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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ANDERSON FERREIRA O DISCURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES: TENSÕES E VALORES NA PRODUÇÃO DE SENTIDO MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ANDERSON FERREIRA

O DISCURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES: TENSÕES E

VALORES NA PRODUÇÃO DE SENTIDO

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ANDERSON FERREIRA

O DISCURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES: TENSÕES E

VALORES NA PRODUÇÃO DE SENTIDO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção do

título de MESTRE em Língua Portuguesa sob a

orientação do Professor Doutor Jarbas Vargas

Nascimento.

SÃO PAULO 2014

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BANCA EXAMINADORA

____________________________________

____________________________________

____________________________________

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"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!”

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...”

José Régio

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Aos meus.

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AGRADECIMENTOS

Ao excelente professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento pelas contribuições,

sugestões de leitura, revisões, novas perspectivas e liberdade oferecidas acerca do

tema e dos caminhos a seguir. Ao amigo Jarbas que em 2009 passou a existir para

mim e nunca mais deixou de me habitar por meio de sua generosidade, sinceridade,

inteligência arrebatou-me naquele curso de especialização e me incentivou a

retomar os Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa. A esse ser humano

maravilhoso o presente trabalho e eu devemos muito.

À minha companheira Júnia a quem devo muitos finais de semana, férias e feriados

pela sua compreensão, incentivo e, principalmente, por me proporcionar espaço

para o estudo. Por aquilo que passamos e ainda devemos passar juntos e por me

acompanhar nos estudos trilhando seu próprio caminho. E, nesse percurso, se não

sucumbi, foi por causa de seu espantoso acreditar. O tempo voa, amor, o tempo

voa!

Ao meu pai Ferreira que, se bem me lembro, nunca deixou escapar uma só palavra

negativa sobre o caminho do estudo, sempre me incentivou a estudar e escolher

minhas sendas, estamos caminhando juntos! À minha mãe Elza pelas incontáveis

vezes que me auxiliou a estudar, pelas inúmeras vezes que me incentivou e por tudo

que me legou. Aos meus irmãos Alexandre Ferreira e Adriana Ferreira que, por

serem tão diferentes de mim, outrossim, me construíram a mim mesmo.

À professora Doutora Ana Rosa Ferreira Dias pelos diálogos em aula e pelas

contribuições oferecidas a este trabalho, obrigado por me lembrar de que meu

próprio discurso não é transparente, às vezes, pensamos que aquilo que dissemos é

a mais pura verdade, mas essa impressão logo se esvai. Oxalá!

Ao professor Doutor Ernani Terra pela contribuição incisiva neste trabalho, sua

organização me deixou impressionado, o retorno de sua leitura me fez repensar não

só as questões conceituais, mas como elas podem ser sugeridas por uma sintaxe

mais clara e objetiva... não sei se consegui!

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Às professoras Doutoras Jeni S. Turazza e Regina Célia Plagliuchi da Silveira pelos

conhecimentos cedidos em duas oportunidades durante esse trabalho.

À coordenação, docentes e funcionários do Programa em Estudos Pós- Graduados

em Língua Portuguesa da PUC-SP pelo incentivo e auxílio constantes.

Aos companheiros do Grupo de Pesquisa Memória e Cultura na Língua Portuguesa

Escrita no Brasil pelas discussões e contribuições a este trabalho.

Às professoras Luciana Shinohara, Samara Belchior, Nilceia Paula Germin e Ana

Lúcia do Sol por não deixarem o cotidiano da prática escolar estancar os nossos

sonhos. À professora Jaqueline pelas aulas de inglês antes da proficiência. Ao

professor Rivaldo Mendes por me sinalizar, sem o saber, qual a postura de um

professor no convívio escolar, como ser justo sem ser permissivo, como ser

competente sem ser autoritário. Um dia eu chego lá! À professora Eliane Marta que

pela sua calma revela um ser em conflito e pelo seu conflito de ser humano eu

apreendi a mim mesmo dentro de mim, pois sua alma é irmã da minha.

Aos professores, professoras e alunos do Programa de Pós- Graduação em

Educação da Universidade Federal de São Paulo pelos diálogos, leituras e embates

na disciplina Cultura, Sociedade e Educação.

Aos professores, professoras, companheiros e companheiras do curso de Filosofia

da Universidade Federal de São Paulo. Eles me revelaram a verdade: a clareza ao

desculto é a procura do saber.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pelo

fomento a esta pesquisa.

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RESUMO

A presente pesquisa fundamenta-se nos estudos da Análise do Discurso francófona

e tem como tema o estudo da organização e do funcionamento do discurso na

Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Professores do Estado de São Paulo –

EFAP, produzido no âmbito da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo –

SEESP. Justifica-se o presente estudo a possibilidade de exame de como são

gerados os valores e as tensões no discurso de formação de professores oferecido

pela SEESP, já que os discursos circunscritos na Escola de Formação mitigam

questões essenciais para a promoção de uma educação de qualidade na atualidade,

como a violência nas escolas, a precarização do ensino público, a valorização

profissional, a autonomia da gestão escolar e a formação continuada de professores.

Nossa pesquisa visa a examinar, como práticas discursivas, os discursos que

engendram a formação de professores no âmbito institucional, buscando contribuir

para os estudos do discurso e da leitura interdiscursiva nos cursos de formação

docente. As categorias de análise que operacionalizamos nos revelam que o

discurso de formação de professores está arraigado a fatores econômicos e

políticos, às pedagogias hegemônicas e respondem mais facilmente a esses

embates, aparentemente, de âmbito escolar. A análise da relação interdiscursiva do

discurso da EFAP fez-nos observar valores e tensões que ele engendra, mas foi a

partir da constituição da cenografia e do ethos discursivo que pudemos vislumbrar

os mecanismos de funcionamento desse discurso.

Palavras-chave: Análise do Discurso; discurso de formação de professores;

formação docente; interdiscurso; cenografia; ethos discursivo.

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ABSTRACT

This research is based on studies of the francophone Discourse Analysis and theme

is the study of the organization and functioning of discourse in the School of

Development and Improvement of Teachers of São Paulo - SDIT, produced under

the Department of Education State of Sao Paulo - DESSP. Justified in the present

study the possibility of examining how the values and tensions in the discourse of

teacher education offered by DESSP are generated, since the circumscribed

speeches in Training School mitigate issues essential to the promotion of quality

education in nowadays, such as violence in schools, the precariousness of public

education, professional development, the autonomy of school management and

continuing education of teachers. Our research aims to examine how discursive

practices, discourses that produce teacher education at the institutional level,

seeking to contribute to the study of discourse and interdiscursive reading in teacher

training. The categories of analysis that operationalize reveal us that the discourse of

teacher education is rooted in economic and political factors , the hegemonic

pedagogies and respond more readily to these clashes , apparently the school

setting . The analysis of the relationship of speech interdiscursive SDIT made us

watch values and tensions it engenders , but it was from the constitution of the

scenography and the discursive ethos that we could see the working mechanisms of

this discourse .

Keywords: Discourse Analysis; discourse of teacher education; teacher training;

interdiscourse; scenography; discursive ethos

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................ 1

CAPÍTULO I – A FORMAÇÃO DE PROFESSORES COMO PRÁTICA DISCURSIVA

........................................................................................................................... 7

1.1. Cursos de formação de professores: duas questões gerais .................... 7

1.2. O discurso de formação de professores: a escola ideal e o ensino prático

........................................................................................................................ 9

1.3. Ensino a distância: o acesso democrático ao ensino superior ............... 12

1.4. O discurso de formação de professores: documentos oficiais e pesquisas

...................................................................................................................... 27

1.5. A Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores ................... 34

1.6. Pedagogias hegemônicas do século XXI e o lema “aprender a aprender”

...................................................................................................................... 38

CAPÍTULO II – A ANÁLISE DO DISCURSO: CONSTITUIÇÃO, LIMITES,

FRONTEIRAS E DISPOSITIVOS DE ANÁLISE .............................................. 47

2.1. Os atos fundadores e os procedimentos teórico-metodológicos ............ 47

2.2. Formações discursivas: contribuições de Foucault, Pêcheux e Maingueneau

...................................................................................................................... 52

2.3. Perspectivas da Análise do Discurso na atualidade ............................... 57

2.4. A noção de discurso: conceitos e fatos discursivos ............................... 66

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2.5. O primado do interdiscurso e um sistema de restrições semânticas globais

...................................................................................................................... 72

2.6. Cenas da enunciação ............................................................................ 82

2.7. O ethos discursivo .................................................................................. 87

CAPÍTULO III – O DISCURSO DA ESCOLA DE FORMAÇÃO: INTERDISCURSO,

CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO ......................................................... 97

3.1. Delimitação das amostras ..................................................................... 97

3.2. Três categorias de análise: interdiscurso, cenografia e ethos ............. 101

3.3. Mediação da aprendizagem: enunciador e metaenunciador ................ 105

3.4. A empatia: alteridade, ensinamentos e influências ............................. 137

3.5. A transmissão do conhecimento ou a socialização da prática ............ 147

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 156

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 162

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O discurso sobre a qualidade da educação brasileira continua sendo um tema

comum entre políticos, educadores e sociedade em geral. Todos, sem exceção, não

ignoram o fato de que a educação precisa de investimentos para avançar a

patamares nunca alcançados, em especial, a educação oferecida na escola pública.

Esses discursos tematicamente engendrados estão materializados por diversas

instâncias e atores sociais. Podemos encontrá-los, por exemplo, em leis que

prescrevem novas formas de regulamentação na educação, em campanhas

eleitorais com meticulosas soluções para o setor, em posicionamentos de centrais

sindicais, em pesquisas científicas e em políticas públicas em educação, nas mídias

em geral, na iniciativa privada, em cursos de formação inicial e continuada de

professores1 etc.

Nesse sentido, mediante as condições sócio-históricas de produção desses

discursos, observamos que as práticas discursivas em relação à qualidade na

educação estruturam o discurso nesse âmbito. De certa forma, a luta por uma

educação pública, laica e de qualidade são demandas que podem ser vistas na

história de modo separado, e, às vezes, excludentes. Ou seja, as práticas

discursivas atuais cujo tema aborda a necessidade de uma escola pública e de

qualidade, indicam que na sentença escola pública de qualidade o atributo qualidade

é controverso. De outro modo, hoje não se discute com tanta frequência as questões

de gratuidade e laicidade no âmbito educacional.

Houve, num passado recente da história da educação brasileira, discussões mais

profundas e árduas sobre a garantia do direito de uma escola pública, laica e de

qualidade. Podemos situar esse passado entre o final do século XIX e a primeira

metade do século XX. Nesse período, surgiram posicionamentos de educadores

brasileiros que não compactuavam com a situação da educação vigente naquele

momento. A educação ligada à ideia de instrução se polarizava entre poucas

escolas mantidas pelo governo e instituições particulares administradas por setores

1 Usaremos os termos professor no singular ou professores no plural, para situar toda classe docente, sabemos, pois, que a maioria dos profissionais em educação básica no Brasil é composta por professoras.

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religiosos. Logo, tanto na esfera pública, quanto na esfera particular, o ensino era

voltado às classes sociais mais abastadas.

Nesse contexto, as práticas discursivas ligadas às questões de gratuidade e

laicidade figuravam como atos de ruptura por se constituírem como núcleo de uma

nova mentalidade. Já a questão da qualidade na educação mantinha-se como um fio

condutor dessas práticas discursivas, ou seja, a discussão acerca da qualidade da

educação sempre esteve presente na concepção de uma escola laica e gratuita.

Atualmente, o tema da qualidade da educação se apresenta nos discursos da

educação como prioritário, ou seja, tende a se materializar como práticas discursivas

que visam a modificar um estado de não-qualidade para um estado de qualidade na

educação. Contudo, como o discurso é lugar de embate, podemos observar dois

posicionamentos basilares acerca do tema, um que aponta a ausência dessa

qualidade e outro que a considera em processo de construção.

O apontamento de ausência da qualidade na educação pode considerar as

condições mais gerais das causas como aspectos ligados à esfera social, ao sujeito

e sua identidade cultural. De outra forma, pode focalizar aspectos mais específicos e

particulares como as condições estruturais das escolas, a violência física e simbólica

no âmbito escolar, os programas e o currículo voltados às orientações didáticas das

práticas escolares e a formação docente. Assim, os pressupostos para uma

educação de qualidade constituem-se por diversas práticas discursivas no campo

educacional. Em nosso trabalho selecionamos aquelas que giram em torno do

discurso de formação inicial e continuada de professores.

A formação de professores é um tema presente em todo processo educativo, desde

a formulação de documentos oficiais, passando por campanhas eleitorais, pesquisas

acadêmicas até debates sobre a eficiência ou não do sistema educativo. Embora as

práticas discursivas acerca da formação de professores sejam constituídas por

diversas formações discursivas, os posicionamentos tendem a ser polarizados, ou

seja, separa-se a má formação da boa formação. Contudo, essa questão não é tão

simples assim, pois formações ideológicas que revelam tal polarização são

atravessadas por aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais. Logo, o

discurso de formação docente é constituído por relações interdiscursivas em

concorrência.

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Por isso, fizemos um recorte no contexto sócio-histórico de produção do discurso de

formação de professores. Consideramos três amostras, tomadas como discurso,

contidas no curso de formação de professores oferecido pela Secretaria de

Educação de Professores do Estado de São Paulo - SEESP.

Em 2009, num contexto de reformulação administrativa e pedagógica da educação

paulista, foi criada a Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores do

Estado de São Paulo, primeiramente como fase eliminatória de concurso público e

depois para subsidiar as atividades daquela secretaria na formação continuada de

professores atuantes na rede estadual de ensino. Nossas amostras, portanto, foram

selecionadas do conteúdo pedagógico do referido curso.

O discurso de formação de professores presente no âmbito da Escola de Formação

do governo do Estado de São Paulo dialoga com os discursos de formação

constituídos fora dessa instância. Por um lado, a produção de sentido dos discursos

da Escola de Formação gera tensões à medida que oculta temas presentes no

discurso de formação de professores oriundos de pesquisas acadêmicas e centrais

sindicais, por exemplo. Por outro, os discursos da Escola de Formação geram

valores à medida que pretendem reforçar um procedimento de ensino baseado na

mediação da aprendizagem. Nesse sentido, a formação de professores se constitui

menos por um conhecimento acadêmico (teórico e prático) do que pela adesão de

um método de prática educativa.

Nesse embate, pretendemos observar em que medida o interdiscurso, a construção

da cenografia, a constituição do ethos discursivo, bem como os mecanismos e as

regras de organização e funcionamento desse discurso engendram os efeitos de

sentido voltado à formação de professores da educação básica de São Paulo,

partindo da iniciativa da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em criar

em 5 de maio de 2009, por meio do Decreto nº 54.297, a Escola de Escola de

Formação de Aperfeiçoamento dos Professores do Estado de São Paulo. (doravante

EFAP)

Assim, são três os nossos objetivos, partindo do geral para os específicos.

Examinaremos a organização e o funcionamento do discurso presente na parte

pedagógica do curso de formação. Desta parte selecionamos apenas o módulo 2.

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Nesse módulo, separamos três amostras, duas do corpo da página e outra por meio

de link (hipertexto). Verificaremos a relação interdiscursiva no discurso da EFAP, isto

é, como se dá a relação multiforme do discurso da Escola com os discursos

‘concorrentes’ de formação inicial e continuada de professores. Enfim,

investigaremos a construção da cenografia e a constituição do ethos discursivo nas

amostras selecionadas.

A perspectiva enunciativa da Análise do Discurso de linha francesa, em especial,

aquela proposta por Maingueneau, fundamentará nossas análises no presente

trabalho. Para as questões aqui levantadas, mobilizaremos as categorias de

análises propostas por esse autor como o interdiscurso, a cenografia e o ethos

discursivo.

A hipótese do primado do interdiscurso orienta-nos a conceber o discurso como

atravessado pela discursividade, ou seja, sua constituição ocorre por sua relação

diversificada com outros discursos. Entendemos que o discurso de formação de

professores contido na EFAP está atravessado por discursos presentes em todas as

instâncias de representação educativa. Esse discurso tende, por um lado, a se

apropriar de alguns princípios teóricos e práticos de outros discursos a fim de

legitimar sua fala, e, por outro, pretende mitigar os aspectos políticos ou econômicos

que, porventura, estejam contemplados em discursos concorrentes de formação de

professores. Essa estratégia tem por objetivo deslocar o recurso político e

econômico da discussão acerca da formação docente e apontar como saída à plena

formação de mudanças centradas no sujeito.

Movemos as categorias de análise cenografia e ethos para verificar de que forma os

discursos da EFAP instauram a cena de enunciação para legitimar seu discurso e

como o enunciador constrói a imagem de si. Essas duas categorias oferecem-nos a

possibilidade de examinar dentro de um quadro interdiscursivo a maneira pela qual

ocorrem os processos de enlaçamento e incorporação do e pelo co-enunciador.

No caso da cenografia, é necessário que haja uma afinidade entre as dificuldades de

educar na atual sociedade e os benefícios do método de prática apresentado pela

EFAP. Essa fala, por sua vez, deve ser sustentada por uma voz, é esse sujeito que

implicará um ethos. Enredado por uma cenografia e incorporando um modo de se

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inscrever no mundo, o co-enunciador busca se identificar com as práticas educativas

que visam a torná-lo um professor-mediador.

Assim, o presente trabalho está organizado da seguinte forma:

No Capítulo I, A formação de professores como prática discursiva, discorremos

acerca das condições sócio-históricas de produção de forma mais ampla,

considerando o discurso de formação de professores presente num debate

generalizado e oriundo do senso-comum, enfatizando os posicionamentos em

relação à questão da qualidade na educação, à escola ideal e ao ensino prático.

Consideramos também, nesse debate, a problemática da formação docente na

modalidade a distância. De outro modo, ressaltamos as condições sócio-históricas

de produção do discurso ainda de forma geral, mas por meio de documentos oficiais

e pesquisas acerca da formação de professores, essa estratégia visa a considerar

as influências entre ambos os lugares sociais de onde se fala. De forma mais estrita,

ao selecionar nossas amostras no âmbito da Secretaria de Educação do Estado de

São Paulo. (doravante, SEESP), procuramos estabelecer as condições sócio-

históricas de produção que possibilitaram a criação da EFAP para averiguar como

as pedagogias hegemônicas são assimiladas por essa instância pedagógica. Nesse

contexto, verificamos a relação interdiscursiva que constitui o discurso da EFAP.

No Capítulo II, A Análise do Discurso: Constituição, Limites, Fronteiras e Dispositivos

de Análise, retomamos os atos fundadores e os procedimentos teórico-

metodológicos que tornaram possível a constituição da disciplina de Análise do

Discurso de linha francesa. (doravante, AD) Fizemos um breve itinerário para poder

constatar seu caráter interdisciplinar. A noção de formação discursiva posta em

relevo mostra o percurso dessa acepção no interior da AD, mais precisamente o

diálogo entre Foucault e Pêcheux. Essa aproximação promoveu constantes

reconfigurações do termo no processo de constituição da disciplina, nos quais

podemos situar as contribuições de Authier-Revuz e Maingueneau. Esse último

orienta-nos a retomar as perspectivas da AD na atualidade.

Nessa senda, discutimos a noção de discurso e os dispositivos teórico-

metodológicos no quadro da AD. Considerando que a análise do discurso vai além

da dimensão da palavra ou da frase e se concentra na organização global do texto,

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tomado aqui como discurso. É necessário não só delimitar as fronteiras da AD, mas

também adotar uma acepção de discurso para essa disciplina, cuja prioridade será

seu estatuto interdiscursivo, conforme procuramos expor ao abordar a questão.

Desse modo, nas partes que se seguem, examinamos as noções de interdiscurso e

seu sistema de restrições, bem como as noções de cena de enunciação e ethos

discursivo, essas três noções: interdiscurso, cenografia e ethos, tomaram como

categorias de análise nesse trabalho.

Assim, no Capítulo III, O Discurso da Escola de Formação: interdiscurso, cenografia

e ethos discursivo, a partir das três amostras selecionadas, acionamos as referidas

categorias para analisar a organização e o funcionamento do discurso da EFAP.

Estabelecemos para cada amostra uma temática presente no curso de formação. A

primeira amostra presentifica a temática da mediação da aprendizagem e do

professor mediador, a segunda e a terceira apresentam a temática do ofício do

professor, ressaltando a empatia e a função social docente, respectivamente. Cada

temática é discursivamente engendrada por uma cenografia e pela constituição de

um ethos, destacamos a possibilidade de atribuirmos um ethos a um enunciador e

um ethos a um metaenunciador. Por fim, fizemos uma síntese do capítulo com

intuito de expor de forma concisa os resultados das análises obtidas das amostras e

algumas considerações acerca do percurso realizado.

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CAPÍTULO I

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES COMO PRÁTICA DISCURSIVA

1.1. Cursos de formação de professores: duas questões gerais

Os professores de ensino básico são representados do ponto de vista das políticas

públicas em educação, como trabalhadores que, à revelia de sua própria

capacidade, necessitam de modo constante de formação continuada, porque devem

aprender ‘coisas novas’ abandonando sua prática que, diante da velocidade das

mudanças sociais e tecnológicas, é considerada, muitas vezes, ‘contraproducente’.

Na mesma medida, os professores são considerados profissionais capazes, ou têm

as habilidades e as competências necessárias para realizarem as demandas que as

políticas públicas em educação preconizam por meio de documentos oficiais e de

secretarias de educação. Esses profissionais, diferente de outros, são, muitas vezes,

a medida de uma crise escolar.

Assim, na educação, multiplicam-se os cursos de formação de professores que até

pouco tempo eram chamados de cursos de “reciclagem” e com eles surge um

movimento de produção e consumo abrangentes. Essa dinâmica faz parte da lógica

de reprodução do capital e beneficia tanto o setor público, quanto a iniciativa

privada. São exemplos desses bens de consumo material: revistas, livros, jogos

educacionais, mídia digital, cursos on-line, videoconferência, cursos de férias,

palestras, seminários, congressos, simpósios, cursos de formação inicial e

continuada etc. Esse movimento agrega aos sujeitos envolvidos um capital

simbólico2 que pode, em dado momento, converter-se em capital cultural e/ou

econômico. Em outras palavras, por meio de recursos e poderes adquiridos e seu

acúmulo, o sujeito ocupará em sua trajetória uma posição de privilégio de acordo

com uma hierarquia já instalada em cada sociedade.

2 Retiramos o conceito de capital simbólico de Pierre Bourdieu. A distinção: crítica social do julgamento. Tradução. Daniela Kern & Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre/ RS: ZOUK, 2007.

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Essa dinâmica, se bem refletida e criticada, tem sido contributiva para que não

fiquemos imersos em um ceticismo acerca da possibilidade de mudança do atual

cenário da educação pública de ensino básico. Dessa forma, o enfrentamento da

crise escolar pode estar na capacidade do professor de discernir, em meio a esse

movimento de produção e consumo, o que é, de fato, uma contribuição efetiva e o

que é modismo.

Não nos parece, contudo, que observar, examinar, analisar, refletir, discernir,

compreender, verbalizar todas as informações a que estamos submetidos seja algo

elementar. Também não nos parece simples refletir sobre uma prática profissional

que, ao passar do tempo, tende a ser corriqueira e, em muitos casos, cristalizada e

presa a procedimentos anacrônicos. A impressão é que sempre informações novas,

ideias recentes, pontos de vista não autorizados insistem em entrar na sala de aula

e abalar aqueles paradigmas sobre os quais estamos acostumados a encostar. A

reflexão nos tira do enigmático, desinstala-nos do momento presente. Todavia, o

ser humano possui uma tendência à acomodação (GHEDIN, 2008, p. 147) A escola

pode ser um campo fértil para a descoberta e o conhecimento, mas também pode

ser um lugar de acomodação, alienação e reprodução. Cabe ao professor

estabelecer as diferenças entre conhecimento e informação para realizar as

mudanças necessárias no âmbito educacional, já que,

Conhecer é mais do que obter informações. Ou seja, analisar,

organizar, identificar fontes, estabelecer as diferenças destas na

produção da informação, contextualizar, relacionar as informações e

a organização da sociedade, como são utilizadas para perpetuar a

desigualdade social. [...] Realizar o trabalho de análise crítica da

constituição da sociedade e seus valores é trabalho para [...] um

profissional preparado científica, técnica, tecnológica, pedagógica,

cultural e humanamente. (PIMENTA, 2008, p. 39)

Entretanto, as mudanças necessárias para alcançarmos uma educação de

qualidade não estão surgindo do espaço escolar. Professores, gestores, alunos e

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comunidade escolar em geral estão subjugados a uma nova institucionalização do

conhecimento por meio de metodologias unilaterais, conteúdos praticistas, provas,

metas, números, índices etc. Uma ferramenta importante para propagação e

manutenção desse sistema são os cursos de formação de professores, vendidos,

muitas vezes, como oportunidade para uma evolução profissional dentro de um

quadro social contemporâneo. Porém, a literatura existente sobre os cursos de

formação de professores está para além de uma contribuição imediatista, mas senão

entendida como ação teórica do pensamento que visa a problematizar a própria

prática educativa, pode ser recebida como contribuição falaciosa.

Nesse interstício, entre os cursos de formação e as pesquisas em formação de

professores, surgem estereótipos reproduzidos por aqueles que não estão nem de

um lado, nem de outro, mas que vivem da educação alheia. A maioria das práticas

discursivas acerca da formação docente é produzida nesse hiato entre os problemas

da prática escolar e a produção teórica. Os cursos de formação inicial e continuada

de professores têm sido o espaço discursivo em que esses conflitos e tensões se

configuram.

1.2. O discurso de formação de professores: a escola ideal e o ensino prático

Passamos agora a considerar duas opiniões que surgem como lugar-comum ao se

discutir a formação de professores. Ambas são recorrentes tanto nos cursos, como

nas pesquisas sobre formação inicial e continuada de professores. Nesta, de forma

crítica; naqueles, de forma superficial.

A primeira diz respeito ao fato de esses cursos de formação inicial e continuada de

professores permanecerem muito distantes da realidade escolar. A segunda é uma

velha dicotomia. Argumenta-se que as universidades privilegiam em seus cursos de

licenciatura e de pedagogia um ensino teórico em detrimento ao ensino prático. Daí

a utilidade dos cursos de formação continuada de professores. As questões são

pertinentes, mas, em grande medida, genéricas.

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Caso aceitemos que esses cursos de educação superior estejam desengajados da

perspectiva de apresentar aos professores/estudantes uma escola real,

precisaríamos definir, em primeiro lugar, em que se baseia tal concepção. Ou seja,

se está contido nesse pensamento o conceito de ideal, associando a essa noção

uma representação de escola, ou se há uma representação de escola ideal no

imaginário pedagógico. Em outras palavras, a escola ideal poderia ser representada

por um pequeno grupo de escolas, ou apenas uma, cujas práticas viriam a favorecer

resultados satisfatórios em provas externas?

À guisa de exemplo, podemos situar as escolas da rede pública do estado de São

Paulo. Considerando que a SEESP contém em sua rede 5.400 escolas em todas as

regiões do Estado e que os aspectos político, econômico, social, cultural, em cada

uma dessas escolas, são recebidos e organizados pelos sujeitos de formas

diferentes, seria ingênuo, no que tange apenas aos resultados, defender uma escola

ideal.

A outra questão diz respeito ao fato de que os professores da rede pública

conhecem a teoria, mas não conseguem aplicá-la em sala de aula. Faltaria, pois,

aos futuros professores da rede básica, a vivência em sala de aula, ou seja, a

experiência da gestão de aula para executar os conceitos outrora apreendidos.

Logo, segundo essa crença, os profissionais docentes dominariam as teorias de

suas áreas de saber, mas, por motivo desconhecido, não conseguiriam associá-las à

prática escolar. A ideia contida nesse ponto de vista é que a teoria significa algo

estanque, cristalizado, definitivo e que, dessa forma, poderia ser totalmente

apreendida a qualquer tempo, sem que houvesse rupturas e críticas a suas bases

de saber. Em última instância, esse pensamento reforça a ideia de que o

conhecimento é transmitido de modo linear por meio de uma teoria conclusiva.

Ora, ao contrário. A teoria não é totalizante, não aborda todas as dimensões do

objeto, é recortada por um ponto de vista, invadida pelas condições sócio-históricas

do leitor que produz efeitos de sentido diferentes de outros leitores e dos produzidos

pelo autor. A teoria também é atravessada por outras teorias e práticas com as

quais, ora comungam, ora divergem. Os teóricos, para usar o termo de Foucault

(2001), são instauradores de discursividade. Nesse sentido, sua escrita é ação

contínua, mesmo dentro de seu próprio recorte teórico. Eles tornam possível,

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segundo Foucault, a possibilidade de atribuir semelhanças e diferenças àquilo que

escreveram. São capazes, assim, de inaugurar campos de conhecimentos diversos

daqueles que eles atuam e dos quais foram fundadores. Logo, todo discurso teórico

é interdiscursivo.

As opiniões mais superficiais acerca da formação docente, embora explicitem um

juízo de valor, endossam o julgamento que parte significativa de gestores e

pedagogos fazem do fracasso do sistema. O professor é peça fundamental para o

sucesso do aluno e também é responsável por eventuais ou constantes fracassos.

Discursos nesse sentido são difundidos nos meios pedagógicos por aqueles que,

muitas vezes, estão longe das salas de aula, ou, o que é pior, longe das escolas.

Mesmo que alguns tenham uma consistente formação acadêmica na área de

educação, notam-se, nessa enunciação, cenas de falas3 que validam os estereótipos

em relação às práticas educativas. Dito de outra forma, eles substanciam aquilo que

tentam criticar, a saber, a dicotomia entre teoria e prática, tendo como pressuposto

que a teoria antecede à prática, quando na verdade é uma via de mão dupla.

Nessa perspectiva, as orientações ao ensino prático em cursos de formação de

professores se materializam, de certa forma, como um discurso lacunar, pouco

objetivo e que, de modo implícito, culpabiliza o profissional docente de todos os

males que há décadas a educação brasileira vem sofrendo. Portanto, como sugere

Martins (2010) pensando a formação de professores como formação de indivíduos,

planejada de forma intencional para a realização de uma prática social, nenhuma

formação deve ser analisada senão na complexa trama social da qual faz parte,

sendo assim, acrescenta a autora (2010, p. 14),

Ao assumirmos a referida prática como objeto de análise,

observando que não estamos nos referindo à “prática” de sujeitos

isolados, mas à prática do conjunto dos homens num dado momento

histórico, deparamos com uma tensão crucial: a contradição entre o

dever ser da referida formação e as possibilidades concretas para

sua realização. Portanto a materialização do referido dever ser não

3 Discutiremos a noção de cena de falas (cenografia) no segundo capítulo desse trabalho.

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pode prescindir na luta pela superação das condições que lhe

impõem obstáculos.

Uma formação conceituada pelas pedagogias hegemônicas4, e, de forma particular,

pela orientação formativa chamada de formação reflexiva, tende a tratar a teoria

como estanque, motivo pelo qual o professor “reflexivo” somente possuiria um

conhecimento adquirido na prática. Essas ideias gerais estão, na maior parte das

vezes, contidas nas bases dos cursos de formação que pretendem com dificuldades

apresentar uma proposta de associação entre teoria e prática dentro de uma

suposta escola ideal. Nesse ponto, a formação de professores é contestada por

certo tecnicismo. Ela vem orientada por um positivismo pragmático, o qual uma

razão técnica e um modelo epistemológico de conhecimento prático que negligencia

o papel da interpretação teórica na compreensão da realidade e na prática formativa

de professores. (GHEDIN, 2008, p. 129)

Quando esse modelo persiste em cursos de formação de professores na modalidade

a distância, a dificuldade da prática formativa é dobrada. Notemos que essa

modalidade de formação docente, com exceção do meio pelo qual se realiza, repete

os mesmos erros do ensino presencial. Esses cursos são, em sua maioria,

configurados para uma sociedade de massa, ou seja, espera-se nos cursos de

ensino a distância (doravante, EaD) o mesmo aluno, contudo, cada aluno recebe o

curso por condições materiais diferentes. Passemos, então, a discutir uma ideia

basilar na expansão do ensino a distância: o acesso democrático ao ensino superior.

1.3. Ensino a distância: o acesso democrático ao ensino superior

4 Denominam-se pedagogias hegemônicas aquelas orientações que se tornaram dominantes no cenário educacional brasileiro atual, ao contrário, denominam-se pedagogias contra-hegemônicas, aquelas que não conseguiram tornarem-se dominantes nesse cenário, Situam-se, nesse último caso, as pedagogias socialista, libertária, comunista, libertadora e histórico-crítica.

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Em decorrência da exigência de formação superior aos professores da educação

básica, o MEC desde 2004, induz uma política para expansão do EaD5. Essa

modalidade, no entanto, tem sido alvo de desconfiança, sobretudo, quanto a sua

qualidade. As críticas mais superficiais ao EaD fundam-se a partir de certa

impossibilidade que o professor ou futuro professor teria de conhecer as

“verdadeiras” circunstâncias de seu trabalho, o funcionamento do ambiente escolar,

a complexidade da prática docente, etc. Como se esses objetivos fossem centrais

nos tipos de ensino de licenciatura oferecidos na modalidade presencial. Nega-se a

modalidade a distância, também, por entender que ela poderia contribuir para o

sucateamento do ensino e reduzir de forma significativa as relações humanas na

interação dos sujeitos envolvidos, “o olho no olho das interações verbais”. Sem

contar os pocionamentos contrários a essa modalidade oriundos de setores sindicais

que argumentam que muitos empregos seriam perdidos nesse formato de ensino.

Pode ser que haja alguma assertiva nessas considerações, todavia, nesses

discursos, há uma preocupação tão centrada em hipóteses que se ignora a urgência

de uma discussão sobre a concepção de educação de qualidade. É consensual que

o EaD é mais vantajoso como oportunidade de negócio aos empresários do ramo,

do que como estratégia política de um grupo de ‘malfeitores’ que estariam

empenhados no sucateamento da educação.

Considerando tal alegação, pensamos ser mais produtivo deixar de lado às questões

de políticas públicas em educação que regulamentam o EaD no Brasil, para

focarmos nossas observações na concepção do EaD como mercadoria e consumo

em uma sociedade de massas. Esse enfoque tem por objetivo verificar os paradoxos

que a ideia de acesso democrático ao ensino superior instaura. Sendo que a

formação inicial e continuada de professores na modalidade a distância se configura

enquanto instrumento de educação de massas que, como tal, utiliza-se de uma

lógica semelhante a da indústria cultural em relação ao objeto de arte. Assim,

segundo Derriso (2010), a promessa de acesso democrático ao ensino superior

ocultaria uma visão pós-moderna de educação que tem como recursos imediatos o

5 Lei 9.394/96 Art. 62º. Por meio de estudo realizado em 2004 e retomado em relatório produzido pela Comissão Especial (CNE/CEB) que apontavam para escassez de professores de Ensino Médio nas disciplinas de Química, Física, Matemática e Biologia, visando cumprir a lei, o MEC estimulou e o governo federal financiou a ampliação da modalidade a distância.

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relativismo e o irracionalismo como forma de negação da objetividade do

conhecimento, a ponto de não poder reconhecer a realidade social para tentar

transformá-la de modo consciente.

A presença da modalidade de EaD ocorre, de modo institucional, desde pelo menos

o século XIX. E se antes era um importante recurso que não se podia ignorar devido

às novidades tecnológicas, hoje surge como necessário para sanar as demandas

existentes nas sociedades de massas. A ilusão do acesso democrático advém do

tipo de pensamento de que todos teriam acesso ao ensino superior de qualidade se

ele fosse ofertado na modalidade a distância. Esse anseio delineia a mesma lógica

da indústria cultural com o objeto de arte. Ou seja, a oferta do modelo a distância ao

ensino superior na intenção de democratizar, massifica a educação.

No Documento de Referência – Conae, Eixo IV, lê-se o seguinte:

Parece adequado pensar que toda a formação inicial deverá

preferencialmente se dar de forma presencial, inclusive aquelas

destinadas aos professores leigos que atuam nos anos finais do

ensino fundamental e no ensino médio, quanto aos professores de

educação infantil e anos iniciais do fundamental em exercício,

possuidores de formação em nível médio. Assim, a formação inicial

pode, de forma excepcional, ocorrer na modalidade de EaD para os

(as) profissionais da educação em exercício, onde não existam

cursos presenciais, cuja oferta deve ser desenvolvida sob rígida

regulamentação, acompanhamento e avaliação. (BRASIL, 2009, p.

65-6)

Se fôssemos críticos radicais dessa modalidade de ensino, poderíamos conjecturar

que não só é adequado uma formação inicial de professores na modalidade

presencial, como é essencial que assim o seja, já que se trata de defender uma

sólida formação ao profissional docente, da solidez que é requerida pela

complexidade das tarefas que o aguardam em sua atuação profissional. (MARTINS,

2010, p. 29).

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Não obstante, os cursos presenciais de formação inicial não garantem a solidez

desejada na formação do profissional docente, tampouco é de sua alçada oferecer

uma visão mínima daquilo que o aguarda em sua prática. De outra forma, uma

formação inicial para professores em exercício, ocorrer excepcionalmente na

modalidade a distância, onde não existam cursos presenciais, soa como uma

concessão retórica. Talvez, esteja nesta falácia o único fio a que se agarra o

argumento de acesso democrático.

Não é por acaso que em muitas regiões no Brasil inexiste a oferta de ensino

superior. Também não é “coisa do destino” que mais da metade dos brasileiros não

tem acesso à internet. Especialistas afirmam que vivemos num abismo digital. A

existência de regiões sem acesso à internet e sem oferta de ensino superior

presencial não é uma condição natural. Na verdade, esses locais não interessam

aos empresários do ramo. Ou seja, nessas paragens não há demanda, logo não há

lucro.

O acesso à internet se concentra nos grandes centros urbanos ou em regiões mais

povoadas como o litoral brasileiro. Nesses locais, está concentrado o maior número

de oportunidades, renda, emprego, lazer, cultura e universidades públicas e

privadas. Esse é o fio ideológico do acesso democrático ao ensino superior. A

democracia está a um click do usuário, desde que ele tenha acesso aos meios de

comunicação necessários. Assim, a democracia serve apenas aos não excluídos do

mundo digital. Logo, nesse sentido, o conceito de acesso democrático se

desestabiliza.

Em muitos países, o EaD institucionalizado coexiste com a modalidade presencial

desde o século XIX pelo menos. Em cada época e lugar, o que se modifica são os

meios utilizados por essa modalidade. Em parte desses países, a televisão foi

utilizada como meio de formação. Adorno (1995) já havia destacado o duplo

significado que o conceito de formação possui ante a televisão. Para ele, podemos

nos referir à televisão quanto aos fins pedagógicos, isto é, enquanto meio direto de

formação cultural, como a televisão educativa vinculada a universidades. Por outro

lado, a televisão pode exercer uma função de formação ou deformação como tal em

relação à consciência das pessoas. (ADORNO, 1995, p. 76)

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O ponto essencial dessa crítica levantada por Adorno acerca de um dos primeiros

meios de comunicação de massas usados para o EaD está ainda em discussão nos

dias atuais. A despeito disso, em 1990, a Europa implantou sua rede de EaD

baseada na declaração de Budapeste. Hoje podemos considerar que no mundo,

onde exista um aparato informacional e tecnológico mínimo, utiliza-se alguma forma

de EaD, formal e/ou não formal. No momento, é crescente o número de instituições

e empresas que desenvolvem programas de treinamento de recursos humanos,

através do ensino a distância. (ALVES, 2011, p. 87)

No Brasil, cursos por correspondência, pelo rádio e pela televisão foram utilizados

de modo amplo para “democratizar o acesso à educação”. Atualmente, esses meios

de formação e instrução ainda concorrem com as tecnologias de informação e

comunicação, embora a maioria deles seja não formal. No atual cenário, a oferta de

ensino formal está concentrada em instituições privadas que oferecem diversos

cursos nas mais variadas áreas do saber, utilizando também a internet como meio

de se realizar essa formação. Rádio, televisão, jornais e revistas são meios de

comunicação de massas, mas, ao contrário do que parece, nenhum deles pode ser

considerado democrático. A internet, por sua vez, pode ser considerada em si um

meio democrático, mas tem sido usada como um meio mais econômico de veicular

conteúdo de massas6.

Diante disso, os cursos de formação inicial e continuada de professores proliferaram

na modalidade a distância. Em licenciatura, por exemplo, são contempladas todas

as disciplinas tradicionais, incluindo pedagogia, gestão e supervisão escolar. Longe

de ser uma tendência, o EaD em cursos de formação de professores é uma

realidade. A formação de professores na modalidade presencial não foi capaz de

atender a demanda crescente pela busca do ensino superior. Tendo em vista a

exigência de formação docente regulamentada pela Lei 9394/96, os cursos

oferecidos cresceram vertiginosamente, sobretudo na área de pedagogia. Tanto

instituições públicas quanto instituições privadas aumentaram a oferta de vagas nos

6 Consideramos a internet democrática em relação ao seu conteúdo, ou seja, seus aspectos internos; diferente do rádio e da televisão que têm conteúdos pré-estabelecidos e orientados por um grupo restrito de pessoas, a internet, por sua vez, tem colaborações de diversos grupos sociais espalhados pelo mundo. Contudo, acerca da questão do acesso, o rádio e a televisão estão geograficamente melhor distribuídos pelo mundo, evidentemente porque foram introduzidos mais cedo nas sociedades.

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cursos de licenciatura, no entanto a oferta de vagas em instituições privadas tem

sido em maior proporção.

Em 2005, um decreto presidencial determinou que diplomas e certificados de cursos

presenciais e a distância deveriam ser equivalentes. Em 2006, foi criada a

Universidade Aberta do Brasil que teve por objetivo promover a formação inicial e

continuada a distância de professores de educação básica. O setor privado foi o que

mais evoluiu desde 2005. O entusiasmo do discurso do acesso democrático ao

ensino superior deve ser mais a consequência do enorme ganho econômico de uns,

do que o sentimento democrático de ampliação de diretos de outros.

Mas o sentimento de inclusão digital e a ilusão do acesso democrático persuadem a

tal ponto que esquecemos a omissão histórica das políticas públicas em educação.

Esquecemos que o “acesso democrático” implica uma meritocracia, a qual mascara

o princípio de igualdade de direitos sem representar, de fato, uma oportunidade de

formação de professores.

Passamos a não enxergar que a qualidade no ensino é um direito e não um produto

de mercado. A política neoliberal, conforme Chauí (2008), ao abandonar a garantia

dos direitos, transforma-os em serviços vendidos e comprados no comércio. Essa

mesma política incentiva e fomenta o EaD dando-lhe a vantagem ilusória da

ubiquidade, já que não dispõe de aparato técnico para acompanhar, supervisionar e

avaliar esses cursos. Democrático somente no discurso, essa forma de ensino

pressupõe uma sociedade de massas, logo, uma educação de massas.

Essas observações visam a modalizar afirmações como as que seguem:

A Educação a Distância pode ser considerada a mais democrática

das modalidades de educação, pois se utilizando de tecnologias de

informação e comunicação transpõe obstáculos à conquista do

conhecimento. Esta modalidade de educação vem ampliando sua

colaboração na ampliação da democratização do ensino e na

aquisição dos mais variados conhecimentos, principalmente por

esta se constituir em um instrumento capaz de atender um grande

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número de pessoas simultaneamente, chegar a indivíduos que

estão distantes dos locais onde são ministrados os ensinamentos

e/ou que não podem estudar em horários pré-estabelecidos. (ALVES,

2011, p. 90, ênfases nossas).

Não estamos tão certos que o EaD seja a mais democrática das modalidades de

educação. Talvez, precisaríamos revisar o conceito de democracia. Mas de início

podemos afirmar que uma sociedade democrática seria o elemento essencial para

uma educação democrática. No Brasil, estamos longe de ser uma sociedade

democrática, numa sociedade de classes como a nossa, nenhum acesso que se

constitui como mercadoria pode ser considerado democrático.

Outro ponto relevante diz respeito à conquista do conhecimento. É necessário

lembrar que o curso de formação de professores na modalidade a distância

padroniza sua plataforma de ensino e faz um recorte de um mundo possível e de um

aluno ideal. Assim, embora sejam diferentes as condições materiais em que cada

um recebe sua formação, espera-se o mesmo aluno. Isso também acontece de certa

forma nos cursos presenciais, já que, muitas vezes, a novidade nos cursos a

distância é a própria modalidade e não a metodologia. Em outras palavras, a maioria

dos cursos oferecidos a distância se apropriam do mesmo formato dos cursos

presenciais, logo o novo é a ‘modalidade’ e as novas formas de relação com espaço

e tempo no ambiente virtual. Nesses casos, o ‘conhecimento’ oferecido tende a ser

massificado. Democratizar o ensino não significa massificá-lo. Um meio capaz de

atender um grande número de pessoas simultaneamente parece mesmo tentador.

O EaD tende a seguir uma lógica análoga à que a indústria cultural impõe às obras

de arte. Como primeira regra, a indústria cultural divide os bens culturais pelo seu

valor de mercado, isto é, há os mais caros e os mais baratos. O EaD, por sua vez,

separa o ensino pelo status da profissão. Cursos de licenciatura e gestão, por

exemplo, são, relativamente, baratos. Nas propagandas desses cursos geralmente

aparecem enunciados que reforçam essa ideia, como Muitos acham que a

Faculdade é cara, mas as mensalidades cabem no bolso.

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A indústria cultural cria ainda, contrariando a primeira regra, a ilusão de que todos

podem ter acesso aos mesmos bens. O EaD cria a ilusão do acesso democrático. A

indústria cultural também inventa um espectador médio, o EaD espera um aluno

ideal. E, por último, a indústria cultural trata a cultura como lazer e entretenimento. O

EaD, nesse ponto, se afasta da lógica da indústria, nele a educação é vista como

uma oportunidade de trabalho, de sucesso e de ascensão. Daí advém o discurso do

trabalho em enunciados do tipo Quem trabalha o dia todo consegue estudar em

horários flexíveis ou Quem conquista um diploma pode se destacar no emprego7

Resta-nos tentar compreender qual a relação entre o discurso que materializa o EaD

como promotor de acesso democrático ao ensino superior e a educação. Devemos

observar se a ideia de acesso democrático se prolonga também a uma educação

democrática, ou está presente apenas no ato de consumo. No caso da formação

inicial e continuada de professores, pode-se verificar se a democratização do acesso

orienta-se para uma formação modeladora dos sujeitos, ou conserva a ideia de

transmissão de conhecimento, tal qual permanecerá com os alunos desses tutores

on-line, ou, ainda, se o acesso democrático visa à produção de uma consciência

verdadeira (ADORNO, 1995, p. 141). Para tanto, é necessário analisar as condições

sociais e materiais de produção dessa modalidade.

A primeira dificuldade que surge em caracterizar o acesso ao ensino superior como

democrático irrompe do contexto social e econômico do lugar de onde se fala. Num

país como o Brasil, em que mais da metade da população não tem acesso à

internet, onde a banda larga é a segunda mais cara do mundo e que apenas em

regiões com melhores indicadores econômicos e humanos os serviços de banda

larga têm penetração abrangente, qual seria a lógica da defesa da democratização

do acesso ao ensino superior? Alguns podem argumentar que esse acesso na

modalidade presencial é ainda mais excludente, com que concordamos. Mas o

ensino a distância não pode ser encarado como solução dessa exclusão histórica.

Em seus estudos sobre a televisão, Adorno (1995) procura analisar a tentativa de

alienação nas representações televisas entre os espectadores. Atravessada por uma

ideologia e tendo com premissa uma falsa consciência e ocultamento da realidade, a

7 Selecionamos esses enunciados em sites de busca acerca de universidades privadas que oferecem ensino a distância, a consulta foi feita entre julho e agosto de 2013.

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televisão impõe as pessoas um conjunto de valores como se fossem

dogmaticamente positivos (ADORNO, 1995, p.80). Ou seja, onde se deseja a

formação e a autonomia se tem a alienação e a dependência. Assim, a televisão e

outros veículos de comunicação de massa convertem-se pela sua simples existência

no único conteúdo da consciência, desviando as pessoas por meio da fartura daquilo

que deveria se constituir propriamente como seu objeto e sua propriedade.

(ADORNO, 1995, p.80).

O Estado, ao formalizar o EaD, utiliza a internet como um veículo de comunicação

de massas, embora ela não o seja. A falsa democratização do acesso ao ensino

superior se apresenta também nesse ponto. A construção do conteúdo, dos

objetivos e metodologias dos cursos de formação de professores desconsidera as

condições materiais de existência de cada sujeito. Além de jogar para ele a

responsabilidade pelo seu autoaperfeiçoamento e autoeducação, baseando-se no

conceito construtivista de ensino. Para negar o ato de ensinar destaca-se a defesa

da particularização e individualização do ensino como expressão de respeito às

singularidades do aluno, em relação às suas possibilidades cognitivas quanto em

relação à sua pertença cultural. (MARTINS, 2010, p. 21) O conceito de cultura de

massas, portanto, pode ser equiparado à ideia de educação de massas.

A condição pós-moderna que podemos designar como a condição cultural e social

determinada pela política neoliberal nos apresenta o significado contemporâneo do

que se habituou a chamar de indústria cultural. Seus meios de reverberação,

chamados veículos de comunicação de massas (dos quais, incluímos, com algumas

ressalvas, a internet), têm sido, muitas vezes, utilizados como instrumentos de

manutenção de certos valores dessa mesma política, mas mitigados em sua

violência pela ideia do acesso democrático.

Segundo Arendt (2011), a sociedade de massas não necessita de cultura, isto é, não

precisa de arte, contudo anseia por diversão e entretenimento. Dessa forma, os

produtos oferecidos pela indústria cultural são consumidos tais quais quaisquer

outros bens de consumo. Os produtos necessários à diversão servem ao processo

vital da sociedade, ainda que possam não ser tão necessários para sua vida como o

pão e a carne. (ARENDT, 2011, p. 257) É, como acrescenta a autora, o

preenchimento do tempo vago entre o trabalho e o sono.

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A condição pós-moderna nos oferece cada vez menos tempo livre8 e mais

diversidade de entretenimento. As pessoas, por meio de suas contas nas redes

sociais, acumulam tanto entretenimento materializado por meio de fotos, selfie e

‘curtidas’ que urge encontrarmos um tempo em nossa agenda para nos divertimos

antes que seja tarde. Todos nós precisamos de entretenimento, mesmo que seja

administrado. Faz parte do processo vital biológico, acrescenta Arendt (2011). De

acordo com a autora, a sociedade de massas não é uma ameaça à cultura, uma vez

que não precisa dela, basta-lhe a diversão e o entretenimento oferecidos pela

indústria cultural. Como coloca Arendt (2011, p. 259),

No que respeita à sobrevivência da cultura, decerto ela está menos

ameaçada por aqueles que preenchem o tempo livre com

entretenimentos do que com aqueles que o ocupam com fortuitas

artimanhas educacionais para melhorar sua posição social.

Mas, na medida em que precisa se reinventar, ou melhor, lançar novas mercadorias,

a indústria cultural revisita tudo aquilo que se materializou como objeto de cultura, de

forma a alterar suas “cores” para que na representação de um contexto, seja objeto

de consumo fácil. Logo, a cultura de massas passa a existir quando a sociedade de

massas se apodera dos objetos culturais (ARENDT, 2011, p. 260) O que pode

resultar dessa apropriação como fator de risco é a destruição da cultura para

produção de entretenimento. Assim, segundo Arendt (2011, p. 260),

Quando livros ou quadros em forma de reprodução são lançados no

mercado a baixo preço e atingem altas vendagens, isso não afeta a

natureza dos objetos em questão. Mas sua natureza é afetada

quando esses mesmos objetos são modificados – reescritos,

8 No contexto cultural em que Arendt se posiciona o capitalismo avança e a carga de trabalho sofre redução, sobrando mais tempo para o entretenimento, todavia pensamos que, no atual cenário brasileiro, pelo menos para maioria dos trabalhadores assalariados, esse tempo tende a ser reduzido, já que o tempo entre o sono e o trabalho não é ocupado apenas por entretenimento ou cultura, o transporte público precarizado e o caos no trânsito, por exemplo, ocupam boa parte desse tempo “vago”.

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condensados, resumidos (disgested), reduzidos a kitsch na

reprodução ou na adaptação para o cinema. Isso não significa que a

cultura se difunda para as massas, mas que a cultura é destruída

para produzir entretenimento. O resultado disso não é desintegração,

mas o empobrecimento [...].

Com fins diferentes, a educação de massas lança mão dos mesmos meios dos

quais a indústria cultural se utiliza, no entanto o objeto a ser empobrecido não é

aquele que, supostamente, advém da cultura, mas, sim, aquele oriundo do saber

historicamente constituído e sistematizado pela humanidade.

Enquanto o pensamento pós-moderno relativiza e irracionaliza a pertinência do

conhecimento científico, as pedagogias hegemônicas, centradas no lema “aprender

a aprender”, reforçam essa visão, recrudescendo a dosagem de uma metodologia

praticista, que põe em segundo plano a possibilidade de definição do objeto a ser

conhecido, já que, segundo essas pedagogias, existem saberes e conhecimentos

para designar as formas diferentes de abordar um objeto, bem como as diferentes

conclusões decorrentes das abordagens. (DERRISO, 2010, p. 59)

A materialização dessa forma de pensamento pode ser verificada nos discursos de

cursos de formação de professores na modalidade a distância. Embora essa

modalidade não inaugure esse modo de pensar, ela coloca essas orientações como

inevitável à medida que apresenta o conhecimento oferecido do ponto de vista de

sua funcionalidade interna e externa, ou seja, o conhecimento serve para satisfazer

uma necessidade do aluno, seja de ordem profissional, seja de ordem pessoal.

Assim, como acrescenta Arendt, a cultura é ameaçada quando todos os objetos e

coisas seculares, produzidas pelo presente e pelo passado, são tratados como

meras funções para o processo vital da sociedade. (ARENDT, 2011, p. 257) Na

mesma medida, podemos notar que a educação é ameaçada quando um

conhecimento tácito substitui o conhecimento constituído pela humanidade ao longo

de sua história. A oferta de democratização do acesso ao ensino superior, portanto,

não se apresenta tão encantadora se pensarmos que o produto oferecido por ela é

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descartável, já que essa oferta, condicionada às demandas da sociedade, não

procura entender ou transformar a realidade social que a gera.

A indústria cultural oferece diversão e entretenimento e se faz presente entre o

trabalho, o sono e (acrescentemos) a educação formal. Esta, muitas vezes

incapacitada de orientar uma consciência para além de sua própria finalidade de

mercado, cria alternativas paralelas para oferecer o que se costuma chamar de

oportunidades. O EaD surge como uma dessas opções, oferecendo flexibilidade de

tempo, comodidade, baixo preço, empregabilidade e status. Cria-se, assim, a ilusão

do acesso democrático. Os cursos de formação de professores a distância ainda

sustentam um paradoxo quase imperceptível. Seu conceito praticista, oriundo das

pedagogias hegemônicas, dispensa a prática, ou seja, desobriga-se de materializar

aquilo que propõe como modelo.

No Brasil, em que pesam as desigualdades sociais, a cultura e a educação são

massificadas para atender classes emergentes economicamente. A cultura de

massas produzirá diversão e entretenimento, a educação de massas saberes e

conhecimentos, no entanto colocando-se compatível como o trabalho, o sono, a

diversão e o status. No enunciado Quem trabalha o dia todo só consegue estudar

em horários flexíveis observamos a correlação entre a educação e o trabalho.

Umas das características mais importantes das sociedades de massas é a

incorporação do trabalho como processo vital biológico. (ARENDT, 2011, p. 258), já

que, na maioria das vezes, sem o trabalho não há diversão e entretenimento para

serem consumidos. Assim, o EaD debruça-se em uma configuração de sociedade

que tem o trabalho como parte desse processo biológico. Raciocínio, aliás, que faz

parte dos cursos de licenciatura oferecidos no período noturno e são para a maioria

dos estudantes que trabalham a única opção para acessar ao ensino superior, bem

como nos cursos de formação oferecidos para professores pelas secretarias de

educação. Contudo, o EaD, em especial, o oferecido por instituições particulares,

oferece mais do que apenas “acesso democrático”. Além de comodidade e

flexibilidade representadas pela internet, oferecem empregabilidade, ascensão social

e status.

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Atrelado à qualidade, à tecnologia e à tradição, o EaD se constrói a partir de

necessidades do sujeito pós-moderno. Todavia essa modalidade não dispensa o

conceito de sujeito integrado. Surge, pois, a partir de uma visão pós-moderna de

educação e sua forma e conteúdo se massificam independente das condições sócio-

histórica de produção e das práticas sociais dos indivíduos. A promessa de

ascensão social, portanto, implica a meritocracia, ocultando as desigualdades de

oportunidades e revelando uma visão neoliberal de educação.

Segundo Bourdieu (1991; 2007) a posição social e o poder que os sujeitos de cada

sociedade detêm está na articulação de sentidos que aspectos como poder

econômico e status social podem assumir a cada momento histórico. A estrutura

social se apresenta como um sistema hierarquizado de poder e privilégios. Estes

são determinados pelas relações materiais e/ou econômicas e pelas relações

simbólicas e/ou culturais entre os sujeitos de cada sociedade, de onde advêm os

recursos e poderes dos sujeitos sociais.

O conjunto desses capitais seria compreendido, conforme Setton (2013), mediante

um sistema de disposições de cultura nas suas dimensões material, simbólica e

cultural entre outras, denominado por Bourdieu de habitus. O capital cultural

(saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos) nos remete ao

capital econômico (renda, salários, imóveis) e ao capital simbólico (prestígio, status)

Essa constatação, porém, não aparece sem uma denúncia, pois contempla não só

os indivíduos detentores de uma posição de privilégio, mas também os indivíduos

que não a detêm.

Ora, a constatação de Bourdieu seria simplória se somente abordasse os aspectos

econômicos e materiais. Compreenderia apenas uma explicação neoliberalista de

acúmulo de capital, ou de meritocracia ou, ainda, de herança. Contudo, é nas

dimensões do capital cultural, do capital social e do capital simbólico que podemos

entender os mecanismos de reprodução das desigualdades sociais, visto que os

grupos privilegiados estão, na maioria dos casos, com a maior parte desses capitais

e são uma menor parte da sociedade.

Bourdieu (1991; 2007), ao aprofundar suas análises, acrescenta que a família e a

escola são responsáveis, inclusive, pela incorporação do gosto. A escola, em

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particular, tem contribuído, em seu histórico de tensões e conflitos, para manutenção

da hegemonia da cultura por ela autorizada; interferindo no gosto de manifestações

culturais que são vistas como não autorizadas, irrelevantes, de mau gosto,

destituídas esteticamente etc. Esses fenômenos reservaram à escola conflitos e

tensões de difícil resolução na pós-modernidade. Logo, o EaD não pretende apenas

oferecer capital cultural e econômico, mas também capital social e simbólico.

Pensando que essa oferta de educação tem como objetivo formar professores de

educação básica, fica mais “fácil” incutir nos sujeitos um conceito de educação

reverberado pelas pedagogias hegemônicas, segundo o qual o conhecimento

historicamente construído pela humanidade é secundarizado. Assim, passa-se a

adotar uma concepção liberal de humanização, para quem esse processo se efetiva

na centralidade do sujeito abstraído das circunstâncias concretas de sua existência.

(MARTINS, 2010, p. 15)

O que está em jogo no processo de formação de professores? Retomamos nesse

enunciado a posição adotada desde o início desta seção, que visa a pensar a

formação de professores como mercadoria e consumo, imersa em uma sociedade

administrada em que a indústria cultural instaura uma ordem de efemeridade. Nesse

sentido, o acesso à educação superior a distância não pode ser democrático.

A expressão “cabe no bolso” é uma velha conhecida das agências de propaganda

de produtos considerados populares, ou seja, destinados àqueles que não têm

grande poder aquisitivo. A ilusão de que todos podem ter acesso a esse produto

vem acompanhada de outras ilusões, como já mencionamos: empregabilidade,

ascensão profissional e social etc. A crítica não está na possibilidade de que todos

tenham acesso ao ensino superior, ou de que tenhamos inúmeras opções para

formação de professores. A crítica só é contundente, porque o “produto” é a

educação.

Pretendemos até agora evidenciar um pressuposto que muitos estudiosos

analisaram sobre a educação, trata-se de uma orientação pragmática do ensino.

Nossas observações acerca dos cursos de formação inicial e continuada a distância

não pretendem isolar essa modalidade como um mal necessário nos tempos

‘modernos’. Todos os argumentos políticos e institucionais que são construídos para

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justificar a multiplicação vertiginosa de ofertas do EaD na formação de professores,

dentre eles o do acesso democrático, não seriam necessários se a educação

andasse bem.

A relação que as novas tecnologias têm com a educação sempre foi conflituosa. A

televisão num passado recente recebeu suas merecidas críticas9. Mas observa-se,

no momento, que as críticas feitas aos cursos de EaD podem ser transportadas com

poucos ajustes aos cursos presenciais. Se formos, por exemplo, acusar os cursos

presenciais de antidemocráticos, devemos incluir em primeiro lugar as universidades

públicas no que tange ao ingresso e a permanência do estudante, depois as

universidades privadas no que respeita ao valor das mensalidades. Contudo, indo

um pouco mais além e sendo menos ingênuos, poderíamos conjecturar que a

inimiga da democracia é a qualidade do ensino oferecido na escola pública de

educação básica.

Por consequência, os cursos oferecidos nas modalidades a distância são ainda mais

antidemocráticos, já que além de serem pagos e exigirem o acesso à internet,

impõem, como os muitos cursos presenciais, um currículo estanque. A discussão

também poderia correr por essa imposição que seria uma forma de modelar as

pessoas ou lhes transmitir um conhecimento, ao contrário do que apregoa as

pedagogias hegemônicas no ensino básico de escola pública. E, nesse ponto,

lançamos uma discussão do supracitado pressuposto. É que antes de qualquer

debate sobre a metodologia, a qualidade e os meios de transmissão, é necessário

discutir o que Arendt (2011) chama de teoria moderna acerca da aprendizagem.

Também não esqueçamos que a educação, de modo geral, não está deslocada de

uma sociedade de massas. Ela nasce dessas sociedades. Ela advém da

necessidade “inculcar uma habilidade”. A educação, nessa sociedade de massas,

constitui-se por meio de um objetivo mediado pelo trabalho.

O ensino de formação inicial e continuada de professores na modalidade a distância

é apenas mais um formato de ensino. Atualmente, utilizado por quase todas as

instituições de ensino e secretarias de educação. Assim, as críticas atinentes a sua 9 Ver: ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. – Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1995.

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qualidade podem ser pertinentes se não focalizarem apenas o suporte baseado no

modelo, mas, sim, a metodologia, que, na maioria das vezes, é emprestada do

ensino presencial.

Dessa forma, o EaD não só reverbera toda antidemocracia das metodologias

baseadas na transmissão de conhecimento, como é capaz de espalhar uma teoria

de ensino praticista de forma abrangente. Os professores estão formando cidadãos

para essa sociedade de massas, porque estão sendo formados imersos na ilusão de

um conhecimento tácito e de um ceticismo ante ao esforço intelectual e reflexivo de

sua profissão e, em particular, de sua prática, assim, em vez de sujeitos –

professores e alunos – são objetos de ensino.

Tanto os cursos de formação presencial, como os cursos a distância são

regulamentados por Lei e fiscalizados pelo MEC. Desses cursos é formada grande

parte dos professores atuantes no ensino básico. Para eles, os documentos oficiais

e as pesquisas em formação docente têm se voltado para a questão da valorização

profissional, afirmando, como pressuposto, que a qualidade da educação só será

possível com a valorização docente. Passamos, então, para discussão dos

conteúdos desses discursos.

1.4. O discurso de formação de professores: documentos oficiais e pesquisas

Em 2007, o governo federal, por meio do Decreto nº 6094/2007, que dispõe sobre o

Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, decretou vinte oito diretrizes

em proveito da melhoria da qualidade da educação básica. Entre elas, seis são

destinadas a formação de professores, são elas:

XII - instituir programa próprio ou em regime de colaboração para

formação inicial e continuada de profissionais da educação;

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XIII - implantar plano de carreira, cargos e salários para os

profissionais da educação, privilegiando o mérito, a formação e a

avaliação do desempenho;

XIV - valorizar o mérito do trabalhador da educação, representado

pelo desempenho eficiente no trabalho, dedicação, assiduidade,

pontualidade, responsabilidade, realização de projetos e trabalhos

especializados, cursos de atualização e desenvolvimento

profissional;

XV - dar consequência ao período probatório, tornando o professor

efetivo estável após avaliação, de preferência externa ao sistema

educacional local;

XVI - envolver todos os professores na discussão e elaboração do

projeto político pedagógico, respeitadas as especificidades de cada

escola;

XVII - incorporar ao núcleo gestor da escola coordenadores

pedagógicos que acompanhem as dificuldades enfrentadas pelo

professor;

Do ponto do legislativo, as seis diretrizes elaboradas pelo supracitado decreto já

tinham sido lembradas em documentos anteriores. No âmbito do executivo, algumas

diretrizes (XIII, XV, XVI, XVII) já estão subentendidas na profissão docente. Não

podemos negar que em termos de proposta, diretrizes e leis a educação brasileira

vai muito bem. Atentamo-nos, pois, para o item XIII que visa a implantar plano de

carreira, cargos e salários para os profissionais da educação, privilegiando o mérito,

a formação e a avaliação do desempenho.

Essa diretriz, por um lado, nos permite entender que até 2007 não havia nenhum

plano de carreira, cargos e salários em tais termos. Por outro lado, o texto coloca

uma questão, qual seja: como atribuir a cargos e salários, a diretriz exposta no item

posterior? (item XIV). As questões como desempenho eficiente no trabalho,

dedicação, assiduidade, pontualidade, responsabilidade, realização de projetos e

trabalhos especializados relacionam-se à meritocracia e não às políticas salariais.

Dito de outra forma, o cargo e o salário do professor não podem estar relacionados à

assiduidade ou ao fazimento de projetos. A carreira docente deve ser atrativa desde

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o início e não por meio de labutas infinitas que só surtirão resultados no final da

carreira do docente.

Já o supracitado relatório (CNE/CEB), considerando a possibilidade de escassez de

professores num futuro próximo, apresenta uma série de propostas oriundas de

debates e pesquisas. A formação de professores aparece entre os temas

observados pelo relatório. Como esse relatório implica a possibilidade da escassez

de professores no ensino médio, seus resultados prestigiam a criação de uma

carreira mais atrativa. Desse modo, o relatório concluiu aquilo que todos já

imaginavam: a carreira docente no ensino básico está entre a menos procurada

pelos jovens. Os baixos salários de professores e as condições de trabalho estão

entre os principais motivos dessa rejeição. Aliás, esses dois temas são pouco

debatidos pelos governos quando se discute qualidade na educação, embora sejam

fatores essenciais para seu favorecimento.

Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização

das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), o Brasil é um dos

países em que os professores ganham menos. As consequências apontadas pelo

estudo dizem respeito à baixa atração que a carreira exerce sobre os mais jovens.

Além disso, uma questão que nos parece essencial trata da elevação do

desempenho e da promoção do professor em sua carreira profissional.

Esses temas estão relacionados à possibilidade de termos uma educação de

qualidade e refletem de forma direta nos cursos de formação de professores, visto

que eles foram criados, num primeiro momento, em uma perspectiva de resolução

de crise. Em última instância, quanto mais a qualidade na educação é almejada,

mais se multiplicam os cursos ‘rápidos’ de formação de professores, seja por

iniciativa pública, seja por iniciativa privada.

Logo, para a resolução das possíveis crises, o Estado lança mão de dispositivos

para seu controle e superação que percorrem por algumas bases estruturais outrora

fragilizadas, reconfigurando e fortalecendo essas bases num sentido de pensar a

formação de professores dentro de uma política macro de educação, como aponta o

Plano Nacional de Educação (PNE, 2001-2010),

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A melhoria da qualidade do ensino, que é um dos objetivos centrais

do Plano Nacional de Educação, somente poderá ser alcançada se

for promovida, ao mesmo tempo, a valorização do magistério. Sem

esta, ficam baldados quaisquer esforços para alcançar as metas

estabelecidas em cada um dos níveis e modalidades do ensino. Essa

valorização só pode ser obtida por meio de uma política global de

magistério, a qual implica, simultaneamente,

A formação profissional inicial;

As condições de trabalho, salário e carreira;

A formação continuada.

No excerto, revela-se que a valorização do magistério está ligada de modo

intrínseco a possibilidade de uma educação pública de qualidade e a questão da

valorização docente é condição para essa qualidade. De outra forma, o não-dito no

discurso é que ainda nem a valorização, nem a qualidade da educação são

realidades presentes. De forma que, segundo o exposto, enquanto o profissional

docente não for bem formado, não tiver boas condições de trabalho, não for bem

remunerado e não tiver um plano de carreira claro e objetivo a qualidade na

educação não se efetivará. Assim, como o PNE 2001-2010 predestinou, ficamos

“baldados” da tão desejada melhoria da qualidade da educação, porque não houve

uma mudança significativa, nem macro, nem micro no que tange à valorização no

quadro do magistério nas últimas décadas.

Enquanto o PNE anunciava em cumprir a meta do piso salarial e plano de carreira já

em 2001, somente em 2008 por meio da lei 11.738/2008 o piso foi estabelecido, mas

em alguns estados o piso somente se tornou uma realidade em 2009. Um novo PNE

foi lançado para o decênio 2011-2020, agora com vinte metas e suas respectivas

estratégias. As metas 17 e 18 tratam de salário e plano de carreira, respectivamente,

Meta 17: Valorizar o magistério público da educação básica a fim de

aproximar o rendimento médio do profissional do magistério com

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mais de onze anos de escolaridade do rendimento médio dos demais

profissionais com escolaridade equivalente.

Meta 18: Assegurar, no prazo de dois anos, a existência de planos

de carreira para os profissionais do magistério em todos os sistemas

de ensino.

A meta 17 visa a aproximar o rendimento do professor com mais de onze anos de

escolaridade com os dos demais profissionais. Quais profissionais? O que seria

aproximar? De quais valores estamos falando? Essas duas metas já figuravam no

PNE 2001-2010, bem como na LDB/1996, assim como em quase todos os

documentos oficiais. Nota-se que esses documentos citam o fator salarial como

prioridade, mas a resolução desse problema está longe de ser resolvida e esbarra,

segundo os próprios governantes, quase sempre em fatores econômicos, logo não

pode ser uma prioridade10.

Cabe lembrar que a construção da imagem de um professor ideal implica, no

imaginário de muitos, um bom professor, digno de receber um salário justo. Todavia,

ao se lançar um olhar menos leigo sobre essas representações sociais do professor,

notaremos que, se um sujeito empírico tentasse ser aquele sujeito representado pela

literatura pedagógica de práticas de ensino, teria como resultado um profissional

negligente com sua própria carreira, com sua família e com sua saúde.

Alguns argumentam que somente aumentar o salário não resolveria o problema da

qualidade na educação, como afirma o professor Eric Hanushek da Universidade de

Stanford nos Estados Unidos, estaríamos melhor (sic) se nos livrássemos dos

professores particularmente ruins11. O problema está em sabermos o que seria um

professor ruim e um “bom professor”.

Connell (2012) citando um estudo de Grace (1978, apud. Connell, 2012) questiona a

definição de “bom professor” e do que ela resulta. Em sua pesquisa, Connell

entrevistou professores de regiões deterioradas de Londres. Esses docentes haviam

10 Ver: FERNANDES, Maria Dilnéia Espíndola; GOUVEIA, Andrea Barbosa; BENINI, Élcio Gustavo. Remuneração de professores no Brasil: um olhar a partir da Relação Anual de Informações Sociais. (RAIS) - Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 339-356, abr./jun. 2012.

11 HANUSHEK, Eric. É preciso demitir maus profissionais. O Estado de São Paulo. 24 de junho de 2009.

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sido indicados pelos diretores como exemplo de bons professores. Aplicando as

metodologias de Grace, Connell constatou que esses professores viviam em estado

constante de desgaste físico e emocional, exauridos pelo esforço de reagir as

infindáveis demandas da escola para que se envolvessem plenamente (CONNELL,

2012, p. 173). Nessa senda, acrescenta o autor,

Que sentido tem a existência de um modelo de “bom professor” que

causa a autodestruição dos bons docentes? Esse é um dos riscos

ocultos por trás da pressão sobre os professores (também nas

universidades) para que sejam “empreendedores”, enfrentem

“desafios” contínuos, produzam mais com menos recursos, para que

se envolvam numa interminável competição a fim de progredir na

carreira. O bom ensino tem de ser sustentável e isso só pode ser

planejado se considerarmos o ensino como um processo de trabalho

exequível.

Logo, essa imagem de professor que muitos gestores e pesquisadores incorporam

(ao se referirem a ações emergenciais e a práticas exemplares) não condiz com o

profissional atuante, seja porque é mal formado, seja porque é resistente a

mudanças. Observamos essas tensões, sobretudo, em cursos de formação

vinculados às secretarias de educação. Segundo outra pesquisa recente, podemos

observar um novo quadro da atual situação da educação no Brasil.

Entre os estudantes de diversas licenciaturas que fizeram o ENADE de 2005, cerca

de 50% deles declararam possuir renda familiar entre 3 a 10 salários mínimos, 40%

declararam estar entre 0 a 3 salários mínimos, ou seja, quase a metade. Segundo

Barretto (2009), esse dado indica que uma quantidade significativa desses docentes

vive em condição de pobreza.

Em matéria recente do jornal O Estado de São Paulo, levantamentos com chancela

da ONU revelam que um professor de São Paulo tem rendimento médio anual

equivalente a US$ 10, 6 mil, ou seja, 10% do que ganha um docente suíço no

mesmo período, por exemplo. Ademais, a pesquisa, confirmando os estudos da OIT

e da UNESCO, aponta que a renda do professor brasileiro é menor que a média dos

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trabalhadores do país12. Outro dado do ENADE 2005 diz respeito à escolaridade dos

pais desses estudantes de licenciatura. Poucos dizem possuir pais com nível

superior, a maioria possui pais com nível médio incompleto ou ensino fundamental, o

que revela que esses estudantes, em muitos casos, são os primeiros da família a

acessar o ensino superior.

Nesse sentido, se as pesquisas apontam uma discrepância entre as escolas

referente às condições materiais recebidas, parece um despropósito falar que falta

aos cursos de formação inicial e continuada de professores uma relação direta com

uma escola real. Também, a dicotomia sustentada entre teoria e prática nos cursos

de formação de professores está calcada num modelo retrógrado de escola.

Observamos, por meio dos documentos oficiais e pesquisas sobre o tema, que se

trata de um problema muito mais complexo.

Na maior parte das decisões que envolvem a educação e a carreira docente, os

professores ficam à margem, não são escritores de suas práticas e desconsideram

as decisões pedagógicas e curriculares que lhes são propostas, mesmo que elas

sejam bem elaboradas e realistas. Como consequência, para Ghedin (2009), tais

orientações não se efetivam, não geram efeitos na sociedade.

Como já apontara o Documento de Referência para Conferência Nacional da

Educação (CONAE) que foi elaborado pela Comissão Nacional Organizadora desse

mesmo órgão, há uma especial atenção, pelo menos nos discursos oficiais, à

formação de professores. Citamos o próprio texto de abertura do referido

documento que consta no Eixo IV – Formação e Valorização dos Profissionais da

Educação:

No contexto de um Sistema Nacional Articulado de Educação e no

campo das políticas educacionais, a formação, o desenvolvimento

profissional e a valorização dos trabalhadores da educação sempre

estiveram de alguma forma presentes na agenda de discussão.

12 CHADE, Jamil. Professor do ensino fundamental no país é um dos mais mal pagos do mundo. O Estado de São Paulo 04 de outubro de 2012. Ver: www.estadao.com.br (consultado em 10 de outubro de 2012).

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Mas, possivelmente, em nenhum outro momento histórico tenham

merecido tamanha ênfase, por parte de diferentes agentes públicos

e privados, instituições, organismos nacionais, internacionais e

multilaterais, como nas últimas décadas, reconhecendo o

protagonismo dos profissionais da educação no sistema

educacional. (Brasil, 2010, p. 59, ênfases nossas)

As supracitadas ênfases devem ser consideradas somente na perspectiva discursiva

por meio de documentos e pesquisas nesse âmbito. Na prática, as discussões têm

sido reverberadas em Encontros, Seminários, Colóquios, Conferências sobre

Educação, entretanto com pouca penetração nas políticas públicas em educação,

principalmente, em esferas estaduais e municipais.

De outro lado, tal protagonismo docente considerado no documento, existe de modo

bem modesto nas redes de ensino público. Concordamos que nos últimos vinte anos

e a partir da LDB/ 1996 avançamos em alguns pontos, inclusive, no que se refere às

políticas de formação de professores. Mas tais avanços não puderam superar na

prática os entraves entre as formulações de documentos e a execução efetiva do

proposto. Tanto no âmbito federal, como nos âmbitos estadual e municipal. Existem

metas a se cumprir com datas preestabelecidas.

1.5. A Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores

Em 15 de outubro de 2011, o governo o estado de São Paulo lançou o programa

Educação – Compromisso de São Paulo visando a nortear as ações da SEESP.

Entre os objetivos do programa figurava a valorização da carreira do magistério,

explicitamente, convidativa aos mais jovens. Em se tratando de São Paulo, o projeto

é ambicioso, pois pretende até 2030 colocar a educação desse estado entre as mais

‘avançadas do mundo’.

Segundo a SEESP, a realização do programa somente foi possível graças aos

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investimentos realizados em gestões anteriores. Esses investimentos, conforme a

SEESP, foram efetivos para superar alguns desafios como a universalização do

ensino fundamental, o combate à evasão, a grande ampliação da oferta do ensino

médio, a implantação de um novo currículo, o desenvolvimento de materiais de

apoio a professores e alunos, o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do

Estado de São Paulo (SARESP), a implantação da progressão por mérito e do

bônus por desempenho e, por fim, o interesse de nosso estudo, a criação da EFAP.

De fato, o desafio de universalizar o ensino fundamental, embora não concluído,

está superado. Já a democratização do ensino médio está em curso. Contudo, tais

ações não só dizem respeito às ‘gestões anteriores’, mas ao movimento mais amplo

iniciado na própria Constituição de 1988. Logo, trata-se de ações de âmbito

nacional.

Lima (2011) ressalta que o artigo 208 da Constituição vigente enuncia seu texto sob

a perspectiva de que o cidadão possa pleitear na justiça o direito à educação

gratuita caso o Estado se omita. Fica claro pelo inciso I do artigo 208 que o Estado

deve assegurar a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino fundamental e sua

oferta. Tal exigência, segundo o autor, centralizou a política educacional à época da

promulgação da Constituição na universalização do ensino fundamental.

Ainda na redação da Carta Magna, ficou definido pelo artigo 60 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que, no primeiro decênio seria

aplicado cinquenta por cento dos recursos já vinculados à educação (Art. 212), para

não só universalizar o ensino fundamental, mas também para erradicar o

analfabetismo.

Lima (2011) ainda acrescenta que pela Emenda Constitucional nº 14 de 1996, que

alterou a redação do artigo 60, foi instituído o Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef)

com intuito de universalizar o ensino fundamental. Além disso, o primeiro PNE –

decênio 2001-2010 - estabeleceu como meta a partir de sua vigência o prazo de

cinco anos para universalização do ensino fundamental. Portanto, se o desafio de

universalizar o ensino fundamental está superado no estado de São Paulo, isso não

se deve apenas a gestões anteriores do atual governo e, sim, a um movimento mais

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amplo em nível nacional, iniciado a partir da Constituição de 1988.

Quanto à democratização do ensino médio, Lima (2011, p. 282) acrescenta:

O número de matrículas no ensino médio, etapa da educação básica

subsequente ao ensino fundamental, teve um considerável e inédito

avanço nas duas últimas décadas, em que pese o processo de

estagnação observado desde 2005. Entretanto, pouco mais da

metade dos indivíduos de 15 a 17 anos encontram-se matriculados

nas redes de ensino médio e aproximadamente 15% sequer estão

matriculados no sistema de ensino. É nesse cenário que a edição da

Emenda Constitucional nº 59/2009, que consagrou o ensino médio

como direito público subjetivo e a progressiva universalidade de seu

atendimento até o ano de 2016, impõe a retomada do crescimento

das matrículas e a consequente melhoria dos indicadores oficiais de

escolarização e matrícula. A demanda por atendimento é grande e o

prazo é curto. Democratizar o acesso é, pois, o desafio.

Portanto, tanto a universalização do ensino fundamental como a democratização do

ensino médio e acrescentamos o combate à evasão, são ações, embora conjuntas a

estados e municípios, de escala nacional. Assim, dos desafios anunciados pela

SEESP são de âmbito estadual a implantação de um novo currículo São Paulo faz

Escola criado em 2007, o desenvolvimento de materiais de apoio a professores e

alunos, o Saresp criado em 1996, o Programa de Valorização pelo Mérito

reformulado em 2009, a lei do bônus Lei 1078/2008 que institui bonificação por

resultado e a criação da EFAP em 2009. Todas essas ações, na medida do possível,

devem ser vistas de forma conjunta.

Por meio do decreto nº 54.297, de 5 de maio de 2009 foi criada a Escola de

Formação e Aperfeiçoamento dos Professores do Estado de São Paulo – EFAP,

destinada aos integrantes do quadro do magistério público do estado. Sua criação,

segundo a SEESP, tem como principais objetivos: oferecer cursos e certificar o

aproveitamento de seus participantes e assumir, no que couber, as atividades de

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treinamento e aperfeiçoamento do magistério, celebrar convênios com as

universidades estaduais públicas e privadas para o desenvolvimento de suas

atividades pedagógicas.

Vale ressaltar que a participação e o aproveitamento nos cursos de formação da

EFAP são obrigatórios para os candidatos ingressantes no quadro do magistério

público da SEESP, nos termos da lei. Esses cursos têm suas atividades organizadas

nas modalidades presencial e a distância. Em decorrência de sua criação, o decreto

nº 56.460, de 30 de novembro de 2010 aprova o Regimento Interno da Escola de

Formação e Aperfeiçoamento dos Professores do Estado de São Paulo.

Na página principal do site da EFAP, encontramos os principais cursos, programas,

atividades que estarão presentes em todo site, além de dicas e notícias vinculadas à

EFAP.

No link Quem Somos, a SEESP conta com as subseções: institucional, missão, CRE

Mário Covas, Rede Saber, Como Chegar e Parceiros. No institucional, verificamos a

data de criação da EFAP, a explicação de como funcionam o cursos e o papel da

EFAP que, segundo anunciado no site, atende ao decreto que exige que os

candidatos passem por formação específica como fase obrigatória de concurso

público.

Ainda segundo texto do site da SEESP, a missão da EFAP é contribuir para a

melhoria da qualidade do ensino público do Estado de São Paulo. De forma a utilizar

uma infraestrutura tecnológica composta por ambientes virtuais de aprendizagem

(AVA), ferramentas de colaboração on-line e uma rede de videoconferências. O

foco, de acordo com a SEESP, está no aperfeiçoamento e desenvolvimento

profissional dos servidores13. Vale lembrar que são todos os servidores, inclusive, os

professores.

O Centro de Referência em Educação Mário Covas (CRE Mário Covas), de acordo

com a SEESP, tem como objetivo ser um referencial pedagógico de excelência na

disseminação da informação educacional. A CRE Mário Covas dispõe de acervo que

está disponível também virtualmente. Além disso, segundo a SEESP, a CRE

13 Disponível em: www.escoladeformacao.sp.gov.br

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desenvolve inúmeras outras atividades, tais como: programas de incentivo à leitura;

coordena e gerencia salas de leitura escolares; seleciona novas obras para o acervo

bibliográfico das escolas, bem como a proposição de projetos e a realização de

concursos.

A EFAP mantém parcerias com instituições de ensino, entidades públicas e privadas

e organizações nacionais e internacionais dedicadas ao fomento à educação. São

elas USP, UNICAMP e UNESP, universidades públicas estaduais. Universidade

Anhembi Morumbi, universidade privada. Fundação Lemann, Instituto Crescer e

British Council, instituições de ensino. E, talvez, pudéssemos enquadrar, com muito

boa vontade, o Corpo de Bombeiros, a Microsoft e a Comgás nas organizações ditas

nacionais e internacionais que estimulam a educação. Não encontramos, pois,

nenhuma informação a respeito da função de cada parceiro no funcionamento da

EFAP. Segundo o artigo 3 do decreto 54.296/2009 que criou a EFAP, esta

incorporará o patrimônio e os acervos da Rede do Saber, bem como assumirá, no

que couber, as atividades de treinamento e aperfeiçoamento do Magistério.

Todo esse aparato técnico, bem como a Lei que subsidia a criação da EFAP é

necessário para materializar o curso de formação dentro do contexto da SEESP.

Contudo, uma vez configurado o suporte, a EFAP necessita de conteúdo para

divulgar seu posicionamento. As pedagogias hegemônicas, embora orientadas por

diferentes bases teóricas, fundamentam a constituição da EFAP no que tange à

prática educativa.

1.6. Pedagogias hegemônicas do século XXI e o lema “aprender a aprender”

No cenário da educação brasileira a pesquisa sobre formação de professores revela-

se bastante ampla e pode ser observada em diferentes períodos da história

brasileira. Nosso objetivo, nesta seção, é destacar a hegemonia das pedagogias que

incorporam o lema “aprender a aprender” o qual repercute nas pedagogias

hegemônicas e tem sido incorporado e difundido pela EFAP.

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Nas pedagogias do lema “aprender a aprender”, destacam-se, sobretudo, da década

de 1990 para cá, os seguintes conceitos: construtivismo, professor reflexivo,

pedagogia das competências, pedagogia dos projetos e pedagogia multiculturalista.

Essas concepções são consideradas pedagogias negativas, porque o que melhor as

define é sua negação das formas clássicas de educação escolar. (DUARTE, 2010,

p. 33). O lema “aprender a aprender” tomou força, principalmente, pela

fundamentação teórica de uma epistemologia da prática, ele tem encontrado um

campo fértil tanto nas pesquisas como nas políticas propostas para formação inicial

e continuada de professores.

Mas o que significa o lema “aprender a aprender”?

Esse lema faz referência às ideais pedagógicas escolanovistas, mas essas ideias,

segundo Saviani (2008), assumem novos sentidos no mundo contemporâneo.

Algumas bases educativas são deslocadas nessas pedagogias: o eixo do processo

educativo do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos para as

metodologias; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina

para a espontaneidade (SAVIANI, 2008, p. 431). Esse processo muda a posição do

professor no processo educativo, a função do professor não é mais a de ensinar e,

sim, de auxiliar o aluno em seu próprio processo de aprendizagem.

A característica comum às pedagogias que têm como lema “aprender a aprender” é

a falta da possibilidade de um ato de progressão, isto é, de um ir além de uma

sociedade capitalista. As relações entre educação e sociedade estão associadas por

uma concepção idealista. Nesse sentido, os discursos dos cursos de formação de

professores enunciam uma nova ideia de escola, de professor e de aluno

abrangendo a sociedade como um todo. Por conseguinte, conforme (DUARTE,

2010, p. 35),

Os problemas sociais mostram-se cada vez mais agudos, a solução

ilusória à qual aderem essas pedagogias é a da visão idealista de

educação. O adjetivo “idealista” é usado aqui não com referência à

adesão a ideais, mas com referência ao princípio segundo o qual os

problemas sociais são resultados de mentalidades errôneas,

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acarretando a crença de que a difusão pela educação de novas

ideias entre os indivíduos especialmente os das novas gerações,

levaria à superação daqueles problemas. Por exemplo, a violência

crescente na contemporaneidade poderia ser combatida por uma

educação para paz. [...] Esse idealismo chega ao extremo de

acreditar ser possível formar, no mesmo processo educativo,

indivíduos preparados para enfrentar a competividade do mercado e

imbuídos do espírito de solidariedade social.

Esse cenário é convidativo, como aponta o autor, aos mais jovens. Notemos que

toda reformulação recente na SEESP está voltada aos professores das novas

gerações como bem explicita o programa Educação – Compromisso de São Paulo14.

O exemplo mais claro disso é a valorização por mérito que propõe um plano de

carreira de vinte a vinte cinco anos, excluindo, definitivamente, os professores mais

experientes de qualquer ânsia à ascensão profissional e a um melhor salário. Se se

pretende alcançar o objetivo de colocar a educação de São Paulo entre as mais

‘avançadas do mundo’ até 2030, projetando os efeitos das ações constituídos no

discurso para o futuro, devemos concordar que até lá a maioria dos professores com

mais de dez anos de magistério hoje, com sorte, já estará aposentada.

A concepção praticista na formação de professores tende a reforçar um não

aprofundamento nas teorias educacionais, enfatizando a dicotomia entre teoria e

prática, seja por recortes teóricos que os elaboradores desses cursos utilizam de

forma aforizante, seja por certo simplismo no enfrentamento a essas teorias.

Segundo Mazzeu (2007), faz-se, por meio da teoria que fundamenta essa

concepção, uma associação entre a conjuntura de uma sociedade complexa e o

fenômeno da valorização da prática. Isso numa sociedade cuja marca essencial

seria a competitividade e a produção e divulgação de novos conhecimentos de

forma acelerada e vertiginosa (MAZZEU, 2007, p. 35); tudo isso numa sociedade em

que as identidades são fragmentadas, num cenário em constante movimento, onde

os valores não são fixos, onde empregos e profissões desaparecem sem deixar

14 Disponível em: www.educacao.sp.gov.br/portal/projetos/compromisso-sp.

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notícias (BAUMAN, 1998, p. 113), onde tudo é imediato e descartável, inclusive os

sentimentos.

Devemos notar, no entanto, que a disseminação das pedagogias que adotam o lema

“aprender a aprender” não se restringe ao campo educacional, mas responde as

exigências do “mundo contemporâneo” onde assume novos sentidos dados pelo

contexto ideológico no qual predomina uma visão de mundo pós-moderna acrescida

de elementos neoliberais (DUARTE, 2010, p. 34).

Estamos agora diante de uma nova divisão nas sociedades contemporâneas. De um

lado, estão aqueles que sabem e de outro os que não sabem. Estes últimos são

destituídos do poder que os primeiros possuem. Encontramo-nos, pois, conforme

Chauí (2001), no interior da ideologia da competência. Essa, ao afirmar que a

divisão social se realiza entre os competentes e os incompetentes, se caracteriza

por esconder a divisão social das classes. Aqueles indivíduos que possuem

conhecimentos científico e tecnológico estão no grupo dos competentes, ao passo

que aos outros resta a labuta, uma vez que não são competentes para o trabalho

técnico ou científico.

A organização15 oferece ao competente prestígio e poder para proferir seu discurso.

Esse discurso funciona como duas práticas contraditórias. A primeira é aquela que o

próprio sistema diz ser racional, agente social, político e histórico e os homens e as

classes sociais, por sua vez, são destituídos e despojados das condições de sujeitos

sociais, políticos e históricos (CHAUÍ, 2001, p. 106). Dessa forma, o sistema é

competente, e, por conseguinte, os indivíduos sociais e as classes sociais

administrados por ele são incompetentes. A segunda desfaz o que antes se fez, ou

seja, revalida os sujeitos e as classes sociais dando-lhes, por meio de discursos,

uma competência privatizada, bem a gosto do pensamento neoliberal.

Esses discursos nos ensinam como indivíduos privados a viver melhor,

relacionando-nos com o mundo e com o outro de maneira produtiva e otimista. Sua

veiculação tem duas frentes: de um lado, o discurso da sociedade administrada

corroborando a racionalidade nas leis de mercado; de outro, o discurso dos

especialistas ratificando que a competição e o sucesso são os caminhos seguros

15 A Organização aqui pode ser entendida por sistema.

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para se conquistar a felicidade. Ressaltamos uma consequência que nos remete de

modo direto aos cursos de formação de professores:

Outro efeito da ideologia da competência aparece na busca do

diploma universitário a qualquer custo. Antigamente as pessoas que

cursavam as universidades o faziam porque desejavam dedicar-se a

alguma pesquisa ou ensino. Hoje, cursa-se a universidade porque o

diploma é exigido pela Organização, quando examina os currículos

dos que procuram um emprego nela, pois o diploma é usado como

instrumento de seleção. Os jovens universitários estão convencidos

que sempre foi e sempre será assim, e que a função da universidade

é adaptar-se às exigências das organizações empresariais, isto é, do

que se costuma chamar de “o mercado”. O diploma confere ao que

procura emprego a condição de “especialista” e de “competente” e

uma posição superior na hierarquia de cargos e funções. Dessa

maneira, a universidade alimenta a ideologia da competência e

despoja-se de suas principais atividades, a formação crítica e a

pesquisa. (CHAUÍ, 2001, p. 108)

Esse efeito maléfico tem repercutido no discurso de formação de professores e é

alicerçado pela pedagogia que adota o lema “aprender a aprender”. Nesse cenário,

o professor nunca estará apto para ‘dirigir’ seu próprio trabalho embora tenha um

diploma que lhe diz o contrário. Em contrapartida, sempre deverá estar pronto para

executar o trabalho que lhe é imposto, já que o diploma lhe conferiu a qualidade de

competente.

O lema “aprender a aprender”, como dissemos, está contido no núcleo das ideias

escolanovistas no início do século XX. Esse lema sugere que o sujeito deva se

capacitar por si mesmo, adaptando-se a uma sociedade. Segundo Saviani (2008),

nos dias atuais, esse lema se ajusta a necessidade de constante atualização, no

caso de professores, a orientação pela constante formação que nunca se encerra

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exigida pela necessidade de ampliar a esfera da empregabilidade.16 (SAVIANI 2008,

p. 432) Assim, pelas transformações ocorridas no lema, o autor o denomina de

neoescolanovismo por seu caráter abrangente, universal e revigorante das

concepções educativas.

Na educação brasileira, essa visão se difundiu a partir da metade dos anos de 1990

em documentos oficiais e passou a se propagar depois da publicação do Relatório

denominado Educação: um tesouro a descobrir, em 1998. Dois anos antes, a

UNESCO já publicara o referido Relatório como resultado de trabalhos que se

dedicaram a formular diretrizes para educação do século XXI.

O lema “aprender a aprender” também orienta os PCNs elaborados pelo MEC.

Como sabemos os PCNs servem de referência à elaboração, ou, como diz Saviani,

à montagem dos currículos das escolas brasileiras. Essas diretrizes orientam os

livros didáticos que são oferecidos nas escolas. Isso também acontece com o

Currículo Comum da SEESP, que “monta” as apostilas para servir aos professores e

aos alunos. Nesse caso, é uma diretriz de outra diretriz, o que empobrece o

processo educativo. Desse modo,

Por inspiração do neoescolanovismo, delinearam-se as bases

pedagógicas das novas ideias que vêm orientando tanto as reformas

educativas acionadas em diferentes países e especificamente no

Brasil, como as práticas educativas que vêm sendo desenvolvidas

desde a década de 1990. Tais práticas se manifestam com

características light, espraiando-se por diferentes espaços, desde as

escolas propriamente ditas, passando por ambientes empresariais,

organizações não governamentais, entidades religiosas e sindicais,

academias e clubes esportivos, sem maiores exigências de precisão

conceitual e rigor teórico, bem a gosto do clima pós-moderno.

(SAVIANI, 2008, 434)

16 No caso do setor público, a formação continuada está associada também à evolução funcional e ao plano de carreira.

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Dessa visão superficial de educação pautada no lema “aprender a aprender”,

eclodem as supostas bases científicas do próprio lema que disseminam outras

ramificações pedagógicas.

Conforme Saviani (2008), o construtivismo mantém relações intrínsecas com o

escolanovismo, oferecendo teoria de base ao lema “aprender a aprender”. Mas a

despeito do que aconteceu com outras pedagogias de “ruptura”, o construtivismo –

por intermédio de Cesar Coll17 – sofreria ajustes e passaria por metamorfoses e

ressignificações em suas bases a fim de se filiar as novas exigências da

contemporaneidade, como já apontavam os PCNs propostos pelo MEC em 1997, o

que Saviani chama de neoconstrutivismo por sua concepção pouco científica e

bastante retórica. Disso resultam outras ramificações, como a teoria do professor

reflexivo e a pedagogia das competências.

A primeira fundada em uma epistemologia da prática que compreende a prática

profissional como locus original de formação e de produção de saberes e de

competências, o que justificaria a ênfase na valorização dos conhecimentos

experienciais em processos formativos (MAZZEU, 2007, p. 35). Portanto, essa visão

se prolifera em muitos setores da sociedade, sobretudo, aqueles ligados à

educação, repercutindo nos cursos de formação de professores.

A segunda,

[...] apresenta-se como outra face da “pedagogia do aprender a

aprender”, cujo objetivo é dotar os indivíduos de comportamentos

flexíveis que lhes permitam ajustarem-se as condições de uma

sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não

estão garantidas. Sua satisfação deixou de ser compromisso

coletivo, ficando sob responsabilidade dos próprios sujeitos que,

segundo raiz etimológica dessa palavra, se encontram subjugados à

“mão invisível do mercado”. (SAVIANI, 2008, p.437)

17 As ideias desse pensador espanhol foram usadas na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais e influenciam nossa rede de ensino.

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As pedagogias que incorporam o lema “aprender a aprender” são os princípios

norteadores da constituição didático-pedagógica da EFAP. Os limites dessa visão

educativa vão de encontro a uma educação humanizadora, cuja capacidade está em

formar e desenvolver o educando no contexto da prática social global. A EFAP, ao

assumir uma posição pragmatista de educação e valorizar a metodologia em

detrimento aos fundamentos históricos, filosóficos, sociológicos e econômicos nos

cursos de formação de professores (DERISSO, 2010, p. 58), assume, também, um

projeto neoliberal, considerado projeto político de adequação das estruturas e

instituições sociais às características do processo de reprodução do capital no final

do século XX. (DUARTE, 2012, p. 3). Em última instância, paradoxalmente, essa

visão de prática educativa impossibilita aos professores, e, por conseguinte, aos

alunos, a conquista da própria autonomia intelectual.

Essa constatação nos revela sem surpresas aquilo que a pedagogia histórico-crítica,

referente à formação de professores, vem debatendo desde o início da década de

1980, a saber: a necessidade de uma relação consciente do docente com o

significado de sua profissão. Dessa forma, a formação de professores precisa estar

fundamentada em bases teóricas sólidas amparadas na reflexão filosófica e no

conhecimento científico como condição para a legítima compreensão do homem

como síntese de variadas determinações, bem como das vinculações do trabalho

pedagógico no contexto da prática social. (SAVIANI, 1995). Em outras palavras,

essa concepção sugere o efetivo diálogo entre teoria e prática.

Situamos o discurso que embasa a EFAP advindo de políticas neoliberais e de um

pensamento pós-moderno, cuja negação da razão tem resultado na impossibilidade

de interferência sobre a realidade humana e social. Um discurso que reproduz aquilo

que Saviani (2008) chama de ensino neoconservador, que, desde a década de

1990, é dominado pelo “império do mercado”, mitigando o sopro de mudanças

produzido pelas pedagogias contra-hegemônicas.

Essa ausência da possibilidade de mudança incutida pelas pedagogias do lema

“aprender a aprender” impede aquilo que a sociedade de forma geral e os

professores, especificamente, almejam: uma educação pública de qualidade.

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A grande maioria dos documentos oficiais produzidos nas últimas duas décadas

assevera a possibilidade de uma educação de qualidade, desde que tenhamos uma

valorização do magistério. As discussões passam por abordagens acerca de plano

de carreira, salários, melhores condições de trabalho, formação inicial e continuada

etc. São condições mínimas para qualquer profissão. Não esperamos vencer alguns

obstáculos trabalhistas e continuarmos sob a égide das pedagogias hegemônicas.

Nessa conjuntura, a EFAP surge para reforçar o coral da nova tendência da prática

escolar, com a prudência e resignação da figura do professor-mediador, essa

“Escola” reverbera o que as pedagogias hegemônicas consolidaram:

Acena-se, então, com cursos de atualização ou reciclagem, dos mais

variados tipos, referidos a aspectos particulares e fragmentários da

atividade docente, todos eles aludindo a questões práticas do

cotidiano. O mercado e seus porta-vozes governamentais parecem

querer um professor ágil, leve, flexível; que, a partir de uma formação

inicial ligeira, de curta duração e a baixo custo, prosseguiria sua

qualificação no exercício docente lançando mão da reflexão sobre

sua própria prática, apoiado eventualmente por cursos rápidos, ditos

também “oficinas”; essas, recorrendo aos meios informáticos,

transmitiriam, em doses homeopáticas, as habilidades que o

tornariam competente nas pedagogias da “inclusão excludente”, do

“aprender a aprender” e da “qualidade total”. Mas o exercício dessas

competências não se limitaria à atividade docente propriamente dita.

(SAVIANI, 2008, p. 449)

Feito esse breve percurso em que procuramos expor as condições sócio-históricas

de produção de nossas amostras, passamos agora a considerar as fundamentações

teóricas de nosso trabalho. É, pois, alicerçados pelos fundamentos teóricos e

práticos da Análise do discurso de linha francesa que pretendemos analisar as

amostras selecionadas dentro das condições sócio-históricas de produção expostas

nessa síntese.

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CAPÍTULO II

A ANÁLISE DO DISCURSO: CONSTITUIÇÃO, LIMITES, FRONTEIRAS

E DISPOSITIVOS DE ANÁLISE

2.1. Os atos fundadores e os procedimentos teórico-metodológicos

A disciplina Análise do Discurso de linha francesa (doravante, AD) encontra-se, em

seu estágio atual, num período de plena efervescência acadêmica. Consideramos

que o influxo dessa movimentação foi ocasionado, em especial, por dois fatores. O

primeiro diz respeito ao aumento significativo dos corpora. O segundo refere-se ao

processo atual de construção da disciplina, sobretudo, por seu caráter dialético.

Se antes a AD se tornava mais visível pela sua ligação com o corpus oriundo do

contexto político-ideológico; no presente estágio, o analista do discurso volta-se

para, além de um material linguístico amplo, um estudo audiovisual, iconográfico e

do corpo. Antes, porém, de discutirmos os desdobramentos do segundo fator,

faremos algumas considerações atinentes ao momento de constituição da gênese

da disciplina de AD, considerando os atos fundadores que tornaram possível uma

grande investida de diversas áreas das ciências humanas ao estudo do objeto

discursivo.

A AD desenvolveu-se na França nos anos 1960. A tradição de unir de modo

fundamental a reflexão acerca dos textos e da história, na França e em toda Europa,

pôde, segundo Maingueneau (1997), inscrever a disciplina no campo do saber. Em

meio a essa tradição, convergiram-se a conjuntura intelectual daquela década e uma

prática escolar de explicação de textos. Portanto, num primeiro momento, a AD se

instaura no espaço escolar por meio do professor. É ele que supõe que um sentido

oculto deve ser captado, o qual sem uma técnica apropriada permanece inacessível.

(MAINGUENEAU, 1997, p. 11)

As teorias estruturalistas da língua que a apreenderam na estrutura interna de um

sistema fechado sobre si mesmo veem-se reduzidas à medida que novos modos de

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apreensão da língua vão sendo postos em discussão, a AD se constitui nesse

espaço. Ao mesmo tempo em que irrompe do estruturalismo, estabelece uma

relação entre a linguística, o marxismo e a psicanálise. Nessa conjuntura intelectual,

o desenvolvimento da AD implica não apenas uma extensão da linguística, mas

também uma reconfiguração do conjunto dos saberes. (MAINGUENEAU, 2007, p.

16) Essa proposta intelectual em que a AD se situa está marcada com a questão da

leitura.

A AD insere a questão da leitura, segundo Possenti (2009) em duas grandes

vertentes. A primeira volta-se aos modos de produção e circulação dos textos,

secundarizando a questão do sentido. A segunda tem a discussão do sentido como

fundamental. Ao privilegiar os modos de produção e circulação dos textos, a AD

especifica de que forma ocorrem as restrições externas sobre esses textos, ou seja,

de que maneira aspectos como: espaços, tipo de textos, leitores e autores se

relacionam com a circulação desses textos. Em última análise, essa vertente leva

em conta as restrições externas sobre o discurso.

De outra forma, devemos considerar as restrições internas sobre o discurso, isto é,

aspectos como os implícitos, a opacidade da língua, os modos de funcionamento

etc. Ambas as vertentes são constituídas por meio de teorias e metodologias que

visam a apreender os modos de restrição a que um discurso é submetido, tanto

restrições externas atinente à circulação dos textos, quanto restrições internas

relativas à interpretação. É nesse contexto de leitura que surgem empreendimentos

como os de Althusser, Lacan, Barthes e Foucault. Os atos fundadores desses

estudiosos possibilitaram a existência da AD. Aliás, como sugere Maingueneau

(2006), o surgimento da AD não se deve apenas a um fundador específico, já que

ela se insere num movimento constituído de modo progressivo, em especial, a partir

dos anos de 1960 num encontro de diversas correntes de estudos.

Contudo, esses empreendimentos, embora fossem relevantes como dispositivos de

leitura, não garantiam sua objetividade. Nessa conjuntura, Pêcheux (2009), tomado

pelo espaço do marxismo e da política, passa a propor para AD dispositivos de

interpretação de textos que possam garantir uma leitura menos subjetiva,

instaurando, assim, um novo gesto de leitura. Nessa senda, o filósofo parte da

seguinte constatação: como a língua não garante a objetividade da leitura, isto é, o

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sujeito não tem um conhecimento da língua suficiente para compreender o texto, é

preciso considerar algumas restrições a essa leitura. Como resultado, Pêcheux

propõe que a leitura do texto considere suas condições de produção. O filósofo

observa que a legibilidade de um discurso diz respeito à instituição à qual esse

discurso se liga.

Esse empreendimento de Pêcheux possibilitou, dada as correspondências entre os

campos, o estudo de uns corpora tirados de discursos institucionais, mais

especificamente de discursos políticos. Daí essa forte ligação da AD, num primeiro

momento, ao estudo do discurso político-ideológico. Outros dispositivos de leituras

forneceram limites à questão da interpretação dos enunciados, como a noção de

formações discursivas, gênero, e a relação entre o texto e um autor, logo são outros

fatores de restrição a uma suposta liberdade de interpretar ou a eventuais

interpretações que o enunciado poderia receber, se considerados apenas sua forma

estritamente linguística e/ou seu contexto. (POSSENTI, 2009, p. 13)

Nesse sentido, o projeto da AD se inscreve em um objetivo político conduzido em

torno de Pêcheux e a revista Langages. A constituição da AD, segundo Mussalin

(2003), exige uma ruptura epistemológica que coloca o estudo do discurso num

outro terreno, modificando questões teóricas referentes à ideologia e ao sujeito.

Pêcheux (2009) retoma a dicotomia de Saussure18 para inscrever os processos de

significação como históricos, ideológicos, propondo uma semântica do discurso. À

vista disso, um novo olhar recai sobre as condições sócio-históricas de produção de

um discurso que são consideradas constitutivas de suas significações.

Importa à AD, então, verificar os diversos procedimentos de reprodução social do

poder por meio da linguagem. A Linguística, fundamentada sob as bases

estruturalistas, orientava os projetos de Lacan e Althusser. Este, fortemente

influenciado pelas teorias de Marx, tenta esclarecer o funcionamento da ideologia na

sociedade. Aquele, reinterpretando a teoria de Freud, concebe a estrutura do

inconsciente em termos de linguagem, ou seja, como uma estrutura discursiva que é

regida por leis, o que lhe permite explorar as relações entre o inconsciente e a

18 Ver: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Charles Bally e Albert Sechaehaye (orgs.); prefácio da edição brasileira Isaac Nicolau Salun; tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. 27º ed. São Paulo Cultrix, 2006.

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sociedade humana. A AD utiliza-se dessas descobertas, discutindo desde então o

conceito de sujeito.

Nessa medida, a AD intervém como um componente essencial do projeto

althusseriano que visava a definir uma ciência da ideologia que não fosse ideológica,

isto é, que não implicasse uma posição ideológica do sujeito. De modo dialético,

conforme Mussalin (2003), o pensamento althusseriano também é determinante da

fase inicial de instituição da AD, cuja proposta se inscreve no materialismo histórico.

Portanto, a escolha de um corpus advindo do contexto político-ideológico estava

ligada ao posicionamento teórico adotado pela AD nesse primeiro momento.

Característica da Escola francesa de inspiração lacano-althusseriana: nessa

corrente [...] a análise do discurso visava acima de tudo a desfazer as continuidades,

de modo a fazer aparecerem nos textos redes de relação invisíveis entre enunciados

(MAINGUENEAU, 2007, p, 29-30). Em vista disso, surge a possibilidade de prover

dispositivos de análises pelos quais fosse possível realizar uma leitura menos

subjetiva.

Os discursos políticos institucionais, então, não só reafirmaram a ideia de um sujeito

‘assujeitado’ pelo discurso e conceberam os textos como produtos de um trabalho

ideológico não consciente, como também apreenderam o funcionamento de uma

ideologia a partir de sua materialidade por meio das práticas e dos discursos dos

Aparelhos Ideológicos do Estado, noção proposta por Althusser (2001) para

entender o funcionamento da ideologia na sociedade.

Os limites e as restrições propostos acerca da leitura vão sendo constituídos à luz

das bases epistemológicas supracitadas para servirem de dispositivos de análises

da AD. Contudo, esses procedimentos são construídos para substanciar a

possibilidade de uma leitura menos orientada, fechada ou totalmente ‘livre’,

considerando as restrições externas e, sobretudo, internas do texto, entendendo o

sujeito (autor/leitor) na qualidade de produtor do discurso e como efeito da história e

da linguagem. Logo, ao construir interpretações, faz-se necessário observar as

sendas do texto, a relação desse texto com suas condições sócio-históricas de

produção e o lugar social ocupado pelo sujeito enquanto produtor do discurso.

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Nesse primeiro momento, a AD, tendo a questão da leitura como processo

desencadeador, explora uma análise do discurso menos polêmica, com carga

menos polissêmica, já que ela se relaciona com textos produzidos no quadro de

restrições que reduzem fortemente a enunciação; nos quais se cristalizam conflitos

históricos, sociais etc.(MAINGUENEAU, 1997, p. 13) Assim, há algumas etapas para

realizar o procedimento de análise, como a seleção de um corpus fechado para a

realização de uma análise linguística (sintaxe, léxico) e uma análise discursiva

(sinonímia, paráfrase). Visa-se mostrar por esse procedimento que tais relações de

sinonímia e paráfrase são decorrentes de uma mesma estrutura desencadeadora de

um processo discursivo.

Logo, nessa etapa, tem-se a noção de máquina discursiva, ou seja, a ideia de uma

estrutura de caráter não polêmico e estabilizado, responsável pela geração de um

processo discursivo como o manifesto comunista. Segundo Mussalin (2003), isso

ocorre mediante um conjunto de argumentos e de operadores responsáveis pela

constituição e transformação das proposições concebidas como princípios

semânticos que definem e delimitam um discurso. Essa noção, contudo, começa a

se romper com base nas discussões acerca do conceito de formação discursiva

introduzido por Foucault n’A Arqueologia do saber e, em seguida, com a formulação

desse conceito desenvolvida por Pêcheux que fez dessa noção a unidade de base

da chamada escola francesa de análise do discurso. (MAINGUENEAU, 2008c, p. 12)

Ao escolher um objeto de análise menos estabilizado, o analista rompe com a noção

de maquinaria. O conceito de formação discursiva (doravante, FD), formulado por

Foucault no final da década de 1960 e relido por Pêcheux nos anos 1970 em diante,

é o mecanismo desencadeador dessa transformação na concepção do objeto na

análise da AD. Embora essa noção tenha sido empregada com sentidos diversos

por esses dois pensadores, ela foi utilizada como conceito-chave em muitas

pesquisas em AD, em particular, depois dos empreendimentos de Pêcheux. Aliás, é

por meio desse conceito que podemos observar os pontos de contato e afastamento

entre esses dois pensadores na construção de suas teorias e análises em torno do

discurso. Passamos agora, então, a discutir esse conceito de FD no quadro da AD,

considerando as contribuições de Foucault e Pêcheux num primeiro momento e as

considerações de Maingueneau acerca dessa noção na atualidade.

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2.2. Formações discursivas: contribuições de Foucault, Pêcheux e

Maingueneau

O conceito de FD está ligado à problemática do sujeito, entendido, num primeiro

momento da AD, como “assujeitado” à maquinaria, isto é, submisso a uma estrutura

discursiva. Numa segunda etapa, o sujeito passa a ser concebido como aquele que

desempenharia diferentes papéis de acordo com as várias posições que ocupa no

espaço interdiscursivo. É, pois, na reformulação do conceito de sujeito que a noção

de FD torna-se mais produtiva.

Conforme Maingueneau (2008c), a instabilidade acerca da noção de FD se deve a

dupla origem do conceito. Pêcheux, embora declare que o conceito de FD seja

emprestado de Foucault, o emprega com sentido diverso daquele entendido pelo

autor de A Arqueologia do saber. A imprecisão dessa noção repousa, também, no

interior dos trabalhos desses dois pensadores.

Para Foucault (2012), os discursos não estão fundados em unidades. Pelo contrário,

constituem-se em séries emaranhadas, jogos de diferença, de desvios, de

substituições, de transformações. (idem, p. 46) Caso esses sistemas de relações

entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias possam ser descritos, isto

é, definidos em uma regularidade, teremos uma FD. Assim, caberia ao analista,

descrever, entre certo número de enunciados, um sistema de dispersão e no caso

em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas

temáticas e definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e

funcionamentos, transformações) (FOUCAULT, 2012, p. 46). Nessa senda, o

discurso para Foucault, se define como um conjunto de enunciados que se apoiam

na mesma FD, esta, por sua vez, é definida a partir da possibilidade de descrever

esses enunciados nesse sistema, do qual o filósofo chama de formações

discursivas.

Foucault, ao observar as famílias de enunciados como as presentes, por exemplo,

na medicina, na gramática, na economia, encontra, em vez de um sistema fechado,

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um sistema heterogêneo o qual descreveu como sistema de dispersão. A fim de

buscar uma regularidade num sistema de dispersão, ou seja, para tentar definir um

conjunto de regras num emaranhado de enunciados, o analista precisaria, a

princípio, restringir o emprego dessa noção a certas “unidades”; assim, quando

falamos de “discurso patronal”, “discurso racista”, “discurso da publicidade para as

mulheres” etc., o termo formação discursiva seria útil. (MAINGUENEAU, 2006, p. 2).

Essa dispersão, contudo, estaria instalada na própria unidade, constituindo um

aparente paradoxo. Na verdade, a FD, sendo um espaço atravessado por outras

FDs, não pode ser concebida como formada por elementos ligados entre si por um

princípio de unidade. É nesse sentido que Foucault a concebe como uma dispersão,

talvez esteja, nesse ponto, a imprecisão do termo no interior da análise de Foucault.

As bases epistemológicas pelas quais Foucault (2012) desenvolve o conceito de FD

inscrevem-se em uma perspectiva historicista. O autor sustenta uma cisão entre

classes e luta de classes, esta que, para o marxismo, é o motor da história e sugere

o conceito de ideologia como problemático. Em Foucault, a ênfase é dada na

construção de saberes e poderes que não passariam, de modo essencial, pela

questão das classes sociais. Já em Pêcheux, essa noção é desenvolvida nas bases

epistemológicas do marxismo-althusseriano que não separam classes e luta de

classes.

Tomando de empréstimo o termo de Foucault, Pêcheux o submete a constantes

reconfigurações. Num primeiro momento, em um artigo escrito com Haroche e Henry

para revista Langages19, as FDs são tidas como componentes das formações

ideológicas, estas comportariam mais de uma posição capaz de confrontar uma com

a outra. Em uma formação ideológica, as forças não precisam atuar sempre em

cotejo, elas podem conservar entre si relações de união ou mesmo de subjugação.

Logo, as formações ideológicas, como um de seus componentes, comportariam,

necessariamente, uma ou mais FDs interligadas.

O conceito de FD é utilizado pela AD para marcar o lugar onde se articulam discurso

e ideologia. Nesse sentido, as FDs são consideradas como elemento das formações

19 HAROCHE, C; HENRY, P; PÊCHEUX, M. A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso. Revista Langages, número 24, 1971.

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ideológicas. Como uma formação ideológica coloca em jogo mais de uma força

ideológica, uma FD colocará em jogo mais de um discurso. Logo, as FDs são

consideradas como elemento das formações ideológicas.

Em Semântica e Discurso o autor apresenta a primeira reformulação do conceito de

FD:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que numa formação

ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa

conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,

determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma

arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um

programa, etc.). (PÊCHEUX, 2009 p. 147)

Para Pêcheux, portanto, uma FD determina o que pode e deve ser dito a partir de

um determinado lugar social.

Nesse trabalho, Pêcheux propõe uma teoria materialista do discurso. O autor

ressalta que os processos discursivos se desenvolvem sobre a base linguística,

todavia todo processo discursivo se incorpora numa relação ideológica de classe

edificada na contradição. Refletindo sobre o contraditório e o desigual, Pêcheux

retoma o conceito cânone de FD proposto no artigo de 1971 e acrescenta a ele,

segundo Gregolin (2005), a discussão acerca da materialidade do interdiscurso.

Assim, Pêcheux (2009, p. 149) enuncia a seguinte tese:

Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido

que nela se constitui, sua dependência com respeito ao “todo

complexo dominante” das formações discursivas, intrincado no

complexo das formulações ideológicas.

Pêcheux nomeia esse “todo complexo dominante” das FDs de interdiscurso, noção

importante aos propósitos da AD. A instabilidade e a heterogeneidade das FDs

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tornam a tarefa do analista de discurso mais complexa. Como base nessas

considerações faz-se necessário refinar a análise acerca dos tipos específicos de

relação entre os discursos. Cabe, então, ao analista do discurso, por meio dos

dispositivos teóricos disponíveis, verificar os efeitos de sentido produzidos nessa

relação interdiscursiva.

A teorização da instabilidade das FDs envolve, segundo Gregolin (2005), dois

pontos que são categóricos para o aprimoramento da teoria e análise do discurso

em Pêcheux: a relação entre FD e interdiscurso; e a relação entre intradiscurso e

interdiscurso.

Na primeira relação, o interdiscurso é a região em que se constituem os objetos de

que o enunciador se apodera a fim de torná-los objetos de seu discurso, bem como

as articulações entre esses objetos pelos quais o sujeito enunciador dará coerência

a seu intento no interior do intradiscurso da sequência discursiva enunciada por ele.

Já a segunda relação entre intradiscurso e interdiscurso se dá entre o sistema da

língua e a FD. Nesse vínculo, portanto, são realizadas as práticas discursivas, os

processos discursivos diferenciados, por meio dos quais os sujeitos produzem e

reconhecem os sentidos na história. (GREGOLIN, 2005, s/d)

Em toda FD a presença do Outro pode ser verificada, ela confere ao discurso o

caráter de ser heterogêneo. Evoca-se a partir de então a noção de dialogismo,

proposta por Bakhtin, instaurada numa perspectiva plurivalente de sentidos. A

heterogeneidade constitutiva não é marcada em superfície, mas a AD pode defini-la,

formulando hipóteses, segundo o pressuposto da presença constante do Outro na

constituição de uma FD. Por meio dessa noção, adota-se uma perspectiva segundo

a qual os diversos discursos que atravessam uma FD não se constituem de forma

independente uns dos outros para serem em seguida postos em relação, mas se

formam, conforme Maingueneau (2008a), de maneira regulada no interior de um

interdiscurso. Será, pois, a relação interdiscursiva que estruturará a identidade das

FDs em questão.

Nas perspectivas atuais da AD, o termo FD é reservado aos tipos de unidades não

tópicas, como o discurso racista ou o discurso pós-colonial, pois suas fronteiras só

podem ser delimitadas pelo analista do discurso. Além disso, devem ser, segundo

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Maingueneau (2007), especificadas historicamente. O discurso racista, por exemplo,

tanto pode pertencer a um tipo de discurso como o discurso político, como aos

gêneros que complementam esse discurso como um panfleto de propaganda

eleitoral. Assim, afirma o autor, (2007, p. 32),

É para esse tipo de unidade que decidi reservar o termo “formação

discursiva”, distinguindo-o do valor que lhe é conferido tanto por

Foucault (1969, p. 52-53) quanto por Haroche, Henry, Pêcheux

(1971), sem, contudo, trair abertamente os referidos autores. Com

efeito, esses autores não especificam as relações entre formações

discursivas e gêneros de discurso, deixando recair a ênfase no fato

de se tratar de sistemas de determinações inconscientes da

produção discursiva em um lugar e em um momento dados.

É nesse sentido que Maingueneau (2008a) considerando que uma FD não pode se

compreendida como um bloco compacto e fechado, mas que ela é definida a partir

de uma incessante relação com o Outro afirma, como veremos, o primado do

interdiscurso sobre o discurso.

Essa noção passa a se mostrar produtiva, em especial, a partir dos trabalhos de

Jacqueline Authier-Révuz (1990) que, por meio das noções de heterogeneidade

mostrada e heterogeneidade constitutiva, descentrou a noção de FD e a estendeu

às discussões no campo da AD. Maingueneau (1997; 2008a), por sua vez, ao

inscrever a hipótese do primado do interdiscurso na perspectiva de uma

heterogeneidade constitutiva propõe restringir seu quadro de operacionalidade.

Dessa forma, a noção de interdiscurso é pensada por meio da tríade: universo

discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.

Antes de acompanharmos Maingueneau em suas especificações acerca do primado

do interdiscurso e seu desdobramento para AD, é necessário discorrer sobre

algumas questões colocadas pelo autor no processo de constituição atual da

disciplina. Esse procedimento visa, segundo Maingueneau (2007), a estabelecer

limites e fronteiras no campo dos estudos discursivos, uma vez que esse tem se

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demonstrado bastante instável. O autor retoma algumas pesquisas no campo

desses estudos para alocar a disciplina de AD entre fronteiras e subversão de

fronteiras.

2.3. Perspectivas da Análise do Discurso na atualidade

Maingueneau (2007), visando a inserir algumas noções que pretendem organizar o

campo dos estudos discursivos, visto como heterogêneo e instável, sugere delimitar

fronteiras para AD, já que esta se insere num campo de estudos, admitido por

alguns pesquisadores, de esfera ampla e de limites imprecisos. O autor considera

relevante destacar a função estruturante exercida pelas disciplinas discursivas,

desde que se estabeleça juntamente com a ideia da partição dessas disciplinas uma

divisão em correntes e territórios. Ademais, Maingueneau propõe a distinção entre

unidades tópicas e não tópicas.

As pesquisas atuais acerca do discurso, embora cada vez mais presentes, estão

longe de serem bem demarcadas. Conforme observamos no início desse capítulo,

mesmo no interior da chamada AD, há um interesse crescente por corpora de

materialidades discursivas diversas. Somada a essa diversidade do objeto

discursivo, surgem uma gama de trabalhos que, ao reclamarem a problemática do

discurso, se apresentam sob do rótulo de análise do discurso O limiar a ser

constituído deve estabelecer a especificidade do ponto de vista da AD a respeito do

discurso. Podemos considerar, entretanto, algumas questões que põem em

dificuldade, de parte a parte, os objetivos de cada disciplina discursiva.

A primeira refere-se, segundo Maingueneau (2007), aos procedimentos ora

estabelecidos pelos compartimentos tradicionais, sobretudo pelo seu embasamento

referencial na Linguística e a realidade das atuais pesquisas no discurso que tendem

a desconsiderar a análise linguística como núcleo para circunscrever seus objetivos.

A segunda diz respeito às próprias condições de produção das atuais pesquisas,

que são diretamente influenciadas pelos modos de comunicação. Em outras

palavras, essas novas perspectivas constituem-se, de modo livre, por meio de

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recortes geográficos e intelectuais tradicionais, conciliando-lhes pesquisas científicas

circulantes que transformam o conhecimento nesse domínio.

Diante disso, o autor observa que a análise do discurso representa um espaço que,

a partir dos anos 1960, foi sendo constituído por diversas correntes. Alguns autores,

a fim de garantir a legitimidade da Análise do Discurso, destacam sua antiguidade

em detrimento a sua novidade, como é o caso de Van Dijk (1985) para qual a

Análise do Discurso dá continuidade à Retórica Antiga.

Contudo, de acordo com Maingueneau (2007), o risco em conceber a Análise do

Discurso como um prolongamento da Retórica está no juízo de que a Retórica, ou

suas diferentes formas não sejam solidárias de disposições do saber e de práticas

desaparecidas. Além disso, diferente do dispositivo retórico, a Análise do Discurso

implica uma ordem do discurso, embora possa empregar de modo diverso muitas

categorias e problemáticas oriundas da retórica ou de outras práticas. Assim,

continua o autor (2007, p. 16),

A análise do discurso não veio simplesmente preencher um vazio na

linguística do sistema, como se a Saussure tivéssemos adicionado

Bakhtin, ou ainda como se a uma linguística da “língua”

acrescentássemos uma linguística da “fala”. É verdade que ela

mantém um elo privilegiado com as ciências da linguagem, domínio

ao qual pertence – pelo menos na concepção que prevalece em

geral, e particularmente na França; todavia, seu desenvolvimento

implica não apenas uma extensão da linguística, mas também uma

reconfiguração do conjunto dos saberes. Podemos observar, aliás,

que apenas uma parte daqueles que foram seus grandes

inspiradores nos anos 60 é constituída por linguistas, estando

presentes ainda antropólogos (Hymes), sociólogos (Garfinkel, Sacks)

e também filósofos preocupados com a linguística (Pêcheux) ou não

(Foucault).

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Para Maingueneau, portanto, autores como Van Dijk (1985) e Deborah Schiffrin

(1994) tendem a representar a Análise do Discurso como uma “super linguística”, em

que forma e função, sistema e uso se recomporiam. De outro modo, há definições

que restringem, de modo excessivo, a Análise do Discurso; como a definição

estabelecida por Levinson (1983) e Charroles e Combettes (1999), dadas as

respectivas diferenças de abordagens. Relacionando a Análise do Discurso ao

estudo transfrásico, temos as considerações de Moeschlere e Reboul (1998) para os

quais ela retomaria a questão da leitura em sua subjetividade, mas não passaria de

uma subárea da Linguística, destinada a explicar os fatos além das frases,

entendidos, desse modo, por discurso.

Nessa senda, há trabalhos que fazem coincidir a Análise do Discurso com o estudo

dos fenômenos transfrásicos, o que, segundo Maingueneau (2007), lhes conferem

autoridade e os tornam visíveis conforme os distanciam da Análise do Discurso

entendida como uma disciplina de limites imprecisos, como nos trabalhos de Brown

e Yule (1983) em seu manual de análise do discurso que enfatiza a função

comunicacional dos textos.

Entender a relação entre discurso e análise do discurso de modo direto, sendo

aquele objeto empírico e a Análise do Discurso concebida como uma disciplina que

estudaria esse objeto, na opinião de Maingueneau (2007), pode trazer dificuldades

para a classificação da disciplina. Essa constatação leva-nos a entender o discurso

como objeto dado, cujo estudo poderia ser dominado por apenas uma disciplina.

Maingueneau, ao contrário, defende que o estudo do discurso não pode ser

esgotado por uma disciplina, mas deve ser tomado como objeto de estudo por várias

disciplinas que possuem interesses distintos e pontos de vista diversos, o que

diferenciaria a Análise do Discurso de Linguística do Discurso, esta última entendida

como o conjunto das disciplinas que abordam o discurso. Desse modo, prossegue o

autor (2007, p. 19),

O interesse que governa a análise do discurso seria o de apreender

o discurso como intricação (sic) de um texto e de um lugar social, o

que significa dizer que seu objeto não é nem a organização textual,

nem a situação de comunicação, mas aquilo que as une por

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intermédio de um dispositivo de enunciação específico. Esse

dispositivo pertence simultaneamente ao verbal e ao institucional:

pensar os lugares independentemente das palavras que eles

autorizam, ou pensar as palavras independentemente dos lugares

com os quais elas estão implicadas significaria permanecer aquém

das exigências que fundam a análise do discurso.

Nessa perspectiva, o texto não pode ser apartado de suas condições sócio-

históricas de produção, pois é a partir de um lugar social e de um dispositivo de

enunciação (verbal ou institucional) que o discurso será apreendido pela análise do

discurso. Lugar social não significa um lugar físico, mas diz respeito a

posicionamentos, como o discurso político de esquerda no Brasil; o discurso de

determinada classe social: o discurso de esquerda dos trabalhadores sem terra ou o

discurso de esquerda da elite intelectual brasileira. Nos dois casos, deve-se levar em

consideração a questão do gênero do discurso.

O discurso entendido dessa maneira nos permite atestar a dificuldade em conceber

a opinião de que apenas uma disciplina do discurso esgotaria as contingências de

sentido de seu objeto. Ao contrário, nas perspectivas de diversas disciplinas do

discurso, cada uma exploraria seu objeto de estudo segundo seus métodos e

teorias, visando a alcançar seus objetivos. Ainda assim, longe de serem estudos

isolados os recursos de uma disciplina do discurso são mobilizados para serem

colocados a serviço de uma outra, (MAINGUENEAU, 2007, p. 19) seu

distanciamento se dá pela escolha dos objetos preferenciais. A AD, por exemplo,

tende a se interessar pelas práticas verbais que correspondem às FDs, uma vez que

essa prática de análise do discurso considera a enunciação do sujeito como

correlato de uma posição sócio-histórica.

Considerando o primado do interdiscurso, Maingueneau (2007) argumenta que,

conquanto os conceitos apresentados visem a delimitar uma disciplina de Análise do

Discurso, cada prática não a torna homogênea. O autor lista alguns fatores no

âmbito das disciplinas que a configuram como heterogênea, a saber: a

heterogeneidade das tradições científicas e intelectuais; a diversidade das

disciplinas de apoio; a diversidade dos posicionamentos; os tipos de corpus

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privilegiado pelos pesquisadores; o aspecto da atividade discursiva levado em

consideração; a visada, aplicada ou não, da pesquisa; e a disciplina de filiação dos

analistas em questão.

Além desses, há outros pontos a serem considerados, dado que esses fatores,

conforme Maingueneau (2007), correm o riso de serem colocados no mesmo plano.

E, também, ao aceitar a separação entre a Análise do Discurso e Linguística do

Discurso, tende-se a se desconsiderar outras contribuições em pesquisas sobre o

discurso. No intuito de explorar essa reflexão, o autor faz referência ao trabalho de

Schiffrin (1994) que, considerando o discurso como enunciado enquanto interação

social, estabelece um nível como se referindo à linguística do discurso e outro às

abordagens.

Essa posição defendida por Schiffrin cria alguns problemas. A autora compartilha

seis postulados para especificar a Análise do Discurso, porém Maingueneau (2007)

argumenta que esses postulados não podem ser compartilhados por outros

pesquisadores. Ademais, o discurso para Schiffrin se refere à interação oral e,

portanto, deixa de fora questões atinentes à subjetividade enunciativa e aos gêneros

do discurso. Quanto às abordagens, o autor pondera que elas estão ligadas às

concepções da linguagem e do sentido, como a teoria dos atos de fala e a

pragmática, ao que seria problemático tratar as práticas de análises como

abordagens discursivas, como aponta Maingueneau (2007, p. 24),

Parece-nos preferível não incluir nas “abordagens” do discurso aquilo

que na realidade pertence aos recursos comuns a todos os que

trabalham com o discurso: gênero de discurso, coerência e coesão

textuais, tipologia dos discursos, polifonia, atos de linguagem, teoria

da polidez, etc. Certamente uma corrente vai enfatizar um dado tipo

de recurso, outra corrente, um outro tipo de recurso, mas dificilmente

poderemos falar desses recursos em termos de abordagens.

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Assim, Maingueneau (2007) considera que é necessário adicionar a esses recursos

as hipóteses teóricas compartilhadas por vários outros pesquisadores do discurso.

Diferente da posição de Schiffrin e outros pesquisadores cujas pesquisas em

discurso se dividiriam em abordagens, Maingueneau (2007) propõe examinar a

relevância das disciplinas do discurso, entre elas a AD.

Caso aceitemos que as pesquisas acerca do discurso sejam estruturadas por

abordagens ou correntes, devemos entender, ao mesmo tempo, uma certa

concepção do discurso; da finalidade de seu estudo; dos métodos pertinentes para

analisá-lo. (MAINGUENEAU, 2007, p. 25) Caso contrário, o autor sugere uma dupla

hipótese: (2007, p. 25-26),

(i) a comunicação verbal abordada como discurso oferece um

número reduzido de ângulos de ataque (justificação pelo objeto); em

outros termos, por sua existência mesma, as disciplinas, por pouco

estáveis que sejam, dizem algo acerca do objeto com o qual elas se

confrontam. É verdade que, da mesma forma que as “correntes”, as

disciplinas não são realidades trans-históricas (sabe-se, por exemplo,

que o campo da retórica tradicional era muito mais amplo do que o

das teorias modernas da argumentação), mas elas se desenvolvem

num período de tempo mais longo e são menos afetas à

individualidade de um fundador;

(ii) a pesquisa exige espaços sociais de disponibilização dos

produtos científicos; exige comunidades de pesquisadores que

necessitam trabalhar com espaços menos indeterminados do que «o

discurso», territórios que sejam comuns a várias correntes.

Disso ocorre que, ao aceitarmos a posição das abordagens, teremos, segundo

Maingueneau (2007), que nos enviesar por uma pesquisa que não confere

relevância à orientação sociodiscursiva. De outro modo, caso nos posicionemos em

relação às disciplinas, devemos aceitar que exista uma “orientação essencial” entre

a disposição sociodiscursiva e a disposição institucional. Logo, se sustentarmos a

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distinção entre duas disciplinas do discurso tal fato deve ser relacionado ao objeto

de estudo.

As correntes ou abordagens podem receber diversos tratamentos no interior de cada

disciplina e contribuírem, de forma significativa, para os interesses das pesquisas.

Além de agrupamentos por correntes, Maingueneau ressalta os agrupamentos pelos

territórios delimitados pelo objeto, ou seja, os campos discursivos. Desse modo, as

pesquisas em Análise do Discurso estariam estruturadas em disciplinas que

coexistem com “correntes” e por uma divisão por “territórios.” As pesquisas por

territórios, não são apenas uma demanda social, elas interferem nas composições

dos conceitos, além de produzirem efeitos profundos tanto no plano teórico quanto

no plano institucional. Desse modo, completa o autor (2007, p. 28-29),

(i) em primeiro lugar, agrupamentos por disciplinas do discurso e por

correntes (integradas ou não em uma disciplina). Os pesquisadores

aí compartilham um determinado número de postulados e de

“recursos” conceptuais e metodológicos, ainda que nem todos

compartilhem os mesmos;

(ii) em segundo lugar, um agrupamento por territórios, o qual pode

ser realizado em dois níveis distintos: agrupamentos de linguistas do

discurso que não pertencem às mesmas correntes ou disciplinas;

agrupamentos entre linguistas do discurso e pesquisadores de outros

domínios.

Para Maingueneau (2007), portanto, esses diferentes modos de agrupamentos

promovem o caráter de instabilidade das pesquisas em Análise do Discurso e

dificultam o reconhecimento dos limites de cada disciplina.

Nessa perspectiva, o autor visa a discutir as questões das unidades fundamentais

com as quais operam os pesquisadores do discurso. Em AD é necessário

estabelecer uma articulação entre os conceitos de FDs, de posicionamento e de

gênero do discurso. Considerando o caráter heterogêneo da AD, o autor a divide

entre um procedimento integrativo e um procedimento analítico. Este, proposto por

Pêcheux e com forte presença da Psicanálise, tem por objetivo dispersar as

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continuidades a fim de apresentar nos textos as redes de relações invisíveis entre

enunciados. Aquele, ao contrário, consiste em articular os componentes de atividade

discursiva, tomada em sua dimensão social e textual. Esse empreendimento foi

ilustrado pelos trabalhos de Adam (1999) e Charaudeau (1995). Visando a afinar e

ampliar tais procedimentos, Maingueneau (2007) passa a tratar das unidades

tópicas e não tópicas.

As unidades tópicas subdividem-se em territoriais e transversas. As unidades

territoriais correspondem a espaços pré-delineados pelas práticas verbais. Trata-se

de tipos de discursos associados a certos domínios da atividade social, como o

discurso administrativo, publicitário, jurídico etc.; que englobam alguns gêneros de

discursos compreendidos como dispositivos de comunicação sócio-historicamente

variáveis (MAINGUENEAU, 2007, p. 30), uma vez que são definidos no quadro das

práticas verbais instituídas. As unidades transversas são aquelas que atravessam os

textos relativos a diferentes gêneros do discurso. São registros definidos com base

em critérios linguísticos, funcionais ou comunicacionais.

Os critérios linguísticos podem ser de ordem enunciativa como os instaurados por

Benveniste (1966) e aprofundados por Simonin-Grumbach (1975) e Bronckart

(1985), ou fundados em estruturações textuais como em Adam (1999). Os critérios

funcionais podem ser ilustrados pelo esquema das funções de Jakobson (1974),

também há outros estudos que presumem a linguagem mobilizada ao cumprimento

de funções dominantes específicas como a lúdica, a informativa, o ritual, entre

outras. Enfim, os critérios comunicacionais são a combinação de traços linguísticos,

funcionais e sociais, como o discurso cômico, o discurso didático etc.

As unidades não tópicas são constituídas pelos pesquisadores de forma a satisfazer

o campo de interesse. Elas se diferem das unidades tópicas no sentido em que sua

construção ocorre de modo emancipado das fronteiras estabelecidas. E pelo fato de

se agruparem em enunciados inscritos na história, se distinguem das unidades

transversas. São, por isso, as unidades não tópicas que marcam sua presença nos

discursos sem, contudo, validar o próprio pertencimento, como é o caso do discurso

racista. (NASCIMENTO, 2013, p. 19) Maingueneau (2007) reserva o termo FD para

as unidades não tópicas.

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Além disso, na construção do corpus, o analista do discurso pode utilizar-se de

percursos diversos, ou seja, construir corpus de elementos de diversas ordens

(palavras, grupos de palavra, frases, fragmentos de textos) extraídos do

interdiscurso, sem buscar construir espaços de coerência, ou seja, sem procurar

constituir totalidades. (MAINGUENEAU, 2007, p. 32). Para sintetizar o que foi dito

até agora, reproduzimos o quadro das unidades elaborado pelo autor.

Figura 1. Unidades tópicas e unidades não tópicas

Cabe lembrar que, para Maingueneau, não há análise do discurso sem as unidades

tópicas - territoriais ou transversas - também não devemos limitar a análise somente

às unidades tópicas, já que o discurso coloca em relação o interdiscurso, este, por

sua vez, tem primazia sobre o discurso. É nesse sentido que a AD é vista como uma

disciplina instável que se modifica conforme o andamento da comunicação humana.

Logo, para Maingueneau (2007, p. 34),

Parece impossível chegar a uma síntese entre um procedimento

assentado em fronteiras e uma abordagem que desfaz essas

fronteiras: a abordagem que consiste em desfazer fronteiras

alimenta-se dos limites que caracterizam o procedimento de

estabelecimento dessas mesmas fronteiras. Entre ambos verifica-se

Unidades tópicas Unidades não tópicas

Territoriais Transversas Formações Discursivas

Percursos

Registros linguísticos Registros funcionais Registros comunicacionais

Tipos / Gêneros de discurso a) Gêneros de campos b) Gêneros de aparelhos

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uma assimetria irredutível. O sentido é fronteira e subversão da

fronteira, negociação entre lugares de estabilização da fala e forças

que excedem toda e qualquer localidade.

Nesse breve itinerário, observamos que muitos foram os empreendimentos que

possibilitaram a fundação da AD. Esses atos fundadores contribuíram para conferir à

disciplina seu caráter interdisciplinar. Também contribuíram a essa

interdisciplinaridade as correntes como a etnografia da comunicação, as correntes

pragmáticas, a linguística textual ou as problemáticas de Foucault que, integraram o

desenvolvimento desse agrupamento de pesquisas que se encontram hoje em dia

sob o rótulo de análise do discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 1) Tendo em vista as

considerações de Maingueneau atinentes à Análise do Discurso e suas fronteiras,

passamos a comentar, na próxima seção, a noção de discurso e os dispositivos

teórico-metodológicos no quadro da AD.

2.4. A noção de discurso: conceitos e fatos discursivos

Tencionamos inserir a perspectiva crítica da AD a partir das análises de

Maingueneau, compreendendo suas abordagens como suporte teórico-metodológico

de nosso trabalho. A maneira de Maingueneau praticar a AD baseia-se em ver na

disciplina um espaço de pleno direito dentro das ciências humanas e sociais, um

conjunto de abordagens que pretende elaborar os conceitos e os métodos fundados

sobre as propriedades empíricas das atividades discursivas. (MAINGUENEAU,

2006, p. 2) Nesse contexto, exporemos a definição desse autor sobre a noção de

discurso para, então, comentarmos acerca dos dispositivos teórico-metodológicos de

análise e a relação dialética entre os conceitos e os fatos discursivos no atual

processo de construção da disciplina.

Em princípio, o termo análise do discurso pode ter diversos sentidos. Se, numa sala

de aula de ensino básico, um professor disser, em posse de um texto, que a

proposta da aula é analisar o discurso, é muito provável que a fala desse professor

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seja compreendida como um ato de leitura e de explicação do referido texto,

supondo nele sentidos pré-construídos. Se após a leitura desse mesmo texto, parte

dos alunos chegasse à opinião de que o discurso materializado naquele texto é

racista, poderíamos indagá-los: por quê? Enquanto leitores, investigaríamos quais

elementos internos e externos do texto satisfazem nossas indagações, porque,

talvez, outra parte dos alunos não atribuiria ao texto um conteúdo racista em sua

leitura. Assim, o primeiro entendimento de leitura e explicação de texto já não seria

suficiente. A pergunta a ser feita é de onde surge a possibilidade de atribuir tais

“sentidos” ao hipotético texto?

A disciplina de AD surgiu, como dissemos, da questão da leitura, isto é, de um

projeto proposto, em especial, por Pêcheux para consolidar uma teoria menos

subjetiva de leitura, numa conjuntura intelectual que nos anos 1960 sob a égide do

estruturalismo, viu articularem-se, em torno da reflexão sobre a “escritura”, a

linguística, o marxismo e a psicanálise. (MAINGUENEAU, 1997, p. 10) Nesse

contexto, pôde desenvolver-se uma prática escolar de explicação de texto, que,

segundo Maingueneau (1997), ocorria na França em todos os níveis escolares.

Contudo, a prática de análise do discurso pretendeu diferenciar-se da prática de

análise de conteúdo. Enquanto esta tomava os textos com um sentido fechado,

codificado, criando interpretações cristalizadas, aquela tencionou oferecer uma

leitura menos fechada, interpretações possíveis com procedimentos de análises

mais precisos. Diante disso, foi possível construir e aplicar esses procedimentos de

modo que se fez necessário definir o objeto da disciplina de AD.

Essa definição de discurso, no interior da AD, é essencial para propor outro ponto de

vista acerca da prática dessa disciplina no âmbito da educação, sobretudo como

uma prática efetiva na leitura e escrita. Se compararmos sua gradual inserção nos

cursos de graduação de Língua Portuguesa e, por conseguinte, sua abrangente

repercussão em pesquisas de pós-graduação, a AD tem, hoje, pelo menos no Brasil,

pouca penetração na supracitada prática escolar. Como nos assinala, Nascimento

(2013, p. 14-15),

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Em nossa prática docente, temos observado que, quando se discute

a questão pedagógica de Língua Portuguesa, ainda restam

resquícios da orientação tradicional em que se privilegiava o ensino

de regras gramaticais, unicamente aplicada à língua escrita em sua

variante padrão-culta. Nessa perspectiva, ainda que colocando o

texto em foco, esse acaba empregado como pretexto para o ensino

de normas gramaticais.

A imprecisão causada no exemplo da sala de aula ao se referir à prática de análise

do discurso não surge tão somente da apreensão corrente que se faz do emprego

usual do termo discurso, mas a certa falta de diálogo entre a AD e o ensino de

Língua Portuguesa. Assim, torna-se constante a necessidade de se definir a

concepção de discurso e, por conseguinte, de análise de discurso na prática escolar

de leitura e “análise de texto” na perspectiva da AD. Maingueneau (2011) apresenta

os empregos do uso do termo discurso que, de modo geral, elucidam sua

indefinição.

O primeiro diz respeito ao modo ambíguo de apreensão desse termo. Chamamos

de “discurso” os enunciados solenes (“o presidente fez um discurso”), ou

pejorativamente, as falas inconsequentes (“tudo isso é só discurso”).

(MAINGUENEAU, 2011a, p. 51) O termo discurso, segundo o autor, pode designar o

uso restrito da língua, como o discurso racista. Logo, ao dizermos que um discurso é

racista, referimo-nos tanto ao sistema que permite produzir um conjunto de texto –

as teorias racistas produzidas no século XIX ilustram esse sistema - quanto à própria

totalidade de textos elaborados. Outro emprego usual do termo, segundo

Maingueneau (2011a), diz respeito a uma distinção oriunda da linguística entre

discurso e narrativa ou história, estabelecida por Benveniste (1966).

Na França, Maingueneau ressalta que essa última distinção é explorada no que

seria o equivalente ao nosso ensino médio e opõe um tipo de enunciação ancorado

na situação de enunciação a outro, isolado da situação de enunciação.

(MAINGUENEAU, 2011a, p. 52) No Brasil, por força do entendimento do primeiro

emprego do termo discurso – enunciados solenes e falas inconsequentes - a prática

de análise do discurso no ensino da Língua Portuguesa representada pela AD

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merece melhor esclarecimento, uma vez que sugere uma análise para além do foco

no texto.

Assim, embora a noção de discurso seja empregada com acepções distintas,

adotaremos a concepção proposta por Maingueneau (2008a) que entende por

discurso uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir

como um espaço de regularidades enunciativas. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 15)

Essa definição, orienta-nos a conceber o discurso como atravessado pela

discursividade, ou seja, sua constituição ocorre por sua relação multiforme com

outros discursos, o que antecipa o primado do interdiscurso postulado por

Maingueneau (2008a). Ademais, deixa-nos ver a AD numa perspectiva

plurisemiótica de texto e considera as suas constantes imersões em corpora

voltados para objetos não linguísticos ou advindos da semiótica. Ao adotar essa

noção de discurso, Maingueneau (2011a) acrescenta-lhe algumas características

que passamos a comentar.

O discurso é uma organização situada para além da frase. Nessa perspectiva, não

se trata de considerar o discurso a partir de manifestações superiores à frase, ou

seja, em sua aparente equiparidade com o texto, mas trata-se de verificar que o

discurso mobiliza estruturas de outra ordem que as das frases. Desse modo, uma

palavra como “silêncio” vista em uma placa dentro de um hospital será recebida

como discurso, uma vez que esse pedido materializado pela palavra “silêncio” está

submetido a regras de organização vigentes em um grupo social determinado.

(MAINGUENEAU, 2011a, p. 52).

O discurso é orientado. Sendo o discurso produto do ponto de vista do enunciador,

cuja materialidade linguística é desenvolvida no tempo de modo linear, esse

discurso vê-se constituído por uma finalidade e dirigido a um lugar. Seu curso, no

entanto, pode ser desviado pela fala desse enunciador. Também sua linearidade

pode ser alterada, seja num enunciado monologal, seja num enunciado dialogal.

Logo, na interatividade, as palavras são retrabalhadas de modo constante.

O discurso é uma forma de ação. Acompanhando Austin (1990) e Searle (1972),

Maingueneau considera o discurso como uma forma de ação uma vez que toda

enunciação constitui uma ação. No exemplo da palavra “silêncio” vista em uma placa

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dentro de um hospital, temos um ato que visa a modificar uma situação (barulho), ou

pelo menos mantê-la (silêncio). Considerando esses atos em nível superior,

podemos observar que eles se completam em gêneros de discursos. Talvez, na

prescrição de uma lei que visa a determinar o silêncio em hospitais e em seus

arredores, ou na produção de um panfleto, sensibilizando usuários e pacientes para

essa causa. Essas ações têm por objetivo modificar a atitude dos co-enunciadores.

Nesse sentido, a própria atividade verbal encontra-se relacionada com atividades

não verbais. (MAINGUENEAU, 2011a, p. 53)

O discurso é interativo. A interatividade se dá, no mínimo, entre dois parceiros. Nos

enunciados essa marca situa-se no par eu - tu. A interatividade manifesta-se na

interação oral de modo mais evidente. Contudo, outras formas de oralidade, embora

não aparentem ser interativas, são constituídas por um discurso cuja interatividade é

essencial. Por este prisma, Maingueneau diferencia interatividade - essência de todo

discurso - de interação oral - situação em que ocorre o discurso. Portanto, a

interatividade é constitutiva do discurso e pressupõe o par eu - tu na interação.

Como nos descreve Bakhtin (2010, p. 271),

O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do

discurso ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição

responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente),

completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo etc.; essa posição

responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo processo de

audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a

partir da primeira palavra do falante.

Nesse sentido, sendo imediata ou “retardada” essa interação, ela já está contida em

todo ato de enunciação, seja na conversação, seja nos gêneros discursivos. A

admissão da interatividade do discurso leva Maingueneau (2011a) a reformular a

noção de destinatário que designa o sujeito ao qual se dirige um sujeito falante

quando escreve ou fala. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008, p. 154). O que

de certa forma mitigava a interatividade do discurso, uma vez que sugeria um

ouvinte passivo. De outro modo, Maingueneau sugere a substituição do termo

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“destinatário” para co-enunciador, que, segundo ele, empregado no plural e sem

hífen, coenunciadores designará os dois parceiros do discurso. (MAINGUENEAU,

2011a, p. 54) Ou seja, coenunciadores passa a conter o eu-tu da interação verbal.

Mantivemos, no entanto, co-enunciadores (com hífen) com essa mesma acepção

proposta pelo autor.

O discurso é contextualizado. O contexto desempenha um papel fundamental no

funcionamento dos enunciados, tanto no que diz respeito às atividades de produção

quanto no que concerne às de interpretação. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU,

2008, p. 128) Aliás, as considerações do contexto20 sempre estiveram nos

procedimentos da AD, sobretudo a partir das questões de Althusser (2001) e

Pêcheux (2009). O sentido de um enunciado, diz Maingueneau (2011a), só pode ser

atribuído considerando seu contexto. Ademais, o discurso, embora não intervenha

num contexto, pode defini-lo.

O discurso é assumido por um sujeito. A noção de discurso define na AD a noção de

sujeito. Como a noção de discurso está marcada pela heterogeneidade, temos um

sujeito heterogêneo, cindido, clivado. Entendido dessa forma, o sujeito da AD se

move entre dois extremos sem poder estabelecer-se em suas condições sócio-

históricas enquanto sujeito totalmente consciente do que diz. O eu abandona seu

centro, deixando de ser senhor de si, já que o Outro, o incógnito, o inconsciente,

incorpora-se a sua identidade. Logo, o sujeito é um sujeito descentrado, que se

define como sendo a relação entre o eu e o Outro. Segundo Mussalin (2003), o

sujeito é de modo constitutivo, heterogêneo, da mesma forma como o é o discurso.

Por isso, quando a AD coloca o discurso como remetendo a um sujeito, ela o

posiciona como fonte de referências pessoais, temporais espaciais e, ao mesmo

tempo, indica a atitude que está tomando em relação àquilo que se diz e em relação

a seu enunciador (MAINGUENEAU, 2011a, p. 55), também o responsabiliza pelo

enunciado e a verdade daquilo que diz.

O discurso é regido por normas. Dentre elas está implicado nos enunciados certo

interesse para o co-enunciador. Para cada ato de enunciação surgem normas

20 Em nosso trabalho o termo contexto é substituído pela categoria de condições sócio-históricas de produção.

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distintas, logo os co-enunciadores devem conhecer e respeitar as regras. Segundo

Charaudeau e Maingueneau (2008), os atos de enunciação inscritos nos gêneros do

discurso concorrem para que as normas do discurso sejam legitimadas.

O discurso é considerado no bojo de um interdiscurso. Noção essencial da AD, o

interdiscurso, está para o discurso como o texto está para o intertexto. Assim, o

discurso não adquire sentido a não ser no interior de um universo de outros

discursos, através do qual ele deve abrir caminho. (CHARAUDEAU &

MAINGUENEAU, 2008, p. 172) Desenvolveremos essa noção na próxima seção.

2.5. O primado do interdiscurso e um sistema de restrições semânticas globais

Cabe lembrar: o discurso está para o interdiscurso assim como o texto está para o

intertexto. Ao incluir na definição de discurso o fato de ser uma dispersão de textos,

Maingueneau (2008a), passa a elaborar sua primeira hipótese acerca da noção de

discurso, trata-se de postular o primado do interdiscurso sobre o discurso. Segundo

o autor, esse pressuposto pode ser interpretado de duas maneiras.

A primeira, mais evidente, é que todo discurso só pode ser entendido em relação a

outros discursos. A segunda presume que, na gênese, os discursos não se

constituem de modo separado e depois são colocados em relação uns com os

outros, mas se compõem de modo constante no interior do interdiscurso. Logo,

porque os discursos se compõem de modo híbrido, a identidade seria estruturada

pela relação interdiscursiva.

A noção proposta por Authier-Revuz (1990; 2004) acerca da heterogeneidade

enunciativa pode evidenciar os estudos sobre a hipótese do primado do

interdiscurso, já que este pressupõe a presença do Outro. As discussões

precedentes convergiram com as noções propagadas pelo círculo em torno de

Bakhtin para o qual o discurso opera sobre outros discursos e que a linguagem é

substancialmente heterogênea. Authier-Revuz mostrou, acerca dessa perspectiva,

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que existem, no discurso, dois tipos de heterogeneidade: a heterogeneidade

mostrada e a heterogeneidade constitutiva.

A heterogeneidade mostrada pode ser identificada no nível linguístico, ela se mostra

por meio de citações, manifestações explícitas, intertextos marcados, autocorreções

etc. Esse tipo de heterogeneidade deixa mostrar em suas sequências enunciativas a

relação explícita com o Outro. A autora assinala três tipos de heterogeneidade

mostrada. Aquela em que o enunciador ora se utiliza de suas próprias palavras para

transmitir o discurso do Outro, ora seleciona a palavra do Outro e a transcreve de

forma literal.

Há, também, aquela em que o enunciador assinala as palavras do Outro em seu

discurso, por exemplo, por meio de aspas. E, finalmente, aquela em que a presença

do Outro não é de modo declarado mostrada na frase, mas é apresentada dispersa

no texto implicitamente, como nos casos do discurso indireto livre. Authier-Revuz

classifica as duas primeiras formas como heterogeneidade mostrada marcada e a

última como heterogeneidade mostrada não-marcada.

A heterogeneidade constitutiva, por sua vez, não deixa marcas explícitas dessa

alteridade. Ela só pode ser definida por meio de conjecturas, uma vez que os

enunciados de outrem estão ligados de tal forma que não se pode indicá-los em uma

análise estritamente linguística. A hipótese do primado do interdiscurso se inscreve

na perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma relação

inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 31)

O autor, a fim de desenvolver a noção de interdiscurso de forma mais precisa no

quadro da AD, divide o termo em três concepções, quais sejam: universo discursivo,

campo discursivo e espaço discursivo. Essas três acepções permitem delimitar os

campos de análise a ser examinado.

Contudo, essas delimitações não são evidentes, o analista, assim, é conduzido a

isolar, no campo, espaços discursivos, isto é, subconjuntos de formações discursivas

que o analista, diante de seu propósito, julga relevante por em relação.

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 35) Essa tríade proposta pelo autor pode ser

representada como na figura abaixo:

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Figura 2. Esquema do interdiscurso.

O conjunto heterogêneo de FDs presente no universo discursivo interage numa

conjuntura específica. Essa totalidade, embora possa ser esgotada, não pode ser

tomada em sua globalidade. Caso o analista, em uma dada conjuntura, queira

estudar o discurso religioso, isto é, queira recortar uma ou mais FDs que interagem

nesse universo discursivo, ele passará a lidar com os campos discursivos. Esses

campos podem ser entendidos como um conjunto de formações discursivas que se

encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região

determinada do universo discursivo. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 34)

Para cada universo discursivo existem diversos campos discursivos, ou seja, no

interior de uma conjuntura dada pode haver o discurso político, o discurso religioso,

o discurso científico etc., postos em concorrência de modo a se confrontarem, se

coligarem, ou mesmo, se manterem aparentemente neutros em relação recíproca.

Os espaços discursivos – subconjuntos do campo discursivo - são dispostos em

relação de reciprocidade pelo analista do discurso. Cada campo discursivo é

formado de diversos espaços discursivos.

Consideremos ainda o discurso religioso.

Ao recortá-lo, o analista não o estuda em sua plenitude, dele remove um

subconjunto: um espaço discursivo que contenha, no mínimo, dois posicionamentos.

Esse procedimento é necessário, dada a impossibilidade de determinar, antes da

análise, as modalidades das relações entre as várias FDs de um campo.

Universo discursivo

Campo discursivo Espaço

discursivo

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Importa lembrar que qualquer campo discursivo não existe de modo separado, uma

vez que todo enunciado do discurso é dialógico. Logo, esses campos comportam

muitas FDs de onde os espaços discursivos são recortados, resultados, portanto, de

uma escolha feita pelo analista. Por intermédio dessa análise, os discursos passam

a se constituir dentro de cada campo discursivo. Eles se amalgamam e se ampliam

indeterminadamente por muitas perspectivas, confirmando seu caráter heterogêneo.

Dessa maneira, discernir este tipo de primado do interdiscurso é incitar a construir

um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade

de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com o seu

Outro. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 35-36) Nesse sentido, a análise faz desencadear

uma rede de sentidos, surge um espaço de trocas entre vários discursos, todavia

para poder analisar o discurso considerando sua interdiscursividade, o autor propor

a existência de um sistema de coerções semânticas globais.

Há um sistema de restrições semânticas globais que organiza os elementos

coercitivos de um discurso e que pode ser utilizado de modo amplo para analisar o

interdiscurso. A semântica global diz respeito a um conjunto de regras que orienta

todas as dimensões do discurso. Desse modo, a condição global dessa semântica

se manifesta no fato de que ela restringe simultaneamente o conjunto de ‘planos’

discursivos: tanto o vocabulário quanto os temas tratados, a intertextualidade ou as

instâncias de enunciação. (MAINGUENEAU, 2008, p. 22)

Nessa perspectiva, é possível afastar esquemas de análise que acatam as teorias

da significação cujo foco esteja voltado aos signos ou as sentenças, já que a

semântica global propicia ao analista normas de funcionamento do discurso. Desse

modo, não pode haver um lugar específico ou privilegiado incorporado ao

funcionamento discursivo. Como consequência desse pressuposto, rejeita-se a

noção de superfície textual para admitir que o discurso não tem nenhuma

profundeza, que sua especificidade não se localiza em alguma base que seria seu

fundamento, mas que se desdobra sobre todas as suas dimensões.

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 18)

Observa-se, assim, que os significados compõem-se em todos os aspectos do

discurso, dos quais, acompanhando Maingueneau (2008a), destacamos: a

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intertextualidade, o vocabulário, os temas, o estatuto do enunciador e do co-

enunciador, a dêixis enunciativa, o modo de enunciação e o modo de coesão. Cabe

lembrar que um método instituído por uma semântica global não apreende o

discurso privilegiando esse ou aquele dentre seus planos, mas integrando-os todos

ao mesmo tempo, tanto na ordem do enunciado quanto na da enunciação.

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 75).

A intertextualidade. Desde já distinguiremos intertexto de intertextualidade. O

primeiro diz respeito ao conjunto de fragmentos convocados (citações, alusões,

paráfrase) enquanto o segundo se refere ao sistema de regras implícitas que subjaz

a esse intertexto. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008, p. 289) A

intertextualidade não é um apanhado de fragmentos que visa a preencher um

sentido do texto, mas nela podemos observar o modo de citação legitimado pela FD,

o tipo ou gênero do discurso do qual esse texto “citado” resulta. Dessa maneira, para

Maingueneau (2008a),

Todo campo discursivo define certa maneira de citar os discursos

anteriores do mesmo campo. A maneira segundo a qual um físico

moderno se refere a Galileu ou a Newton não é comparável à

maneira pela qual um discurso católico se reporta à produção de são

Paulo. Mas, ao lado dessas restrições compartilhadas pelos diversos

membros de um campo, há também o passado específico que cada

discurso particular constrói para si, atribuindo-se certas filiações e

recusando outras.

Nessa perspectiva, podem-se distinguir dois tipos de intertextualidade: a

intertextualidade interna e a intertextualidade externa. De qualquer modo, o sistema

de restrição controla ambos os níveis.

Podemos notar que, no caso da intertextualidade interna, os discursos citados

possuem enunciados de uma semântica adjacente àqueles que são possibilitados

pela FD que os autorizam. Já a intertextualidade externa recorre a outros campos

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discursivos, como no exemplo citado por Charaudeau e Maingueneau (2008) entre o

discurso teológico e um discurso científico.

A respeito disso, Mussalin (2003) faz uma análise da crônica Um só seu filho de

Bráulio Tavares. A autora conclui que o enunciador, por meio da personagem,

presentifica no texto o ponto de vista religioso-católico que faz oposição a uma

ciência que se confronta com a concepção de homem como ser espiritual. É nesse

sentido que podemos dizer que o texto é heterogêneo, pois não é possível definir um

dos discursos sem remeter ao outro.

O vocabulário. O discurso não possui um léxico próprio que lhe é imanente, logo a

palavra em si não constitui uma unidade de análise, o que há é o uso polissêmico

das mesmas unidades lexicais. As palavras são empregadas em razão de sua

virtualidade de sentido na língua. Mesmo defendendo a palavra como mensageira

de valores pessoais, carregada de intenções particulares, com uma ética própria e

uma dignidade profética, cuja eficácia intrínseca assegura a criação do universo

humano. (GUSDORF, 1952), sabemos que as palavras que pronunciamos

chegaram até nós pela pronúncia de outros indivíduos, portanto estão carregadas de

sentidos em toda sua pluralidade semântica. Logo, valores, intenções e ética, por

exemplo, podem ser redefinidos em determinado período, lugar e sociedades.

Ademais, as palavras adquirem o estatuto de signos de pertencimento, já que os

enunciadores marcam, por meio de termos específicos, um que definirá sua posição

no campo discursivo.

Os temas. Ao discutir a noção de tema, Maingueneau (2008a) ressalta que essa

noção pode ser compreendida tanto em uma frase – microtemas – quanto em obras

inteiras – macrotemas. Assim, sua reflexão objetiva focalizar a acepção de tema

como sendo aquilo de que trata o discurso, independente do nível desse discurso.

Em outras palavras, a concepção de tema aqui é entendida em sentido amplo, como

o exige, por exemplo, a leitura de texto na prática escolar, quando se pergunta: qual

o assunto do texto?

Contudo, para o procedimento de análise no quadro da AD, o tema em si é

irrelevante, o que importa é o seu tratamento semântico, ou seja, considera-se a

constituição de seu sentido na relação com as FDs. A fim de explicitar essa

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assertiva, o autor argumenta que, se decompormos um discurso num conjunto de

temas, observaremos que os temas ali presentes são de outros discursos, inclusive,

de discursos adversários. Logo, os temas, mesmo que relativamente divergentes,

fazem partem do mesmo universo já aceito a priori por ambos.

Dito isso, será possível definir um novo modo de repartição das diferenças e

semelhanças de um sistema de restrições a outros discursos, no próprio sistema de

restrições do espaço discursivo, logo discursos antagonistas não serão separados

por temas, visto que a oposição entre eles é global e não apenas temática. No

momento em que observamos dois discursos em embate, somos levados a pensar

que eles falam de assuntos divergentes. Acontece que os pressupostos são

partilhados pelas FDs dentro do mesmo universo, por isso é possível tal oposição.

Entre dois discursos opostos no interior do mesmo campo discursivo não se pode

confirmar, por exemplo, sua disjunção, caso contrário esses discursos não estariam

no mesmo campo. Por outro lado, a similaridade entre eles é impossível.

Assim, de acordo com Maingueneau (2008a), os temas não estabelecidos pelo

campo discursivo podem estar ausentes no discurso, todavia aqueles que são

impostos pelo campo discursivo aparecem de variadas formas nesse discurso, um

tema imposto que é dificilmente compatível como o sistema de restrições globais

será integrado, mas marginalmente, enquanto um tema imposto fortemente ligado a

esse sistema será hipertrofiado. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 83) De outro modo,

continua o autor, os dois discursos podem conferir uma relevância equiparada ao

mesmo tema imposto.

Considerando a complexidade em abordar a questão do tema, o autor apresenta a

relação entre quatro proposições. No espaço discursivo,

1) Um discurso dado integra semanticamente todos os seus

temas; ou seja, eles estão todos de acordo com seu sistema de

restrições.

2) Esses temas se dividem em dois subconjuntos: os temas

impostos e os temas específicos.

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2’) Esses próprios temas impostos se dividem em temas

compatíveis e em temas incompatíveis. Os primeiros convergem

semanticamente com o sistema de restrições; os segundos, não,

mas mesmo assim estão integrados, em virtude da proposição (1).

2’’) Os temas específicos são próprios a um discurso. Sua presença

se explica por sua relação semântica privilegiada como o sistema de

restrições. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 84, ênfases do autor)

O estatuto do enunciador e do co-enunciador. Conforme a competência discursiva,

cada discurso define o estatuto que o enunciador se confere e confere ao co-

enunciador para legitimação do seu dizer. São parte desse processo as dimensões

institucional e intertextual.

Na primeira, temos um enunciador ligado à instituição. No exemplo dado por

Maingueneau (2008a) sobre o discurso humanista devoto, temos um enunciador

integrado a uma “Ordem”: é membro de uma comunidade religiosa reconhecida,

bispo, mestre-escola...e dirige-se a destinatários também inscritos em “Ordens”

socialmente bem caracterizadas (enquanto pais de família, magistrados, donas de

casa etc. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 87) Logo, esse discurso implica um

enunciador culto e de conhecimentos amplos, preparado para tecer relações com

variadas fontes do saber.

Na segunda dimensão, temos um enunciador anônimo que não se confere a

nenhuma inscrição social. É apenas um cristão, no máximo um padre que se dirige a

almas tomadas enquanto tais em sua unidade. (ibidem) Esse enunciador tem por

objetivo tornar seus co-enunciadores /Idênticos/ a Deus e, para tanto, ele se apaga

mesmo ante a presença desse Enunciador único com legitimidade para dizer eu.

Cabe lembrar que em matéria de intertextualidade tanto o enunciador integrado a

uma “Ordem”, quanto o enunciador anônimo, o procedimento é o mesmo. As fontes

de saber do enunciador anônimo não são vastas como as do humanista devoto, pelo

contrário, são constituídas por uma /Restrição/ a algumas obras estritamente

religiosas, que podem até ser reduzidas à unicidade da própria Escritura.

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 88)

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A dêixis enunciativa. Na língua, a dêixis define, segundo Maingueneau (1997), as

coordenadas espaço-temporais implicadas em um ato de enunciação. A dêixis

discursiva tem a mesma função, no entanto apresenta-se no universo de sentido que

uma FD constitui por meio de sua enunciação. No quadro de uma cenografia

enunciativa, portanto, temos a dêixis, o enunciador e o co-enunciador, ou seja, aqui-

agora – eu-tu. Essa cenografia abriga os co-enunciadores do discurso, uma

topografia e uma cronografia. A dêixis define uma instância de enunciação legítima,

delimita a cenografia construída pelo discurso para assentir sua própria enunciação.

O modo de enunciação. Esse diz respeito à maneira de dizer do discurso. No

exemplo do discurso humanista devoto, Maingueneau (2008a) ressalta que esse

discurso tem por objetivo agregar enunciador e co-enunciador em uma mesma

“Ordem” de sociabilidade ideal por sua própria enunciação. Dessa maneira, o texto

se apresenta como uma maneira dos co-enunciadores se comunicarem, já que são

entendidas como ‘pessoas’ de bem. As conversações e diálogos fictícios serão, pois,

os gêneros mais usados para realizar essa integração entre o enunciador e o co-

enunciador. Além disso, esses gêneros apresentam um tom, uma vocalidade, um

modo de dizer que se encontra adaptado às pessoas e às circunstâncias, logo se

apresenta uma elocução suave, moderada, flexível.

Conforme Maingueneau (2008a), o tom se apoia sobre uma dupla figura do

enunciador: a de um caráter e de uma corporalidade. O caráter corresponde a um

feixe de traços psicológicos. Quanto à corporalidade, ela está associada a uma

compleição física e a uma maneira de se vestir, (MAINGUENEAU, 2008b, p. 18)

ambos associados de modo intrínseco. No que diz respeito ao humanismo devoto, o

enunciador caracteriza-se por seu ajustamento à amabilidade, à disponibilidade e ao

contentamento, “Ordens” do Real, que se cristalizam por uma “doçura” exemplar.

Tom, caráter e corporalidade resultam de um conjunto generalizado de

representações sociais valorizadas ou não sobre as quais a enunciação se apoia.

Logo, o sentido fornecido pelo discurso se estabelece tanto pelo modo de

enunciação quanto pelas “ideias”. Essas que suscitam a adesão por meio de uma

maneira de dizer que é também uma maneira de ser. (MAINGUENEAU, 2008b, p.29)

Com intuito de evocar a imbricação do discurso com seu modo de enunciação, o

autor introduz a noção de incorporação, segundo a qual:

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i) O discurso, através do corpo textual, faz o enunciador encarnar-se,

dá-lhe corpo;

ii) Esse fenômeno funda a “incorporação” pelos sujeitos de

esquemas que definem uma forma concreta, socialmente

caracterizável de habitar o mundo, de entrar em relação com os

outros;

iii) Essa dupla “incorporação” assegura, ela própria, a “incorporação

imaginária” dos destinatários no corpo dos adeptos do discurso.

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 93)

Dessa forma, o co-enunciador faz muito mais que apenas decifrar conteúdos, ou

consumir ideias, ele compartilha um mundo configurado pela enunciação, ele acede

a uma maneira de ser, a uma identidade encarnada por meio de uma maneira de

dizer.

O modo de coesão. Por fim, o modo de coesão tem a ver com a intradiscursividade,

é maneira pela qual o discurso constitui suas remissões internas. Conforme

Maingueneau (2008a), o modo de coesão remete a teoria da anáfora discursiva e

recobre fenômenos variados como o recorte discursivo e os encadeamentos. Estes

sobrevêm em um nível mais superficial, aquele atravessa as divisões em gêneros

constituídos.

No caso do discurso jansenista, o recorte discursivo que o caracteriza é o fragmento

(máximas, ensaios, cartas, coletâneas de citações, de reflexões). Esse processo se

inscreve em coerções semânticas que favorecem a descontinuidade, a interioridade

e o fechamento. Com esse corpus, temos de haver-nos com uma justaposição de

unidades investidas do mesmo “espírito”, mas que, somando-se, não desenham a

forma de uma totalidade natural. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 95)

Já o discurso humanista devoto, leal ao seu preceito de “Ordem”, constitui seu

itinerário com elementos diversos e sucessivos, desenhando a figura de um cosmos

por causa de sua combinação hierárquica. Ao invés de fragmentos, a relação se

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funda por tomos de teologia. Seu procedimento, igualmente, tem a ver com as

coerções semânticas, a exterioridade de tomos inteiros de grandes livros. Também,

do modo de coesão advêm os modos de encadeamentos. Cada FD tem um modo

peculiar de construir seus parágrafos, seus capítulos, seu modo de argumentar,

suas formas de passar um tema ao outro. Assim, como afirma Maingueneau (2008a,

p. 96),

Todas essas junturas de unidades pequenas ou grandes não

poderiam escapar à carga da semântica global. Pode-se predizer,

por exemplo, que o discurso jansenista está submetido a uma dupla

pressão, circunscrita pelos dois semas /Similaridade/ e /

Necessidade/: de um lado, a repetição da Escritura e da Tradição

(cópia, paráfrase, comentário), de outro, deduções a partir desse

corpus autorizado.

Passamos, então, a discutir desses sistemas de restrições semânticas, o enunciador

e co-enunciador e a dêixis em sua dupla modalidade – espacial/temporal – no

quadro de uma cenografia discursiva. Explicitaremos, em primeiro lugar, a noção de

cenas de enunciação, para, num segundo momento, comentarmos sobre a noção de

ethos discursivo.

2.6. Cenas da enunciação

Ao falarmos em cenas da enunciação, estamos nos referindo a duas ideias contidas

nessa sentença. A primeira diz respeito ao item lexical cena. Podemos nos remeter

de imediato à cena de peça teatral. Neste caso, temos a concepção de partes

temáticas ou atos que se realizam durante um espetáculo teatral. Cada cena teatral

é composta por uma situação de comunicação num quadro pré-construído. Há o

espaço e tempo, bem como as personagens; as falas já estão pré-escritas e devem

ser enunciadas no desenrolar do enredo. Independente do tema de cada cena, ou

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da quantidade de personagens, existe, no interior de cada uma, um começo, um

meio e um fim que se desenrola entre pequenas rupturas entre uma cena e outra,

como um gancho para a cena seguinte até o final.

As cenas, no caso das peças teatrais, já estão pré-construídas pelos seus autores e

servem de guia para diretores, atores e atrizes e toda equipe que trabalha na

produção. O que queremos dizer é que, mesmo com todo o talento do elenco

envolvido na peça teatral, as cenas já estão previstas e descritas pelo autor da peça.

Dessa ideia de pré-constituição, portanto, é que tendemos a inferir o sentido de

cenas a um lugar e um momento e onde indivíduos realizam situações de

comunicação. O que sugere a expressão do tipo: Ele estava na cena do crime.

Enunciação, por sua vez, significa o ato do acontecimento. Sua concepção pode ser

tanto linguística como discursiva. No primeiro caso, podemos apreender a

enunciação enquanto prática individual do sujeito falante, pondo em funcionamento

a língua. No segundo caso, a que tomamos como referência neste trabalho, a

concepção de enunciação pode ser apreendida como fatos, ou seja, como

acontecimento em um tipo de contexto e apreendido na multiplicidade de suas

dimensões sociais e psicológicas. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, p.193). Esse

acontecimento é constituído de enunciado(s). Assim, para que haja enunciação é

preciso existir a marca verbal que a constitui, ou seja, o enunciado. Desde já, na

perspectiva da AD, o enunciado se opõe a enunciação.

No discurso, as cenas são construídas por meio das marcas linguísticas

selecionadas pelo enunciador e, sobretudo, por uma relação interdiscursiva. Essas

marcas, por sua vez, ancoram os enunciados na situação de enunciação – sistema

de coordenadas abstratas, associadas a toda produção verbal. As cenas de fala são

constitutivas do discurso.

Dessa forma, a situação de enunciação não é uma situação de comunicação

socialmente descritível, mas o sistema onde são definidas as três posições

fundamentais do enunciador, do co-enunciador e da não-pessoa. (MAINGUENEAU,

2006, p. 250). A situação de enunciação constrói um conjunto de posições abstratas

onde se estabilizam as atividades enunciativas, sua base é, em particular, a

marcação dos dêiticos. Consideramos, portanto, a enunciação ocorrendo em um

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espaço instituído, que o gênero do discurso irá definir e de onde se construirá uma

cena no e pelo discurso. Para desenvolvermos essa estratégia falaremos das três

cenas propostas por Maingueneau (2006; 2008c; 2011a).

O que define o quadro cênico do texto, o espaço estável no qual o enunciado tem

sentido, são as cenas de enunciação chamadas cena englobante e cena genérica. A

primeira corresponde a um tipo de discurso, ou seja, confere ao discurso um

estatuto pragmático, quais sejam: literário, religioso, filosófico etc. A segunda diz

respeito ao gênero do discurso que, como o definiu Bakhtin (2010), são tipos

relativamente estáveis de enunciados. Há ainda uma terceira cena com a qual o co-

enunciador se confronta: a cenografia. Essa cena não é imposta pelo gênero, mas é

construída à medida que a enunciação se desenvolve.

Observemos, então, o discurso pedagógico. Todo enunciado pedagógico filia-se a

uma cena englobante pedagógica, correspondente a um tipo de discurso que regula

as práticas sociais no âmbito da educação. Referimo-nos à pedagogia no sentido da

ciência da educação que estuda as práticas, metodologias e princípios da educação.

Ou, ainda, da prática de ensinar, educar, encaminhar, direcionando outrem no

caminho da aprendizagem em busca do conhecimento. Nessa última perspectiva,

vários tipos de discurso podem ser considerados pedagógicos.

Dessa maneira, fica difícil caracterizar o tipo de discurso com o qual estamos

lidando, devemos, pois, segundo Maingueneau (2011a), defini-lo por sua função

social. Esta que está unida aos lugares sociais por onde os enunciados percorrem.

O leitor deve ser capaz de determinar, ao tomar contato com um texto, a qual tipo de

discurso esse texto recebido pertence e qual a cena englobante é preciso se situar

para poder interpretá-lo. Ao lermos um relato pessoal de uma prática didático-

pedagógica, devemos nos situar na cena englobante do discurso pedagógico. Mas

isso é insuficiente, pois é na cena genérica que os co-enunciadores definirão os

seus papéis.

A cena genérica corresponde aos vários gêneros do discurso com os quais lidamos.

O gênero de discurso implica um contexto específico: papéis, circunstâncias (em

particular, um modo de inscrição no espaço e no tempo), um suporte material, uma

finalidade etc. (MAINGUENEAU, 2008c, p. 116) São os gêneros, portanto, que

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definem os papéis sociais que os co-enunciadores devem assumir. Num relato

pessoal de uma prática didático-pedagógica, por exemplo, teremos um professor

[P1] carregado de um saber-fazer e outros professores [P2] cuja vivência relatada

pelo primeiro [P1], supostamente, não foi por eles [P2] experienciada.

Essas duas cenas – englobante e genérica – definem o quadro cênico do texto, em

última instância, determinam em conjunto o espaço estável no interior do qual o

enunciado ganha sentido, isto é, o espaço do tipo e do gênero de discurso.

(MAINGUENEAU, 2008c, p. 116) Mas o leitor não se confronta diretamente com

esse quadro cênico, neste caso, outra cena intervém na interação entre os co-

enunciadores, a qual o autor chama de cenografia.

Voltemos à analogia teatral. Lá existe uma cena preestabelecida pela qual atores e

atrizes podem prever seus sentimentos e comportamentos em cada encenação.

Contudo, no caso da cenografia, o dispositivo de fala vai se constituindo conforme a

enunciação se desenvolve, ou seja, a “encenação” é construída pelo próprio

discurso. Assim, segundo Maingueneau (2006, p. 253),

A noção de “cenografia” adiciona ao caráter teatral de “cena” a

dimensão da grafia. Essa “-grafia” não remete a uma oposição

empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo

fundador, à inscrição legitimadora de um texto, em sua dupla relação

com a memória e uma enunciação que se situa na filiação de outras

enunciações e que reivindica um certo tipo de reemprego.

Nesse sentido, a cenografia desloca para um segundo plano o quadro cênico

constituído pela cena englobante e pela cena genérica. Desse modo, ao nos

depararmos com um texto de um relato pessoal didático-pedagógico, não nos

confrontamos diretamente como discurso pedagógico – cena englobante – ou com o

relato pessoal - cena genérica, mas com a cena construída pelo texto – cenografia.

Logo, o conceito de ciência da educação contido no termo pedagogia, se apaga, e o

enunciador assume, no relato pessoal, o papel social de outra acepção, qual seja:

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ensinar, encaminhar, direcionar outrem no caminho da aprendizagem em busca do

conhecimento.

Nessa perspectiva, segundo Maingueneau (2011a), todo discurso pretende

convencer, instaurando a cena de enunciação que o legitima. A cenografia, portanto,

não é somente um quadro, um cenário, como em uma peça teatral, de forma que o

discurso não aparece inesperadamente dentro de um espaço pré-construído e

independente desse discurso; é a enunciação que, ao se desenvolver, diligencia-se

por instituir de modo contínuo o seu próprio dispositivo de fala.

Dessa forma, para o autor, a cenografia provoca um processo de enlaçamento

paradoxal, já que ela é, simultaneamente, fonte do discurso e aquilo que ele

engendra. A própria cenografia legitima sua existência como enunciado, ou seja, ela

legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que essa

cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia para enunciar como

convém. (MAINGUENEAU, 2011a, p. 87-88)

Não obstante, a cenografia, para ser legitimada, necessita de se apoiar em cenas

socialmente validadas. Essas cenas já estão instaladas na memória coletiva seja a

título de modelos que se rejeitam ou de modelos que se valorizam.

(MAINGUENEAU, 2011a, p. 92) As cenas validadas, segundo o autor, se

caracterizam como estereótipos autonomizados, descontextualizados. Ainda em

nosso exemplo de um relato pessoal didático-pedagógico, veremos que as cenas de

fala validadas remetem o co-enunciador às práticas escolares bem sucedidas.

Em suma, em uma cenografia associam-se enunciador, co-enunciador, cronografia

(tempo) e topografia (espaço) de onde se origina o discurso. Contudo, uma

cenografia apenas se manifesta totalmente no momento em que puder dominar seu

desenvolvimento, conservar uma distância em relação ao co-enunciador. Mas isso

nem sempre é possível, como nos aponta Maingueneau (2008c, p. 118),

Num debate, por exemplo, é muito difícil que os participantes possam

enunciar por intermédio de suas cenografias: eles não possuem o

domínio da enunciação e devem reagir sem demora a situações

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suscitadas pelos interlocutores. Em situação de interação viva, o que

passa ao primeiro plano é, na maioria das vezes, a ameaça das

faces e o ethos.

Apesar disso, em alguns gêneros do discurso como os despachos jurídicos e

administrativos, as cenas de enunciação se limitam à cena englobante e à cena

genérica. Outros gêneros do discurso, embora possuam modelos preestabelecidos,

podem suscitar cenografias que se afastem do padrão comum. Maingueneau

(2011b) divide os gêneros dos discursos entre dois polos opostos.

De um lado, gêneros que se restringem a sua cena genérica a não admitem

cenografias variadas, como as receitas médicas e, de outro, gêneros que requisitam

que uma cenografia seja escolhida, como os gêneros publicitários. Entre esses dois

polos estão os gêneros do discurso que podem possuir cenografias variadas, mas,

de maneira geral, são construídos por meio de cenas genéricas comuns no meio em

que circulam, neste caso, ao autor cita os manuais universitários.

Em todos os casos em que um gênero do discurso suscita uma ou varias

cenografias, está implicado o ethos que dela participa. São, pois, os conteúdos

desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e validar a própria cena e o

próprio ethos, pelos quais esses conteúdos surgem. (MAINGUENEAU, 2011b, p, 77-

78) O ethos discursivo é o assunto da próxima seção.

2.7. O ethos discursivo

Passamos agora a discutir a noção de ethos discursivo, seguindo as posições

defendidas por Maingueneau (1997; 2008b; 2011a; 2011b; 2013) que se propõe a

expor três pontos sobre o ethos, quais sejam: as principais características do ethos

retórico; as dificuldades que, segundo ele, surgem quando se quer estabilizar a

problemática aristotélica na contemporaneidade; e, enfim, uma concepção

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conceitual de ethos a partir de suas investigações. Apresentaremos a seguir, alguns

aspectos dessas reflexões, começando com a retórica aristotélica.

O tratamento dado ao ethos na Retórica de Aristóteles (2011) obtém - dentro da

trilogia logos e pathos - uma dualidade. Se por um lado designa as virtudes morais

do orador as quais Aristóteles nomeia como prudência, virtuosidade e benevolência.

Por outro, implica uma dimensão social. Esta, intimamente relacionada a um grupo

de indivíduos, aquela ligada à pessoa individual. Contudo, não se excluem, são, ao

contrário, constituintes das duas faces essenciais de toda atividade argumentativa.

Desse modo, Aristóteles pretendia apresentar uma technè objetivando examinar o

que é persuasivo para tal e qual tipo de indivíduo, ou seja, não como pessoa

individual, mas como pessoa social, detentora de uma função social naquela

sociedade.

Nessa concepção, o ethos está intimamente ligado ao ato de fala, ou seja, à

enunciação. Distante, portanto, de um saber extradiscursivo. Assim, são

características desse ethos: a boa impressão causada pela construção do discurso,

e, por conseguinte, o convencimento do auditório por meio da imagem do orador, ou

seja, aquela que é revelada por ele. Para tanto, o orador deve ser prudente, virtuoso

e benevolente:

Há três tipos de meios de persuasão suprimidos pela palavra falada.

O primeiro depende do caráter pessoal do orador; o segundo, de

levar o auditório a uma certa disposição de espírito; e o terceiro, do

próprio discurso no que diz respeito ao que demonstra ou parece

demonstrar. A persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do

orador, quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz

pensar que o orador é digno de crédito. Confiamos em pessoas de

bem de modo mais pleno e mais prontamente do que em outras

pessoas, o que é válido geralmente, não importa qual seja a questão,

e absolutamente válido quando a certeza exata é impossível e há

divergência de opiniões. (ARISTOTELES, Retórica, 2011,1356a)

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Notemos que com Aristóteles estamos na dimensão da persuasão, a fala está

intimamente ligada ao processo de convencimento daquilo que é dito a persuasão é

obtida através do próprio discurso quando demonstramos a verdade, ou que parece

ser verdade. (ARISTÓTELES, 2011, 1356a) A esse respeito, Eggs (2011)

acrescenta que o que distancia Aristóteles dos retóricos de sua época é o fato

daqueles não entenderem o ethos como elemento contributivo para persuasão.

Aristóteles, ao contrário, compreende o ethos instituído por dois campos semânticos,

aparentemente, paradoxais.

O primeiro estaria associado a um sentido moral do orador, baseado em atitude e

virtudes como honestidade, benevolência, equidade etc. O segundo estaria ligado a

um sentido objetivo, de onde surgiria uma relação corporal diante de termos como

hábitos, modos e costumes ou caráter. Logo, o primeiro vê-se relacionado às

virtudes morais e o segundo à dimensão social. Para Eggs (2011) essas duas faces

são fundamentais para as atividades argumentativas.

Na acepção de ethos, relida por estudiosos como Barthes e Ducrot, o locutor não

fala de si diretamente, a boa impressão causada pelo discurso sobrevém do fato

deste conter, amalgamado ao enunciado, traços positivos de seu caráter posto pela

plateia por um saber exterior. Logo, o ethos nada tem a ver com os atributos reais do

orador, isto é, se ele é ou não honesto, sincero, benevolente, amigo, como pessoa

social. O ethos, mesmo associado ao orador (já que é ele que profere o discurso),

caracteriza-o do exterior. Em outras palavras, o auditório atribui a um orador inscrito

no mundo extradiscursivo traços que são na realidade intradiscursivos

(MAINGUENEAU, 2008b, p. 14). Não só intradiscursivos, mas também outros

elementos que são exteriores à fala como gestos, trajes, expressões faciais etc.

Essa representação não ocorre de forma cristalizada. Ao contrário, acontece de

maneira dinâmica, construída pelo ouvinte no momento em que o locutor fala. Além

disso, o ethos não atua de forma direta, mas de maneira lateral; ele implica uma

experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário.

(MAINGUENEAU, 2008b, p. 14).

O emprego do termo ethos tem um valor impreciso na língua grega, no entanto, de

maneira geral, os antigos compreendiam esse termo como a construção da imagem

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de si do locutor, sobretudo, como elemento de persuasão para garantir o sucesso de

sua fala. Maingueneau (2008b) ressalta que, mesmo na Retórica, o termo ethos tem

um sentido pouco específico, de forma que ele não se restringe a ethos discursivo,

mas serve para apontar situações regulares, ora apresentadas pelo ponto de vista

político, ora apresentadas pelo ponto de vista da idade e da fortuna.

O ponto de vista político orienta o orador a mudar o discurso de acordo com o

auditório, caso esse seja, por exemplo, aristocrata ou democrata. O ponto de vista

da idade e da fortuna recomenda ao orador considerar em seu discurso as

particularidades das pessoas do auditório. Assim, completa Maingueneau (2008b, p.

15),

Como a virtude não é considerada da mesma maneira em todos os

lugares por todas as pessoas, é em função de seu auditório que o

orador se construirá uma imagem, conforme o que é considerado

virtude. A persuasão não se cria se o auditório não puder ver no

orador um homem que tem o mesmo ethos que ele: persuadir

consistirá em fazer passar pelo discurso um ethos característico do

auditório, para lhe dar a impressão de que é um dos seus que ali

está.

Nessa perspectiva, à noção de ethos impõe algumas dificuldades. Uma delas diz

respeito às representações que o auditório constrói de um orador antes que ele fale.

É necessário, então, segundo Maingueneau (2008b), estabelecer uma distinção

entre o ethos discursivo e o ethos pré-discursivo. Nesse último caso, o orador é

uma figura pública, conhecida de seu auditório. As tomadas de decisão em sua vida

pública condicionam o ouvinte a uma impressão positiva ou negativa antes mesmo

desse orador poder ser ouvido. No caso de a impressão ser negativa, surge uma

dificuldade na questão da adesão daquele auditório, pois o ethos pré-discursivo

condiciona a construção do ethos discursivo e demanda a reelaboração dos

estereótipos desfavoráveis que podem diminuir a eficácia do argumento (HADDAD,

2011, p. 148).

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Outras dificuldades surgem no momento da elaboração do ethos pelo ouvinte. A

construção da representação que o auditório faz de um orador pode apoiar-se em

diversos índices, como o registro da língua escolhido pelo orador (formal,

semiformal, informal). Acrescentamos, também, a questão prosódica e o uso de

expressões dialetais, além da escolha do vocabulário, do percurso textual, do ritmo e

da modulação da fala. De acordo com Maingueneau (2008b, p. 16) o ethos se

elabora, assim, por meio de uma percepção complexa, mobilizadora da afetividade

do intérprete, que tira suas informações do material linguístico e do ambiente.

Dessas dificuldades, temos ainda que decidir, no trato com a noção de ethos, se

consideraremos apenas o material verbal, ou se acrescentaremos, quando se tratar

de uma situação de interação oral, outros elementos como roupas, gestos, trejeitos

etc. Um exemplo dessa complexidade pode ser observado nas aparições em público

do cartunista brasileiro Laerte, que, rompendo com o código de cultura binária, se

veste de mulher no seu dia-a-dia e em aparições públicas. Nesses casos, a

situação é complexa, já que, ante a sociedade, o ethos é uma atitude

comportamental, cuja articulação verbal e não verbal provoca efeitos

multissensoriais nos co-enunciadores. Ademais, acrescenta Maingueneau (2008b,

p.16),

A noção de ethos remete a coisas muito diferentes conforme seja

considerada do ponto de vista do locutor ou do destinatário: o ethos

visado não é necessariamente o ethos produzido. Um professor que

queira suscitar uma imagem de sério pode ser percebido como

monótono; um político que queira suscitar a imagem de um indivíduo

aberto e simpático pode ser percebido como demagogo. Os

fracassos em matéria de ethos são moeda corrente.

Maingueneau (2008b) observa que a acepção de ethos está sujeita a amplas zonas

de variação, como assinala Kerbrat-Orecchioni (1996) ou Auchlin (2001). Contudo, o

autor determina alguns elementos mínimos acerca da noção de ethos, dos quais

destacamos:

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O ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso,

não é uma “imagem” do locutor exterior a sua fala;

O ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência

sobre o outro;

É uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um

comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido

fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma

numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU,

2008b, p. 17)

O autor, embora considere que algumas linhas força da concepção aristotélica foram

mantidas, inscreve a noção de ethos no quadro da AD. Não obstante, na leitura do

autor, a noção de ethos ultrapassa bastante o aspecto restrito à argumentação. O

que para Aristóteles era o verdadeiro ‘corpo da persuasão’, a argumentação, numa

abordagem contemporânea, dá lugar a uma noção de ethos que não

necessariamente persuade pela ‘palavra’ ou discurso, mais para além daquilo que

se entrevê no discurso, a noção de ethos, em última instância, nos permite pensar

numa inscrição dos co-enunciadores a uma posição discursiva.

Nessa nova abordagem, Maingueneau alarga essa noção no sentido de considerar a

constituição do ethos discursivo nos textos orais e escritos. Interessa-nos, pois, suas

considerações ao texto escrito do qual faz emergir um fiador – o enunciador inscrito

no discurso – desse se manifesta uma voz e um corpo por meio de uma

multiplicidade de tons.

Esta instância subjetiva deixa-se conceber como uma voz inseparável de um corpo

enunciante ‘historicamente especificado’. De acordo com Maingueneau (1997;

2008b), corpo e discurso sugerem a subjetividade manifestada pelo discurso a qual

pode ser concebida como uma voz que está associada a um corpo responsável pela

enunciação. Nas palavras do autor (1997, p. 47),

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O tom, por si só, não recobre, em seu conjunto, o campo do ethos

enunciativo. O tom está necessariamente associado a um caráter e a

uma corporalidade. O ‘caráter’ corresponde a este conjunto de traços

psicológicos que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à figura do

enunciador, em função de seu modo de dizer.

Todo texto, portanto, tem uma voz (vocalidade ou tom) própria que nos permite

relacioná-la a uma caracterização de um corpo do enunciador a um fiador. Este é

construído pelo co-enunciador com base em índices disponibilizados na enunciação.

O tom que esse discurso reverbera atesta o que é dito. Dessa forma, o fiador

adquire um caráter e uma corporalidade. Esta, associada a uma tendência

comportamental, uma inclinação moral, aquele a traços psicológicos. Além disso,

acrescenta Maingueneau (2008b, 64),

O ethos implica uma forma de mover-se no espaço social, uma

disciplina tácita do corpo, apreendida por meio de um

comportamento. O co-enunciador o identifica apoiando-se em um

conjunto difuso de representações sociais, avaliadas positiva ou

negativamente, de estereótipos, que a enunciação contribui para

confrontar ou transformar.

Essa noção de ethos discursivo nos permite dizer que o co-enunciador não só se

identifica com o fiador, como também participa de seu ‘mundo ético’. Dessa forma

de apropriação implicada no processo discursivo, surge a noção de incorporação

introduzida por Maingueneau para designar a relação que o ethos estabelece entre o

discurso e seus co-enunciadores.

Para Maingueneau (2008b), a incorporação funciona em três dimensões

inseparáveis. No ato da leitura ou audição, o discurso corporifica o enunciador que

passa a ser fiador que legitima o dito e o não dito; o co-enunciador se apropria dos

esquemas característicos desse fiador; disso resulta a incorporação imaginária do

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co-enunciador ao grupo que adere a esse discurso. (CHARAUDEAU &

MAINGUENEAU, 2008)

Não se trata, contudo, de um processo ‘automático’ em que o enunciador fala ao co-

enunciador e este constrói a partir da enunciação um fiador dando-lhe um corpo

onde o co-enunciador habitará, resultando num corpo da comunidade imaginária dos

que aderem a tal discurso. Trata-se de algo mais complexo, como acrescenta o

autor (2008b, p. 18),

O ethos de um discurso resulta da interação de diversos fatores:

ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também

os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua própria

enunciação (ethos dito) – diretamente (“é um amigo que lhes fala”)

ou indiretamente, por meio de metáforas ou de alusões a outras

cenas de fala, por exemplo.

O esquema abaixo, proposto por Maingueneau (2008c), ilustra o procedimento de

interação entre as instâncias, indicando-lhe pelas flechas duplas. Esse esquema, no

entanto, conserva ainda características essenciais do ethos retórico, considerando,

por exemplo, a questão do pré-discursivo. Manteremos esse esquema, mas

apontando algumas mudanças feitas pelo autor do decorrer das discussões sobre o

ethos discursivo.

Ethos efetivo Ethos pré-discursivo Ethos discursivo Ethos dito Ethos mostrado Estereótipos ligados a mundos éticos

Figura 3. Esquema do ethos

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A representação acima mostra-se bastante ilustrativa para podermos destacar a

noção de ethos retórico e seu desdobramento na AD. A noção do ethos pré-

discursivo advém da Retórica, é a imagem que a plateia faz do orador. Se

atualizarmos nosso exemplo, poderíamos dizer que o ethos pré-discursivo diz

respeito à imagem que se faz de uma pessoa conhecida publicamente antes mesmo

dela se pronunciar, por sua vez, o ethos discursivo, talvez, confirme ou rejeite a

imagem feita anteriormente. Portanto, as flechas que indicam a interação entre

essas duas formas de ethos só podem ser concebidas quando se trata de uma

noção de ethos retórico, já que o ethos discursivo se constitui no e pelo discurso. Já

a interação entre o ethos dito e o ethos discursivo, como aponta Maingueneau

(2008b), é problemática, já que não se podem estabelecer os limites daquilo que é

dito e do que é mostrado.

Quando Maingueneau (2008b) separa essas duas formas de construção do ethos,

ele ressalta que, no caso de “autor desconhecido” o co-enunciador não pode pré-

construir uma representação do encunciador, já que não o ‘conhece’. Contudo, cabe

lembrar que, em muitos casos, embora o sujeito empírico não seja uma pessoa

pública ou midiática (um presidente de Estado, um cineasta, uma escritora, um

filósofo), a enunciação faz emergir um fiador por meio do tom, permitindo ao co-

enunciador construir um corpo e uma corporalidade dessa instância subjetiva. Esta

é, pois, a noção de ethos que adotamos em nossa análise.

Devemos notar, também, que o ethos discursivo se apoia a uma cena genérica. No

caso de nossa amostra de análise (recorte 1), como veremos no terceiro capítulo

desse trabalho, a construção do ethos se apoia no gênero relato pessoal. Se as

orientações pedagógicas de um professor-coordenador estivessem materializadas

em um gênero de discurso com alto grau de coerção, o co-enunciador poderia

rejeitar o mundo construído pelo fiador. A construção de um ethos compatível a um

professor humilde e dedicado, dada a igualdade hierárquica das posições sociais

dos co-enunciadores, faz legitimar a cena de fala instaurada. O gênero relato

pessoal tem a vantagem de permitir pela enunciação a construção de uma

cenografia que, com o ethos, implica um processo de enlaçamento.

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Dessas considerações observamos que o ethos no quadro da AD, embora se

apresente diferente das concepções da retórica tradicional, preserva algumas de

suas características, dentre elas, destacamos a construção da imagem de si no

discurso. É inegável que qualquer discurso solicite de modo, muitas vezes,

incontrolável, uma imagem daquele que fala, mas, conquanto em Aristóteles o termo

tenha diversos empregos, aquele que nos é mais caro é de um orador que conhece

a arte da retórica e a partir daí pode fazer escolhas que visem ao sucesso de seu

discurso.

Contudo, em uma nova leitura, não se trata apenas de supor a noção ethos como

um mecanismo usado para contribuir com a persuasão. De acordo com

Maingueneau (2008b), o ethos discursivo está implicado na cena da enunciação e

nos permite refletir, além da persuasão por argumentos, sobre o processo mais geral

do sujeito em relação a sua tomada de posição. Logo,

A problemática do ethos pede que não se reduza a interpretação dos

enunciados a uma simples decodificação; alguma coisa da ordem da

experiência sensível se põe na comunicação verbal. As “ideias”

suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer que é também

uma maneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e invisível, o

co-enunciador faz mais que a decifrar conteúdos: ele participa do

mundo configurado pela enunciação, ele acede a uma identidade de

algum modo encarnada, permitindo ele próprio que um fiador

encarne. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 29)

Em suma, a noção de ethos discursivo deve ser considerada para além de um

mecanismo em função da persuasão, sua apreensão está na ordem de uma

incorporação pela qual o co-enunciador se vê envolvido. Este se identifica com voz e

um corpo por onde circula numa determinada cena enunciativa.

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CAPÍTULO III

O DISCURSO DA ESCOLA DE FORMAÇÃO: INTERDISCURSO,

CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO

3.1. Delimitação das amostras

No primeiro capítulo, fizemos um breve percurso acerca dos discursos sobre a

formação de professores. Esses discursos podem ser materializados em diferentes

gêneros textuais e práticas discursivas. De diretrizes em política em educação a

panfletos distribuídos na rua, de congressos nacionais e internacionais a cursos a

distância, de propaganda política a propostas sindicais, de artigos de opinião a

conversas informais à mesa de professores. Mesmo que as questões sobre

formação docente possam ser abordadas por diferentes vieses, há sempre pontos

tensos e conflitantes ao modelo de formação a ser adotado no espaço educacional.

Debates acadêmicos sobre esse tema contribuem em uma perspectiva de reflexão

teórica frente aos inúmeros problemas existentes. Por isso, as práticas discursivas

sobre a formação de professores produzem diversas FDs concorrentes. Essas FDs

nem sempre se encontram num mesmo campo discursivo. O discurso de formação

de professores pode emergir, por exemplo, de um campo político, educacional ou

científico, presentes dentro de um universo discursivo. Dessa maneira, isolamos,

num campo educacional, espaços discursivos que colocaremos em relação. O

espaço discursivo, construído por nós, diz respeito ao discurso de formação de

professores no âmbito da SEESP, tomamos as amostras selecionadas como

unidades discursivas do campo educacional.

As FDs que formam o discurso pedagógico não estão condicionadas a um aparelho

institucional, elas se materializam por meio de posicionamentos. Nossa análise

abordará o discurso de formação de professores em nível de posicionamentos e não

como discurso de aparelho. (MAINGUENEAU, 2008a) Logo, teremos para mesmo

campo discursivo dois posicionamentos acerca da formação de professores. O

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primeiro validado pelas pedagogias hegemônicas alicerçadas pelo lema “aprender a

aprender” e o segundo validado pelas pedagogias contra-hegmônicas. No interior de

cada posicionamento, podemos encontrar pontos de vista diferentes. E outras

palavras, as pedagogias hegemônicas e as pedagogias contra-hegemônicas não

são uma unidade coesa, elas se configuram por meio de orientações pedagógicas

construídas ao longo das duas últimas duas décadas pelo menos.

Em geral, esses posicionamentos e seus desdobramentos suscitam muitas

discussões a partir de setores como o acadêmico, o de políticas públicas em

educação, o de políticas empresariais, o midiático etc. Esses campos influenciam de

modo recíproco orientações que visam a estabelecer diretrizes para a formação de

professores no âmbito de políticas públicas em educação. Mas entre a prescrição

das leis, seu debate, sua sanção até sua aplicação afetiva, os resultados positivos

são quase sempre morosos e as mudanças nos planos políticos e econômicos

provocam quase sempre interrupções das propostas, às vezes, elaboradas por anos

de trabalho.

Um exemplo dessa omissão pode ser observado no artigo 67 da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional- LDB, lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, ao

estabelecer que os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais

da educação, o seu inciso III, por exemplo - que prescreve piso salarial profissional

aos docentes - ainda está sendo objeto de ação judicial movida por instâncias

sindicais na exigência da equiparação ao piso nacional contra algumas redes de

ensino que, por diversas razões, ainda não cumprem, ou cumprem parcialmente a

lei do piso nacional21.

Enquanto muitas leis que envolvem os professores e suas carreiras ainda são

passíveis de muitas interpretações em políticas públicas em educação, as

secretarias de educação de estados e municípios criam, em seu organismo, as

diretrizes e os currículos que visam a assegurar o cumprimento das diretrizes

nacionais. Esses sistemas de ensino mencionados pela LDB são formados pelas

secretarias de educação de municípios e estados aos quais é conferido um poder

21 Sobre a relação dos estados e o cumprimento da lei do piso ver em: www.cnte.org.br.

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legítimo para promover a valorização docente conforme suas diretrizes políticas

internas.

Nessa senda, a SEESP oferece uma alternativa para estimular a citada valorização,

mas o caminho escolhido secundariza as discussões sobre valorização da carreira

docente. A formação de professores no âmbito institucional da EFAP visa, em

primeiro lugar, a constituir uma imagem renovada da profissão-professor. Assim, a

discussão, no interior da EFAP, baseia-se na assunção de uma nova postura do

professor frente aos problemas educacionais em uma sociedade em constantes

mudanças. Para tanto, a fim de oferecer uma formação com objetivos, em tese tão

gerais, a SEESP precisou incorporar, por meio do concurso público, todos os

professores ingressantes22.

O curso de formação da EFAP é oferecido a distância e toda sua organização

interna ocorre em duas grandes etapas. A primeira etapa é oferecida, como

dissemos, para todos os professores ingressantes e tem orientações didático-

pedagógicas em seu conteúdo basilar. A segunda etapa contempla o conteúdo das

disciplinas de cada docente. Ao todo, o curso tem carga horária de 360 horas,

divididas em três encontros presenciais e em dezoito módulos de 20 horas, sendo

cada módulo equivalente a uma semana de trabalho e composto de conteúdos

digitais, referências bibliográficas e de um conjunto de atividades a serem

desenvolvidas pelo cursista. Dado que todos os professores são obrigados a estudar

a primeira parte do curso constituída pelos conteúdos didático-pedagógicos,

selecionamos dessa etapa nossas amostras de análise.

Conquanto os módulos sejam temáticos e com enfoques diferentes, as questões

tratadas são guiadas por um fio condutor atinente à prática escolar. Objetiva-se

discutir em cada módulo a relação entre os sujeitos envolvidos no processo de

ensino-aprendizagem. Assim, de um lado, ressaltam-se a construção de um projeto

político-pedagógico na escola e a necessidade de uma gestão democrática e

autônoma. De outro, apresenta-se como método de prática escolar as noções de

mediação da aprendizagem e a concepção de professor mediador as quais são

consideradas como condição fundamental no processo de ensino-aprendizagem.

22 Após a realização do concurso, a EFAP incorporou o curso a distância nos sistemas regionais de ensino, oferecendo-o a todos os professores da rede, exceto aos contratados.

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Algumas questões perpassam por todos os módulos da parte pedagógica e são

reforçadas por meio de atividades discursivas as quais o cursista deve discutir

mediante enquetes, fóruns, provas objetivas e dissertativas. Focalizamos, para o

desenvolvimento da análise, algumas dessas questões, como o fato da profissão

docente não ser uma escolha profissional e sim afetiva, ou como a empatia nessa

profissão é vista como necessária, e, por fim, a construção de um perfil de bom

professor, ou de profissional desejável. Esses pressupostos serão retomados mais

adiante.

Para constituição de nossas amostras, escolhemos unidades discursivas presente

na primeira parte do curso23 no módulo 2, não só o discurso presente no próprio

corpo da página, como também discurso “lincado”, ou seja, postado na plataforma

por meio de links (hipertexto) de produtor externo. Essa estratégia é evidenciada por

toda plataforma de estudo e contempla, desde artigos científicos a blogs pessoais.

A noção de mediação de aprendizagem e de professor mediador, bem como as

temáticas da empatia e do ofício do professor e sua função social foram priorizadas

pelo enunciador nas amostras por nós selecionadas, dessa maneira, nossa escolha

objetivou a produtividade das discussões acerca desses temas, e, sobretudo as

tensões e valores gerados pela interdiscursividade nos espaços discursivos do

campo de formação de professores em educação básica na escola pública. Essas

noções e temáticas se relacionam de modo constante com a perspectiva de uma

sociedade em mudança onde a escola, docentes e alunos estão inseridos. Nossas

amostras, portanto, é constituído por FDs em concorrência.

A primeira amostra (recorte 1) trata-se da unidade discursiva O que é mediação da

aprendizagem? que foi postada por meio de link. Presente no módulo 2, a amostra

Oficio de professor (recorte 2) que diz respeito à temática da empatia profissional.

Nesse mesmo módulo, selecionamos a sequência didática em O ofício do professor

(recorte 3) cuja temática da função social do professor se presentifica.

A plataforma de ensino da EFAP, quando não expõe o conteúdo diretamente no

interior dos módulos a serem estudados, indica links aos textos que devem ser lidos. 23 O curso de formação de professores, bem como seu conteúdo pode ser acessado somente pelo cursista no período ofertado pela SEESP durante o concurso, portanto, não podemos ter acesso ao conteúdo do curso por meio de site.

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Desse modo, consideramos os textos e hipertextos presentes no curso, como

fazendo parte dos conteúdos da EFAP, já que esta não permite postagens diretas de

cursistas nos conteúdos dos módulos, ou seja, as postagens de cursistas são

permitidas apenas por meio de fóruns e de questões discursivas e não fazem parte,

propriamente, dos conteúdos dos módulos estudados. Logo, sendo assinados ou

não, entendemos que os discursos materializados na plataforma de ensino

pertencem à instância da EFAP por onde podemos observar um metaenunciador é

essa instância que reúne o conjunto de textos para formar o todo. É a este

metaenunciador que se pode atribuir um ethos específico. (MAINGUENEAU, 2013,

p. 175)

3.2. Três categorias de análise: interdiscurso, cenografia e ethos

As discussões feitas sobre a constituição da EFAP no interior da SEESP remontam

à necessidade do governo paulista de atender às demandas nacionais e

internacionais para a qualidade do ensino, o que inclui a formação de professores.

Dadas essas condições mais abrangentes da EFAP, situaremos as condições de

produção das amostras por nós selecionadas. Esse procedimento torna-se útil por

corroborar com a hipótese, sugerida no primeiro capítulo, de constituição de uma

formação docente que menos privilegia um plano de carreira docente e mais aponta

para a resolução de uma ‘crise’ na educação paulista, produzindo na prática

discursiva, tensões e valores na produção de sentidos.

A utilização do embreante em primeira pessoa do singular - eu, para discutir um

conceito complexo e polêmico de aprendizagem mediada, surge como estratégia na

amostra por nós selecionada. (recorte1) Nota-se, em todo curso, a omissão de

conceitos oriundos das teorias que fundamentam os temas, eles são sugeridos ora

indiretamente por meio de vídeos e/ou textos de educadores, ora diretamente por

meio da bibliografia citada, mas não na própria plataforma.

O embreante em primeira pessoa tem a vantagem de inscrever o co-enunciador- no

caso os professores cursistas - no processo enunciativo. Este “eu” é um lugar vazio

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que pode ser assumido por qualquer um. (MAINGUENEAU, 2013, p. 155) O co-

enunciador não só ocupa a posição do sujeito da enunciação, como também se

identifica com ela. Já nas amostras que tratam do ofício do professor (recortes 2 e 3)

em sua primeira parte (recorte 2) o embreante utilizado é de primeira pessoa do

plural – nós. O enunciador se coloca na posição de professor, diferenciando- se

deste a partir da segunda parte (recorte 3) ao discutir sobre a função social docente,

nesse momento, na sequência [1] e [2] há um apagamento das pessoas de onde se

constitui um ethos de um metaenunciador, depois, na sequência [3] o ethos do

enunciador assume a posição discursiva.

No recorte 1, trata-se de um relato pessoal presente no módulo chamado Mediação

da Aprendizagem. Escrito no ano de 2010, essa unidade discursiva faz parte da

primeira versão do curso de formação oferecido pela SEESP na modalidade a

distância. Nesse relato pessoal24 um autor empírico usa o espaço destinado ao

conteúdo do módulo para escrever sua prática junto aos professores, na tentativa de

esclarecer a importância da mediação na aprendizagem do ensino.

O referido relato assume a posição central na discussão de um conceito-chave

presente na nova função do professor do ensino básico da escola pública do estado

de São Paulo, essa concepção diz respeito à noção de professor-mediador.

Diferente do professor-reflexivo - termo muito difundido na década de 1990 - o

professor-mediador não dá ênfase exagerada a questões da produção de saberes e

competências, mas se posiciona entre essas questões, logo sua competência está

pautada no processo de mediação da aprendizagem do aluno.

Esse conceito de mediação da aprendizagem presente nas obras de Vygotsky e

depois Feuerstein é recorrente fundamenta no recorte 1. Em Vygostsk, grosso

modo, a experiência empírica do ser humano no mundo ocorre, desde a infância, de

forma mediada, seja por materiais formais, (objetos de brinquedo) seja pela figura

materna, ou familiar. Nesse sentido, faz-se uma analogia com o educador

estabelecendo sua presença como um elo entre o aluno e o conhecimento existente.

24 No relato pessoal, predominam verbos e pronomes em 1º pessoa do singular; no entanto, veremos que o enunciador utiliza-se do recurso da 1º pessoa do plural e, por vezes, do apagamento das pessoas, essa estratégia atribuímos a voz de um metaenunciador.

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Entre as contribuições de Feuerstein destacamos a Experiência de Aprendizagem

Mediada - EAM que se revela importante na interseção entre duas pessoas. Uma

como deficiências cognitivas e a outra com bastante experiência que serve como

mediador entre os estímulos do meio ambiente e a pessoa com problemas

cognitivos. Nessa perspectiva, o professor se torna um mestre em “fazer perguntas

planejadas” esperando as respostas adequadas a suas perguntas. Ou seja, o

professor irá encaminhar o aluno em um raciocínio, compartilhando significados

efetivos e intelectivo-sociais, cujos resultados, segundo essa teoria, são

experiências de aprendizagem promotoras de conhecimento.

No recorte 2, a questão da empatia é fortemente marcada. Escrito num contexto

sócio-histórico educacional em crise, em que se proclamava, além de melhores

salários, condições de trabalho dignas, esse texto visa a recuperar um sentimento

muito explorado num passado recente: o amor pela profissão docente. O capital

simbólico que a profissão docente oferecia em décadas passadas, já não é no atual

momento tão recuperável. Contudo, o discurso de amor pela profissão continua

revigorante.

Houve um declínio forte na inclusão de jovens na carreira docente nas últimas duas

décadas. Como mostramos no primeiro capítulo, os baixos salários e as condições

de trabalho foram apontados nas pesquisas como fatores essenciais para evasão de

jovens talentos ao exercício da profissão de professor. O recorte 2 está localizado

nessas condições sócio-históricas de produção, mas de forma oposta, visa a

recuperar, pelo viés afetivo e insuflado que dá a noção de mediação da

aprendizagem, o prestígio da profissão de professor, mostrando-a como instrumento

regulador das relações afetivas entre professor e aluno. Segundo essa visão, fatores

negativos da profissão advêm de uma posição ególotra e devem ser colocados de

lado em favor do conhecimento da realidade dos alunos. Em última instância, o

pressuposto é que um novo professor deve surgir para uma nova escola de novos

alunos.

No recorte 3, temos outro ponto de vista em relação ao ofício de professor. Se esse

professor-mediador necessita da empatia para com sua profissão e, portanto, para

reconhecer o Outro como ser social carregado de valores, será preciso, também,

refletir tal posição por meio de uma ‘ética’ profissional. Mesmo que as políticas

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públicas em educação não tenham como foco a valorização da profissão docente,

mesmo que vivamos em um país que valoriza pouco o professor de ensino básico,

mesmo que tenhamos observado uma “fuga” na última década de novos talentos no

magistério, o recorte 3 tem por escopo elevar socialmente a profissão de professor.

Nesse sentido, insiste-se em que o sujeito tenha como objeto de pertencimento

profissional a negação da imagem de um professor relapso, egocêntrico,

individualista. A escola, em última instância, é desejada como uma contrapartida da

sociedade, já que não gostamos de ser “instruídos” em nossa educação formal por

maus profissionais. Na qualidade de professores, não podemos agir de forma

negligente para com o Outro.

A função social da profissão docente é sugerida, então, como a profissão das

profissões, uma vez que todos os profissionais, sem exceção, tiveram um professor,

e seria essa função social uma das mais relevantes na sociedade. Contudo, o modo

que se dá essa constatação no recorte 3 não é tão abrangente. Ressalta-se tão

somente que o professor já foi aluno e, de certa forma, isso contribuiria para a

construção de uma imagem de um bom professor. A proposta de reflexão aqui é

instrutiva, pois essa função social da profissão docente, embora sugerida como

essencial na sociedade, é discutida pelo viés da idealização do profissional, isto é,

por estereótipos autonomizados e cristalizados. Logo, a profissão de professor é

essencial, desde que este seja isso e não aquilo.

Passamos às análises das amostras selecionadas. Nosso objetivo, dadas as

supracitadas condições sócio-históricas de produção, é colocar nossas amostras à

prova por meio das categorias de análises propostas por Maingueneau (2008a;

2008b; 2008c; 2011a; 2011b; 2013), das quais destacamos o interdiscurso, a

cenografia e o ethos discursivo. Nas três amostras selecionadas, visamos a analisar

o interdiscurso, ou seja, o espaço de trocas entre os discursos escolhidos; a

cenografia e sua forma de constituição como estratégia de envolvimento discursivo

entre os co-enunciadores e a constituição do ethos discursivo que nos permite

refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a determinado

posicionamento. (MAINGUENEAU, 2008c, p. 64)

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3.3. Mediação da aprendizagem: enunciador e metaenunciador

No recorte 1, dividimos a unidade discursiva em dez sequências. Identificadas por

meio de numeração, cada sequência destaca subtemas no interior da unidade. Seu

tema principal é a importância da mediação da aprendizagem na prática escolar, no

entanto o enunciador irá apresentá-la de modo informal, sem conceitualizações.

Nossa numeração indica os diferentes caminhos temáticos a fim de se realizar o que

está sugerido pela pergunta-título do texto, organizamos, portanto, cada número de

acordo com o trato semântico que se dá as respectivas sequências. Optamos em

apresentar o recorte a ser analisado logo em primeiro plano, com objetivo de evitar

os anexos.

Recorte 1

O que é mediação da aprendizagem? [1] Estou lendo um livro chamado Mediação da Aprendizagem que traz muitas contribuições de Feuerstein e de Vygotsky, chego à conclusão que minhas dúvidas e questionamentos estão trilhando caminhos certos. Buscar entender a mediação na aprendizagem é compreender de que forma acontece à aprendizagem no ser humano. [2] Toda minha infância foi mediada por minha mãe e por meu pai, que procuravam despertar em mim a vontade de aprender a aprender, a busca de me fazer compreender que lendo, eu seria de algum modo livre para voar como um pássaro, e assim ser autora da minha própria história. [3] Depois de anos tentando fazer com que minha equipe de professores compreendesse a importância da mediação na aprendizagem chego à conclusão que ainda tenho um vasto caminho a percorrer e eles também. Ao professor não basta ensinar, ao professor compete mediar. [4] Vemos hoje um discurso muito usado em quase todas as escolas do país: "O aluno precisa aprender a aprender" na realidade isso virou um jargão, que na maioria das vezes não acontece. Todo professor precisa ter em mente que necessita mudar sua forma de agir, mudar o estilo de suas aulas precisa alcançar este aluno na integra, ou a aprendizagem não irá acontecer. [5] Nos cursos de graduação, pós- graduação e etc., vemos professores nos aconselhando a lecionarmos de forma a transmitir as informações aos nossos alunados de forma que os mesmos consigam perceber e entender o que queremos transmitir. Os professores de uma forma geral até tentam, mas a grande maioria não sabe como fazer isto acontecer.

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[6] Nas Universidades, lemos textos retirados de livros e não livros inteiros, por este motivo, apenas refletimos o que diz um capítulo, ou seja, fazemos sínteses e discutimos o conteúdo fracionado, não nos dão espaço para sermos autores de nossa prática, não nos deixam espaço para produzir bons textos, e assim formamos professores que não acham importante a criação, damos valores a cópias. Como diria Jung " nascemos original e morremos cópia". [7] É bem verdade que isso acontece, portanto, precisamos de modelos para serem seguidos, mas que modelos estamos seguindo? Formando? Como exigir do professor, mudanças? Então levantamos uma questão: Qual a diferença entre ensinar e mediar? Ou seja, qual a diferença entre ser professor e ser mediador? Um professor pode ser mediador? Como fazer deste aluno autor de sua história ou que não seja apenas um transmissor de conhecimentos, mas que seja produtor de conhecimentos, que saiba desenvolver sua autonomia para poder aprender a aprender. Formando-se assim como que diz nossa LDB, cidadão do mundo, crítico, reflexivo, justo e eficaz nas suas ações e consciente de seu papel no mundo e na sociedade. Logo lendo e buscando sobre mediação pude compreender que mediar é uma espécie de interação especializada em que a aprendizagem encontra a "autonomia para aprender" e juntas, possibilitam a construção de pessoas com capacidade de andar por si só na construção do conhecimento. [8] Minha mãe de uma certa forma me vem hoje a lembrança como a primeira mediadora que conheci e talvez a mais importante. Em toda minha infância, lembro dela lendo e me fazendo depois narrar o que ela havia lido de forma que eu pudesse não decorar sua fala, mas de alguma forma oportunizar a minha criação, ou seja que eu pudesse descrever de que forma compreendi o que ela havia lido. O mais engraçado disso é que ela não tinha instrução, não havia feito um curso superior, nem pós-graduação e nem tão pouco mestrado ou doutorado em educação. Havia sim, todo um encantamento em sua fala, que até hoje a escuto contando com tanta emoção, por exemplo, a história de Cachinhos de ouro, e eu enquanto ouvinte me deixava penetrar por esse mundo do faz de conta, e assim ia de uma certa forma construindo meus saberes e no diálogo com ela, sendo autora da minha própria imaginação, reconstruindo tais experiências mentais e verbais, formalizando assim o aprender a aprender hoje tão divulgado. [9] Nas trocas, nos discursos, nas conversas conseguimos de alguma forma transmitir nossa aprendizagem, ou seja, como dizia Vygotsky é na interação que o homem se faz homem. [10] E buscando em Feuerstein e estudando sua proposta que tem por base às experiências de aprendizagem mediada e a avaliação de potencial de desenvolvimento, que procuro base para meu questionamento sobre como podemos aprender a aprender? De que forma podemos mediar um aluno? Será que o mediador pode ser um facilitador da aprendizagem? E de que forma esse mediador poderá atuar na escola? Esses questionamentos me fazem buscar em minha prática, primeiro como professora e depois como coordenadora que (sic) forma podemos formar pessoas que compreendam a importância de mediar. A mediação vem também para romper com os paradigmas e

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conceitos, hoje precisamos abrir as portas para a diversidade educacional, revendo nossas atitudes em sala de aula, integrando várias áreas do saber, trabalhar as várias educações, para poder identificar potencialidades, para que todos possam ser alcançados, contribuindo assim com a escola inclusiva que chega hoje para agregar aqueles com transtornos ou que apresentam dificuldades de aprendizagem ou de ensinagem. 25

Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores, texto postado.

O livro em questão, citado em [1], refere-se à Mediação da Aprendizagem de Meier

& Garcia (2007). Trata-se de um título que tem por objetivo discutir o processo de

mediação que, segundo os autores, resgata o “real” valor do professor no processo

educativo, contestando o processo de ensino-aprendizagem de transmissão de

conteúdos. Nesse ponto, fica sugerido o “modelo” com o qual o enunciador deseja

romper: as práticas educativas ditas tradicionais.

A porta de entrada do texto do recorte 1, ou seja, seu título traz uma pergunta

conceitual que abrange a obra de um pensador essencial para a psicologia da

educação. Trata-se de Vygotsky (1896-1934) que é figura recorrente na bibliografia

em educação e em psicologia da educação. Os conceitos desenvolvidos por esse

teórico têm sido direcionados às práticas pedagógicas atinentes à aprendizagem

infantil na interação social e nas condições de vida da criança.

Esse nome de autor é deslocado da psicologia da educação para embasar aquilo

que o enunciador irá desenvolver ao longo da enunciação. O nome Vygotsky é

acionado para dar suporte à pergunta inicial: O que é mediação da aprendizagem?

O autor russo é trazido para esse quadro enunciativo, sobretudo por causa de seu

conceito chamado zona de desenvolvimento próximo26, que, grosso modo, significa

o hiato entre aquilo que o indivíduo pode realizar sozinho e aquilo em que ele

precisará de ajuda, ou seja, aquilo que a criança, num determinado momento, não

faz sozinha, mas com ajuda dos outros inclusive e principalmente do professor.

(DUARTE, 2012, p. XIX) Dessa maneira, a ideia de mediação da aprendizagem

começa a ser alicerçada.

25Ver: http://fatimapsicopedagogia.blogspot.com.br/2010/06/o-que-e-mediacao-da aprendizagem.html. (Consultado em 15/08/2010) 26 Seguimos aqui a opção de tradução do termo feita por Newton Duarte (2012).

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Contudo, a relação mais próxima com a noção de aprendizagem mediada é movida

por meio de Feuerstein (1921), que defende entre outras a teoria da modificabilidade

cognitiva em razão da qual as faculdades intelectuais de um indivíduo podem ser

expandidas por toda sua vida e não somente na infância e a teoria do ensino de

aprendizagem mediada. Um papel significativo para que expansão ocorra é dado à

experiência da aprendizagem mediada. Segundo esta teoria, indivíduos que são

expostos a múltiplos meios de relações interpessoais desenvolvem capacidades de

aprendizagem superiores àqueles que não o são. Essas relações podem ser

realizadas pela figura materna, paterna, pessoas da família, amigos, chefes, adultos,

e, principalmente, pelos professores que, como dissemos, “guiam”, por meio de

perguntas, o raciocínio daqueles que por alguma razão têm problemas cognitivos.

O enunciador, por meio desses dois nomes de autor, traz, ao mesmo tempo, teorias

diferentes e complexas para vivificar uma diretriz norteadora que orienta o discurso

da EFAP, a saber: cabe ao professor ser mediador em sua prática educativa. O

primeiro pressuposto da noção de interdiscurso pode ser evidenciado nessa tríade

exposta entre o título do texto, o livro aludido pelo enunciador e os dois pensadores

citados. O primado do interdiscurso sobre o discurso é dado, em primeiro lugar, pela

sua noção mais evidente de que todo discurso só pode ser entendido em relação

com outros discursos.

Mesmo sem comentar sobre as teorias dos autores em questão, nem referenciar o

conteúdo global do livro aludido, o enunciador tangencia o início da “reflexão” que

pretender encerrar de forma a considerar o formato da pergunta posta no título.

Assim, a pergunta “o que é?” é recebida pelo co-enunciador como um gênero de

pergunta e resposta em que se sugere a definição de um conceito que,

supostamente, o co-enunciador não estaria a par, esperando superar uma possível

lacuna de conhecimento na interação com o texto. Nesse processo elementar, a

enunciação vai sugerindo fronteiras àquilo que se quer dizer ou não no discurso.

A pergunta exposta no título é sugerida pela leitura do livro citado, estou lendo um

livro chamado [1]. Contudo, este livro tem como conteúdo basilar as propostas de

Vygotsky e Feuerstein acerca do processo de ensino-aprendizagem na educação,

são eles, pois, que darão a “autoridade” discursiva necessária para validar o

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conceito pelo qual está embasado o discurso da EFAP, instância que valida esse

discurso e instaura um metaenunciador.

Mesmo que as teorias dos autores não sejam explicitadas, o enunciador, por meio

delas, valida o modelo que deve ser seguido pela EFAP precisamos de modelos

para serem seguidos. [5] Na verdade, a cenografia se apoia em cenas de fala

validadas porque o ato de leitura e a constante formação do professor são

valorizados no âmbito educacional.

Teremos oportunidade de examinar esse recurso de constituição da cenografia no

recorte 1 mais adiante, bem como no recorte 2 e 3. Por ora, importa notar que, em

[1], a pergunta não é respondida como se espera, ou seja, por meio de definições ou

resenhas das obras dos autores citados, ou do livro mencionado. Mas é a partir da

inclusão do nome dos autores na primeira linha da sequência [1], que a pergunta se

torna mais relevante, pois está embasada, de certa forma, na teoria circunscrita por

esses pensadores. Esse filtro tem por objetivo fazer o enunciador prosseguir por um

caminho seguro: chego à conclusão que minhas dúvidas e questionamentos estão

trilhando caminhos certos. Ou seja, o enunciador pronunciará a partir daí “dúvidas”

e “questionamentos”, intimamente, ligados às teorias instauradas no meio educativo

nas quais suas incertezas encontram um tipo de resolução.

O enunciador revela que o contato com o conceito que embasa todo o discurso da

EFAP, advindo das pedagogias hegemônicas em educação, é feito, de modo

indireto, por meio de um livro que traz muitas contribuições de Feuerstein e Vygotsky

[1]. As contribuições dos próprios autores do livro são omitidas, pois o objetivo é

trilhar pelo percurso da importância de mediar e, para tanto, o enunciador lança mão

da função-autor – noção proposta por Foucault (2001) – que indica que um discurso

deve ser recebido de certa maneira e que deve numa determinada cultura receber

certo estatuto. Essa estratégia posta em curso pelo enunciador confirma a hipótese

da precedência do interdiscurso sobre o discurso, temos, pois, no recorte 1, uma

unidade de análise onde se configura um espaço de trocas entre vários discursos

convenientemente escolhidos. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 20)

No recorte 1, conforme comentamos mais acima, o relato pessoal é conduzido pelo

embreante em primeira pessoa do singular – eu, nas sequências [1], [2], [3] e [8].

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Como sugere Maingueneau (2013), essa estratégia visa à identificação do co-

enunciador com o enunciador. O eu destina-se a servir de lugar de inscrição de

qualquer que seja o co-enunciador que parece poder assumir o enunciado. Nas

sequências em que o eu assume a enunciação, temos, em favor da identificação do

co-enunciador, os seguintes temas: em [1], a noção de mediação da aprendizagem,

a alusão a Feuerstein e Vygotsky; em [2], memória da infância; em [3], trabalho

(prática escolar); e em [8], é retomado o tema memória da infância. Nas sequências

[4], [5], [6], [7], [9] e [10], prevalece o embreante - nós, em primeira pessoa do

plural, das quais falaremos mais adiante.

O tratamento semântico dado aos temas em que o embreante eu assume o texto

constitui o sentido das FDs postas em relação. Uma FD presente nesses parágrafos

diz respeito a uma consciência identitária enunciada a partir de um lugar de posição

discursiva que valoriza o princípio de alteridade. Buscar entender a mediação na

aprendizagem é compreender de que forma acontece à aprendizagem no ser

humano. [1] Em contrapartida, o embate se dá por outra FD que não se reconhece

nesse princípio de alteridade, ou seja, que valoriza a vida por convenções

particulares e individualistas. Depois de anos tentando fazer com que minha

equipe de professores compreendesse a importância da mediação na aprendizagem

chego à conclusão que ainda tenho um vasto caminho a percorrer e eles também.

[3]

A constituição da própria consciência identitária do sujeito é fortalecida pelo

robustecimento da consciência do Outro. Nesse ponto há implicações, uma vez que

o sujeito se reconhece semelhante ou diferente do Outro. Segundo Charaudeau

(2009), a semelhança nasce do compartilhamento, mesmo que parcial, de

motivações, finalidades e intenções idênticas. As diferenças, por sua vez, provêm da

singularidade que cada um desempenha dentro de sua representação social.

Portanto, nesse último caso, as motivações, finalidades e intenções são distintas.

A FD que valoriza a alteridade é enunciada tendo por base apenas a ideia de família

nuclear. O enunciador apresenta-se como sujeito inserido em um núcleo familiar que

é um tipo de família constituído por mãe, pai e filho (s) (no máximo dois). Toda

minha infância foi mediada por minha mãe e por meu pai. [2]. Essa estrutura familiar

foi conceitualizada a partir da segunda metade do século XX e repercutiu a ideia de

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família ideal. Contudo, sabemos que o conceito de família foi desestabilizado pelas

condições sócio-históricas da pós-modernidade, como o advento dos métodos

anticonceptivos, a ampla inserção da mulher no mercado de trabalho, o fluxo

migratório, as interações culturais, o reconhecimento da união homoafetiva, o déficit

habitacional etc. Dessa forma, vemos na sociedade contemporânea que o conceito

de família nuclear concorre com outras noções de família.

Essas observações são pertinentes porque o modelo de aprendizagem defendido

pelo enunciador não considera a complexidade das relações familiares na sociedade

contemporânea, uma vez que presentifica pela sua memória discursiva a plena

presença dos pais em sua formação intelectual. Em toda minha infância, lembro

dela (mãe) lendo e me fazendo depois narrar o que ela havia lido [8]. O que nos

chama a atenção é que, embora o enunciador tenha por objetivo sugerir um modelo

de aprendizagem num quadro social dinâmico e em plena transformação, ele o faz

por meio de apenas uma possibilidade de formação familiar.

Nessa perspectiva, a realidade ora vivida, diverge da cenografia construída pelo

enunciador. Como nos sugere Sarti (2003), vivemos uma época como nenhuma

outra, em que a mais neutralizada de todas as esferas sociais, a família, além de

sofrer importantes abalos internos, tem sido alvo de marcantes interferências

externas. Desse modo, faz-se necessário uma abordagem de família como algo que

se definiu como sua história que se conta aos indivíduos ao longo do tempo. Logo,

cada família constrói sua própria história. Em última análise, modelos de prática

educativa que se configuram baseados em apenas uma noção familiar na pós-

modernidade tendem a ser considerados ideológicos. Por outro lado, pensar em

família como uma realidade construída pelo discurso acerca de si própria,

incorporada pelos sujeitos, é uma maneira de buscar uma elucidação que não se

precipite a sua própria realidade. (SARTI, 2003)

Mas a discussão por essa senda comprometeria a organização da enunciação que

se deseja instaurar. O enunciador recupera, então, como estratégia discursiva o

modelo de família nuclear dando sobrevida a figura do professor-mediador, ao qual

se assemelharia à figura dos pais27. O que visa a afastar uma concepção

27 A função materna e paterna é pensada nesse contexto dentro de uma concepção de família nuclear.

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individualista de educação, baseada tão somente na transmissão de conhecimento,

como sugeririam as práticas pedagógicas ditas tradicionais.

Nesse novo cenário, o professor-mediador deve despertar em seu aluno a vontade

de “aprender a aprender”, fazê-lo compreender a importância da leitura e despertá-lo

para sua autonomia, como o faria uma mãe ao filho na tarefa de educá-lo. Minha

mãe de uma certa forma me vem hoje à lembrança como a primeira mediadora que

conheci e talvez a mais importante. [8] No tratamento semântico dado aos temas,

observamos os valores e tensões que as FDs postas em embate engendram.

A linha mestra da EFAP é caracterizar a contemporaneidade como inserida em uma

“sociedade em mudança.” A escola, por sua vez, deve acompanhar os rumos pelos

quais os ventos modernos nos leva. Todavia o que não se deseja discutir nos curso

de formação de professores são os conflitos pelos quais os indivíduos estão

submetidos nas sociedades contemporâneas. Logo, nesse discurso, a escola tende

a ser apartada desse ‘mundo conflituoso’ e resta-lhe reproduzir uma educação pelo

afeto, pelo reconhecimento da alteridade e pela empatia, não só do professor com

sua profissão, vista por esse prisma como essencial à comunidade, mas também do

professor com seus alunos, entendidos como protagonistas de sua história.

Nesse protagonismo, portanto, não caberia mais ao professor um ensino que tivesse

por diretriz somente a transmissão do conhecimento. Assim, a concepção que se faz

do aluno é de sujeito capaz de escrever sua própria história, uma vez que já fora

possível, na sua educação familiar, assegurar-lhe a presença de uma família. Em

toda minha infância, lembro dela (mãe) lendo e me fazendo depois narrar o que

ela havia lido de forma que eu pudesse não decorar sua fala, mas de alguma

forma oportunizar a minha criação. [8] O “oportunizar a criação” significa repetir

aquilo que lhe foi transmitido por um adulto para esse mesmo adulto, com intuito de

verificação do aprendizado e não do aspecto lúdico da leitura e escrita.

Por um lado, essa forma de aprendizagem vai de encontro à noção de mediação de

aprendizagem da qual o enunciador diz se filiar, em especial, pelas ideias de

Vygotsky, por outro, corresponde à ideia de Feuerstein acerca do ensino de

aprendizagem mediada em que o professor faria perguntas para guiar um raciocínio

lógico do aluno, supondo que um sentido oculto já esteja na pergunta.

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De outra forma, nesse ideal de infância, a presença materna é constante na

educação dos filhos. Estes, por sua vez, não vão apenas decorar os ensinamentos,

mas construí-los com base em sua vivência para reprodução daquilo que a mãe ou o

professor lhes transmitem. Desse modo, a fim de manter a hegemonia das

estruturas sociais vigentes, faz-se necessário que as instâncias arraigadas às

sociedades funcionem como reprodutoras desse sistema de divisão social. Para

Bourdieu (1991), essas instituições legitimadoras seriam a família e a escola... ou

seja, que eu pudesse descrever de que forma compreendi o que ela (mãe) havia

lido. [8]

O professor-mediador, nessa circunstância, seria um intermediário entre um

conhecimento que está disponível a todos no meio em que vivemos e o aluno, mas o

professor detém esse conhecimento mediante sua experiência e não de forma

sistematizada por teorias. O aluno, por sua vez, por meio da mediação e

interlocução com esse professor, pode apreender esses conhecimentos de forma a

protagonizar sua própria formação desde que os devolva em resultados, isto é,

recitando aquilo que aprendeu.

O enunciador, embora apresente Vygotsky e Feuerstein, sugere que a noção de

mediação é a mais elementar das aprendizagens, talvez, mesmo inerente aquele

que educa. Minha mãe de uma certa forma me vem hoje à lembrança como a

primeira mediadora que conheci. O mais engraçado disso é que ela não tinha

instrução, não havia feito um curso superior, nem pós-graduação e nem tão pouco

mestrado ou doutorado em educação. [8] Nesse caso, instrução significa apenas ter

um diploma universitário, a falta de instrução, portanto, seria a ignorância. Contudo,

o enunciador revela que a mãe mesmo sem uma educação formal, usava como

“modelo” de educação a mediação da aprendizagem, essa mediação, diferente da

proposta de Vygotsky e semelhante à de Feuerstein, necessita de um retorno a

quem educa, ou como propõe Bourdieu (1991; 2007), tende a ser reproduzida.

A elementaridade e a funcionalidade da noção de mediação da aprendizagem são

correlativas, de modo paradoxal, a uma sociedade complexa cujas noções de sujeito

e de identidade estão em deslocamento. O enunciador revela que somente por meio

da adesão desse modelo é que a aprendizagem pode ocorrer. Precisamos de

modelos para serem seguidos, mas que modelos estamos seguindo?[7] Ao

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professor não basta ensinar, ao professor compete mediar. [3] Em contrapartida,

essa elementaridade sede espaço à especialização; logo lendo e buscando sobre

mediação pude compreender que mediar é uma espécie de interação especializada

[7]. Nesse ponto, não sabemos mais se a noção de mediação da aprendizagem é

imanente, autodidata ou técnica. O enunciador apresenta essa noção como um

modelo capaz de por em relação à aprendizagem e a "autonomia para aprender" e

juntas, possibilitam a construção de pessoas com capacidade de andar por si só na

construção do conhecimento. [7] Não obstante, esse conhecimento não é construído

e sim reproduzido pelas instâncias institucionais.

O co-enunciador se vê nessa mudança de “mundos” de uma sequência a outra. [3] e

[4] Inicialmente a apresentação do conceito é feito por um convite à leitura: Estou

lendo um livro chamado Mediação da Aprendizagem, em que o enunciador visa a

mostrar a importância da mediação no âmbito escolar. Já na sequência [3] a

constatação é que as coisas não estão ainda ajustadas, ou seja, nas escolas a

prática da mediação da aprendizagem precisa ganhar força entre seus principais

colaboradores: os professores; chego à conclusão que ainda tenho um vasto

caminho a percorrer e eles (professores) também. [3] Mas a voz do

metaenunciador, às vezes, se faz presente num tom autoritário e legalista e não

mais doce e persuasivo como a do enunciador. Ao professor não basta ensinar, ao

professor compete mediar. [3] Todo professor precisa ter em mente que necessita

mudar sua forma de agir, mudar o estilo de suas aulas. [4] Trata-se, portanto, do

discurso do dever-fazer.

A mudança referida ocorre a partir da tomada de posição do embreante nós na

sequência [4]. Este emprego do “nós” para designar não uma soma de indivíduos,

mas um sujeito coletivo, não tem nada de surpreendente (MAINGUENEAU, 2013, p.

152) A estratégia não é surpreender, mas colocar o co-enunciador, definitivamente,

na posição daquele que também rejeita, na qualidade de professor, o que esta por

vir nos enunciados seguintes: Vemos hoje um discurso muito usado em quase

todas as escolas do país: O aluno precisa aprender a aprender na realidade isso

virou um jargão, que na maioria das vezes não acontece. [4] As pedagogias

hegemônicas nesse ponto são referenciadas pelo enunciador como ‘modelos’

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desejáveis, ou seja, não se pode deixar que o lema “aprender a aprender” vire

apenas um “jargão”.

Reiteremos: Todo professor precisa ter em mente que necessita mudar sua forma

de agir, mudar o estilo de suas aulas precisa alcançar este aluno na integra, ou a

aprendizagem não irá acontecer. [4] Segundo Maingueneau (2008a), os modos da

subjetividade enunciativa dependem da competência discursiva, assim cada

discurso define esse estatuto que o enunciador se confere e confere ao co-

enunciador de forma a legitimar seu dizer. Essas dimensões podem ser institucional

ou intertextual.

Temos em [4], as condições sócio-históricas de produção do discurso que nos

revelam que os professores, de modo geral, lecionam de forma análoga ao

‘passado’ o professor precisa mudar sua forma de agir. O “estilo” de sua aula estaria

alicerçado num ‘modelo’ retrógado que não é mais suficiente para despertar no

aluno interesse pelo estudo, isto é, esse “modo de agir” não alcança esse aluno na

íntegra e, desse modo, a aprendizagem não irá acontecer. [4] O futuro do presente

simples do verbo ir acompanhado pelo elemento de negação - não define bem o tom

profético do enunciado. Na verdade, menos profético do que realista da atual

situação do ensino público nas escolas da rede Estadual de São Paulo.

Confrontando o posicionamento do enunciador na sequência [2] quando este faz

uma analogia de sua criação advinda de uma família nuclear com a forma que o

professor-mediador deve proceder em sua prática, [3] observaremos uma

aproximação de uma proposta de prática educativa não só pela mediação, mas

também pelo afeto, neste caso se afastando das ideias de Feuerstein. Toda minha

infância foi mediada por minha mãe e por meu pai [2], até hoje a escuto contando

com tanta emoção, por exemplo, a história de Cachinhos de ouro [8]. O resultado

desse tipo de prática resultaria na autonomia dos sujeitos no processo de educação.

A busca de me fazer compreender que lendo, eu seria de algum modo livre para

voar como um pássaro, e assim ser autora da minha própria história. [2]

possibilitam a construção de pessoas com capacidade de andar por si só na

construção do conhecimento. [7]

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Há uma posição discursiva que, mesmo em condições sócio-históricas atuais,

valoriza, como no passado, o professor pelo sua dedicação e seu amor à profissão.

O capital simbólico que envolve a profissão propícia à emergência desse tipo de

posicionamento. Observamos, por exemplo, esse fato na declaração do então

governador do Ceará em virtude da greve dos professores daquele estado em 2011.

Professor deve trabalhar por amor, não por dinheiro.28 Esse tipo de declaração

revela que as tensões e valores no âmbito da educação são gerados menos por

escolhas de modelos a se seguir do que por valorização salarial, melhores

condições de trabalho, plano de carreira etc.

No recorte 1, a temática da empatia visa a materializar o posicionamento do

enunciador de que a educação só ocorre de forma plena se realizada pelo viés do

afeto, esse ponto de vista desconsidera as condições reais dos sujeitos na

sociedade havia sim, todo um encantamento em sua fala, (mãe) [...] e eu

enquanto ouvinte me deixava penetrar por esse mundo do faz de conta, e assim

ia de uma certa forma construindo meus saberes e no diálogo com ela[...] [8]

A partir do pressuposto da presença do Outro, podemos formular a hipótese que

irrompe dessa FD que valoriza o afeto, a empatia e o trabalho docente por amor,

outra FD que nega a necessidade desse afeto e que procura desenvolver o

educando no contexto da prática social global e não apenas por paixões. As duas

FDs podem ser verificadas na tentativa de discriminar o item lexical ensinar de o

item lexical mediar. Como exigir do professor, mudanças? Então levantamos uma

questão: Qual a diferença entre ensinar e mediar? Ou seja, qual a diferença entre

ser professor e ser mediador? Um professor pode ser mediador? [6] Assim, o

professor que por acaso “só ensine” está fadado ao insucesso, pois apenas ensinar

não guarda o valor de afeto e de amor desejável nessa relação. Contudo, o

professor pode aprender a mediar, essa nova função, no entanto, não advém de

uma formação “formal”, mas de um posicionamento discursivo. Em última instância,

para “aprender” a ser um professor-mediador o docente não precisaria de uma

formação via conhecimento teórico ou prático, bastaria aderir ao discurso constituído

para essa mediação, logo a mediação da aprendizagem é um mudança de “postura”

em sala de aula e não uma orientação para formação docente.

28 www.ultimosegundo.ig.com.br/brasil/ce/professores. (consultado em 06 de Março de 2014).

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Desse modo, em [4], o professor é quem precisa mudar o ‘estilo’ de suas aulas, pois

senão a aprendizagem não acontecerá, o foco, então, passa a ser essa adesão do

professor ao método sugerido. Essa mudança que fará a “aprendizagem acontecer”

é sugerida pelo enunciador por meio da assunção do professor de uma prática

educativa que tem por objetivo construir um modelo, qual seja: a mediação da

aprendizagem.

O pressuposto conduzido pelo embreante em primeira pessoa do plural nós é que se

o professor não mudar sua prática, a aprendizagem não irá acontecer. E mais, se o

professor não assumir uma atitude que inclua a mediação em sua prática educativa,

a aprendizagem nunca irá acontecer. O discurso da EFAP, nesse sentido, é

constituído, antes de tudo, por posicionamentos pré-construídos acerca da prática

educativa dos professores atuantes, ou seja, esse discurso é baseado em

estereótipos que encerram aos professores ativos a ideia de que estes lecionariam

de modo “tradicional” e por isso, a aprendizagem não ocorre de forma plena.

Isso se dá, no decorrer da enunciação, pela má formação que eles recebem na

formação inicial e continuada de professores universitários que também optam pela

transmissão do conhecimento, como é sugerido na sequência [5]. Nos cursos de

graduação, pós- graduação e etc. vemos professores nos aconselhando a

lecionarmos de forma a transmitir as informações aos nossos alunados de forma

que os mesmos consigam perceber e entender o que queremos transmitir. Além

disso, a maioria dos professores é incapaz de fazer que essa transmissão aconteça

os professores de uma forma geral até tentam, mas a grande maioria não sabe

como fazer isto acontecer. [5]

A crítica imposta pelo enunciador à formação de professores adentra o campo das

metodologias desses cursos. Pressupõe-se, em primeiro lugar, que o modo de

formação que o futuro professor recebeu em sua graduação, será por ele transmitido

para suas aulas do ensino básico sem nenhum ajuste. Em segundo lugar, como o

futuro professor não leu livros inteiros e nem escreveu textos em sua formação, não

exigirá de seus alunos essas práticas. Em última instância, o enunciador revela que

a má formação oferecida no ensino superior reflete na qualidade de educação do

ensino básico.

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Esse posicionamento acerca da má qualidade do ensino superior em licenciaturas

pode ser relevante para também questionar a má qualidade da formação de

professores oferecida pela EFAP. Já discutimos no primeiro capítulo a questão do

EaD e nossa hipótese é que essa modalidade de ensino tende a reproduzir, na

maior parte dos casos, a metodologia do ensino presencial, também tenta incutir

uma ilusão de ensino democrático. Ainda consideramos seu aspecto mercadológico

voltado à educação de massas. Sem negar a importância do ambiente virtual de

aprendizagem (AVA), colocamos a seguinte questão: se as universidades

presenciais ou a distância não oferecem um ensino de qualidade, isto é, não nos

dão espaço para sermos autores de nossa prática,[6] como uma formação de

professores a distância, com três encontros presenciais e dividida em módulos

mudaria esse quadro? O enunciador sugere, então, uma saída: precisamos de

modelos para serem seguidos [7]. Contudo, esse modelo advém de uma instância

institucionalizada, ou seja, um discurso de aparelho.

Ora, a discussão acerca da má qualidade em cursos de licenciatura pode ser tornar

produtiva, desde que não se generalize a opinião de que todas as universidades

formam mal seus professores na licenciatura. Podemos conjeturar, de outro modo,

que os professores “bem formados” procuram melhores salários e condições de

trabalho mínimas para o exercício de sua função, deixando espaço no ensino

público para aqueles ‘profissionais’ que se incluem no nós posto pelo enunciador:

Nas Universidades, lemos textos retirados de livros e não livros inteiros, por este

motivo, apenas refletimos o que diz um capítulo, ou seja, fazemos sínteses e

discutimos o conteúdo fracionado, não nos dão espaço para sermos autores de

nossa prática, não nos deixam espaço para produzir bons textos, e assim

formamos professores que não acham importante a criação, damos valores a

cópias. [6]

Essa constatação feita pelo enunciador não condiz com a formação familiar que ele

diz ter recebido da figura materna que mediava sua aprendizagem de modo que ele

fosse um ser livre e autor sua própria história. Também não condiz com a própria

ideia que está contida no lema “aprender a aprender” que sugere autonomia para

buscar saberes no mundo e a possibilidade de construção de pessoas com

capacidade de andar por si só na construção do conhecimento. [7] Não é

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compreensivo que um sujeito autônomo capaz de escrever sua própria história

aceite passivamente na universidade os conhecimentos transmitidos pelo professor,

tão pouco que deixe de ler os “livros inteiros”, porque seu professor só lhe pediu um

capítulo. Não é possível aceitar que um adulto deixe de ser autônomo e não escreva

“bons textos” porque não lhe dão espaço. O embreante nós deixa claro a opinião do

enunciador acerca dos professores da rede de ensino básico do estado de São

Paulo e suas condições de formação inicial e continuada.

O embate entre duas FDs pode ser evidenciado a partir do posicionamento do

enunciador. A FD das pedagogias hegemônicas do lema “aprender a aprender” e a

FD discursiva das pedagogias ditas tradicionais em que pesa a transmissão do

conhecimento. A presença constante do Outro no discurso da EFAP revela as

tensões acerca do ‘modelo’ a seguir no ensino básico. Esse Outro aparece, de forma

constante, como negação daquilo que, hoje, é visto como impraticável na educação

básica: a transmissão de conhecimento. Por isso, surge a necessidade de construir

“modelos” que possam suplantar o ensino dito tradicional. É bem verdade que isso

acontece, portanto, precisamos de modelos para serem seguidos. [7]

No entanto, toda constituição de modelos para a educação brasileira tem se

mostrado insuficiente, dada a complexidade de um sistema educacional num país de

dimensões continentais como o Brasil. De qualquer forma, esse modelo é sugerido

pelo enunciador por meio da mediação da aprendizagem. O enunciador propõe,

recorrendo a perguntas de outras FDs, uma discussão pela escolha dos modelos

que devem ser seguidos, mas que modelos estamos seguindo? Formando? Como

exigir do professor, mudanças? Então levantamos uma questão: Qual a diferença

entre ensinar e mediar? Ou seja, qual a diferença entre ser professor e ser

mediador? Um professor pode ser mediador? [7] Sugere-se, portanto, que o modelo

a ser seguido é o da mediação da aprendizagem.

Não obstante, a instituição de um modelo no ensino básico da SEESP vai,

novamente, de encontro à essência do conceito de mediação da aprendizagem em

que se valoriza a interlocução entre os indivíduos. O item lexical modelo adquire

nesse discurso, como nos sugere Maingueneau (2008a), o estatuto de signo de

pertencimento. Dito de outro modo, o item lexical modelo possibilita a constituição de

uma pequena parte do que se propõem as teorias de Vygotsky e Feuerstein, ou de

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sua apropriação, já que a aplicabilidade destas teorias demandaria um esforço

político-educacional, que sequer vislumbramos, exceto através do esforço intelectual

de alguns educadores. Portanto, o que fica inteligível da noção de mediação da

aprendizagem enunciada pelo discurso da EFAP, no recorte 1, é que se trata de um

modelo a ser seguido e o único pelo qual a aprendizagem pode se efetivar.

Nesse ponto de nossa análise, podemos esclarecer de que forma o recorte 1 é

marcado pela noção de heterogeneidade. A heterogeneidade marcada na superfície

textual a qual Authier-Revuz (1982), chama de heterogeneidade marcada.

Podemos observar esse fenômeno das seguintes formas: primeiro o enunciador

assinala as palavras do Outro as colocando entre aspas “O aluno precisa aprender

a aprender” [4]. Ou, ainda, Como diria Jung “nascemos original e morremos

cópia”. [6] No primeiro exemplo, ouvimos a voz do metaenunciador instaurado pela

instância EFAP, no segundo, trata-se de um fragmento “solto” para validar a má

formação, segundo o enunciador, recebida nos cursos de licenciatura, neste

exemplo ocorre um processo de aforização da fala dita pelo psiquiatra Jung. Nos

exemplos que se seguem, notamos a interdiscursividade por intermédio do discurso

relatado: mas que modelos estamos seguindo? Formando? Como exigir do

professor, mudanças? Então levantamos uma questão: Qual a diferença entre

ensinar e mediar? Ou seja, qual a diferença entre ser professor e ser mediador? Um

professor pode ser mediador? [7] procuro base para meu questionamento sobre

como podemos aprender a aprender? De que forma podemos mediar um aluno?

Será que o mediador pode ser um facilitador da aprendizagem? E de que forma

esse mediador poderá atuar na escola? [10]

O caráter de heterogeneidade do discurso é conferido, numa FD, pela presença do

Outro, este aspecto afirma o primado do interdiscurso. Nos fragmentos acima, foi

possível notar a presença do Outro por sua materialidade linguística. [4] e [6]

Contudo, a presença do Outro também pode ser verificada a partir de pressupostos

em que se tem a heterogeneidade constitutiva, que incorpora todas as formas de

heterogeneidade marcada. O primado do interdiscurso sobre o discurso, portanto, se

apoia no princípio de uma heterogeneidade constitutiva.

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Umas das formas de verificar a presença do Outro se dá pelo processo de negação

do enunciado marcado. No enunciado [7], vemos o enunciador por meio do

embreante nós se posicionar na qualidade de quem precisa de modelos para

educar. A negação ocorre pela presença de um discurso que diria o contrário.

Assim, temos:

FD 1. Precisamos de modelos para serem seguidos.

FD2. Não precisamos de modelos para serem seguidos.

Em outro exemplo temos: ao professor não basta ensinar, ao professor compete

mediar. [2] Pela negação verificamos a presença do Outro. Ao professor basta

ensinar, ao professor não compete mediar. A presença do Outro, segundo Mussalin

(2003), é observada no interior do discurso que o nega.

Então,

FD1. Ao professor não basta ensinar, ao professor compete mediar.

FD2. Ao professor basta ensinar, ao professor não compete mediar.

Podemos observar a presença do Outro por outros aspectos.

Se observarmos, de modo amplo, as condições sócio-históricas de produção em que

esse discurso foi produzido, notaremos as seguintes questões: Em 2010, ano de

eleições estaduais, a SEESP divulgou pela mídia grandes ‘reformas’ no sistema de

ensino de São Paulo. Essas reformas visavam a minimizar críticas da oposição ao

governo, por este não conseguir em mais de vinte anos no poder alcançar as metas

internas e externas para educação. A oposição acusava o governo do estado de

negligência com a pasta e apontava total precarização da escola pública do estado

de São Paulo. Esse era um ponto fraco nas eleições que se aproximavam.

Assim, toda a divulgação da citada reforma, bem como a novidade de uma Escola

de Formação de Professores para o concurso que fora realizado em março daquele

ano, foi amplamente repercutida com uma projeção para o futuro. Segundo a

SEESP, à época do lançamento da referida “reforma”, a educação do estado de São

Paulo iria se transformar até 2030 em uma das melhores do mundo, portanto seriam

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mais vinte anos para estabelecer o básico que uma educação de qualidade

necessita. Entre esse básico estava contemplado um plano de carreira aos

professores, evidentemente, aos professores/cursistas. Podemos, então, pelo

processo de pressuposição fazer as seguintes conjecturas considerando os

enunciados no quadro abaixo:

POSTO - FD1 PRESSUPOSTO – FD2

1. Todo professor precisa ter em

mente que necessita mudar sua

forma de agir. [4]

O professor não muda sua forma de

agir e nem se preocupa com isso.

2. (o professor precisa) Mudar o estilo

de suas aulas precisa alcançar este

aluno na integra ou a aprendizagem

não irá acontecer. [4]

A aprendizagem não acontece porque

o professor não muda o estilo de suas

aulas, e, portanto, não alcança o

aluno na íntegra.

3. Como fazer deste aluno autor de

sua história ou que não seja apenas

um transmissor de conhecimentos,

mas que seja produtor de

conhecimentos, que saiba

desenvolver sua autonomia para

poder aprender a aprender. [7]

O aluno atual é apenas um

transmissor de conhecimento, não

tem autonomia para aprender, isto é,

tem problemas de ordem cognitiva.

4. Formando-se assim como que diz

nossa LDB, cidadão do mundo,

crítico, reflexivo, justo e eficaz nas

suas ações e consciente de seu papel

no mundo e na sociedade. [7]

Não atingimos ainda os preceitos

prescritos na LDB, ou seja, formamos

alunos acríticos, injustos, que não

refletem sobre o mundo e ineficazes

em suas ações, como consequência,

alienados em seu papel social.

5. Nas trocas, nos discursos, nas

conversas conseguimos de alguma

forma transmitir nossa

aprendizagem. [9]

A aprendizagem é transmitida, de

modo exclusivo, pela interação verbal,

pelas conversas? O que seria

“transmitir” nossa aprendizagem?

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6. Será que o mediador pode ser um

facilitador da aprendizagem? ...que

(sic) forma podemos formar pessoas

que compreendam a importância de

mediar. [10]

O professor atual não facilita a

aprendizagem, pois não

compreendem que a mediação é a

melhor forma de conseguir que os

alunos aprendam.

Figura 4. Posto e pressuposto

Por essas considerações podemos notar que as críticas à má qualidade do ensino

público ao governo do estado de São Paulo às vésperas das eleições não se

efetivaram apenas como jogo político, pois se baseavam num ponto de ineficiência

do então governo, pois, segundo a oposição, mesmo após vinte anos no poder, as

preocupações ainda estavam centradas no fracasso do rendimento escolar e na

atuação do professor em sala de aula. Temas que, embora relevantes, mostram o

quão elementar se encontrava o debate sobre educação no âmbito da SEESP,

razão pela qual, questões como afeto, empatia, função social da profissão docente e

modelos de aprendizagem sempre tomam à frente de problemas mais urgentes a se

discutir como a valorização profissional, plano de carreira, formação docente,

condições de trabalho adequadas, currículo, autonomia da gestão escolar, gestão

democrática, redução do número de alunos em sala de aula, dedicação exclusiva

etc.

Assim, pela presença do Outro no discurso, podemos ‘ouvir’ a voz de um

metaenunciador, a instância política-pedagógica responsável pela enunciação.

Sabemos que, quando o enunciador se manifesta, ele não se contenta em expressar

suas próprias opiniões; ao contrário, ele faz ouvir diversas vozes, mais ou menos

claramente identificadas, em relação às quais ele se situa. (MAINGUENEAU, 2013,

p. 163) No recorte 1, é possível identificar essa instância que fala, considerando as

condições sócio-históricas de produção em sentido estrito.

Desse modo, sabemos que a unidade discursiva (recorte 1) foi postada na página do

módulo da parte pedagógica por um ‘colaborador’ por meio de um blog e usada

como conteúdo de leitura no referido módulo do curso da EFAP. E, também, que as

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postagens de cursistas não aparecem como conteúdo corpo da página de cada

módulo, e, portanto, só são destinadas aos fóruns em que só os próprios cursistas e

tutores têm acesso. De outra forma, sabendo que a amostra fazia parte do curso que

a SEESP criou como requisito obrigatório do concurso público do ano de 2010 e

todos os candidatos/cursistas recebiam bolsas para realizar o curso, logo todas

essas sondagens nos leva ao metaenunciador do discurso, mas ele aparece por

marcas linguísticas do decorrer da enunciação como no apagamento das pessoas

do discurso e no embreante em primeira pessoa do plural nós.

Se considerarmos o posicionamento de um metaenunciador, observaremos que o

conceito de mediação da aprendizagem, basilar nas diretrizes pedagógicas da

EFAP, não é explorado de modo científico, como nas teorias de Vygotsky e

Feuerstein, mas é legitimado pela a encarnação de uma instância afetiva a esse

modelo: a figura materna. Desse modo, a função do professor-mediador

corresponderia à função materna na criação dos filhos. Essa estratégia visa a

estabelecer um vínculo afetivo entre o co-enunciador e sua profissão e dele com

seus alunos e tende a instaurar uma postura menos rude do metaenunciador no que

respeita à imposição de um modelo da prática no âmbito da SEESP.

Para exemplificar, na sequência [8], propomos substituir o item lexical mãe e seus

respectivos embreantes, pelo item lexical professora. O enunciador, em uma

sequência antes, [7] havia colocado “muitos questionamentos” acerca do que seria

mediar, logo o co-enunciador é enredado pelo discurso de modo a participar desses

questionamentos. Na sequência [7], a reflexão vem sendo enunciada pelo

embreante nós: precisamos de modelos para serem seguidos, mas que modelos

estamos seguindo? Qual a diferença entre ensinar e mediar? Ou seja, qual a

diferença entre ser professor e ser mediador? Um professor pode ser mediador? [7]

Na sequência posterior [8], há mudança de pessoa e tema e o embreante em

primeira pessoa do singular eu é retomado, dessa forma, provoca-se uma

identificação do co-enunciador com o enunciador, mas esse eu refere-se a um

conjunto de indivíduos que tiveram em sua infância uma educação mediada pelos

pais, ou, se não a tiveram, deixa-se entrever sua importância.

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Notemos que a sequência [8] tem por escopo mostrar a importância da mãe na

educação dos filhos e, sobretudo, acentuar a ausência de uma instrução formal da

genitora. Ressalta-se o método usado para que essa educação pudesse acontecer

lendo e me fazendo depois narrar o que ela havia lido. [8] Como numa prova oral,

o aluno deve reproduzir o conhecimento que lhe fora transmitido, que não surge sem

uma mediação todo um encantamento em sua fala, no diálogo com ela. [8] A

descrição desse método serve também de estratégia para construção da cenografia

e de um ethos.

Contudo, serve também, para poder alcançar os objetivos dessa aprendizagem de

que forma compreendi o que ela havia lido; enquanto ouvinte me deixava penetrar

por esse mundo do faz de conta; de uma certa forma construindo meus saberes e

sendo autora da minha própria imaginação, formalizando assim o aprender a

aprender. [8] “Formalizar” significa: criar normas, modelos, procedimentos; fazer de

acordo com normas, regras convenções etc.; oficializar, ou seja, deseja-se formalizar

o lema “aprender a aprender” que em tese sugere autonomia na busca de

conhecimentos.

O modelo utilizado de forma intuitiva pela mãe dialoga, de certa forma, com aquele

desejável na mediação da aprendizagem. Vejamos como ficaria a substituição:

Sequência [8]

Minha mãe de uma certa forma me vem hoje a lembrança como a primeira mediadora que conheci e talvez a mais importante. Em toda minha infância, lembro dela lendo e me fazendo depois narrar o que ela havia lido de forma que eu pudesse não decorar sua fala, mas de alguma forma oportunizar a minha criação, ou seja que eu pudesse descrever de que forma compreendi o que ela havia lido. O mais engraçado disso é que ela não tinha instrução, não havia feito um curso superior, nem pós-graduação e nem tão pouco mestrado ou doutorado em educação. Havia sim, todo um encantamento em sua fala, que até hoje a escuto contando com tanta emoção, por exemplo, a história de Cachinhos de ouro, e eu enquanto ouvinte me deixava penetrar por esse mundo do faz de conta, e assim ia de uma certa forma construindo meus saberes e sendo autora da minha própria imaginação, reconstruindo tais experiências mentais e verbais, formalizando assim o aprender a aprender hoje tão divulgado.

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Sequência [8] – Substituição

Minha professora de uma certa forma me vem hoje a lembrança como a primeira mediadora que conheci e talvez o mais importante. Em toda minha infância, lembro dela lendo e me fazendo depois narrar o que ela havia lido de forma que eu pudesse não decorar sua fala, mas de alguma forma oportunizar a minha aprendizagem, ou seja que eu pudesse descrever de que forma compreendi o que ela havia lido. [...] Havia sim, todo um encantamento em sua fala, que até hoje a escuto contando com tanta emoção, por exemplo, a história de Cachinhos de ouro, e eu enquanto ouvinte me deixava penetrar por esse mundo do faz de conta, e assim ia de uma certa forma construindo meus saberes e sendo autora da minha própria imaginação, reconstruindo tais experiências mentais e verbais, formalizando assim o aprender a aprender hoje tão divulgado.

Como se nota não foi preciso alterar de modo profundo a unidade discursiva para

equiparar nos enunciados a figura materna com a da professora. Aliás, esses relatos

sobre professores são comuns quando se pretende, nostalgicamente, rememorar a

educação de algumas décadas passadas, em especial, a educação pública de São

Paulo, que antes da primeira expansão era exclusiva de uma pequena elite paulista.

Em suma, a FD revelada no discurso da EFAP, em que as pedagogias hegemônicas

do lema “aprender a aprender” são os princípios norteadores, evidencia outras FDs

em concorrência, em especial, a que prestigia a pedagogia histórico-crítica, cujo

debate se configura pela necessidade de uma relação consciente do docente com o

significado de sua profissão. Esses dois posicionamentos não estão, de modo claro,

delineados, mas podem ser evidenciados por meio de hipóteses. Passamos, então,

a analisar a construção da cenografia no recorte 1.

O co-enunciador, ao se deparar com o enunciado do recorte 1, deve ser capaz de

determinar qual o tipo de discurso que está recebendo. Ou seja, qual cena

englobante é preciso se situar para interpretar esse discurso. O enunciador no

recorte 1 interpela o co-enunciador no sentido de situar um modelo de aprendizagem

fundamentado nas teorias de dois pesquisadores da cognição, ou seja, interroga-o

acerca da possibilidade de adesão de uma prática pedagógica que visa a

“enriquecer” o ensino-aprendizagem em educação.

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Essa enunciação se volta a professores da rede pública de São Paulo em fase de

concurso público. Esse fato define o estatuto dos parceiros. No caso de nosso

recorte, um professor-coordenador se dirige a outros professores/cursistas. Nesse

sentido, o enunciado didático-pedagógico está vinculado com uma cena englobante

pedagógica, em que educadores, pesquisadores da área e professores se dirigem a

outros profissionais da educação. Vale lembrar que essa interação é mediada por

um suporte virtual (AVA), que ressignifica as noções de espaço e tempo na situação

de enunciação.

Contudo, a cena englobante não é suficiente para especificar as atividades

discursivas nas quais se encontram engajados os sujeitos. (MAINGUENEAU, 2008c,

p. 116) Dessa forma, falamos de cenas genéricas, esse contexto particular é

causado pelo gênero do discurso. O gênero do discurso, no recorte 1, diz respeito a

um relato pessoal, prática muito comum no âmbito da educação na troca de

experiências entre professores. Portanto, esse gênero define os papeis dos co-

enunciadores. No recorte 1, um professor-coordenador, portanto com “autoridade”

pedagógica, fala a outros professores, essas duas cenas definem conjuntamente o

que poderia ser chamado de quadro cênico do texto. É ele que define o espaço

estável no interior do qual o enunciado adquiri sentido – o espaço do tipo e do

gênero do discurso. (MAINGUENEAU, 2013, p. 97)

Ao ler discurso, o professor/cursista não se confronta, de modo direto, com esse

quadro cênico, mas com uma cenografia, ou muitas cenografias. Observemos a

sequência:

[1] Estou lendo um livro chamado Mediação da Aprendizagem que traz muitas contribuições de Feuerstein e de Vygotsky, chego à conclusão que minhas dúvidas e questionamentos estão trilhando caminhos certos. Buscar entender a mediação na aprendizagem é compreender de que forma acontece à aprendizagem no ser humano.

A cenografia presente nessa sequência é de uma conversa informal, a enunciação

se constitui de modo progressivo para instaurar seu dispositivo de fala. O co-

enunciador é enredado em uma conversa que se inicia com familiaridade, o

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enunciador expõe suas aflições e esperanças acerca da compreensão do processo

de aprendizagem. Os elementos dêiticos temporais são marcados pelas formas

nominais no gerúndio estou lendo, estão trilhando, no presente do indicativo traz,

chego, acontece e no infinitivo impessoal buscar entender, compreender.

O tempo presente indica contemporaneidade, segundo Fiorin (2012) o momento de

referência presente é um agora, por ele coincidir com o momento da enunciação. O

fato ocorrido no momento da enunciação é empregado pela marca de presente

chego, traz, acontece, mas, nesse momento, há uma ação em andamento estou

lendo, estou trilhando. Esse procedimento produz um efeito de sentido no gênero

relato pessoal que, via de regra, é construído com verbos no pretérito.

Os verbos no gerúndio ditos pelo enunciador produzem um efeito de sentido de um

acontecimento do agora e que está em andamento, portanto, remete o co-

enunciador a um eterno processo de formação, pois a “conclusão” que se chega, na

verdade não é conclusão, e, sim, dúvida: chego à conclusão que minhas dúvidas e

questionamentos estão trilhando caminhos certos [1], ou seja, os dêiticos

temporais colocam o co-enunciador num processo de formação e busca de

conhecimentos que só poderão ser alcançados num futuro não situado no tempo,

buscar entender, compreender.

Os dêiticos espaciais nesse enunciado não se ancoram em um ponto de referência

fixo, mas podemos conjecturar que o lugar de onde se fala se refere ao lugar de

onde fala o enunciador (aqui) lugar este da função social de professor-coordenador.

De outra forma, os embreantes de pessoa nós, minha(s), nosso, distribuídos no

cotexto, por vezes, situam o co-enunciador no lugar ocupado pelo enunciador

compartilhando as expectativas, minha equipe de professores, nossos alunados,

[nós] lemos textos retirados de livros, discutimos o conteúdo fracionado, precisamos

de modelos, em outros casos situam o co-enunciador no lugar do professor cursista,

isto é, aquele que deve aprender algo, todo professor precisa mudar sua forma de

agir, [4] a grande maioria [professores] não sabe como fazer isto acontecer.

[5] Esses questionamentos me fazem buscar em minha prática, primeiro como

professora e depois como coordenadora que (sic) forma podemos formar pessoas

que compreendam a importância de mediar [10] Em última instância, situa o co-

enunciador no discurso do dever-fazer.

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Essas estratégias tem por objetivo afastar o co-enunciador do quadro cênico

definido pela cena englobante e pela cena genérica e é, por meio da cenografia

constituída pela enunciação, que ele é enlaçado para se encontrar como parte

integrante das questões discutidas. Não há definições de conceitos, ou explanações

de teorias desenvolvidas no discurso. O vocabulário usado pelo enunciador deixa

claro que a “conversa”, embora informal, visa a um co-enunciador de certo modo a

par da temática da educação. A essa altura o estatuto entre os co-enunciadores já

está bem definido. O enunciador por meio da função social de professor-

coordenador de uma escola, fala ao co-enunciador ora na função social de professor

atuante, ora na função social de professor cursista. Os embreantes em primeira e

terceira pessoa do singular (eu-nós) falam ao co-enunciador professor-atuante, o

apagamento das pessoas, ou a não-pessoa fala ao professor cursista por meio de

um metaenunciador.

Essa cenografia de conversa informal deve ser legitimada por meio da enunciação,

dessa forma, a situação de enunciação vai sendo validada por meio da própria

enunciação. Como sugere Maingueneau (2013, p. 98),

A cenografia implica desse modo um processo de enlaçamento

paradoxal. Logo de início, a fala supõe uma certa situação de

enunciação que, na realidade, vai sendo validada progressivamente

por intermédio da própria enunciação. Desse modo, a cenografia é

ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela

legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la,

estabelecendo que esta cenografia onde nasce a fala é precisamente

a cenografia exigida para enunciar como convém, segundo o caso –

a política, a filosofia, a ciência – ou para promover certa mercadoria.

A cenografia deve legitimar sua existência como enunciado. Nas cenas de

enunciação, como propõe Maingueneau (2013), os enunciados recorrem às cenas

validadas. As cenas que lhes darão status dizem respeito àquelas que já estão

instaladas na memória coletiva. O enunciador recorre na sequência [2] a uma cena

de fala validada valorizada no âmbito escolar, em especial, o ensino infantil. Nesse

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ponto, outra cenografia vai sendo construída de modo a colocar o co-enunciador nas

relações de ensino-aprendizagem de uma família nuclear. Toda minha infância foi

mediada por minha mãe e por meu pai [2]. O repertório das cenas disponíveis varia

em função do grupo visado pelo discurso. (MAINGUENEAU, 2013, p. 102) Nesse

caso, o grupo visado pelo enunciador é o dos professores.

Na sequência [3], observamos que o embreante em primeira pessoa do singular eu

abandona o relato de rememoração da infância [2], para instaurar, pela cenografia

construída, a temática da prática pedagógica propriamente dita. Mantém-se seu

caráter de oralidade de um relato pessoal despretensioso, mas acrescenta-se a

legitimidade pela instância social do enunciador. A cenografia agora coloca o co-

enunciador no âmbito escolar, nos problemas que a prática educativa gera, para

sugerir o modelo que o co-enunciador deve aderir. Desse modo, instaura-se um tom

de superioridade. Depois de anos tentando fazer com que minha equipe de

professores compreendesse [...]. Ao professor não basta ensinar, ao professor

compete mediar.[3] Ou seja, o co-enunciador é persuadido a aceitar que o conceito

de mediação da aprendizagem não é tão fácil ou tão elementar como sugere o

enunciador em sua memória da infância em que sua mãe fora, sem nenhuma

instrução, sua primeira mediadora.

O co-enunciador recebe um conceito teórico como a possibilidade de instauração de

um modelo complexo, assim seu posicionamento perante o discurso tende a ser de

discípulo. Já o enunciador se desloca de um ‘saber fazer’ a um ‘saber dizer’, ou seja,

a legitimidade conquistada pela prática nas instâncias sociais se move,

naturalmente, ao discurso. (CHARAUDEAU, 2009). A cenografia, desse modo,

instaura um lugar de desafios.

O enunciador revela ter fundamentos teóricos básicos: estou lendo um livro, ser

crítico e reflexivo: chego à conclusão que..., ativo e flexível: buscar entender a

mediação na aprendizagem é compreender... [1] Também está disposto a

mudanças e a enfrentar a diversidade do cotidiano escolar. Nas trocas, nos

discursos, nas conversas conseguimos de alguma forma transmitir nossa

aprendizagem. [9] E buscando em Feuerstein e estudando sua proposta que tem

por base às experiências de aprendizagem mediada e a avaliação de potencial de

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desenvolvimento, que procuro base para meu questionamento sobre como

podemos aprender a aprender? [10]

Não obstante, os outros professores sempre estão aprendendo, chego à conclusão

que ainda tenho um vasto caminho a percorrer e eles também [3]; nunca

alcançam o patamar esperado, nunca se tornam um profissional completo, os

professores de uma forma geral até tentam, mas a grande maioria não sabe como

fazer isto acontecer [5];

Há uma clara rejeição aos modelos de práticas educativas do ‘passado’, em

especial, as ditas tradicionais. Quando o enunciador revela que a grande maioria

dos professores não consegue atingir os alunos na íntegra, isto é, fazer com que a

aprendizagem seja plena nos anos que esses alunos passam pela escola, ele revela

que essa ‘grande maioria’ pratica esse ensino tradicional. Sugere-se que esses

professores são mais resistentes a mudanças, que (sic) forma podemos formar

pessoas que compreendam a importância de mediar.

À medida que a enunciação avança, a cenografia se apoia em outras cenas de fala

validadas, constituindo outras cenografias. Lemos textos retirados de livros e não

livros inteiros, por este motivo, apenas refletimos o que diz um capítulo, ou seja,

fazemos sínteses e discutimos o conteúdo fracionado. [6] A cenografia construída é

do lugar da universidade, não a universidade vista como lugar de pesquisa,

conhecimentos e oportunidades, mas a universidade entendida do ponto de vista de

seus fracassos perante o ensino. Nos cursos de graduação, pós- graduação e etc.,

vemos professores nos aconselhando a lecionarmos de forma a transmitir as

informações aos nossos alunados [5].

Não estamos tão certos que “as universidades” em cursos de graduação e pós-

graduação tenham apenas professores que “aconselham” a “transmitir informações”,

esse ponto de vista acerca das universidades sugere um ensino superior voltado

apenas para a diplomação. Alunos de graduação que estudam aquilo que lhes

transmite e fazem provas para conferir o aprendizado, em suma, essa visão sugere

um ensino superior presencial precário que é repetido na modalidade a distância.

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Esse ponto de vista de que alunos de graduação fragmentam as leituras durante o

curso é partilhado por boa parte daqueles que estão inseridos no meio acadêmico, a

cena de fala associa-se a um público específico, estudantes que têm pouco tempo

durante o dia para estudar, como sugerem pesquisas feitas sobre o tema29, este é o

perfil da maioria dos professores ingressantes na rede pública de São Paulo30.

Logo, para dar conta de uma ampla bibliografia, lê-se um pouco de cada livro. Desse

modo, os co-enunciadores se colocam no impasse: É bem verdade que isso

acontece, seguido de uma resolução, portanto, precisamos de modelos para

serem seguidos. [7] A solução que se oferece não sugere de uma reflexão sobre o

tema, mas uma adesão a “modelos” prontos.

A essa altura há um obstáculo a ser resolvido. Ao mesmo tempo em que o

enunciador se lança como professor, reflexivo, crítico, leitor de texto de educação,

flexível e ativo e defende o lema “aprender a aprender” baseado na autonomia em

busca de conhecimento, ele necessita, de modo paradoxal, de um modelo para ser

seguido. Tentaremos resolver esse impasse quando analisarmos o ethos discursivo,

sobretudo a noção de enunciador e metaenunciador. Por ora, devemos notar que a

sugestão de modelos a seguir no discurso do recorte 1, faz referência apenas à

mediação da aprendizagem, na verdade não se trata de modelo, mas sim de

procedimentos de prática educativa.

Embora faça referência a Vygotsky e Feuerstein, o enunciador lança mão de cenas

validadas para justificar a mediação, num certo sentido como sinônimo de interação,

ou conversa entre interlocutores. Nas trocas, nos discursos, nas conversas

conseguimos de alguma forma transmitir nossa aprendizagem [9]. De outro modo,

para justificar a pedagogia que se baseia no lema “aprender a aprender” o

enunciador retoma cenas de fala de cunho teórico e buscando em Feuerstein e

estudando sua proposta [...] que procuro base para meu questionamento sobre

como podemos aprender a aprender. [10]

29 BARRETO, Elba Siqueira de Sá. Trabalho docente e modelos de formação: Velhos e novos embates e representações. Cad. Pesquisa. [online]. 2010, vol.40, n.140, pp. 427-443. 30 Ver: TORRES, Haroldo da Gama; GOMES, Sandra; PAVEZ, Thais; FUSARO, Edgard. Perfis do Professorado da Rede Pública de São Paulo: A Interação entre Espaço, Regras Institucionais e Escolhas Individuais no Resultado de uma Política Pública. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, nº 1, 2010, pp. 125 a 158.

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De outra forma, o enunciador propõe o procedimento de mediação da aprendizagem

como ruptura de alguma forma de paradigma existente no ensino, a mediação vem

também para romper com os paradigmas e conceitos. [10] Esses paradigmas e

conceitos não estão marcados na enunciação, mas sugere-se algo maior do que

apenas mudar uma postura em sala de aula, o discurso da EFAP está atravessado

por discursos em ampla concorrência. Não sabemos quais paradigmas e conceitos

estão instaurados no âmbito da educação básica de ensino de São Paulo, mas

nossa hipótese é que não existam paradigmas e conceitos definidos ou coesos, o

que se pode verificar é um habitus (BOURDIEU, 2007) instaurado no âmbito

educacional público.

Assim, o co-enunciador, enredado por cenografias que vão sendo validadas pela

enunciação e ao mesmo tempo a validando, é impelido a conceber uma prática

educativa que leve em conta, ao mesmo tempo, a interação e a interlocução entre

professor e aluno por meio da mediação social, e também a interação e interlocução

por meio da mediação de cunho cognitivo. A construção da cenografia implica a

imagem de si do enunciador, isto é, implica um ethos discursivo.

O ethos discursivo é a imagem de si que o enunciador constitui pelo discurso, toda

fala procede de um enunciador encarnado; mesmo quando escrito, um texto é

sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além do texto.

(MAINGUENEAU, 2013, p. 104) Propomos, na presente análise, que no recorte 1, o

texto é sustentando ora por um enunciador, ora por um metaenunciador. Essa duas

instâncias se hibridizam no discurso, mas não se trata, conforme Maingueneau

(2013), de ethos híbridos, mas de tom e posicionamentos. Embora esses

enunciadores estejam hibridizados, são facilmente identificáveis no discurso.

Vejamos as sequências em que o enunciador se dirige ao co-enunciador por meio

do embreante em primeira pessoa do singular – eu:

[1] Estou lendo um livro chamado Mediação da Aprendizagem que traz muitas contribuições de Feuerstein e de Vygotsky, chego à conclusão que minhas dúvidas e questionamentos estão trilhando caminhos certos. Buscar entender a mediação na aprendizagem é compreender de que forma acontece à aprendizagem no ser humano.

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Todo texto possui um tom, ou seja, uma voz que dá autoridade ao que é dito. O co-

enunciador, ao se deparar com esse tom, constrói uma representação do corpo do

enunciador. Essa voz e esse corpo fazem emergir da leitura um fiador – instância

subjetiva. Nesse aspecto, podemos esclarecer que não importa saber por quem o

texto foi escrito, saber quem é seu autor-produtor ou pessoa empírica. Em AD, a

noção de ethos discursivo visa a analisar essa imagem construída pelo enunciador a

partir da própria enunciação.

É por meio do fiador que o co-enunciador constrói pelo discurso um caráter e uma

corporalidade. Como sabemos, o caráter, segundo Maingueneau (2013),

corresponde aos traços psicológicos e a corporalidade a uma compleição corporal.

Caráter e corporalidade do fiador, portanto, recobrem as representações sociais

valorizadas e desvalorizadas. No caso do recorte 1, temos representações

valorizadas no âmbito da educação. Estou lendo um livro. O enunciador procura

fundamentar teoricamente seus questionamentos e, também, é humilde para

reconhecer que ainda não sabe tudo, chego à conclusão que minhas dúvidas e

questionamentos estão trilhando caminhos certos. [1]

Essa primeira sequência do recorte 1 é significativa, pois é o primeiro contato do co-

enunciador com o discurso. Como sugere Maingueneau (2013, p. 108),

O texto não se destina a ser contemplado, configurando como

enunciação dirigida a um co-enunciador que é preciso mobilizar,

fazê-lo aderir fisicamente a um determinado universo de sentido. O

poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar ao

leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de

valores socialmente especificados.

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Nesse sentido, o co-enunciador, enlaçado, num primeiro momento, por uma

cenografia de um conversa informal entre iguais, passa a construir uma

representação do corpo e de um caráter de um fiador. É a imagem de si desse

enunciador que o co-enunciador irá incorporar.

O fiador, por meio da fala, confere a si uma identidade coexistente a trocas de

experiências pedagógicas entre profissionais da educação, isto é, de um professor

preocupado com as questões didático-pedagógicas de sua escola, alguém que

busca compreender, por meio da noção de mediação da aprendizagem, com se dá a

aprendizagem no ser humano. Tem-se, pois, um ethos de um profissional com uma

visão humanista de ensino-aprendizagem que procura refletir sua prática educativa

por meio de livros e questionamentos e na interação com o Outro. Buscar entender

a mediação na aprendizagem é compreender de que forma acontece à

aprendizagem no ser humano. [1] Esse mundo construído pelo fiador deve legitimar

sua maneira de dizer.

As sequências [2] e [8] distribuídas, de modo estratégico, no início e no fim da

unidade discursiva visam à participação do co-enunciador no mundo ético construído

pelo fiador. Essa noção de incorporação diz respeito à relação estabelecida pelo

ethos entre o discurso e seus co-enunciadores. Tanto na sequência [2], como na

sequência [8] o enunciador procura evidenciar como a aprendizagem na infância, a

partir de sua própria experiência, pode ajudar a refletir acerca da mediação da

aprendizagem na prática educativa. Toda minha infância foi mediada por minha

mãe e por meu pai. [2]; Minha mãe de uma certa forma me vem hoje a lembrança

como a primeira mediadora que conheci e talvez a mais importante [8].

A cenografia da aprendizagem na infância, nesse caso, se apresenta inseparável do

ethos de um fiador preocupado com as questões de aprendizagem do ser humano.

Ela pode instituir uma rememoração do fiador da própria infância, dessa forma, o co-

enunciador, pelo processo de incorporação, participa desse mundo legitimado pelo

fiador. Atribuímos, no recorte 1, esse ethos ao enunciador do discurso.

De outro modo, podemos propor que um ethos específico possa ser atribuído a um

metaenunciador, constituído pela instância EFAP. Ou seja, a instância representada

pela SEESP, que pode ser identificada pelo tom que surge na enunciação. Como já

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dissemos, esse tom ou voz dá autoridade ao que é dito. O co-enunciador constrói

uma representação do corpo do enunciador que faz surgir um fiador com um caráter

e um corporalidade. Mas notemos que, quando há o apagamento das pessoas do

discurso, ou quando o enunciador diz por meio do embreante nós, o tom revela um

fiador, não mais preocupado com questões de ordem de ensino-aprendizagem do

ser humano, mas um fiador envolvido com a implantação de um modelo de

aprendizagem.

Contudo, esse apagamento não é total, obervamos o embreante você, marcado pelo

item lexical professores, mas não é um eu quem fala. Ao professor não basta

ensinar, ao professor compete mediar. [2] De outra forma, um metaenunciador utiliza

o embreante em primeira pessoa do plural nós, para impor o discurso do dever-ter.

Precisamos de modelos para serem seguidos. [7] A cenografias construídas no

desenrolar da enunciação também se tornam adequadas a esse tipo de fiador, numa

conversa informal, como muitas modulações sentimentais e opinativas pela

cenografia, as pessoas tendem a ser mais receptivas a ‘novas’ ideias.

Diante disso, mesmo com o tom asseverado, a compleição corporal mantém-se

ligada ao enunciador, flexível, engajado, reflexivo etc., e não se desloca como outra

compleição corporal ao metaenunciador, daí não podermos falar de ethos híbridos.

Na verdade a enunciação ocorre de modo modalizante. Abre-se com uma proposta

de prática educativa [1], recorre-se a subjetividade da memória infantil na

aprendizagem [2], posiciona-se enunciados ‘soltos’ para impor o discurso do dever,

relacionado ao metaenunciador, [2], [4], [7], [10], faz-se uma crítica à formação em

ensino superior [6], volta-se à infância [8] e, por fim, retoma-se a noção de

mediação da aprendizagem e de professor mediador. [10] num outro cenário: a da

escola inclusiva.

Esse tipo de adesão pelo ethos revela, por um lado, que a resistência de

professores a novas práticas educativas e a métodos impostos por instâncias

institucionais é reconhecidamente um obstáculo para fundação de um modelo de

educar, pensado a partir uma posição política e econômica. Por outro, essa

estratégia de ação do ethos sobre o co-enunciador acentua a falta de diálogo entre

professores e governo no que tange à educação básica.

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O ethos atribuído ao enunciador faz emergir um fiador preocupado com a

aprendizagem. O ethos atribuído ao metaenunciador faz emergir um fiador envolvido

com a imposição de uma prática educativa cuja noção se baseia na mediação de

aprendizagem. Ao professor não basta ensinar, ao professor compete mediar. [3];

Todo professor precisa ter em mente que necessita mudar sua forma de agir. [4];

Os professores de uma forma geral até tentam, mas a grande maioria não sabe

como fazer isto acontecer. [5]. O tom desses enunciados sugere um fiador diferente

daquele preocupado com a aprendizagem do ser humano, que conta,

saudosamente, com se dera a educação em sua infância. Esse fiador confere a si

uma identidade de alguém que está em posição de mandar, criticar, impor. A esse

ethos específico atribuímos a um metaenunciador. A mediação vem também para

romper com os paradigmas e conceitos. [10].

3.4. A empatia: alteridade, ensinamentos e influências

O que cerceia as características do professor-mediador não é somente o sentido

que a noção de mediação da aprendizagem pode investir-lhe, mas outros fatores

sociais e psicológicos estão em jogo, a estes últimos atribuímos à empatia que nas

sociedades contemporâneas evaporam a cada dia com a necessidade de

competitividade entre os indivíduos, sobretudo num mundo do trabalho. Vejamos,

nesse recorte, os desdobramentos das três categorias de análise propostas nesse

trabalho.

Recorte 2

[1] Há relatos de médicos que entenderam melhor seus pacientes após eles mesmos passarem por uma experiência de enfermidade grave. Na docência, a experiência de ser aluno antes de ser professor é inevitável, favorecendo a capacidade indispensável a todo profissional que lida com seres humanos: a empatia. [2] O que significa colocar-se no lugar do outro, de sair de sua própria perspectiva para entender a do outro, sem diluir a sua própria identidade? [3] A partir daquilo que ensinamos aos nossos alunos, seja através de teorias ou de ações, influenciamos diretamente sobre a forma como se articulam as peças nesse cenário

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social, cultural e educacional. Daí a necessidade de desenvolvermos um olhar que se concentre sobre a realidade de nossos alunos e menos sobre os ideais imaginários que depositamos sobre eles.

Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores, módulo 2.

No recorte 2, temos duas sequências, aparentemente, distintas. Na sequência [1], o

enunciador apresenta uma constatação: médicos que tiveram alguma doença como

as de seus pacientes puderam entendê-los melhor. Nota-se que o item lexical usado

é entender e não curar, já que o enunciador, caso usasse este último,

comprometeria o conteúdo da sequência [3]. Ainda na sequência [1] a profissão de

professor é colocada em relação a profissionais da medicina que puderam vivenciar

em si próprios os males de seus pacientes. Em última instância, a docência é tida

como a profissão capaz de encarnar no professor o aluno que ele foi um dia.

Seguindo um pouco mais longe na comparação, é como se um médico que hoje

cura um câncer em seu paciente, já fora acometido por esse mesmo câncer. Logo, a

relação entre o médico e seu paciente seria mais condescendente para com a

doença.

Assim, como na medicina temos muitos tipos de doenças para serem ‘entendidas’,

na educação temos muitos problemas para serem resolvidos. Embora o professor já

tenha sido aluno, ele não pode encarnar a realidade de cada aluno. Mas o exercício

de se colocar no lugar do Outro é válido. Na sequência [2], essa dinâmica é

proposta, mas o que significa colocar-se no lugar? E o que significa não diluir as

identidades? De quais identidades estamos falando e em que condições sócio-

históricas? Deixemos por enquanto em suspenso a noção de identidade.

Na sequência [3], a prática docente é novamente posta em evidência. A partir

daquilo que ensinamos aos nossos alunos, [...] influenciamos diretamente sobre a

forma como se articulam as peças nesse cenário social, cultural e educacional. Ora,

considerando que a prática educativa adquira tal relevância nesses cenários, a

adoção de um modelo de ensino, consequentemente, ‘viciaria’ a articulação das

‘peças’, pois todo modelo tem seus mecanismos de coerção.

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De outro modo, considerando que a articulação dessas peças independe dos

ensinamentos teóricos ou práticos do professor e que elas (peças) são movidas

pelos fenômenos político e econômico, social e cultural desenvolver um olhar que se

concentre sobre a realidade de nossos alunos [3] é se acostumar a paisagem que

esses fenômenos representam. E se assim procedêssemos, como ficaria a noção

das identidades? Em outras palavras, em uma sociedade em que os valores são

padronizados e os indivíduos sofrem um processo de esvaziamento, um olhar

estanque sobre essa realidade se mostra um olhar conivente acerca desse

processo. Assim, nas palavras de Duarte (2012, p. 10),

É nesse contexto que o lema “aprender a aprender” passa a ser

revigorado nos meios educacionais, pois preconiza que à escola não

caberia a tarefa de transmitir o saber objetivo, mas sim de preparar

os indivíduos para aprenderem aquilo que deles for exigido pelo

processo de sua adaptação a alienadas e alienantes relações sociais

que presidem o capitalismo contemporâneo. A essência do lema

“aprender a aprender” é exatamente o esvaziamento do trabalho

educativo escolar, transformando-o num processo sem conteúdo. Em

última instância, o lema “aprender a aprender” é a expressão, no

terreno educacional, da crise da sociedade atual.

A relação direta estabelecida entre ensinamentos e influência na sequência [3], não

nos deixa entrever outras FDs que emergem desse discurso. A noção de identidade

no mundo pós-moderno pode ajudar a esclarecer essa relação. Por enquanto,

deixemos em suspenso, a pergunta: como sair de sua própria perspectiva para

entender a do outro, sem diluir a sua própria identidade?[2].

Os estudos no plano econômico, político, filosófico e estético da pós-modernidade

são fundamentais para entendermos nossa realidade sociocultural. Diríamos

resumidamente que há um número reduzido de movimentos coletivos, como

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também há uma significativa decadência de movimentos combativos de inovação. O

universo pós-moderno, portanto, não é de balizamento, mas de hibridismo.

Há uma mudança estrutural diversa transformando as sociedades modernas no final

do século XX. Por esse motivo, ocorre a fragmentação das paisagens culturais de

classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Dessa forma, de acordo

com Hall (2011), o que no passado nos fornecia localizações consistentes como

indivíduos sociais; hoje muda nossas identidades pessoais, e, por conseguinte,

abalam nosso conceito de sujeito integrado. Os indivíduos se encontram

descentralizados nos seus lugares no mundo social, cultural etc. Logo, há uma crise

de identidade para esse indivíduo. O autor aponta três concepções de identidades

que podem ser relacionadas ao sujeito do Iluminismo, ao sujeito sociológico e ao

sujeito pós-moderno.

Segundo Hall (2011), o sujeito do Iluminismo baseia-se na ideia de sujeito dotado de

plena razão, de pessoa humana totalmente centrada e de conhecimento imanente.

O centro essencial do “eu” era a sua identidade, ao longo de sua existência ele

continuava idêntico a si. Por outro lado, o sujeito sociológico baseia-se no Outro em

relação a si próprio. Aqui o sujeito não tem autonomia, se forma a partir do Outro,

este, por sua vez, intercede os valores, os sentidos e o símbolo, ou seja, a cultura do

mundo que o sujeito sociológico habita. Sua essência interior é modificada à medida

que entra em interação como os mundos exteriores e suas identidades. Essa é, pois,

de modo estrito, a qualidade da empatia. Na docência, a experiência de ser aluno

antes de ser professor é inevitável, favorecendo a capacidade indispensável a todo

profissional que lida com seres humanos: a empatia. [2]

Para Hall (2011), a concepção de sujeito sociológico, em que um espaço entre o

interior e o exterior é preenchido, equivale a dizer que se preenche o mundo privado

e o mundo público. Ao fazermos esse preenchimento, alinhamos os nossos

sentimentos subjetivos como o mundo objetivo, nossa identidade se dispõe a

estrutura do mundo, estabilizando os sujeitos e os mundos culturais em que eles

habitam, unificando-os. No entanto, temos outro cenário na pós-modernidade, como

sugere Hall (2011, p. 12),

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Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que

agora estão mudando. O sujeito, previamente vivido como tendo uma

identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;

composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas

vezes contraditórias e mal resolvidas. Correspondentemente, as

identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que

asseguravam nossa conformidade subjetiva com as necessidades

objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultados de

mudanças estruturais e institucionais.

Portanto, segundo o autor, o sujeito está se tornando fragmentado, composto de

várias identidades, as identidades eternas estão se desfalecendo.

Nessas condições sócio-históricas, surge o sujeito pós-moderno. Este não tem uma

identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade varia de acordo com as

exigências das formas pelas quais somos envolvidos nos sistemas culturais de que

somos parte. Logo, temos diferentes identidades em diferentes momentos, muitas

vezes contraditórias e antitéticas. Se sentimos que temos uma identidade unificada

desde o nascimento até a morte, é apenas porque construímos um cômoda história

sobre nós mesmos, ou uma confortadora “narrativa do eu.” (HALL, 2011, p. 13)

Como base nesse quadro apresentado, podemos reconhecer num campo discursivo

educacional, por exemplo, pelo menos duas FDs postas em ampla concorrência.

Aquela que considera a prática educativa como valor adquirido, ou seja, que pode

ser aperfeiçoado por meio de estudos e técnica, e aquela que a considera como

valor intrínseco, isto é, algumas pessoas teriam aptidão natural para a docência.

Portanto, os estudos com base sócio-interacionista, aludidos, em especial, pela

figura de Vygostsk abrangeriam esses dois posicionamentos, que revelam diferentes

identidades. De outra forma, os estudos com base sócio-cognitivista, situados pela

figura Feuerstein abrangeria apenas a face dos estudos e técnicas, já que o

professor, segundo a teoria do ensino de aprendizagem mediada defendida por este

autor, é promovido à qualidade de ‘mestre’ em fazer perguntas e colher respostas

para, mediante esse processo, conduzir o raciocínio do aluno.

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Dessa forma, não poderíamos fixar com precisão a concepção das identidades

dentro desse discurso. Em última instância, não é possível dizer que há um sujeito

sociológico agindo em determinada FD, ou que há um sujeito pós-moderno agindo

em outra. Retomemos a pergunta feita no recorte 2, sequência [2]: como sair de sua

própria perspectiva para entender a do outro, sem diluir a sua própria identidade?[2].

Se pensarmos com Hall (2011) e admitirmos que o universo pós-moderno é híbrido

e as identidades são fragmentadas31, não há por que se ‘preocupar’ com a diluição

da identidade. De outro modo, “sair da própria perspectiva” é deixar de ser ególatra

– sujeito do Iluminismo – para preencher um espaço em o mundo interior e exterior –

sujeito sociológico. Logo, esse movimento revela uma identidade fragmentada

flexível, descentrada e oscilante entre o eu e o Outro, ou seja, revela um sujeito pós-

moderno, portanto com a identidade já “diluída”.

Sugerimos no quadro abaixo, as FDs postas em relação no recorte 2, essa

confrontação nos mostra os posicionamentos do enunciador e seu Outro. A FD

sócio-interacionista revela a postura do discurso da EFAP e a FD individualista

revela o discurso do Outro que o enunciador do recorte 2 deve negar. Esta

heterogeneidade sugere o primado do interdiscurso sobre o discurso.

FD FD (sócio-interacionista) FD (individualista)

Há relatos de médicos que entenderam melhor seus pacientes após eles mesmos passarem por uma experiência de enfermidade grave.

Há relatos de médicos que entenderam melhor seus pacientes após eles mesmos passarem por uma experiência de enfermidade grave.

(O professor deve se colocar no lugar do aluno para que a aprendizagem ocorra)

Os médicos em geral são considerados excelentes conhecedores de determinadas doenças, embora nunca tivessem sido acometidos pelas doenças que estudam e tratam.

(O professor deve se especializar para que a aprendizagem ocorra)

31 A propósito desse assunto, ver também em: BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade; tradução: Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama; revisão técnica Luís Carlos Fridman. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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Na docência, a experiência de ser aluno antes de ser professor é inevitável, favorecendo a capacidade indispensável a todo profissional que lida com seres humanos: a empatia.

Na docência, a experiência de ser aluno antes de ser professor é inevitável, favorecendo a capacidade indispensável a todo profissional que lida com seres humanos: a empatia.

(A empatia entre professor e aluno é fundamental para que a aprendizagem aconteça)

Embora todo professor tenha sido aluno um dia, esse fato não é determinante para o exercício da profissão, nem mesmo favorece a empatia.

(A empatia entre professor e aluno não é fundamental para que a aprendizagem ocorra, existem professores excelentes, mas indiferentes

a seus alunos). A partir daquilo que ensinamos aos nossos alunos, seja através de teorias ou de ações, influenciamos diretamente sobre a forma como se articulam as peças nesse cenário social, cultural e educacional.

A partir daquilo que ensinamos aos nossos alunos, seja através de teorias ou de ações, influenciamos diretamente sobre a forma como se articulam as peças nesse cenário social, cultural e educacional.

(O professor é fundamental na construção da cidadania, e pode ajudar mudar a realidade social dos alunos).

Tudo aquilo que ensinamos aos nossos alunos, seja por meio de teorias ou de atitudes não tem influenciado em nada na sociedade.

(O professor deve fazer a sua parte, já que não pode mudar a realidade das coisas).

Daí a necessidade de desenvolvermos um olhar que se concentre sobre a realidade de nossos alunos e menos sobre os ideais imaginários que depositamos sobre eles.

Daí a necessidade de desenvolvermos um olhar que se concentre sobre a realidade de nossos alunos e menos sobre os ideais imaginários que depositamos sobre eles.

(O professor deve observar a realidade dos alunos para compreendê-lo)

Não há necessidade de olhar a realidade dos alunos, já que elas mudam de acordo com os eventos políticos, econômicos, sociais e culturais. O correto é partir de um ideal de aluno.

(O professor deve se concentrar em sua disciplina, já que é quase impossível abarcar a realidade de cada aluno).

Podemos confluir algumas dessas FDs, já que o sentido de concorrência é amplo.

Esta concorrência, portanto, inclui tanto o confronto aberto quanto à aliança, a

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neutralidade aparente etc.; entre discursos que possuem a mesma função social,

mas divergem sobre o modo pela qual ela deve ser preenchida. (MAINGUENEAU,

2008a, p. 34) Devemos observar que é por meio de uma FD sócio-interacionista que

o ethos será construído. Antes de desenvolvermos essa noção, precisamos mostrar

como se constitui as cenas de enunciação no recorte 2.

A cena englobante diz respeito ao discurso pedagógico, ancorado pela instância da

EFAP. A cena genérica diz respeito a uma orientação didático-pedagógica.

Observemos o início do texto: Há relatos de médicos que entenderam melhor seus

pacientes após eles mesmos passarem por uma experiência de enfermidade grave.

[1] Nessas primeiras linhas o co-enunciador não recebe o texto como discurso

pedagógico ou orientação didática. A fala supõe uma situação de enunciação de

início que afasta o quadro cênico do co-enunciador e deverá ser validada conforme

o andamento da enunciação.

A cenografia é, portanto, a de condução à profissão médica que é validada pelas

cenas de fala há relatos de médicos que entenderam melhor seus pacientes [1], em

que o co-enunciador é convidado a participar da situação de interação entre médico

e paciente, interação esta que vem alicerçada em estereótipos, como o médico de

família. Ademais, a enunciação mobiliza, nesse primeiro momento, não só a função

social, mas a relevância humanitária de proteção à saúde e à vida de uma profissão

com alto grau de prestígio em nossa sociedade. Contudo, essa mobilização se limita

a um grupo de médicos que “entenderam” melhor seus pacientes porque sofreram o

mesmo mal que eles, em uma palavra: médicos que passaram pelas situações de

seus pacientes. Isso não significa que as supostas doenças foram curadas.

Posteriormente a essa cenografia, emerge um paralelismo a substituição dos itens

lexicais. No lugar de médico e paciente, surgem professor e aluno. Na docência, a

experiência de ser aluno antes de ser professor é inevitável. [1] O valor semântico da

comparação entre médico e paciente é transportado na relação entre professor e

aluno. Ainda assim, esta última relação ganha mais abrangência, pois trata de algo

axiomático. Em outras palavras, não se trata apenas de um grupo de professores

que foram alunos, mas de todos os professores. A cenografia, assim, é constituída

com o lugar do “consultório médico” numa relação particularizada entre professor e

aluno, como a do médico e paciente. Ela legitima o enunciado anterior [1] e é

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legitimada pelas sequências enunciativas [2] e [3], o co-enunciador é posto num

lugar em que a interação com seu aluno é individual.

Assim, como “há relatos” de um grupo de médicos que depois de ficarem doentes,

melhoraram sua percepção acerca de seus pacientes enfermos, os professores, que

foram estudantes, estão bastante capacitados para entenderem seus alunos. A

cenografia dessa situação médica em correlação com a prática educativa não é

circunstancial, ela é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra;

ela legitima o enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la. (MAINGUENEAU, 2013,

p. 98) É por meio dessa cenografia que se revela a ethos do enunciador.

O enunciador mostra-se somente a partir da sequência [3] por meio do embreante

em primeira pessoa do plural – nós. Antes, porém, nas sequências [1] e [2] há um

apagamento das pessoas. A hipótese do metaenunciador desenvolvida

anteriormente pode ser constatada nessas primeiras duas sequências, é um

metaenunciador quem fala. Na docência, a experiência de ser aluno antes de ser

professor é inevitável, favorecendo a capacidade indispensável a todo profissional

que lida com seres humanos: a empatia. [1] O que significa colocar-se no lugar do

outro? [2] Mas esse metaenunciador instaurado pela instância EFAP não impõe,

como no recorte 1, o discurso do dever-fazer, nem mesmo o tom em que diz pode

ser considerado mais incisivo. O metaenunciador no recorte 2 apela para analogias

e questionamentos. Há relatos de médicos que entenderam melhor seus pacientes

após eles mesmos passarem por uma experiência de enfermidade grave. Na

docência, a experiência de ser aluno antes de ser professor é inevitável [1]. O que

significa colocar-se no lugar do outro, de sair de sua própria perspectiva para

entender a do outro? [2].

Essa estratégia visa a equipar a imagem social do médico com a imagem social do

professor, também a conduzir o co-enunciador/professor por uma reflexão acerca do

seu lugar social e do lugar social de seu aluno, instaurando a questão da empatia

como desencadeadora de um ensino-aprendizagem bem sucedido. Também, aqui, o

apagamento das pessoas não é total, o lugar do co-enunciador nas sequências [1] e

[2] aparece de modo bastante indireto, (MAINGUENEAU, 2013, p. 157) referindo-se

a sua experiência pessoal a experiência de ser aluno antes de ser professor é

inevitável [1], ou, então, pela relação de alteridade. O que significa colocar-se no

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lugar do outro? [2]. Logo, qualquer professor pode ser implicado nesse discurso.

Não há um eu ou um nós que diz diretamente, mas podemos supor um tu,

encarnado pelo professor/cursita. Esse metaenunciador é capaz de apresentar

exemplos sem citar referências (há relatos [...]), ou de perguntar sem responder (o

que significa? [...]).

Na sequência [3], o enunciado pertence ao plano embreado que é instaurado a

partir do emprego do embreante em primeira pessoa do plural – nós e seus

determinantes. A partir daquilo que ensinamos aos nossos alunos, seja através de

teorias ou de ações, influenciamos diretamente sobre a forma como se articulam as

peças nesse cenário social, cultural e educacional. A cenografia da comparação

entre médico e paciente mantém a simetria da relação de ensino-aprendizagem

entre professor e aluno. O co-enunciador é colocado no lugar da prática educativa

propriamente dita, pelos dêiticos espaciais que Maingueneau (2013) nomeia de

grupos nominais, isto é, os embreantes espaciais não são colocados de modo direto

por itens lexicais como aqui, lá, mas por um grupo nominal constituído por este,

esse, mais os substantivos, assim temos, nesse cenário social, cultural e

educacional [3]. A escola é o lugar de onde se dá enunciação ela está inserida na

contemporaneidade que, por sua vez, é o espaço mais geral de onde falam os co-

enunciadores.

Os dêiticos temporais reforçam o momento da enunciação e são materializados

linguisticamente pelas marcas do pretérito perfeito simples adicionadas ao radical

dos verbos: ensinamos, influenciamos, depositamos, que indicam as ações que os

professores tomam na prática educativa, também pelas marcas do presente simples:

articulam [as peças], para almejar, pela marca do futuro simples, as mudanças

necessárias na educação: desenvolvermos [um olhar que se concentre sobre a

realidade de nossos alunos] [3]. Todo esse processo do passado, presente e futuro

pertence ao plano embreado realizado pelo - nós que, nesse caso, indica uma

coletividade.

Dessa forma, o fiador que emerge do que é dito pode ser construído pelo co-

enunciador a partir dessa ‘nova’ relação entre professor e aluno, não só conferindo-

lhes uma condição de empatia, como também de respeito e de prestígio que a

profissão de médico outorga aos parceiros.

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O fiador que se mostra nessa enunciação tem como atividade profissional a

docência a partir daquilo que ensinamos aos nossos alunos; [3] preocupado em ser

correto na profissão, já que suas atitudes e falas (aulas, conversas) refletem naquilo

que seu aluno pode vir a ser, e, por conseguinte, reflete em toda sociedade. Mostra-

se um professor engajado com a aprendizagem e consciente de sua função social.

Mostra-se, por fim, um professor que não idealiza um aluno, mas o vê como um ser

humano particular, com problemas, aflições, medos, desejos etc. Daí a necessidade

de desenvolvermos um olhar que se concentre sobre a realidade de nossos alunos e

menos sobre os ideais imaginários que depositamos sobre eles. [3]

A questão da função social do professor dentro da perspectiva da EFAP começa a

ser sinalizada e será verificada, por nós, no próximo item. Cabe lembrar que a

concepção de professor desejável é a soma do ethos construído pelos discursos

materializados na EFAP, até aqui vimos quais características deve ter um professor-

mediador e como ele deve relacionar-se com seus alunos e sua profissão. Sendo

assim, verificaremos, além da função social desse professor, o que faz dele um bom

professor.

3.5. A transmissão do conhecimento ou a socialização da prática

As palavras, ou melhor, seus efeitos de sentido têm o poder de nos fazer aderir a

esse ou aquele posicionamento, a esta ou aquela ideologia. Dizer hoje, na escola,

que o professor irá transmitir um conhecimento pode soar como uma presunção

autoritária. Entre os colegas e também entre os alunos, costuma-se dizer que o

professor irá socializar a sua prática. Mas como essa prática docente é construída

senão com o diálogo constante entre um saber teórico e um saber prático, isto é,

com um conhecimento objetivo? Como disse Freire (1996), ensinar exige pesquisa.

Não estamos nas escolas somente para contar causos de nossas vidas, embora

causos possam ser sempre contados. O ofício de professor não é algo estanque,

muda a cada ano, mês, dia, às vezes horas; de turma para turma, de aluno para

aluno. Portanto, não podemos construir a imagem de um professor ideal, porque não

existe sociedade ideal, escola ideal, aluno ideal.

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Somos todos diferentes e o reconhecimento dessa alteridade nos permite constatar

que a situação no processo de ensino-aprendizagem não é alterada pelos dizeres

transmitir conhecimentos ou socializar práticas, no entanto a ação, a competência, o

comprometimento, enfim, o clima de respeito que nasce de relações justas, sérias,

humildes, generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se

assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico (FREIRE,

1996, p. 103) Vejamos no recorte 3 qual a visão da EFAP acerca do “perfil” de

professor ideal e de seu ofício.

Recorte 3 [1] O ofício de professor é o único no qual a situação de formação é homóloga à situação do exercício profissional, já um médico não vive o papel de doente para curar; o advogado não se torna réu para defender um caso judicial. [2] O professor, como todos os demais profissionais, necessariamente foi aluno. Essa noção aparentemente óbvia tem consequências importantes para a formação do professor porque a sua experiência de aluno, serve de referência para a imagem de professor que ele quer ser no futuro. [3] Lembre-se dos professores que você já teve e pense naquele que gostou mais e naquele que gostou menos. Procure definir porque gostava mais de um do que de outro. Pense: suas preferências ou rejeições por esses professores afetaram de alguma maneira a sua escolha profissional? Quais qualidades você quer cultivar como professor e quais defeitos gostaria de evitar? Compare com as qualidades e os defeitos dos seus professores. [4] Elabore um perfil de bom professor baseado em sua experiência pessoal que deverá ser publicado em “questão discursiva” para a apreciação do professor tutor. No futuro, talvez ele seja útil para você avaliar até que ponto conseguiu se tornar esse professor idealizado.

Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores, módulo 2.

Enquanto no recorte 2 há uma tentativa de aproximar um determinado grupo de

médico a um determinado grupo de pacientes e que esses dois grupos se

aproximam pela empatia, de modo como faria o professor-mediador, há relatos de

médicos que entenderam melhor seus pacientes após eles mesmos passarem por

uma experiência de enfermidade grave, [recorte 2]. No recorte 3, de modo

paradoxal, esse ponto é deixado de lado: já um médico não vive o papel de doente

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para curar e acrescenta-se a isso o advogado que não se torna réu para defender

um caso judicial. [1]. O item lexical entender [recorte 2] é substituído pelo item lexical

curar. [no recorte 3] Em outras palavras, valendo-se da analogia entre

médico/paciente e professor/aluno, nossos alunos não estão doentes, eles precisam

ser entendidos.

Essa competência de “entender” é atribuída somente aos professores e um grupo

restrito de médicos, os médicos em geral e os advogados não precisam viver os

papéis de pacientes para curar os doentes e réus para defender os clientes. Nos

dois casos, as duas profissões de prestígio no Brasil são referidas para ativar uma

comparação, ou seja, médicos e advogados não viveram papéis homólogos a sua

profissão, já o professor sim. Essa noção de correspondência entre a profissão e o

papel social do indivíduo (aluno, paciente, réu), embora não encontre fundamento na

realidade, coloca em si a profissão de professor num grau de superioridade dentre

as outras, pelo menos nesse quesito.

Contudo, a enunciação mobiliza outra noção para estabilizar a referida comparação,

trata-se da acepção da imagem do Outro. Essa noção aparentemente óbvia tem

consequências importantes para a formação do professor porque a sua experiência

de aluno, serve de referência para a imagem de professor que ele quer ser no futuro.

[3] Em outras palavras, o que se pode observar é que outras profissões não

oferecem aos seus estudantes referências de profissionais com as quais eles

possam se espelhar.

Ora, num curso de medicina ou de direito boa parte dos professores é profissional

da área, que se dedica ao ensino e à pesquisa paralelamente e mantém sua

atividade ‘prática’. Logo, a imagem de profissional que um aluno de medicina, por

exemplo, reteve na memória pode não ser a do professor, mas do médico ou do

pesquisador, mesmo sendo a mesma pessoa. Nesse ponto, a imagem do professor

de ensino básico que se deseja aceitar ou recusar é imagem do profissional no ato

da prática de ensino, isto é, dentro da sala de aula, não, porventura, do pesquisador,

do poeta, do escritor, do empresário, do atleta etc.

Consideramos aqui que essa imagem de professor pode ser configurada em um

espaço discursivo que contém dois posicionamentos. O primeiro diz respeito àquele

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que diz que a profissão docente é uma escolha refletida e feita ainda no ensino

básico, a sua experiência de aluno, serve de referência para a imagem de professor

que ele quer ser no futuro. [3], esse posicionamento aproxima a ideia de vocação à

docência e de amor à profissão. O segundo se refere àquele em que a profissão

docente é uma consequência profissional do curso escolhido na graduação, esse

posicionamento, por sua vez, aproxima à ideia de vocação à área do saber e à

busca do conhecimento. Esses dois sentimentos, contudo, não precisam

necessariamente ser apartados um do outro.

A função social desses discursos é idêntica, mas seu preenchimento é divergente.

Podemos distribuir esse preenchimento em duas pedagogias concorrentes, a saber:

as pedagogias hegemônicas fundamentadas, sobretudo, pelo neoconstrutivismo e a

pedagogia histórico-crítica. Esta defensora de que o papel da escola baseia-se em

socializar o saber objetivo historicamente produzido. Aquelas, centradas no lema

“aprender a aprender”, retiram da escola a tarefa de transmissão do conhecimento.

No cenário, pode emergir a figura do professor-mediador, já que a transmissão de

conhecimento historicamente produzido é deixada de lado para dar lugar à

mediação da aprendizagem, como sugere Duarte (2012, p. 9),

Nossa avaliação é a de (sic) que o núcleo definidor do lema

“aprender a aprender” reside na desvalorização da transmissão do

saber objetivo, na diluição do papel da escola em transmitir esse

saber, na descaracterização do papel do professor como alguém

que detém um saber a ser transmitido aos seus alunos, na

própria negação do ato de ensinar (ênfases nossas).

Tanto a descaracterização do papel do professor como a negação do ato de ensinar

são confirmadas pela enunciação no recorte 3. O enunciador constrói a imagem do

‘bom’ professor por meio de índices subjetivos e, dessa forma, engendra uma visão

maniqueísta do ofício de professor, mitigando sua função social. Lembre-se dos

professores que você já teve e pense naquele que gostou mais e naquele que

gostou menos. [4] Contudo, essa estratégia liga-se ao aspecto do afeto e da

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empatia, atributos desejáveis para um professor-mediador. Procure definir porque

gostava mais de um do que de outro. [4] Nunca é demais lembrar que essas

questões são dirigidas a professores em fase de concurso público e servem como

estratégia para construir, mediante as questões discursivas que eles produzirão,

práticas discursivas estereotipadas do perfil de “bom professor”.

De um modo mais abrangente, essa construção idealizada do profissional docente,

mesmo que seja uma imagem de professor desejável, ignora as condições sociais,

políticas, econômicas e culturais em que os sujeitos estão inseridos. Além disso,

ignora as condições materiais em que cada sujeito recebe sua formação. Trata-se,

portanto, de um esvaziamento da função social do professor. Pense: suas

preferências ou rejeições por esses professores afetaram de alguma maneira a sua

escolha profissional? [4] Por esse prisma, sugere-se que as escolhas profissionais

dos sujeitos fundamentam-se em suas preferências e rejeições em vista do Outro.

De outro modo, fatores econômicos, políticos, sociais, culturais ficam em segundo

plano. Em suma, legitima-se a subjetividade em detrimento à objetividade.

Assim, um metaenunciador engendra a imagem do professor por uma visão dualista,

mas o faz sem uma caracterização particularmente linguística, fica a cargo do co-

enunciador construir essa imagem com os elementos que lhe são dados pela própria

enunciação, materializadas linguisticamente pelas informações dadas pelo

metaenunciador (professor tem vantagem sobre médicos e advogados) e por meio

da construção da cenografia e do ethos que analisaremos mais adiante. O co-

enunciador é enredado em uma ‘enquete de lembrança’ que deve acionar a sua

memória discursiva, segue, então, uma metodologia própria na sequência, ou se

preferirmos, o gênero discursivo de uma sequência didática [3]:

Passo 1. Lembre-se dos professores que você já teve e pense naquele que gostou

mais e naquele que gostou menos.

Depois é necessário opinar acerca de seu gosto:

Passo 2. Procure definir porque gostava mais de um do que de outro.

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Na sequência faz-se necessário refletir um pouco mais verticalmente:

Passo 3. Pense: suas preferências ou rejeições por esses professores afetaram de

alguma maneira a sua escolha profissional?

Escolher entre os resultados de sua reflexão:

Passo 4. Quais qualidades você quer cultivar como professor e quais defeitos

gostaria de evitar?

Essa seleção de qualidade e de defeitos é submetida à comparação:

Passo 5. Compare com as qualidades e os defeitos dos seus professores.

E, finalmente, o co-enunciador é levado a considerar seu ideal de professor:

Passo 6. Elabore um perfil de bom professor baseado em sua experiência pessoal.

Embora tenha um percurso metodológico assegurado pelos itens lexicais: procure,

pense, compare e elabore, que expressam uma relação ao ato que se exige do

agente, o item lexical que desencadeia esse plano de ação é lembrar, que aciona a

memória discursiva do co-enunciador, isso significa que os resultados serão

diferentes, já que as lembranças são idiossincráticas. Em última instância, não se

pretende construir um perfil de bom professor por meio dessa sequência didática:

elabore um perfil de bom professor baseado em sua experiência pessoal que deverá

ser publicado em “questão discursiva” para a apreciação do professor tutor [4].

Contudo, pretende-se definir um posicionamento do discurso da EFAP. Assim,

existe, segundo esse posicionamento, um ideal de professor que precisa ser

alcançado: no futuro, talvez ele seja útil para você avaliar até que ponto conseguiu

se tornar esse professor idealizado. [4]

Esse posicionamento vai de encontro com aquele que pressupõe uma formação de

professores inicial e continuada que visa à qualidade na educação. Baseando-se em

um modelo de formação alternativo no qual a construção de conhecimento se

coloque a serviço do desvelamento da prática social, apto a promover o

questionamento da realidade fetichizada e alienada que se impõe aos indivíduos.

(MARTINS, 2010, p. 20) O perfil de bom professor que é desvelado no discurso da

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EFAP não consiste em uma formação marcadamente científica, ativada por um

saber historicamente produzido, mas valoriza-se a empatia, o gosto pessoal. Por

extensão, valoriza-se uma educação centrada na cultura presente no cotidiano

imediato dos alunos que se constitui, na maioria dos casos, em resultado da

alienante cultura de massas. (DUARTE, 2012, p. 11)

A situação de enunciação que a fala supõe no início da sequência [1], o ofício de

professor é o único no qual a situação de formação é homóloga à situação do

exercício profissional, vai sendo validada para impor certo grau de importância à

profissão docente dentre as outras profissões; um médico não vive o papel de

doente para curar; o advogado não se torna réu para defender um caso judicial. [2]

A cenografia de enquete só é possível por esse destacamento da profissão de

professor sobre as demais profissões.

É por meio dela, portanto, que o co-enunciador é convocado a um lugar, no caso do

recorte 3, a memória de quando era aluno. Lembre-se dos professores que você já

teve e pense naquele que gostou mais e naquele que gostou menos. [3] Também é

ela que implica um ethos do enunciador. Esse eu que enuncia se afasta do eu e do

nós dos recortes 1 e 2. Como dissemos mais acima, é um metaenunciador que fala

a um você.

O fiador que valida o que é dito emerge como instância informativa de pleno saber;

professor, como todos os demais profissionais, necessariamente foi aluno. [2] Seu

ethos corresponde aquele que detém um saber e que chega a conclusões, essa

noção aparentemente óbvia tem consequências importantes para a formação do

professor porque a sua experiência de aluno, serve de referência para a imagem de

professor que ele quer ser no futuro. [2] e que pode impor tarefas a seus

comandados pense, compare , elabore. Atribuímos esse ethos exclusivamente ao

metaenunciador EFAP.

Movemos, no presente capítulo, três categorias de análises: interdiscurso,

cenografia e ethos discursivo. O conceito de interdiscurso instala um novo gesto de

leitura. No caso do discurso da EFAP, essa noção se mostra produtiva à medida que

nos permite identificar vários posicionamentos na construção de sentido. Podemos

observar que o espaço discursivo do discurso de formação de professores é

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altamente heterogêneo, contendo posicionamentos bastante diversos acerca do

tema. Desde os discursos de base, como teorias e leis até as práticas discursivas

que materializam as práticas didático-pedagógicas.

O discurso da EFAP assume o tema de formação de professores como práticas

discursivas para práticas didático-pedagógicas, excluindo as questões mais

polêmicas que envolvem a formação docente, como a valorização profissional, as

condições adequadas de trabalho, o plano de carreira etc. Para isso, constrói por

meio da enunciação cenografias diversificas que colocam o co-enunciador ora no

lugar do ambiente escolar, ora nas relações familiares da memória da infância, ora

num cenário social em mudanças. Do mesmo modo, a constituição do ethos

discursivo tem como objetivo alinhar a imagem construída pelo enunciador com o

posicionamento adotado por um metaenunciador. Logo, o enunciador está a par de

modelos de práticas e teorias aludidos pela EFAP, e, por conseguinte, está afinado

as pedagogias hegemônicas que sustentam esse modelo.

Assim, o co-enunciador é levado a considerar pelo menos três questões

fundamentais no desenvolver da enunciação. Em primeiro lugar, a noção de

mediação de aprendizagem que é apropriada dos estudos sócio-interacionistas de

Vygotsky e convertida a uma noção neoliberal e pós-moderna de educação. Em

segundo lugar, a noção de ensino de aprendizagem mediada – EAM de Feuerstein

em que somente é apreendido pelo valor semântico dos itens lexicais aprendizagem

e mediada, pois a fundamentação teórica proposta pelo pensador romeno é deixada

de lado. Enfim, é repercutido largamente o lema “aprender a aprender” que vai de

encontro ao pensamento dos dois pensadores supracitados.

Embora o co-enunciador deva aderir ao lema “aprender a aprender” e entendê-lo

como eficaz para ocorrer o ensino-aprendizagem, ele não é considerado como

indivíduo capaz de “aprender a aprender”, uma vez que lhe é imposto um modelo de

ensino-aprendizagem, já que, segundo o enunciador, a formação inicial é deficiente.

[recorte 1], sequência [6]. Esse modelo, portanto, é sugerido como prática educativa

pela EFAP. De outra forma, o co-enunciador deve aderir a empatia em sua prática

educativa e idealizar um perfil de bom professor para poder utilizar como diretriz em

sua profissão. Podemos falar de vários ethos constituídos nos discursos analisados

pelo enunciador, mas o que prevalece é o ethos de um professor reflexivo de sua

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prática, benevolente para com os outros, atual, informado, humilde e que procura

sempre o conhecimento. O ethos de um metaenunciador é mais incisivo, austero e

que impõe condições. Assim, ocorre o funcionamento do discurso da EFAP nas

amostras selecionadas que podemos observar pelas categorias de análises

escolhidas.

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156

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso pedagógico pode ser entendido por dois vieses. O primeiro, mais

abrangente, diz respeito ao caráter instrutivo desse discurso, isto é, revela de modo

intrínseco uma orientação daquele que ensina para aquele que aprende, logo visa a

guiar outrem no processo de aprendizagem. O segundo, mais restrito, refere-se ao

discurso voltado às questões da educação, no sentido de ciência da educação.

Essas duas acepções, embora possam ser verificadas de modos distintos,

coexistem nas amostras que tomamos como objeto de estudo.

Assim, ao observar o discurso pedagógico nos sistemas escolares, notamos um fio

condutor “didático” na maior parte das práticas discursivas voltadas à formação de

professores. Esse fio didático-pedagógico fundamenta-se em dois campos

discursivos: o campo discursivo científico, materializado pelas teorias e o campo

discursivo político, materializado pelas Leis. A partir dessas duas bases podemos

sublinhar termos como parâmetro, diretriz, metodologia, método, modelo, orientação,

rumo, procedimento etc.

Esse vocabulário retoma as duas concepções supracitadas de discurso pedagógico,

ele nos permite delimitar a unidade discurso pedagógico no campo discursivo da

educação. Nesse sentido, estabelecemos o discurso pedagógico para além de seu

caráter meramente instrutivo, vimos que pela especificação das condições sócio-

históricas de produção, podemos considerá-lo em sua relação interdiscursiva.

Nesse sentido, devemos acrescentar ao discurso de formação de professores esses

dois vieses, aquele que está na base e é orientado pelas práticas discursivas que

propõem as teorias e prescrevem as Leis, e aquele que, a partir dessas práticas,

engendram novas práticas retomando as primeiras, daí seu caráter heterogêneo.

Essa dialética estabelece uma intensa concorrência entre os posicionamentos,

gerando os conflitos e tensões na produção de sentido.

Além disso, essas práticas discursivas são influenciadas pelos aspectos econômico,

político, social e cultural. Este fato pode parecer óbvio quando pensamos as

questões de formação docente de um ponto de vista mais abrangente, isto é,

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quando observamos esse discurso em pesquisas acadêmicas sobre formação

docente ou em documentos oficiais. Contudo, ao analisarmos nossas amostras,

notamos que, no âmbito da EFAP, esses aspectos não são contemplados, logo é

somente pelas análises que fica patente a dimensão pragmatista e instrutiva do

discurso da EFAP.

O estudo do interdiscurso nos revelou que existem no discurso da EFAP

posicionamentos fortemente marcados quando se discute a prática de ensino. De

um lado, o discurso explícito que diz respeito à incorporação de uma teoria da

aprendizagem infantil para basilar a relação de ensino entre professor e aluno. De

outro, o discurso negado pela EFAP que confere ao professor a capacidade de

transmitir conhecimento objetivo. Esse último, nada tem a ver com a prática de

transmissão ‘pura’ de conhecimento, a qual a EFAP chama de ensino tradicional,

mas se refere à possibilidade de uma formação sólida para que o professor possa

ensinar os seus alunos os conhecimentos historicamente adquiridos pela

humanidade.

O discurso da EFAP considera que a prática de ensino só poderá ocorrer de modo

pleno se houver uma interação entre professor e aluno, independente das condições

materiais e sociais em que essa prática ocorra. Para tanto, aciona-se duas teorias

fundadas na ideia da mediação da aprendizagem que podem ser verificadas nos

trabalhos de Vygotsky e Feuerstein. Esse dois autores, embora não sejam

resenhados, são aludidos para fazer emergir um discurso que materializa uma

noção vaga de mediação da aprendizagem.

Cabe lembrar que suas teorias se voltam bastante para a aprendizagem infantil, fase

em que o processo de aprendizagem é bastante intenso. Dessa forma, o discurso da

EFAP incorpora esses conceitos para lançar mão de uma noção de mediação “mais

abrangente” que abarcaria todos os ciclos de ensino, desde os primeiros anos até os

anos finais. Essa estratégia visa, em primeiro lugar, a constituir uma imagem

renovada do professor atual que é constituída pelo enunciador. Logo, as condições

para uma prática docente efetiva e plena estariam nessa nova postura. O professor

passaria, assim, de um mero transmissor de conhecimento para um mediador da

aprendizagem. Esse posicionamento nos revela dos pontos fundamentais.

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O primeiro se refere à assunção do discurso da EFAP que a educação oferecida no

Estado de São Paulo é de baixa qualidade, embora o discurso institucional do

Estado diga outra coisa. Assumindo que os professores da rede pública do estado

de São Paulo devem aderir a essa nova postura em suas práticas de ensino, isto é,

devem tornar-se um professor-mediador; assume-se, também, que os professores

são apenas transmissores de conhecimento e, por isso, a aprendizagem não ocorre.

Em última instância, admite-se que o professor é o pivô de uma possível mudança.

Contudo, as condições sócio-históricas em que essas práticas educativas de

mudança ocorreriam não são aludidas, o que se propõe por meio de cenografias

instauradas pela enunciação é uma mudança de postura do professor no modo de

enfrentar as questões de ensino-aprendizagem.

O segundo diz respeito à apropriação de teorias de base cognitiva para fundamentar

questões de ordem econômica, política, social e cultural. No percurso de nosso

trabalho ficou implícita a nossa crítica à mediação da aprendizagem. Contudo,

devemos deixar claro que nem de longe estamos criticando os estudos de Vygotsky

e Feuerstein e suas contribuições no campo da psicologia da educação. Nossa

crítica se orienta a partir das apropriações do discurso da EFAP desses estudos,

desvirtuando suas bases científicas e cognitivas para valorizar uma prática educativa

afetiva e pseudoprofissional.

Esses dois pontos revelam tensões no campo discursivo de formação de

professores, sobretudo quando relacionam a formação docente à qualidade na

educação. Os discursos de base que citamos alicerçam essa formação em

processos mais consistentes, como uma formação inicial humanística que contemple

uma prática verdadeira. De modo geral, esse caminho é desejável. Não obstante,

esses discursos também consideram que a valorização docente deve ser

fomentada. Logo, são necessárias boas condições de trabalho, plano de carreira,

valorização por mérito, remuneração compatível com o exercício da profissão.

Quando situamos essas questões na formação docente, surgem grandes problemas.

Caso almejemos por uma boa formação inicial e continuada aos professores,

devemos nos perguntar em que consistiria essa formação? Em qual sociedade

estamos formando nossos alunos e para quê? As pedagogias hegemônicas pelas

quais a EFAP engendra o seu discurso desconsideram uma reflexão pautada

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nessas questões, já que têm como diretriz uma visão pragmática da prática escolar

e embasada no conceito construtivista da educação32. Por outro lado, as pedagogias

contra-hegemônicas, centradas em desenvolver o educando no contexto da prática

social global, consideram as questões supracitadas de suma importância na

formação de professores.

Acontece que, como o discurso de formação de professores está arraigado a fatores

econômicos e políticos, as pedagogias hegemônicas respondem mais facilmente a

esses embates, aparentemente, de âmbito escolar. Assume-se, pois, um projeto

neoliberal de educação para propor a adequação a uma sociedade dita pós-

moderna em que se perpetua a reprodução do capital. Esse quadro arrefece as

discussões sobre a formação de professores, transformando uma proposta de

valorização docente mais abrangente e sólida em questões de prática didático-

pedagógica. Essa é, pois, a concepção da EFAP que considera que o professor

apenas assumindo um modelo de ensino e uma postura “diferenciada” pode fazer a

aprendizagem acontecer.

As categorias de análise que movemos nos revelam essa asserção. Ao analisarmos

a relação interdiscursiva do discurso da EFAP, observamos os valores e tensões

que ele engendra, mas é a partir da constituição da cenografia e do ethos discursivo

que podemos vislumbrar os mecanismos de funcionamento desse discurso.

A construção da cenografia ocorre no momento da enunciação, ela afasta o quadro

cênico estável e coloca o co-enunciador no lugar que vai sendo construído pela

enunciação. Esse enlaçamento visa a envolver o co-enunciador nas discussões

acerca da prática de ensino, ou nas sociedades em mudança, ou, ainda, nas

lembranças da infância da aprendizagem familiar Ao afastar a cena englobante e a

cena genérica, o discurso da EFAP afasta a presença de um metaenunciador

institucional, que, via de regra, retoma pontos específicos da enunciação. Desse

modo, podemos não só identificar o caráter interdiscursivo do discurso de formação

32 Segundo Duarte (2012), o construtivismo não deve ser considerado como um fenômeno isolado ou desvinculado do contexto mundial das duas últimas décadas. Tal movimento ganha força justamente no interior do aguçamento do processo de mundialização do capital e de difusão, na América Latina, do modelo econômico, político e ideológico neoliberal e também de seus correspondentes no plano teórico, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo. (DUARTE, 2012, p. 34)

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de professores contido na EFAP, como estabelecer os diferentes posicionamentos

contidos nesse discurso.

Diante disso, o enunciado legitima a cenografia que deve legitimá-lo e o faz à

medida que apresenta a prática escolar de mediação como a única possível de

mudar a atual situação de aprendizagem dos alunos da rede pública de São Paulo.

Não se questiona a realidade social de cada escola, as condições de trabalho, a

formação do professor, as idiossincrasias dos sujeitos envolvidos. Nada disso é

levado em conta, porque são realidades de alta complexidade e demanda estudos

profundos e interdisciplinares. À EFAP, portanto, cabe construir práticas discursivas

para que os professores possam aderir a um modelo que tenha por base a

mediação da aprendizagem e seja capaz de mudar a imagem de omissão e

abandono do ensino na rede pública de São Paulo. Para tanto, a cenografia implica

um ethos.

O ethos discursivo no discurso da EFAP pode ser atribuído tanto a um enunciador

encarnado, como a um metaenunciador, instância institucional. A ideia de atribuir um

ethos a instância “governo paulista” é simplória, já que existiria, a priori, a condição

de aceitar o discurso da EFAP como discurso político. Contudo, identificar na própria

enunciação a interferência desse metaenunciador no discurso do enunciador

mostrou-se mais produtivo da análise de constituição do ethos. O recorte 1 pode ser

exemplar desse procedimento.

O enunciador descreve em primeira pessoa do singular sua experiência com as

questões da mediação da aprendizagem. A cenografia constituída a princípio é de

uma conversa informal entre um professor-coordenador e outros professores, são os

lugares sociais de onde se fala. No decorrer da enunciação emerge uma instância

subjetiva, um fiador ao qual o co-enunciador atribui caráter e corporalidade. Já nas

primeiras linhas da enunciação é colocado em jogo um conjunto de representações

valorizadas pelo co-enunciador. O ethos do enunciador é daquele professor que lê,

reflete, questiona e está envolvido pela ação na melhoria da educação em seu

ambiente escolar.

O enunciador também se mostra compreensivo com aqueles que ainda não

conhecem a mediação da aprendizagem, ele se mostra humilde para saber que

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esse percurso é árduo e demanda grandes esforços. Podemos atribuir esse ethos,

de modo particular, ao enunciador.

Contudo, em meio à enunciação irrompe uma voz mais autoritária, incisiva. Ao

professor não basta ensinar, ao professor compete mediar, ou todo professor

precisa ter em mente que necessita mudar sua forma de agir. Esse ethos

atribuímos a um metaenunciador. Essa hipótese leva em conta outros fatores

externos, como saber qual o posicionamento desse metaenunciador no que tange à

formação de professores, ou seja, qual o posicionamento político da instância

SEESP em relação aos professores da rede pública estadual de São Paulo

A AD nos proporcionou, por meio das amostras analisadas e das categorias de

análises movidas, examinar o funcionamento do discurso de professores no âmbito

da EFAP. Esta Escola instituída pelo governo paulista no ano de 2009 tem por

objetivo instaurar, por meio de seus cursos, um modelo de prática educativa que, a

despeito de aludir às teorias sócio-interacionistas e cognitivistas, tenta adaptar essas

teorias às concepções focadas no lema “aprender a aprender”. Esperamos, assim,

ter contribuído para sugerir aos professores e profissionais em educação uma

discussão mais ampla ao se discutir a formação docente, uma formação verdadeira

que esteja para além de práticas discursivas e que possam ser discutidas,

sobretudo, pelos professores. Muitos mais do que incorporar modelos, o professor

da rede pública de São Paulo deve buscar uma formação que lhe permita autonomia

intelectual para agir em sua prática.

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