técnica Zen, não se trata para o discípulo de compreender ou decifrar o Koan introduzido pelo mestre, pois este aponta para o sem sentido, que lança o sujeito na procura de uma resposta inédita. (MONTEIRO, 2012, p. 3).

Para haver um ato analítico é preciso que haja transferência (LACAN,1967-

1968/[inédito], p. 46) e que haja quebra de coordenadas simbólicas imaginadas. Também é

preciso apontar para o sem sentido como sugere esta dimensão de ato em uma análise, uma

vez que o ato tem lugar em um dizer, “pelo qual modifica o sujeito” (1967-1968/2003, p.

371). Assim, sua especificidade de ato não é o sentido apenas, mas a mudança. Seu efeito de

mudança é o que confere ao ato sua circularidade, sua não aposta a um sentido, a uma

interpretação, ainda que o ato conte com uma ponta de significante (LACAN,1967-

1968/[inédito], p. 80). Afinal, o significante como sabemos não é o significado, mas o não-

sentido.

Temos em vista que ambos os métodos privilegiam o singular, a presença da marca do

singular da resposta (aos questionamentos do mestre Zen ou do analista), o que evidencia uma

similaridade entre o ato do analista e a atuação do mestre Zen. A singularidade da resposta e o

45 Fica claro que esta, no entanto, é uma correlação nossa, a partir das provocações de Lacan, e que extrapolam o que este citou diretamente em seus seminários e escritos. Pensamos, no entanto, que tal discussão possa ser solo fértil para abordarmos a dimensão social do ato analítico, a partir de sua semelhança ao processo Zen, uma vez que ambos os processos privilegiam a transmissão de uma elaboração singular que pressupõe uma mudança subjetiva.

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efeito de mudança causado pelo ato(do analista e do mestre zen) são similaridades então no

Zen e na Psicanálise.

Guimarães (2007) estende a tese de Lacan acerca da passagem para o ato analítico,

uma vez que a passagem ao ato e o ato – no que pese a radical diferença que os separe – têm a

mesma estrutura.” (GUIMARÃES, 2007, p. 78). A tese de Lacan diz que “a passagem ao ato

é aquilo além do que o sujeito reencontra sua presença como renovada, mas nada mais”

(LACAN (1967-1968[inédito] apud GUIMARÃES, 2007, p. 77).

Ainda de acordo com a autora, “Os significantes que Lacan utiliza nesse enunciado –

‘presença’ e ‘renovada’ – referem-se aos efeitos produzidos pela passagem ao ato naquele que

está em causa aqui: o sujeito.” (GUIMARÃES, 2007, p. 78). Sendo assim, “A partir de um

corte que o ato instaura, torna-se irreversível o caráter de renovação e de transformação que

ele produz no sujeito.” (GUIMARÃES, 2007, p. 79).

É como efeito de mudança para o sujeito que se pode ler a dimensão do ato de

passagem. Se o ato de passagem na Psicanálise é o passe, a passagem a analista, no Zen é a

iluminação ou satori, sendo que em ambos há uma nova localização do sujeito, que se dá

tanto no âmbito subjetivo quanto no laço social. Desta feita, quais seriam os possíveis

diálogos e dissensões entre estes distintos momentos de passagem?

Um importante ponto de dissensão está na distância do ato analítico em relação ao ato

final no Zen. Na Psicanálise há a especificidade teórica do objeto a e a dimensão do ato como

falho na análise, dois pressupostos que dicotomizam com a experiência postulada pelo Zen

em seu alvo. Apesar de notarmos um diálogo quando consideramos o ato dos mestres Zen, o

qual sustenta a transmissão não-toda simbólica e o estatuto de mudança após o momento do

ato, o que é considerado como momento final no Zen demarca uma significativa diferença

para com a Psicanálise. O momento da iluminação (Satori) é tomado como uma garantia,

como um estado de completude, de ausência total e irreversível do sujeito enquanto desejante,

mas via de regra isso é totalmente avesso ao estatuto de falta de garantia do ato analítico, que

não promete ao sujeito uma suspensão de sua barra, de sua falta constituinte e logo de seu

estatuto de sujeito desejante. Antes disso, o ato possibilita que o sujeito possa inventar algo a

partir deste não sentido presente em cada pontuação do analista, em cada ato de uma análise.

Com esses apontamentos, podemos passar agora à próxima discussão acerca destas

disjunções entre duas experiências que preconizam o ato em sua transmissão, o Zen e a

Psicanálise, tratando do ato em seu momento de conclusão em ambas as experiências.

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4.3 O Ato de conclusão da experiência

“Todo mundo sabe que um exercício zen tem

alguma relação com a realização subjetiva de

um vazio, embora não se saiba bem o que isso

quer dizer. E nada forçamos ao admitirmos

que quem quer que veja essa figura dirá que

há algo como uma espécie de momento

culminante que deve ter relação com o vazio

mental que se trata de obter e que seria obtido

– esse momento singular, brusco, que sucede à

espera, que se realiza às vezes por uma

palavra, uma frase, uma jaculação, uma

careta, um pontapé na bunda. É certo que

essas espécies de palhaçadas ou clownerianas

só têm sentido por relação a um longo preparo

subjetivo.” (LACAN, 1965-1966/[inédito],

lição de 15/12/1965).

Discutiremos a seguir o Ato analítico dialogando com os comentários de Lacan e os

nossos sobre o Zen como feito até aqui, porém enfatizando o aspecto do ato em seu momento

de conclusão.

De acordo com Mandil (2003), não é a garantia da certeza lógica que leva a uma

conclusão, mas a própria conclusão é que leva a uma certeza em relação ao ato de conclusão –

como no sofisma dos 3 prisioneiros utilizado por Lacan para teorizar acerca do tempo lógico.

O ato, estando entre o enigma e a certeza, possibilita a singularidade da resposta. Na

Psicanálise a conclusão leva em conta a dimensão do objeto a, pois é uma certeza antecipada

logicamente por um ato, o qual leva em conta a dimensão do resto, do dejeto, da falta

constitutiva do sujeito e da sua ¨inigualdade¨ ao objeto. No Zen, observamos dimensões de ato

na transmissão e na sustentação do processo, admitindo a utilização da fala e das ações não

pautadas exclusivamente no sentido. Observamos também a dimensão de ato em seu

atravessamento final (Satori), que, no entanto, a despeito de defendermos sua dimensão de

ato, não se equipara ao ato enquanto especificamente analítico, uma vez que este necessita do

manejo da transferência e da sustentação do objeto a em seu percurso e conclusão.

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4.3.1 O ato bem sucedido e o desaparecimento do Sujeito ($)

Ainda que no momento do ato o sujeito desapareça (LACAN, 1967-1968 /[inédito], p.

58), ele sempre retorna com sua presença renovada após o ato. Isso localiza a dimensão do ato

analítico enquanto falho, uma vez que o sujeito retorna em sua divisão e em sua estrutura

decepada do objeto a. Desta forma, o ato totalmente bem sucedido, ou não-falho, para a

Psicanálise, seria o ato de aniquilamento do sujeito, como no suicídio, uma vez que este não

retornaria em sua divisão e em sua falta.

Lacan indica que o psicanalista é dividido até em seu ato; o ato analítico também é um

ato em falso (LACAN, 1967-1968/[inédito],, pp. 103-105), uma vez que não retira a barra do

sujeito e não o restitui do dejeto pequeno a. Para a Psicanálise, a dimensão de ato

completamente bem sucedido (não-falho) é o ato de suicídio. O suicídio seria o ato que não

colocaria o sujeito novamente em sua relação de incompletude, de querer saber, de

movimentar a cadeia de significantes. Desta forma, a Psicanálise preconiza o ato enquanto

falho em sua transmissão (MILLER, 2014, p. 8).

O Satori, ou iluminação, é considerado como o desfecho final no Zen, uma vez que

este visa o não-dualismo total do sujeito. Sendo assim, esse desfecho final pode ser

relacionado à dimensão de suicídio para o sujeito da Psicanálise se considerarmos que o

sujeito($)46 não retornaria deste momento de passagem.

Tanto no Zen quanto na Psicanálise temos a dimensão não-toda simbólica como o

desfecho em um processo, o fim que dá vez a um novo começo. No primeiro, o discípulo se

torna mestre ou iluminado; na segunda, o analisante se torna analista. São pontos de

semelhança. Porém percebemos que existe um impasse ao equipararmos o ato analítico a

qualquer outro dispositivo que apresente algumas dimensões possíveis de ato, uma vez posta a

dimensão do objeto a na Psicanálise e a estrutura específica de seu sujeito. Destacamos então

a singularidade do ato analítico em relação à sustentação do sujeito como dividido e a

impossibilidade de extinguir a dimensão do objeto a, da sua inigualdade do sujeito ao objeto.

46 Como elucidamos no segundo capítulo desta dissertação, o sujeito da Psicanálise é o sujeito enquanto dividido, e nesta dimensão que apontamos seu aniquilamento caso seja admitida a possibilidade de um ato que o torne não-dividido.

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4.3.2 A ética do Desejo

Podemos afirmar que tanto a Psicanálise quanto o Zen fazem uso da palavra de uma

maneira muito peculiar, não apostando na doação de significados, por exemplo, como visto

até aqui. Ao psicanalista muito interessam as polissemias do dito do analisante, mas também e

principalmente a impossibilidade de restringir sua fala ao âmbito do sentido. O psicanalista

em seu ato confere aos ditos do analisante outras dimensões quando pontua o que fica de fora

(do sentido). Isto é importante em uma análise, pois a partir dos furos no sentido o sujeito

pode se haver com a dimensão da falta, e logo do desejo como correlato de falta.

Como já abordado nos capítulos anteriores, a Psicanálise se ampara em um método

que valida o que está fora do sentido, isto fazendo parte da estratégia e tática do psicanalista,

direcionado por sua política e por sua ética.

O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser. Dizendo as coisas de outra maneira: sua ação sobre o paciente lhe escapa, juntamente com a ideia que possa fazer dela, quando ele não retoma seu começo naquilo pelo qual ela é possível, quando não retém o paradoxo do que ela tem de retalhada, para revisar no princípio a estrutura por onde qualquer ação intervém na

realidade. (LACAN, 1958/1998, p. 596).

Debater sobre a ética da Psicanálise, por sua vez, implica diretamente uma

consideração acerca da visão psicanalítica do desejo, uma vez que a posição ética segundo

Lacan é a de “não ceder de seu desejo” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 375), ou ainda, a de

pensar a “relação da ação com o desejo que a habita” (LACAN, 1959-1960 /2008, p. 366).

Por outro lado, o motor da análise do lado do psicanalista também seria seu desejo, desejo de

analista, o que implica explicitar que é um desejo esvaziado subjetivamente ao colocar entre

parênteses seu próprio desejo pessoal. Como Cottet (1982) esclarece:

(...) ao colocar entre parênteses seu próprio desejo pessoal, [é] que essa função do desejo, como proveniente do lugar do Outro, se manifestará. Em outros termos, quanto mais o analista calar seu desejo, mais será manifesta a alienação do desejo do paciente nesse lugar; o desejo do psicanalista, portanto, não é o desejo pessoal de um psicanalista. (COTTET, 1982, p.158).

A Psicanálise oferece o caminho da retificação subjetiva no início do tratamento

seguida da destituição subjetiva ao seu término, da responsabilização e do empoderamento do

sujeito perante um gozo que antes o assujeitava, levando-o a poder perguntar-se se quer o que

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deseja e ao final ser possível se destituir inclusive deste lugar para ocupar o lugar de analista

(que como vimos não extingue a dimensão desejante).

Evidentemente, no Zen, o direcionamento ético não se equipara ao “não ceder”

lacaniano. O Zen surge da ascese budista e não é possível dissociá-lo completamente desta, de

maneira que “abandonar o desejo” certamente lhe parece soar muito mais coerente.

Ainda que exista uma possível complicação em fazer uma explanação “apressada”

acerca do desejo apenas como o que deve ser abandonado para o Zen, alguns teóricos budistas

afirmam que, na verdade, apenas formas muito exacerbadas de desejo que trazem sofrimento

devem ser erradicadas (KYABGON, 2002, p. 20).

O fato é que colocar desta maneira – abandonar ou não abandonar, ceder ou não ceder

de seu desejo –, especificamente para o Zen traz um complicador, uma vez que o Zen não se

fia em dicotomias e contradições lógicas, mas antes disso admite e se legitima com

paradoxos, pois, como demarcado desde nosso terceiro capítulo, “O objetivo pragmático do

Zen é levar o praticante a uma experiência direta da vida em si. Eliminar todas as distinções

dualísticas como eu-você, verdadeiro-falso, sujeito-objeto, a fim de chegar a uma consciência

da vida não condicionada por palavras e conceitos.” (DOUBLEDAY; SCOTT, 1944/2000, p.

16).

Desta forma, a partir desta discussão, chegamos a um ponto importante de disjunção

entre o ato no Zen e o ato na Psicanálise, a saber: a possibilidade de no Zen se “eliminar todas

as distinções” e dicotomias, como citado acima47, o que de fato não ocorre no ato analítico

preconizado por Lacan, em que o sujeito continua dividido (LACAN, 1967-1968/[inédito], p.

105). Neste ponto há uma ruptura evidentemente, por detrás do que se fundamentam tais

métodos.

Marca-se então um limite entre a aproximação do método Zen e o método da

Psicanálise, a partir principalmente da especificidade do Ato analítico, como aquele que não

deixa de fora a dimensão do desejo, ou que não pretende situar o sujeito ao seu final como

não desejante tal qual o Budismo sugere.

Sabemos que a questão do desejo é crucial para a Psicanálise e também para o

Budismo, mas certamente não da mesma maneira, como afirmamos anteriormente. Se existe

uma especificidade da leitura do desejo para a Psicanálise, ela não pode deixar de fora a

dimensão do objeto a – como já trabalhamos em nosso segundo capítulo. Esta condição de

resto demarca a especificidade do ato analítico e o diferencia de qualquer outra modalidade de

47 Se assemelha esta posição, a uma queda da barra do sujeito (eis uma hipótese nossa)

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ato como transmissão. Tendo em vista a centralidade desta discussão, daremos

prosseguimento a alguns outros pontos interessantes de disjunção entre a ética da Psicanálise

e a do Zen, levando em conta a direção do desejo48.

4.3.3 O “não ceder” versus o “abandonar”

“Entramos no budismo. Vocês já sabem que a

ambição dele, os princípios do recurso

dogmático, assim como da prática de ascese

que se relaciona com estes, podem resumir-se

nesta formulação que nos interessa no que há

de mais sensível: o desejo é ilusão.” (LACAN,

1962-1963/2005, p. 245).

Enquanto a Psicanálise, segundo Lacan (1959-1960/2005, pp. 373-75), afirma ser

necessário “não ceder de seu desejo”, o desejo para o Budismo é comumente tomado por

ilusão fadada ao sofrimento, tendo aí um caráter negativo, algo que deve ser abandonado. Ou

seja, para o Zen, o posicionamento acerca do desejo não se equivale em primeira instância ao

psicanalítico. No Zen o desejo é tomado genericamente como ilusão (YOSHINORI, 2007),

apego ou estatificação do desejo, o que, por outro lado, poderia ser considerado como gozo

para a Psicanálise, ou um desejo “petrificado”; por outra via, a Psicanálise visa que o sujeito

possa decidir se “quer o que deseja” (BRUNO, 2011, p. 28).

O importante é elucidarmos que há de fato limites entre estas aproximações, pois a

noção de desejo como ilusão serve a Lacan até um certo ponto, isto é, para ilustrar o conteúdo

do objeto de desejo. Essas noções podem ser encontradas no Seminário X de Lacan; A

angústia (1962-1963/2005), e além disso, no seminário posterior, Os quatro conceitos

fundamentais da Psicanálise (1964/2008), onde o autor denomina o objeto de “objeto a”, mas

sem encerrar o seu entendimento de desejo como ilusão apenas. De fato, no referido texto, ele

entende a metonímia do desejo e a inconsistência de seus objetos sem, contudo, solicitar que

48 Tomaremos aqui o desejo na concepção psicanalítica, como sinônimo da falta constitutiva do sujeito, isto é, no que concerne à estrutura do próprio sujeito e à dimensão de sua divisão e de sua incompletude. Já para o analista, nesta posição (enquanto analista), seu desejo é um desejo esvaziado. Se esta dimensão de falta se instaura no desejo do analista, por exemplo, será em sua localização de falta-a-ser. Neste caso, este se coloca para bancar o objeto a para o analisante (COTTET, 1956).

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em uma análise estes sejam abandonados, como o Budismo o faz.

Outro ponto de disjunção importante é o de que, para a Psicanálise, a impossibilidade

de completude está dada ao sujeito que fala, o sujeito está barrado de encontrar sua

completude, a falta é constituinte, há divisão estrutural do sujeito frente aos objetos de seu

desejo. Além do mais, existe o objeto a, que não pode ser capturado pelo sujeito, mas apenas

contornado de acordo com o movimento da pulsão (LACAN, 1964/2008, p. 175). A presença

do a na cena é o custo do desaparecimento do sujeito, como acontece no instante do ato

(GUIMARÃES, 2007, p. 75). “Sujeito e objeto a estabelecem, entre si, uma relação de

alternância: quando um está presente, o outro se ausenta. Isso porque, recapitulando, o objeto

a só é causa de desejo através da falta que sua ausência instaura. (...)” (GUIMARÃES, 2007,

p. 76).

Poderíamos sofisticar ainda mais tal discussão lembrando que para o Zen a

completude seria o mesmo que a incompletude, haja vista seu ideal de não-dualidade. Outro

ponto importante é que seu ideal consiste em aceitar um aspecto fundamental de castração,

isto é, aceitar a morte. Um dos principais preceitos do Budismo envolve a aceitação da

finitude, da velhice, doença e morte (YOSHINORI, 2006, p. XII). Mas aprofundar esses

aspectos do pensamento budista nos levaria para uma discussão que não caberia no presente

trabalho, haja vista os objetivos desta pesquisa. A questão aqui é mesmo esse ideal, o Satori,

Iluminação ou esclarecimento (a nomenclatura vai depender da escola) é algo almejado no

Zen, é um fim; e a proposta da Psicanálise ao que nos parece é avessa a esse tipo de ideal.

Elencar assim, tão categoricamente, estes pontos de disjunção entre a Psicanálise e o

Zen, visa tão somente a corroborar com as afirmativas feitas inicialmente neste trabalho, de

que a Psicanálise se serve de outras áreas do saber sem com isso se confundir com elas, além

de ilustrar o fato de que ambas as experiências não se correlacionam (posto que pertencem

acima de tudo a áreas distintas). Desta feita, é interessante nos aprofundarmos sobre o que

poderia ter sido um aviso feito por Lacan ao falar sobre Zen na abertura de seu primeiro

seminário49 (como já citado anteriormente), e elencar algumas das diferenças entre ambos.

Isso nos conduzirá então a uma articulação entre o ato em uma transmissão que não a análise -

a propósito do Zen-, e o ato analítico, esclarecendo suas peculiaridades e possíveis distinções.

Desta feita, é interessante falarmos no próximo tópico sobre algumas ressalvas feitas

por Lacan e elencar outras diferenças entre alguns princípios do Zen e da Psicanálise. Isso nos

49 ¨Sem chegar aos extremos a que é levada essa técnica [do zen], uma vez que eles seriam contrários a algumas limitações que a nossa se impõe, uma aplicação discreta de seu princípio na análise parece-nos muito mais admissível¨ (LACAN, 1966/1998, pp. 316-17).

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permitirá então discutir, a propósito do Zen, uma noção de ato que se dá em uma transmissão

que não a da análise. Veremos com isso a própria noção de ato analítico, esclarecendo suas

peculiaridades e distinções para com o ato de transmissão do Zen Budismo."

4.3.4 A dimensão do objeto a(to) na conclusão da experiência analítica e o Satori no Zen

Se por um lado o discípulo de Zen conta com um norte, um ideal, que é por exemplo o

Satori ou chegar ao estado de Buda, por outro lado, no caso da Psicanálise não existe – ou

pelo menos não deveria existir – um ideal almejado, e o que se sabe sobre o que se torna no

final de uma análise parece muitas vezes um enigma, uma vez que culmina exatamente na

expressão de um resto que fica de fora, o objeto a.

Desta feita, esta passagem não pode ser toda simbolizada, já que “o fim da análise é, a

saber, a inigualdade do sujeito a toda subjetivação possível de sua realidade sexual e a

exigência de que, para que esta verdade apareça, o psicanalista, já seja a representação do que

mascara, obtura, tampona essa verdade, e que se chama o objeto a.” (LACAN, 1967-

1968/[inédito], p. 135).

O dispositivo do passe inventado por Lacan exclui a possibilidade de que outro que

não faça parte deste processo o possa desqualificar, ou mesmo o validar. Será que Lacan

entendia, tal qual os mestres Zen, que somente aquele que passa pela experiência é que pode

legitimá-la?

A psicanalista Collete Soler, a respeito do dispositivo do passe, vai dizer que o passe

tem um papel crucial para o sujeito que está no fim de sua análise, sendo um dispositivo que

destaca a divisão do sujeito e sua impossibilidade de se traduzir como inteiro, como Um. O

passe seria um dispositivo seguro onde “o passante vem testemunhar uma mudança”

(SOLER, 1995, p.17).

Dentro da condução da análise existe a dimensão do objeto a. O fim da análise, o

passe, deve levar em conta a dimensão do a, uma vez que este surge a partir do processo de

separação do sujeito secundário ao processo da alienação ao grande Outro, e resulta em uma

perda do sujeito e do Outro. E esta é uma perda de sentido ou de ser. O conceito de objeto a

pode ilustrar claramente como o sujeito se serve do simbólico, mas sempre apontando a falta,

o furo, o vazio. A dimensão do objeto a leva em conta o resto, o que restou do processo de

alienação e separação do sujeito, e sendo assim,

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O final da análise consiste na queda do sujeito suposto saber, e sua redução ao advento desse objeto “a”, como causa da divisão do sujeito, que vem ao seu lugar. Aquele que, fantasmaticamente, joga a partida com o psicanalisando como sujeito suposto saber, a saber, o analista, é aquele (o analista) que vem, ao término da análise, a não ser mais que este resto. Esse resto da coisa sabida que se chama o objeto “a” (...). (LACAN, 1967-1968 /[inédito], pp. 89-90).

Ou seja, o ato analítico enquanto tal leva em conta a dimensão do objeto, não apenas

em seu momento final, mas a condução do processo é enviesada por este resto. Neste aspecto

temos o ato analítico com toda a sua especificidade, a de levar em conta o objeto a, uma vez

que este (o objeto a) é impossível de ser eliminado, posto que já é em si o resto da operação

de inserção do sujeito na linguagem.

Uma ação, seja de palavra ou de gesto, que leve em conta o que fica de fora em sua

conclusão é uma ação50 que tem o tom de ato, e que instaura em si mesma a possibilidade de

enfrentar o sujeito em sua divisão, e de não concluir sem levar em conta o não-senso.

50 O que não necessariamente significa ação motora, ou motricidade. Lacan marca a diferença entre ato e motricidade logo no início de seu seminário sobre o Ato Analítico (LACAN, 1967-1968/[inédito], p. 6).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta dissertação, resumidamente, efetuamos o seguinte percurso: iniciamos com um

diálogo com o oriente via Lacan e Lévi-Strauss. Este, em sua temática, amparou nossa

articulação teórica entre a Psicanálise de Lacan e o Zen Budismo, uma vez que nestes

diálogos com o oriente apresentamos o interesse de Lacan principalmente sobre o Taoísmo,

dentre outros aspectos como a língua e a arte oriental. Também via Lévi-Strauss apresentamos

algumas facetas da cultura nipônica, elementos que influenciaram diretamente o

desenvolvimento do Zen Budismo. Desta forma, mesmo que não estivéssemos inicialmente

falando sobre o Zen nestes diálogos, já estávamos adentrando este tema indiretamente.

Tratamos em seguida do posicionamento da Psicanálise lacaniana em relação à noção de

sentido, posicionamento este de subversão do sentido. Da mesma maneira, no capítulo sobre o

Zen, abordamos o seu método em que é enfatizado o não-sentido. E assim articulamos, no

último capítulo desta dissertação, o método da Psicanálise e o método do Zen, privilegiando o

conceito de ato nestas correlações, e desta forma estabelecemos elos de similaridade e de

disjunção entre ambos partindo principalmente de menções de Lacan ao Zen.

A partir do exposto nesta dissertação, verifica-se então que a Psicanálise subverte a

lógica do sujeito cartesiano, e para formular o estatuto de sujeito não se equivale ao sujeito do

“Cogito” de Descartes. Da mesma maneira, o Zen não se interessa pelo sujeito apenas pela via

da consciência ou do pensamento, amparando-se em métodos que derrogam o sujeito do lugar

da certeza da razão e do Eu penso. Em ambas as situações (Psicanálise e Zen), trata-se de uma

desvalia do sujeito enquanto alocado no Eu, no Ego, no pensar ou no sentido.

A Psicanálise de Lacan, como vimos, também se interessa pela dimensão do vazio tal

qual o Taoísmo e o Zen. A construção da teoria lacaniana possui conceitos de difícil

localização simbólica, como o “objeto a” e o “Real”. Se de certa forma tais conceitos só se

formalizam posteriormente no ensino de Lacan – principalmente após seu seminário X, A

Angústia (1962-1963/2005) –, existe em seu ensino uma função significante que abarca o

vazio mesmo antes de tais formalizações conceituais. Existe desde seu início, um interesse da

Psicanálise sobre aquilo que fracassa no sentido. É desta forma, portanto, que entendemos sua

citação do Zen na abertura de seus seminários (já citado anteriormente), em seu seminário de

número 1, onde Lacan inicia o seu ensino fazendo alusão ao Zen:

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O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica Zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la. Essa forma de ensino é uma recusa de todo sistema. Descobre um pensamento em movimento – serve entretanto ao sistema, porque apresenta necessariamente uma face dogmática. O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele cada noção possui vida própria. É o que se chama precisamente a dialética. (LACAN, 1953-1954/1983, p. 9).

E após essa sua abertura, Lacan discorre sobre os Escritos técnicos de Freud, como ele

denomina alguns textos da obra freudiana, afirmando que toda sua obra não pode ser pensada

dissociada da técnica. “Em certo sentido Freud nunca cessou de falar da técnica. Só preciso

evocar perante vocês os Studien uber Hysterie, que não passam de uma longa exposição da

descoberta da técnica analítica” (LACAN, 1953-1954/1983, p. 17).

O fato de se servir do sentido e do eu, sem contudo se restringir ao sentido e ao eu,

mas abarcando o não-eu e o não-sentido, explicitam que a filosofia oriental, especificamente

o Zen, se serve do vazio e do não-dualismo, opondo-se à visão dualista de “ou um ou outro”.

E isto serve à Psicanálise enquanto inspiração metodológica, uma vez que a Psicanálise utiliza

a fala sem se restringir ao sentido e aborda o sujeito sem o resumir ao Eu penso.

A proposta aqui foi a de colocar ao lado deste não-dualismo Zen, o conceito de Ato

para a Psicanálise, enquanto se servindo de instâncias opostas do ser de modo a não se

excluírem, como o “Cogito” o fazia. Existe uma similitude entre o método Zen amparado no

não-dualismo e no vazio e o método da Psicanálise em sua transmissão. Porém existe também

uma diferença importante se pensarmos principalmente em seu desfecho final, na dimensão

do ato de conclusão destas experiências.

Vimos que dois principais métodos utilizados pelos mestres Zen são: o Koan e o

Mondo. Ambos visam ao enigma e assim como a Psicanálise, também rompem com a lógica

formal e dão espaço ao não-sentido. Estes dois métodos utilizados pelos mestres Zen

constavam de tiradas enigmáticas (o koan) e questionamentos conduzidos pelo mestre (o

mondo), a fim de impulsionar o Satori, a iluminação do discípulo, e também conferir seu atual

estado de compreensão (esclarecimento para o Zen).

Se interpretarmos o funcionamento destes métodos – o Koan e o Mondo – de acordo

com a psicanálise lacaniana, podemos dizer que operam de forma a instaurar uma separação,

uma escansão entre o significante e o significado. No caso, tratam-se de um afrontamento via

linguagem do discípulo pelo mestre, instauram a possibilidade de modificação subjetiva

diante de um processo de decifração enigmática, algo muito semelhante ao método

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psicanalítico, que visa a utilização da linguagem não circunscrita ao simbólico e ao sentido.

Segundo Lacan (1967-1968/[inédito], p.93), o ato diz algo, tem uma ponta

significante, “sua eficiência de ato nada tem a ver com a eficácia de um fazer” (p. 80), mas

não se instaura enquanto motricidade (p. 6). O ato segundo Lacan se “inscreve em um efeito

de linguagem”, mas que isso não é o suficiente para o especificar. Lacan ao enquadrar o ato

vai dizer que:

O efeito de linguagem em questão se dá em dois estágios. Ele supõe a própria Psicanálise, precisamente ela como efeito de linguagem. Em outros termos, ele só é definido pela realização da própria psicanálise. Mostramos que é necessário aqui redobrar a divisão, ou seja, que a psicanálise não poderia se instaurar sem um ato, sem o ato daquele que autoriza sua possibilidade, sem o ato do psicanalista, e que no interior desse ato da psicanálise inscreve-se a tarefa psicanalisante. (...). (LACAN,

1967-1968/[inédito], p. 145).

Se o ato se ampara na dimensão ética da análise é justamente por estar sustentando

esta experiência de divisão do sujeito e de seu resto, o objeto a. O ato analítico enquanto

suportando a transmissão da Psicanálise, se instaura enquanto método ainda que categorizá-lo

seja uma tarefa impossível – impossível, se formos contar com diretrizes de uma ação motora,

de um fazer ou a descrição de um saber antecedente a experiência ocorrida a partir do

avivamento do inconsciente em cada análise.

No Zen evidentemente não se trata da divisão do sujeito ou da sustentação de sua

dimensão ética na técnica como apontando para esta divisão. Mas, tal como na Psicanálise, a

transmissão da experiência Zen não se ampara pela via do sentido, como vimos, daí que é

possível articular dimensões de atos de sustentação nesta dimensão de transmissão Zen à

quebra de coordenadas estabelecida pelo analista em seu fazer, em seu ato de transmissão.

Ao falarmos de ato de conclusão, chega-se então novamente a uma dimensão

importante de disjunção entre o ato no Zen e o ato analítico, ou seja, aqui enquadrar-se-á a

especificidade do ato analítico como momento de passagem, como instaurando um fim na

experiência em discrepância ao ato como suportando a experiência. Também enquadramos a

disjunção em relação ao ato de fim no Zen, o Satori, e o ato analítico, uma vez que mesmo

após o passe (ato de finalização do processo analítico) o sujeito permanece barrado, dividido,

não sendo restituído do objeto pequeno a, e nem sendo tomado como parte de um todo ou de

um grande Outro não barrado (A). O Zen, por sua vez, preconiza o ato de fim ou de conclusão

como a ausência total de falta para o praticante, que se torna unificado, indiferenciado a todos

os fenômenos e a si próprio, chegando a um estado de não-discriminação, não-dualismo, se

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tornando não dividido em relação ao todo, e a si mesmo, sendo destituído da dimensão

desejante (YOSHINORI, 2007, p. 265).

Desta forma, estabelecemos elos de similaridade e disjunção acerca do método da

Psicanálise e o método Zen. A partir do conceito de Ato enfatizamos as homologias e

distanciamentos do ato de transmissão e a especificidade do ato de conclusão em ambos.

Se para o Zen, como dito anteriormente, visa-se que em sua conclusão de processo, ou

Satori, o discípulo chegue a um estado de indiferenciação, de totalidade, de iluminação e total

ausência de falta ou desejo; para a Psicanálise, o ato final de sua conclusão, o passe, não

restitui o sujeito de seu dejeto, pequeno a, nem retira a barra do sujeito perante sua falta, e

assim este momento de conclusão tem como especificidade ser o que qualifica o analisante a

ocupar o lugar de analista. Esta é sua diferença principal de ato em relação a qualquer outra

dimensão de ato puro e simples (GUIMARÃES, 2007, p.13), ou do que tratamos aqui do ato

enquanto transmissão.

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