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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP Mirtes Maria de Oliveira Portella A literatura oral em contos populares do Ceará: a carnalidade em performance PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2008

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …livros01.livrosgratis.com.br/cp065725.pdf · de Literatura e Critica Literária, ... referência os textos editados no livro Contos Populares

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Mirtes Maria de Oliveira Portella

A literatura oral em contos populares do Ceará:

a carnalidade em performance

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO

2008

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MIRTES MARIA DE OLIVEIRA PORTELLA

Dissertação apresentada como exigência parcial para

a obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica

Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação

da Prof.ª Dr.ª Maria Rosa Duarte de Oliveira.

São Paulo

2008

Banca Examinadora

.......................................................................................................................

.......................................................................................................................

.......................................................................................................................

DEDICATÓRIA

Para João e Eulália (in memoriam) que, contando histórias, ensinaram-me sobre a

vida.

Para Onofre, Aritanã, Mariana, Tarsila, Lucas e Caetano, porque os amo.

AGRADECIMENTOS

Na elaboração deste trabalho, contei com o apoio de muitas pessoas às quais sou

muito grata. Na impossibilidade de nomear todas elas, agradeço a todo o Departamento

de Literatura e Critica Literária, ao corpo de professores, funcionários e colegas de

mestrado que, direta ou indiretamente, doaram-me saberes e colaboraram com

estimulantes perguntas.

Com especial carinho, agradeço à minha orientadora Maria Rosa Duarte de

Oliveira, pela competência e companheirismo na condução desta pesquisa.

À Professora Maria Laura Pinheiro, pela atenta leitura.

A Luiza Granado, por me fazer acreditar.

A Allan Monteiro, pela generosa contribuição e desprendimento.

Pela cumplicidade, força e alegria, agradeço às minhas amigas:

Cynthia Costa,

Erika Takara e

Márcia Scarpa

À CAPES, pelo incentivo à pesquisa.

RESUMO

Esta dissertação tem por objetivo a investigação sobre a concepção de literário que

subjaz ao conto popular brasileiro no seu deslocamento do oral ao escrito, tendo por

referência os textos editados no livro Contos Populares Brasileiros – Ceará (2003).

Essa obra é fruto de recolhas cuja metodologia de transcrição implicou rigorosa

fidelidade à fonte oral, de modo a preservar as marcas vocais dos contadores. O corpus

de análise teve por critério de seleção a capacidade de sobrevivência e conservação

dos arquétipos dos contos “João e Maria”, “Maria Borralheira” e “Dom Anin”, à luz das

concepções de voz, corpo e performance do medievalista Paul Zumthor (1915 – 1984).

O desenvolvimento da pesquisa revelou estratégias de retextualização na passagem do

texto oral ao escrito, que conferiram à escritura hibridização entre letra e voz. Para

averiguar sobre como e quando a oralidade inscrita nos textos tornou-se condição para

considerá-los poéticos, diversas características lingüísticas foram levantadas, tais

como: fonológicas, morfológicas e sintáticas, além de marcadores conversacionais e

prosaísmos da fala, recursos que vivificaram o discurso narrativo quanto mais

intensificaram a presentificação da performance dos narradores: movimentos que

deslocaram a simples decodificação de signos gráficos, para o reconhecimento de uma

escuta, princípio determinante da essência poética da literatura. A análise das

narrativas demonstrou que, embora fiel aos elementos prosódicos da fala dos

contadores, a transcriação de suas performances no livro divide a responsabilidade

sobre a representação de suas vozes com o todo o processo editorial dos contos.

Esses, ainda que transitem entre tradição e memória, são, paradoxalmente, moventes e

inacabados, porque sempre relacionados ao seu contexto de produção. Os contos,

enquanto constituintes de uma rede discursiva dialogal, são presentificados, no

momento da performance, por entidades instituídas social e historicamente, cujos

discursos, representados no texto escrito, sugerem narradores em sintonia com os

contadores originais. Cabe ao leitor, por meio da letra, resgatar a vocalidade e

performance, conferindo carnalidade ao processo de transmissão.

PALAVRAS-CHAVE: literatura oral, vocalidade, movência, performance.

ABSTRACT

The purpose of this work is the investigation about conception of literary that is implied in

the displacement of brazilian popular story from the verbal form to the writting form. As

references, the edited storys contained in the book “Brazilian Popular Stories - Ceará

(2003)” was taken as study object. This book was made from some colect of popular

stories, which transcription methodology was worried about the allegiance to the verbal

source, in order to preserve the vocal marks of the storytellers. The analysis corpus had

as election criterion the capacity of survival and conservation of the stories “João and

Maria”, “Maria Borralheira” and “Dom Anin”, inspired in the conceptions of voice, body

and performance elucidated by the medievalista Paul Zumthor (1915 - 1984). During the

development of this research strategies of text reformulation could be revealed in the

tranfiguration of verbal form to the writing one, which gives to the writting form a hibrid

caracter, between the letter and voice. To inquire about how and when the orality marks

inscribed in the texts became condition to consider them poetical, diverse linguistic

characteristics was analysed, such as: phonological, morphologic and syntactic, besides

conversational and prosaisms markers of orality, which had vivified the narrative speech

intensifing the presence of narrators performance: initiatives that not just allow the

decoding of graphical signs but also make possible the recognition of a listening, that is

a determinative principle of the poetical essence of literature. The analysis of the

narratives demonstrated that even being coherent with the orality elements present in

the speaks of the storytellers, the transcription also bring some inherents caracteristics

of the publishing process. Those process transit between the tradition and memory, but

are paradoxicalally unfinished because are always related to its context of production.

The stories are constituent of a dialogal and discursive net, and in this condition are

presented by social and historical entities at the performance moment. When

represented in the written text, the speeches made by those entities suggest narrators

in parallel with the original storytellers. So, in this context the reader is in charge to

rescue trough the letter the vocality and performance, attributing some carnal e material

characteristics to the transmission process.

KEY WORDS: oral literature, vocality, mouvance (textual mobility), performance.

SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................................9

I - Narrativas poéticas orais e a literatura .................................................................201.1 - Em busca da voz.........................................................................................................26

1.2 - Contos populares brasileiros - Ceará e o conto de tradição oral........................ 28 1.2.1 - Forma e estrutura da narrativa oral............................................................. 33

1.3 - Quem conta um conto aumenta um ponto, mas pode diminuí-lo também... ....... 381.4 - Da forma oral à forma escrita: duas maneira de ler o texto poético.................... 40

1.5 - Do ouvir para o olhar, às vezes uma questão de poder........................................45

II - A obra vocal.................................................................................................................50

2.1 - Da trasmissão à percepção: a performance..........................................................53 2.1.1 - O saber-ser e a performance oral.................................................................55

2.1.2 - A leitura e o saber-ser do leitor em performance........................................582.2 - A inscrição da voz na letra.........................................................................................62

2.3 - Escrituras poéticas e as vozes do texto...................................................................64

2.4 - O discurso poético e os contos orais.......................................................................69

III - Contos do Ceará em análise....................................................................................74

3.1 - Contos populares brasileiros - Ceará e a arte da palavra .................................... 743.2 - A transcodificação da linguagem ............................................................................75

3.3 - "João e Maria"............................................................................................................773.4 - "Gata Borralheira" e "Maria Borralheira".................................................................87

3.5 - "Dom Anin": a conversa entre textos e o leitor entre a letra e a voz..................... 104

Considerações finais..........................................................................................................................112

Anexos...............................................................................................................................117

Referências bibliográficas ...........................................................................................142

9

Introdução

“Os grandes livros da infância foram as histórias narradas pelo meu avô”.

(Milton Hatoum)

Antes contraposta à literatura dos que sabiam ler, a literatura oral, segundo

Câmara Cascudo (2006, p. 21), é fonte criativa e, pela inesgotável utilização de seus

temas, fundo de empréstimo para a outra literatura, a de formulação artística. Em 1952,

na primeira edição de Literatura oral no Brasil, esse autor reconhecia uma relação

dicotômica entre a literatura oficial e a sua irmã mais velha e popular, não somente do

ponto de vista lingüístico, já que utilizam diferentes meios de propagação, mas também

do ponto de vista valorativo. Enquanto uma, ignorando sua fonte de origem, repercute

entre os meios eruditos e acadêmicos, a outra segue ignorada e teimosa, alimentando e

colaborando com a criação coletiva ancestral.

Tendo como base as narrativas de tradição oral russas, o pesquisador Vladimir

Propp, já em 1928, desenvolve importantes trabalhos sobre as estruturas e as origens

dos contos maravilhosos. Em Morfologia do Conto Maravilhoso (1984) e As Raízes

Históricas do Conto Maravilhoso (2002), Propp conjuga a pesquisa formal e

sistêmica com dados históricos e etnográficos, estabelecendo, assim, uma visão

estruturalmente funcional e histórica para o estudo de contos de transmissão oral como

uma disciplina em permanente processo de transformação:

Mas o que significa estudo concreto do conto? Por onde começar? Se nos restringirmos a comparar os contos entre si, permaneceremos nos limites de um estudo comparativo. É necessário ampliar esses limites e encontrar a base histórica responsável pela criação do conto maravilhoso. Esse é o problema que se propõe o estudo das raízes do conto maravilhoso, formulado por enquanto nas linhas mais gerais (PROPP, 2002, p. 01).

Uma outra abordagem classifica o conto em duas categorias: a artística e a

popular (MARIA, 1992, p. 10). A primeira é fruto da intencionalidade criativa de um autor

10

que lhe imprime estilo particular, e a segunda é de domínio coletivo, um relato simples,

em linguagem que fala de prodígios e encantamentos, com a característica de ser

oralmente transmitida.

Sabe-se, ainda por Câmara Cascudo, que a literatura, freqüentemente

denominada como popular, é alimentada e se mantém por meio de duas fontes

comunicativas: uma, manifesta pelos textos reimpressos das antigas narrativas vindas,

principalmente, da Península Ibérica séculos atrás; a outra, de modo exclusivo, persiste

e se realiza na oralidade.

Por obediência às normas literárias ou lingüísticas, recontados ou reelaborados,

esses contos geralmente passam da oralidade para o texto escrito com uma espécie de

apagamento – mesmo a título de lhes conferir unidade narrativa - da voz viva e sonora

que, estimulada pela memória da criação coletiva, se materializa em ação, em

performance. Termo de origem anglo-saxônica e ligado à dramaturgia, a performance,

para Paul Zumthor, legitima toda a teatralidade empenhada na transmissão e recepção

do texto, compreendida, assim, como suporte da mensagem e endosso do corpo em

presença, seja esse texto oral ou escrito:

Na situação performancial, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente, em vigília. Na leitura, essa presença é por assim dizer colocada entre parênteses; mas subsiste uma presença invisível, que é manifestação de um outro, muito forte para minha adesão a essa voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito, comprometa o conjunto de minhas energias corporais. Entre o consumo, se posso empregar essa palavra, de um texto transmitido oralmente, a diferença só reside na intensidade da presença (ZUMTHOR, 2000, p. 81).

Paul Zumthor desautoriza a identificação da literatura oral como folclórica, tendo

em vista que, além da imprecisão semântica, remete a uma perspectiva excludente e

preconceituosa, cujo bojo camuflaria um tensionado jogo entre a cultura dominante e a

cultura dominada, sendo esta última entendida como secundária e sem importância.

Para este pesquisador, “a literatura é uma das manifestações culturais da

existência humana” (ZUMTHOR, 2000, p.55), não havendo, portanto, senão de uma

forma artificial, a relação dicotômica entre oral/ popular e escrito/ erudito. Contrário à

colocação de limites discriminatórios, conduz seus estudos de maneira a flexibilizar e

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ampliar a visão de campo literário, possibilitando, assim, que se estude um texto

também pela sua dimensão oral.

Nessa perspectiva, esta dissertação tem por objeto o estudo da literatura oral

brasileira, a partir dos textos editados nos Contos Populares Brasileiros – Ceará

(2003), que guardam as marcas da voz que os originou, possibilitando, assim, uma

perspectiva de aprofundamento nas questões que permeiam a forma “conto popular”.

Os contos analisados serão: “João e Maria”, “Maria Borralheira” e “Dom Anin”1,

todos presentes na obra Contos Populares Brasileiros – Ceará (2003), vistos por seu

organizador como uma autêntica demonstração da produção popular. Resultante de um

convênio entre Brasil e Portugal, em 1987, o “Projeto Conto Popular e Tradição Oral no

Mundo de Língua Portuguesa” visa à cooperação para realizações de ações culturais e

científicas, sendo, no Brasil, administrado pela Fundação Joaquim Nabuco. Trata-se,

portanto, de uma oportunidade de viabilizar projetos de recolha de contos narrados em

determinadas regiões brasileiras, objetivando, assim, ampla documentação para o

estudo da nossa literatura oral, tentando preservar, na edição escrita, as características

individuais de cada contador, no momento mesmo da performance, quando a

corporeidade permite que a cena oral não se restrinja à voz, mas, muito mais que isso,

se insinue como corpo e gesto.

Um diferencial apresentado pelo referido corpus é manter o nível organizacional

da vocalidade expressa pelos narradores, quando das suas performances: o ritmo, a

sintaxe, os marcadores conversacionais e os prosaísmos. Na tentativa de não apagar a

situação de enunciação, procurou-se preservar, na transposição do oral para o escrito,

o discurso e a pessoalidade dos contadores, resultando, assim, numa escrita híbrida,

cujo traço mais comum é a presença de elementos associados à língua falada.

Dois problemas teóricos podem ser deduzidos do corpus escolhido: o primeiro,

relativo ao próprio texto que se apresenta como tal, mas traz a informalidade da fala,

remetendo ao questionamento quanto à qualidade artística do conto, posto que a

descontração coloquial é tida como empobrecedora da literatura; o segundo é quanto à

postura dos narradores, que desafiam o texto impresso com suas falas, instigando a 1 Para a elaboração deste trabalho, foi utilizado o volume de Contos Populares Brasileiros referente à coleta efetuada no Estado do Ceará (Recife: Massangana, 2003). Para as referências dos contos analisados, estabelece-se a sigla CPBC, acrescido da página do volume em questão.

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investigação sobre o que significa a literariedade, a fim de responder sobre as

condições sob as quais se considera um texto literário ou não. Tais questões apontam

para a necessidade metodológica de um exame crítico sob variadas perspectivas, - a

histórica inclusive - mas que, de imediato, sabe-se serem as referências teóricas de

Paul Zumthor, as mais apropriadas, posto que, para ele, a literatura é vinculada à

percepção sensorial de uma pessoa real e não a uma exclusividade do texto ou do

autor; “um texto só existe, verdadeiramente, na medida em que há leitores (pelo menos

potenciais) aos quais tende a deixar alguma iniciativa interpretativa” (ZUMTHOR, 2000,

p.27).

Busca-se, com este trabalho, acompanhar e analisar algumas narrações de

contos de tradição oral. Narrações feitas por contadores que, sem nenhum contorno

profissional do ofício, comparecem aos serões dos alpendres e às salas das casas ou

dos terreiros para contar e transmitir conhecimentos por meio de suas narrativas. Sem

remuneração, pois essa vem de outras atividades na lida com a subsistência,

(vaqueiros, lavradores, sapateiros, donas de casa... etc), esses contadores não

guardam nenhuma semelhança, à exceção do prazer de contar, com os contadores de

histórias contemporâneos, que buscam resgatar a ancestral função como um meio de

trabalho e aprimoramento pessoal e social.

Mais especificamente, por meio da palavra desses contadores, pretendeu-se

refletir sobre o conceito de literatura, suas transformações e as possibilidades de

ampliação desse conceito, visto a partir da perspectiva da poética da literatura oral,

que, como afirma Machado, “abriga um vasto campo de realizações e uma diversidade

considerável de procedimentos que não permanecem restritos às produções da poesia

oral”, mas cuja “nota dominante é a assimilação entre o oral e o escrito” (1995, p.219).

Vale observar que a seleção das narrativas estudadas baseou-se primeiro na

sobrevivência desses contos, em sua capacidade de permanência no tempo e

conservação de seus arquétipos2. Todavia, mesmo que essas formas sejam específicas

da tradição, deve-se considerar sua movência, posto que se atualizam por meio de um

2 Zumthor compreende arquétipo no sentido de "eixo vertical" que preexiste à performance. Esse eixo é referente aos elementos semelhantes que aproximam um texto de outro. Associados à performance, no entanto, esses elementos tendem à variação natural que caracteriza a reprodução como também mudança, já que uma ação performática nunca é igual a outra (2001, p. 145).

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discurso historicamente circunscrito ao instante da performance do contador, e são

dependentes, portanto, de sua competência discursiva. Dessa forma, faz-se necessário

distinguir os dois planos constitutivos da narrativa: a estrutura de base, doada pela

tradição e a história constituída e expressa pelas unidades semânticas do texto

presentificado, ou mais especificamente, a regra, e o espontâneo da manifestação

narrativa (ZUMTHOR, 1997a, p.125).

Visto que se trabalha o texto na qualidade de matéria vocal transcrita, a

consideração deste espaço performático pressupõe um grau poético que, embora não

se oponha à oralidade, transfere a percepção do objeto literário do ouvir para o olhar.

Um deslocamento que possibilita a segunda perspectiva de análise, aquela que objetiva

o estudo da expressividade figurativa do narrador.

Ante o domínio da letra, salta-se fora do tempo/ espaço pragmático e entra-se no

tempo / espaço imersivo, no qual o leitor virtualmente submerge para a experiência de

leitura. Uma experiência que significa entrar numa região de suspensão e duração do

tempo, onde o contar e mostrar3 são partes da estratégia que enreda o leitor nas

malhas discursivas do texto.

Nessa perspectiva, antes sujeito do seu discurso oral e performático, que

interferências sofre o texto do contador/ narrador das narrativas agora transcritas? Ou

ainda, quais são, na superfície desse texto, as marcas da arte da palavra que revelam

as estratégias e estruturas discursivas desse narrador?

Subvertendo as normas da sintaxe oral e escrita, mais que reverberação residual

de uma voz, estes contos se oferecem como a transcrição da palavra viva, tal como ela

foi vocalizada pelo seu contador, evidenciando uma relação dialética com a

sofisticação, segundo a qual a cultura escrita é percebida. Entendendo que o que se

conhece por literatura o é porque obedece a critérios que não se restringem apenas à

3 Segundo Booth, embora seja autoritário por oferecer somente a sua visão sobre o que narra, o contador de histórias tradicionais captura o leitor pela maneira como engendra o discurso narrativo. Um efeito que resulta da capacidade de controle do narrador sobre o que conta e o que mostra sobre suas personagens. Contar diz respeito à exposição objetiva dos fatos que constituem a matéria narrativa, sendo diferente de mostrar que é a forma como o narrador lida com as personagens, fazendo com que o leitor estabeleça com elas uma relação de simpatia ou não. Para Booth, "um dos processos mais obviamente artificiais do contador de histórias é o truque de passar além da superfície da ação, de modo a obter uma visão fidedigna do que vai na mente e coração do personagem" (1980, p. 21).

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matéria impressa, mais do que visualização da letra, o que faz, então, essa voz viva

representada em um texto impresso se transformar em literatura?

Delineia-se uma hipótese de base que permeia as três questões colocadas, sob

a perspectiva de que a resposta à última questão, de certa forma, autoriza o ponto de

vista projetado sobre o corpus e objeto propostos. Tal resposta parte da reflexão de que

na literatura as palavras criam vida virtual e verossímil, em cumplicidade com um leitor

que reage em contato com o texto. O poder da linguagem é uma estratégia combinada

entre o narrar e mostrar como forças discursivas diretas ou indiretas. O narrar tem que

se fazer figura. E, na tessitura do texto, oral ou escrito, respondendo por esta

engrenagem, o contador/ narrador tem a responsabilidade de tornar concreto o que diz,

embora transgrida os conceitos do bem falar e da gramática normativa. Assim, acredita-

se que o que torna esses contos de tradição oral literatura é a voz narrativa dos

contadores que materializa a cena narrada conferindo-lhe carnalidade. Oferecida aos

leitores como obra impressa, é por meio da palavra, antes vocalizada, que esses

contadores constroem a força poética de suas narrativas. É isso que faz a voz viva,

mesmo transcrita e representada com informalidade e prosaísmos, transformar-se em

literatura, no sentido mais profundo de representação verdadeira da realidade possível.

Os capítulos deste trabalho estruturam-se na base de um acordo composicional

que prossegue da teoria à análise. Assim, o capítulo I – Narrativas poéticas orais e

literatura – visa apontar as características do conto de tradição oral, tendo em vista a

inserção do corpus num plano mais geral da categoria: primeiramente, reflexão sobre

os conceitos de literatura e de poesia, com a perspectiva de, mais adiante, concatená-

los com as narrativas poéticas. Dessa forma, observam-se os pressupostos para a

literariedade, que, aparentemente, apontam a relação de parentesco com a escrita,

embora suas fronteiras e seus limites, nem sempre tão claros, se mostrem sujeitos à

discussão, já que a literatura, geralmente, se alimenta da insurreição contra o pré-

estabelecido.

Com o subitem 1.1 – Em busca da voz – pretende-se fazer uma breve

amostragem do percurso pioneiro das recolhas dos contos ouvidos dos contadores

orais, e das publicações de coletâneas no Brasil. O subitem 1.2 –– Contos Populares

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Brasileiros – Ceará e o conto de tradição oral - traz a apresentação da obra

estudada e a motivação das escolhas dos contos analisados: “João e Maria”, “Maria

Borralheira” e “Dom Anin”. Aborda-se as especificidades do conto de tradição oral e

alguns caracteres dos contadores dos contos estudados. Em 1.2.1 – Forma e estrutura

da narrativa oral – os estudiosos Wladimir Propp e André Jolles são duas referências

teóricas para refletir sobre o modo como os contos têm sido estudados: se para Jolles

o conto se realiza como forma na linguagem, Propp observa que a construção do conto

se constitui por trinta e uma funções e sete esferas de ações, que, integradas, são

responsáveis pelas relações causais e estéticas do gênero. No subitem 1.3 - Quem

conta um conto aumenta um ponto, mas pode diminuí-lo também... – aborda-se a

natureza discursiva do conto de tradição oral e sua potencialidade de se refazer a cada

reconto. No subitem 1.4 – Da forma oral à forma escrita: duas maneiras de ler o

texto poético – observa-se que manifestação oral e escrita são duas maneiras

diferentes, tanto de existência textual, quanto da relação texto e recepção. E, dessa

forma, objetiva-se a compreensão dessas duas modalidades da língua, sob a

perspectiva de suas diferenças e das relações mantidas entre elas, no sentido de

aplicar as noções tipológicas dessa relação no corpus em estudo. Em 1.5 - Do ouvir

para o olhar, às vezes uma questão de poder - faz-se um breve percurso sobre os

modos de transcrições das narrativas e busca-se refletir sobre a entrada em escritura

dos contos de tradição oral, observando-se que a transformação midiática do texto traz

consigo uma concepção de leitura que, se por um lado, é reservada ao grande público

leitor, por outro, é excludente àqueles que não dominam as letras.

No capítulo II – A obra vocal – investe-se sobre a possibilidade de definição da

literatura oral, sem perder de vista, no entanto, que a base teórica deste estudo, Paul

Zumthor, considera a dificuldade de uma definição “a partir da noção de literatura”

(1997a, 25). Por isso, ele propõe “obra vocal” como sendo aquela que designa o

produto das realizações das poéticas da voz, e que pode ser estudada como uma

alocução específica, reconhecida social e coletivamente. Sem considerar juízo

valorativo, a obra da voz é um discurso que, por não ser usual e cotidiano, diferencia-se

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e é reconhecido socialmente como singular, passível, então, de ser percebido como

uma manifestação poética, e, conseqüentemente, literária (1997a, 40).

No subitem 2.1 – Da transmissão à percepção: a performance – discorrer-se-

á sobre as características próprias da transmissão oral que se constitui pela

performance. Uma característica que se funda sobre aspectos culturais, que acabam

determinando-lhe a forma fluída.

Com o subitem 2.1.1 – O saber-ser e a performance oral – procura-se refletir

sobre a relação que se estabelece entre o contador de contos orais e o seu público

ouvinte. Uma relação de cumplicidade, que busca, na participação do outro, o

reconhecimento de sua identidade. Em 2.1.2 – A leitura e o saber-ser do leitor em

performance – transporta-se a noção de performance para a relação que o leitor

estabelece com o texto, de modo a se discutir sobre a natureza desta relação. À luz de

Zumthor, trata-se da função corporal inerente a toda palavra poética, de refletir no corpo

do leitor, o que sugere a letra.

O subitem 2.2. - A inscrição da voz na letra – oferece o segundo modo de

estudo da literatura oral, a representação da voz narrativa, numa outra forma de

registro: o livro. Diante da subtração da voz do contador, principal elemento da literatura

oral, e o apoio teórico de Paul Zumthor que afirma: “entre a voz e a escrita a diferença é

de grau”, pretende-se recuperar as marcas vocais do texto transcrito. Essa transposição

midiática, à maneira de uma transcriação partilhada, divide a responsabilidade do

contador/ narrador com o coletor/ transcritor, já que este, após a escuta, inscreve sobre

o outro a sua escrita e a sua assinatura.

Com o subitem 2.3. – Escrituras poéticas e as vozes do texto – à luz das

reflexões de Irene Machado (1995) sobre a obra de Bakhtin e Zumthor, procura-se

relacionar dois conceitos desses autores: a intertextualidade e a intervocalidade.

Embora em campos diferentes - já que Bakhtin identifica a representação da voz no

romance, e Zumthor tem, como campo de provas, as vozes que presentificam a

tradição -, procura-se refletir sobre os conceitos no corpus em estudo. A partir do

subitem 2.4. – O discurso poético e os contos orais – adota-se uma perspectiva

discursiva para a análise dos contos de tradição oral. Um ponto de vista que permite a

observação da vocalização dos contos orais como um ato de fala, e que por isso leva

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em consideração a cena enunciativa, ou seja, analisa a estreita relação existente entre

o sujeito que fala e o lugar de onde ele fala.

No capítulo III – Contos do Ceará em análise, com o subitem 3.1. – Contos

populares brasileiros – Ceará e a arte das palavras – empreende-se a análise do

corpus, tendo em vista inicialmente a fundamentação teórica do percurso já traçado.

Todavia, a título de complementação do que já se apreendeu a respeito dos contos de

tradição oral, é necessário entender por quais elementos estilísticos eles são

discursivamente reconhecidos. Ficção que se oferece como comunicação e arte, haverá

na estrutura retórica desses contos estratégias que levam o leitor a se deixar atravessar

por eles, à mercê da experiência de leitura e do encantamento. Um efeito que decorre

da possibilidade de percepção da performance recebida como um ato poético.

Com o subitem 3.2 – A transcodificação da linguagem – observam-se as

transformações determinadas pela passagem dos contos, do contexto oral para o

código da escrita. A recolha, transcrição e posterior editoração dos contos resultaram

em narrativas híbridas, que, simultaneamente, apresentam aspectos da fala e da

escrita. Em 3.3 – “João e Maria” - pretende-se analisar o modo como as narrativas

foram retextualizadas. Considerando o processo que viabilizou o transporte da voz para

o livro, a meta aqui, é observar quais são as marcas presentes no texto, que

diferenciam a escrita da situação de oralidade original. Em “João e Maria”, estudam-se

os artifícios e habilidades retóricas pelas quais o narrador envolve o leitor. Da

construção das personagens à modalização das ações e ao léxico utilizado, foca-se o

modo como o narrador introduz os elementos lingüísticos, tendo em vista as estratégias

para a narração do conto. E, por fim, pretende-se analisar como essa narrativa se

inscreve no duplo movimento que caracteriza a arte da memória, já que lembrar e

esquecer se constituem nos dois aspectos que marcam toda obra da tradição.

Em 3.4 – "Gata Borralheira" e "Maria Borralheira" – objetiva-se uma breve

reflexão sobre o conto tradicional “Cinderela” e suas incidências nas mais diversas

culturas. A constatação de que sua estrutura serve a múltiplas versões, não somente

orais, é o que lhe determina a movência e o inacabamento, em vista de sempre ser

recontado ou reinventado por meio de outros suportes. Em seguida, a análise de “Maria

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Borralheira” tratará da natureza mutante do conto de tradição oral, tendo em vista que,

como toda realização humana, o discurso no qual se estrutura o conto é sujeito às

influências espácio-temporais do meio onde ocorre a manifestação performática. A

movência do texto resulta do encontro do arquétipo trazido pela tradição com a voz que

a atualiza, deixando à mostra uma narração que nunca é definitiva e que, a cada

reiteração, pode se modificar.

Com 3.5 – “Dom Anin”: a conversa entre textos e o leitor entre a letra e a

voz, a análise recai sobre a intertextualidade/ intervocalidade que se estabelece entre

três diferentes textos que tratam do mesmo tema. Dado que se objetiva compreender o

fenômeno da letra e da voz como princípios inter-relacionados, procura-se também

investigar como a oralidade inscrita no texto assegura a percepção e performance do

leitor em ato de leitura.

Mais do que temas e motivos a comparar, a este estudo interessa a adoção de

uma perspectiva performática, o que não significa desconsiderar as marcas deixadas

pelo tempo no registro dessas vozes emergenciais, mas, ao contrário, permite a

apreensão dessas marcas, simultaneamente à percepção das modificações

engendradas pela voz do discurso narrativo. Uma dupla percepção que capta a ligação

entre o passado e o presente, na individualidade da voz vinculada à memória e

articulada ao passado.

Embora a escolha dos contos a serem analisados não tenha sido um processo

aleatório, há que se considerar algum elemento de identificação inerente a essas

escolhas. De todo modo, elas foram feitas tendo em vista a possibilidade de análises

dos itens propostos, como a movência dos textos, a vocalidade neles impressa e a

performance enquanto texto escrito, fruto da oralidade. A opção de se estudar um

aspecto de cada conto em separado visa ampliar as perspectivas sobre o corpus e

estabelecer uma dinâmica de análise que não torne repetitiva a leitura, a ponto de se ler

o mesmo tipo de observação para cada uma das narrativas.

Para a articulação entre o processo evolutivo do conceito, a perspectiva teórica

escolhida e sua pertinência quanto ao objeto, considera-se a inclusão de outros

procedimentos da crítica, – antropológico, folclórico, lingüístico – objetivando satisfazer

19

aos questionamentos propostos; um procedimento que, neste trabalho, leva em

consideração não somente os métodos de abordagem hipotético-dedutivo e indutivo,

como também os processos naturais de casualidade que, por analogia, conduzem à

construção do conhecimento pretendido.

20

I – Narrativas poéticas orais e a literatura

“O que, há séculos, denominamos ‘literatura’ é uma das manifestações culturais da existência do

homem”. (Paul Zumthor)

A inclusão de práticas poéticas orais de pessoas não letradas nos estudos

literários geralmente causa algum desconforto devido ao sentido periférico a que são

relegados os trabalhos com oralidade de pessoas que não dominam o código da

escrita. Considerados folclóricos ou culturais, são mais freqüentemente estudados pela

etnologia e sociologia, ou, mais recentemente, pela lingüística como um acontecimento

de comunicação. Isso se deve também ao fato de que não são muitos os estudos

literários que trabalham a poeticidade em situação de oralidade e que, por isso, possam

fornecer subsídios teóricos aplicáveis, do ponto de vista de sua especificidade.

Em comparação, é grande a quantidade de estudos que priorizam a forma

escrita da linguagem, um reforço que talvez se justifique pelo fato de que a palavra

literatura deriva do latim: littera, cujo significado, letra, designa, por sua vez, uma

tentativa de representação escrita da fala. Tendo associado à sua origem a concepção

de signos gráficos, por muito tempo a ascendência da escrita afastou dos estudos

literários qualquer manifestação verbal que não estivesse sob a forma de letra.

Privilégio de poucos, o conhecimento da escrita foi também associado à aquisição de

altos saberes e condição fundamental para ascensão na escala social, deixando para

os não letrados a designação de atrasados e inferiores, sem direitos, portanto, à

literatura, entendida na acepção de sofisticação e erudição.

Inicialmente identificada com a ficção narrativa ou dramática, desenvolveu-se

familiarizada com a leitura dos clássicos da cultura greco-romana, e foram eles, os

gregos, que, por muito tempo, ditaram os rígidos conceitos da forma e conteúdo da

literatura. É em meio ao século XVIII que a noção de literatura associa-se à definição de

poesia, avizinha-se do significado de belo e passa a possuir um fim em si mesma,

aproximando-se do sentido contemporâneo que contempla a forma da expressão,

segundo a qual a singularidade da linguagem literária está em afastar-se do uso que se

21

faz da fala comum, cotidiana. Termo criado pelos formalistas russos na década de

1920, e difundido por Jakobson em 1960, a “literaturidade”, ou literariedade de um

texto, estaria na preponderância da função poética sobre a função referencial, ou seja,

em maior utilização do sentido figurativo da mensagem em detrimento das outras

funções da linguagem. “Trata-se de um tipo de linguagem que chama a atenção sobre

si mesma e exibe sua existência material”, diferenciando-se, assim, da comunicação do

dia-a-dia (EAGLETON, 2006, p. 3). Para Jakobson, “a supremacia da função poética

sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”, múltipla

(2001, p. 150).

De acordo com Compagnon:

A literariedade não resulta da utilização de elementos lingüísticos próprios, mas de uma organização diferente dos mesmos materiais lingüísticos cotidianos. Em outras palavras, não é a metáfora em si que faria a literariedade de um texto, mas uma rede metafórica mais cerrada, a qual relegaria a segundo plano as outras funções lingüísticas. As formas literárias não são diferentes das formas lingüísticas, mas sua organização as torna mais visíveis. Enfim, a literariedade não é questão de presença ou de ausência, de tudo ou de nada, mas de mais e de menos: é a dosagem que produz o interesse do leitor (2006, p.40).

A inexistência de verdade absoluta na definição formal da literatura se deve ao

fato de que ela, como a literariedade, “não oferecerá mais que o conjunto das

circunstâncias em que os usuários de uma língua aceitam empregar esse termo”

(COMPAGNON, 2006, p.45). Frente à concepção clássica de que todo material

impresso ou manuscrito é literatura, ou defini-la pela função, conteúdo ou expressão, “a

literariedade, como toda definição de literatura, compromete-se, na realidade, com uma

preferência extraliterária” (COMPAGNON, 2006, p. 44), seja ela exercida por

professores, editores ou autoridades constituídas, acredita o autor.

É claro que, de um conceito a outro, não existe a idéia de ruptura, levando a crer

que antes se convivia com um conceito de literatura que hoje não vale mais.

Entendendo que cada possibilidade de definição da literatura serve-se, sim, de critérios

condicionados à sua situação de origem, observa-se também que na modernidade se

convive com noções de literatura que ora contemplam um ou outro conceito, quando

não, alguns. Não se pode esquecer que, sem prazo de validade, os mitos gregos

continuam estimulando e se oferecendo como objetos de reflexão, ao mesmo tempo em

22

que manifestações de cultura de massa, como, por exemplo, as canções, são o meio

utilizado para discussão e até abrandamento das fronteiras entre erudito e popular.

Vale lembrar que a condução das manifestações orais no âmbito das questões

literárias foi impulsionada pelos estudos sobre a oralidade em Homero. Contra todas as

expectativas da crítica erudita, Milman Parry, partindo de observações de outros

estudiosos e de suas próprias convicções, aponta que a singularidade poética presente

na Ilíada e na Odisséia, de Homero, teve sua origem na oralidade dos aedos e

rapsodos, e foram manuscritos dois ou três séculos depois dos poemas criados. Além

do que, havia na estrutura dos poemas de Homero algo semelhante ao que se encontra

nas narrativas orais em todo mundo: o engendramento da história é costurado pela

inserção de frases formulares pré-existentes, repetidas de acordo com a necessidade

métrica e expressão de idéias vitais à narrativa. Depois de observar e ouvir os

cantadores de histórias épicas da ex-Iugoslávia, cujo sistema de criação poética se

assemelhava às produções de Homero, Milman Parry (1902–1935) e seu companheiro

de pesquisa, Albert Lord, chegaram à conclusão de que,

virtualmente, todo traço distintivo da poesia homérica deve-se à economia imposta pelos métodos orais de composição. Estes podem ser reconstruídos por um estudo detalhado do próprio verso quando nos desvencilhamos dos pressupostos sobre os processos de expressão e de pensamento arraigados na psique por gerações de cultura escrita (ONG, 1998, p.30).

É uma descoberta surpreendente que trouxe ao debate idéias anteriores de

outros pesquisadores, como o filósofo Giambattista Vico (1668 – 1744), que afirmava

não acreditar na existência de Homero e de que seus poemas foram possivelmente

originados numa criação poética coletiva, ou o historiador Robert Wood (1717 – 1771),

que acreditava num Homero não letrado, embora tivesse na memória sua base de

expressão poética (ONG, 1998, p.28).

Isso aponta para o fato, hoje incontestável, de que, no alvorecer e durante muito

tempo da civilização humana, a literatura tinha destinação oral e não escrita.

Originariamente, a apreensão do literário dava-se pela percepção auditiva e não pelo

sentido visual, pela leitura silenciosa, como hoje é hábito nas sociedades quirográficas,

23

isto é, aquelas que desenvolveram a escrita, e que, posteriormente, adotaram a

impressão.

O deslocamento do oral para o escrito, das recolhas às transcrições das

manifestações poéticas orais, aproximou a oralidade da literatura, sem, contudo, lhe

conceder o mesmo prestígio da escrita. Segundo Paul Zumthor: “Em razão de um

antigo preconceito em nossos espíritos e que performa nossos gostos, todo produto das

artes da linguagem se identifica com uma escrita, donde a dificuldade que encontramos

em reconhecer a validade do que não o é”. No entanto, dentre as espécies, somente a

humana escuta “emergir sua própria voz como um objeto: É em torno dele que se fecha

e solidifica o laço social, enquanto toma forma uma poesia” (ZUMTHOR,1997a, p.12).

Neste ponto vale lembrar que poíesis: - “A arte que se utiliza apenas de palavras” - era

como Aristóteles se referia à narração, à declamação e ao canto compostos em versos

e entendidos como produções da voz (1997a, p. 19).

Com o passar do tempo, o termo poesia se limitará aos versos, mas guardará

consigo a carga semântica de uma arte para a qual nem os gregos tinham determinado

um “nome”, talvez pela dificuldade em abrigar, sob um mesmo conceito, manifestações

tão díspares como “os diálogos socráticos, os textos em prosa e em verso”

(COMPAGNON, 2006, p. 29). A partir do início do século XIX, literatura designará “o

conhecimento das letras”, mas seu significado, como afirma Compagnon, continuará

uma “aporia”, pela impossibilidade de o termo englobar tudo que se produz com a

palavra. Essa dificuldade talvez resulte do contraste entre dois pontos de vista sob os

quais os estudos literários estão sempre pressionados: um aspecto objetiva o texto

historicamente, como um documento, e o outro objetiva “o texto como fato da língua, a

literatura como arte da linguagem” (COMPAGNON, 2006, p.30). Pode ser que em vista

dessa irredutibilidade, alguns autores, como, por exemplo, Jakobson, tenham preferido

preservar o sentido mais extensivo do termo poesia, quando definiu a literariedade pela

predominância da função poética da linguagem.

De todo modo, lembra Irene Machado que, para os formalistas russos, “a

linguagem poética seria construção a partir de procedimentos singularmente criados

para manifestar, até mesmo na forma, um determinado conteúdo” (2007, p. 143). Não

24

sendo apenas comunicação, a linguagem poética chama atenção sobre si mesma e

causa estranhamento pela maneira como é percebida.

Paul Zumthor parece contemplar o encontro desses pontos de vista, já que

entende a linguagem poética num “sentido mais geral, incluindo nossa literatura”

(ZUMTHOR, 2000. p. 66), como também compreende o discurso poético como

específico, além de social e historicamente demarcado:

O termo é indiferente: eu defendo a idéia de que existe um discurso marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto o critério de qualidade, devido a sua grande imprecisão. É poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou, de uma forma geral, o texto literário), é sentido como a manifestação particular, em um dado tempo e em um dado lugar, de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (ZUMTHOR, 1997a, 40).

Pelo exposto, entende-se que tanto Compagnon (é a dosagem que produz o

interesse do leitor), quanto Zumthor (é poesia, é literatura, o que o público – leitores, ou

ouvintes – recebe como tal), relativizam a idéia de instância autoral como autoridade

máxima sobre o texto, ao mesmo tempo em que ressaltam a relevância da recepção na

identificação da linguagem poética. De acordo com os pontos de vista de Jakobson,

Compagnon e Zumthor, pode-se definir a literatura como um modo especialmente

diferente de tratar a linguagem, cuja dimensão poética há de ser percebida pelo ouvinte

ou leitor, pela comparação e diferenciação dos discursos pragmáticos do dia-a-dia.

Assim, a inclusão de manifestações poéticas orais no âmbito das questões

literárias, se por um lado traz à cena a voz como objeto de observação e estudo, por

outro, aproxima a crítica da poesia oral e afasta-a da idéia de não pertencimento aos

estudos literários. Eis que, nas palavras do próprio Zumthor:

A noção de literatura é historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização européia, entre os séculos XVII e XIII e hoje. Eu a distingo claramente da idéia de poesia, que é para mim a de uma arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas (2000. p.15).

25

Nessa linha reflexiva, Frederico Fernandes, em sua obra A voz e o Sentido

(2007), trabalha com narrativas orais de contadores pantaneiros e afirma que a

literatura, “em sua vertente reflexiva, plurissignificativa, humanizadora e, por

conseguinte, poética”, (2007, p. 19), transita na voz de indivíduos pertencentes às

comunidades desconsideradas pelos estudos literários. Apesar de estimularem diversas

criações autorais, por não dominarem a tecnologia da escrita, as manifestações

poéticas dessas pessoas não são tão freqüentemente tomadas como objetos de

estudos acadêmicos, até o autor se enfronhar na cultura oral ribeirinha do Pantanal e

dela evidenciar a expressão poética de suas vozes em performance.

Com base nessas observações, pode-se inferir a proximidade entre língua e

literatura; esta, entendida num sentido mais amplo, cuja função primária é subtrair o

receptor, ou mais largamente, os envolvidos em ato performático de contar e ouvir, do

pragmatismo dos discursos utilitários diários. Dessa forma, há que se considerar algo

anterior e não estritamente circunscrito ao texto, que é a função exercida pelo discurso

poético no seu contexto de origem.

No caso dos contos orais, qual é o sentido de contar? “Contar é viver”, disse um

velho esquimó, em 1930 (ZUMTHOR, 1997, p. 54), para ilustrar uma atividade, cuja arte

faz uso da palavra, ao mesmo tempo em que instaura um corpo real em presença

performática. O lugar ocupado por esse corpo e a narrativa por ele veiculada

preenchem um espaço físico e social, que é de natureza identitária no que concerne a

esse corpo individual, relacionado com a comunidade à qual ele pertence. Outorgado

pela tradição, a função de quem conta é transmitir conhecimentos, embora o prazer

seja pré-requisito para a fruição da performance. Segundo Zumthor:

O conto, para aquele que narra (como a canção para aquele que a canta), constitui a realização simbólica de um desejo; a identidade virtual que, na experiência da palavra, se estabelece um instante entre o narrador, o herói e o ouvinte, cria, segundo a lógica do sonho, uma fantasmagoria libertadora. Vem daí o prazer de contar, prazer da dominação – associado ao sentimento de pegar aquele que escuta na sua armadilha –, captado de maneira narcisista no espaço de uma palavra aparentemente objetivada (1997a, p.55).

Suspensão virtual do tempo e fascinação entre aquele que narra e o outro que

escuta, a linguagem “satisfaz seu desejo de forma” (1997a, p.133), ao mesmo tempo

26

em que a liberdade e espontaneidade da palavra presentificada, ao contrário do que

afirma Jolles, escapa à rigidez das normas, “das palavras próprias da forma” (1976,

p.195). Num jogo tensionado entre obediência e transgressão, “a forma vai minar a

palavra, estilizar o impulso sem quebrá-lo, donde os saltos, os falsos começos, as

repetições, os ilogismos” (ZUMTHOR, 1997a, p.133) da narrativa na voz do contador.

Todavia, a partir da perspectiva da linguagem, seja na forma oral ou escrita, por

definição, um texto é sempre um texto, embora guarde, cada um, sua especificidade

quanto ao suporte. Constituída por acumulação, multiplicidade e uma diversidade

reveladora da carência de unidade, a linguagem nos contos orais em presença

diferencia-se da escrita, primeiramente, pela vitória que esta última exerce sobre o

tempo, além do que, a escrita transmuda as palavras para um espaço silencioso e de

domínio visual, conquanto se considere que a leitura siga os vestígios da voz que a

letra sugere.

1.1. - Em busca da voz

Pioneiro nos registros impressos de narrativas orais em solo brasileiro, em 1888,

o crítico Silvio Romero inclui na segunda edição de História da Literatura Brasileira

um capítulo dedicado à literatura oral brasileira. Em 1943, numa terceira edição dessa

obra, é introduzido um texto de 1909 - o “Quadro Sintético da Evolução dos Gêneros na

Literatura Brasileira” -, que trata da evolução do romance e do conto, tendo como

referência os contos populares e o cordel. Também autor de Introdução à história da

literatura brasileira, de 1882, Silvio Romero publica em 1885, em Lisboa, os Contos

populares do Brazil.

Anteriormente a Silvio Romero, em 1876, o general Couto de Magalhães traz a

público O selvagem, obra na qual se prontifica a fazer um estudo sobre o ensino da

língua para o indígena brasileiro. Publicado em nheengatu e em português, o livro traz

inclusas 25 narrativas de lendas tupis, com as quais Magalhães pensava promover a

comunicação entre brancos e índios, levando os últimos ao aprendizado do português e

da religião cristã (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 12).

27

Segundo Almeida e Queiroz, depois de ouvidas de seus contadores, essas foram

as primeiras recolhas de narrativas orais publicadas no Brasil. Um procedimento que

norteou outros estudiosos da cultura popular brasileira, como, por exemplo, Câmara

Cascudo e Aluísio de Almeida, que se destacaram na recolha, organização e

publicação de coletâneas de contos orais. Uma ação que, se por vezes foi motivada por

impulsos individuais de folcloristas e pesquisadores coletores, por outras teve o amparo

da universidade brasileira em sua fase inicial de fomento à pesquisa antropológica.

Há, então, um primeiro momento que se define pela coleta e análise do material

recolhido, e outro marcado pela metodologia científica, ambos, porém, caracterizados

pela perspectiva etnocêntrica, cujo aporte mais freqüente é relacionar a literatura oral

ao folclore. Trata-se de um recorte de caráter diacrônico que desconsidera a carga

poética do texto oral, posto que o envolvimento com a recolha do conto no presente,

visa, principalmente, compará-lo com sua repetição e escrita no passado

(FERNANDES, 2007, p. 40).

A utilização de aparelhos de registros orais, já adotados nessa fase anterior,

evolui para a gravação de vídeo-filme, facilitando a apreensão da situação de

enunciação, determinante para o estudo do cenário performático e comunicativo

desenvolvido a partir de 1970.

Assim, a comprovação da performance permite que se apreenda não somente a

identificação do contador, seu lugar de origem, faixa etária, grau escolar e profissão,

como também possibilita que se estude sua fluência e estratégias narrativas. Dessa

forma, tanto a tradição e memória entram em evidência como a criação individual do

contador como sujeito do discurso.

As edições brasileiras de contos de tradição oral são o resultado de quatro tipos

de coletâneas: a coleta, em que a autoria pertence ao pesquisador e cujo procedimento

formal é guiado pela transcrição, com a função de informar; a compilação, cujo autor

organiza e reedita narrativas antes publicadas, sejam elas transcritas ou adaptadas,

com as funções de formação e deleite; a recriação, que são narrativas sugeridas pelo

repertório tradicional oral, com a função de entretenimento e fruição, fruto da criação de

um autor; e a tradução, que é elaborada com base em publicações de outras línguas,

28

em que geralmente o tradutor é considerado autor (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004,

p.130).

Os contos em estudo neste trabalho fazem parte de uma coletânea compilada

com o intuito de viabilizar a pesquisa, o estudo, a divulgação e, nas palavras do

coordenador Lima:

a valorização do conto como documento importante da produção simbólica popular. Especificamente: 1. Valorizar e estimular o papel dos contadores de estórias; 2. Reunir documentação fidedigna da produção/ reprodução das narrativas populares para estudos sobre suas transformações nos diversos contextos culturais do país; 3. Fornecer documentação que sirva de suporte e estímulo para estudos universitários, aproveitamento didático nas escolas de diversos níveis e desperte o interesse para a pesquisa da literatura popular de transmissão oral (CPBC, p.14).

Nessa perspectiva, a proposta deste trabalho tem como objetivo analisar a

compilação de narrativas orais transcritas e apresentadas no livro Contos Populares

Brasileiros - Ceará (2003).

1.2 - Contos Populares Brasileiros – Ceará e o conto de tradição oral

O livro Contos Populares Brasileiros – Ceará (2003) editado pela

Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, faz parte da coleção Contos

Populares Brasileiros e corresponde a uma parte do projeto “Conto Popular e

Tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa”, que visa à coleta e registro escrito de

narrativas orais, nos países de língua portuguesa.

Coordenado conjuntamente por Portugal e Brasil, neste país o projeto ficou sob a

direção do folclorista e pesquisador Bráulio do Nascimento, que determinou a

subdivisão por estados e a organização das narrativas de acordo com a classificação

internacional de Aarne & Thompson.

Segundo Lima, coordenador do volume referente ao Estado do Ceará, o projeto

tem como meta dar relevância à figura do contador, coletar documentos sobre a

produção e reprodução de narrativas orais para o estudo sobre suas transformações

29

contextuais, além de disponibilizar esses testemunhos para que sejam suportes de

trabalhos acadêmicos.

Sem preocupações fonéticas, as transcrições foram feitas a partir da gravação

das performances dos contadores e se oferecem como um ponto referencial para a

literalidade da fala e “da pontuação do narrador” (CPBC, 2003 p.26), trazendo, ao final

de cada conto transcrito, a identificação do mesmo, a data e o lugar da recolha, assim

como o nome do coletor e a catalogação da narrativa, segundo os pressupostos de

Aarne-Thompson4.

Mais do que preocupação temática, no entanto, a escolha dos contos para a

análise deste trabalho pautou-se primeiro pela sobrevivência de contos já conhecidos e,

segundo, pela possibilidade de estudar as características discursivas de três diferentes

contadores inseridos num contexto de oralidade poética. E, um terceiro motivo, é o de

utilizar a transposição grafemática das narrativas transcritas para a recuperação da

vocalidade dessa escrita poética.

Assim, o conto “João e Maria” é uma narrativa a partir da qual se observa a

organização proposicional e sintática do narrador: não só a utilização de orações

paralelas, de expressões cumulativas e não subordinadas, bem como de adjetivos que

acompanham e caracterizam a narrativa oral, de maneira que a diferencia da escrita.

Narrado em 13 de setembro de 1998, por Irene Jucá Bezerra, em Saboeiro, é visível,

em “João e Maria”, a economia do léxico dos contos de tradição oral, atingindo não

somente sua estrutura, como deixando à mostra um discurso regido por leis próprias.

“Maria Borralheira” representa uma possibilidade de análise de uma variante do

conto “Cinderela”, também conhecido como “Gata Borralheira”. Narrado em 29 de

Dezembro de 1981, por Alina de Melo Freitas, em Juazeiro do Norte, essa narrativa traz

variações de elementos que permitem refletir sobre seu sentido no contexto

comunicativo no qual se realiza o reconto. Com o objetivo de destacar as

transformações do texto tradicional até sua atualização na voz do narrador, serão

observadas as marcas dialetais que denunciam o conhecimento compartilhado entre os

4 Publicado em 1910 pelo finlandês Antii Aarne e ampliado por Stith Thompson, numa segunda e terceira edição, o catálogo Aarne-Thompson identifica os contos de acordo com a unidade temática de cada um, ou seja, segundo o enredo e personagens.

30

envolvidos na performance, apontando para um texto que se move em função do

contexto no qual ele se atualiza.

O terceiro conto, "Dom Anin", narrado em fevereiro de 1980, por José Herculano

da Rocha, no Crato, por se tratar de uma investigação a partir de uma obra transcrita e

depois editada, à luz dos conceitos criados por Merleau-Ponty (corpo reflexionante) e

Paul Zumthor (performance), demonstra em sua análise que, em prosa ou verso, o

tema da donzela guerreira comporta variadas manifestações textuais, nas quais é

possível perceber marcas de intervocalidade. Ao invés de uma ruptura entre os modos

de percepção do texto, as marcas da voz no escrito convergem para um apelo à

sensorialidade do leitor, sugerindo ao olho o que se percebe pelo ouvido. A tensão

entre o ver e o ouvir são fendas na escritura que implicam a relação texto/ leitor,

possibilitando que esse construa a figuração do fazer poético.

Quanto à denominação "contos de fadas ou contos maravilhosos", esses são

termos que restringem um pouco o que poderia ser compreendido, de uma forma mais

abrangente, como conto oral ou conto de tradição oral. O primeiro termo “é uma

designação francesa para contos maravilhosos. Um termo impróprio porque demasiado

restrito, já que raramente se trata de fadas” (SIMONSEN, 1987, p.7). Integrando outras

narrativas em cuja estrutura se observam elementos mágicos e encantatórios, além de

metamorfoses e animais com atributos humanos, o segundo termo – contos

maravilhosos - incorpora os contos populares ou contos de tradição oral, estes tendo

como referência o aspecto social e o contexto de oralidade em que se realizam.

Produzidos ao longo do desenvolvimento da civilização humana, tais contos

guardam residuais míticos que foram suavizados pela própria característica da forma.

Antigos e sem autoria identificável, eles persistem no tempo, sendo reiterados e até

modificados a cada reconto, mas conservando em sua base um substrato textual

específico, um conjunto de idéias que evocam conhecimentos, geralmente utilizados

como norteadores de comportamento. A esse respeito, ainda que não faça distinção

entre o conto oral ou escrito, observe-se o que diz Walter Benjamin:

O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O personagem do ‘tolo’ nos mostra como a

31

humanidade se fez de ‘tola’ para proteger-se do mito; o personagem do irmão caçula mostra-nos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da pré-história mítica; o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; o personagem ‘inteligente’ mostra que as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge; o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere associar-se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância (1985, p.215).

Pelo exposto, vale pensar que, não por acaso, esses contos são freqüentemente

utilizados como recursos educacionais. Por um lado, suas histórias de lutas contra as

dificuldades básicas da existência humana são, simbolicamente, sugestões aos

ouvintes, ou, mais especificamente, às crianças, de que o mal deve ser combatido, pois,

assim, ele será vencido no final.

Por outro lado, a história que se conta em uma sala de aula, ou em algum

ambiente próprio de um centro urbano, pode ter o mesmo arquétipo daquela que se

escuta nos serões de uma sala ou alpendre de uma casa da zona rural, como é o caso

dos contos da obra em análise neste trabalho.

As narrativas que compõem o conjunto de contos do Ceará foram recolhidas

entre as regiões dos Inhamuns, do Cariri cearense e outros centros mais urbanos, como

Fortaleza, capital do Estado, visando a uma maior abrangência de municípios e mais

representatividade, conforme o pressuposto do projeto.

Em número de 41, à época da coleta, entre 1980 e 2000, a maioria dos

contadores tinha em torno de 50 a 80 anos de idade, e seus ofícios, os mais variados:

pescador, oleiro, comerciante, professor, mascate, caminhoneiro, taxista, funcionário

público e tocador de realejo, para os homens; prendas domésticas e cantora de

benditos, para as mulheres: uma prova de que no Nordeste brasileiro, o ato de contar

histórias, longe de configurar uma atividade remunerada, é um exercício que se faz pelo

gosto da troca entre contador e ouvintes, ou mais precisamente:

É pretexto nas reuniões familiares, em noites de sexta-feira da paixão, enquanto se espera a hora do galo. Estaria presente ao ritmo das debulhas. É ponto e contraponto nas conversas em noites, com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça, animar o trabalho nas leiras e nos eitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. Insinua-se nos lugares do acalanto, e é palavra tecida e rendada no

32

colo de avós, rendidas ao pedido, ao convite e à cumplicidade dos netos (LIMA, 2003, p.29).

Recolhidos por Francisco Assis de Souza Lima, para o Projeto “Conto Popular e

tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa”, os contos “João e Maria”, “Maria

Borralheira” e “Dom Anin” foram narrados, respectivamente, por Irene Jucá Bezerra,

Alina de Melo Freitas e José Herculano da Rocha. Residentes em Saboeiro, Juazeiro

do Norte e Crato, no Estado do Ceará, à época da recolha (1988, 1981 e 1980), esses

contadores se ocupavam de afazeres domésticos ou ligados à agricultura, sendo que,

somente Alina Freitas, cega, cantora e tocadora de benditos, tinha alguma familiaridade

com cordéis.

É pela capacidade de memorização dos contadores que as narrativas são

retidas, até o ponto de serem recuperadas e atualizadas. Isso evidencia a razão pela

qual a linguagem do conto de tradição oral em prosa é simples e voltada para as

práticas sociais mais objetivas da vida cotidiana.

Segundo José Carlos Leal, o conto popular “é uma narrativa tradicional que tem

por herói seres humanos; sua forma é solidamente estabelecida e nela os elementos

sobrenaturais ocupam posição secundária. Não se refere a temas ‘sérios’ ou reflexões

filosóficas profundas. Seu principal atrativo consiste na própria narrativa” (LEAL, 1985,

p. 23).

Neste trabalho, entende-se-á que a essência do conto de tradição oral é a sua

persistência no tempo, apesar das intempéries pelas quais tenha passado, até a sua

reatualização no reconto. Todavia, embora mantenha arquétipos préexistentes sobre os

quais se possam observar características formulares e estruturais, o ato de contar

histórias carrega uma irredutibilidade discursiva que ultrapassa a fixidez da forma. De

todo modo, forma e estrutura são duas maneiras pelas quais se podem analisar os

contos orais.

33

1.2.1 – Forma e Estrutura da Narrativa Oral

Longe da noção de gênio criador de uma obra literária, e, tendo a perspectiva da

linguagem como centro gerador de arte, em 1930, André Jolles circunscreve as formas

poéticas básicas de caráter fixo, onde elas se originam, isto é, na linguagem (1976,

p.18). A legenda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto e o

chiste, são, para ele, formas fundamentais que resultam da intervenção humana no

caos do universo. Semelhante aos mecanismos culturais que se organizam em torno da

noção de cultivar, fabricar e interpretar, a linguagem não somente nomeia estas

funções, como, por sua vez, ela também cria, fabrica e interpreta (NUNES in: LIMA,

2002, p. 206).

Como uma predisposição determinada pela imaginação, as formas fundamentais

de que fala Jolles são partes constituintes da arte de intervir no real por meio de uma

prática de linguagem, uma vez que é a própria linguagem que determina a forma,

segundo afirma: “cada vez que a linguagem participa na constituição de tal forma, cada

vez que intervém nesta para vinculá-la a uma ordem dada ou alterar-lhe a ordem e

remodelá-la, podemos falar então de Formas Literárias” (JOLLES, 1976, p. 29).

No que se refere ao conto de tradição oral, já no século XIX, por meio da

correspondência entre dois compiladores de narrativas populares - Achim Von Arnim e

Jacob Grimm - percebe-se a distinção conceitual entre linguagem e poesia. Se para

Arnim não há “oposição entre poesia popular e erudita, para Grimm, a poesia popular

sai do coração do Todo, enquanto a poesia artística sai da alma individual” (1976, p.

183). Além da questão sobre a dicotomia entre linguagem e poesia, os dois

compiladores também se envolveram numa discussão sobre fidelidade às narrativas

coletadas:

Eis-nos chegados à fidelidade. Uma fidelidade matemática é absolutamente

impossível e não existe nem mesmo na história mais verdadeira e mais rigorosa;

mas isso carece de importância, pois sentimos que a fidelidade é coisa verdadeira

e não ilusão; ela opõe-se, portanto, à infidelidade. Não podes escrever uma

narrativa perfeitamente fiel e conforme, assim como não podes quebrar um ovo

sem que uma parte da clara adira à casca; é a conseqüência inevitável de todo

34

labor humano e é a façon que muda constantemente. Para mim, a verdadeira

fidelidade, nessa imagem, seria não quebrar a gema do ovo. Se duvidas da

fidelidade dos nossos Contos, não podes duvidar dessa fidelidade, pois ela existe.

Quanto à outra e impossível fidelidade, nós próprios e outros que no-los narraram

outrora, com palavras em grande parte diferentes, nem por isso fomos menos fiéis

(GRIMM apud, JOLLES, 1976, p. 187).

Dessa citação depreende-se que, para os envolvidos na recolha dos contos, a

idéia de simples compiladores, por um lado, não se sustenta frente à inevitabilidade de

constituição de uma nova obra, após uma narrativa ser ouvida, transcrita, e, depois,

editada. Por outro lado, o conto mantém, em sua raiz, algo de análogo a si mesmo,

ainda que narrado de maneira diferente quando da sua recepção.

Vale ainda lembrar que, no encontro com as novelas do Decameron, de

Bocaccio, e, no século XVII, com Gianbattista Basile, em Cunto de li cunti, o conto se

revestiu do estilo de cada um desses autores. Todavia, novelas são formas artísticas

que contam acontecimentos que dão a impressão de verdade e cujos incidentes são

mais importantes do que as personagens que os vivem, ao contrário dos contos de

Grimm, que não fazem menção a acontecimentos e fatos reais, mas são criações mais

espontâneas, situando-se no plano do maravilhoso. No entanto, podemos constatar que

tanto um quanto outro são passíveis de elaboração lingüística.

Segundo Jolles, na forma elaborada de acordo com uma intencionalidade

autoral, a linguagem é “sólida, peculiar e única, encontrando sua realização definitiva

mediante a ação de um poeta”. Já na forma simples, a linguagem do conto “permanece

fluida, aberta, dotada de mobilidade e de capacidade de renovação constante” (1976,

p.195), e com um princípio característico de “disposição mental”, que alimenta a

expectativa de premiar os bons e os justos, em detrimento de uma situação

desfavorável e até mesmo trágica. Assim, sevícias, desprezo, pecado, arbitrariedades,

todas essas coisas só aparecem no “Conto para que possam ser, pouco a pouco,

definitivamente eliminadas e para que haja um desfecho em concordância com a

moralidade ingênua” (JOLLES, 1976, p.201).

Dentro dos parâmetros dessa moralidade, que por vezes chega a mostrar-se

incoerente para os padrões de uma narrativa linear, fica expressa uma certa

35

imoralidade, já que, afinal, nem sempre todas as ações são éticas. Todavia, é a

supressão desses julgamentos de realidade que determinam o espaço do maravilhoso,

principal característica do conto de tradição oral.

Ainda segundo Jolles, o conto perde muito de sua força e fascínio quando se

aproxima da realidade histórica. Conseqüentemente, o segundo mais conhecido

atributo do conto é a sua indeterminação quanto à localização do espaço-tempo, o que

também se aplica às personagens, que são identificadas mais pelas suas ações dentro

da trama:

Portanto, o Gato de Botas não está diante de um ser que não lhe fez mal algum – ou só um pouco – e que ele mata mediante um ardil; é, antes, o veículo necessário para que a injustiça seja reparada, o animal sem valor que permite ao filho pobre do moleiro receber mais do que aquilo de que o destino o privara, o vencedor de um ser que, por sua natureza, é um obstáculo ao acontecimento justo e à felicidade; não é a ele que pertencem os tesouros do mágico perverso, mas àquele que começara por receber muito pouco (JOLLES, 1976, p. 203).

Aqui, vale ressaltar o quanto Jolles, cuja obra é de 1930, se aproxima de Propp

que, dois anos antes, com seus estudos sobre os contos de magia da tradição russa,

possibilitou a identificação das personagens nas narrativas de tradição oral a partir de

suas funções. Segundo ele, variando os atributos como idade e sexo, por exemplo, as

personagens dos contos maravilhosos podem realizar ações semelhantes, embora em

histórias diferentes:

Nosso estudo mostrará que a repetição das funções é surpreendente. Assim, Baba-Iagá como Morozko, o urso, o espírito da floresta ou a cabeça da égua põem à prova a enteada e a recompensam. Prosseguindo com estas observações, pode-se estabelecer que os personagens do conto maravilhoso, por mais diferentes que sejam, realizam freqüentemente as mesmas ações. O meio em si, pelo qual se realiza uma função, pode variar: trata-se de uma grandeza variável (PROPP, 1984, p.26).

A partir de análise de um corpus composto por cem contos russos tradicionais,

Propp detecta um esquema narrativo comum a todos os contos maravilhosos, mesmo

que pertencentes a culturas diferentes.

O método de análise segundo as funções das personagens dos contos de

tradição oral deslocou o estudo dos contos tradicionais do tema para a estrutura. Após

36

uma situação inicial, as seqüências de ações são compostas por 31 funções que

constituem estruturalmente o conto maravilhoso:

Situação inicial Funções: 1. Afastamento de um ou mais personagens da narrativa que se inicia. 2. Proibição que se impõe ao herói. 3. Transgressão da proibição. 4. Interrogatório feito pelo antagonista, em busca de uma informação. 5. Informação recebida pelo antagonista sobre sua vítima. 6. Ardil do antagonista tentando enganar suas vítimas para apoderar-se dela e de seus bens. 7. Cumplicidade da vítima, que se deixa enganar e ajuda involuntariamente seu inimigo. 8. Dano, carência ou prejuízo causado pelo antagonista a um dos membros da família. 9. Mediação ou divulgação da notícia do dano ou carência; faz-se um pedido ou ordena-se ao herói que resolva a questão; mandam-no embora ou deixam-no ir. 10. Início da reação do herói, que aceita o desafio. 11. Partida do herói em busca da solução. 12. Primeira função do doador, que submete o herói a uma grande prova. 13. Reação do herói diante das ações do futuro doador que lhe impõe a prova qualificante. 14. Fornecimento do objeto mágico para o herói. 15. Deslocamento no espaço entre dois reinos; o herói é levado ou transportado ao mundo do vilão, onde está o objeto procurado. 16. Combate direto entre o herói e o antagonista; Prova principal. 17. Marca ou estigma que o herói recebe no corpo. 18. Vitória do herói sobre o vilão. 19. Reparação do dano ou carência inicial. 20. Regresso do herói. 21. Perseguição sofrida pelo herói. 22. Salvamento do herói perseguido. 23. Chegada incógnita do herói à sua casa ou a outro país. 24. Pretensões infundadas de um falso herói. 25. Tarefa difícil é proposta ao herói, como prova glorificante. 26. Realização de uma prova pelo herói. 27. Reconhecimento do herói, graças ao estigma. 28. Desmascaramento do falso herói. 29. Transfiguração do herói, que recebe uma nova aparência. 30. Castigo ou punição do falso herói. 31. Casamento do herói ou sua subida ao trono (PROPP, 1984, p. 31).

Embora o estudo de Propp objetive mais diretamente a análise distributiva das

funções, ele ainda delimita as esferas de ações em que se movem as personagens dos

contos de magia. Dessa forma, as trinta e uma funções se dividem e se agrupam nas

esferas de ações dessas personagens básicas do conto:

37

1. A esfera do Antagonista, que compreende o dano, o combate e outras formas de luta, e a perseguição contra o herói. 2. A esfera do Doador, que compreende a preparação e transmissão do objeto mágico ao herói. 3. A esfera do Auxiliar, que compreende o deslocamento do herói, a reparação do dano, o salvamento, a resolução das tarefas e a transfiguração do herói. 4. A esfera da Princesa, que compreende as tarefas difíceis, a imposição do estigma, o desmascaramento, o reconhecimento, o castigo do segundo malfeitor e o casamento. 5. A esfera do Mandante que inclui somente o envio do herói. 6. A esfera do Herói que compreende a partida, a reação perante as exigências do doador, o casamento, sendo que a primeira função caracteriza o herói, se ele é buscador ou vítima. 7. A esfera do Falso Herói, que compreende a partida, a reação negativa perante as exigências do doador, e, como função específica, as pretensões enganosas (PROPP, 1984, p. 73).

Vale observar que nem sempre esse esquema é extensivo a todos os contos de

tradição oral. A partir dos estudos de Propp, evidencia-se a funcionalidade interna do

conto, mas ele prevê a mutação e transformação, não das ações e funções, mas das

”personagens e seus atributos”, segundo entende Lévi-Strauss (in PROPP, 1984,

p.184). Da falta que inicia o conto, até a reparação dela, há elementos constantes, mas

de um reconto a outro algo sempre pode mudar. Sobre isso, Simonsen esclarece:

É claro que, mesmo no corpus de contos que serviu de ponto de partida para a análise de Propp, a recompensa final do herói não toma sempre a forma de um casamento ou de uma subida ao trono. Da mesma maneira, o objeto mágico da busca do herói nem sempre é uma princesa, e o auxiliar nem sempre é um ‘objeto mágico’: ele pode ser, às vezes, uma simples informação (1984, p. 43).

Tal procedimento é também observado no corpus escolhido para análise deste

trabalho. Embora se possa trabalhar a partir dos conceitos estruturais descobertos por

Propp, há de se constatar que, nos três contos em estudo, não se manifestam de

maneira tão linear as combinações de funções e esferas de ações de Propp. De todo

modo, depois de se proceder à observação da existência de uma estrutura arquetípica

dessas narrativas, percebe-se de imediato que se está frente a uma forma de

procedimento narrativo pertencente a uma classe de relato específico: o conto de

tradição oral.

38

1.3 - Quem conta um conto aumenta um ponto, mas pode diminuí-lo

também...

Embora a arte de contar histórias remonte aos tempos originais, é só a partir do

século XV que o conto ganha o sentido de relatar ou enumerar detalhes de um

acontecimento (HOUAISS, 2001, p. 816), antes verdadeiro, depois transformado em

fictício: “carochinha”; carocha (bruxa ou mulher velha); são indícios do tipo de

acontecimento que caracteriza esses relatos. Enquanto forma, pode-se determinar a

natureza do conto em oposição à realidade, como o faz Jolles: “o conto se encontra em

oposição ao acontecimento real que habitualmente se observa no universo, seu

universo próprio está separado do da realidade de modo muito mais radical que em

qualquer outra forma” (1976, p.204), mas isso não é válido quando se considera o

princípio discursivo do conto.

Ainda que o verbo “contar” possa ser associado à exatidão das operações

numéricas, o ato de enunciar uma história pressupõe a capacidade lingüística que se

movimenta dentro de um universo multifacetado de palavras, cuja escolha é

dependente da situação de uso. Mesmo inscrito na cadeia transmissiva do conto, seu

contador está condicionado ao seu tempo e espaço históricos. Como demonstração,

observe-se um fragmento da narração transcrita de José Herculano da Rocha, do conto

“Dom Anin”:

Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela por Dom Anin. Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela. E tinha umas guerra preparada aí – num sei se era em catorze, quando era – e o destino dela dava pra pegar no cangaço que nem cabra home, viu? - Aí, um dia ela disse: - Meu pai, se o senhor deixasse, comprasse uma arma pra mim, um rifle ou um fuzil mode eu ir brigar nessas guerra que tão brigando... eu queria. (CPBC, p. 169)

A inclusão de elementos contextuais (cangaço, guerra de catorze) na transcrição

da performance vocal de Rocha evidencia uma não neutralidade discursiva que lhe

outorga identidade social, conquanto revela a mobilidade da forma. Segundo Zumthor,

não necessariamente a forma é um conjunto de regras a seguir. Nela pode estar

circunscrita, mas em latência, uma “memória das mudanças de sentido” determinada

39

por elementos sócio - históricos, que fazem a obra poética ser recriada a cada

reatualização (1997a, p. 81).

Desse ponto de vista, o literário em si não basta, sendo necessário ultrapassar

seus limites e avançar para além das marcas formais e estruturais do texto. Longe de

renegar essas marcas, no entanto, há que se considerar também algo da substância de

sentido que possui o texto dentro da comunidade de linguagem onde é produzido, ou

seja, seu uso e seus aspectos culturais e poéticos.

Entender uma expressão literária como um ato de comunicação discursiva

significa estender uma perspectiva antes restrita a gêneros, autores e movimentos

literários, para outros campos do conhecimento. A aproximação do texto literário de

uma abordagem sob a ótica discursiva implica a possibilidade de percebê-lo, também,

no entorno dos aspectos que o constituem, sejam eles lingüísticos ou culturais.

Segundo Fernandes, um estudo sob perspectiva diacrônica, que vise ao

arcaísmo e à constância dos contos, valoriza outros aspectos que não a poesia oral, e

esta pode acabar “por confundir-se com folclore”. A indefinição quanto às marcas

cronológicas “dificulta a fixação da expressão poética no tempo”, levando à perda de

autoria do que se atualiza por meio da animação do contador. Sem alguma marca

individual e a perda das circunstâncias da sua produção, o texto oral passa a ser uma

mera repetição da tradição, sendo, assim, impossível, “captá-lo em seu nomadismo”,

nas modificações geradas por suas reiterações (2007, p.40).

Com efeito, o corpus escolhido para elaboração desta pesquisa registra algumas

alterações causadas por acréscimos e exclusões de elementos narrativos já

conhecidos. É um movimento que caracteriza a heterogeneidade discursiva das

narrativas de tradição oral, cuja elaboração passa através do prisma modular do tempo

e das culturas por onde se deslocou o conto, na memória de seus contadores.

Sem autoria originária, e sujeito a reinterpretações e rememorações que se

atualizam no momento do reconto, não há um relato fundador destas histórias que,

estatutariamente, operam no campo da memória e da imaginação e se realizam como

um acontecimento, como um ato de fala, cujo aporte inicial é lingüístico e cultural.

No entanto, esta arte verbal instaura uma situação específica, em que a relação

entre contador e platéia revela-se como o instante em que o estético e individual

40

oferece-se ao coletivo e transforma o efêmero em representação artística. Assim, é

como gênero discursivo polissêmico e condicionado à tradição que se apresenta como

criação individual, no momento mesmo da performance. Essa é resultado da tensão

criada entre o respeito à tradição recebida e a atualização do conto na emergência da

voz do contador (BORGES in: FERNANDES, 2003, p. 11).

Nessa perspectiva, uma vez que o conto de tradição oral encontra-se em

contínuo processo de discursivização, ao reatualizar o já dito no presente instante da

performance oral, o contador dessas narrativas poderia ser considerado também autor?

E quanto ao narrador? Sabe-se que nessa esfera, considerando o suporte da oralidade,

a pessoa civil do contador coincide com a instância narrativa e se aproxima da autoral,

estabelecendo assim, uma relação dinâmica entre as três instâncias.

Esse deslocamento, por um lado, aproxima o conto oral de um acontecimento de

linguagem, em que a dimensão discursiva institucionaliza e regulamenta o espaço-ritual

do ato de contar: quem, onde, como e quando pode pronunciar o discurso narrativo

(FERNANDES, 2003, p.7).

Por outro lado, também aproxima a noção de texto ligado ao contexto da

oralidade, conforme Walter Ong, para quem, no sentido etimológico, “texto, cuja raiz

significa tecer, é, em termos absolutos, mais compatível com a enunciação oral (...). O

discurso oral tem sido geralmente considerado em ambientes orais como tecer ou

alinhavar” (ONG, 1998, p. 22). Segundo o estudioso da oralidade Amadou Hampâté Ba,

nas sociedades de cultura oral, o discurso está intimamente relacionado com o ato de

tecer, e, simbolicamente, a palavra criadora associa-se à aranha que ensinou sua arte

ao ancestral artesão de fios, o tecelão. Para esse estudioso e mestre da transmissão

oral, quando escrita, a palavra pode revelar a força da “oralidade deitada no papel”

(FARAH, 2003).

1.4 – Da forma oral à forma escrita: duas maneiras de ler o texto poético

“No princípio era o verbo”. Como na Bíblia Sagrada, livro-chave da religião cristã,

no Gênesis, primeiro livro de Moisés, os traços de oralidade logo de início se

41

evidenciam nos vários “es” que introduzem a narração da criação do mundo: (...). “E

disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação

entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou noite. E foi a

tarde e a manhã, o dia primeiro”. Mesmo impressos, ainda que retocados para atender

os gostos de quem os edita e de quem os lê, também os contos de magia trazem uma

clara relação com a tradição oral em que foram gerados.

Em Oralidade e Cultura Escrita (1998), o padre jesuíta americano Walter J.

Ong analisa as relações dicotômicas entre a oralidade e a cultura escrita e esclarece

como o pensamento e a expressão em ambas as modalidades da língua se

diferenciam, ao mesmo tempo em que investiga a atividade oral como recurso

comunicativo e suas implicações nos processos cognitivos. Adepto de uma linha de

pensamento que compreende a cultura oral e a cultura escrita, segundo as diferenças

culturais que isso acarreta, Ong afirma que os processos cognitivos entre as duas

culturas são distintos, à medida que determinam formas de consciência e de

representação psicológicas diferentes entre si.

Nesse estudo fundamental para todos que se interessam pelo tema da oralidade

e da invenção da escrita, Ong observa que tanto o lingüista Ferdinand de Saussure

(1857 – 1913), como seu contemporâneo inglês, Henry Sweet (1845 – 1912),

destacavam a dimensão sonora das palavras, mas chama a atenção para o fato do

primeiro considerar a escrita “como uma espécie de complemento do discurso oral, e

não como transformadora da verbalização” (ONG, 1998, p.13).

Mais surpreendente, informa que é por meio de um estudo iniciado por Milman

Parry (1902 – 1935) e finalizado por Albert B. Lord sobre a natureza oral dos epítetos

homéricos na Odisséia e na Ilíada, que o tema começa a receber a atenção dos

teóricos da lingüística aplicada e da sociolingüística. Continuando essa linha de

pesquisa, um dos nomes de maior destaque foi Eric A. Havelock, seguido por McLuhan

e Okpewho, entre outros.

Os estudos de Parry desencadearam uma sucessão de trabalhos sobre a

oralidade na história da literatura e da cultura. Um nome relevante foi o do professor em

Harvard e Yale, Eric Havelock, que estudou o alfabeto grego relacionando-o com a

cultura helenística, determinando uma mudança nas mentalidades.

42

Incluindo-se entre aqueles que seguiram a linha proposta por Parry, Ong

assegura a inesgotável capacidade de associação entre as descobertas dos helenistas

americanos e outros campos de estudos.. Ampliando a visão dessas possibilidades de

conexões, Ong cita alguns antropólogos que abraçaram a questão da oralidade mais

profundamente: Jack Goody, que estuda a passagem de um estado de consciência a

outro mais elaborado e complexo, ou do “pensamento selvagem”, de Lévi-Strauss, a

outro mais culto, o que para Ong poderia ser simplificado, levando-se em consideração

a passagem do estágio oral para o escrito, nas sociedades em estudo.

Todavia, é constatada pelo autor uma grande quantidade de estudos de outros

autores que objetivam a comparação entre a linguagem falada e a escrita de falantes

que dominam as duas expressões de linguagem. Não é disto que ele fala. Sua

abordagem privilegia a oralidade primária, ou seja, a daquelas pessoas que não sabem

ler nem escrever e que por isso aprendem ouvindo e repetindo o que ouvem, fazendo

uso de provérbios e frases formulares, que, combinadas, expressam a sabedoria dos

que vivenciam e observam as práticas culturais coletivas.

Nas culturas orais, o significado da palavra difere daquele da cultura escrita. Se

nas primeiras, a palavra existe enquanto narrada, isto é, é perecível porquanto só

permanece enquanto é som, na segunda, ela é recuperável, se armazenada em livros.

Segundo o autor, isto explica, provavelmente, o poder atribuído às palavras nas

comunidades orais, para as quais a palavra proferida é depositária de uma dimensão

potencialmente mágica e de lei.

Entretanto, numa cultura oral, a sujeição das palavras ao som é tão determinante

para as maneiras de expressá-las como para os processos mentais que as produzem.

Como as idéias não podem ser anotadas, o pensamento necessita do amparo virtual da

comunicação. Para reter e recuperar o pensamento, é preciso articulá-lo com modelos

ou arquétipos mnemônicos, talhados para serem repetidos oralmente.

Assim, ritmo, antíteses, aliterações, assonâncias e sintaxe são elementos que,

entrelaçados, auxiliam o processo de memorização de provérbios, adágios e partes

temáticas de narrativas como o herói, o combate, etc.. Segundo Ong, é ouvindo,

assimilando e repetindo o que ouvem, que os participantes de culturas orais apreendem

43

o domínio das fórmulas padronizadas do discurso poético e se tornam aptos a

reproduzi-las e até a recombiná-las no reconto.

O deslocamento sensorial efetuado pela aquisição da escrita transforma a

palavra e seu uso, assim como os modos do pensamento. Da dimensão oral à

perspectiva imagética, a escrita estabelece um distanciamento que aponta para um

refinamento da palavra, como objeto de análise e aprimoramento, já que os

procedimentos de escolha para registro obedecem a regras anteriormente

determinadas, além do que, a palavra pode ser apagada ou mudada na superfície do

texto. Seguindo as diferenciações apontadas por Ong:

A vista isola; o som incorpora. A visão situa o observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte. A visão disseca, como observou Merleau-Ponty(1961). A visão chega a um ser humano de uma direção por vez: para olhar para um aposento ou uma paisagem, preciso girar meus olhos de um lado para outro. Quando ouço, no entanto, reúno o som ao mesmo tempo de qualquer direção, imediatamente: estou no centro do meu mundo auditivo, que me envolve, estabelecendo-me em uma espécie de âmago da sensação e da existência. Esse efeito de centramento do som é o que a reprodução sonora de alta-fidelidade explora com profunda sofisticação. Podemos mergulhar no ouvir, no som. Na visão, não há uma maneira análoga de mergulhar em si mesmo. Ao contrário da visão – o sentido da dissecação – o som é, desse modo, um sentido unificador. A propósito, um ideal visual típico é a clareza e a distinção. (...) O auditório ideal, por outro lado, é harmonia, é um colocar junto (1998, p.85-6).

Conforme ele observa, com a palavra impressa, os modos de apreensão e

transmissão dos textos se modificam ainda mais. A ciência e a literatura são afetadas

pela qualidade e capacidade de reprodução do suporte, o que também contribui para a

evolução das capacidades analítica e interpretativa dos leitores do texto impresso.

Fundamentado em estudos de teóricos de várias áreas do conhecimento

epistemológico, lingüístico, literário e semiótico, Walter J. Ong mostra nessa obra não

somente a oralidade como meio comunicativo comprometido com os processos do

pensamento, como também o abalo provocado pela aquisição da escrita nos processos

de apreensão do conhecimento humano. Tem-se aí a amostra de uma reflexão

abrangente, que veio reconduzir o tema da oralidade para outras possibilidades de

conexões com outros campos de estudos, sob outros pontos de vista.

44

Numa outra perspectiva, Paul Zumthor, em suas pesquisas sobre a voz, vai à

multidisciplinaridade a partir da antropologia. Para ele, ir além de disciplinas particulares

significa estabelecer um entrecruzamento de várias delas, no sentido de confirmação

do seu ponto inicial de pesquisa, que “é da ordem da percepção poética” (2000, p.14).

Esse entrecruzamento de disciplinas, entre outras já citadas, da semiótica à teoria da

recepção, cria um fundo cultural sobre o qual o fator literário/ poético emerge na e da

percepção de um ser real relacionado à sua cultura de origem.

Quanto a isso, o escritor e estudioso da poesia oral considera que existem “três

situações de cultura” , às quais conformam-se “três tipos de oralidade”: a) primária,

relativa às sociedades ágrafas; b) mista, que sofre alguma influência da escrita; c)

segunda oralidade, cuja recomposição de textos orais passa pela mediação da escrita

(ZUMTHOR, 2001, p.18).

Imaginando que o primeiro tipo de oralidade talvez exista somente junto a alguns

poucos agrupamentos indígenas, ainda absolutamente isolados, a dominante na prática

cultural brasileira é a coexistência da oralidade mista e da oralidade segunda.

O livro Contos Populares Brasileiros - Ceará é fruto da coabitação das

oralidades mista e segunda: a primeira se justifica pelo fato de alguns de seus

narradores possuírem alguma relação com a escrita, pela própria prática do cordel,

muito comum na região; a segunda remete à própria existência do livro, posto que

outros tipos de mediação (escuta, gravação, transcrição e revisão) culminaram no

registro impresso da obra, possibilitando, ao que antes fora escutado, ser, agora, objeto

de leitura silenciosa.

Segundo Derrida (Apud ONG, 1998, p. 186) a escrita não complementa a palavra

falada, mas, ao contrário, são práticas diferentes de linguagem. Seguindo a mesma

linha, Ong afirma que:

A situação das palavras em um texto é muito diferente da sua situação na linguagem falada. Embora se refiram a sons e não tenham sentido até que possam ser relacionadas – externamente ou na imaginação – aos sons ou, mais precisamente, aos fonemas que codificam, as palavras escritas estão isoladas do contexto pleno no qual as palavras faladas nascem. As palavras, em seu habitat natural, oral, são parte de um presente real, existencial. A enunciação oral é dirigida por um indivíduo real, vivo, a outro indivíduo real, vivo, ou indivíduos reais, vivos, em um tempo específico em um cenário real que inclui sempre muito mais do que meras palavras. As palavras faladas constituem sempre modificações de

45

uma situação que é mais verbal. Elas nunca ocorrem sozinhas, em um contexto simplesmente de palavras (1998, p.117).

Ong faz uma distinção entre texto escrito e a enunciação oral, com a qual,

embora concorde, Zumthor demonstra uma percepção não absolutamente opositiva.

Para ele, “em vez de uma ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma

convergência entre os modos de comunicação” (2001, p.114). Além de escrito, “o texto,

enfim, vai ser a seqüência lingüística percebida auditivamente” (1997, p.83).

Essencialmente vinculados à vocalidade, os contos orais se fazem presentes por

uma voz, cujo legado lhes determina o tom, o timbre, o compasso. Todavia, a

performance vocal não se resume à voz. Endereçada ao outro, essa determinação

também se estende ao olhar, ao gesto, ao corpo enfim, que acompanha essa voz.

Assim, sendo voz e gesto, os contos orais são, também, teatro, já que a manifestação

da palavra “participa necessariamente de um processo geral, operando numa situação

existencial que ela altera de alguma forma e cuja tonalidade engaja os corpos dos

participantes” (ZUMTHOR, 2005, p.147).

Dessa forma, ao mudar a transposição do suporte oral para o escrito, perde-se a

materialidade de todo o contexto situacional, ou seja, as circunstâncias da enunciação,

o auditório e a significação do conto dentro da comunidade do discurso narrativo.

Entretanto, essa perda do estatuto da oralidade, ocasionada pela transformação do

suporte, desvela a conhecida vantagem da escrita sobre a voz, ou seja, a vitória da

fixidez do registro escrito sobre a fugacidade do som. Essencialmente fugidia, a palavra

articulada pela voz pertence a um presente real, a qual, ao acabar de ser proferida, já é

passado, ao contrário do texto escrito, cuja linguagem está separada do seu contexto

de origem, mas perdura sobre ele.

1.5 - Do ouvir para o olhar, às vezes uma questão de poder

A entrada em escritura dos contos de tradição oral é uma questão que atravessa

várias possibilidades de aproximação teórica, seja cultural, lingüística ou literária. A

passagem do oral para o escrito não determina somente uma mudança no meio de

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apreensão da obra poética, do sensorial-auditivo para a perspectiva imagética da

palavra escrita, mas também determina a forma oral ou escrita como duas maneiras de

fazer literatura, e, grosso modo, até de entender o mundo: se oralmente o contador é

responsável pela versão que atualiza em interação com seu público, quando essas

versões são transcritas e editadas, o público já é outro e, agora, pode escolher quais

narrativas deseja ler. Diante de uma versão recriada por um autor com poder de decidir

sobre o que escreve, muda também o modo de comunicação, já que a leitura favorece

um espaço reservado, que exclui quem não domina o código da letra. Essa

transferência tem como resultado:

uma mudança de classe social e uma mudança de ideologia, na forma de ver o mundo, porque os muitos narradores são substituídos por escritores com qualidades comuns: ser adultos, homens e de uma classe social determinada (...) Freqüentemente, escritura e filtro ideológico funcionam como sinônimos5 (LLUCH, 2004, p. 137).

No Brasil, as pessoas que não dominam o código da escrita têm consciência

disso, pois, muitas vezes, se relacionam com os letrados a partir de uma posição

diminuída e de retraso, revelando, assim, um mecanismo de dominação de caráter

ideológico, que leva aqueles que não sabem ler a sobrestimar os que sabem. Tal é o

que ocorre em alguns contos do livro Contos Populares Brasileiros – Ceará, em que

o assunto leitura se imiscui na narração de alguns contadores, levando mesmo à

reflexão sobre a questão da valorização da escrita entre os narradores: “Um rapaz era...

ele estudou muito, formou-se, num sabe? Aí, o pai dele era muito rico, aí, ele foi, pediu

ao pai dele pra ir embora. Queria muito dinheiro que ia viajar” (LIMA, 2003, p.309). Esse

fragmento do conto “O bom ladrão”, narrado pelo agricultor de Aiuaba, José Pereira

Monteiro, é interessante porque ilustra bem a questão ideológica associada ao poder

monetário e ao estudo formal. Observe-se também este outro fragmento do conto “O

homem da maca”, narrado pela dona de casa do Crato, Alzira Leite Menezes: “Era uma

vez um fazendeiro muito rico, já casado, tinha esposa, e só nasceu uma filhinha. Eu sei

5 Tradução nossa de: “Um cambio de classe social y um cambio de ideologia, de forma de ver el mundo, porque los numerosos narradores son sustituidos por escritores com unas cualidades compartidas: ser adultos, hombres y de uma clase social determinada (...). A menudo, escritura y filtro ideológico funcionaron como sinônimos”.

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que a menina cresceu, acostumou-se a trabalhar, aprendeu a ler um pouco, mas... um

pouco, num sabe? Quando ela já era moça, então os pais morreram, ela ficou

desamparada” (CPBC, 2003, p.342). Nessa passagem, ao contrário da primeira, apesar

de o pai ter sido um homem rico, a noção do pouco domínio da leitura deixa a

personagem desamparada, indiciando, mesmo assim, o teor valorativo da leitura. A

noção da ligação entre o saber formal e o poder parece manifestar uma maneira não

isolada de interpretar o mundo, como se houvesse um consenso coletivo que divide os

homens entre os que sabem e os que não sabem ler.

Llopart (apud, LLUCH, 2004, p.137), serve-se de um conceito da biologia, a

fagositisis, para explicar o processo articulado pela cultura de elite em absorver e

transformar partes da cultura popular em proveito próprio, dando-lhe uma nova

roupagem. Em parte, isso explica o envolvimento da história acadêmica em converter

os contos de tradição oral em leitura para jovens e crianças, embora, inicialmente, os

intelectuais franceses tenham ficado desconfortáveis com a publicação de Charles

Perrault. A composição e publicação de Perrault dos contos orais franceses, em 1695,

envolveu questões relacionadas à passagem do oral para a escrita, e uma delas diz

respeito à autoria de onze narrativas, visto que, ao seu terceiro filho, Pierre Perrault-

Darmancour, são atribuídos os contos em prosa, apesar de haver argumentos em favor

da autoria dos dois, do pai e do filho (SIMONSEN, 1992, p.11).

De qualquer forma, a expressão “contos de Perrault” compreende um estilo e

motivos escolhidos intencional e estrategicamente para resultar numa estética própria,

ou, como afirma Simonsen: “Esta ‘simplicidade ingênua’ é de fato a marca de uma

estética muito pensada, que se afasta conscientemente daquela de seus

contemporâneos”6, adeptos de uma literatura romanesca, voltada aos grandes

espetáculos festivos de Versailles (SIMONSEN, 1992, p, 19). Nesse sentido, é

interessante notar a observação do abade Villiers: “É preciso ser hábil para imitar bem a

simplicidade da sua ignorância (das criadas), isso não é para todos”7 (apud,

SIMONSEN, 1992, p. 19).

6 Tradução nossa de: “Cette ‘simplicité naïve’ est en fait la marque d’une esthétique très réfléchie, qui se demarque consciemment de celle de ses contemporains”. 7 Tradução nossa de: “Il faut être habile pour bien imiter la simplicité de leur igonorance (des nourrices), cela n’est pas donné à tout le monde”.

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Além do tom marcadamente preconceituoso para com os informantes orais,

dessa citação depreende-se, também, a naturalidade com que a individualidade dos

contadores era tratada como algo sem relevância, uma vez que o interesse poético

nessas narrativas tinha uma expectativa a posteriori. A redação e publicação eram

feitas mediante o tratamento dado ao material recolhido por alguém dotado de poder de

“interferência criativa no processo de escrita da narrativa oral” (ALMEIDA & QUEIROZ,

2004, p.134). Enfim, é um procedimento que os pesquisadores pioneiros no Brasil

utilizaram mesmo afirmando fidelidade ao narrado, conforme adianta Silvio Romero:

Todos os contos que se encontram neste livro, exceto os quatro ou cinco tomados a Couto de Magalhães para estudo comparativo, foram por nós diretamente recolhidos da tradição oral. Não incluímos neles nenhum artifício; nenhuma ornamentação, nenhuma palavra há aí que não fosse fielmente apanhada dos lábios do povo (1954, p.441).

Levando-se em consideração as dificuldades tecnológicas iniciais para o registro

das narrativas orais, essas eram geralmente publicadas de acordo com a norma padrão

da língua, deixando-se, no entanto, algumas marcas lexicais próprias da oralidade,

como uma forma de imprimir ao estilo o tom pretensamente tosco da linguagem

popular. A esse propósito, observe-se o fragmento do conto “Os três coroados”, colhido

por Silvio Romero, em Sergipe, e editado por Câmara Cascudo em Literatura Oral no

Brasil:

Foi um dia, havia três moças já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada do seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu”. A do meio disse: “Se eu me casasse com ele, lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve”. A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados” (CASCUDO, 1984, p.263).

Entretanto, outros estudiosos, como Lindolfo Gomes, afirmam a dificuldade de

continuar fiel à voz original, fonte da narrativa coletada:

Na reprodução escrita dos contos populares, que pacientemente coligimos, tentamos conservar o pinturesco da linguagem com que os ouvimos dos lábios do povo, não só quanto à maneira característica das expressões como ao idiomatismo dos chavões usados pela gente simples.

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É certo que, por vezes, fugindo à monotonia das construções viciosas, corrigimos aqui e ali o linguajar dos narradores, especialmente nas ocorrências pronominais do acusativo da 3º pessoa que o elemento popular brasílico representa quase sempre pelos pronomes ele e ela e raramente por o e a. Mas outras incorreções pinturescamente características do falar plebeu foram conservadas fielmente, bem como o modo e o tom das narrativas. Se não procedêssemos assim não faríamos trabalho propriamente folclórico, ficaria completamente burlado o nosso intuito (GOMES, 1949, p.11, grifos nossos).

Como se observa, havendo ou não a intenção de fidelidade à voz originária, o

fato é que, na transposição do suporte oral para o escrito, não há uma relação de

equivalência, de modo que o registro de uma expressão oral denota o objetivo do

pesquisador ou coletor. Assim, o interesse de um folclorista pela origem e recorrência

destes contos “implica buscar no passado uma justificativa para suas transformações

no presente”, vendo sua ligação com a tradição ser legitimada pela escrita, até mesmo

com a intenção de preservação ou de resgate (FERNANDES, 2007, p. 42). Tal

comportamento é bem diferente do interesse da literatura que, ao objetivar a tensão

poética do texto transcrito, compreende as transformações desse texto não como

desvios da fonte, mas como re-significações criativas de um texto em movimento, não

obstante esteja ligado à tradição.

A opção pelo modo de transcrição é decorrente dos objetivos propostos pelos

pesquisadores, o que, às vezes, implica até mesmo a escolha dos contadores e contos

a serem transcritos. É o que ocorre, por exemplo, quando um lingüista tem por critério

principal de escolha o concernente a uma boa dicção, e, por isso, em função da classe

social de muito baixa renda e da conseqüente perda dentária, descarta o contar de um

velho, em detrimento de um narrador mais jovem e com capacidade de imprimir melhor

qualidade auditiva ao material colhido (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p.141). A

Literatura, entretanto, tende a priorizar uma performance mais amadurecida em virtude

do conhecimento de mundo e do repertório mais aproximado da tradição que o velho

traz na memória, inclusive o gosto natural por contar histórias de sua meninice.

Quanto à impossibilidade da transcrição fiel à manifestação oral, mesmo porque

se perdem nuances como entonação, intensidade, musicalidade e outras inflexões da

oralidade, observa-se que a postura dos pesquisadores ligados aos estudos da

comunicação, menos que autenticidade e fidelidade ao texto oral, privilegia os aspectos

de interação e legibilidade (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p.142).

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II– A obra vocal

“Somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas”.

(Paul Zumthor)

Criada por Paul Sébillot, em 1881, para designar as manifestações orais dos

mais variados tipos de expressões oriundas de contextos iletrados, a designação

“literatura oral”, para Paul Zumthor, é inconsistente e não responde aos caracteres e à

estruturação que marcam a poesia oral, entendida por ele num sentido mais geral e

abrangente. Se, para os etnólogos, literatura oral indica uma alocução de sentido ético

ou sabedoria de caráter tradicional, para os historiadores da literatura as narrativas

populares, as advinhas, as facécias, os jogos ou outras elaborações verbais de sentido

ficcional ou metafórico, são acondicionados ao termo, pela diferenciação discursiva em

relação à fala corrente do dia-a-dia. Um vasto repertório acomodado sob uma

designação restritiva, que, segundo o medievalista, não contempla outras numerosas

manifestações poéticas orais, como por exemplo, aquela que se canta (ZUMTHOR,

1997a, p.48).

Para ele, a inclusão de manifestações tão diversas “na literatura oral, os

‘gêneros’, quaisquer que sejam, apresentam uma convencionalidade particular,

necessária ao funcionamento da comunicação” (1997a, p.50), de maneira que suas

características dizem respeito mais às condições contextuais de origem do que ao texto

oral ou escrito propriamente. Disso decorre que, os tipos discursivos relativos à poesia,

em qualquer cultura são instintivamente reconhecidos; ganham sentido a partir de um

saber compartilhado; preenchem uma certa expectativa de ação entre as partes

envolvidas. Essa ligação da poesia oral aos aspectos circunstanciais de sua produção

faz pensar que, não por acaso, “quando a poesia oral vem de uma cultura alheia, é

sentida pelo ouvinte como exótica, minoritária, marginal” (1997a, p.67).

Embora não invalide a profusão do material recolhido e disponível para estudos

posteriores, isso talvez explique o olhar por vezes estrangeiro de literatos, folcloristas e

etnólogos envolvidos no registro de manifestações poéticas orais, que por muito tempo

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tiveram uma orientação mais de preservação e resgate do que de análise do fato

poético oral em si mesmo.

No prefácio de Introdução à Poesia Oral (1997a), o medievalista Paul Zumthor

afirma que o exercício da voz, articulado à capacidade humana de simbolizar, é o

centro gerador da poesia (1997, p.10). Semelhante a Zumthor, porém em 1930, André

Jolles aponta a linguagem como o espaço germinal de formas poéticas, com a

diferença fundamental de que, para esse, quanto ao conto oral, não obstante a fluidez

da linguagem, a forma é fixa e sem intervenção de um poeta8 (1976, p.20). Um

raciocínio que permite entender que a linguagem é elaboração e construção, mas que

carrega um substrato de regulamentação de algo que é pura mobilidade: a forma não é

um esquema a obedecer, como afirma Jolles, porque ela é recriada a cada reconto pelo

ritmo e “paixão particular” (ZUMTHOR, 1997a, p. 81).

A desconsideração da ação do poeta, o que Jolles chamou de “formas simples”,

não leva em conta, como faz Zumthor, que o ritmo e a paixão que movem um reconto

sejam fruto de uma atividade interacional que une indivíduos, social e historicamente.

Não sendo apenas memória e tradição, a poesia oral, para se manifestar, não

prescinde de um indivíduo em cuja boca se concretize a voz no ato comunicativo.

Com a intenção de estabelecer uma poética que vise ao estudo da poesia oral,

Zumthor destaca a potencialidade da voz que,

dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura, criadores de inumeráveis formas de arte. (...) Ela possui, além das qualidades simbólicas, que todo mundo reconhece, qualidades materiais não menos significantes, e que se definem em termos de tom, timbre, alcance, altura, registro (2005, p. 61).

Mais do que a teoria formular de Milman Parry, que não considera as marcas

situacionais do texto oral, Zumthor lança mão do conceito criado por Menendez Pidal,

‘estilo tradicional’, que, em oposição à escrita, indica as marcas da voz na obra vocal:

8 Jolles considera uma relação dicotômica entre a poesia da natureza, na qual ele inclui a manifestação das Formas Simples, e a elaboração individual de um poeta, esta entendida como forma artística: “nas Formas artísticas trata-se das palavras próprias do poeta, que são a execução única e definitiva da forma, ao passo que, na Forma Simples, trata-se das palavras próprias da forma” (JOLLES, 1976, p.195).

52

Sua intensidade, sua tendência a reduzir a expressão ao essencial (o que significa nem ao mais breve nem ao mais simples); sua ausência de artifícios refreando as reações afetivas; a predominância da palavra em ato sobre a descrição; os jogos de eco e de repetição; o imediatismo das narrações, cujas formas complexas se constituem por acumulação; a impessoalidade, a intemporalidade (apud ZUMTHOR, 1997a, p.132).

Entendendo que a voz, pela sua natureza essencialmente fugidia, escapa à

esquematização, Zumthor propõe que o ‘oralista’ tenha sobre a obra oral um olhar

perceptivo quanto à “sua existência discursiva”, no sentido de captar, em meio à

transitoriedade sonora da voz, “sua existência textual” e “sua realidade sintática”. Sem

primazia da gramática em relação à retórica, ou vice versa, a obra vocal é “apenas uma

fluidez orientada”, que se constitui por um “tipo de formalização que torna o poeta um

mestre de cerimônias” (1997, p.132-133). Isto se explica porque, para Zumthor,

a obra é aquilo que é poeticamente comunicado, aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais e situacionais: o termo abarca a totalidade dos fatores da performance, fatores que produzem juntos um sentido global, que também não é redutível à adição de sentidos particulares. Neste sentido, a obra é por natureza teatral; o teatro é a sua forma acabada, mas toda performance o sustenta de alguma forma. Do texto, a voz em performance extrai a obra (2005, p.142).

Não obstante no excerto acima ele tenha uma perspectiva mais

explicitamente aplicada à performance enquanto obra presencial, in loco, é possível,

pela perspectiva do registro escrito, incluir os narradores de Contos Populares

Brasileiros: Ceará, sob o ponto de vista da performance pelo viés da relação texto/

leitor, sobre o qual se discorrerá mais adiante. Contudo, vale ainda observar que ele

contempla a modalidade da obra vocal transcrita, quando diz:

Toda palavra poética (passe ou não pela escrita) emerge de um lugar interior e incerto, bem ou mal, se nomeia por metáforas: fonte, fundo, eu, vida... Ela nada designa, propriamente falando. Um acontecimento se produz, de modo quase aleatório, (o próprio rito não é mais que uma apropriação do acaso), num espírito humano, sobre os lábios, sob a mão, e eis que se dilui uma ordem, revela-se outra, abre-se um sistema, e interrompe-se a entropia universal. Lugar e tempo onde, num excesso de existência, um indivíduo encontra a história e, de maneira dissimulada, parcial, progressiva, modifica as regras de sua própria língua (ZUMTHOR, 1997a, p.167).

53

A perspectiva zumthoriana sobre a obra vocal, seja escrita ou não, consiste em

compreendê-la como parte fundamental da obra poética, que não prescinde, todavia, da

conciliação das partes integrantes do e no ato performático. No caso da obra vocal,

essas partes são identificadas junto aos envolvidos na performance presencial: locutor

e ouvinte(s). Quanto à obra vocal na forma escrita, o ato performático é uma questão a

ser desvendada junto à recepção do texto.

2.1 – Da transmissão à percepção: a performance

Elemento constitutivo da obra vocal, sob o ponto de vista de Paul Zumthor, a

“performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a

performance manifesta um saber-ser no tempo e espaço” (1997a, p.157). Disso resulta

que o ato performático somente é compreensível a partir dos aspectos culturais que o

determinam, mais do que as estruturas lingüísticas que o formam (MATOS, 2005, p.

53), embora essas possam ser verificadas, como se verá mais adiante.

Anglicismo (to perform), em 1966, a palavra performance ganha o sentido de

“realização de um ato de fala por uma pessoa” (LE PETIT ROBERT, 2002, p.1903),

quando teóricos franceses passam a desenvolver pesquisas no campo da análise do

discurso. Antes, porém, em 1962, a publicação das conferências (1955) proferidas em

Harvard, pelo inglês Austin, seria o marco inicial do desenvolvimento da teoria dos

“Speech acts” (atos de fala), cuja base teórica está centrada nos “enunciados

performativos, que têm a propriedade de poder e, em certas condições, realizar o ato

que eles denotam, isto é, fazer qualquer coisa pelo simples fato do dizer” ou enunciar

algo (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p. 72). Dessa forma, não há uma tão

nítida oposição entre fala e ação, porque aquela é um meio de se chegar a essa, no

sentido de que o enunciado de uma promessa envolve o ato de prometer.

Zumthor utiliza a concepção inglesa de performance, mas a ultrapassa por

considerá-la para além de sua dimensão discursiva. Dessa forma, traz para os estudos

literários a voz, o empenho do corpo e tudo que rodeia o ato performativo, como a

atualização e a presentificação relacionadas diretamente a “uma ordem de valores

54

encarnada em um corpo vivo” (2000, p. 36). A performance está relacionada à idéia

heideggeriana de Dasein9, na qual, a consciência de estar no mundo permite enfrentar

o bom e o ruim da existência, com criatividade e compromisso com a vida. Mais do que

a noção de competência subentendida como savoir-faire e savoir-dire, Zumthor

privilegia o savoir-être, no sentido de que a performance é um saber-ser no tempo e no

espaço, daí sua íntima ligação com os aspectos culturais de sua origem.

A esse respeito, observe-se como Zumthor, em sua obra Performance,

recepção, leitura (2000), expõe o que implica sua concepção de performance:

Termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. Nesse sentido, não é falso dizer que a performance existe fora da duração. Ela atualiza virtualidades mais ou menos numerosas, sentidas com maior ou menor clareza. Elas as faz ‘passar ao ato’, fora de toda consideração pelo tempo. Por isso mesmo, a performance é a única que realiza aquilo que os autores alemães, a propósito da recepção, chamam de concretização (2000, p.59).

Em A letra e a voz (2001), Zumthor oferece outra definição de performance que

vale a pena observar, pela pormenorização do conceito:

Tecnicamente, a performance aparece como uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário(s), circunstâncias acham-se fisicamente confrontados, indiscutíveis. Na performance, recortam-se os dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e aquele sobre o qual se unem situação e tradição. Nesse nível, desempenha-se plenamente a função da linguagem que Malinowski denominou ‘fática’: jogo de aproximação e de apelo, de provocação do Outro, de pergunta, em si indiferente à produção de um sentido. Por isso, qualquer que seja o processo que a preceda, acompanhe ou siga, é em sua qualidade de ação vocal que a performance poética reclama logo a atenção do crítico. Seus outros componentes, por indissociáveis que sejam, tiram dela seu valor. A transmissão de boca a ouvido opera o texto, mas é o todo da performance que constitui o locus emocional em que o texto vocalizado se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva (2001, p. 222).

9 Desenvolvendo o que chamava de “fenomenologia existencial”, o filósofo alemão, Heidegger, utiliza o termo Dasein para se referir à existência humana. Dasein ou “ser presente” diz respeito à consciência de se ocupar um espaço no mundo, preocupar-se com ele, e com o modo de nele inserir-se. A angústia provocada por essa percepção pode levar ao entendimento da capacidade de influência na esfera coletiva, ou, por outro lado, pode ocasionar a queda, que leva à tendência de fuga das preocupações com a vida.

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Emissor, receptor e circunstância da enunciação, a performance é, assim, a

combinação desses elementos que, simplificados, resultam em tempo, lugar e

indivíduos envolvidos no evento comunicativo e na recepção. Ou mais precisamente,

segundo Zumthor, ela é um momento da recepção: aquele em que o discurso poético,

em oposição ao pragmatismo das mensagens cotidianas, é percebido como tal, a ponto

de determinar a suspensão do tempo durável e real, embora se cruze com aquele da

comunidade onde é produzido, como ressonância residual.

Fundada em aspectos sócio – culturais e psíquicos relacionados a um corpo real,

a performance é caracterizada por: 1) reconhecimento de algo que passa da

virtualidade à atualização; 2) emergência de um fenômeno cultural e situacional, que

sai de um contexto, mas volta a ele de maneira renovada; 3) conduta que o sujeito

assume diante de si e dos outros, levando à reiterabilidade ou repetição - que não é o

mesmo que redundância – de algo já visto; 4) modificação do conhecimento, que fica

marcado após a comunicação poética (ZUMTHOR, 2000, p. 36).

Se para Jolles a forma do conto oral é determinada por uma disposição mental, o

conceito de performance de Zumthor desloca a preocupação com a forma enquanto

algo acabado - para uma concepção de inacabamento que caracteriza todo

pronunciamento oral. “A forma se percebe em performance, mas a cada performance

ela se transmuda” (ZUMTHOR, 2000, p. 39).

2.1.1. – O saber–ser e a performance oral

O saber-ser tem referência com a relação estabelecida entre o contador de

histórias de tradição oral e o público ouvinte, além do texto que é, ao mesmo tempo,

ponto de partida e resultado da performance. Leva-se em consideração que, mesmo

mantendo alguma associação com a forma, o texto oral se tece no confronto entre

contador e ouvinte, de maneira que “a forma é alguma coisa que está se fazendo pela

mediação de um corpo humano; esse corpo, através da voz, do gesto, do cenário onde

ele se coloca, está em vias de realizar as sugestões contidas no texto” (ZUMTHOR,

2005, p.56). Extremamente ligada ao corpo e à voz que dele emana, o saber-ser na

56

performance remete ao indivíduo intérprete e produtor do texto, visto e percebido como

presença pelo olho e pelo ouvido de alguém, cuja função é indispensável numa relação

que é toda voltada para o outro. O outro, nesse caso, é o ouvinte, conforme se pode

observar nas palavras do próprio Zumthor:

O ouvinte faz parte da performance, da mesma forma que o autor e as circunstâncias. O ouvinte é ‘interpelado’, como se diz, ele intervém, ele é um dos componentes fundamentais dessa poesia vocal, componentes sem os quais ela não existiria. Em raros casos, o ouvinte aparentemente faz falta. Mas essa aparência é enganosa. Pense na tirolesa, esse canto pastor de que existem variantes em todos os países de montanhas altas. Um pastor canta, sozinho. Não tem ouvinte ao seu lado. No entanto, na verdade, ele tem um ouvinte: a própria montanha, cuja beleza o canto exalta (2005, p.92).

Receptor e futuro reprodutor do texto em performance, cada ouvinte, mediante

seus próprios arranjos imaginativos, produz um novo texto no qual imprime sua marca

individual. Isso se explica pelo fato de que a performance nunca é experienciada da

mesma maneira por todos que a recebem. “O ouvinte torna-se por seu turno intérprete,

e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma, quem sabe, radical”.

Esse movimento determina o enriquecimento e as transformações da tradição, ou a

“movência criadora” (ZUMTHOR, 1997a, p. 242).

Relacionando essa ordem de idéias ao corpus em estudo, “adaptação exemplar”

é a denominação dada pelo coordenador e também coletor da maioria dos contos

editados em Contos Populares Brasileiros – Ceará, Francisco Assis de Souza Lima,

à “singularidade com que o conto é reelaborado em sua circunstância pelo contador”.

Segundo Lima, por tratar-se de um ofício artesanal, no momento de engendrar a

performance:

Alguns informantes evocam a memória de grandes contadores de história, mas predomina a sua localização no elemento doméstico da comunidade, onde indivíduos se autorizam e são eleitos agentes privilegiados dessa transmissão. Embora isto não sirva para descaracterizar uma ‘figura antropológica’ do contador de histórias, permite enquadrá-la no círculo geral de um ambiente humano onde todos compartilham, na medida das possibilidades, do interesse e do talento de cada um, de uma reserva de saber onde narrar é marca reconhecida (CPBC, p.28).

Este excerto vai bem ao encontro dos traços determinados por Zumthor, os quais

marcam o saber-ser na performance, de maneira que o reconhecimento do material

57

tradicional emerge diante de indivíduos que participam e interagem no mesmo espaço

do evento performático.

“Circulante como o anel que passa de mão em mão, o conto possui portadores. Não há quem o administre, senão o próprio público que o tenha cultivado. É matéria de tempo livre, e é cadência no espaço lúdico da ocupação. Próximo do sonho, é sentinela da vigília. Fantasia e imagem, é também veículo do real” (CPBC, p. 30).

Embora não seja reproduzido o mesmo discurso ouvido, a reiterabilidade diz

respeito à relação que uma performance discursiva tem com outra da qual guarda

semelhança. Sendo essencialmente presença e não somente um meio de

comunicação, a performance afeta o conhecimento na forma de uma presença poética

que ultrapassa o sentido lingüístico da mensagem, e se oferece à comunidade de

discurso no aqui e agora do ato. Entre as comunidades de discurso observadas por

Lima, o saber-ser no ato performático revela uma identificação entre as instâncias orais,

perceptível no modo como se estabelece a relação social entre contador e ouvinte:

No Ceará e no Nordeste, contar histórias não é uma atividade remunerada. O contador de histórias não representa uma categoria profissional à parte, embora seu ofício comporte exigências de um fazer artesanal: empenho, técnica, estilo, singularidade e talento na repetição. Mas o contador não lança o chapéu às moedas, como o faz o embolador, o tirador de versos de feira, o cantador de viola e, de resto, os brincantes nordestinos. A ‘história de Trancoso’ é lazer e é arte, mas antes de tudo é um fazer dentro da própria vida. Dá-se e circula como objeto sem preço, valor de estimação. (...) O contador comparece aos terreiros e salas, acontece espontaneamente na oportunidade hospitaleira dos arranchos e pernoites. É pretexto nas reuniões familiares, em noites de sexta-feira da paixão, enquanto se espera a hora do galo. Estaria presente ao ritmo das debulhas. É ponto e contraponto nas conversas em noites, com cadeiras nas calçadas. Pode ir à roça, animar o trabalho nas leiras e nos eitos. Acompanha o viajante nos caminhos e travessias. Insinua-se nos lugares do acalanto, e é palavra tecida e rendada no colo de avós, rendidas ao pedido, ao convite e à cumplicidade dos netos (CPBC, p. 30).

Construído na voz de quem conta, mas com a participação e cumplicidade do

ouvinte, o texto poético oral varia por meio do tom, do gesto, da modulação e da

maneira do contador enunciar seu relato, buscando preencher as expectativas do

público durante a performance. Isso não implica, no entanto, uma relação igualitária

58

entre ambos. Todos são conscientes de seu papel no evento comunicativo poético, ou

conforme as palavras de Lima:

A personalidade do narrador se afirma e se expande na hora de contar. Mas não se pode separar o conto do narrador, do seu universo e do seu público. Mesmo a eleição do repertório e o jeito como é transmitido se define junto ao público. Os recursos mímicos, as inflexões, o traço de humor, a ênfase normativa, as sugestões de mistério ou a suspensão narrativa são efeitos da técnica e da versatilidade do contador. No entanto, sua oportunidade, pontuação e eficácia orientam-se através e em função de uma escuta participante. Não falará o conto se não houver um meio que o solicite. E se é para este meio que se dirige, só falará bem enquanto integrar sua experiência cotidiana, religando-a às fronteiras da grande memória: a memória da tradição (CPBC, p.30).

Detentor de um saber que demanda a condução de sua presença em cena, é

como um mestre de cerimônias que se comporta o contador, em meio ao seu público

ouvinte:

O processo narrativo não dilui a importância individual do contador. Relativiza-o, ao nível em que este se torna capaz de organizar um saber, transformá-lo até, mas nunca transtorná-lo: é aqui que se opera uma relação de vigilância coletiva. Mais do que por mera vigilância, o público assiste o narrador e o respeita pela sua qualidade de doador e agente de uma transmissão (CPBC, p. 30).

Citando a metáfora de Catherine Zacarte:

“O contador é um capitão que tem o timão e pode guiar o barco, mas, se o público não soprar nas velas, ele vai ratear. Um contador é alguém que pode transportar todo o mundo com suas forças, mas sem a participação do público ele não vai muito longe”. (apud MATOS, 2005, p. 79).

Essa estreita relação, no entanto, é muito diferente daquela que se estabelece entre o

texto escrito e o leitor.

2.1.2. – A leitura e o saber-ser do leitor em performance

Não obstante a noção de performance seja comumente associada a uma

manifestação presencial, na qual se apreendem a voz e o gesto inseridos em contexto,

Zumthor considera que a relação texto/ leitor favorece um índice perceptual

59

performativo, condicionado a uma experiência sensorial e individual. O

comprometimento do corpo do leitor na leitura poética invalida o “preconceito habitual

que aproxima performance unicamente de oralidade”, posto que, dessa perspectiva, “a

leitura é a apreensão de uma performance ausente-presente; uma tomada da

linguagem falando-se e não apenas se liberando sob a forma de traços negros no

papel” (ZUMTHOR, 2000, p.66). Para ele, “o que na performance oral pura é realidade

provada, é, na leitura, da ordem do desejo”, de maneira que o que muda é a implicação

mais ou menos forte do corpo que se ressente e ressoa, em si mesmo, tudo que a

leitura poética sugere (ZUMTHOR, 2000, p. 40).

Para ele, essa reação corporal funciona como um sinalizador da natureza do

texto: se poético ou não. Segundo seu ponto de vista,

se admitirmos que há, grosso modo, duas espécies de práticas discursivas, uma que chamaremos, para simplificar, de ‘poética’, e uma outra, a diferença entre elas consiste em que o poético tem de profundo, fundamental necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza (ZUMTHOR, 2000, p.41).

Mais do que o preenchimento de vazios e lacunas do discurso poético, a ser

decodificado por um presumido leitor proficiente, e o conceito de leitor implícito de

Wolfgang Iser10, Zumthor leva em consideração a presença verdadeira de um leitor, em

tempo real, implicado na interpretação do texto e nas sensações que este lhe transmite

ao próprio corpo.

A propósito do que afirma Barthes, de que o gozo poético é físico, observe-se

como Zumthor utiliza a palavra corpo:

10 A estética fenomenológica de Roman Ingarden - que considera a função da consciência no ato de leitura - é o ponto de partida para Iser desenvolver os estudos sobre a estética da recepção. Em O ato da leitura (1999) ele defende que o objeto literário é um produto construído na interação texto/ leitor. No texto, implícito, o leitor estaria previsto, inscrito sob a forma de uma estrutura textual, como uma estratégia autoral a ser realizada no ato de leitura. No planejamento da obra, o autor determina que "os lugares vazios se transformam em estímulos para formação de representações por parte do leitor" (ISER, 1999, p.144).

60

É ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à margem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior. Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica, sofrendo também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro (2000, p. 28).

No sentido mais palpável e abrangente possível, Zumthor esboça a estrutura

significante de ser e estar no mundo, aproximando-se conceitualmente da

fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, para quem a noção de estar no mundo

proporciona a consciência de que se faz parte dele. Se a existência humana pressupõe

consciência e corpo, subjetiva e objetivamente, ao mesmo tempo é isso que determina

o ser de uma maneira global: “Somos o composto de alma e de corpo, portanto é

preciso que haja um pensamento dele” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 33). Assim pensa

também Chauí, quando diz:

Não somos uma consciência reflexiva pura, mas uma consciência encarnada num corpo. Nosso corpo não é apenas uma coisa natural, tal como a física, a biologia e a psicologia o estudam, mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência. Não somos pensamento puro, pois somos corpo. Não somos uma coisa natural, pois somos consciência (2007, p. 9).

No que se refere à percepção do leitor no ato de leitura, o fator determinante é a

totalidade de um corpo e de uma consciência que toma a visão e os outros sentidos

não apenas enquanto funções do corpo, mas enquanto pensamento/ desejo de ver e

tocar as coisas sugeridas pela leitura. Longe de ser uma tábula rasa, o leitor leva

consigo todo seu conhecimento prévio, a partir do qual estabelece com o texto empatia,

projeção e identificação, no sentido de adaptá-lo às suas próprias preocupações e

experiências:

Quando lemos, nossa expectativa é (em) função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos, mas em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos, tudo que já lemos até aqui neste texto e em outros. A leitura procede, pois, em duas direções ao mesmo tempo, para frente e para trás, sendo que um critério de coerência existe

61

no princípio da pesquisa do sentido e das revisões contínuas pelas quais a leitura garante uma significação totalizante à nossa leitura (COMPAGNON, 2006, p. 148).

Compreendida globalmente como um ato físico, sensorial e intelectivo, a leitura

poética atrelada à noção de percepção está condicionada a um ser real, porque,

segundo Zumthor, “a percepção é essencialmente presença. Perceber lendo poesia é

suscitar uma presença em mim, leitor”. (2000, p. 94)

Entendendo a leitura poética como busca de conhecimento, ou mais

precisamente, de autoconhecimento, a idéia de que a apreensão do poético se

processa pela via sensitiva de um indivíduo (o papel do leitor, nesse caso) refere-se à

prática de uma leitura que o coloca frente às coisas do mundo e dele mesmo. A esse

respeito, Zumthor afirma:

Nossos "sentidos", na significação mais corporal da palavra, a visão, a audição, não são somente as ferramentas de registro, são órgãos de conhecimento. Ora, todo conhecimento está a serviço do vivo, a quem ele permite perseverar no seu ser. Por isso a cadeia epistemológica continua a fazer do vivente um sujeito; ela coloca o sujeito no mundo. Minha leitura poética me "coloca no mundo" no sentido mais literal da expressão. Descubro que existe um objeto fora de mim; e não faço disso uma descoberta de ordem metafísica, simplesmente choco-me com uma coisa. Graças ao conhecimento "antepredicativo" se produz no curso da existência de um ser humano uma acumulação memorial, de origem corporal (2000, p. 95).

Um conhecimento que se produz por meio da ação de ler e olhar. Se o ler se

encarrega do ato interpretativo e da decodificação dos sinais gráficos, o olhar, por sua

vez, escapa à limitação do código porque ele se vincula ao pensamento e à percepção

de quem vê.

De caráter individual, a leitura é o resultado do confronto entre leitor e texto, de

maneira que a compreensão é essencialmente o diálogo entre eles. Corpo a corpo. Um

face a face que concretiza a percepção de uma voz que se entrega à performatização,

adquirindo, do leitor, suas marcas pessoais. Zumthor afirma que:

a leitura é diálogo. A 'compreensão' que ela opera é fundamentalmente dialógica: meu corpo reage à materialidade do objeto, minha voz se mistura, virtualmente, à sua. Daí o 'prazer do texto'; desse texto ao qual eu confiro, por um instante, o dom de todos os poderes que chamo eu. O dom, o prazer transcendem

62

necessariamente a ordem informativa do discurso, que eles eliminam depois (2000, p. 74).

Dessa forma, as imagens criadas pelo leitor a partir do encontro com o texto são

marcadas pela carga semântica referente ao seu próprio conhecimento prévio, de

maneira a perfazer o ato de caligrafar, ou seja, “recriar um objeto de forma que o olho

não somente leia, mas olhe; é encontrar, na visão de leitura, o olhar e as sensações

múltiplas que se ligam a seu exercício” (ZUMTHOR, 2000, p.86). Um exercício que vai

além do texto, pois ele não somente restaura uma presença que se perdeu com o texto

escrito, como a instaura, figurativamente, em toda sua concretude e carnalidade, por

meio da linguagem. Ou como afirma Merleau-Ponty: “Muito mais do que um meio, a

linguagem é algo como um ser, e é por isso que consegue tão bem tornar alguém

presente para nós” (2004, p. 71).

2.2. – A inscrição da voz na letra

Desde muito, aplicado a um texto literário, utilizam-se locuções que remetem ao

substrato vocal presente na expressão escrita: “Essa página ou esse poema me fala

algo” reforça mesmo essa orientação natural da voz no escrito. Imaginável, por isso

capaz de criar potencialidades virtuais de escuta, a vocalidade em escritura poética é

da ordem do pressentir algo além do texto.

Em situação de leitura, é “no nível do leitor” que se potencializa a percepção de

“uma relação de alteridade que funda a palavra do sujeito” e evidencia o jogo da

experiência literária, de maneira que, “quando a densidade poética se torna grande,

uma articulação de sons começa a acompanhar espontaneamente a decodificação dos

grafismos” (ZUMTHOR, 2000, p. 99). A leitura do texto poético seria, assim, também a

escuta de uma voz, segundo a qual “o leitor, por essa escuta, refaz em corpo e em

espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é

dado, aqui, sobre a página” (ZUMTHOR, 2000, p. 102).

63

A percepção da vocalidade no texto poético, então, estaria carregada de uma

tensão que coloca o leitor entre a voz e a palavra impressa; um jogo que não mostra a

sobreposição de uma à outra, mas deixa claro que “a palavra não é apenas letra”

(MACHADO, 1995, p.219). Sob a perspectiva performática, algum “índice de oralidade”

antecede, subjaz e atua na escrita poética, de modo que as duas modalidades

lingüísticas, menos que ruptura, manifestam consonância para o ato comunicativo, no

aqui e agora da performance do leitor em leitura do texto poético.

“Índice de oralidade” é o que entende Zumthor sobre os traços deixados pela voz

humana nos textos escritos. Nesses, o emprego de verbos como dizer, falar, ouvir, ou

mesmo de alocuções alusivas a comunicações verbais, elevam o escrito “ao estatuto do

falante”, ao mesmo tempo em que denunciam “uma situação de discurso” (1993, p. 38).

Partindo de estudos psicanalíticos, médicos e acústicos, Zumthor define alguns

pressupostos sobre as características corporais da voz, que são perceptíveis em

situação de oralidade ou mesmo no texto escrito: a) ela é “inobjetivável”, uma vez que

só pode ser definida pela relação, distância ou articulação entre o sujeito e o objeto; b)

essa relação é instauradora do sentido de alteridade; c) sua dimensão simbólica é mais

perceptível quanto mais interiorizada; d) por habitar a linguagem de quem fala, a voz

transcende os limites do corpo; e) ela não é apenas reflexo, mas a “própria realidade”; f)

sua escuta presentifica outro corpo e lhe atribui carnalidade, e, pelo tempo que durar

essa escuta, o eu que ouve habita esse lugar que é do outro (2000, p.97).

Considerando a escritura poética como um acontecimento que relaciona

memória e voz, Zumthor afirma que “em vez de uma ruptura, a passagem do vocal ao

escrito manifesta uma convergência entre os modos de comunicação” (2001, p. 114),

com poder para criar uma relação de simbiose entre eles. Assim a escritura se faz um

meio de evocar uma voz que, por sua vez, ligada à tradição, é expressão vocalizada da

memória preservada pela escrita na própria letra, embora dissimulada na materialidade

táctil e visual do texto.

Na reprodução escrita dos contos em estudo, nos quais se identifica o contador

oral, a transposição do suporte midiático estabelece um distanciamento entre as

instâncias narrativa e autoral, não observado na performance presencial. De todo

64

modo, o narrador passa a ser essa voz que, representada na brancura da página,

aspira à concretude na interação com o leitor.

Transpondo o campo da oralidade, essas narrativas transcritas mantêm as

especificidades da literatura oral representada no texto: a fluidez da linguagem e a

expressão da voz viva, como reflexão sonora e experiência corporal - conforme

entendem Merleau-Ponty e Paul Zumthor -, marcadas na página impressa, à espera de

um leitor. Um leitor, cujo “corpo reflexionante” perfaça na leitura a conexão com a

experiência emergencial da fala, o “enlace de som e motricidade; reversibilidade de

ambos e primeira reflexão, a voz conduz à fronteira misteriosa onde irão cruzar-se pela

primeira vez o mundo da expressão e a persuasão silenciosa do sensível” (CHAUÍ,

2007, p.28). A inscrição da performance vocal na letra tem o poder de sugestão para

repercutir a voz no corpo do leitor, provocando outra performance, agora, como

experiência de leitura.

2.3. – Escrituras poéticas e as vozes do texto

Procedendo a uma leitura crítica dos contos orais do corpus em estudo, tem-se a

indicação de que a transposição midiática das narrativas, ou seja, sua mobilização do

contexto oral para a forma escrita, é um procedimento que não se configura apenas

como uma mera transcrição. A supressão do evento de origem do texto antes

vocalizado, e seu transporte para o livro sugerem uma operação um pouco mais

complicada.

O deslocamento do que antes pertenceu ao contexto oral para o suporte da

escrita deixa à mostra não somente indícios das vozes dos contadores orais, como

também evidencia os traços operacionais de sua reprodução escrita. Um procedimento

que, no final, acaba distribuindo a responsabilidade do resultado ao contador/ narrador

e a todo o processo de editoração do material colhido em situação de oralidade:

performance, gravação, transcrição e edição.

À identificação desses procedimentos, segue-se o reconhecimento de uma

espécie de bivocalidade entre a escrita e a linguagem vocalizada dos contadores em

65

performance; uma combinação que resulta num texto que se oferece como transcrição,

mas que deixa transparecer algum propósito de colocar em evidência a própria fala dos

contadores orais que performatizaram as narrativas que constam no volume de Contos

populares brasileiros – Ceará. Ainda que registrados pela letra impressa, a linguagem

desses contos parece se expressar sobre uma linha que se equilibra entre voz e

escritura.

Refletindo sobre os saberes da literatura, Barthes sugere que a “escritura se

encontra em toda parte onde as palavras têm sabor”, e que é o “gosto das palavras que

faz o saber profundo, fecundo” (2002 p. 21). Tendo sob perspectiva as narrativas em

estudo, esse sabor está associado à representação pela letra da entonação da voz que

dá forma aos contos. Suas palavras e marcas dialetais preservadas na transcrição

parecem mesmo colocar o leitor diante de uma escritura que “encena a linguagem”

(2002, p.19), princípio barthesiano do fazer literário.

Assim também pensa Zumthor, que, referindo-se à poesia vocal, pergunta-se:

“Toda literatura não é fundamentalmente teatro?” (2000, p. 22). Para ele, na escritura

poética essa encenação se constrói por meio de uma presença, cujas modulações da

voz causam o efeito de caligrafar, de “recriar um objeto de forma que o olho não

somente leia, mas olhe; é encontrar, na visão de leitura, o olhar e as sensações

múltiplas que se ligam a seu exercício” (2000, p. 86), como a capacidade de figuração e

de uma escuta. “O leitor, por essa escuta, refaz em corpo e espírito o percurso traçado

pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a

página” (2000, p. 102). Disso resulta que a escritura poética é um discurso escrito com

intenção de não ser informativo, porque é compromissado em proporcionar a duração e

o prazer da percepção de algo que transcende a letra.

Na medida em que a poesia tende a colocar em destaque o significante, a manter sobre ele uma atenção contínua, a caligrafia lhe restitui, no seio das tradições escritas, aquilo com que restaurar uma presença perdida (ZUMTHOR, 2000, p. 86).

Relacionando essas reflexões às narrativas da obra em tela, percebe-se que a

noção de escritura caligráfica e, portanto, poética, nela se aplica, pelo seu poder de

resgatar uma presença que se perdeu quando da transposição do oral para o escrito. E

66

isso muito se deve aos sinais que associam voz e escritura. Próprios da fala,

repetições, frases truncadas e traços de variação dialetal estão em meio à organização

textual, além de sinais gráficos, que caracterizam a escrita, de maneira a deixar

representada, na página do livro, a forma pela qual os contos foram vocalizados pelos

contadores. Segundo Zumthor:

a fixação pela e na escritura de uma tradição que foi oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza de uma vez. Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à autoridade de uma voz. (...) Inversamente, o fato de que uma tradição escrita passe ao registro oral não faz sua degradação nem a esteriliza (2001, p.154).

E, dessa forma, sendo a memória a arte da voz e da escritura, como afirma

Machado, observe-se que a palavra que emana de uma ou de outra vem impregnada

do duplo movimento que caracteriza toda tradição. No caso dos contos orais, a

reiteração de um arquétipo sempre vem acompanhada da variação discursiva que o

materializa - “rememoração e improviso” (1995, p.219) - que são duas atividades que

implicam movência.

A tradição, quando a voz é seu instrumento, é também, por natureza, o domínio da variante; daquilo que, em muitas obras, denominei movência dos textos. Menciono-a aqui mais uma vez, ouvindo-a como uma rede vocal imensamente extensa e coesa; como, à distância, literalmente o murmúrio desses séculos – quando não, por vezes, isoladamente, como a própria voz de um intérprete. (...) Todo texto registrado pela escritura, como o lemos, ocupou, pelo menos, um lugar preciso num conjunto de relações móveis e numa série de produções múltiplas, no corpo de um concerto de ecos recíprocos; uma intervocalidade, como a intertextualidade da qual se fala tanto há alguns anos e que considero aqui em seu aspecto de troca de palavras e de conivência sonora; polifonia percebida pelos destinatários de uma poesia que lhes é comunicada – quaisquer que sejam as modalidades e o estilo de performance – exclusivamente pela voz (ZUMTHOR, 2001, p.144).

Entendendo-se, assim, que o conceito de vocalidade, em Zumthor, se define não

só pela historicidade e uso da voz (2001, p. 21), como também pela capacidade de ser

recuperada na e pela escrita. No campo dimensionado pela tradição, toda palavra

poética resulta da intervocalidade, ou seja, do diálogo entre as vozes pelas quais

transitaram os textos vocalizados que viajam pela memória coletiva. Embora

atualizados por uma performance que os presentifica, nesses textos é possível divisar

67

diferentes vozes que dialogam entre si, identificando, na vocalização do contador os

ecos do passado e do presente em confronto.

Se, por um lado, a palavra, enquanto performance, é única e individual, por

outro, sua relação com o passado não a deixa livre para ser original, pois ela é sempre

citação de uma outra performance na qual o poeta se espelhou, e à qual se reporta,

mesmo que agora seja com a sua marca e em outro contexto. Eis uma mobilidade que

aproxima a noção de intervocalidade do conceito de intertextualidade conforme Bakhtin,

já que, para Zumthor, “a movência instaura um duplo dialogismo: interior a cada texto e

exterior a ele, gerado por suas relações com os outros” (2001, p.146).

Essa ligação entre tradição e variação, implícita no conceito de movência de

Zumthor, é determinante para o entendimento da palavra poética como citação, e em

muito faz lembrar a teoria do discurso citado de Bakhtin, embora este tenha-se voltado

para o discurso que se insere na prosa romanesca e não para a palavra viva, como o

faz Zumthor.

Vale lembrar que a polifonia percebida pelo teórico russo, no interior do romance,

é um espaço dialogal que representa a imagem da linguagem humana; espaço esse

criado por um autor, para expressar esteticamente as vozes sociais envolvidas na prosa

romanesca. Conforme entende Machado, “a oralidade em Bakhtin é uma forma de

representação” (1995, p.157), que depende de recursos estilísticos autorais, como

marca individual na criação de uma obra que traz aspectos da fala e da escritura. É a

partir do "skaz", um conceito estudado por Eikhenbaum, ao trabalhar a entonação na

prosa poética, que Bakhtin elabora a definição de estilização da fala inserida na escrita,

estratégia discursiva construtora de bivocalidade. Segundo Machado, no entanto,

não se pode confundir o skaz com as enunciações que procuram representar a fala a partir de alguns estereótipos que forjam o coloquialismo na transcrição escrita do diálogo, criando uma representação gráfica estranha não só à escrita como também à dicção da oralidade, como ocorre nas transcrições da fala de iletrados, tão comum na chamada literatura de massa e de certo tipo de literatura regionalista. Nestas transcrições somente os ‘incultos’ falam, pois somente suas enunciações são rearticuladas graficamente. Parece mesmo que os letrados não operam nenhum reducionismo fonético em suas falas. O skaz, contudo, está além de tudo isso, reportando-se às representações estético-literárias da fala que, no romance, aparecem estilizadas, não se confundindo, portanto, com a mera transmissão. É a fala estilizada que define o skaz e o revela como possibilidade de marcar o tom pessoal da performance oral do autor-narrador ou dos personagens.

68

Trata-se, deste modo, das vozes que entram em pessoa para o discurso do romance, criando a polifonia que tanto fascinou Bakhtin (1995, p.162).

Pelo exposto, não sendo uma estilização, mas a própria voz, que, do contexto

original, foi transportada para as páginas do livro, o corpus em estudo parece não estar,

assim, dentro do que se poderia entender como um objeto apto a ser incluído nas

manifestações literárias contempladas pelo o skaz. Vale, porém, observar que, se no

nível da transcrição pode não haver de fato uma intenção estético-literária de

representação, na dimensão da performance vocal é diferente.

É interessante notar que, na reprodução escrita da voz do contador, há

evidências de que muitas vezes seu discurso se deixa impregnar por vozes outras,

diferentes da sua. Isso é perceptível, por exemplo, na mudança de tom e ritmo entre as

vozes do narrador e das personagens, um recurso do qual se lança mão para dar mais

credibilidade e força ao narrado, e que resulta na configuração tensional de um discurso

dentro do outro, visto que expressa diferentes pontos de vista. Essa estratégia confere

ao contador o caráter de autor de seu próprio discurso enquanto performance, mesmo

porque, “para o intérprete em performance oral, a arte poética consiste em assumir esta

instantaneidade, em integrá-la na forma de sua palavra” (ZUMTHOR, 2005, p. 146).

Observa-se, no entanto, que essa intenção bivocal, que resulta em autoria

discursiva, somente é perceptível devido à editoração ter, intencionalmente, preservado

as marcas da voz e estratégias discursivas do contador na escrita. Um movimento que,

embora não tenha uma orientação escritural e estilística do ponto de vista de criação

individual, conduz a palavra articulada na performance oral à condição de escritura

poética pela possibilidade de instaurar, tanto a imagem do contexto enunciativo, quanto

o discurso narrativo enquanto forma poética. A isso Zumthor denomina: “discurso como

acontecimento” (2000, p. 83), ou seja, uma “inscrição caligráfica” (2000, p.86) que

apresenta a cena da enunciação do discurso como ação, como performance.

69

2.4. O discurso poético e os contos orais

Adotar uma perspectiva discursiva para análise de contos de tradição oral não

significa desconsiderar sua estrutura nem as marcas deixadas pelo tempo no registro

dessa voz emergencial, mas, ao contrário, permite a apreensão dessas marcas,

simultaneamente à percepção das modificações estruturais que foram engendradas

pelo discurso narrativo. Dupla percepção, que capta a ligação entre o passado e o

presente na individualidade da voz .

Na lingüística do discurso, coexistem algumas “correntes pragmáticas, que

sublinham um certo número de idéias-força”. Entre elas, a idéia de que o discurso é

orientado de acordo com a intenção do enunciador, embora ele atente para a reação do

outro; é constituído por um ato de fala que designa uma ação, como contar, por

exemplo; sua inerente interatividade se reporta à existência real ou não do destinatário;

a definição de um contexto está interligada ao sentido do enunciado; ele é assumido

por uma instância que referenda historicamente o que diz; é regulamentado por leis

sociais que o legitimam; seu sentido está relacionado a outros tipos de discurso

(CHARAUDEAU & MANGUENEAU, 2004, p.170).

Isso implica dizer que a discursivização dos contos orais – mesmo se escritos -,

possibilita compreendê-los como um ato de fala, e, deste modo, pode-se lançar sobre

eles uma perspectiva de aproximação que alcança o estatuto do discurso, no que eles

apresentam sob o ponto de vista da intertextualidade, ou seja, na relação que esse

discurso mantém com outros discursos. Mesmo porque, conforme entende Bakhtin:

O objeto do discurso de um locutor, seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista, visões do mundo, tendências. Um locutor não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear (2000, p.319).

Embora a arte poética da palavra, para Bakhtin, esteja associada a uma

perspectiva que distingue prosa romanesca e poesia, na dimensão discursiva “o

enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal” (2000, p.319), onde, por

70

conseguinte, o discurso poético se constitui pela possibilidade de auscultação de vozes

em diálogo intertextual.

Sob essa perspectiva, a associação do conceito de intervocalidade em Zumthor

e intertextualidade em Bakhtin - ainda que se considere o espaço da instância autoral

trabalhado por esse, e a tradição dimensione o espaço coletivo objetivado por aquele -,

há que se observar a noção de polifonia discursiva presente em ambos os conceitos.

No entanto, vale observar que, como medievalista, o objetivo maior da obra de

Zumthor é centrado na análise do texto, tendo em vista a busca da vocalidade que lhe

dá sentido. Para ele, a obra da voz não se define pela oposição entre a fala e a letra,

mas é um valor que caracteriza e consagra autoridade ao texto e o eleva à categoria de

poético, ao mesmo tempo em que revela sua “condição social e individual que assinala

a maneira como o homem se situa no mundo em relação ao outro” (FERREIRA, 1999,

p.71-67).

E dessa forma, a evidência de que o texto em estudo tem um passado oral lhe

confere a historicidade inerente ao ato comunicativo, circunscrito que está ao sujeito

enunciador do texto, o contador/ narrador em relação ao seu ouvite/ leitor.

Isso equivale à tentativa de apreensão da poeticidade do texto, tendo como

pressuposto um certo afastamento da obra enquanto transcrição, embora buscando na

materialidade do transcrito as marcas da oralidade na qual ele (o texto) foi produzido. E,

assim, procede-se a uma aproximação do escrito no que ele traz de perceptível quanto

às suas condições contextuais de pronunciamento.

A intervocalidade ou intertextualidade subjacente à escrita passam a ser, assim,

objeto de estudo, tendo em vista que ambas as modalidades da língua, a falada e a

escrita, mantêm uma com a outra uma estreita relação: é um texto oral que funciona em

zona de escritura, mas que não se furta a voltar novamente à sua origem, a oralidade

(ZUMTHOR, 2001, p.98).

Por se tratar de um discurso elaborado individual e coletivamente, a natureza

social da atividade poética leva a acreditar que “a literatura é uma parte inalienável da

cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto global da cultura numa dada

época” (ZUMTHOR, 2001, p.362). Isso não implica, no entanto, condicionar a voz que

conta os contos orais ao conjunto variado de textos que fazem parte de uma tradição

71

textual, no qual a instância narrativa é considerada apenas como um portador da

tradição; como uma voz não identificada que muitos estudiosos e folcloristas camuflam

sob o conceito de “autor legião” ou informante do folclore, habitualmente relacionada a

uma fonte mais antiga e quase sempre letrada.

Para Zumthor, "à tradição interessa o futuro muito mais do que o passado do

qual, historicamente, é oriunda” (apud SANTOS, 1999, p.103). Essa perspectiva sobre

a tradição possibilita que se possa reservar às vozes que transmitem e recriam os

contos orais, um olhar por meio do qual se possa atribuir valor individual aos

participantes desse processo enunciativo.

Todavia, considerando que esse trabalho tem por objetivo analisar textos escritos

e não orais, não se pode esquecer de que os contadores que antes interagiam em

presença de expectadores agora são mediatizados pela escrita. Embora seja possível

identificar singularidades performáticas entre eles, essa transferência opera um

distanciamento das vozes enunciativas não observável no contexto oral. Ainda que se

possa pensar no resgate da vocalização pela via da escritura, a voz não é mais aquela

do contador escutado e visto em ação.

Se, por um lado, no plano do enunciado escrito os aspectos rítmicos e melódicos

remetem à performance vocalizada que o originou, por outro se constitui na sua

representação pela letra. Dessa forma, embora partilhem a responsabilidade pela

escritura com o coordenador Lima, esses narradores mantêm um laço de quase

simbiose com aqueles a quem representam. Perceptíveis pela via da leitura, suas vozes

são definidas como entidades que procedem de uma situação específica de

comunicação.

Segundo Maingueneau, a cenografia (situação de enunciação) define não

somente as condições do enunciador e destinatário do texto, como ainda “a topografia e

a cronografia a partir dos quais se desenvolve a enunciação” (2001, p. 123). Desse

modo, ela indica também “sua relação com a sociedade e como nessa sociedade é

possível legitimar o exercício da palavra literária” (2001, p. 135), tendo em vista que a

literatura se constitui por um discurso identificável e negociável socialmente. Isso

implica dizer que algumas obras ou gêneros literários trabalham cenários de

enunciação autenticados anteriormente. Dentro do sistema da língua existe, assim, um

72

código de linguagem - no qual se insere o enunciador -, que permite estabelecer a

maneira como ela gera o sentido da obra.

Como o texto em estudo se destina à fruição na leitura, sua enunciação se dirige

a um leitor, a quem é preciso “mobilizar para fazê-lo aderir fisicamente a um certo

universo de sentido” (MAINGUENEAU, 2001, p. 137) e, dessa forma, o código de

linguagem próprio dos contos orais não pode negligenciar sua estreita relação com a

vocalidade em que foi gerado: “alguém, uma origem enunciativa, uma voz que atesta o

que é dito” (2001, p.139). No entanto, considerando um certo distanciamento do sentido

de análise de um discurso oral, pode-se mesmo observar que “o etos de uma obra não

implica que se volte aos pressupostos da retórica antiga, que se considere o escrito

como o vestígio, o pálido reflexo de uma oralidade primeira” (2001, p. 139).

A noção de etos com o qual trabalha a análise do discurso diz respeito à maneira

como o enunciador se posiciona e se relaciona com o que sabe, de maneira que, além

de se apoderar do estatuto de contador, ele se institui como voz e como corpo. Assim,

aqui interessa atentar para o modo como a cenografia gera a voz ou é gerada por ela:

seus tons, seus ritmos, enfim, a vocalidade assumida por uma instância que não é de

fato a voz original, posto que o texto é escrito e impresso, mas que funciona como sua

representação sígnica, capacitada a “criar carne” (ZUMTHOR, 2000, p. 94) no ato de

leitura. Esse contador/ narrador ou enunciador do discurso seria, assim, um “avalista”

da própria vocalidade, cujo caráter, estratégias enunciativas e corporalidade são

resgatadas pelo leitor, que se constitui, por sua vez, como um pólo situado,

simultaneamente, fora e dentro do texto.

Dessa forma, a construção dessa corporeidade “associada a uma compleição do

corpo do fiador, inseparável de uma maneira de se vestir e se movimentar no espaço

social” (2001, p. 139) corresponde ao etos do contador/ narrador: seu jeito de habitar e

de se movimentar no espaço social que lhe cabe, e que é validado na instância da

recepção, ou, como prefere Zumthor, da percepção. Para ele, na imaginação do leitor, a

figuração desse corpo e da voz que dele emana, por meio da palavra, é o que

determina a essência do ato discursivo poético, princípio fundamental do fazer literário.

Considerando o corpus proposto, vale observar que, pela via discursiva, o

planejamento dessa figuração é transpassada pelas circunstâncias de sua enunciação.

73

Para o leitor em performance, a obra se constitui por meio de uma percepção dupla: de

seu cenário enunciativo que emerge da cena viva, e do discurso narrativo que se deixa

atravessar por essa cenografia de tons e pelas marcações escriturais, tais como:

pontuação, corte e distribuição na página.

Ao invés de uma leitura pautada pela estabilidade característica de um pacto

discursivo referente a uma forma preexistente, como é o caso dos contos orais, o leitor

é instigado a operar em dois níveis de leitura que se interpenetram. Assim, do cenário

enunciativo resgata a performance vocal do contador e do seu entorno, como também

do conteúdo narrativo, ao mesmo tempo em que toma conhecimento das intervenções

operadas pela transcrição, que, afinal, torna possível a decifração do texto por meio da

leitura.

Se pelo desempenho do suporte oral o texto se apresentava quase em bloco, ou

seja, com separação de palavras gerada pelo fluxo da oralidade, mas cujo

entendimento implicava um bom conhecimento da língua, no texto impresso essa

separação e divisão em parágrafos, mais a pontuação própria da escrita, se tornam

imprescindíveis, posto que o leitor não mais participa do espaço/ tempo do produtor da

performance.

74

III – Contos do Ceará em análise

“Qual é o segredo da coletânea? É que com ela saímos da abstrata idéia do ‘povo’ narrador e

colocamo-nos diante de personalidades de narradoras e narradores bem distintos”·

(Ítalo Calvino)

3.1. Contos populares brasileiros – Ceará e a arte da palavra

Desconexo, redundante ou elíptico, é como se costuma caracterizar um

enunciado oral, e, muitas vezes, isso tem justificado a forma como se reescrevem os

depoimentos recebidos por essa via, ao mesmo tempo em que, em parte, deixa à

mostra o caráter ideológico que associa a escrita à literatura. Embora a arte da palavra

possa prescindir do símbolo gráfico, é curioso notar como mesmo estudiosos do conto

tradicional, às vezes deixam transparecer algum juízo de valor ao estabelecer relações

entre o que se recebe da tradição oral e o que se escreve a partir dela. De acordo com

essa observação, vale notar a apresentação feita por Regina Machado, na contra capa

do livro Contos de Espanto e Alumbramento, de Ricardo Azevedo (2005):

Descrevendo as angústias do personagem ao passar por obstáculos, as imagens sensuais dos encontros amorosos, tornando presente sua autoria nos comentários durante o texto, Ricardo Azevedo imprime intenção literária ao relato originalmente anônimo e ancestral, dignificando e reverenciando o que se chama de “literatura popular” (MACHADO in: AZEVEDO, 2005).

A idéia, talvez preconcebida, de que a arte literária como intenção autoral

dignifique o que se conhece por literatura popular, pode esconder o fato de que “a

poesia oral e a escrita encontram-se num eixo comum que é o próprio significado de

poesia” (FERNANDES, 2007, p. 25). Mais ainda, pode camuflar a noção mais

abrangente e democrática da arte verbal como uma manifestação que atingiria todos os

extratos sociais, restando saber, no entanto, de que modo.

No caso dos contos que compõem a obra em análise, a escrita é o meio pelo

qual se tem acesso à parte da arte verbal das comunidades visitadas pelo “Projeto

Conto Popular e tradição Oral no Mundo de Língua Portuguesa”. Assim, é por meio da

75

letra que os contos da obra citada se apresentam como transcrição da narração vocal

dos contadores cearenses, levando-se em conta que o enunciado dessas narrativas

pode ser entendido como um acontecimento que se constitui como um ato de fala e,

portanto, sujeito a normas, sejam sociais ou gramaticais.

Visto como um produto discursivo poético, uma vez que possui qualidades para

“gerar seus efeitos da presença ativa de um corpo” (ZUMTHOR, 2000, p. 41), sua

origem está relacionada ao sentido segundo o qual foi performatizado e resulta num

objeto que se oferece à apreciação de um receptor.

Na medida em que o escrito se oferece como o meio de resgate da voz que lhe

deu origem, sua fruição se encontra em latência como uma potencialidade que aguarda

o momento da leitura para ser experienciado, como um objeto de percepção a ser

revelado. Construído pela imaginação, esse objeto tem, também, um caráter físico,

posto que é fruto da reverberação no corpo desse leitor em performance, a partir do

que sugere a letra.

Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para nos dar prazer. É este, a meu ver, um critério absoluto. Quando não há prazer – ou ele cessa – o texto muda de natureza (ZUMTHOR, 2000, p. 41).

3. 2. A transcodificação da linguagem

A transposição da narração dos Contos Populares Brasileiros - Ceará para o

código da escrita implica algumas alterações do texto original. Descontextualizadas, as

narrações ouvidas e gravadas pelos pesquisadores do projeto Conto Popular no Mundo

de Língua Portuguesa perdem a entoação, o gestual e todo o entorno das

performances dos contadores das histórias colhidas. Embora se possa pensar no

resgate das atuações dos narradores por meio da percepção na leitura, um fato do qual

não se pode fugir é aquele de que a passagem do oral para o escrito rearranja os textos

e os apresentam sob outra perspectiva. Ainda que não se lamente a perda de suas

características de vocalização, já que foi objetivo do projeto mantê-las, é importante

dizer que são elas que dão o tom para esta análise, atenta para a transformação que

76

impõem ao texto, inicialmente oralizado; são marcas que o integram às regras da

escrita. Acrescidos à materialidade do objeto livro, que, afinal, é o seu suporte, os

contos apresentam uma série de marcas gráficas específicas da escrita, demonstrando

que não se trata da própria voz dos contadores, mas de sua representação. Se possível

é flexionar a voz e dar-lhe entoação de vírgula, interrogação, ou ainda recorrer ao

gestual para fazer sinal de aspas, vale lembrar que alguns recursos de pontuação da

forma escrita da língua (travessão, dois pontos e outros mais) não podem ser

produzidos senão por ela.

Vale observar, no entanto, que, se a representação da voz dos contadores tenta

capturar suas diferentes performances no livro – as quais, de outro modo, se perderiam

para os que não tiveram acesso às suas presenças -, também retira deles toda a

responsabilidade sobre a representação das narrações. Dessa forma, há que se

considerar a interferência de todo processo editorial nas vozes que transmitem esses

contos. Embora, em sua origem, talvez se pretendesse neutralidade na transcrição, a

escolha por destacar graficamente as evidências sócio-dialetais das vozes dos

contadores, não impede que se desloque a preocupação com a forma para se pensar,

um pouco que seja, sobre o processo que resultou na escrita que mediatiza os contos.

Conforme o anteriormente exposto, tendo em vista o propósito para sua

retextualização, a recolha, transcrição e posterior editoração dos contos, resultaram em

narrativas híbridas, que, simultaneamente, apresentam aspectos da fala e da escrita.

Produzidas a partir de coletas e transcritas de maneira a tornar “o texto o mais limpo e

fiel possível”, “para facilidade do leitor” (CPBC, p. 26), o que, primeiramente, chama a

atenção na edição final do livro são algumas fotografias de contadores, que antecedem

a coletânea de textos. Embora essas imagens não sejam o objetivo deste trabalho, e,

mesmo não contando com a foto de todos, é impossível não pensar nelas como um

efeito sugestivo das figuras corporais desses narradores.

Um aspecto que vale a pena também ressaltar é a identificação do contador que

performatizou cada história narrada do livro. Em número de 90 contos e narrados por

41 contadores, na impossibilidade de analisar todos, optou-se por aplicar o estudo da

“retextualização” (MARCUSCHI, 2000, p.45) na história narrada por Irene Jucá Bezerra,

“João e Maria” (CPBC, 2003, p. 117).

77

3.3. “João e Maria”

A transcrição da fala para a escrita pressupõe uma série de procedimentos

reguladores. Tendo como referência o “fluxo das ações“ (MARCUSCHI, 2000, p. 72),

em “João e Maria”, sucedem-se outros tantos atos, como ouvir, gravar, tornar a ouvir,

transcrever, retextualizar e editar; não esquecendo que o ato de escutar sempre implica

compreensão, e, portanto, interpretação. Chegar a uma versão escrita do que antes foi

vocalizado, mesmo preservando seu conteúdo, significa operar interferências com

vistas a substituir, reordenar, ampliar, reduzir, ou, até mesmo, influenciar no que diz

respeito ao estilo, já que, muitas vezes, os textos de base acabam sendo alvos de

reformulação.

O conto “João e Maria”, que, sob a coordenação de Lima foi retextualizado, não

sofreu reformulação no sentido de adquirir os aspectos neutros da escrita, que procura

camuflar as marcas da voz, em prol de maior unidade ou formalidade. Ao contrário, na

transposição de um suporte a outro, as expressões orais próprias da linguagem falada

foram mantidas, o que possibilita a ilusão de que se está na dimensão de produção do

discurso narrativo, ou seja, em situação de oralidade. Todavia, por pretender ser uma

representação da vocalização performática da contadora Irene Jucá Bezerra, na

linguagem dessa narrativa se observa tanto a fragmentação e o envolvimento, que

caracteriza a situação de espontaneidade da performance vocal em presença, quanto o

distanciamento da escrita. Essa dupla aparência é substancialmente provocada pelos

aspectos que marcam a diferença entre o texto em situação de oralidade e de escrita.

Algumas marcações típicas da fala são perceptíveis na versão escrita de “João e

Maria”, tais como:

- repetições: “Sempre iam e voltavam. Sempre iam e voltavam” (CPBC, p. 117, grifos

nossos).

- hesitações: “E ela preparou a festa e ajeitou muita carne e tudo... Fez uma

fogueira...” (CPBC, p. 117).

- fala interrompida: “disse que ia criar meus netim e ficar com eles pra... que era os

netim dela” (CPBC, p. 117).

78

- marcadores conversacionais lexicalizados: “E pra não se perderem, eles iam

soltando pipoca no caminho, não é?” (CPBC, p. 117).

- marcadores conversacionais não-lexicalizados: “Eles eram pequeninim e sempre

saiam pros matos, né?” (CPBC, p. 117).

- autocorreções: “E eles não acertaram para voltar pra casa, se perderam nas mata e

ficaram andando, andando sem rumo, procurava pra todo canto e não encontravam a

volta... o lugar de saída pra vim pra casa” (CPBC, p. 117).

- alterações fonéticas: “Meus netim, bota o dedim na porta pra mim ver como é que

vocês tão, se tão gordim...” (CPBC, p. 117).

Da mesma forma, alguns aspectos típicos da escrita são detectados, como:

- título

- paragrafação

- introdução de pontuação

- atribuição de autoria

- demarcação de meio e fim

Com base nessas observações, e frente aos sinais identificadores da

retextualização de “João e Maria”, não se pode negar a interferência que possibilitou

sua editoração. Falar em nome da contadora significa também considerar o processo

que viabilizou o transporte de sua voz para o livro. No entanto, a opção por manter as

pegadas do seu discurso em meio às convenções da escrita, é uma estratégia que visa

aproximar-se de sua performance, aspirando a ser voz.

A identificação da dupla elaboração de "João e Maria" leva à reflexão sobre o

que difere o contador original, da instância narrativa que se apresenta mediada pela

escrita. Ainda que se admita vinculação entre eles, a constatação da ausência da

contadora é um fato. Ela é uma presença perdida. Sua substituição orientada pelas

regras da escrita é um meio de traduzir e planificar sua fala, mas resulta numa escritura

híbrida que é, concomitantemente, letra e voz, de modo que uma deforma e é

deformada pela outra. Não sendo uma nem outra, mas as duas ao mesmo tempo, a

resultante da vocalização de Bezerra e da retextualização de Lima (2003) é um corpo

79

caligráfico que impele o significante para além do texto, cujo significado é a escuta de

uma voz que presentifica a enunciação. Sobre essa percepção, Zumthor afirma que:

a escrita só pode sugeri-la, a partir de marcas deíticas, frágeis e freqüentemente ambíguas, senão artificialmente apagadas. Essa oposição se manifesta, do lado do ouvinte-expectador e do leitor, no nível da ação ocular: direta, percepção imediata, por um lado; visão exigindo decodificação, portanto secundária, por outro: olhar versus ler. O olhar não pára de escapar ao controle, registra, sem distinguir sempre, os elementos de uma situação global, a cuja percepção se associam estreitamente os outros sentidos. Esses elementos - esses traços visíveis, essas coisas -, ele os interpreta: registra os sinais que nos dirige a 'realidade' exterior e fornece espontaneamente uma compreensão emblemática, na maioria das vezes fugidia e logo recolocada em questão. A vista direta gera assim uma semiótica selvagem, cuja eficácia provém mais da acumulação das interpretações do que de sua justeza intrínseca (2000, p. 84)

Mesmo considerando o traço interpretativo dessas reflexões, a objetivação do

texto sob uma perspectiva que busque sua instância narrativa, vai sempre se deparar

com essa dualidade que, de certo modo, é desastibilizadora. Não sendo Bezerra nem

Lima - porque os dois pertencem à etapa anterior à publicação -, o narrador é, assim,

uma instituição também híbrida, que assume, simultâneamente, caracteres de um e de

outro. A noção dessa hibridização é o caminho que leva à marca fundadora do texto,

que é a oralidade de um narrador que deseja gritar sua origem, mas é, em última

instância, literalmente de papel.

Sob a perspectiva da retextualização, esse caráter híbrido não compromete o

estatuto do narrador mas, pelo contrário, lhe imprime cor, profundidade e ritmo. Os

"traços visíveis" sobre a folha são como virtualidades potenciais de animação e resgate

de um espaço performático, no qual a instância narrativa ganha status de contador,

embora não o seja mais. Parte de uma montagem que traduz os aspectos fônicos da

fala, por meio da letra, ele é, agora, a imagem do retorno possível à voz.

A dramatização da linguagem

A inserção de elementos que simulam a entoação da fala deixam à mostra uma

voz, cujos recursos de envolvimento discursivo manifestam-se pela ocorrência de dois

80

níveis de linguagem: do narrador e das personagens. Para isso, o discurso narrativo

utiliza-se de:

- discurso direto com verbos de elocução: “Quando ela pedia: - Meus netim, bota o

dedim...” (CPBC, p. 117).

- discurso direto com dois pontos e travessão: “Eles disseram: - É.” (CPBC, p. 117)

- discurso indireto: “E ela pediu pra botarem, e eles botaram foi o dedim.” (CPBC, p.

117).

Vale notar que, a despeito da predominância do discurso direto, por vezes, o

discurso do narrador chega a se imiscuir no discurso da personagem, confundindo as

duas vozes: “E quando chegaram, não era, era uma velhinha que morava lá. Ela ficou

muito animada com eles, disse que ia criar meus netim e ficar com eles pra...” (CPBC,

p. 117).

Truncamentos fonéticos: “... e sempre saíam pros matos, né?” (CPBC, p. 117);

fonemas substituídos ou eliminados: “E ela disse... e todo dia queria que mostrassem o

dedim, se tavam gordim, que era pra ela matar e comer, né?” (CPBC, p. 117), são

características de incompletude da linguagem oral, que não prejudicam o entendimento

do discurso; pelo contrário, enfatizam-no.

Decorrente da variante oral da linguagem sertaneja, essa substituição do sufixo

inho por im desloca a acentuação tônica para o final da palavra, reforçando a expressão

a ser comunicada. Intensificado pela colocação de sinais gráficos, às vezes

acompanhados de locução interjetiva: “- Ah! Como vocês tão gordim” (CPBC, p. 117),

esse procedimento é responsável pela marca discursiva mais evidente do narrador que,

auxiliado pela pontuação, sugere a cadência melódica da sua voz.

Nessa recriação, observa-se que a repetição desse fenômeno prosódico da fala

funciona como um recurso fonológico que transmite um modo de dramatizar a

linguagem. Isso se pode observar na maneira como o narrador intensifica o diminutivo,

quando, por meio de seu discurso representa a voz da velhinha que engana e devora

crianças: “- Meus netim, bota o dedim na porta pra mim ver como é que vocês tão, se

tão gordim...” (CPBC, p. 117). A organização do som de seu discurso, pela assonância

da vogal /i/ e da aliteração da consoante /m/, configura-se como uma tentativa de

intensificar a sugestão de sedução na voz da personagem.

81

Note-se que esta é uma estratégia que se potencializa com o recurso da função

fática, muito comum na relação entre falantes. Ao perguntar várias vezes, “não é?” ou

“né?”, o narrador procura manter sob controle o receptor, e com isso confere mais

destaque e vivacidade ao seu discurso, porque ressalta o elo entre a voz que conta e

aquele a quem se dirige a narrativa. Essa idéia de alteridade, assim explícita, outorga

ao texto escrito o movimento e a energia da palavra viva; uma associação entre a

escrita e a percepção da voz, que resulta num grau de dramatização da língua, da qual

não se pode mais falar apenas em escrita, mas escritura, conforme Barthes. Ao mesmo

tempo, aqui estão as marcas do que se poderia chamar de poético, de acordo com

Zumthor, para quem o texto poético exige o empenho sensitivo do corpo do leitor.

Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. E se nenhuma percepção me impele, se não forma em mim o desejo dessa (re)construção, é porque o texto não é poético (2000, p. 64).

“João e Maria” e o esquecimento

Representação da palavra viva, o conto “João e Maria” apresenta o momento de

presentificação da performance vocalizada, de um tema já tratado nas mais diferentes

culturas. Isso implica a inserção do narrador do conto numa rede de variações de

performances, embora deslocadas entre si, pelo espaço geográfico e tempos diversos

em que se realizam.

Contada e recontada, a história de “João e Maria” tende ao infinito inacabamento

e movência a que estão sujeitos os trabalhos relativos à memória. De modo geral, não

se pode esquecer que os contos orais, embora circunscritos entre as manifestações

literárias da tradição, sob a perspectiva da performance, são reconstruídos a cada

evento discursivo. Disso resulta que, ainda que lancem mão de fórmulas narrativas

preexistentes, espontaneamente, os contadores as revestem com seus artifícios e

82

estratégias discursivas, tudo acrescido da própria capacidade de improvisação. E,

assim, mais do que na forma, a unidade do conto de tradição oral está na multiplicidade

de performances que desencadeam (FERREIRA, 2004, p. 112).

Disso resulta a inexistência de um texto autêntico, que seja o guardião de um

modelo original e refratário a nuances ou mutações (ZUMTHOR, 1997a, p. 266).

Levando-se em conta a habilidade de improvisação, em cada contador há uma

“consciência lingüística” (FERNANDES, 2007, p. 239) do arquétipo que deseja

transmitir no aqui e agora de sua performance.

A liberdade quanto à manifestação no tempo e espaço dos contos de tradição

oral, faz com que eles se movam dentro de uma multiplicidade de sentidos criados e

recriados, de modo que as interpretações são também moventes (ZUMTHOR, 1997a, p.

272). Isso se explica pelo fato de cada interpretação estar sujeita às interferências do

meio em que se manifesta. Cada contador mistura à consciência lingüística que possui

de seu arquétipo algo da experiência vivida como indivíduo e como ser social.

Enquanto obra da tradição que transita pela voz, é com a memória que os

contos orais estão diretamente relacionados. Tendo a perspectiva de um individuo

específico, no caso, o contador, com todas as suas implicações geográficas, históricas

e sociais, além do comprometimento com os atos de lembrar para contar, é nessa

movência e nomadismo da voz que reconta, que é possível identificar os espaços de

recriação, mas também de vazios, já que “a memória só existe ao lado do

esquecimento” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.77).

Segundo Ferreira, no conto popular é necessário diferenciar os tipos de

esquecimento:

Há o esquecimento profundo, a incapacidade absoluta de lembrar, aquilo que se esgarça, se perde ou por algum motivo se sepulta, não deixando que emerja para a narrativa, e há o que desliza, sob os mais diversos pretextos, nas seqüências narrativas, situações em que se mascaram, eufemizam ou simplesmente se omitem fatos ou passagens (2004, p.92).

Embora não se objetive um estudo verificativo na acepção do termo, aplicando

essas reflexões à atuação do narrador de “João e Maria”, pode-se afirmar que a

83

retextualização de sua performance flagra o momento em que sua voz narrativa deixa

de contemplar alguns elementos do conhecido conto.

Ainda que do ponto de vista da performance não se considere a existência de

uma narrativa canônica, é fato que “João e Maria” chama à memória um esquema de

conto já instaurado coletivamente. Tanto Perrault (O Pequeno Polegar) quanto os

irmãos Grimm (João e Maria) trataram do tema da criança abandonada pelos pais

pobres que não têm como alimentá-la e que depois volta feliz ao convívio familiar, após

derrotar as forças maléficas que impediam seu retorno. Se na versão de Perrault os

pais até hesitam quanto a deixá-los sozinhos na densa floresta, na história dos Grimm a

vontade da madrasta é determinante para o abandono. De todo modo, os dois contos,

muito depois de serem registrados pelos autores, foram apontados como pertencentes

ao tipo 327, de acordo com o sistema padronizado por Antti Aarne e Stith Thompson,

que conceitua “João e Maria” como o tipo de conto em que os protagonistas enfrentam

adversários poderosos e sobrenaturais. Vale considerar, no entanto, que, antes desses

registros, o tema de “João e Maria” circulou entre os camponeses franceses dos

séculos XVII e XVIII. Mais do que fantasia e mistério, a narrativa deles refletia o estado

de pobreza em que viviam, além da naturalidade com que encaravam a alta

mortalidade infantil da época (DARNTON, 1984, p. 57).

Considerando a dificuldade de identificar, dentro do sistema comunicativo dos

contos orais, a fonte herdada pelo narrador - mesmo porque essa busca não é objetivo

deste trabalho -, tratar do esquecimento relativo à sua performance pode remeter à

estrutura da narrativa transmitida por ele. A visão primeira do título de seu conto leva a

uma expectativa específica de construção poética preexistente. Vale lembrar que, no

imaginário coletivo, habita uma fórmula de “João e Maria” que se constitui por

segmentos narrativos tais como: o abandono dos pais, o encontro da casa feita de

guloseimas, a sedução da bruxa que deseja comê-los, o tratamento dado a eles para

que engordem, o castigo imposto à bruxa e o retorno triunfante à casa da família, com

os tesouros roubados do lugar em que estiveram presos. Sob a perspectiva proppiana,

um esquema narrativo que começa com uma falta que, para ser reparada, deverá

conduzir seus heróis a um caminho de provas até o triunfo final. Uma estrutura na qual,

discursivamente, está previsto o motivo do abandono (a falta de comida); a estratégia

84

de marcar o caminho com migalhas de pão, a seqüência da morte da bruxa pelo fogo,

além da volta para casa dos heróis que, com as riquezas tiradas da bruxa morta, serão

a fonte para o resgate financeiro da família.

No conto em análise não acontece assim. A narrativa começa com os irmãos já

acostumados a saír “pros matos” (CPBC, p. 117); não consta o motivo pelo qual eles se

perderam, e as personagens se resumem aos dois irmãos e à bruxa. Não se trata de

identificar no discurso narrativo elementos em concordância ou não com o esquema

preestabelecido, mas é instigante refletir sobre os lapsos de memória do narrador: que

sentido teriam? Ou, ainda, qual o efeito causado na organização da narrativa poética?

A resposta sobre a possibilidade de uma “brecha crítica” entre o que o contador

escutou e a narração no livro não faz parte do recorte desta pesquisa, mas não se pode

esquecer que o sistema de linguagem humana compreende a oposição entre falar e

escutar, e que escutar não é o mesmo que ouvir, de modo que, “o fenômeno da

comunicação não depende de quem transmite, mas do que se passa com quem

recebe” (MATURANA apud: ECHEVERRÍA, 1997, p.144).

De todo modo, não obstante a pertinência das reflexões acima, tratando-se de

uma pesquisa cuja visada é literária, saber se houve algum ruído na recepção de “João

e Maria” é menos interessante do que entender o discurso narrativo. Um discurso que,

embora pertença à Bezerra enquanto performance presencial, é, ao mesmo tempo,

representação da vocalização de um conto retirado de uma reserva de narrativas que

pertence à tradição. Remeter ao dispositivo que liga a tradição à voz que reconta é criar

sobre o que já existe, além de uma forma de expressar, na própria matéria narrativa, as

lacunas que implicam esquecimento mas também a oportunidade de recriação.

Sob a perspectiva da performance independente, em que a atuação é decorrente

da espontaneidade e do simples prazer de contar para aqueles com quem se comunga

a experiência de estar junto, embora partindo de um arquétipo conhecido, o contador

sabe que a improvisação contribui para a transmissão. Isso explica o tom de sincera

naturalidade com que o narrador assume o esgarçar da própria memória: “Aí, um dia foi

destruída as pipoca. Não sei se alguma coisa comeu ou que alguém tirou” (CPBC,

p.117).

85

O efeito do lapso não se faz sentir na representação de sua fala porque não há

quebra do curso narrativo, que continua: “E eles não acertaram para voltar pra casa, se

perderam nas mata e ficaram andando, andando sem rumo...” (CPBC, p. 117). Note-se

que nesse mesmo segmento o narrador utiliza a fórmula de duplicação do vocábulo

(andando, andando), provocando a idéia de construção sonora do ato de andar muito e

“sem rumo”.

A não retenção da forma anterior e a falta de detalhamento descritivo não

impedem, porém, que a solução naturalmente encontrada pelo narrador dê conta de

uma narrativa com características singulares. A expressividade da representação da

fala, aliada à espontaneidade com que insere elementos referentes ao contexto de

origem da performance (rabinho de lagartixa no lugar de dedo; pipoca ao invés de pão)

suplantam a perda da dinâmica já conhecida do conto e acrescenta-lhe graça particular.

Quase ao final da narrativa, com a bruxa já dentro da fogueira, observe-se que o estado

de dramatização de sua linguagem atinge graus elevados: “- Água, meus netim! E eles

gritavam: - Azeite, senhora vó!” (CPBC, p. 118). É tão convincente do ponto de vista

discursivo, que só como registro vale a pena lembrar a declaração de mais um

esquecimento:

“E ela preparou a festa e ajeitou muita carne e tudo... Fez uma fogueira... E tinha um lugar lá que era pra eles irem dançar, não é? E ela preparou lá aquele lugar – não sei se era uma tábua, o que era – preparou pra eles irem dançar lá, né? (CPBC, p. 117).

Na representação desta performance, nota-se que foi retido o núcleo básico de

“João e Maria”. Depurado das personagens (os pais) que detonariam a situação inicial

de conflito (o abandono), o motor da narrativa fica por conta da destruição das pipocas

(Aí, um dia foi destruída as pipoca), que corresponde ao elemento morfológico que

representa o desequilíbrio. Essa desarmonia (o afastamento de casa) requer ações

dos heróis (João e Maria) no sentido de superá-la. Andar e procurar “o lugar de saída

pra vim casa”, faz com que os heróis dêem de encontro com a bruxa, e é nessa esfera

de ação que eles acabam se submetendo às provas que determinam o nó principal da

narrativa: vencer a bruxa e voltar para casa. É aqui que o discurso do narrador indica

que a redução de informação descritiva é resultado do processo natural de interação

86

vocal, que privilegia a narração dramatizada. (vale dizer: corporificada, presentificada; o

mostrar dominando o contar, distante e mediado). Isso explica a alta incidência de

verbos de ação (andar, procurar, ver, chegar, dizer, comer, etc.), utilizados por ela.

As ações e os dêiticos trazem a linguagem para o tempo dos interlocutores e

incutem energia ao texto, ancorado pelo procedimento do narrador de inserir diálogos

entre as seqüências narradas. Um processo que resulta numa performance com poder

de materialização e carnalidade do que está sendo contado, não deixando de

evidenciar, também, a relação entre o arquétipo da tradição e a reatualização recriadora

da nova versão.

Esse aspecto do sentido poético do conto oral mostra o poder criador do

esquecimento para a poesia e a literatura, cujo suporte é dimensionado pela memória e

pela tradição. De acordo com Zumthor:

nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando uma parte do que elas acumularam de experiência, no dia-a-dia. A seleção drena assim, duplamente, o que ela criva. Ela desconecta, corta o contato imediato que temos com nossa história no momento que a vivemos. Ela nos afasta daí a pouco, permitindo que se crie uma perspectiva (mesmo míope) ao tempo em que se instaura uma espécie de repouso paradoxal. Suspende o real empírico, o efeito hic et nunc, se não destaca daí o ego. Mas, também na multiplicidade do que seria urgente talvez registrar na memória coletiva, ela recupera ou determina o que, do vivido, foi e é, e tem chances de permanecer funcional (1997b, p. 15).

87

3. 4. "Gata Borralheira" e "Maria Borralheira"

Herança cultural que remonta à ancestralidade do homem, os contos de tradição

oral foram inventados não somente no sentido de transformar experiências coletivas ou

individuais em entretenimento. Estimulantes à imaginação, eles trazem também

componentes que favorecem o desenvolvimento intelectual e emocional dos envolvidos,

além de códigos comportamentais reguladores de convivência social. Suas mensagens

sobre a inevitabilidade das dificuldades da existência são como recados guardados pelo

tempo, de que enfrentá-las vale a pena, e de que, no fim, tudo se resolve.

Vale ressaltar que suas histórias de lutas e enfrentamentos de obstáculos

revelam uma evidente similaridade de experiências vividas por povos diferentes e até

mesmo distantes um do outro: um fato que, do ponto de vista da sua estrutura básica,

aponta a repetição de uma mesma narrativa, mas deixa à mostra, também, a grande

variedade de versões de uma mesma história. Relacionando esses contos orais ao

contexto onde eles ocorrem, leia-se o excerto do texto abaixo:

Ou seja, a partir de um mesmo esqueleto, cada povo e cada momento histórico elegeu e transformou elementos diferentes à maneira de um vestido que reflete o caráter ou as raízes de um povo; que se transforma e se adapta ao tempo que lhe confere viver, mas que acaba cobrindo um mesmo corpo11 (LLUCH, 2004, p. 139).

Partitura provisional é como Gemma Lluch (2004) chama o processo do qual

emerge cada narração de um arquétipo da tradição oral. Por se tratar de um construto

social e coletivo, que se constitui discursivamente, a transformação que lhe caracteriza

a forma se renova a cada performance, determinando-lhe outros elementos, outras

palavras.

Com o conto Cinderela não é diferente. Considerada muito antiga, essa narrativa

teve na China do século nove d.C. um provável primeiro registro. Pela infinidade de

reinvenções, este conto esvazia a discussão entre alguns estudiosos, sobre a natureza

11 Tradução nossa de: “Es decir, a partir de un mismo esqueleto, cada pueblo y cada momento histórico ha elegido y transformado elementos diferentes a la manera de un vestido que refleja el carácter o las raíces de un pueblo; que se transforma y se adapta al tiempo que le toca vivir, pero que acaba cubriendo un mismo cuerpo” .

88

do material dos sapatos da heroína. Se de pele, de vidro ou de cristal; da China, onde a

cultura antiga valorizava os pés, ao Egito, que registrou no século III o uso de chinelos

de “material precioso” (BETTELHEIM, 2005, p. 277), constata-se que esse conto

perpassa culturas e épocas muito variadas.

Ye-hsien, Cendrillon, Ciderella, Ashenputtel, Rashin Coatie, Mossy Coat, Kattie

Woodencloack, Cenerentola, La Cinicienta, Sapatinhos de Vidro, ou Borralheira são

algumas narrativas que expressam laços de parentesco e fôlego de sobrevivência

reiterativa do conto tradicional, que, no Brasil se conhece por Gata borralheira.

Um exemplo de relato maravilhoso circunscrito no todo dos contos de tradição

oral, Gata borralheira trata da rivalidade nas relações familiares e do rebaixamento

imposto a um dos membros, que viverá toda sorte de humilhações até o triunfo final.

Acompanhada e auxiliada por doadores e objetos mágicos, essa trajetória da

personagem, do borralho da casa de sua madrasta até o palácio real, não tem uma

versão original nem tampouco definitiva, posto que, à medida que contada ou transcrita,

à narração são introduzidos aspectos sociais e geográficos de sua época. Dessa forma,

diante dessa instabilidade das instâncias tanto autoral como narrativa, embora não se

aplique aos contos orais a mesma noção de autor assumida na contemporaneidade,

não se pode dizer simplesmente Gata borralheira, mas é preciso saber de quem.

Da oralidade à escritura, ao longo dos séculos, “Cinderela” ou “Gata Borralheira”

tem incorporado à sua estrutura aspectos pertinentes à época de sua manifestação. “La

Petite Annette”, uma das suas prováveis versões orais, conhecida pelos famintos

camponeses franceses dos séculos XVII e XVIII, trazia em destaque um forte

componente relacionado à subnutrição.

Comer ou não comer, eis a questão com que os camponeses se defrontavam, em seu folclore, bem como em seu cotidiano. Aparece em inúmeros contos, muitas vezes em relação com o tema da madrasta má, que deve ter tido especial ressonância em torno às lareiras do Antigo Regime, porque a demografia do Antigo Regime tornava as madrastas figuras extremamente importantes na sociedade das aldeias. Perrault fez justiça ao assunto, em Cinderela, mas negligenciou o tema correlato da subnutrição, que se destaca nas versões camponesas do conto. Numa versão comum (La Petite Annette, conto tipo 511), a madrasta má dá à pobre Annette apenas um pedaço de pão por dia e faz com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e indolentes irmãs postiças vagueiam pela casa e jantam carneiro, deixando os pratos para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette está a ponto de morrer de inanição, quando a Virgem Maria aparece e lhe dá uma varinha mágica, que produz um magnífico banquete, todas as vezes em que

89

Annette toca com ela uma ovelha negra. Não demora muito e a menina está mais gorducha que suas irmãs postiças. Mas sua beleza recém-adquirida – e a gordura corresponde à beleza, no Antigo Regime, como em muitas sociedades primitivas – desperta as suspeitas da madrasta. Através de um artifício, a madrasta descobre a ovelha mágica, mata-a e serve seu fígado a Annette. Annette consegue, secretamente, enterrar o fígado e ele se transforma numa árvore, tão alta que ninguém consegue colher suas frutas, a não ser Annette; porque baixa seus ramos para ela, sempre que se aproxima. Um príncipe de passagem (que é tão guloso como todos os demais no país) deseja tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando casar uma de suas filhas, a madrasta constrói uma grande escada. Mas, quando vai experimentá-la, cai e quebra o pescoço. Annette, então, colhe as frutas, casa-se com o príncipe e vive feliz para sempre. (DARNTON, 2006, p.51).

Embora não atenda ao tema da subnutrição presente nas narrativas dos

camponeses franceses, “Cinderela”, de Perrault, é considerada pela crítica uma obra

canônica. Mas não se pode negar, no entanto, que os aspectos sociais e ideológicos

relacionados ao público alvo do autor são argumentos destacados, alguns séculos

depois, na produção de Walt Disney. Elementos como “roupas suntuosas”, “broche de

diamantes”, “carruagem dourada”, aliados à associação entre beleza e atração sexual,

em meio a uma estrutura narrativa que prevê a ascensão de uma jovem de sua

condição social, por meio do casamento com um príncipe, dão o tom para o diretor

norte- americano reforçar na tela um modo de ver o mundo. Após a estréia do filme, em

1950, apesar dos percalços pelos quais tem de passar a heroína para finalmente ser

feliz para sempre, ficou difícil dissociar a imagem de “Cinderela” daquela jovem

ricamente vestida e loira.

Tendo em vista a natureza mutante do conto “Cinderela”, que, como toda

realização humana, é sujeito às influências de seu tempo, sua movência resulta do

encontro do arquétipo trazido pela tradição com a instância que a atualiza. Seja pela

voz do contador/ narrador, ou pela intenção escritural de um autor, são variações

performativas que produzem uma narração que jamais será definitiva, e que a cada

reiteração se renovará, num circuito sempre inacabado.

90

“Maria Borralheira” de Alina de Melo Freitas e Francisco Assis de Souza Lima

Contado em 1981, no Juazeiro do Norte, por Alina de Melo Freitas e colhido e

registrado por Lima, o conto “Maria borralheira” (CPBC, p. 156) é modelar para o

trabalho sob a perspectiva de movência e inacabamento, pela possibilidade de

compará-lo a outras manifestações de conteúdo semelhante. Para fazê-lo, objetiva-se

relacionar a mesma narrativa com outras duas versões ouvidas e recriadas em tempos

e lugares distintos: “Maria Borralheira”, de Silvio Romero e “História de gata

borralheira”, de Lindolfo Gomes. A primeira, colhida em Sergipe e a segunda em Minas

Gerais, com a primeira edição acontecendo em 1885 e 1931, respectivamente. Essas

são duas versões do mesmo conto, reconhecido por Câmara Cascudo como “o conto

mais universal de todos os contos populares” e associado à “Cinderella”. No entanto,

mais adiante, no mesmo texto, a preocupação com as origens faz o folclorista afirmar

que “a versão brasileira de Silvio Romero não é a clássica de Perrault e sim uma

variante dos ramos portugueses” (apud ROMERO, 1954, p.123).

Desse modo, vale lembrar que a preocupação com as origens não é o objetivo

da comparação neste estudo. Ela diz respeito à averiguação sobre quais itens foram

esquecidos ou acumulados pelas culturas de cada época e lugar onde se manifestou o

conto, para, na seqüência, relacionar esses elementos ao discurso do narrador de

Freitas e Lima.

Antes, porém, é interessante observar a variação na organização interna das três

versões de “Maria borralheira”. Uma construção narrativa que começa com a

apresentação de Maria borralheira, (Freitas e Lima), de seu pai viúvo (Romero), e com

o pai ainda casado com a mãe de Maria (Gomes). Variando também no número de

irmãs postiças, duas na versão de Romero, uma na de Gomes e duas na de Alina e

Lima, somente os dois primeiros contos apresentam o momento em que a futura

madrasta ilude a protagonista, no sentido de convencer seu pai a casar-se com ela,

fingindo-se de “muito boa e agradável” (ROMERO, 1954, p.115).

Consumado antes ou depois, é o casamento do pai com a madrasta que

configura o início da conhecida história e instala em definitivo a situação que vai resultar

na privação da condição familiar e social da protagonista: “Nos primeiros tempos ainda

91

ela agradava a pequena, e, ao depois, começou a maltrata-la” (ROMERO, 1954, p.115);

“A mulherzinha tomou conta da casa e se pôs desde logo a fazer diferença de

tratamento entre sua filha que, na ausência do marido, tratava como princesa, e Maria,

que tratava como escrava” (GOMES, 1948, p. 173). Essa troca de status destitui

também a personagem da própria identidade. E, assim, ela passa a chamar-se

borralheira, em vista de fazer os trabalhos mais pesados da casa e deslocar-se do

quarto que antes era seu, para as proximidades do borralho da cozinha.

Pela perspectiva de Propp, esse dano causado à protagonista precisa ser

restaurado, no sentido de restabelecimento da ordem primeira: “Maria borralheira”

precisará deixar a casa paterna para encontrar fora dela o equilíbrio inicial do conto.

Para isso, em sua jornada, ela contará com a própria astúcia, além de objetos mágicos

e de ajudantes que a auxiliarão a derrotar os oponentes. Inclusa a própria beleza, seus

atributos como compaixão, paciência e bondade são alguns dos predicados edificantes

que juntamente com a malícia e a sagacidade, vão ser utilizados como auxiliares para

reparação do dano sofrido, diferindo-a da “Cinderela” de Perrault, sempre muito

bondosa e ética.

Somente na versão de Gomes não consta o benefício feito por Borralheira às

três velhas que são as bruxas bondosas (limpou-lhes a casa), que lhe retribui com ouro

(Romero) e desejos de bom fado (Freitas e Lima). Quando perguntada sobre a origem

daqueles prodígios, em desagravo às maldades impostas pela madrasta e irmãs,

Borralheira lhes ensina o contrário: em vez de limpar, devem sujar a casinha das

velhas. Isso provoca a ira das velhinhas, que retribui às irmãs de Borralheira com “rabo

de cavalo na testa” e “porqueira de cavalo pela boca” (Romero); de outro modo,

“defecar pela boca só cocô de jumento” e “cascos de cavalo nos pés” (Romero e

Freitas/Lima).

Essa reação da personagem lhe confere um toque de malícia - comum às

narrativas camponesas - e funciona também como estratégia de retardamento para o

clímax em torno da “festa na cidade” e na “igreja” (Romero), e “festa do casamento” da

irmã de Borralheira (Freitas e Lima).

Em todos os contos, Borralheira vai à festa três vezes, configurando este fato ou

o baile como o momento de transformação da personagem. A revelação de sua beleza

92

ornamentada por “vestido da cor do campo com todas as suas flores” (Romero), “rico

vestido de veludo” (Gomes) e “traje de uma princesa” (Freitas e Lima), a Borralheira

consegue, por meio de um objeto mágico comum às três narrativas, uma varinha de

condão.

Mistério que seduz o príncipe, a tripla fuga de Borralheira é o ponto máximo da

narrativa e determina a expectativa de preenchimento dos elementos que formam o

imaginário coletivo em relação ao conto: “chapim”, em Romero; “sapatinho de

esmeralda”, em Gomes e simplesmente “sapato”, com o reforço de um “anel”, em

Freitas e Lima. Motivo de identificação da personagem, o sapato é também o elemento

que liga Borralheira à representação de dois mundos diferentes: o que ela habita e o

que ela almeja. Para a passagem do plano cotidiano ao espaço dimensional

maravilhoso, o sapato e o anel (Freitas e Lima) são chaves que também ajudam a

separar a verdadeira das falsas heroínas.

De acordo com o esquema comparativo proposto por Lluch (2004), para

evidenciar o caráter de movência do conto “Maria Borralheira”, segue uma tabela em

que, na coluna da esquerda, identificam-se os elementos que caracterizam a história e

as personagens das versões citadas, e nas colunas da direita, verifica-se o que

permanece e o que muda em cada uma das versões.

Tabela 1

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

Relato inicial do

conto e descrição do

pai e da

protagonista

“Havia um homem

viúvo que tinha uma

filha chamada Maria”.

“Era uma vez um

homem casado que

tinha uma única filha,

muito bonita, que se

chamava Maria”.

“Maria Borralheira ela era

filha de um reis”

.

93

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

Orfandade da

personagem

Não consta

“pela idade de sete

anos, ficou órfã de

mãe”.

“Então esse reis ficou

viúvo, e ela ficou

pequenininha. (...) ela

tinha sete anos”.

Descrição da

protagonista

Menina

Menina

Princesinha

Atributo inicial da

madrasta

“muito boa e

agradável”.

“dá pão com mel”.

“bruxa,

mandingueira/bruxeda”

Transição da

condição familiar e

social da

protagonista

“tudo que havia de

mais aborrecido e

trabalhoso no trato da

casa, era a órfã que

fazia”.

“O serviço era pesado

e difícil para Maria

que, por qualquer

coisa, (...), apanhava

da madrasta surras...”

“Ai, então, Maria foi se

criando naquele

sofrimento, ela judiando

muito com Maria,

judiando...”

Descrição das irmãs

Não consta

“menina má,

zombava e humilhava

a pobre órfã”

“num era de nada que era

umas... umas pé-de-boio”

A protagonista

ganha novo nome

“vivia muito suja no

borralho. Daí lhe veio

o nome de Maria

Borralheira”.

“a quem apelidava de

gata borralheira”.

Não há troca de nome,

porque a protagonista já é

apresentada como “Maria

Borralheira”.

94

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

Afastamento do pai

“... mas por fim teve

de ceder à vontade

da mulher”.

“... mas continuou na

sua trabalhosa vida

de viajante”.

“...o reis nunca via ela,

que elas num deixava ele

ver ela de jeito nenhum”.

As provações

impostas à

protagonista

“...a madrasta lhe deu

uma tarefa muito

grande de algodão

para fiar”

“...fez a menina

cozinheira da casa...

(...)...foi dada à gata

borralheira a

obrigação de cuidar

da vaquinha”.

“- Oh, você hoje vai lavar

essa trouxa de roupa

debaixo de penas e

morte”.

O meio mágico lhe

passa às mãos

“Maria tinha uma

vaquinha, que sua

mãe lhe tinha

deixado; (...) A

vaquinha lhe disse:

Não tem nada; traga

o algodão que eu

engulo, e quando

botar fora é fiado e

pronto em novelos”.

“... possuía uma

vaquinha que, havia

tempos, quando ficou

órfã, lhe dera seu

padrinho...”

“Aí, ela... deixa que a

mãe dela quando morreu,

deixou uma vaquinha pra

ela de lembrança pra...

(...). Ela disse: – Tem

nada não, Maria, bote

essa trouxa de roupa aí

no chão. Aí, ela botou a

roupa no chão, aí, a vaca:

- Lapt, lapt, lapt, lapt”.

95

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

Sacrifício do

primeiro meio

mágico

“...a mulher se fingiu

de pejada e com

antojos e desejou

comer a vaquinha de

Maria”.

“- Sua madrasta vai

impor-lhe que eu seja

sacrificada para um

banquete no dia dos

anos da menina má”.

“- Não... – aí, a veia disse

– não, mas eu tô

desejando comer o figo

da vaca e só... e só serve

se for dela”.

Descoberta do

segundo objeto

mágico

“Morta a vaca, a

Borralheira seguiu com

o fato para o rio, lá

achou nas tripas a

varinha de condão, e

guardou-a”.

“Quando lhe mandarem

que lave minhas tripas

no córrego, procure

dentro de uma delas

uma varinha de

condão”.

“Aí, quando mataram a vaca,

ela botou o fato na vasilha e

foi lavar. Quando chegou lá,

começou lavando a...

lavando, lavando, aí,

encontrou a varinha”.

Prestação de

serviços a doadores

“Adiante encontrou

um velhinho muito

chagado e morto de

fome e sujo. Lavou-

lhe as feridas e a

roupa e deu-lhe de

comer. Este velhinho

era Nosso

Senhor”.(...) Mais

adiante encontrou

uma casinha muito

suja e desarrumada,

e com os cachorros e

gatos e galinhas

muito magros e

mortos de fome”.

Não consta.

“... tem uma casa

dum...dum...dumas

velhinha acolá, umas

pelengrinazinha,

coitadinha... (...) Então,

eu chego lá, tá a casinha

delas suja, aí...”

96

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

A protagonista recebe

ajuda mágica

“Quando viram aquele

benefício, a mais moça

disse: ‘Manas, faiemos;

faiemos, manas:

permita a Deus que

quem tanto bem nos

fez, lhe apareçam uns

chapins de outo nos

pés’. A do meio disse:

‘Manas, faiemos,

manas: permita a Deus

que quem tanto bem

nos fez, lhe nasça uma

estrela de ouro na

testa”.

Não consta

“Quando as velhinhas

chegava, dizia desse jeito: -

Oh, meu Deus, quem fez

essa... esse benefício a mim

e a meus bichos, Deus seja

o acompanhante dela no

todos os passos da vida

dela, e que tudo de bom

chegue na mão dela, e tudo

que ela desejar a fazer ela

faça com toda rapidez”.

A protagonista

engana suas

opositoras

“...quando

encontrarem um

velhinho muito

feridento, metam-lhe

o pau, e dêem muito;

mais adiante, quando

encontrarem uma

casa com os

cachorros e gatos

magros,

emporcalhem a casa,

dêem nos bichos

todos...”

Não consta

“Aí, mas aí, ela disse ao

contrário com as moças,

porque elas eram

invejosas”.

97

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

Primeiro castigo das

opositoras

“Manas, faiemos,

manas: permita a

Deus que quem tanto

mal nos fez, lhe

nasça um rabo de

cavalo na testa”.

Não consta

“-Ô, meu Deus do céu! Ô

que covardia que fizeram

dentro da minha casa!

Menina, eu tenho fé em

Deus que quem fez isso

há de... de... de defecar

pela boca só cocô de

jumento”.

A festa

“...houve três dias de

festa na cidade, e

todos de casa iam à

igreja, menos a

Borralheira...”

“...festa em honra do

aniversário da

princesa daquela

terra. Os festejos

deviam se prolongar

por três dias..”

“Aí, foi a festa, festona

medonha, e ela lá no

borralho”.

A protagonista pede

ajuda ao objeto

mágico, pela

primeira vez

“Minha varinha de

condão, pelo condão

que Deus vos deu,

dai-me um vestido da

cor do campo com

todas as suas flores.

(...) Maria pediu

também uma linda

carruagem”.

“- Minha varinha de

condão, pelo poder

que tem, faça que

apareça aqui um rico

vestido de veludo,

sapatos, jóias,

criados e carruagem,

tudo encantado, para

que eu possa ir ao

baile da princesa”.

“- Minha varinha de

condão, eu quero que

você me dê um... todos

os trajes que uma

princesa precisa pra se

arrumar como princesa,

pra mim assistir essa

festa da... aqui”.

98

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

A protagonista é

auxiliada pela

segunda vez

“Minha varinha de

condão, pelo condão

que Deus vos deu,

dai-me um vestido da

cor do mar com todos

os seus peixes, e

uma carruagem ainda

mais rica e bela que

a primeira”.

“... o vestido de Maria

era todo enfeitado de

prata e os sapatos de

esmeralda”.

Não consta

O príncipe se

apaixona por ela

“Quando lá chegou, o

povo ficou

esbabacado por tão

linda e rica moça, e o

filho do rei ficou

morto por ela”.

“O príncipe, que

dançou com ela de

par constante, pediu-

lhe a sua mão em

casamento”.

“Teve um príncipe que

ficou doido, doido por ela,

o príncipe filho do reis

fulano de tal, um colega

de papai...”

Terceira ajuda

“Maria então pediu

um vestido da cor do

céu com todas as

suas estrelas e uma

carruagem ainda

mais rica”.

“O vestido era todo

de ouro e os sapatos

de cristal com pedras

de bril

hante”.

Não consta

99

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

Fuga da festa e

perda do sapato

“...porém ela

escapuliu e na

carreira lhe caiu um

chapim do pé, que o

príncipe apanhou”.

“...de madrugada,

sem que ninguém

esperasse, Maria saiu

de surpresa ... (...) Ao

entrar, porém, na

carruagem, que partiu

a toda disparada,

deixou cair um dos

sapatinhos...”

“Mas aí, deixa que ele...

ele pode ainda ficar com

um sapatinho dela, e ela

jogou um anel pra ele, e

ele... e tinha o nome dela

gravado”.

Procura pela

protagonista

“O rei mandou correr

toda a cidade para

ver se achava-se a

dona daquele chapim

e o outro seu

companheiro”.

“...mandou S. Alteza

que os mordomos e

criados se

espalhassem por toda

cidade,

experimentando o

sapatinho no pé de

todas jovens...”

“Aí, quando esse rapaz

foi andar. Andou, andou,

andou na rua por todo

canto, e moça de gente

pobre, de gente rica, de

todo canto procurando

quem é. Quem era o

nome da... a moça que se

chamava aquele nome

que tinha gravado no anel

e quem era que dava

da... a dona do sapato”.

O desmascaramento

das irmãs postiças

“A dona da casa

apresentou as filhas

que tinha; elas, com

seus cascos de cavalo,

quase machucaram o

chapim todo, e os

guardas gritaram...”

“Nem a jovem era bela,

nem o sapatinho servira

no pé descomunal que o

tentara calçar...”

Não consta

100

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

A nova tentativa de

busca

“Perguntaram se não

havia ali mais

ninguém”.

“- Não há mais

alguma jovem nesta

casa?”

“Então chegou na dita

casa do reis”.

Reação do pai

Não consta

Não consta

“Quando apresentou o

anel, aí, o reis olhou o

anel e disse: - Esse nome

aqui... esse anel é da

minha filha, e o nome é

dela também”.

Tentativa da

madrasta de impedir

o reconhecimento

“Não, aí tem somente

uma pobre cozinheira

porca, que não vale a

pena mandar

chamar”.

“- A gata borralheira!

Essa é uma criatura

suja e desmazelada.

Como poderá ser a

pessoa que

procuram, se nem

tamancos possui!”

“Aí, a mãe dela fez... a...

a madrasta fez logo

pouco, disse: - É. É, mas

ora, que conversa é essa,

que eu nuca vi essa

menina com esse anel?

Reconhecimento da

protagonista

“Ela veio lá de dentro

toda pronta como no

último dia da festa;

vinha encantando

tudo; foi metendo o

pezinho no chapim e

mostrando o outro”.

“Fez-se então a

experiência. E, com

admiração de todos e

enorme contentamento

do príncipe, o sapato de

cristal e brilhantes

servira perfeitamente,

como se para ela fora

fabricado”

“Ela voltou pra trás e se

arrumou toda do jeito, do

mesmo... no mesmos

trajes que era”.

101

Elementos

e

Personagens

Romero (1885) Gomes (1931) Freitas / Lima (2003)

O castigo

“... a madrasta teve

um ataque e caiu

para trás..”

“E as duas perversas,

só não foram

castigadas, como

mereciam, graças à

intercessão de Maria,

cujo coração era de

ouro e não de gente

deste mundo...”

“...ficaram tudo mordida

de inveja”.

O casamento

“Maria foi para o

palácio e casou com

o filho do rei”.

“O príncipe casou-se

com Maria. Houve

uma festa de

arromba”.

“Aí, casou com ela e

pronto, terminou a

história”.

Segundo Zumthor, “movência é criação contínua”, donde a apropriação de uma

história vir sempre acompanhada de duas características que, à primeira vista,

pareceriam incompatíveis: “reprodução e mudança” são dois movimentos que,

combinados, assinalam a tensão que anima todo reconto de um mesmo arquétipo

(2001, p.145). Por não obedecer – pelo menos integralmente - às fórmulas pré-

determinadas, de uma performance à outra, as narrativas poéticas vão,

discursivamente, constituindo-se por intervenções das diferenças individuais,

relacionadas ao contexto de cada narrador, de modo que dados caracterizadores

pessoais, como idade, formação, origem social, etc., interferem na reprodução da

história, a ponto de lhe ressaltar alguma mudança. Essa flexibilidade, que é

determinante para a movência da obra, é também um ponto que amplia as

possibilidades de estilo ou singularidade, com as quais narradores diferentes podem

102

expressar uma mesma narrativa poética, já que “a tradição é série aberta,

indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um

arquétipo” (2001, p. 143).

Sob a perspectiva ortográfica, a narrativa de Freitas e Lima se desvia da norma

culta que caracteriza a linguagem vinculada à escrita dos outros dois contos. Vale

lembrar que tanto Romero como Gomes foram homens de letras e estudiosos da

cultura nacional. Em que pese a linearidade e a unidade dessas narrativas, porque

orientados pelas regras fixas que regem a escrita, os contos de Romero e Gomes

mantêm um certo tom de sóbria artificialidade que os afastam da representação da fala

do conto de Freitas e Lima, cuja espontaneidade revela uma variável lingüística do

português, própria de um falante sem acesso ao padrão da língua culta: uma marca

discursiva denunciadora de uma posição histórica, geográfica e social, que mantem a

contadora muito próxima ao narrador que a representa. Conquanto se considere a

repetição como uma característica que a escrita repudia, diferentemente dos outros dois

contos, que foram recontados por homens hábeis na escrita, a quantidade de vezes e o

detalhamento com que o narrador do conto de Freitas e Lima trata das obrigações de

Maria Borralheira, é uma marca própria de quem conhece o cotidiano dos afazeres

domésticos. Isso se evidencia no tom de tédio e alvoroço com que o narrador recorre ao

processo de lavar a roupa e na repetição dos elementos definidores dessa atividade

caseira.

Entre uma estratégia que integra “o essencial das palavras” definidoras da

estrutura do conto, e outra que, “evasiva”, recalca, censura e descarta algumas

palavras, das quais se pode desvencilhar, a narrativa, assim, se constitui, pela “tradição

memorial transmitida, enriquecida e encarnada”, agora pela voz do narrador de Freitas

e Lima, como o foi, antes, quando colhido dos contadores de Romero e Gomes. Em

suas respectivas comunidades de discurso, “no calor das presenças simultâneas em

performance, a voz poética não tem outra função nem outro poder senão exaltar essa

comunidade, no consentimento ou na resistência” às suas escolhas narrativas

(ZUMTHOR, 2001, p. 143).

Se as escolhas de Romero e Gomes se identificaram com uma comunidade

leitora que tem como pressuposto literário a escrita normativa, as de Freitas e Lima, por

103

serem uma tentativa de representação de uma performance vocal, primam pela

informalidade, que se evidencia, por exemplo, em termos como “pé de boio”, que é uma

maneira prosaica de o sertanejo se referir a quem não tem valor, como é o caso das

irmãs de “Maria borralheira”. Isso muito se deve ao método de recolha e retextualização

de Lima, que primou pela manutenção da voz no escrito. Como resultado, tem-se uma

narrativa que embora também representada pela letra não reprime a fala, deixando,

assim, na superfície do texto as marcas da vocalidade em movimento.

Constituída pela memória, de acordo com Zumthor, a obra da tradição:

É a série aberta, indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um arquétipo. Numa arte tradicional, a criação ocorre em performance; é fruto da enunciação – e da recepção que ela se assegura. Veiculadas oralmente, as tradições possuem, por isso mesmo, uma energia particular – origem de suas variações. Duas leituras públicas não podem ser vocalmente idênticas nem, portanto, ser portadoras do mesmo sentido, mesmo que partam de igual tradição (2001, p.143).

Essa mobilidade, embora também presente nas narrativas de Romero e Gomes,

é mais perceptível na de Freitas e Lima, que, aliás, chega a ter alguns elementos que a

aproximam da narrativa dos antigos camponeses franceses. Tal como naquele conto

trazido por Darnton, o fígado (o figo) da vaca é um elemento comum às duas narrativas,

além de comungarem uma borralheira, cuja descrição se aproxima de um padrão mais

real de beleza.

104

3.5. Dom Anin: a conversa entre textos e o leitor entre a letra e a voz

Dom Anin Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela por Dom Anin. Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela. E tinha umas guerra preparada aí – num sei se era em catorze, quando era – e o destino dela dava pra pegar no cangaço que nem cabra home, viu? Aí, um dia ela disse: - Meu pai, se o senhor deixasse, comprasse uma arma pra mim, um rifle ou um fuzil mode eu ir brigar nessas guerra que tão brigando... eu queria. Aí, o veio disse: - Mas minha filha, num dá não! Se você fosse um rapaz, eu deixava você ir, mas você é uma moça, num pode não! Lá não tem mulher brigando, só tem home! - Não, meu pai, mas se o senhor deixasse, eu ia. - Não, minha filha, num vai não! Vai não! Aí, ela pegou entristecer, imaginando, com vontade de fugir, mas tinha uma (...), e foi, o véio escutou, disse: - Minha véia, o que é que se faz com essa fia? Aí, a véia disse: - É cumprir o destino dela! (CPBC, p. 169).

Nessa representação da performance do contador José Herculano da Rocha, é

possível identificar o tema da donzela guerreira tão caro a Guimarães Rosa (Grande

sertão: veredas), quanto presente em versões de narrativas tradicionais de outras

culturas, além da brasileira. De Palas Atenas a Mu-lan, passando por Joana D’Arc entre

outras, ficcional ou não, a figura da mulher que se traveste de homem e vai à guerra é

recorrente, seja na mitologia, literatura ou história. De acordo com Zumthor, em cada

variante dessas narrativas, ao emergir para reiterar o já dito, o contador/ narrador, por

meio de sua voz, reconhece e traz ao reconhecimento o texto poético em performance,

e, em cada uma delas, é possível perceber traços de vocalidade de outros textos,

trazendo outras vozes, além daquela, através da qual ela transita, no momento mesmo

da performance ou de sua representação, como no texto acima.

Na literatura nacional, a ocorrência do tema dessa narrativa é freqüente e fruto

de inúmeras elaborações que têm como origem o ideário popular arcaico. Resultantes,

muitas vezes, de modificações determinadas por processos sincréticos e aculturações,

à malha já existente de textos que tiveram como eixo principal a mulher guerreira, o

conto D. Anin constitui-se como uma variante singularmente adaptada às circunstâncias

contextuais de seu contador.

105

Sob esse aspecto, é interessante notar que, para dar maior credibilidade à sua

performance, o narrador apóia o discurso narrativo em dados extraídos do universo

sertanejo do contador, quando, no excerto acima, procura situar o campo de ação da

personagem na “guerra de catorze”: um fato real que envolveu a figura do Padre Cícero

e que entrou para a história cearense como a “sedição de Juazeiro” (CPBC, p. 28).

De outro modo, observe-se como na seqüência, por meio da voz da

protagonista, a estratégia discursiva do narrador deixa à mostra alguns elementos que,

por si, revelam marcas sociais e culturais de contexto. Questionada pelo pai sobre a

dificuldade em esconder sua identidade feminina, com riqueza de detalhes a

personagem argumenta como será sua transformação:

- Eu vou dizer a meu pai como é que é. Nós vamo à loja, compra um terno de uma mescla da boa e mando fazer uma blusa e uma calça do jeito de cangaceiro, uma cartucheira e um fuzil e um chapéu de couro bem bom, com a aba virada pra trás todo barrado, aí, fico parecendo um home (CPBC, p. 169).

Esse fragmento de discurso representando a protagonista do conto confirma a

colocação de Zumthor quanto à dupla função da memória: se coletivamente ela é

guardiã de todo um repertório de manifestações da tradição, do ponto de vista individual

e discursivo, ela fornece subsídios para sua transformação.

Tratando-se de contos tradicionais, ao lançar mão da memória, o poeta contador

utiliza-a de acordo com a própria capacidade de organizar o discurso e planejar sua

performance vocal. Servindo-se da fonte, o contador transforma o que antes era

virtualidade em matéria narrativa e lhe impõe um aporte pessoal, donde uma

performance vocalizada jamais ser igual à outra, e, em se tratando de sua

representação pela escrita, também. Sendo “reprodução e mudança”, a arte da tradição

se caracteriza também pela movência, já que esta é “criação contínua” em cima de algo

preexistente (ZUMTHOR, 2001, p. 145).

Essa mobilidade converge para a intervocalidade que instaura a comunicação

entre textos que portam variação sobre o mesmo tema. Um “nomadismo” (ZUMTHOR,

2001, p. 145) que nem sempre se manifesta com a mesma expressão poética, como se

observa no extrato retirado de “A filha do pirata”, de Cícero Vieira:

106

Cidinha disse: papai quero aprender a lutar com esta espada bonita o senhor vai me ensinar pois eu quero depois de treinada não temo a quem encontrar. Antonino respondeu: minha filhinha querida você vai é estudar para ter prazer na vida mas não lutar com espada essa vontade é perdida. Se tu fosses homem sim poderia te ensinar mas como és u’a moça precisas é estudar isto sim é necessário mas não aprender a brigar. Disse Cidinha: papai seu ideal eu não mudo quero treinar na espada e também ir ao estudo que a pessoa no mundo é bom aprender de tudo. [...] (VIEIRA apud: GALVÃO, 1998, p. 148)

Diferente na forma, mas não na configuração da personagem, o poema de Vieira

delineia o mesmo perfil da prosa que representa a performance de Herculano, qual

seja, traça o percurso de transformação da figura feminina. Não satisfeitas com o que

lhes reserva o destino, as personagens dos dois textos lutam por um outro estatuto que

lhes forneça mais autonomia.

Embora nos dois textos sejam trabalhadas formas diferentes de expressão, a

intervocalidade que se estabelece entre eles não fica restrita somente à personagem.

No nível discursivo, os dois contadores ou cantadores – como é costume dizer no

nordeste brasileiro -, demonstram habitar o mesmo território sertanejo, onde as práticas

narrativas em prosa ou em cordel se complementam como meio de expressão popular.

Em prosa ou em versos (sextilhas), as duas histórias portam a prosódia sertaneja, e,

cada uma à sua maneira comporta uma bivocalidade que se constitui pelo diálogo entre

a filha que argumenta com o pai, tentando convencê-lo a deixá-la assumir uma atitude

viril.

107

Observe-se, no entanto, que essa bivocalidade extrapola o nível das

personagens, quando se constata (como nos excertos acima) que, na rede de

comunicação das obras da memória, “a corrente intervocal passa por toda parte”, de

modo que “todo texto repercute os ecos de outros textos do mesmo gênero”

(ZUMTHOR, 2001, p.147).

Maria Gomes Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir

convenientemente. [...] Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. [...] Uma voz misteriosa disse: - Maria Gomes? O jantar está na mesa!

[...] - Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar a você e

completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.

A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.

Aí procurou empregar-se e sendo robusto, bem feito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.

O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por que, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas jóias. O príncipe dizia à rainha-velha:

Minha mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não! [...] (CASCUDO, 1997, p. 47)

Recolhido por Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte, o conto “Maria Gomes”,

embora inicialmente reflita o abandono na mata representado em “João e Maria”, na

seqüência também desenvolve o tema tratado nas duas histórias anteriores. Após ser

alimentada e permanecer numa casa onde recebe ordens de uma voz misteriosa, a

protagonista se veste de homem e tem posta à prova sua coragem e destemor,

envolvendo-se em lutas das quais sempre sai vitoriosa.

A incidência, nas três narrativas, de uma protagonista que guerreia como um bravo,

permite a definição dessas manifestações poéticas tradicionais, como um processo

contínuo de recorrência a elementos semelhantes, embora quase sempre, resulte numa

finalização diferente. A tradição, como o “lugar de relações intertextuais”, confere,

assim, aos temas dos contos orais, não só uma qualidade referencial que possibilita a

108

continuidade, mas também um movimento de recriação e renovação (ZUMTHOR, 1997,

p.23) das narrativas que são apoiadas pela voz.

Donde a autoridade particular de que, no seio da tradição, é dotada a voz, inspirada pela memória, a qual sozinha lhe confere sua perceptibilidade. O discurso que ela pronuncia, ligado mais do que outros às formas experimentadas, mais sujeito às pegadas de um incontrolável passado, é também mais eficaz do que qualquer outro; o que diz essa boca parece mais opaco, requer atenção de maneira mais insistente, penetra mais fundo na lembrança e aí fermenta, confirma ou revolve os sentimentos vividos, alarga misteriosamente a experiência que eu, ouvinte, creio ter de mim mesmo, de ti e desta vida. O único fato é que esse homem está em vias de nos dizer neste dia, nesta hora, neste lugar, entre as luzes ou as sombras, um texto que talvez eu já saiba de cor; o fato de que ele se dirige a mim, entre aqueles que me cercam, como a cada um deles, e de que preenche nossas expectativas; aquilo que ele enuncia é dotado de uma pertinência incomparável; é imediatamente mobilizável em discursos novos; integra-se saborosamente no saber comum, do qual, sem perturbar-se a certeza, suscita um crescimento imprevisível (ZUMTHOR, 2001, p. 150).

O leitor entre a letra, o sentido, o ritmo, o som...

Embora tenha um passado vocal, o conto “Dom Anin” é apresentado neste

trabalho pela mediação da escrita. A passagem do contexto oral para o escrito

determina a diferença de expressão que transmuda o sentido da performance, antes

gestual e vocal, para sua representação por meio da letra.

Do ouvinte ao leitor-performer, o lugar deste não pode ser visto sob a perspectiva

de uma estratégia autoral - em função do leitor-implícito, como postula a estética da

recepção - mas sim, a partir do ponto de vista de uma expressão verbal que se oferece

enquanto ato de fala, como um recurso aproximativo dialogal. As entonações verbais e

variações dialetais do contador dão o tom e o ritmo dessa aproximação. Embora se

admita a perda do evento contextual, a retextualização do ato vocal do contador de

“Dom Anin” possibilita recuperar sua performance, por meio da representação de sua

linguagem, da imagem do seu discurso. Compreendendo a leitura poética como

possibilidade de despertar imagens em latência no livro, cabe ao leitor seguir as

pegadas da voz que a escrita não cala.

Todavia, falar de tom e ritmo no espaço reservado à leitura significa admitir que

há som onde, aparentemente, só há letra. Embora pareça paradoxal, essa idéia parte

109

da afirmação de que “a imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato

direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (BOSI,

2000, p. 19). Vocalizada ou escrita, a palavra persegue a construção da imagem

poética. É o que lhe dá sentido. “E como tudo é sentido na linguagem, no discurso, o

sentido é gerador de ritmo, ao mesmo tempo em que o ritmo é gerador de sentido,

sendo os dois, inseparáveis”12 (MESCHONNIC, 1990, p. 215).

Sentido e ritmo, “se o sentido é uma atividade do sujeito, se o ritmo é uma

organização do sentido no discurso, o ritmo é necessariamente uma organização ou

configuração do sujeito no seu discurso”13 (MESCHONNIC, 1990, p. 71). Nessa

perspectiva, isso explica o motivo do discurso estar sempre relacionado às condições

sociais e históricas que determinam o sujeito que o produz. As palavras escolhidas por

esse sujeito se constituem no laço que o une à sua comunidade de discurso, assim

como se impõem aos leitores de seu texto, agora escrito.

Em se tratando de um texto escrito que funciona como representação do

discurso narrativo in praesentia, aos leitores desse texto é dada a oportunidade de

recuperar, no corpo dessa representação, o ritmo e a entonação – porque o ritmo

compreende a prosódia – da voz que o proferiu.

Expressividade vocal que se oferece enquanto signo visual, a melodia que ele

transporta é um modo de entonar a frase, no qual as palavras resultam da vontade de

dizer. A escolha do tom das sílabas se configura num jogo que determina a força maior

ou menor com que são acentuadas, de acordo com a intenção de significar.

Como acontece no conto “João e Maria”, menos que obediência ao esquema

pré-existente da forma narrativa, o discurso é organizado em consonância com o

sentido da fala. Mas esse ritmo não é mensurável, ele é um tempo a ser vivido como

experiência dentro do tempo, sem que se possa estabelecer alguma ordem nos

elementos da sua prosa.

12 Tradução nossa de: “Et comme tout est sens dans le langage, dans le discours, le sens est générateur de rythme, autant que le rythme est générateur de sens, tous deux inseparables”. 13 Tradução nossa de: “Si le sens est une atividade du sujeito, si le rythme est une organisation du sens dans le discours, le rythme est nécessairement une organisation ou configuration du sujet dans son discours”.

110

Todavia, é perceptível a relação entre “as passagens” das unidades do discurso

(MESCHONNIC, 1985, p, 224), por meio de movimentos que implicam oposição entre

a regularidade e a irregularidade com que o narrador marca as unidades sonoras que

formam as palavras. O efeito de sua entoação é o modo como a linguagem possibilita

entender quando é dele ou da personagem a voz representada.

A diferença se constitui na acentuação dominante de alguns vocábulos, como,

por exemplo, o tom nasal usado pelo narrador, para se referir à fala da bruxa, no

exercício de interação com as crianças perdidas. Força de sedução, a ênfase aguda e

vibrante da terminação “im” (netim, dedim, rabim...) mascara a intencionalidade

antropofágica da “velhinha”. Por um lado, ela profere e reitera a docilidade do diminutivo

com o ardor dos que desejam enganar. É a significação de seu discurso.

Por outro lado, a voz que narra escolhe para si mesma um tom divergente, que

busca cindir a simetria que poderia se estabelecer entre os outros modos de expressão,

tanto do narrador, quanto das personagens. Não há linearidade entre as vozes. Isso

fica claro na baixa intensidade de tom narrativo: “Sempre iam e voltavam. Sempre iam e

voltavam. Por onde eles andavam era soltando aquelas pipoquinha pra não se

perderem”.

Não se trata de fraqueza. O tom somenos do discurso segue o fluxo natural e

linear da fala, sem alterações tonais. O tom repetitivo soa como um sinal de

persistência, de resistência mesmo da voz, cujo sentido é narrar. Seu ritmo é continuar

contando. É sua significância, seu valor expressivo.

Ao signo que representa a voz, associa-se, tal como o canto das sereias de

Homero, a magia e o encantamento de uma escuta. Uma percepção de sonoridade. O

assomo de pensamento de que a letra fala. O vislumbre fantasmático do entorno de

alguém que conta.

Como um instantâneo cultural apoiado na memória da tradição, às palavras do

narrador visualiza-se a instauração do momento popularmente conhecido por “senta

que lá vem história”: “Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela

por Dom Anin. Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela”

(CPBC, p. 169).

111

Quem disse? Qual é a força que o narrador de Dom Anin, evoca? Como um

fenômeno que remete aos mitos e representações culturais subjetivas, no ato de contar

histórias está implícito um sujeito às voltas com todo um sistema de comunicação,

marcado pela coletividade humana. Como que condensadas na voz do narrador, está

toda uma gama de vozes ancestrais, nas quais ele busca amparo. É para elas que ele

se volta, como a pedir licença para o seu narrar.

Imbuído dos procedimentos que lembram os tempos do mundo, quando contar

era um gesto espontâneo e natural, o narrador transporta o leitor para seu espaço

próprio de ação. Agora são dois espaços que em ato de performance se interpenetram:

do texto e do leitor. Um ponto de tensão que se instaura entre a letra de Lima e a voz

de Rocha, fazendo com que Dom Anin não seja somente um texto, mas todo o entorno

e a presença da língua que corporifica a forma poética, e, ao falar peculiar do narrador/

contador, fica difícil, senão impossível, separar o texto escrito da voz. Da sua

singularidade. Porque voz é demonstração do sujeito inserido numa coletividade, e a

inscrição de seu discurso vocal na letra é uma maneira de recuperá-lo

metonimicamente.

Contida na letra, a voz do narrador/ contador pulsa a construção imagética que

define a essência poética da literatura. A afirmação de Zumthor, de que “somente os

sons e a presença ‘realizam’ a poesia”, leva à dedução de que o que faz um texto

poético é o reconhecimento de sua escuta, de modo que “o efeito poético é tanto mais

forte quanto melhor soa a voz” (2005, p. 145). Por essa perspectiva é "música para o

entendimento e não para o ouvido; mas um entendimento que ouve e vê com os

sentidos interiores" (PAZ, 2003, p. 26).

Assim, é como expectador de um teatro vocal e gestual que o leitor se apropria

do objeto narrado. Um leitor performer, para quem o narrador se volta, quando diz: “E

certo meu irmão”; “Aí, se falaram e se apresentaram e se abraçaram e lá vai, essas

coisa... viu?”; “- Isso era uma moça, viu?, num era rapaz, mas tava em traje de home”

(CPBC, p. 171).

112

Considerações finais

“Um texto em se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem”.

(Barthes)

“Ora (direis) ouvir estrelas!”. (Olavo Bilac)

Na introdução deste trabalho, apresentamos um rápido percurso sobre algumas

abordagens dos contos de tradição oral e escolhemos o ponto de vista zumthoriano, por

considerá-lo mais apropriado para o desenvolvimento da reflexão sobre o que significa

literatura, no que diz respeito às narrativas poéticas de Contos Populares Brasileiros

– Ceará.

A proposta parecia simples: partir da observação do corpus proposto e nele

aplicar o conceito de literatura. Todavia, tendo como objeto de estudo registros

impressos de performances orais transcritas na íntegra, essa tarefa acabou por

desdobrar-se, sendo necessário, algumas vezes, trabalhar sobre perspectiva dupla: o

vocal e o escrito. Essa duplicidade se explica, pelo fato de que, em se tratando de

contos orais, a linha divisória entre o vocal e o escrito nem sempre é, assim, tão clara,

porque são textos que funcionam nas duas áreas. Evidência disso está na epígrafe de

Milton Hatoum: “Os grandes livros da infância foram as histórias narradas pelo meu

avô”.

A identificação da precedência de oralidade à escritura na obra escolhida fez

com que enveredássemos por um caminho que buscasse fornecer uma visão

panorâmica sobre o assunto. Uma visão, inclusive, que, do ponto de vista da

performance (cf. Zumthor), desse conta dos modos presencial e escritural de expressão

dos contos orais.

Por isso, inicialmente, colocamos em relação as narrativas poéticas orais e o

conceito de literatura, para refletir sobre os limites entre popular e erudito.

113

Essa reflexão levou-nos à consideração de que há, de fato, noção de literatura

muito associada a manifestações escritas. Outra, mais abrangente, considera que,

essencialmente, a literatura possui uma vertente poética que a aproxima também da

cultura oral, e, por conseguinte, das expressões literárias (poéticas) que nela se

originam.

A hipótese de que, no livro Contos Populares Brasileiro – Ceará (2003), sua

essência poética estaria não somente na constatação da forma e estrutura de conto

popular, mas, principalmente, no resgate da figura do contador, mostrou-nos a real

necessidade de averiguar como se expressa o contador de histórias orais em presença

e como fica sua representação na escrita. Esse procedimento orientou a demonstração

da relação híbrida entre voz e letra, de maneira que uma está contida na outra.

A consciência dessa dualidade norteou este trabalho, e, assim, partimos para a

tentativa de acompanhar o processo que leva à editoração de contos orais. Após uma

breve exposição sobre a coleta de contos no Brasil, percebemos que o diferencial

apresentado pelas narrativas que compõem a obra em questão, é a tentativa de não

interferência no discurso narrativo. Ao contrário de um grande número de outras

edições, os contos da obra escolhida não sofreram, na passagem para a escrita,

nenhuma adaptação do ponto de vista da língua normativa. Apenas foram

transcodificados e retextualizados, recebendo os sinais necessários para figurar numa

página escrita. Um deslocamento, no entanto, que no decorrer da pesquisa mostrou-se

vital para a constatação do hibridismo entre a voz e sua representação escrita.

Na impossibilidade de analisar todos os contos da obra, optamos por aplicar o

embasamento teórico adquirido naqueles mais adequados, conforme já explicitado.

Passamos à discussão sobre a forma e a estrutura dos contos orais, colocando

os conceitos de Jolles e Propp em confronto. Do conceito de formas simples do

primeiro, à noção de funcionalidade interna dos contos de magia do segundo,

percebemos que, tanto um quanto o outro forneciam instrumentos teóricos para o

enfrentamento do corpus. Os contos escolhidos, é verdade, se encaixam no que se

conhece por forma simples, mas também revelam uma estrutura interna, cujo

funcionamento arquetípico foi evidenciado por Propp.

114

A variação discursiva apresentada pelo corpus fez lembrar que Propp já as tinha

considerado, quando observou diferentes versões sobre um mesmo tema, nos contos

de comunidades distintas entre si. Isso se explica pelo fato de que a linguagem dos

contos orais traz estreita relação com o contexto em que são narrados. Nas narrativas

em estudo isso fica claro, nos elementos (cangaço, guerra de quatorze) identificadores

sociais, geográficos e históricos revelados no discurso do narrador.

Nesses contos, embora na passagem da forma oral à forma escrita se perca todo

o engajamento do corpo dos participantes (contador e platéia), a opção pelo modo de

transcrição, privilegiando o não apagamento de marcas dialetais e da maneira de cada

contador se expressar, incute um estilo fonético ao texto escrito, sujeitando as palavras

ao ritmo e ao som da fala.

Tais procedimentos justificaram a elaboração de um capítulo voltado à obra vocal

e à performance, tanto pela perspectiva oral quanto pela da leitura, uma vez que a inter-

relação entre esses dois pontos de observação é claramente dialética. Essas reflexões

foram conclusivas para o direcionamento da pesquisa quanto à percepção da inscrição

da voz na letra, de modo que fosse possível o resgate da expressão da voz viva, como

experiência de leitura.

Municiados pelo aparato teórico que nos possibilitou visão crítica sobre a

transposição do oral para o escrito, pudemos nos lançar ao deciframento do texto

narrativo escrito e à percepção de suas vozes. E, assim, evidenciamos os traços

operacionais de uma escrita que não trabalha a noção de autoria à qual nos

acostumamos em teoria literária, qual seja, a direta relação entre obra e autor.

Embora do ponto de vista discursivo se possa falar em autoria, já que o contador

responde pelo modo de sua vocalidade, por tratar-se de uma representação da voz, a

criação do texto transcrito passa a ser compartilhada entre as instâncias, que, desde a

performance, possibilitaram sua editoração. Nessa representação, no entanto,

prevalece um discurso com poder de instaurar um sujeito que lida com a própria

linguagem e a utiliza para dar forma ao conto, que é reserva da tradição.

Por se tratar de uma arte que transita entre tradição e memória, e que se

presentifica no momento mesmo da performance, a movência é também um modo

próprio desses contos continuarem a se construir infinitamente, num jogo de relações e

115

de trocas intervocais, assim como intertextuais: uma polifonia discursiva que faz com

que palavras e sons sejam objetos de permuta entre vozes e textos que expressam

variações de uma narrativa movente.

Na análise de “João e Maria”, procuramos mostrar como a transcodificação e

retextualização do conto resultou numa narrativa híbrida, com características típicas,

tanto da fala, quanto da escrita, e que funciona de forma ambivalente, numa posição

fronteiriça entre a letra e a voz. Essa associação entre modos de expressão origina uma

escritura com alto grau de dramatização da linguagem, porque está centrada em

recursos fonológicos, conferindo ao texto a vivacidade da palavra em processo de

transmissão.

Como representação da voz viva em performance, “João e Maria” apresenta

também o momento em que o discurso do narrador se esgarça. Assumindo a falha da

memória, ele faz lembrar que, se o esquecimento é espaço para recriação, é também o

lugar de demonstração do que se reteve. E, no seu caso, a retenção se constituiu no

núcleo básico do conto, que o narrador reconta sob uma perspectiva dialogada e pela

alta utilização de verbos de ação e dêiticos, com bastante energia e singularidade

discursiva.

No estudo da “Gata Borralheira”, focamos a questão da movência, da narrativa

nômade e por isso inacabada, cuja palavra que lhe dá forma está sempre em processo

de modificação. Cada reconto de um mesmo tema apresenta sempre alguma diferença,

sendo, portanto, um novo conto.

A constatação dessa reiteração constante, aliás, foi ponto para reflexão neste

trabalho, cujo direcionamento não se desejava comparatista. Procuramos não fazê-lo

de forma que uma fonte antiga confirmasse outra mais recente, mas sim, com a firme

intenção de interceptar os contos em análise em suas movências e nomadismos, ou

seja, no momento em que a reprodução discursiva é também mudança.

Essa mobilidade, também demonstrada com o conto “Dom Anin”, resulta em

variantes e adaptações, nas quais a ocorrência de um mesmo eixo temático possibilita

o diálogo intertextual/ intervocal entre produções diferentes, sejam elas vocalizadas ou

escriturais.

116

Quanto ao nosso corpus, diz-se escritura poética porque a associação entre o

discurso transcrito e a voz que emerge do texto sugere ao leitor uma escuta, que

possibilita a figuração da performance oral, tanto quanto do conto popular, que a voz dá

forma. E o prazer dessa percepção sonora é o critério zumthoriano que define o grau

de poeticidade do texto.

E aqui, pode-se dizer, não se trata de filigrana, mas da voz mesmo se falando. O

“grão da voz”, diria Barthes. Uma troca metonímica da letra pela voz, que faz com que a

mágica de Contos Populares Brasileiros seja quase uma recusa à necessidade de

decodificação, mas da qual não se pode abrir mão, uma vez que ela é o meio que

possibilita a escuta das vozes que estão na origem da obra.

Estratégia da editoração? Sim. A escolha por uma retextualização assim e não

de outro modo, faz com que se diluam as fronteiras entre a escrita e a voz, e com que

aumente o nível de comprometimento dos narradores dos contos com os contadores

originais. A letra é a possibilidade de ouvir o grão de suas vozes.

Como se pode ver, a possibilidade de instaurar essa presença que se perdeu no

transporte do oral para a escrita, emerge da capacidade interpretativa do leitor. É ele

que constrói, a partir da letra, o eco da voz do contador como uma ressonância no seu

próprio corpo em performance. Essa é resultado da conjugação de informações

intersubjetivas e práticas, pondo em movimento imaginativo as figurações colocadas em

cena pela leitura do texto. E, nesse caso, a esse leitor é dada a oportunidade de ler

escrituras de contos vocalizados que atestam o vigor da “oralidade deitada no papel”,

como diz Hampâté Bâ.

117

ANEXO A - Capa

118

ANEXO B - Foto José Herculano Rocha

119

ANEXO C - Conto "João e Maria"

É a história de João e Maria. Eles eram pequeninim e sempre saiam pros matos,

né?

E pra não se perderem, eles iam soltando pipoca no caminho, não é? Sempre

iam e voltavam. Sempre iam e voltavam. Por onde eles andavam era soltando aquelas

pipoquinha pra não perderem o caminho.

Aí, um dia foi destruída as pipoca. Não sei se alguma coisa comeu ou que

alguém tirou. E eles não acertaram para voltar pra casa, se perderam nas mata e

ficaram andando, andando sem rumo, procurava pra todo canto e não encontravam a

volta... o lugar de saída pra vim pra casa.

Até que viram um lugar, uma cabaninha muito pequenininha fumaçando lá, né?

Aí, chegaram e disseram: - Vamos lá, vamos lá, talvez seja a nossa casa.

E quando chegaram, não era, era uma velhinha que morava lá. Ela ficou muito

animada com eles, disse que ia criar meus netim e ficar com eles pra... que era os

netim dela. Aí, botou dentro de casa e pegou a arrumar eles.

Trancou dentro dum quartim e todo dia ela fazia bolinhos e botava pra eles. E

eles trancado lá, sem ela soltar. E ela disse... e todo dia queria que mostrassem o

dedim, se tavam gordim, que era pra ela matar e comer, né? E eles tinham um rabinho

de largatixa. Quando ela pedia:

- Meus netim, bota o dedim na porta pra mim ver como é que vocês tão, se tão

gordim...

Eles botava o rabim de lagartixa. E ela:

- Mas não tem jeito! Meus netim não engordam! Tanto que eu ajeito vocês!

E dando alimento pra eles, pra engordar, pra matar. Até que um dia eles

perderam o rabinho de lagartixa, né? E ela pediu pra botarem, e eles botaram foi o

dedim. E ela disse:

-Ah! Como vocês tão gordim! Agora eu vou tirar vocês daí e vou preparar a

festinha pra vocês, não é?

Eles disseram:

- É.

120

Mas entristeceram com aquilo. Eles viviam ali doido pra ir era pra casa, né?

E ela preparou a festa e ajeitou muita carne e tudo... Fez uma fogueira... E tinha

um lugar lá que era pra eles irem dançar, não é? E ela preparou lá aquele lugar – não

sei se era uma tábua, o que era – preparou pra eles irem dançar lá, né? E era tocando

lá aquela arrumação pra eles dançar. E eles disseram:

- Mas, vozinha, a senhora vai dançar primeiro, pra nós aprender, que a gente

não sabe dançar... A senhora dança, depois a gente dança.

Aí, quando ela subiu na tábua, que começou passando por lá, eles empurraram

ela dentro da fogueira que tava acesa debaixo da tábua, né? Aí, ela gritava:

- Água, meus netim!

E eles gritavam:

‘- Azeite, senhora vó!

E ela se torcendo até queimar, e não conseguiu matar eles, né?!

Aí, eles já eram maiorzim e conseguiram voltarem... até que um dia acertaram

em casa.

_________________________

Irene Jucá Bezerra. Saboeiro. 13/07/88

Recolhido por: Francisco Assis de Souza Lima e Ronaldo Correia de Brito

AT 327A

121

ANEXO D - Conto "Maria Borralheira"

Maria Borralheira ela era filha de um reis. Então esse reis ficou viúvo, e ela ficou

pequenininha. Mas, aí, ele foi, casou com outra, com uma... bruxa, mandingueira, ela

era bruxeda, num sabe?, esse pessoal que faz bruxaria.

Então ele casou com ela e ela tinha duas filha moça, essa viúva que casou com

ele também. E só viviam maltratando Maria. Aí, Maria era uma criancinha pequena, era

uma princesinha, filha do reis era princesa, né? Mas, aí, ela queria que as dela fosse

quem fosse princesa, e as dela num era de nada que era umas... umas pé-de-boio.

Aí, então, Maria foi se criando naquele sofrimento, ela judiando muito com Maria,

judiando e judiando, aí, quando dizia: - Oh, Maria, você vai... eu quero... – sim, aí, o reis

queria mito bem à menina, adorava a menina. E ele... e elas tinha ciúme, tinha inveja

porque o reis queria muito bem à menina que era pequena e era filha dele, as outra

num era.

Então, elas com... ficaram... disse: - Eu vou... – a veia disse – eu vou dar fim a

essa menina, que eu quero ver por que é que esse... esse reis num fica querendo bem

a minhas fia. Porque ela desaparecendo ele pega o dela, dessa menina, bota pra nós

três.

Aí, disse pra ela: - Oh, você hoje vai lavar essa trouxa de roupa debaixo de

penas e morte. Você... eu quero que você me traga essa roupa lavada e engomada.

Aí, era um monte de roupa sem fim, ela pequenininha, ela tinha sete anos.

Então, ela foi, saiu com a trouxa de roupa chorando de caminho afora. Aí, ela... deixa

que a mãe dela quando morreu, deixou uma vaquinha pra ela de lembrança pra... e

disse pra ela que ela nunca vendesse aquela vaquinha, nunca destruísse a vaquinha,

que ela deixava de lembrança. Aí, quando ela ia passando, chorando num pranto pra lá

pra fonte, pra lavar roupa, aí, a vaquinha atrevessou-se no meio do caminho, disse:

- Maria, que é isso Maria, que tu vem chorando tanto?

Aí, ela foi disse:

- Oh, minha vaquinha, você num sabe o que é que tá acontecendo. A minha

madrasta disse que era pra mim lavar essa roupa hoje todinha e engomar. E onde é

que eu vou ter condições de lavar essa roupa todinha só num dia e engomar?

122

Ela disse:

- Tem nada não, Maria, bote essa trouxa de roupa aí no chão.

Aí, ela botou a roupa no chão, aí, a vaca: Lapt, lapt, lapt, lapt. Comeu todinha a

roupa, engoliu todinha. Quando acabou, ela... aí, Maria botou as mão na cabeça e ficou

os grito:

- Agora é que eu sei que ela vai me matar! Ô, minha vaquinha, pra que você fez

isso? Agora é que eu sei que ela vai me matar, porque você comeu a roupa dela

todinha e pronto!

Ela disse:

- Não se preocupe, Maria.

Quando foi daí a um pedaço, ela botou a roupa todinha pra fora, toda

engomadinha, toda limpinha, no jeito que era pra ser. Aí, disse:

- Toma, Maria, leva a roupa pra casa.

Aí, ela levou a roupa pra casa muito feliz e satisfeita, porque a roupa vinha toda

pronta. Aí, quando ela chegou em casa, foi uma admiração.

- Mas o que é que acontece... Maria, quem foi que te ajudou a tu lavar essa

roupa, Maria?

- Ninguém, minha madrasta, foi eu mesmo, eu mesmo que quis lavar. Que lavei

e engomei.

- Não, Maria, você num pode fazer um serviço tão ligeiro desse jeito.

- Não, minha madrasta, foi eu mesmo que lavei.

Aí, ela disse:

- Pois amanhã você vai lavar outra maior ainda e trazer engomada do jeito que

você trouxe essa. Agora tem uma coisa: uma das menina vai acompanhar você pra ver

como é que você vai fazer.

Disse:

- Não, mas num precisa não... – e tal.

Aí, saiu chorando pra lá pr’onde tá a vaquinha.

- O que é isso, Maria, que tu tem?

- É porque minha madrasta quer descobrir por que é que eu lavei essa roupa tão

depressa e engomei.

123

Aí, ela disse:

- Tem nada não, Maria, deixa ela vim, deixa ela descobrir.

Aí, ela quando foi no outro dia, pegou a trouxa de roupa e saiu bem depressa. As

bicha veia ainda tava dormindo. Aí, quando chegou lá, a vaquinha depressa pegou a

roupa e engoliu, aí, no mesmo instante, saiu a roupa toda pronta. Aí, ela voltou pra

casa, quando chegou lá, botou a roupa lá no canto certo, e as bicha véia ainda tava

tudo dormindo. Aí, quando a... a véia se levantou-se, que era a madrasta dela:

- Maria, eu quero a roupa lavada e engomada.

Ela disse:

- Já tá tudo pronto, minha madrasta.

- Maria, você já foi aprontar essa roupa já hoje?

Ela disse:

- Fui.

- Apois você vai saber... vai descobrir como é que você tá fazendo isso.

- Não, minha madrasta, não se preocupe, deixe comigo. O importante é sua

roupa tá pronta como a senhora quer.

Ela disse:

- Pois... apois óie, amanhã eu quero que você vá me buscar um feixe de lenha,

porque amanhã vai ser a festa do casamento de uma das minhas filhas, e eu quero que

você vá buscar um feixe de lenha. Mas um feixe de lenha mesmo, grande, que é pra

fazer fogo aí, no quintal pra botar panela grande no fogo, só presta com a... muita lenha

boa.

Aí, ela disse:

- Tá bom.

Aí, foi, chorando com o facãozinho na mão, chorando... aí, a vaquinha dela

perguntou:

- Maria, o que é isso, Maria que tu vem chorando?

- Não, é que minha madrasta quer que eu leve um feixe de lenha bem grande

hoje, pra fazer a comida da festa da filha dela que vai casar...

Aí, ela disse:

- Não se preocupa, Maria, vai pra casa, que daqui a pouco a lenha chega lá.

124

Aí, ela foi pra casa alegre, aí, se escondeu pra véia não ver que ela já tinha

chegado. Quando ela deu fé, foi o baque do feixe de lenha no chão! Aí, Maria se

apresentou com o facão na mão, se fazendo que tava cansada.

- Mas Maria, como foi que você pôde alcançar... pôde trazer esse feixe de lenha

desse tamanho por dentro das mata?! Uma lenha boa dessa, só de aroeira, lenha

especial desse jeito!

- Eu trouxe, minha madrinha, a senhora num mandou... minha madrasta. A

senhora não mandou?

- Apois você vai... isso... você tem um mistério, e esse mistério nós temos que

descobrir ele.

Aí, a moça ia casar. Sim, aí, a moça a que ia casar, tinha uma inveja grande

dessa menina, e a menina foi crescendo, foi crescendo, né?, quando... Aí, ela disse...

tem... sim... aí, a moça... a moça... as moça foi e disseram:

- Maria, você vai descobrir a nós por que é que você... lava essa roupa

rapidamente, foi ver esse feixe de lenha desse tamanho!

Ela disse:

- Ô, home, descubro já! Sabe o que é que acontece?, é porque tem uma casa

dum... dum... dumas velhinha acolá, umas pelengrinazinha, coitadinha, num tem nada e

nem pode fazer nada, aí, sai por a rua a pedir esmola, mendingar o pão pra comer.

Então, eu chego lá, tá a casinha delas suja, aí... não! Eu chego lá – num foi nem suja

que disse – eu chego lá tá a casinha delas bem limpinha, uma beleza as casinha... a

casinha delas tudo limpinha. Aí, eu chego, grudo tudim, boto porqueira no chão, faço

tudo no mundo, deixo tudo lambuzado, aí, que quando elas chega, aí, diz: “Ô, minha fia,

quem fez isso fez uma beleza, vou te ajudar em tudo”. Então ela faz o bem, a quem faz

o mal. Aí, é por isso que eu ganho essas coisa tudim.

- Eita, vamos fazer também que é pra nós enricar, nós ter força mesmo!

Mas que quando... a noiva foi a primeira que foi na frente no dia que a ... elas a...

a Maria chegava lá, fazia era zelar a casa das velhinhas, num sabe? Chegava, zelava a

casa das velhinha, varria, botava água pras galinhas, cuidava dos porcos, os bicho que

tivesse fome, ela enchia o bucho do bicho e ficava lá.

125

E quando ela... chega... aí, ela se escondia atrás da porta. Quando as velhinha

chegava, dizia desse jeito: - Oh, meu Deus, quem fez essa... esse benefício a mim e a

meus bicho, Deus seja o acompanhante dela no todos os passos da vida dela, e que

tudo de bom chegue na mão dela, e tudo que ela desejar a fazer ela faça com toda

rapidez. As véia dizia era assim com ela, num sabe? Aí... mas aí, ela disse ao contrário

com as moça, porque elas eram invejosa.

Aí, as moça no outro dia, a noiva logo foi a primeira. A noiva com um rapaz rico,

só num era príncipe, mas era rico que nem elas. Aí, então, ela pegou e... e... e foi todas

duas lavar as coisa, a... ô! Grudar. Chegar lá, a casa tava limpinha que tava uma

beleza, Maria tinha limpado, tinha asseado, feito todo o asseio da casa e tal, então, elas

pegaram cocô de porco, de cachorro, terra, lama, tudo em quanto, e melaram a casa

toda, e melaram os pote da véia, encheram os pote da véia de porqueira, tudo quanto

existia de seboseira elas fizeram dentro da casa dessas velha, essas duas velhinha.

Aí, se esconderam detrás da porta. Aí, que quando elas, as velhinha, chegaram

e disseram: - Ô, meu Deus do céu! Ô que covardia que fizeram dentro da minha casa!

Menina, eu tenho fé em Deus que quem fez isso há de... de... de defecar pela boca só

cocô de jumento. E se foi... e se foi uma só, e se foi as duas... e se foi duas ou três, há

de ser a mesma coisa! E criar casco de cavalo nos pés!

A noiva foi a primeira que criou logo casco de cavalo nos pés e ficou falando,

defecando só cocô de animal por a boca. Aí, ela saiu pra casa e só falava: - glug...

glug... glug... e caindo as porqueira da boca. Aí, quando chegou em casa, aí, o... que

disse:

- É hoje os noivo, o casamento dos noivo e tal, hoje é a festa dos noivo.

Aí, que o noivo olhou pra ela, disse:

- Hein como é? A gente casa mesmo hoje?

Ela:

- Nós casa e todinho e num sei quê... – e as merda caindo da boca.

Aí, ele foi e disse... ela foi e disse desse jeito... aí, o noivo:

- Eu quero lá mais casar com uma sebosa dessa! Num quero nem vê-la! Ave-

Maria!

Aí, a mãe dela ficou tudo doida:

126

- Isso foi Maria Borralheira que fez essas bruxaria, ela é bruxeda! Quando ela

chegar... quando ela chegar ao ponto de ela lavar, engomar, rapidamente, trazer um

feixe de lenha daquele tamanho, é porque ela sabe fazer mandinga!

- Não, não foi eu!

- Que num foi eu não?! Foi você! Agora nós vamo dar fim a você pra você num

fazer uma covardia dessa com minha filha! – aí, disse – Puxa daqui! Vai s’embora! Se

tu num for s’embora rapidamente, apois tu... nós te mata nesse instante aqui!

Aí, ela foi e disse:

- Não, mas num foi eu não, mas se a senhora quiser me deixar em paz, e num

bulir mais comigo, nem viciar minha vida, eu faço com que a sua filha ficar do jeito que

era.

- Eu num disse que você é cheia de mandinga?

- Não, num é isso não, é porque... eu... eu vou falar com uma pessoa ali que

sabe.

- Apois vá! Eu quero que essa... ela fique boa nesse instante, que eu deixo sua

vida em paz!

Ela saiu chorando pro lado da vaquinha dela. Quando chegou na vaquinha:

- O que foi, Maria?

Ela contou a história. Aí, a vaquinha vomitou um... um mói de capim assim,

quando acabar, chegou lá e disse: - Tome. Chegue lá e diga a ela que ferva isso aqui e

faça um chá e tome, que ela fica boa.

Aí, Maria correu pra casa, chegou lá fez o chá, aí, deu a ela pra beber, na hora

que ela bebeu o chá ficou a mesma que era. E ficou bem, acabou-se os casco de burro

dos pés, tudo, ficou bem. Aí ela foi, disse:

- Eu num to dizendo, Maria, que você tem mandinga. Olha, você hoje, eu quero

fazer os bolo da... da... do casamento, da festa, e você é quem vai moer o milho

todinho. Essas duas cuia de milho. São vinte litro de milho. Você vai moer todinho e me

trazer para fazer os bolo.

Aí, ela disse:

- Tá bom, eu vou.

127

Aí, quando chegou lá,. A vaquinha disse... aí, ela chorando, que num... num

agüentava moer aquele horror de milho. Aí, a vaquinha disse:

- Que é, Maria?

Ela disse... ela contou a história. A vaquinha disse:

- Me dá esse milho. – Pegou, comeu o milho todinho. Acabou de comer, disse –

Agora demora aí um pouco.

Aí, comeu de novo, pou!, pou!, pou!, mas saiu a... a vaquinha entregou a massa,

saiu toda prontinha (...). Aí, deixa que por trás dela, disso tudo, tinha uma das... das

filha dela reparando o que era que ela ia fazer com aquele milho. Aí, quando ela corre

pra casa, morta de satisfeita:

- Ó aqui, minha madrinha, já moí o milho, já tá aqui!

- Mas Maria, você já moeu esse milho?

- Já.

Aí, a filha dela chegou no mesmo instante:

- Mentira, mamãe! Sabe quem é que tá fazendo todas essas felicidade pra ela?

Disse:

- Hum.

- É a vaquinha dela!

Disse:

- O que, home, é aquela vaquinha dela, aquela vaca dela que a mãe dela

deixou?

Disse:

- É aquela mesma.

Disse:

- Pronto! Vamos matar a vaca dela, e é pra seu casamento, só assim nós tem

carne pro casamento mais ainda do que a que tem.

Aí, não, ela disse:

- Não, num faça isso com a minha vaquinha, num fala isso! Foi minha mãe que

me deixou de herança... – e tal!

- Não, num quero saber! – Aí, disse pro reis – Olha, eu vou matar a vaca de

Maria.

128

Aí... aí, o reis:

- Não num vamos matar a vaca dela não, porque foi a mãe dela que deixou de

lembrança, aí temo outras, tem muitas vaca.

- Não... – aí, a véia disse – não, mas eu to desejando comer o figo da vaca. Eu tô

desejando comer o figo da vaca e só... e só serve se for dela. E se num for, já sabe que

seu filho num tem... num tem... prosperidade.

Então, ela foi e deu ordem pra irem matar a vaca de Maria. Aí, disse a Maria: -

Óia, Maria...

Sim! Deram a ordem pra matar a vaca de Maria. Aí, Maria saiu em toda carreira

num pranto desensofrido. Aí, quando chegou lá, a vaquinha disse:

- Maria, o que é que você tem que tá chorando tanto?

Aí, ela disse:

- Ô, minha vaquinha, eu num é de chorar tanto, se a minha madrasta disse que

vai lhe matar porque tá desejando comer seu figo, e eu num é de chorar tanto, você ser

a herança que minha mãe deixou pra mim, além de tudo me ajudar tanto como você me

ajuda, eu num é de chorar?

Ela disse:

- Apois, Maria, se conforme e quan... que quando elas matarem a vaca... que

quando elas me matarem, você vai e diz a elas... óie, num deixe ninguém lavar o fato...

o meu fato. Você diga que eu sou quem... que você quem quer lavar. Aí, dentro do fato

tem uma varinha de condão, então essa varinha vai lhe servir igual a mim mesmo. Você

vai e tira a varinha e guarda. Em todos os sofrimento que você se encontrar, só é pedir

o que quiser, que ela lha dá.

Ela disse:

- Tá bom. Aí, nesse caso, eu me conformo.

Aí, se conformou-se, foi pra casa. Quando foi no outro dia, disseram:

- Vamos matar a vaca de Maria! Vamos matar a vaca de Maria!

Aí, ela disse:

- E eu é que quero lavar o fato.

Aí, elas responderam:

129

- Ora, se quem é que vai lavar fato! Quem vai lavar é você mesmo, que é gata

borralheira, que é quem pode lavar, não a gente. A gente vai é se preparar pra festa,

vai lavar fato?! Isso é conversa!

Aí, quando mataram a vaca, ela botou o fato na vasilha e foi lavar. Quando

chegou lá, começou lavando a... lavando, lavando, aí, encontrou a varinha, aí, tirou,

guardou, lavou o fato, foi s’embora pra casa. Aí, que quando chegou em casa, foi a...

a... entregou lá tudo, aí, e foi pro borralho.

Aí, foi a festa, festona medonha, e ela lá no borralho. Quando foi na hora da festa

do casamento, ela pediu à varinha de condão: - Minha varinha de condão, eu quero que

você me dê um... todos os traje que uma princesa precisa pra se arrumar como

princesa, pra mim assistir essa festa da... aqui.

Aí, depressa chegou tudo que ela queria. Aí, ela se arrumou-se, tudo. Aí, quando

foi umas hora da noite chegou lá, se apresentou lá. Ah, aí... não! Aí, os rapaz ficaram

tudo abismado por ela, tinha vindo príncipe de todo canto, que era pra casar... a

enteada do reis, príncipe de todas quatro parte do mundo, príncipe adoidado pra chegar

lá.

Aí, ela... teve um dos príncipe que se apaixonou por ela, ficou doido por ela, e

ela... quando chegou a hora que a... a... a... a varinha marcou, a hora que era do

desencanto dela, que era às doze horas, ela correu pra lá e se desencantou-se, Aí,

ficou a mesma gata do borralho.

Aí, quando terminou tudo no outro dia, aí, elas disseram?

- Ô, Maria, tu num viu meu casamento... na festa do meu casamento chegou

uma moça tão linda, uma princesa. Teve um príncipe que ficou doido, doido por ela, o

príncipe filhos do reis fulano de tal, um colega de papai, ficou louco por ela, e ele... mas

ele num sabe nem onde ela mora, nem onde ela existe. Mas aí, deixa que ele... ele

pode ainda ficar com um sapatinho dela, e ela jogou um anel pra ele, e ele... e tinha o

nome gravado. Aí, ele disse que vai caçar, onde ele encontrar ela... essa moça, ele

casa com ela.

Aí, ela disse:

- Eita, será que ele vai encontrar, hein?

Ela disse:

130

- Ora, é fácil. Na cidade é grande e tem muitas moças bonita por aí, filhas dos

reis e tem reis por aí, chegou muitas princesas e pode até ele encontrar.

Aí, quando esse rapaz foi andar. Andou, andou, andou na rua por todo canto, e

moça de gente pobre, de gente rica, de todo canto procurando quem é. Quem era o

nome da... a moça que se chamava aquele nome que tinha gravado no anel e quem era

que dava... a dona do sapato.

Então, chegou na dita casa do reis. Quando apresentou o anel, aí, o reis olhou o

anel e disse:

- Esse nome aqui... esse anel é da minha filha, e o nome é dela também. – Aí,

disse – Maria... – disse o sobrenome, que eu não me lembro agora. Aí, disse – Essa...

essa... isso... esse anel é da minha filha, ela toda vida possuiu esse anel, desde ela

pequena, que foi a mãe dela que deu e ela usava ele aqui, e só pode ser dela.

Aí, a mãe dela fez... a... a madrasta fez logo pouco, disse:

- É. É, mas ora, que conversa é essa, que eu nunca vi essa menina com esse

anel? Nunca vi essa menina com esse anel, isso é conversa!

Aí, disse:

- Pois chame ela aí.

Aí, chamou. Aí, ela veio com os mesmo trapo.

Disse:

Não, num pode não! Uma moça... uma maltratada dessa...

Aí, o rei disse:

- É porque elas tão maltratando muito a minha filha, mas essa menina é minha

filha.

- Mentira sua, home! Que ela num é sua filha, é nós que cria desde pequena!

Aí, ele:

- Que conversa é essa – o reis – que conversa é essa, home? Essa é minha

filha!

Aí... mas... aí, o reis nunca via ela, que elas num deixava ele ver ela de jeito

nenhum. O reis chega chorou quando viu ela. Aí, disse:

- Maria, vá se arrumar no ponto que você se achou-se aqui nessa noite com esse

anel.

131

Ela voltou pra trás e se arrumou toda no jeito, do mesmo... no mesmos traje do

jeito que era. Que ela apresentou-se, quando chegou, ficaram tudo mordida de inveja.

Aí, o príncipe disse:

- Pronto, é essa aqui mesmo!

Aí, casou com ela e pronto, terminou a história.

_________________________

Alina de Melo Freitas. Juazeiro do Norte. 29/12/81

Recolhido por: Francisco Assis de Souza Lima

132

ANEXO E - Conto "Dom Anin"

Ela se chamava-se Ana e ela mesmo botou, apelidou o nome dela por Dom Anin.

Disse que era uma moça muito disposta e o velho pai dela só tinha ela. E tinha umas

guerra preparada aí – num sei se era em catorze, quando era – e o destino dela dava

pra pegar no cangaço que nem cabra home, viu?

Aí, um dia ela disse:

- Meu pai, se o senhor deixasse, comprasse uma arma pra mim, um rifle ou um

fuzil mode eu ir brigar nessas guerra que tão brigando... eu queria.

Aí, o veio disse:

- Mas minha filha, num dá não! Se você fosse um rapaz, eu deixava você ir, mas

você é uma moça, num pode não! Lá não tem mulher brigando, só tem home!

- Não, meu pai, mas se o senhor deixasse, eu ia.

- Não, minha filha, num vai não! Vai não!

Aí, ela pegou entristecer, imaginando, com vontade de fugir, mas tinha uma (...),

e foi, o veio escutou, disse:

- Minha véia, o que é que se faz com essa fia?

Aí, a véia disse:

- É cumprir o destino dela!

O veio disse:

- Num é possível!

Ela:

- É cumprir o destino dela.

Aí, um dia ela tornou a pedir. Aí, o véio disse:

- Mas minha fia, como é que você quer, se é um cangaceiro pra brigar? Como é?

- Eu vou dizer a meu pai como é que é. Nós vamo à loja, compra um terno de

uma mescla da boa e mando fazer uma blusa e uma calça do jeito de cangaceiro, uma

cartucheira e um fuzil e um chapéu de couro bem bom, com a aba virada pra trás todo

barrado, aí, fico parecendo com um home.

O velho disse:

- Não, mas ainda tem um porém. Um porém.

133

- Qual é o porém, meu pai?

- Ô minha fia, você deve saber sem eu explicar!

Aí, ela disse:

- Não, o senhor explique.

Aí, ela... ele foi e disse:

- O seio!

- Ora, isso eu boto um negócio aí e ataca tudo, tudo, tudo, num tem quem note!

Aí, o véio disse:

- Tá danado!

Ela deu todo jeitim do véio deixar.

- Pois é, minha fia, se a senhora quer cumprir seu destino... vai.

Aí, foram pra loja, comprou da mescla melhor que tinha, mandou o alfaiate fazer

a... o vestuário e as blusa de cangaceiro. – Eu morava em Paraíba e eu vi como era,

viu? Roupa bem-feita! – O certo é que ela se entonou-se... Era assim: um vestuário,

chapéu de couro, cartucheirão danado, cantil do lado – sabe o que é cantil? Carregar

água pra beber, viu? Coisinha de... de borracha.

E certo meu irmão, aí, se despediu dos pai e viajou, viajou. Quando chegou na

guerra, era fumaça de pólvora naquele meio de mundo, passando por riba de gente

morto, isso na carreira, aí, ela era muito disposta, viu? Aí, danou bala pra cima também,

Era pá!, o cabra atirava nela, ela atirava no cabra, se abaixava, corria, mexia pr’aqui,

pr’acolá e lutou muito tempo nessas guerra.

Agora comiam assim: quando chegavam assim numa casa, que o pessoal corria,

o que tinha eles comia e assim foram vivendo um bocado de tempo.

Aí, quando ela já tava enjoada, matou o desrino de brigar nas luta, né? Aí, ela

tava assim num canto, lá vinha um rapaz. Um rapaz desconfiado. Aí, quando chegou:

- Boa tarde!

- Boa tarde!

- Como foi que o senhor escapou, home? – o rapaz com ela, viu?

Ela disse:

- Eu me escapei bem. Que nem o senhor escapou. Como é? O senhor é que

vem pronto, como é que é isso?

134

Ele disse:

- Não, eu tô atrás de escapar! Eu vinha acolá na carreira, aí...

E Dom Anin:

- E eu também.

Aí, o rapaz perguntou:

- Como é que o senhor se chama?

Aí, ela disse:

- Me chamo Dom Anin.

Ela chamava-se Ana, mas botou o nome pra Dom Anin.

- E o senhor?

- Me chamo João.

Aí, se falaram e se apressaram e se abraçaram e lá vai, essas coisa... viu?

Aí, o João perguntou:

- Me diga uma coisa. E o senhor mora longe daqui?

Aí, Dom Anin morava perto, mas disse:

- Eu moro longe.

Aí, deu... deu assunto do lugar que morava. Aí, Dom Anin perguntou:

- E o senhor, onde mora?

Aí, João disse:

- Eu moro bem pertim daqui e eu num tenho pai nem irmão nem m... só tenho

mãe, uma mãe véia. Vamo lá pra casa?

Aí, Dom Anin disse:

- Vamo. – Isso era uma moça, viu?, num era rapaz, mas tava em traje de home.

– Vamo!

Aí, o home seguiu mais Dom Anin pra casa dele. Quando chegou lá, a véia

abraçou o filho João, pensava que tinha morrido nas guerra:

- Ô, meu filho, como se foi, tu escapou? Graças a bom Deus, o Coração de

Jesus, (...) – tudo.

E abraçou o filho. E Dom Anin espiando.

- Ô, meu filho, e esse companheiro, te acompanhou? Donde é ele?

Aí, João disse:

135

- Mãe, esse rapaz é de longe, foi que ele só vinha mais eu, com esse rapaz, nós

se demo a conhecer, ele mora muito longe daqui, e eu moro mais perto, chamei ele pra

ficar uns dois ou três dias mais a gente, uma fuga enquanto ele vai embora pra casa

dele.

Aí, ela falou pra ele... Aí, quando a véia falou pra Dom Anin, já foi conhecendo.

Aí:

- Meu fio, vem cá! – ele voltou pra dentro. Aí, a véia disse: - Ô meu fio, e aquele

rapaz (...) Me diga uma coisa, parece que é uma moça!

A véia, viu? Aí, o home disse:

- E minha mãe já tá caducando? Minha mãe já tá caducando. Que um rapaz que

vive com um armamento daquele, brigando! Minha mãe tá comparando com uma

moça? É não, mãe!

- Meu filho! Hum... hum!...

Aí, Dom Anin volta pra fora, aí... Dom Anin comprou um poldo... o anjo da guarda

dele. Comprou não, apareceu um poldim pra Dom Anin. Toda bem cedo, toda meio-dia,

toda tardinha, Dom Anin tinha que ir pro brejo mudar o poldo. O poldo dando todo

assunto a ele.

Aí, o poldim disse:

- Dom Anin, você tenha cuidado que aquela véia tá descobrindo muita coisa. Ela

hoje vai usar uma experiência pra ver se você é moça ou se não é. Se é home. E tenha

cuidado!

Aí, o poldo ensinou pra ele fazer. Aí, quando chegou em casa, aí, João disse:

- Ô, Dom Anin, essa roupa tá um pouco véia, vamo pra loja comprar umas

fazenda?

Aí, ele disse:

- Vamo.

Aí, a véia disse:

- João, você preste atenção em que roupa ele se agrada. Se ele se engraçar só

de roupa que for pra muié, é muié! Se for só roupa pra home, é home!

Aí, o poldim ensinou a Dom Anin o que é pra fazer, e a véia ensinou o filho. Aí

foram na loja, aí, Dom Anin disse:

136

- Ô João, mas aquele chapeuzão pra nós (...) assenta bem...

Aí, João disse:

- Mas Dom Anin, essa fazenda pra mode nós fazer um vestido...

- Nada, que (...) nada! Bom é aquele terno acolá pra nós, é que assenta, home!

Só se engraçava novidade pra home. Aí, João fez as comprinha, ele também fez,

vieram pra casa. Chegou lá a véia foi logo:

- Meu filho, como se foi?

- Fui bem, minha mãe. Nesse caso, quem é muié sou eu! Porque eu só me

engraçava vestuário tudo pra muié, e ele só coisa pra home.

Aí, a véia disse:

- Meu filho, eu não tô acreditando! Ali é uma moça!

- É não, minha mãe! Minha mãe ta cadu... É não, minha mãe!

- Tá certo, meu filho, certo. Meu filho, vamos usar outra experiência.

Aí, Dom Anin correu pra mudar o poldo. Quando chegou lá, o poldo ensinou

como é que era pra ele fazer. Aí, a véia:

- Meu filho, eu vou assar uma carne de porco bem engordurada, e pra você ir

fazer aqui um lanche, antes do almoço. Eu boto a carne no espeto, quando ela tiver

correndo aquela gordura, eu levo pra mesa, e você chame Dom Anin e mande ele partir

a carne. Que se ele partir e lamber os dedo, é muié (Risos). E se num lamber, é home.

Aí, a véia assou a carne, só que botava a carne ali quando ele chegasse. Aí:

- Chega meu filho, venha cá mais o rapaz.

Aí, quando sentaram ali, a véia veio com a carne chiii!, descendo a gordura. Aí,

botou ali na cuia da farinha, aí, o João disse:

- Parta, Dom Anin.

Aí, Dom Anin só fez, lá na farinha, (...), com uma vontade de molhar a boca, mas

num podia, né? Tava ensinado. Aí, partiram a carne e comeram. A véia lá pra dentro

escutando. Quando acabou:

- Ô, mãe, já acabemo. Traz o café.

Tomaram café.

- Meu fio, como se foi?

137

- Minha mãe, só quem lambeu os dedo fui eu. Dom Anin num lambeu os dedo de

jeito nenhum. Será que minha mãe tá enganada? Será que quem é muié é eu?

Aí, a véia:

- Num tem nada com o peixe, mas ali é uma moça. Mas, meu filho, se fosse uma

moça, pra tu casar com ela, eita moça bonita!

De fato, era uma moça... Eu ainda vi ela, viu? Bonita, bonita mesmo! Olha, aí... e

João disse:

- Eh, mãe! É o quê? É nada!

- Tá certo.

Quando foi outro dia, a véia caçou todos meio pra descobrir. Era no tempo da

seca, tava fazendo calor... Aí, a véia disse:

- Ô João, vamo fazer outra arrumação pra ver se a gente descobre.

Tinha uns pé de flor em riba da casa, (...) uma flor encarnada, outras branca...

- Tu chama Dom Anin pra dormir de noite, aqui nesses pé de flor, arma uma rede

pra vocês, vocês se balança, canta uma moda, uma coisa... Quando vocês dormirem lá,

se quando o dia amanhecer, se a rede dele tiver cheia de flor encarnada, é home. Se

for flor branca, é muié.

Aí, Dom Anin correu, foi mudar o poldo. Lá o poldo avisou como é que fazia:

- João... Dom Anin, tu não dorme, cuidado!

Aí, João:

- Dom Anin, vamos... um calor danado, vamo armar uma rede ali, debaixo dos

pés de arvoredo ali pra nós dormir?

- Vamo.

Pra tudo donde João chamava, Dom Anin ia.

- Vamo!

Armaram a redona, aí, se deitaram, se balançaram, cantaram moda, essas coisa,

o quê. Aí, João agarrou no sono, e Dom Anin acordado. Quando vinha um ventim... xiii!,

a rede de Dom Anin se enchia de flor branca e a... aí, ele tirando as flor... E a de João,

flor encarnada. Aí, Dom Anin tirava as flor da rede dele e botava na rede de João, tirava

as de João, botava na rede dele. E nisso ele levou a noite todinha. Quando João se

estremecia na rede, aí, Dom Anin saía... Roonc! Roonc! Quando João agarrava no

138

sono, Dom Anin cuidava, até quando (...). Quando foi bem cedinho, que João se

levantou-se, a rede dele tava cheia de flor branca, e a de Dom Anin só tinha flor

encarnada, chega tava aquele cordão (...).

Aí, a mãe de João:

- Que foi, meu filho?

- Nesse caso quem é muié sou eu, que aí só tem flor branca, pura, pura! Num

tem encarnada. Em Dom Anin só tem flor encarnada, num tenho nada com isso!

- Mas é muié!

É e num é, aquela teima da... da véia mais o filho, teimando! Aí, Dom Anin por

ali...

- Rapaz, eu vou embora. Já gozei muito... mas ainda vou esperar alguma coisa

aí...

Quando foi outro dia, aí, a véia disse:

- João, só tem um meio pra nós descobrir agora. Fora esse num tem outro. –

Bicho danado é véia né?

- (...) vocês chegaram, não tomaram banho, chame Dom Anin para o banho.

Aí, danou-se, não? Aí, danou-se! Mas teve...

- Aí, foi descoberto!

- Foi não, foi o quê! Não, teve jeito.

Aí, João disse:

- Dom Anin, nós num tomemo... vamos tomar um banho naqueles poço.

- Vamo.

Aí, Dom Anin amarrou o poldim bem no beicim do poço (...). Aí, o poldim disse:

- Dom Anin, você hoje vai cuidar pra tomar banho nesse poço, vem um bocado

de gente, e a véia que atrás de descobrir alguma coisa. Você me amarre aqui num jeito,

quando João chegar, que ele for tirando a roupa, você faça que vai tirando também,

que quando eu ver que tá no ponto de tirar, aí eu faço aquele... me enlinho aqui, eu

mesmo me enlinho aqui e faço aquele zoada e aí, você se acocora, esquenta o corpo,

num toma mais não!

- É mesmo! Tá certo.

Aí, chegou em casa, João:

139

- Vamo tomar banho?

- Vamo!

Foram. Saíram com a rapaziada, aquela água de poço. Eles dois, dois rapaz

mais ou meno, né?, ficaram ali de cócoras, esfriando o corpo. Isso num era uma roupa

nem duas não, era bem três roupa, tudo atacado, tudo bem atacado. – Avalie Dom Anin

como tava todo atacado, hein? – Capa por riba de capa e capa e tal.

Aí, os outro tiraram a roupa e jogaram tudo (...) e tchibum! (...) Dom Anin mais

João escutando. Aí, João disse:

- Dom Anin , nós já esfriemo o corpo?

- Já, já.

Aí, Dom Anin foi logo desabotoando o blusão de cima... – João – aí, quando

desabotoou a blusa pra tirar, aí, tirou a ... a camisa de João. E Dom Anin foi começando

desabotoar a de baixo até, quando foi começando a desabotoar, meu irmão, o poldo fez

uma zoada tão grande! Aí, quem tava dentro do poço saiu nu e João acabou de abotoar

a camisa e Dom Anin correu do jeito que tava, aí, o bichim tava... com a corda já

morrendo enforcado. Aí, disse:

- Ô, ia perdendo meu cavalo! Ô... mas... mas rapaz! Ah, João, (...) o sangue

agora, eu tô com o sangue quente num vou tomar mais banho não...

João disse:

- E eu também não posso não. Também não posso não!

Foram pra casa. Aí, a véia:

- Como se foi, meu filho?

- Fui bem.

- Tomaram banho?

- Não, senhora.

- Óie, num tô dizendo! É moça!

- Mas mãe, num teve banho por isso, isso e isso.

Aí, contou tudo, aí, ela disse:

- Ainda tem um negócio pra eu descobrir ainda. Tem um negócio pra eu

descobrir. Aí, disse:

140

- Você chame Dom Anin pra passar três dia com três noite escrevendo debaixo

daquele arvoredo. Eu levo almoço, levo janta, levo café, merenda, tudo pra vocês. Se

ele cochilar primeiro, é mulher, e se não cochilar, é homem.

Aí, Dom Anin... João disse:

- Mas mãe, isso é uma perversidade!

- Não! Agora... agora eu quero saber disso!

Aí, João disse:

- Ô Dom Anin, vamo ver quem agüenta mais sono?

Dom Anin disse:

- Vamo.

Aí, arrumaram as rede, mais um bocado de papel e tinta, lápis, essas coisa,

foram escrever... Na primeira noite João já cochilou. Pouquinho, mas cochilou e Dom

Anin de olho bugaiado. No outro dia a velha veio, e lá vai, lá vai... quando foi nos dois

dia, João já tava bêbado de sono, e Dom Anin de olho bugaiado. Quando foi pra inteirar

três noitecom três dia, João tomou um cochilo tão grande que caiu, ficou lá, morto. E

Dom Anin morrendo de sono, mas não dormiu de jeito nenhum.

Aí, quando Dom Anin disse:

- João! João! – ela nada.

Ora, antes do dia amanhecer, Dom Anin fez uma carta bem-feita, bem notada,

dizendo quem era, quem não era, donde era, donde num era, aí, deixou tudo em cima

dos papéis tudo.

Aí, o povo disse: - Dom Anin acaba de ir s’embora.

Aí, Dom Anin foi até o poldo, o poldo tinha se sumido! – era o anjo da guarda

dele, que era pra (..) ele.

Aí, quando João se levandou-se, que ela veio trazer a merenda com café: - Dom

Anin cadê... João, cadê teu companheiro?

- Dom Anin?

Nada, nada! Foi mudar o poldo. Chega lá, nem poldo nem Dom Anin nem

ninguém, viu? Aí, ele:

- Ôxente, cadê Dom Anin? O que é que houve? Cadê, cadê?

141

Caçou e nada, nada, nada. Aí, correu água dos óio com pena do camarada, fazia

dia que tavam junto, né? E certo que foram juntar os papéis, aí, achou que Dom Anin

deixou quem era, quem num era, pai, mãe, donde era, donde num era! Aí, que João

ajuntou os papéis, disse:

- Eita, minha mãe! É uma moça mesmo!

- Eu num te disse, malvado! Tava de bem te forçar pra tu ir atrás dela! Eu bem

que dizia que aquilo era uma moça. É uma moça, tá vendo?!

- Mas minha mãe!

Aí, João pegou a chorar com desgosto, com pena, essas coisa, (...), lá vai. Aí,

ficou.

Aí, Dom Anin viajou, rapaz, quando chegou em casa, foi uma festa tão grande,

tinha música, tinha sanfona, mas tinha tudo, viu? Foi uma festa tão boa, que levaram

uma garrafa de pinga, só deu pra eu, de tão alegre eu fiquei. Foi, comi um doce e (...) a

cana, e entrou por uma de pinto e uma de pato, rei meu senhor disse que eu contasse

quatro.

José Herculano da Rocha. 02/1980

Recolhido: Francisco Assis de Sousa Lima

AT 514+884

Poldo – sm. – Filhote de cavalo, o mesmo que poldro ou potro

Olho bugaiado – pop. - Olhos esbugalhados, muito abertos

142

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