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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Erivaldo dos Santos Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégias de ler e escrever pelo avesso PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Erivaldo dos Santos

Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégias de ler e escrever pelo

avesso

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

SÃO PAULO

2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Erivaldo dos Santos

Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégias de ler e escrever pelo

avesso

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS

EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação do Profª. Drª. Maria

Rosa Duarte de Oliveira.

SÃO PAULO

2010

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Banca Examinadora

________________________________________

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Dedico esta dissertação às duas mulheres eixo de minha

vida: minha mãe Antônia Rosa dos Santos (in memoriam) e

minha avó Maria Rosa da Conceição (in memoriam) que

sempre apoiaram e acreditaram na minha capacidade de

superar obstáculos e continuar no caminho do

conhecimento e da pesquisa.

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente à minha amada e estimada esposa, Vânia Coelho, que

esteve comigo nos momentos mais difíceis, incentivando-me e entendendo as horas

de ausência em nome dos estudos machadianos.

Agradeço à minha orientadora Maria Rosa Duarte de Oliveira pela paciência,

dedicação e crítica construtiva no decorrer da produção desta pesquisa.

Agradeço a Capes que me possibilitou estudar numa instituição altamente

qualificada com bolsa total, sem a qual não teria sido possível esta empreitada.

Agradeço a todos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica

Literária pela atenção dedicada e, principalmente, à secretária Ana Albertina de

Oliveira Miguel.

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Aí vou escorregando para o passado, cousa que não

interessa no presente. O passado que o jovem leitor há de

saborear é o presente, lá para 1920, quando os relógios e

os almanaques criarem asas. Então, se ele escrever nessa

coluna, aos domingos, será igualmente insípido com as

suas recordações. (Machado de Assis. Crônica 25 de

março de 1894 “A Semana”).

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RESUMO

Esta dissertação tem como tema a citação e a alusão na crônica machadiana.

Objetiva-se estudar o circuito do Sermão da Montanha como estratégia de leitura e

de escritura no processo de aludir e citar, tendo na inversão da fonte por ironia ou

paródia sua força de reescritura afinada com o sério-cômico de linhagem luciânica.

Cinco crônicas foram selecionadas para corpus desta pesquisa, a saber: “Parasita II”

na seção “Aquarelas” de 9 de outubro 1859, publicada no periódico O Espelho; as

publicadas na seção “Ao acaso” de 12 de junho de 1864 e de 22 de agosto de 1864,

no Diário do Rio de Janeiro; além de duas outras - as de 4 de setembro de 1892 e

25 de março de 1894, publicadas na seção “A Semana” do periódico Gazeta de

Notícias. Levantamos como problema da pesquisa a seguinte indagação: como

Machado de Assis, pelo uso da citação e da alusão, esvazia o discurso canônico e

revela seu antidogmatismo? Como hipótese, consideramos o uso da citação e da

alusão como método machadiano de ler-escrever pelo avesso, fundado sobre a

ironia e a paródia, de sorte a esvaziar o discurso canônico de tradição bíblica,

representado pelo Sermão da Montanha. Norteamos a pesquisa pelo suporte

teórico sobre texto legível e escriptível de Barthes e os de paródia alicerçados em

Linda Hutcheon e Bakthin, além dos estudos de Enylton de Sá Rego sobre o vínculo

da obra machadiana com a sátira menipeia de linhagem luciânica. Após leitura,

análise e comparação entre as citações e alusões do Sermão da Montanha nas

crônicas selecionadas, consideramos que Machado de Assis se utiliza de citação e

alusão, ainda que num gênero considerado menor como a crônica, como estratégias

discursivas que visam à formação do leitor.

Palavras-chave: Machado de Assis; crônica; alusão; citação; ler-escrever.

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RESUMÉ

Cette dissertation traite de la citation et de l'allusion dans la chronique machadienne.

Cette étude se concentre sur le circuit du «Sermão da Montanha» en tant que

stratégie pour la lecture et l'écriture dans le processus de construction des allusions

et des citations, ayant dans l'inversion de la source de l'ironie ou de la parodie sa

force de reécriture en phase avec le sérieux-comique de la lignée lucianique. Il a été

choisi comme corpus de cette recherche cinq chroniques, à savoir: «Parasita II»

dans la section «Aquarelles», 9 octobre 1859, publiée dans le périodique O Espelho;

les chroniques publiées dans la section «Ao acaso», le 12 juin 1864 et le 22 août

1864, dans le Diário do Rio de Janeiro, et deux autres – la chronique du 4 septembre

1892 et du 25 mars 1894, publiées dans la section «A Semana» du périodique

Gazeta de Notícias. La recherche visait à répondre à la question suivante: comment

Machado de Assis avec l'utilisation de la citation et de l'allusion vide le discours

canonique et révèle son anti-dogmatisme? Comme réponse possible à la question

soulevée, on a considéré l'utilisation de la citation et de l'allusion comme une

méthode de Machado de lecture-écriture en sens inverse, basée sur l'ironie et la

parodie, de manière à vider le discours canonique de la tradition biblique, représenté

par le «Sermão da Montanha". Notre recherche a été orientée et soutenue par

l'apport théorique de Roland Barthes, avec son concept de texte lisible et escriptible,

de Linda Hutcheon et Bakhtine, avec la parodie, en plus des études d'Enylton de Sá

Rego sur le lien entre le travail de Machado de Assis et la satire menipée de lignée

lucianique. Après la lecture, l'analyse et la comparaison entre les citations et les

allusions du «Sermão da Montanha" dans les chroniques sélectionnées, on en

conclut que Machado de Assis cite et fait allusion – même dans un genre mineur,

telle qu’est considérée la chronique – comme une stratégie discursive visant à la

formation du lecteur.

Mots-clés: Machado de Assis; chronique; allusion; citation; lire-écrire.

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ABSTRACT This dissertation deals with the quotations and allusions found in Machado’s chronicles. This study focuses on the circuit of the Sermon on the Mount as a reading and writing strategy in the process of alluding and quoting; its rewriting strengths are found in inversion through irony or parody in tune with the seriocomic Lucianic lineage. Five chronicles were selected for the body of this research, namely: "Parasite II" in the "Watercolors" section of October 9th, 1859, published in “The Mirror” newspaper; the chronicles published in the "By chance" section of June 12nd, 1864 and 22 August 1864, in the Rio de Janeiro newspaper, and besides these, two more chronicles from September 4th , 1892 and March 25th , 1894, which were published in the " The Week" section of the Gazeta de Noticias newspaper. We raised the following question as the central issue of this study: how does Machado de Assis make use of quotations and allusions, thus emptying the canonical discourse and revealing its anti-dogmatism? We hypothesize that the use of quotations and allusions is Machdo’s method of reading and writing inside out, which is based on irony and parody, so as to empty the canonical discourse of the biblical tradition, represented by the Sermon on the Mount. Our research was guided by the theoretical support on the readable and writeable text of Barthes and parody grounded in Linda Hutcheon and Bakhtin, in addition to the studies of Enylton de Sá Rego regarding the link of Machado's work with the Menippus satire genre of Lucianic lineage. After reading, analyzing and comparing the quotations and allusions of the Sermon on Mountain in selected chronicles, we believe that Machado de Assis makes uses of quotations and allusions, albeit in a lesser degree, a genre called chronicle, as the discursive strategies that aim at training the reader. Keywords: Machado de Assis; chronicles, allusion, quotation and read-write.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

CAPÍTULO I - A Citação e a alusão: ato de ler e escrever....................................12

CAPÍTULO II – Ler e escrever pelo avesso: paródia, ironia e sátira

menipeia....................................................................................................................29

CAPÍTULO III – Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégia de ler e

escrever pelo avesso...............................................................................................37

3.1. Machado de Assis cronista..............................................................................37

3.2. A ruminação mastigativa: O “Sermão da Montanha” em cinco crônicas

machadianas.............................................................................................................40

3.2.1. O Parasita........................................................................................................42

3.2.2. Ao Acaso.........................................................................................................46

3.2.3. Ao Acaso II......................................................................................................48

3.2.4. O Diabo e o Sermão da Montanha................................................................51

3.2.5. A Guerra do Paraguai, Eclesiastes e o Sermão da Montanha...................58

CONSIDERAÇÕES FINAIS – Ler e escrever nas trincheiras da citação e da

alusão........................................................................................................................66

REFERÊNCIAS..........................................................................................................68

ANEXO A - “Parasita II” na seção “Aquarelas” de 9 de outubro 1859, publicada

no jornal O Espelho..................................................................................................71

ANEXO B - Crônica de 4 de setembro de 1892, publicada na seção “A Semana”

- Gazeta de Notícias.................................................................................................73

ANEXO C - Crônica de 12 de junho de 1864, Diário do Rio de Janeiro...............76

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ANEXO D - Crônica de 22 de agosto de 1864, Diário do Rio de Janeiro.............77

ANEXO E - Crônica de 25 de março de 1894 publicada originalmente na Gazeta

de Notícias, Rio de Janeiro......................................................................................78

ANEXO F - Sermão da Montanha - São Mateus Capítulo V..................................81

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INTRODUÇÃO

O tema deste trabalho é o estudo da citação e da alusão entendidas como

estratégias de leitura e de escritura em Machado de Assis, tendo por recorte o texto

Sermão da Montanha e o modo como é reconfigurado em cinco crônicas, a saber:

―Parasita II‖, de 9 de outubro de 1859, publicada no Espelho; ―Ao acaso‖, 12 de

junho e 22 de agosto de 1864, publicadas na coluna A Semana Ilustrada, no

periódico Diário do Rio de Janeiro e as crônica de 4 de setembro de 1892 e 25 de

março de 1894 publicadas no jornal Gazeta de Notícias.

Vislumbra-se nesta sucessão de citações e alusões do Sermão da Montanha

um Machado leitor da Bíblia, que se apropria do texto sagrado para reescrevê-lo por

meio do processo simultâneo de leitura e de escritura. Neste jogo, o leitor se depara

com um novo texto, um sermão paródico e irônico que se caracteriza pelo desvio e

pela subversão do sentido dogmático e religioso original do texto sacro. A partir do

desvio e do rebaixamento, o sermão recebe um novo contexto temporal - segunda

metade do século XIX - e um novo topos - Rio de Janeiro no Brasil.

Ao se posicionar sobre a citação e a alusão como estratégias de leitura e de

escritura, esta dissertação se aproxima dos trabalhos realizados por Passos (1995),

Senna (2003) e Oliveira (2008), no sentido de que os pesquisadores veem as

citações e as alusões em Machado de Assis como um procedimento escritural.

Embora tenhamos certeza de que nos textos escolhidos para corpus desta

pesquisa haja outras citações e alusões já exploradas em vários trabalhos,

pretendemos estudar apenas o circuito do Sermão da Montanha como discurso

citado, na acepção de Bakhtin (1979, 1993, 2003, 2005), isto é, o discurso dentro do

discurso de forma a criar um campo bivocal e dialógico entre duas vozes textuais: a

da fonte citada e aquela que a desloca para outro contexto escritural.

Tal procedimento, seja por meio da citação explícita, seja por meios indiretos

como a alusão, implica o método machadiano de escrever como quem lê ou de ler

como aquele que escreve, revelando uma semelhança com a concepção de Barthes

sobre o ―escrever a leitura‖. (2004, p. 63).

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Machado de Assis não cita ou alude para referendar uma fonte ou para

demonstrar erudição, mas revela o uso e a apropriação do discurso do outro como

elemento fundador de uma reescrita à luz de uma nova leitura.

O trabalho escritural de Machado de Assis nas crônicas escolhidas revela o

Sermão da Montanha como uma rede que interpõe diálogo entre o texto legível e

canônico e o escriptível, isto é, aquele que, na acepção barthesiana, cria, a partir do

texto legível, outro que o reescreve sob nova perspectiva. Isso pressupõe um

circuito dialogal, um choque entre sujeitos: o do texto fonte e os daqueles que o

reinterpretaram, deslocando-o para outros contextos. É esta tensão entre dois ou

mais planos discursivos que estabelece o campo de forças dialógicas da

enunciação, dando origem a um texto, a partir de estratégias como a paródia ou o

jogo irônico, fundados sobre a linhagem luciânica do sério-cômico da sátira

menipeia.

Esta dissertação é constituída de três capítulos, a saber: O primeiro capítulo –

A citação e a alusão: ato de ler e escrever – põe em evidência diferentes

perspectivas teóricas sobre citação e alusão, a partir das concepções de discurso

citado de Bakhtin (1979, 1993, 2003, 2005), texto legível - escriptível e leitura-

escritura, sob o enfoque de Barthes (2004), além do estudo desenvolvido por

Antoine Compagnon (2007). O segundo capítulo – Ler e escrever pelo avesso:

paródia, ironia e sátira menipeia – prima por reflexão teórica sobre estes

procedimentos discursivos de inversão e crítica estabelecendo as conexões com o

ato de leitura-escritura. Já o capítulo três – Citação e alusão nas crônicas

machadianas: estratégia de ler e escrever pelo avesso – analisa as citações e

alusões do Sermão da Montanha nas crônicas selecionadas, demonstrando o

antidogmatismo machadiano por meio de um ato de leitura-escritura pelo avesso,

isto é, tendo por referência a linhagem da menipeia de tradição luciânica.

Com esta pesquisa, esperamos oferecer contribuição para os muitos estudos

críticos empenhados na reflexão sobre o método machadiano das citações e

alusões, especialmente as de fonte bíblica, como é o caso do Sermão da

Montanha.

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Capítulo I – A citação e a alusão: ato de ler e escrever

Voltemos à frase de Balzac. Ninguém (isto é, nenhuma "pessoa") a diz: sua

fonte, sua voz não é o verdadeiro lugar da escritura; é a leitura. [...] o texto é

tecido de palavras de duplo sentido que cada personagem compreende

unilateralmente [...] há, entretanto, alguém que ouve cada palavra na sua

duplicidade, e ouve mais, pode-se dizer, a própria surdez das personagens

que falam diante dele: esse alguém é precisamente o leitor (ou, no caso, o

ouvinte). (BARTHES, 2004, p. 63).

Citar em latim – Citare - significa pôr em movimento, fazer passar do repouso

à ação. O termo ainda se traduz pelo verbo citar como sinônimo de provocar, de

incitar ou como os cognatos suscitar, solicitar, incitar, ressuscitar, entre outros, na

concepção de um jogo lúdico, de uma provocação. Citar significa provocar, erguer

da terra, trazer à vida, tornar vivo e seduzir. (COMPAGNON, 2007, p. 60).

Etimologicamente, a palavra citação, a partir do radical ―cit‖, pode ser

associada ao conceito de texto legível e de texto escriptível, uma vez que a citação

tende a incitar um movimento no leitor que é levado a associar a memória da citação

com seu novo contexto e, desta forma, investigar a fonte. Neste sentido, a citação

move o leitor para um campo de significação diferente daquele em que fora tomada.

Já a palavra alusão, do latim allusio, alludere, tem como significação primária

o sentido de jogar com, referir-se a, porque faz uma referência direta ou indireta à

obra, personagem ou situação.

Fundida no magma do texto, ou explícita, a alusão impõe-se pela própria

natureza do que se pretende transmitir e, só assim, tem razão de ser. As

mais das vezes, a alusão insere a obra que a contém numa tradição comum

julgada digna de preservar-se. [...] nem sempre o leitor, ainda que culto e

atento, capta a alusão encerrada numa passagem. Na realidade, quando

um texto nos evoca outro, só podemos supor que existe alusão, a menos

que tenhamos ciência de que o escritor conhece o trecho evocado.

(MOISÉS, 2004, p. 18).

A palavra alusão ainda se aproxima do vocábulo latino ludo, ludus que

significa ―jogar, divertir-se; compor; imitar; gracejar; enganar; iludir, fingir, lograr,

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simular, zombar, escarnecer, ridicularizar, jogo ou espetáculo público‖. (FERREIRA,

s/d, p. 687).

O que chama a atenção é o fato de a palavra estar ligada ora ao ato lúdico,

ora ao logro (vejamos o radical de lud presente no verbo iludir) e ao simulacro, como

se colocasse o leitor em confronto com o texto numa postura desafiadora.

A percepção da alusão é mais subjetiva, isto é, altera-se de sujeito para

sujeito dependendo do repertório do leitor e, vista como um ato que implica leitura,

torna-se mais desafiadora do que a citação, uma vez que esconde o texto tomado

como referência.

Já a citação para Compagnon (2007), é uma ―dinamys cujo texto é o ergon; o

trabalho ou a ação‖ (p. 60), isto é, citar significa também, entre outras definições, pôr

em movimento, fazer passar do repouso à ação.

Se relacionarmos com o contexto da leitura e da escritura, tanto a citação

quanto a alusão são o resultado do trabalho de ler e de escrever, isto é, implicam um

movimento da inércia inicial (um texto legível e cristalizado pela tradição) para a

ação provocadora de deslocamento e apropriação. O autor leu, recortou e escreveu

a sua leitura, como diria Barthes (2004), num novo espaço, o que significa também,

na concepção bakthiniana, inserir um discurso no outro, estabelecendo um contexto

dialógico alicerçado sobre uma palavra bivocal.

Tanto a citação quanto a alusão, portanto, caracterizam-se como estratégias

de provocação para a memória literária e cultural do leitor, que o desafia para

desvendar o jogo instaurado por trás da palavra tomada como empréstimo. Neste

caso, podem ser consideradas semelhantes a ―recortes‖, como quer Compagnon

(2007), que se deslocam de um contexto original e atuam num outro, estranho

àquele de onde partiram.

Citar é recortar como faz uma criança com uma tesoura nas mãos de modo a

permitir que o objeto mutilado seja reeditado num espaço de criação. O que foi

recortado perde sua autenticidade, mas passa a ser outro também verdadeiro, sem

anular as marcas que o associam ao texto original.

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[...] quando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Um objeto primeiro, colocado

diante de mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se

interrompe numa frase. Volto atrás: re-leio. A frase relida torna-se fórmula

autônoma dentro do texto. [...] o fragmento escolhido converte-se ele

mesmo em texto, não mais um fragmento de texto, membro amputado;

ainda não o enxerto, mas órgão recortado e posto em reserva.

(COMPAGNON, 2007, p. 14).

Há neste processo de recortar-colar um prazer singular que se vincula ao ato

de ler, selecionar, guardar e, ao mesmo tempo, recusar a fonte citada.

Recorte e colagem são as experiências fundamentais com papel, das quais

a leitura e a escrita não são senão formas derivadas, transitórias [...]. Entre

a infância e a senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a escrever.

Leio e escrevo. Não paro de ler e escrever. [...] Gosto do segundo tempo da

escrita, quando recorto, junto e recomponho. Antes ler, depois escrever:

momentos de puro prazer preservado. [...] Dois dentre os grandes escritores

deste século comprovariam essa definição: Joyce e Proust. O primeiro

apresentava a tesoura e a cola, scissors and paste, como objetos

emblemáticos da escrita; o segundo pregando aqui e ali seus pedaços de

papel comparava de bom grado seu trabalho ao do costureiro que constrói

seu vestido, [...] E no texto, como prática complexa do papel, a citação

realizada, de maneira privilegiada, uma sobrevivência que satisfaz a minha

paixão pelo gesto arcaico do recortar-colar. (ibidem, p. 13).

Para o autor, citar é o gesto segundo da leitura, que significa mutilar,

desenraizar, é a extração, pois o texto colocado diante do leitor é interrompido pela

necessidade de recompor os passos da leitura, instaurando o jogo de avanço e

recuo, próprio do ato de ler. Nesse sentido, o fragmento escolhido transforma-se em

outro texto, autônomo, sem ser um membro mutilado ou um pedaço deslocado de

um discurso.

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A leitura é procedimento explosivo, mutilador, desmonta o texto e o

dispersa, mesmo quando não se está recortando, ocorre um processo de

citação que ―desagrega o texto e o destaca do contexto‖. Dentro desse

movimento, a leitura seleciona frases, recorta-as mentalmente, mesmo que

não haja o trabalho do sublinhar, ocorrerá o da citação, pois são frases das

quais se gosta, que são consideradas como parte de um mostruário.

(COMPAGNON, 2007, p. 13).

A citação se torna resultado do deslocamento ou da recusa realizada pela

leitura, porque nem sempre é demarcada graficamente para indicar a inserção do

outro na escrita literária. A ausência deste artifício gráfico, no caso as aspas,

caracteriza um jogo estabelecido pelo autor textual, como fez Montaigne (1972) ao

omitir o nome dos autores citados para fazer valer o efeito não somente estético,

mas também o da argumentação.

E, no que tomo de empréstimo aos outros, vejam unicamente se soube

escolher algo de realçar ou apoiar a ideia que desenvolvo, a qual, sim, é

sempre a minha. Não me inspiro nas citações; valho-me delas para

corroborar o que digo e que não sei tão bem expressar, ou por insuficiência

da língua ou por fraqueza dos sentidos. (p. 196).

O uso da citação e da alusão resulta, então, de um trabalho duplo de leitura e

de escritura e pode ser visto como jogo de sedução, que ora conduz o leitor ao

desvio da fonte, ora o provoca, escondendo a autoria de maneira intencional e

comprometendo a sua originalidade, por meio de um jogo de inversão, rebaixando,

trocando as posições semânticas de um enunciado por outro.

Desta forma, a citação e a alusão podem ser vistas como um gesto lúdico que

torna o espaço da escrita um lugar de transformação, uma vez que operam como

estratégias capazes de ―ressuscitarem aquilo que estava morto‖, dando uma nova

vida ao citado pelo desvio e deformação.

Imitar asseguraria o domínio da língua, e citar, o domínio do discurso.

Proust não teria dito que todo escritor começa pelo pastiche? A citação teria

existido sempre, desde o nascimento da linguagem até a sociedade de

lazer. Quem contestaria sua universalidade? (COMPAGNON, 2007, p. 61).

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Ainda temos que a citação e a alusão são como estratégias de leitura e de

escrita abrindo a possibilidade do diálogo, com a concepção de escritura que, para

Barthes, o texto literário deveria ser chamado de escritura no sentido de ―encenar a

língua‖, isto é, torná-la um ―tecido de significantes que constitui a obra, porque é o

texto próprio o aflorar da língua‖. (2004, p.16).

Entendendo literatura não como um corpo ou uma sequência de obras, nem

mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das

pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso, portanto,

essencialmente, o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui a

obra, porque o texto é o aflorar da língua, e porque é no interior da língua

que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela

é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro. (op. cit.)

Para o autor, o trabalho do escritor se centraliza no deslocamento que faz no

tecido da língua, na maneira como o subverte, tornando as palavras um conjunto

cênico de múltiplas sensações e sabores interpretativos, que fazem ―do saber uma

festa‖. (ibidem, p. 20).

Tendo por base estas reflexões, podemos pensar que o texto literário é

também o lugar da leitura, pois é a manipulação da língua no processo de escritura

que faculta ao escritor o seu gesto criador que só se completa no outro que o

deseja.

Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram

escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do

escritor). Mas ao contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim,

escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que

eu o procure ( que eu o ―drague‖), sem saber onde ele está. Um espaço de

fruição fica então criado. Não é a pessoa do outro que me é necessária, é o

espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do

desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo.

(BARTHES, 1999, p. 9).

Barthes vê a literatura como um prato a ser saboreado, estabelece uma

comparação entre o léxico e a culinária; as palavras devem ter um sabor, um gosto

profundo. Curiosa esta analogia, pois os vocábulos ―sabor‖ e ―saber‖ possuem na

língua portuguesa o mesmo radical. O sabor das palavras está no saber profundo

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que a elas está atrelado. Ao se fazer uma leitura, pratica-se uma ação mastigatória

em que é possível ao leitor deliciar-se com as palavras, como se houvesse um prato

a ser saboreado; é o gesto fágico a que se refere Quintiliano (1889, p. 1 e p. 19)

quando é citado por Compagnon (2004, p. 14).

Assim como se mastiga por muito tempo os alimentos para digeri-lo mais

facilmente, da mesma maneira o que lemos, longe de entrar totalmente cru

em nosso espírito, não deve ser transmitido à memória e à imitação senão

depois de ter sido mastigado e triturado.

O ato de ler, para Oliveira (2008), ao referir-se às Memórias Póstumas de

Brás Cubas, está relacionado ao ―desvestir antropofágico e dessacralizador desse

corpo pela arte da mastigação‖. (p. 29). É a mastigação que propicia o melhor

aproveitamento do alimento, torna-o mais aceitável à digestão, logo, o gesto fágico

referido por Quintiliano é uma ação que favorece a assimilação de um texto pela

memória. Quando se cita, é porque se prevê que o texto ou parte dele se encontra

guardado na memória dos livros e do leitor.

O que faz o leitor ―levantar a cabeça‖, segundo Barthes, é a ação digressiva

que caracteriza atividade de leitura (2004, p. 26), é o desejo desencadeado pelo

sabor das palavras que o leva a estabelecer associações por meio de um

movimento de imersão e volta à superfície.

Nunca lhe aconteceu. Ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura,

não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de idéias. Excitações,

associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?

É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e

apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, [...] em outras palavras,

interrogar a minha própria leitura é tentar captar a forma de todas as

leituras. (op. cit.)

Percebe-se que o texto escapa da mão do autor, deixa de ser dele na forma

concebida, cai no colo do leitor que o acolhe numa relação de aventura e de ruptura,

preenchendo os espaços com a fruição de sua leitura. É desta forma que o texto

legível se torna escriptível.

Segundo Perrone-Moisés, o texto legível é aquele que só permite uma

representação, enquanto o escriptível é aquele que permite uma re-apresentação.

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―O primeiro só pode ser lido, o segundo pode ser re-escrito. O primeiro se presta à

crítica, o segundo solicita uma outra escritura‖. (2005, p. 43). Instala-se entre os

textos uma fenda no sentido de tornar visível a avaliação sobre a prática da

escritura: o fato de um texto segundo surgir como ―instigação‖ a partir de um primeiro

atesta o seu valor.

[...] a leitura, pelo contrário (esse texto que escrevemos em nós quando

lemos), dispersa, dissemina; ou, pelo menos, diante de uma história. [...]

associa-se ao texto material (a cada uma de suas frases) outras idéias,

outras imagens, outras significações. ―O texto, apenas o texto‖, dizem-nos,

mas, apenas o texto, isso não existe: há imediatamente nesta novela, neste

romance, neste poema que estou lendo, um suplemento de sentido de que

nem a gramática pode dar conta. (BARTHES, 2004, p 28).

Ainda de acordo com Perrone-Moisés, a citação é também o centro nervoso

da relação entre escritura/leitura. O escritor se coloca estrategicamente no jogo da

citação e da alusão, denunciando, dessa forma, a biblioteca universal a que está

vinculado.

Leitura e escritura são obras coletivas, em maior ou menor grau,

dependendo da consciência assumida pelo leitor e pelo escritor com relação

à amplitude e à responsabilidade de sua empresa comum: não obra

individual. A obra de um indivíduo é uma espécie de nó que se produz no

interior de um produto cultural, no seio do qual o indivíduo é, desde a

origem, um momento desse tecido cultural. Assim, uma obra é sempre obra

coletiva. [...] a citação, como vimos, é o ponto nevrálgico da ligação leitura-

escritura. (2005, p. 131).

Senna, por sua vez, entende que as citações e alusões no caso machadiano

fazem parte de um procedimento de escrita como resultado de um processo de

leitura.

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POUCOS — TALVEZ NENHUM — AUTORES DA LITERATURA brasileira

fazem, como Machado de Assis, uso da citação e da alusão a outras obras

da tradição literária. Do Antigo Testamento a Victor Hugo, da Ilíada a Edgar

Allan Poe, das Mil e uma noites a Álvares Azevedo, o universo referencial

de Machado parece infinito. E, o que é melhor, o autor faz dos textos que

apropria ferramenta de trabalho, pondo a citação e a alusão, nem sempre

muito precisas ou fiéis ao original, a serviço da técnica de narrar: ora

funciona para complementar a caracterização de uma personagem, ora

para encadear a trama romanesca, ora para servir ao narrador na sua

necessidade de controlar a recepção do leitor. (SENNA, 2003, p. 1).

Enquanto isso, Oliveira (2008) também em seu estudo sobre o livro Memórias

Póstumas de Brás Cubas analisa a estratégia das citações e alusões como ato

duplo de leitura-escritura que opera tanto no nível do autor quanto no do próprio

leitor, desde que seja convidado a partilhar a autoria do texto que escreve durante a

leitura.

[...] escrever tendo a leitura como princípio de composição textual significa,

em primeiro lugar, dividir a responsabilidade da escritura com outros autores

de cuja leitura Machado de Assis é devedor [...]. Na medida que esses

empréstimos textuais se realizam, fazendo do livro uma condensação da

memória de outros livros que nele se inscrevem, o leitor Machado de Assis

inviabiliza a já tradicional crítica de fontes na sua busca por reconstituir os

originais, inevitavelmente roídos pela invenção da leitura. (p. 25).

É o ato da leitura que provoca no leitor o desejo da escrita como produto de

um ato mastigativo gerador de uma cadeia que não se esgota, uma vez que cada

leitura vale ―pela escritura até o infinito‖. (BARTHES, 2004, p. 40).

Barthes menciona que a leitura propicia três tipos de prazer: o primeiro surge

da relação entre o livro e o sujeito-leitor, que tira prazer de certos arranjos das

palavras; o segundo modo diz respeito a uma força que impulsiona o leitor para

frente na leitura, graças ao suspense que o força a interromper e retomar o ritmo da

leitura em função do desvendamento narrativo, da suspensão e da espera pelo

desfecho; o terceiro tipo de prazer trazido pela leitura é a aventura de tornar-se

escritura, respondendo ao desejo de ―escrever a leitura‖ e instaurar o ―gozo da

escritura‖ fazendo uma espécie de ―ritual de passagem‖ por meio do qual o ―sujeito-

leitor‖ transforma-se em sujeito-escritor. (ibidem, p. 39).

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Se considerarmos a palavra texto pelo seu sentido etimológico de tecido,

trama, enredamento de fios mínimos que se entrelaçam no emaranhado de sua

superfície, as citações podem ser entendidas como parte do alinhavar1, do sentido

aberto pela escritura. Perceber as linhas que cruzam o texto não significa desfazê-lo,

nem provocar buracos em sua superfície, mas entender por quais caminhos

intricados o sentido se configura no entrelaçar desta rede escritural. Ao tomar

contato com o texto, que é um ―tecido de citações‖ (BARTHES, 2004, p. 62), o leitor

dá unidade a este mosaico por meio do diálogo entre as citações presentes no texto

e a sua biblioteca individual como efeito de um processo dinâmico de forças opostas

que se encontram num espaço comum: a escritura.

O texto, dessa forma, é tecido de escrituras múltiplas, vindas de culturas

diferentes e ―que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em

contestações [...]. Toda essa multiplicidade reúne-se não no autor, mas no leitor‖ [...],

que ―é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as

citações de que é feita uma escritura‖. (ibidem, p. 64).

Barthes também amplia a definição de texto que não se confunde com a obra,

objeto material e fixo, porque o texto, que é linguagem e só existe como discurso em

movimento constante entre o texto legível e o escriptível, expande os limites físicos

da obra, inaugurando um espaço dialogal entre leitura-escritura, leitor e autor, texto

e obra.

O texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária

do texto. Ou ainda só se prova o texto num trabalho, numa produção. A

conseqüência é que o texto não pode parar (por exemplo, numa prateleira

de biblioteca); o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode

especialmente atravessar a obra, várias obras). (ibidem, p. 67).

Assim, texto, para Barthes, é o equivalente a texto escriptível, isto é, aquele

que se instaura como um espaço aberto a re-escrituras possíveis no universo de

leituras-escrituras vindouras.

Perrone-Moisés ao tecer comentários sobre o vínculo entre escritura e

literatura para Barthes, afirma que a literatura é:

1 Alinhavar: passar a linha sobre o orifício de uma agulha, relativo à linha. Como linha, a palavra

também possui a semântica de texto, escrita, palavra escrita numa mesma direção, coisa escrita, nesse sentido, o termo ―alinhavar‖ significa, portanto, tornar algo escriptível, que tem propriedade de escrita, que pode ser escrito, ou vir a ser escrito.

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um saber ao qual só tem acesso pela produção de um novo texto: texto

mental da leitura, texto concretizado numa nova obra literária. Texto que o

sujeito não pré-existe como sujeito-que-sabe, mas na produção do qual o

sujeito se cria e se recria, numa significância infinitamente aberta.

(PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 14).

Há duas margens no texto: a primeira estabelece uma relação indireta com a

tradição, enquanto a outra trilha o caminho do vazio, apta a tomar não se sabe quais

contornos, uma vez que nunca é mais do que o lugar de seu efeito. O gozo

encontra-se na fenda entre duas margens. A presença de um prazer do texto na

leitura e na escritura só é possível no duplo leitor-autor.

Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram

escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do

escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim,

escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que

eu o procure (que eu o ―drague‖), sem saber onde ele está. Um espaço de

fruição2 fica então criado. Não é a ―pessoa‖ do outro que me é necessária, é

o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do

desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo

(BARTHES, 1999, p. 9).

A citação como resultado de uma leitura do gozo estético é ―a neurose, como

último recurso, [...] é o único que permite escrever (ler)‖. (ibidem, p. 11). A margem

da ruptura, da subversão se estabelece pela perda, pela fenda, pelo corte, dessa

maneira ―a cultura retorna, portanto, como margem: sob não importa qual forma‖.

(ibidem, p. 13).

A leitura que desencadeia o gozo é aquela que nos convida a desrespeitar a

tradição para provocar o strip-tease do texto, isto é, mostrá-lo em sua intimidade,

oculta sob a vestimenta de uma leitura consagrada pelo cânone.

Este instante de subversão da leitura pelo leitor não pode ser previsto pelo

autor, ―ele não pode querer escrever o que se não lerá. No entanto, é o próprio ritmo

daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer do texto‖ (ibidem, p. 18).

2 Na tradução do livro ―O Prazer do Texto, o tradutor optou por usar o termo ―Fruição‖ em vez de

Gozo‖, como foi feito em outros livros citados neste trabalho.

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O gozo situa-se na leitura escusa, na clandestinidade, numa leitura de texto

furtado. A leitura que provoca o gozo é aquela que desloca o leitor do seu centro de

segurança, é aquela que balança as raízes das suas referências culturais e

históricas.

[...] texto de prazer: aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está

ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição (gozo): aquele

que coloca em estado de perda, que desconforta (talvez até um certo

enfado), faz vacilar os alicerces históricos, culturais, psicológicos do leitor, a

consistência de seus gostos, de seus valores, de suas lembranças, põe em

crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1999, p. 22-23).

Segundo o conceito de texto de gozo e de texto de prazer, a citação como

argumento de função científica está dentro do que foi colocado como texto de

prazer, porque dialoga com as bases culturais e históricas sem questioná-las, sem

provocar ruptura. Já a citação e a alusão quando provocam um deslocamento,

fazendo a movência do sentido, subvertem suas bases referenciais e, por isso,

escrevem-se como texto de gozo, pois é aquele tipo de enunciado que causa o

desconforto, a perda e a ruptura com o referente original.

Pela reflexão de Barthes é possível perceber que escritura é o resultado de

um processo de leitura. O texto se encontra entre a leitura e a escritura. O trabalho

presente na escritura é marcado pela recusa ao estilo, não é mera cópia de um texto

anterior, logo o que se caracteriza em Barthes como escritura diz respeito ao

trabalho laborioso com a linguagem.

Outro aspecto que se destaca na reflexão barthesiana é o fato de se ver a

citação como a estratégia de leitura que retoma o já dito, porém, afastando-se da

cópia, assumindo uma postura de invenção, subversão e criatividade, num jogo de

concessões e retomadas. A escritura, nesse sentido, aproveita-se do atrito da

língua, forçando-a a ir ―além de suas possibilidades‖. (PERRONE-MOISÉS, 2005, p.

42).

Quem sabe o contato com a cultura anterior firmado pelo deslize abrupto seja

também o estabelecimento de um dialogismo bakhtiniano, pois, pelo que se entende

do pensamento barthesiano, a escritura não se isenta do choque com o outro. A

escritura se faz neste jogo de forças entre a tradição e o novo, que não é novo, mas

que se faz pela re-escritura do que já foi dito. A percepção da escritura pelo leitor

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abre opções em que cada livro lido tece outra escritura num leque de universalidade

ao infinitum.

A citação ou a alusão é uma força escritural presente no processo de escrita,

escreve-se porque se lê, lê-se no sentido de que haverá uma escrita daquilo que foi

lido, mesmo que seja realizada mentalmente. Escreve-se porque se busca o dizível,

busca-se exprimir o que se sente, pensar em palavras grafas. Tem-se a certeza de

que escrever não é fruto de um trabalho mecânico ou simplesmente o objeto final do

ato de recorte e colagem, mas caso possa ser, é também o fruto de um eco que

ressoa e se aloja no escritor.

Barthes não usa as expressões ―discurso citado‖, ―dialogismo‖ e ―polifonia‖,

estas expressões pertencem ao pensamento bakhtiniano, mas se percebe que a

maneira como trata a escritura muito se aproxima do que Bakhtin reflete sobre o

discurso citado.

[...] um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e

que encontram umas com as outras em diálogo, em paródia, em

contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse

lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o

espaço mesmo onde se inscrevem, sem que perca todas as citações de que

é feita a escritura; [...]. (BARTHES, 2004, p. 64).

O leitor é o mediador do diálogo entre as múltiplas escrituras, sendo que é ele

que se torna o lugar em que o texto se atualiza e se torna outro pelo ato da leitura. O

pensamento de Barthes sobre escritura coaduna-se com o de Bakhtin, no sentido de

que ambos possuem a reflexão sobre a presença da alteridade no discurso literário,

ou, no caso barthesiano, de seu outro, que é a leitura.

Os conceitos de citação de Compagnon (2007) e Barthes (2004) foram vistos

como elemento extra-texto, um jogo de recorta e cola inserido numa relação de

leitura e escritura. A partir de Compagnon, tem-se m painel descritivo e analítico

sobre o uso da citação com todas as possibilidades inerentes à etimologia,

restaurando definições clássicas de Montaigne a Quintiliano, passando por Barthes,

no estudo de texto como algo inacabado, aberto ao processo de reescritura pela

leitura e escritura, e concebendo dentro das associações realizadas os conceitos de

texto legível e de texto escriptível. Portanto, abre-se um diálogo com as formulações

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sobre discurso citado, que combina em alguns aspectos com os autores estudados

até o momento.

É necessário que se veja a citação como força tensional entre enunciados

opostos, ou então, como espaço estratégico da escritura, filha da leitura, eco de

vozes multiformes e resultado de um jogo dialógico, servindo, portanto, ao trabalho

literário.

A partir de Bakthin, a citação pode ser vista como um duplo que estabelece

relações dialógicas.

Dois enunciados alheios confrontados, que não se conhecem e toquem

levemente o mesmo tema (idéia), entram inevitavelmente em relações

dialógicas entre si. [...] O autor de uma obra literária (romance) cria uma

obra (enunciado) de discurso único e integral. Mas ele cria a partir de

enunciados heterogêneos, como alheios. Até o discurso direto do autor é

cheio de palavras conscientizadas dos outros. (2003, p. 321).

É desta maneira que se instaura o discurso citado, uma vez que todo

enunciado parte do pressuposto do já dito e que a relação estabelecida entre dois

enunciados caracteriza um conflito, um confronto de forças opostas de cuja tensão

dialética surge o discurso citado como resultado de um trabalho de leitura e de

escritura.

Em todas as circunstâncias humanas, nas suas relações discursivas, ocorre

algum tipo de citação, uso de referência ou de alusão. Os discursos são constituídos

por um jogo dialógico de múltiplas vozes.

Pode-se mesmo dizer: fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que

os outros dizem - transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, julgam-se a as

palavras dos outros, as opiniões, [...] referem-se a elas. Se prestarmos

atenção aos trechos de um diálogo tomado ao vivo na rua, [...] ouviremos

com que freqüência [...] as palavras ―diz‖, ―dizem‖, [...] Qualquer conversa é

repleta de transmissões e interpretações das palavras dos outros. A todo

instante se encontra nas conversas ―uma citação‖ ou uma ―referência‖ ao

que disse uma determinada pessoa, ao que ―se diz‖ ou àquilo que ―todos

dizem‖, às palavras de um interlocutor [...] a um jornal, a um decreto, a um

documento, a um livro, etc. (BAKHTIN, 1993, p.139-140).

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Segundo Bakhtin (1993), a transmissão discursiva pela oralidade, na maioria

das vezes, é feita de maneira indireta, sem que seja feita alguma alusão à fonte, à

citação ou à referência a que se faz menção. Funde-se no enunciado representado

nos procedimentos de transmissão, que podem ser a literalidade do discurso alheio

(discurso direto ou uma citação truncada) ou paródia.

Entendemos que o universo discursivo oral é fruto também de enunciados

emprestados de discurso alheios, afetando, portanto, o sentido de originalidade, uma

vez que estas apropriações ganham vida e contextos distintos. A percepção da

citação direta ou indireta é referendada pelos verbos dicendi, isto é, verbos do dizer,

que demarcam linguisticamente o distanciamento entre o sujeito como autor ou não

do enunciado.

Para Bakthin, por mais precisa que seja a citação do discurso alheio no

contexto, ―o discurso sempre está submetido a notáveis transformações‖. (ibidem, p.

141). Não se podem separar os procedimentos de elaboração do discurso de outrem

daqueles que implicam o seu enquadramento dialógico (contextual). Uma palavra

alheia inserida num novo contexto discursivo funde-se a ele tanto no plano de

expressão quanto no plano do conteúdo, numa relação indissolúvel, o que

impossibilita a percepção dos limites entre um e outro.

O autor de uma obra literária (romance) cria uma obra (enunciado) de

discurso única e integral. Mas ele a cria a partir de enunciados

heterogêneos, como que alheios. Até o discurso direto do autor é cheio de

palavras conscientizadas dos outros. (BAKHITN, 2003, p. 321).

Este texto nunca seria inteiramente novo, mas uma atualização de outros

enunciados, de outros textos; seria, portanto, um eco de outras vozes, como define

Bakhtin, um espaço em que o dialógico se manifestasse num jogo de forças

estabelecidas entre o sujeito-leitor versus o sujeito-autor, um eu versus outro. Este

jogo é caracterizado pela dualidade de forças opostas e pode ser visto como uma

manifestação dialógica em que ocorre o ―jogo entre opiniões em confronto, confronto

entre duas, ou mais consciências‖. (1993, p. 378).

Ainda segundo o autor russo, ―o discurso citado pode entrar no discurso e na

sua construção sintática, por assim dizer ―em pessoa‖ [...] conservando sua

autonomia estrutural e semântica, sem nem alterar a trama lingüística [...] (1979, p.

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130), ou seja, passa a fazer parte de um novo contexto sem a perda de traços

identificadores, o que significa que a mudança de sentido é decorrente do

deslocamento, traduzindo-se em outro texto.

No deslocamento do discurso narrativo para o citado, o contexto narrativo

elimina sua

objetividade e passa a ser percebido como a fala de outra pessoa. O

narrador fala através da linguagem das personagens representadas na obra

e o autor desaparece. Todos os acontecimentos passam pela cabeça dos

personagens. Nesta passagem, as fronteiras se desfazem e é preciso ler

um discurso pelo outro. (MACHADO, 1995, p. 112, 113).

Para Bakthin (1979), a transmissão do discurso do outro considera uma

terceira pessoa, isto é, quem está recebendo as enunciações citadas. No decorrer

deste processo, o relevante a ser considerado é a presença de forças sociais que

organizam o modo de apreensão do discurso. Este fato revela a importância do

contexto social a que o falante está envolvido, assim como a presença de traços

sociais presentes no discurso citado.

No entanto, o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a

interação dinâmica dessas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que

serve para transmiti-lo, na verdade, eles só têm uma existência real, só se

formam e vivem através dessa inter-relação, e não de maneira isolada. O

discurso citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma

inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da

inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal.

(p.134).

A apreensão do discurso citado por um enunciatário não o torna mudo,

privado de palavra, todavia, está repleto de palavras interiores. Ocorre, pois, uma

relativização entre a atividade mental (fundo perceptivo), ―é mediatizado para ele

pelo discurso interior que se efetua a apreensão e é aí que se opera a junção com o

discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra.‖ (ibidem, p.133).

O discurso citado (discurso dentro do discurso) não anula as palavras daquele

que apreendeu o discurso do outro, ocorre uma inter-relação dos dois contextos

discursivos.

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Fica estabelecido um diálogo, que é a condição do discurso citado. O

dialogismo decorre da ação verbal entre o enunciador e o enunciatário no espaço

textual.

O diálogo implica complexidade, porque rompe as trincheiras do discurso de

um com o do outro, criando um terceiro, sem que haja uma fusão, porque não se

pode fundi-los, visto que apresentam pontos de visão diferentes, mas que

estabelece uma inter-relação, porque o diálogo é um confronto. Isso é alteridade,

uma tensão, porque não se tem uma visão total particular, mas se tem o excedente

de visão sobre o outro.

A potência do diálogo é o confronto, a tensão, é isso que constrói a cena da

enunciação. Na cena enunciativa, é possível que haja dois discursos; na citação

como discurso citado tem-se um confronto de dois sujeitos, isto é, o texto recortado,

que veio para um novo contexto e o novo contexto em que o texto entrou. Este texto

se encontrava numa cena enunciativa, porque estava num contexto, tinha um

sentido no todo, mas quando foi recortado, passou a fazer parte de uma nova

enunciação.

A relação entre o sujeito e o outro neste diálogo, mais o que está em torno

dele, implica a discursividade, a receptividade e a tensão, pois a enunciação é um

campo dialogal, tensional. Aqui encontramos o narrador, os personagens, os outros

textos da cultura pela citação, alusão, tudo isso se tornando uma grande polifonia

vocal, subconjuntos dentro de conjuntos.

É na enunciação que se modulam os enunciados, é uma relação de

significado, que está na relação dialogal. Embora o enunciado ofereça elementos

que estão em processo dialogal, deve-se colocá-los em processo para se criar a

cena da enunciação. Portanto, o leitor se torna peça importante para se criar uma

nova cena enunciativa, com o seu contexto; a relação do leitor com o texto

estabelece o surgimento de um novo campo dialogal.

O novo campo dialogal, a nova cena produzida pelo deslocamento de uma

citação ou de uma alusão inserida num outro contexto revela o sentido por trás do

aspecto etimológico destas palavras: possibilidade do desvio, do embuste, do

engodo, principalmente no que se refere ao termo ―alusão‖, se o intuito usado pelo

expedidor for provocado pelo afastamento da cena original.

Quando se realiza uma citação direta ou indireta (alusão) se desloca o

fragmento ou o discurso da cena enunciativa. O choque entre a cena original e o

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novo contexto fica latente quando se tem a oportunidade do confronto, mas no

momento em que esta possibilidade é apagada pelo esvaziamento dos traços que

indiquem a fonte, ocorre a inserção da cena A na cena B, confundido-se no novo

contexto.

Este aspecto do apagamento dos traços identificadores da fonte é que faz

com que haja o trabalho do texto escriptível, um texto que se renova pelo ato da

leitura. O trabalho da leitura é tomar um texto legível (texto consagrado pela tradição

e pela crítica) em um texto escriptível (um novo texto, aberto a novas leituras e

interpretações) novo no sentido de que o leitor atento consegue encontrar novas

possibilidades de leitura em um texto que foi marcado pela visão crítica que engessa

o olhar sobre o texto, que direciona o leitor à mesma direção interpretativa de

sempre, não permitindo que se faça um caminho diferente no tratamento do discurso

literário.

Tentamos ao longo deste capítulo fazer um breve levantamento de aspectos

teóricos que norteiam os conceitos de discurso citado cuja fundamentação teórica

pautou-se nos estudos de Bakthin (1979, 1993, 2003 e 2005). Muito já foi dito e

discutido sobre discurso citado e polifonia, por isso não se pretende esgotar o

assunto. Nossa preocupação aqui foi retomá-los a fim de que pudéssemos costurar

uma aproximação entre os conceitos barthesianos de texto legível e texto escriptível.

A partir desta aproximação, entendemos que tanto o ato de citar como o de aludir,

visto por Compagnon (2007) como um gesto de recorta e cola, é mais do que um

simples ato de bricolagem, é, na verdade, uma extensão do processo de tessitura de

uma literatura que, guardadas as devidas idiossincrasias teóricas, completam-se

para responder ao problema da formação de um público leitor na obra machadiana,

em especial, as crônicas selecionadas para esta dissertação.

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Capítulo 2 – Ler e escrever pelo avesso: paródia, ironia e sátira

menipeia

Considerando a citação e a alusão como estratégias do ler e do escrever, já

que citar e aludir são resultados destas duas práticas que intimamente se

consolidam no texto escriptível machadiano, notamos que, dadas as possibilidades

de desvio, pelo deslocamento e pela inserção numa nova cena contextual, a citação

e a alusão sofrem a ação da ironia e da paródia, estratégias próprias da linhagem da

menipeia à qual Machado de Assis se filiou.

Para Linda Hutcheon (1985), a paródia é recurso estilístico.

[...] é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com

distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo.

Versões irônicas de ―transcontextualização‖ e inversão são os seus

principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do

ridículo desdenhoso à homenagem reverencial. (p. 54).

Para a autora, citação, alusão e paródia implicam bivocalidade, aproximando-

se assim da interpretação bakthiniana, porém, com uma ressalva: apenas a paródia

implica a relação necessária com um texto-fonte cuja repetição se fará por diferença

no novo texto que o parodia.

A paródia tem uma determinação bitextual mais forte do que a citação ou

até que a alusão simples; partilha tanto o código paródico genérico de um

texto particular a ser parodiado, como código paródico genérico em geral.

Incluo a alusão aqui, porque também ela tem sido definida de maneira que a

têm levado a ser confundida com a paródia. A alusão é um expediente para

a ―ativação simultânea de dois textos‖ (Ben-Porat 1976, 107), mas fá-lo

essencialmente através da correspondência – não da diferença, como é o

caso da paródia. Todavia, a alusão irônica estaria mais próxima da paródia

[...] A paródia está, pois, relacionada com o burlesco, a farsa, o pastiche, o

plagiariarismo, a citação e alusão, mas mantém-se distinto deles. [...] sua

repetição é sempre de outro texto discursivo. (ibidem, p. 61).

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A paródia como um texto que se põe a dialogar com outro, delineando

diferenças entre o original parodiado e aquele que o parodia, também instaura um

diálogo necessário com o leitor, posto que só se pode reconhecer a existência de

uma paródia na relação entre os dois textos envolvidos e o leitor. Observando por

este aspecto, a paródia se coloca numa posição de rejuvenescimento do texto

parodiado.

Os escritores literários sempre se viraram para os textos do passado, mas

nem sempre tiveram de ser tão didáticos e abertos como, digamos, John

Fowles em The French Lieutenant‘s Woman. A prática clássica de citar as

grandes obras do passado visava tomar de empréstimos parte do seu

prestígio e autoridade, mas, para que isto acontecesse, partia igualmente do

princípio de que o leitor reconheceria os modelos literários interiorizados e

colocaria no complementar circuito da comunicação – de uma ―memória

erudita‖ (learnèd memory, memória dotta). (HUTCHEON, 1985, p. 112).

O gesto maior na construção do sentido paródico está na relação

estabelecida entre o ler e o escrever, por isso a ponte entre o leitor e sua memória

literária é fundamental para a interpretação do ler pelo avesso, que implica, assim,

atualização e renovação da tradição. A diferença crítica em relação à fonte tomada

por empréstimo ou apropriação evidencia a produção de um efeito destronador, isto

é, retira-se do original o status canônico e o reveste com roupagens de arlequim.

A função dessacralizadora realizada pela paródia reavalia o modo operante

do ler e do escrever. Cria-se um ludus duplo que se atualiza entre o ler do texto-

fonte pelo autor e o seu escrever, ou ainda, entre o ler do leitor e a escritura de sua

leitura. O ato de provocar uma escrita que subverta um texto canônico exige que

haja também uma leitura que interprete o avesso do parodiado inscrito nas tramas

daquele que o parodia, aproximando-o do burlesco, da farsa, do pastiche e do

plagiariarismo, conforme afirma Hutcheon (1985). A partir destes pontos, guardadas

as devidas diferenças e posicionamentos entre os autores, podemos aproximar a

concepção de paródia de Hutcheon à de Bakthin (2005), cujas raízes estão numa

tradição medieval: a carnavalização.

No estudo feito por Bakthin (2005), a paródia, que compreende uma análise

histórico-literária desde a tradição dos diálogos socráticos até a Idade Média,

encontra-se na tradição dos festejos populares, especialmente no carnaval, seu

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locus. É neste mundo às avessas que se instaura um jogo de inversões e

rebaixamentos responsável pela subversão paródica do sério e elevado num híbrido:

o sério-cômico. O consagrado é rebaixado ocupando a esfera inferior da desordem.

Quebra-se a barreira hierárquica entre os homens de níveis sociais diferentes, que

passam a coabitar o mesmo espaço social, a praça carnavalizada. Com isso, o

carnaval, para Bakthin, não é o espetáculo em si, mas a vivência de uma prática que

rompe a ordem habitual, por isso vive-se o carnaval como uma vida às avessas.

A paródia, como uma prática vinculada à carnavalização, surge pela

necessidade do homem em lidar com o riso, que reduz as fronteiras entre o sério e o

cômico, fazendo do distante, canonizado e aurático, próximo e contemporâneo; daí a

sua força para o gênero romance, desde seu nascimento na menipeia, ao se

posicionar, justamente, no presente da cultura, de onde o passado e o futuro podem

ser contemplados e reconfigurados na história do homem ―que fala‖, isto é, do seu

discurso, a verdadeira personagem do romance na concepção bakthiniana.

Bakthin, ao aprofundar a análise do romance no contexto medieval, verifica

que a influência de cultura popular manifesta-se nas tradições carnavalescas.

O homem medieval levava mais ou menos duas vidas: uma oficial,

monoliticamente séria e sombria, subordinada à rigorosa ordem hierárquica,

impregnada de medo, dogmatismo, devoção e piedade, e outra público-

carnavalesca, livre, cheia de riso ambivalente, profanações de tudo o que é

sagrado, descidas e indecências do contato familiar com tudo e com todos.

E essas duas vidas eram legítimas, porém separadas por rigorosos limites

temporais. (2005, p. 129).

Para se entender adequadamente a originalidade da consciência cultural do

homem medieval, além de fenômenos como ―paródia sacra‖, é preciso compreender

a ―alternância e o mútuo estranhamento desses dois sistemas de vida e pensamento

(oficial e o carnavalesco).‖ (ibidem, p. 130).

Dessa forma, a Palavra Sagrada na Idade Média assumiu o lugar de

protagonista na literatura paródica, graças às mudanças de tonalidade na pronúncia,

alteridade do padrão linguístico do latim eclesiástico ao vulgar, etc. O texto paródico

permite entrever a presença cultural da época por meio da estilização e de seu efeito

deformador.

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Esta palavra, seu estilo e sentido, tornaram-se objeto de representação,

transformaram numa imagem, circunscrita e cômica. A ―paródia sacra‖ latina

era construída sobre a língua nacional vulgar, cujo sistema de pronúncia se

infiltrou no texto latino. Por isso, a paródia é na realidade um fenômeno

bilíngue: ainda que uma língua única, ela é construída e expressa à luz de

outra língua; algumas vezes não só os acentos, mas mesmo as formas

sintáticas dessa língua vulgar são claramente sentidas na paródia latina. A

paródia latina é um híbrido premeditado. (BAKTHIN, 1993, p. 389).

A forma pela qual se parodiavam os textos sacros na Idade Média inclui

várias manifestações de citação: ―semidissimulada, dissimulada, semiconsciente,

inconsciente, correta, intencionalmente deformada, não intencionalmente

deformada, reinterpretada tencionalmente.‖ (BAKHTIN, 1993, p. 385). Por

conseguinte, a presença da citação como estratégia paródica no contexto medieval

leva Bakthin a criar uma tipologia que evidencia a força desta estratégia discursiva,

aventando o problema da intencionalidade.

E aqui não raro surge o problema de saber se o autor faz uma citação

respeitosa ou, ao contrário, cita com ironia e ―escárnio‖. A ambigüidade para

com o discurso do outro era freqüentemente proposital. (op. cit.).

Como se pode ver, a paródia funda-se no dialogismo, no confronto entre

linguagens e no jogo de alteridade, de modo que estabelece o cruzamento entre

dois pensamentos linguísticos, dois sujeitos do discurso e é isso que lhe confere o

estatuto de bivocalidade.

A paródia se instaura no elemento de criação literária deixando perceber o

fundo ativo desta criação artística. De maneira invisível, nota-se o outro texto

(discurso) parodiado sob aquele que o parodia. Por haver este jogo entre as

linguagens, entre os sujeitos do discurso, entre os dois pensamentos linguísticos, é

que a paródia é definida como um ―híbrido dialogizado‖, pois ―nela, as linguagens e

os estilos se esclarecem reciprocamente.‖ (ibidem, p. 390).

Outro aspecto relevante a respeito da paródia é a sua ligação com a sátira

menipeia que, por sua vez, liga-se à carnavalização. Por sátira menipeia, entende-se

um gênero textual em farsa que mistura o erudito, o burlesco e o popular e está na

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origem das formas romanescas, inscritas na cultura popular, segundo Bakhtin

(1993).

A sátira menipeia tem sua origem em Menipo de Gádara, filósofo do séc. II a.

C, porém, como forma nominal de gênero, foi usada pela primeira vez pelo erudito

romano do século I a. C Marco Terêncio Varro, que chamou à sua sátira de ―saturae

menippea‖. (ibidem, p.112).

Segundo o autor russo, a sátira menipeia atravessa vários gêneros

influenciando a literatura cristã antiga.

Esse gênero carnavalizado, extraordinariamente flexível e mutável como

Proteu, capaz de penetrar em outros gêneros, teve uma importância

enorme, até hoje ainda insuficientemente apreciada, no desenvolvimento

das literaturas européias. A ―sátira menipéia‖ tornou-se um dos principais

veículos e portadores da cosmovisão carnavalesca na literatura até os

nossos dias. (2005, p.113).

A sátira menipeia é fortemente marcada pelo elemento cômico, livre das

limitações histórico-memoralísticas inerentes aos diálogos socráticos.

Descompromissada em relação à verossimilhança, embora possa haver menção a

personagens históricos, podem habitar no mesmo espaço literário personagens

históricos e lendários. A sátira menipeia tem como particularidade mais importante a

finalidade filosófico-ideológica, isto é, por mais que a fantasia seja extremamente

audaciosa e descomedida, a intenção é ―criar situações extraordinárias para

provocar e experimentar uma verdade filosófica‖. (ibidem, p.114).

Entre quatorze características apresentadas por Bakthin, ao analisar a sátira

menipeia, destacam-se ainda, a combinação orgânica do fantástico livre e do

simbolismo e, às vezes, elementos místicos religiosos com o submundo extremado e

grosseiro; a ação e as síncrises (oposições) dialógicas fundadas em três planos

distintos – Terra, Inferno, Olimpo (céu) – a representação de inusitados estados

anímicos, psicológico-morais anormais do homem e toda espécie de loucura, as

cenas de escândalos, comportamentos excêntricos, discursos e declarações

inoportunas; o jogo de contrários, o alto e baixo, o rico pobre, o imperador convertido

em escravo, etc.; o cruzamento de gêneros intercalados como cartas, discursos

oratórios e a fusão dos discursos da prosa e do verso e; por ultimo, o gênero

jornalístico da antiguidade, como registro de uma época, cheio de polêmica aberta e

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velada e de figuras atuais, tendências e correntes da atualidade. (BAKHITIN, 2005,

p. 116-118).

Ao levantarmos as características gerais da sátira menipeia, necessário

realçar que a paródia é um elemento inseparável dela e de todos os gêneros

carnavalizados: ―O parodiar é a recriação do duplo destronante, do mesmo mundo

às avessas. Por isso, a paródia é ambivalente‖ (ibidem, p. 127) e não se limita à

negação simples do parodiado, mas é a confirmação de um duplo paródico, isto é,

―representa tanto o riso fúnebre quanto o triunfal‖. (op. cit.).

Para Machado (1995, p. 183), a ―manifestação paródica é irônica graças a

esta visão especular: riso e seriedade se espelham mutuamente numa mesma

esfera‖, porque os duplos contrários são elementos presentes em tudo, estabelecem

pleno reconhecimento mútuo, espelham-se um no outro e firmam compreensão de

plena reciprocidade.

Em Luciano, segundo Enylton de Sá Rego (1989), a paródia é vista como um

expediente literário no qual a sátira menipeia se dá, justamente, pela imitação

paródica de outros gêneros textuais. Nos textos luciânicos, pode-se encontrar tanto

o diálogo quanto a sátira num mesmo espaço textual. Com relação ao aspecto da

hibridização e da inversão dos gêneros, tem-se o mesmo jogo de inversão presente

na carnavalização estudada por Bakthin, porque ao usar o diálogo num contexto

extra-filosófico e re-significação do diálogo num contexto popular inerente à

comédia, temos os mesmos processos ―invertidos‖ e de ―representação‖ em que se

estabelece um nova ordem do mundo: a ordem carnavalizada. (MACHADO, 1995, p.

183).

Ainda de acordo com Rego, a sátira menipeia é caracterizada pelo hibridismo

textual, porém, este hibridismo, esta mistura de gêneros, que marca a inovação da

obra luciânica, ―se realiza exatamente através da paródia a temas, idéias e

passagens textuais específicas praticadas por Luciano‖. (ibidem, p. 56).

Desta forma, a presença de ―estilos altos e baixos‖, ou seja, a coabitação de

gêneros elevados e inferiores é que caracteriza a sátira menipeia e a aproxima do

conceito carnavalização.

Assim como Bakthin, Rego destaca o papel da citação e da alusão como

estratégia textual na construção do texto paródico, isto é, a citação literal ou quase

literal (citação truncada) ou, ainda, a alusão são recursos textuais em que os estilos

altos e baixos se fazem notar na obra de Luciano.

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Rego (1989) sistematizou, a partir do estudo que fez da obra de Luciano,

cinco características estruturadoras da sátira menipeia de tradição luciânica: a

mistura de gêneros, a paródia e as citações truncadas, a liberdade de imaginação, o

caráter ambíguo e não moralizante e o ponto de vista distanciado do narrador.

A primeira característica se refere ao hibridismo, isto é, à mistura de gêneros

textuais, que se caracteriza pelo desrespeito ao modelo da tradição literária e à

invenção de um outro, regido por novos princípios.

Quando me apropriei [do Diálogo], quase todos o consideravam aborrecido

e árido, por suas freqüentes interrogações. É bem verdade que elas lhe

davam um ar venerável, mas pouco gracioso e absolutamente desagradável

para o público. Eu comece por ensinar-lhe a caminhar com os pés na terra,

à maneira dos homens; em seguida, lavei as sujeiras em que andava

metido, e obriguei-o a sorrir, tornando-o mais agradável aos espectadores.

Mas, sobretudo, eu o associei à Comédia, e com esta aliança conquisteis o

apreço dos ouvintes. (LUCIANO, 1874, p. 168 citado por REGO, 1989, p.

49).

Luciano de Samosata mistura dois gêneros ímpares, diferentes entre si; de

um lado, a seriedade do ―Diálogo‖ como gênero voltado para questões filosóficas; do

outro, a ―Comédia‖ vista como gênero menor, relegada às coisas baixas, à imitação

dos homens inferiores. O que faz Luciano? Remodela o ―Diálogo‖, limpa-o do

―engessamento‖ crítico construído ao longo de uma tradição clássica, faz com que

desça de seu pedestal e passe a habitar o mundo dos homens, isto é, o mundo da

Comédia.

O hibridismo textual é uma marca essencial nos textos menipeicos, conforme

evidenciou Bakthin (2005) ao destacar a presença de vários gêneros parodiados na

Idade Média, principalmente os textos de ordem sacra.

A mistura de gêneros como uma das características da sátira menipeia torna

possível que se considere como segunda característica deste gênero o uso

sistemático da ―paródia aos textos literários clássicos e contemporâneos, como meio

de renovação artística‖. (REGO, 1989, p. 44).

Rego localiza três procedimentos de prática da paródia como ―procedimento

literário‖:

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a) Paródia aos gêneros e convenções da literatura passada e presente; b)

paródia aos temas e idéias da literatura e da vida social contemporânea,

[...]; c) paródia aos textos definidos, através de citações literais ou quase

literais, geralmente num contexto distinto daquele do qual a passagem em

questão teria sido apropriado. (REGO, 1989, p. 42).

O que une os dois estudos, o de Bakhtin e o de Rego, é o fato de que em

ambos notamos a reflexão sobre a citação e a alusão como estratégias de criação

literária mediada pelo ato de (re)ler e (re)escrever.

A citação e alusão estão na interface da criação literária, quer pela paródia

das ideias ou temas, quer pela paródia a gêneros consagrados pela tradição

literária. Embora sejam vistos como textos legíveis por Barthes (2004), quando são

parodiados, ironizados e citados truncadamente ou apenas reproduzem o gênero

parodiado, como fez Luciano, ao parodiar um encômio, gênero laudatório, e o fez

escrevendo um elogio à arte de se viver como um parasita no texto intitulado ―O

parasita, ou como a profissão de parasita é uma arte‖, o texto legível passa a ser

escriptível, aberto a outras leituras e releituras. (REGO, 1989).

As definições de citação e de alusão em relação aos conceitos de discurso

citado, leitura e escritura como texto legível e escriptível, estabelecem afinidades

com os postulados barthesianos, uma vez que há para ambos um vínculo com a

tradição literária anterior, não para reduzi-la a pó, mas para dela se apropriar com a

finalidade de fazê-la contemporânea por meio da recriação.

Nesse sentido, a citação e a alusão nos textos de Machado de Assis podem

anunciar, conforme veremos no capítulo a seguir, elementos textuais deturpados

que, inseridos em novo contexto, fazem surgir outra cena dialogal, uma cena

paródica, que provoca no leitor a necessidade de questionar criticamente o texto

lido, abrindo-se um espaço para o surgimento de outro texto: aquele que Barthes

denomina de escriptível.

A forma como Machado de Assis usa a citação e a alusão no Sermão da

Montanha de modo a criar um circuito dialogal é o que vamos analisar a partir de

um corpus oriundo das crônicas machadianas.

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Capítulo III: Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégia

de ler e escrever pelo avesso

Compilador do século XX, quando folheares a coleção da Gazeta de

Notícias, no ano da garça de 1844, e deres com estas linhas, não vás

adiante sem saber qual foi minha observação. Não é que lhe atribua

nenhuma mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser agradável aos

meus manes saber que um homem de 1944 dá atenção a uma velha

crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em

algum livro ou revista: ―Um escritor do século XIX achou um caso de cor

local que não parece destituído de interesse...‖, se fizeres isso, podes

acrescentar como o soldado da canção francesa:

―Du haut ciel – ta derneniére –

Mon colonel – dois être contet “...3 (Machado de Assis)

3.1. Machado de Assis cronista

Machado de Assis, antes de ser o célebre contista e romancista conhecido

pela crítica literária, iniciou a trajetória escritural em um gênero considerado por

muitos como menor: a crônica, mas foi exatamente nesse formato de texto, presente

nos primeiros jornais do século XIX, que o jovem Machado deu um passo importante

para se firmar na história da literatura brasileira. Publicou suas primeiras crônicas no

Diário do Rio de Janeiro e, mais tarde, na Semana Ilustrada (1860-1875).

Interrompeu este percurso nas páginas dos folhetins na seção ―A Semana‖ no ano

de 1897, quando atingira o grau máximo de excelência como cronista e romancista.

Fica clara a multiplicidade da pena machadiana durante estes quase quarenta

anos de colaboração nos jornais do Rio de Janeiro publicando poesias, crônicas,

contos, ensaios e críticas teatrais e, não foi à toa que, no início, Machado de Assis

fora um entusiasta do jornal e de sua missão civilizatória no Brasil, como se pode ver

no artigo ―O Jornal e o Livro‖:

3 Do alto do céu – ou dos confins dos infernos – ele agradece.

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Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um

exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão rebenta uma

nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso

nos moldes conhecidos em que prendesse o fim do pensamento humano?

Não, nenhum era vasto como jornal, nenhum liberal, nenhum democrático

como ele.

[...] Tratemos do jornal, esta alavanca que Arquimedes pedia para abalar o

mundo, e que o espírito humano, este Arquimedes de todos os séculos,

encontrou.

O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?

(ASSIS, 1959, p. 955, grifos nossos).

Machado de Assis usará o jornal como veículo de transformações

significativas no próprio processo de escrita, pois na carreira do próprio escritor, ao

experimentar gêneros tão diferentes, o jornal será o lugar em que Machado

aprimorou a escrita num trabalho de experimentação literária.

No entanto, para o autor, a crônica não possuía qualidades suficientes que

justificassem a sua edição em livro, a não ser algumas que foi capaz de selecionar,

como relata Mário de Alencar.

A idéia de coligi-las nasceu do desejo de servir à memória do escritor,

acrescentando-lhes às obras editadas em volume esta outra que tão bem

caracteriza o seu engenho literário, e que seria de lamentar ficasse

esquecida ou ignorada. Ao próprio autor lembrei e pedi que as reunisse em

livro e posto me objetasse às vezes com dúvida sobre o valor desse

escritos, salvo um ou outro publicado nas páginas recolhidas, não me

pareceu que ficasse alheio ao pensamento de fazer a coleção. (ALENCAR,

1937, s/p citado por GRANJA, 2006, p. 384).

Considerada menor entre os outros gêneros, até mesmo pelo próprio autor, a

crônica não recebeu a atenção da crítica especializada até meados dos anos 80 do

século do século passado, quando o cenário começa a mudar, principalmente, pelos

estudos de Gledson (1986) sobre o gênero. Para Granja, é uma das ―facetas da

crônica, a história miúda da política e do cotidiano, que fazia com que os textos

‗envelhecessem‘ rapidamente‖ (ibidem, p. 388) e esse seria o motivo para não dar à

crônica o relevo dado ao conto e ao romance.

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Gustavo Corção, em artigo para o Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em

1959, faz o seguinte comentário a respeito de Machado de Assis cronista:

[...] deveríamos dividir o gênero em duas espécies: de um lado teríamos as

crônicas que se submetem aos fatos, e que pretendem fornecer material

contemporâneo à peneira dos historiadores; e de outro lado, teríamos

aquelas crônicas que servem dos fatos para superá-los, ou que tomam os

fatos do tempo como pretextos para as divagações que escapam à ordem

dos tempos. As crônicas de Machado de Assis pertencem, evidentemente, a

essa segunda espécie em que os fatos não valem por si mesmos. (1959, p.

362).

A crônica é um gênero que está entre a ficção literária e a informação do

universo da imprensa, sendo marcada pelo hibridismo com outros gêneros textuais

como é o caso do conto, do diálogo e da própria informação jornalística, como bem

salienta Cândido.

[...] o cronista usa diversos meios. Há crônicas que são diálogos, como

―Gravação‖ de Carlos Drummond de Andrade, ou ―Conversinha mineira‖ e

―Albertina‖, de Fernando Sabino. Outras parecem marchar rumo ao conto, à

narrativa mais espraiada com certa estrutura de ficção. Como ―Os

Teixeiras‖. De Rubem Braga. (1992, p. 21).

É também a crônica um espaço para a inscrição da estratégia escritural das

citações e alusões, próprias do discurso machadiano, porém, aí a função delas deve

sofrer alteração devido ao veículo novo em que se encontram – o jornal – que exige

outra espécie de escrita, mais coloquial e receptiva à oralidade, e outro tempo de

leitura, mais rápido e dialogal. A paródia e a ironia ganham espaço justamente por

contribuírem para aproximar o leitor deste texto em nova chave: a do sério-cômico

da menipeia.

Enylton de Sá Rego (1989) liga a produção de segunda fase literária de

Machado de Assis, considerada fase madura, à tradição luciânica, ao considerar a

existência da Obra Completa de Luciano de Samosata numa tradução francesa de

1874 na biblioteca do autor. Embora, Rego aponte como marco cronológico o ano de

1870, que delineia a transformação da obra machadiana, é possível perceber ecos

da tradição luciânica em algumas crônicas escritas antes desta data.

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Luciano parodia os sermões em favor da ―vida simples e da pobreza‖,

segundo Rego (1989, p. 52) e o mesmo faz Machado com o Sermão da Montanha

que ora cita truncadamente, ora parodia integralmente. Esta total liberdade criativa e

o desrespeito à tradição fazem com que o texto machadiano coadune-se com um

dos traços da sátira menipeia: ―extrema liberdade de imaginação‖ (ibidem, p.57).

Considerando o desapego ao realismo identificador com os fatos cotidianos, a

crônica alia-se também por esta tendência com a tradição luciânica e permanece no

terreno da invenção criativa, da fantasia criadora.

A terceira característica fundamental da obra de Luciano é a extrema

liberdade de imaginação demonstrada pelo artista frente às limitações a ele

impostas pela história ou por uma visão ―realista‖ ou ―representacional‖ da

obra de arte. (op. cit.)

O papel do cronista diante dos fatos e da vida cotidiana pode ser comparado

a de um ―historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete

escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor‖ conforme

afirma o cronista em História de Quinze Dias (1959, p. 395), pontuando a diferença

básica entre o ficcionista e o historiador, o primeiro atende às necessidades do povo,

pois fantasia os fatos, sendo ele fruto da invenção popular, em contraponto com o

historiador, que não mostra ―ouvidos‖ para as crônicas. No entanto, o historiador

também é um re-configurador dos fatos históricos por meio de seu discurso, e isso

Machado de Assis aponta com lucidez, demarcando aí uma área fronteiriça para a

crônica, que apresenta este vínculo com a história desde suas origens.

Machado de Assis tratou de escrever suas crônicas usando como expediente

de leitura e de escritura a citação e a alusão por meio de desvios e inversões

provocados pela ironia e pela paródia, estratégias que implicam uma atuação direta

sobre o leitor que Machado estava interessado em formar.

3.2. A ruminação mastigativa: “O Sermão da Montanha” em cinco crônicas

machadianas

Entre os mecanismos usados por Machado de Assis para a elaboração

textual de sua escrita, a citação e alusão estão presentes como estratégias

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recorrentes. São inúmeras as obras citadas ou aludidas por Machado ao longo de

sua trajetória escritural, todavia, o texto bíblico é um dos que mais aparece.

No caso desta pesquisa, tomamos por referência as citações e alusões feitas

ao Sermão da Montanha. Trata-se de um texto canônico, conservado pela tradição

judaico-cristã, cujo valor moral e filosófico está associado aos paradigmas

dogmáticos que nortearam o surgimento da igreja cristã na Idade Média. O

conhecimento do Sermão da Montanha é notório entre as populações letradas e

não letradas e talvez seja este o motivo de ser tão recorrente nas crônicas

machadianas publicadas nos periódicos, meio mais acessível ao leitor mediano que

Machado estava interessado em formar.

Entende-se que a Bíblia para Machado de Assis foi uma fonte de inspiração

estilística da qual se nutriu, reescrevendo-a por meio daquilo que citou

truncadamente, aludiu, inverteu, fez analogias políticas e criticou a sociedade.

Quanto à Bíblia já não pode subsistir nenhuma dúvida de que Machado de

Assis só se utilizava de seus textos com finalidade simplesmente literária, o

que justifica alguns lapsos já observados neste particular. Não é outra

opinião de uma grande autoridade eclesiástica brasileira, o Bispo Dom Hugo

Bressane de Araújo, em pequeno, mas notável estudo: ‗Machado de Assis

buscou nas escrituras, como em Dante ou em Shakespeare, tão somente

belezas literárias e usava com freqüência de reminiscências, episódios ou

versetos do livro santo como roupagem elegante dos humorismos que aos

milhares marchetam seus livros‘. (ARAUJO, 1939, s/p citado por GOMES,

1959, p. 59).

É evidente que Machado de Assis não usa a Bíblia para salientar o valor

dogmático-filosófico que o texto canônico carrega, mas, ao contrário disso, vale-se

do texto bíblico como fonte de criação literária por meio de citações e alusões às

quais recorre constantemente.

Levando-se em consideração o pouco público-leitor dos jornais, ou a baixa

escolarização da população carioca, ao se escolher um texto que se tem

conhecimento pela repetição memorialística dos rituais católicos e populares, nota-

se uma intencionalidade escritural por parte de Machado, presente até mesmo nos

romance iniciais.

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Nos romances iniciais, o procedimento é, até certo ponto, discreto, mas já aí

o autor recorre, mais que quaisquer outros textos, à Bíblia, tanto ao Antigo

quanto ao Novo Testamento. É notável, na utilização de passagens da

Escritura sagrada, um procedimento de dessacralização, que consiste

basicamente, em aplicar a palavra bíblica a situações profanas, desprovidas

de qualquer solenidade. (SENNA, 2003, p. 11).

Tendo em vista que o circuito de citação e alusão ao Sermão da Montanha

se torna uma prática recorrente em vários textos machadianos pertencentes a

gêneros diferentes, optamos por focalizar aqui as crônicas, em especial cinco delas,

selecionadas de periódicos publicados em datas diversas, respeitando a cronologia

das mais antigas para as mais recentes; são elas: ―Parasita II‖ da seção ―Aquarelas‖

de 9 de outubro 1859, publicada em O Espelho (ASSIS, 1959, p. 965); as crônicas

publicadas na seção ―Ao acaso‖ de 12 de junho de 1864 e de 22 de agosto de 1864

no Diário do Rio de Janeiro (ASSIS, 1937, p. 9 e p. 121), as crônicas de 4 de

setembro de 1892 e 25 de março de 1894, publicadas na seção ―A Semana‖ do

periódico Gazeta de Notícias. (ASSIS, 1959, p. 628-630).

3.2.1. O Parasita

Em ―O parasita II‖, o cronista discorre sobre o vazio dos fanqueiros literários,

e aí surge a alusão ao Sermão da Montanha presente no versículo 3 do capítulo V

de S. Mateus.

Mas, por compensação, há a modéstia nas palavras ou certo abatimento,

que faz lembrar esse ninguém elogiado da comedia. Mas ainda assim vem

a afetação; o parasita é o primeiro que está cônscio de que é alguma coisa,

apesar da sinceridade com que procura pôr-se abaixo de zero.

Pobre gente!

Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a

musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma

noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...

É que têm o evangelho diante dos olhos...

Bem-aventurados os pobres de espírito.

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O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da

sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por

toda a parte.

Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a

piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a

âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de

dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.

A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.

O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa

vendeu as absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas.

Mediante o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam;

depois levantou a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca

uma bolsa.

É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa idéia em

embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica

para a estupidez, que toma o altar como um canal de absorver ouro e

regalias.

Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé,

rasga as crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das

famílias, sem haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias.

Dominou imoralmente as massas, os espíritos fracos, as consciências

virgens. (ASSIS, 1959, p. 965, grifos nossos).

Observamos que neste fragmento há uma única frase do sermão da

montanha ―bem aventurados os pobres de espírito‖ que cria toda uma ressonância

de inversão irônica com o original por meio de uma estratégia dupla de sentido

literal-figurativo, além de ser uma citação truncada, representada pelas reticências,

que indicam interrupção ou supressão de um texto. A respeito do parasita, o cronista

faz reflexões sobre a natureza dele, o parasita, ao usar o verbo ―poder‖ no pretérito

imperfeito ―podiam‖, embora o tempo verbal adequado seja o futuro do pretérito, o

autor usa o imperfeito, conotando como sentido a interrupção da formação de uma

índole, de um caráter de homem de bem. O tempo verbal no pretérito imperfeito

indica que nunca houve qualquer menção por parte do parasita de ser diferente do

que ele se apresenta à sociedade.

Com relação às estratégias usadas nesta crônica, temos duas: num primeiro

instante, parece se tratar da alusão ao evangelho de São Mateus tão caro na

tessitura de uma tradição escritural machadiana. Entendemos que seja alusão, pois

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Machado não indica de qual fonte retirou a frase bíblica; por outro lado, temos o

versículo 3 do capítulo V de S. Mateus reproduzido parcialmente ―Bem-aventurados

os pobres de espírito‖, mas, ainda assim, não se trata de uma citação direta, pois

falta o restante do versículo, que indica como recompensa desta bem-aventurança o

céu. O efeito deste recurso provoca um distanciamento do sentido original e o

rebaixamento da mensagem sacra, uma vez que a descontextualização do

fragmento citado aliado à frase anterior criam um sentido agressivo ao parasita

religioso. Observemos que antes da citação do texto bíblico há uma expressão que

retoma, de certa forma, o evangelho, porém o efeito provocado é o da ironia, como

podemos notar no excerto transcrito abaixo.

Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a

musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma

noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...

É que têm o evangelho diante dos olhos...

Bem-aventurados os pobres de espírito.

(ASSIS, 1959, p. 965, grifos nossos).

Por que não podem ser ―homens de bens‖? Por que não podem contribuir

para a sociedade? Por que ―têm o evangelho diante dos olhos‖, ora isso denota que

os parasitas não são pessoas de boa índole, porque o evangelho lhes faculta não

sê-las, uma vez que há os pobres de espírito, porque ser homens de bens, não há

motivo para uma mudança. O cronista deixa claro que os parasitas são seres nulos,

que nada têm a oferecer à sociedade, e ainda podem cometer crimes, talvez no

texto machadiano citado, a interpretação de crime subentendida por nós se dê no

sentido de enganar, aproveitando-se da pobreza de espírito dos crédulos.

O sentido figurado atribuído pelo cronista à expressão ―pobre de espírito‖,

para nós, revela-se como estupidez, como falta de moral, como torpeza; ou ausência

de bens materiais, todavia, para que isso seja possível, seria necessário que

houvesse uma inversão sintática na estrutura frasal, passando de ―pobre de espírito‖

para ―de espírito pobre‖. A troca da posição do adjetivo ―pobre‖ na língua portuguesa

provoca uma alteração que interfere na apreensão do sentido. A inversão realizada

por M. de Assis não se deu na estrutura sintática, mas na contextualização da frase

citada, tornando a compreensão do que o cronista quis fazer ao usar o fragmento do

Sermão da Montanha muito mais difícil, pois exige do leitor uma posição sobre a

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fonte e sobre o contexto original, além deste conhecimento bíblico, que muitos não o

têm. Há ainda o conhecimento histórico sobre as indulgências cobradas pelo clero

medieval. Caracteriza-se um jogo inversivo pela dupla possibilidade de leitura: não

se sabe se a expressão ―pobre de espírito‖ refere-se aos chamados parasitas ou aos

fiéis que se deixam levar pela fala sedutora do clero. A ambiguidade desloca o leitor

de um lado a outro na leitura deste texto machadiano. Como podemos notar, a partir

desta citação do Sermão da Montanha, exige-se um leitor que vasculhe os

detalhes, o miúdo, visto que a construção do sentido ―total‖ das crônicas

machadianas deve ser feito na junção de todos os elementos indiciais: a citação e a

alusão se prestam a este serviço, serem norteadoras da leitura do leitor.

Tomemos, por exemplo, a interpretação de que os parasitas da igreja estejam

sendo chamados de ―pobres de espírito‖, portanto, ao observarmos os dois

possíveis significados para pobreza, a ironia fortalece esta crítica à ―pobreza

espiritual‖ da igreja como denúncia de uma máscara que encobre uma série de

ações desviantes destes ―parasitas‖. Nesse sentido, a ironia se põe como arma para

operar a crítica a certos membros do clero. Tem-se nesta crônica um versículo do

Sermão da Montanha deslocado do seu contexto, provocando, assim, duplo jogo

de sentido na cena enunciativa. Numa segunda leitura em que a expressão ―pobres

de espírito‖ é direcionada aos fiéis, é possível perceber um comentário crítico em

relação aos fiéis e à falta de capacidade para discernirem o engodo em que se

lançarão, caso acreditem nas promessas religiosas.

A citação do texto bíblico assume um teor sócio-político ao ser usada como

metáfora do esvaziamento de caráter dos religiosos medievais desta classe que

inaugura, segundo Machado de Assis, a categoria social dos fanqueiros religiosos,

tornando-se sinônimo de parasita. O escritor também subverte o próprio termo

fanqueiro, já que o sentido literal significa comerciante de tecido. (HOUAISS, 2001,

p. 1306).

O que faz Machado? Apropria-se do sentido figurado da expressão fanqueiro,

a partir da ideia de que ―o fanqueiro‖ é um comerciante, portanto, o comércio passa

a ser a referência para a subversão, isto é, com a ideia de compra e venda, de

trocas por uma margem de lucro, que é inerente à pratica comercial.

A âmbula é o vaso em que se guardam os óleos litúrgicos, portanto, um lugar

dedicado às praticas religiosas, relacionadas à tradição sacra do rito católico, porém,

no contexto do texto machadiano, este recipiente assume o lugar da balança que

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frauda o cliente, o altar é o balcão e por uma relação metonímica, tem-se a igreja

como comércio, lugar de compra e venda das indulgências, logo, o clero assume o

papel do comerciante que vende o perdão ao pecador.

Machado toma emprestado o versículo 3 do capítulo V de S. Mateus,

provocando um desvio sutil no sentido canônico do Sermão. Ao usar a locução

adjetiva ―pobre de espírito‖, promove uma reviravolta ao atribuir o duplo sentido de

pobreza para os clérigos: aquele vinculado à exploração dos fiéis e, no sentido

literal, para os ingênuos que se deixam enganar: ―Na Igreja, sob o pretexto do

dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas.

Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança [...]‖. (ASSIS, 1959, p. 965).

No sermão bíblico, a bem aventurança para os justos é o reino dos céus, mas

no texto machadiano o sentido subliminar é outro: é o motivo pelo qual os pobres de

espírito podem ser convencidos a pagarem pela absolvição dos pecados. Machado

usa o texto bíblico com a função dessacralizadora da ironia, no sentido de um

desvio, pois inverte o sentido do versículo do ―Sermão da Montanha‖. Além desta

alusão irônica ao Sermão da Montanha, outro aspecto que aproxima esta estratégia

discursiva à tradição da menipeia luciânica é a temática do ―parasita‖. Luciano havia

feito um encômio, um texto laudatório à arte de se viver do parasitismo social

(REGO, 1989), que é a tônica desta crônica machadiana.

O versículo do evangelho de S. Mateus trata da humildade como princípio

básico dogmático da salvação da alma pela tradição cristã, todavia, no uso feito pelo

cronista, refere-se à pobreza moral e à falta de escrúpulos, argumentando contra o

vazio moral e religioso do fanqueiro, que como o próprio nome já diz, trata-se de um

comerciante, isto é, aquele que negocia o perdão pelos pecados. Nesse sentido,

Machado coloca a igreja como um balcão de negócios, em que a hipocrisia é o

código do avesso da ética e da moral religiosa. O ceticismo machadiano é latente

neste texto por meio da figura-chave da ironia.

3.2.2. Ao Acaso

Em crônica publicada na seção ―Ao acaso‖ em 12 de junho de 1864, no Diário

do Rio Janeiro, o cronista eleva o folhetinista à esfera de apóstolo, com função e

autoridade para converter e se encarregar das almas.

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Também o folhetim tem cargo de almas.

É apóstolo e converte.

Fácil apostolado,é certo. Não há terras inóspitas ou áridos desertos, aonde

levar a palavra da verdade; nem se corre o risco de ser decapitado, como S.

Paulo, ou crucificado, como S. Pedro.

É um apostolado garantido pela polícia, feito em plena sociedade urbana.

Em vez de pisar areias ardentes ou subir por montanhas escalvadas, tenho

debaixo dos pés um assoalho sólido, quatro paredes dos lados e um teto

que nos abriga do orvalho da noite e das pedradas dos garotos. E por

cúmulo de garantia ouço os passos da ronda que vela pela tranqüilidade do

quarteirão.

É cômodo, e nem por isso deixa de ser glorioso.

Deste modo o folhetim faz de ânimo alegre o seu apostolado. Entra em todo

o lugar, por mais grave e sério que seja. Entra no senado, como S. Paulo

entrava no areópago, e aí levanta a voz em nome da verdade, fala em tom

ameno e fácil, em frase ligeira e chistosa, e no fim do discurso tem

conseguido, também como S. Paulo, uma conversão.

(ASSIS, 1937, p. 9, grifos nossos).

Se o cronista pode julgar o folhetim como o porta-voz da verdade e ele próprio

o baluarte desta verdade, por que não ter os textos bíblicos a seu serviço? É o que

se verá nas crônicas analisadas por nós, especificamente, o Sermão da Montanha.

Ora o cronista se põe como apóstolo, ora coloca o folhetim, exercendo o

papel de converter as almas perdida; fica clara aqui a alusão ao apostolado do

Sermão da Montanha, pois o cronista menciona dois lugares característicos bíblicos

que remetem à ideia da pregação: ―areias escaldantes‖ e ―montanhas escavadas‖.

No primeiro, pode-se pensar em ―áridos desertos‖, pelos quais os apóstolos foram

obrigados a viajar para levarem a pregação e; no segundo, liga-se indiretamente ao

Sermão da Montanha por um referencial topográfico.

Machado de Assis não por uma ou duas vezes, muito mais do que isso, toma

o nome do apóstolo Paulo como referência de virtualismo religioso. A pretensão do

cronista é tanta, que se coloca em pé de igualdade a Paulo, pregador da mensagem

cristã aos gregos. Não seria sem igual valor, o desempenho da mensagem veiculada

no jornal, entretanto, seria um conversor de ―almas‖, mesmo que fosse apenas uma.

É claro que aqui o cronista não estava pensando no mesmo aspecto bíblico, mas em

algo mundano, como, por exemplo, a conversão de algum político em causa própria.

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Entra no senado, como S. Paulo entrava no areópago, e aí levanta a voz em

nome da verdade, fala em tom ameno e fácil, em frase ligeira e chistosa, e

no fim do discurso tem conseguido, também como S. Paulo, uma

conversão. (ASSIS, 1937, p. 9).

A crônica como gênero jornalístico possui papel civilizador, o papel de

divulgar a verdade, mas não nos esqueçamos de que estamos falando de M. de

Assis, sendo assim, por que acreditar na fala séria do cronista? Devemos, pois,

desconfiar do tom ameno com que trata deste assunto. É pretensão do cronista se

elevar ao mesmo nível do apóstolo Paulo? Ou de colocar a matéria folhetinesca: a

crônica, na mesma esfera dos textos sacros? Se a crônica já não é mais a

representante da história, se ela colhe apenas as miudezas do cotidiano, qual é a

verdade que ela se põe a anunciar?

Se tomarmos a afirmação do cronista de que o folhetim tem apostolado e

também converte, devemos indagar sobre qual é este apostolado. É evidente que

não se trata aqui de um discurso religioso, mas da sua apropriação alusiva pelo

cronista. O substantivo ―apóstolo‖, o verbo ―converte‖ e a alusão ao deserto, lugar

conhecido pelos quarenta dias de isolamento de Jesus, trazem ainda, ao referir-se à

―montanha‖, uma alusão sutil ao Sermão da Montanha e, por fim, a expressão

―palavra da verdade‖ tão comum no discurso religioso cristão.

Notamos que se trata neste texto de um jogo irônico entre o ofício apostolar e

o ofício do cronista, pois, embora haja uma sutil e vaga menção ao Sermão da

Montanha, o que fica mais forte é o jogo irônico e não o paródico, já que não há

texto-fonte sendo invertido, mas uma ironia ao apostolado da igreja em geral, que

sofre o procedimento irônico por meio da apropriação de personagens bíblicas como

o apóstolo S. Paulo.

3.2.3. Ao Acaso II

Na crônica de 22 de agosto de 1864 na seção ―Ao acaso‖, Machado cita o

Sermão da Montanha inscrito no Evangelho de S. Mateus, capítulo V, versículos de

1 a 4. O autor se vale da fonte bíblica de maneira integral, para denunciar a conduta

dupla do clero envolvido também no jogo social entre o ser e o parecer. O cronista

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usa o espaço jornalístico para chamar a atenção da sociedade sobre uma prática

comum: fazer caridade e anunciar na imprensa.

―A repartição da caridade da irmandade da candelária distribuiu pelas suas

600 pobres a quantia de 7:000$000 durante este último trimestre.‖

Leram, não? Pois bem: diz agora o evangelho de S. Matheus, capítulo V,

versículos 2, 3 e 4:

―- Quando derdes alguma esmola, não façais tocar diante de vós a

trombeta, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem

glorificados pelos homens. Em verdade vos digo, esses já têm o devido

prêmio.

―- Mas quando derdes alguma esmola, que a vossa mão esquerda não

saiba o que fez a vossa mão direita.

―- A fim de que a vossa esmola seja em segredo, e vosso pai, que vê em

segredo, vos dará a recompensa‖. (ASSIS, 1937, p.121).

O que ocorre nesta crônica já não é apenas a citação deslocada da fonte,

como na de 1859, ou a simples alusão ao sermão pelo ato de pregar e pela

referência à montanha, mas a presença do texto bíblico como fonte para a

apropriação paródica. Este gesto do cronista provoca o leitor ao colocá-lo diante do

texto citado quase integralmente, com marcas textuais que o convidam a conferir a

veracidade das palavras aqui reproduzidas, muito embora o recurso gráfico das

aspas induza-o a crer na autenticidade do texto-fonte.

Antes de analisarmos a crônica e o devido desvio da fonte, bem como a

apropriação do discurso bíblico e seu caráter paródico, observemos, pois, como se

dá a apresentação deste texto machadiano.

Num primeiro momento, o cronista estabelece um diálogo com o leitor,

pergunta se o leitor havia lido a notícia veiculada no jornal católico chamado A cruz,

para, num segundo instante, citar literalmente partes do Sermão da Montanha

extraído de S. Mateus capítulo V, versículos, 2, 3 e 4. Esta pergunta cria uma

aproximação com o leitor, torna-o íntimo do cronista e serve de ponto de partida

para se tecer a matéria da crônica: a indignação diante da propaganda da

distribuição de 7 mil contos de réis durante o trimestre de 1864.

Se colocarmos lado a lado o texto sobre os parasitas sociais e os religiosos

de 1859, poderemos notar que o discurso usado por Machado de Assis é o mesmo:

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a cobrança feita à sociedade sobre seus atos, denunciando a hipocrisia latente no

interior da sociedade burguesa de finais do século XIX.

Um recurso frequente nas crônicas, mas de maneira mais sutil, é o diálogo.

Trata-se de um expediente utilizado com amenidade, porque o leitor é inquirido

sobre a leitura da matéria publicada no jornal católico A Cruz, contudo não tem sua

voz representada, apenas intuída na continuidade da crônica. Por este

procedimento, o cronista age como um narrador intruso, que se coloca na cena

narrada e, ao mesmo tempo, força o leitor a fazer o mesmo. Apesar disso, não

podemos dizer que se trata aqui do diálogo de tradição luciânica, todavia, trata-se de

uma estratégia de aproximação com o leitor, demonstrando certa intimidade que

posiciona o leitor na cena apresentada pela crônica. O indicativo de que o leitor

responde ou dá de ombros é quando o cronista diz ―pois bem‖ logo depois da

pergunta, quer dizer, ―você leu, sim ou não, pois bem, vou ler então‖. O cronista

desconsidera a resposta ou a possível resposta, pois representa o papel de um

arguidor cuja voz se coloca acima daquelas que só poderiam se manifestar no

mesmo meio que o dele: o jornal. Daí a entender o porquê do cronista se interpor

como difusor da verdade, uma verdade unilateral, alicerçada em um conhecimento

de mundo que passa do texto bíblico a elementos históricos.

Esta verdade pode ser uma verdade construída, parcial, presa a certos

critérios sociais, cabendo ao leitor decifrá-la e entendê-la nos meandros de sua

leitura.

Notamos que a citação usada pelo cronista teria o efeito de autoridade

argumentativa para reprovar a falta de humildade diante do gesto da doação. É uma

citação truncada no sentido de que não corresponde ao original, nem a estrutura

textual, que é alterada sob a pena machadiana para se passar por autoridade de

crítica aos religiosos e é deslocada, porque a fonte mencionada não corresponde ao

original. O texto bíblico a que o cronista cita truncadamente está localizado em

Mateus capítulo VI, versículos 1, 2, 3 e 4 e não em Mateus capítulo V, versículos 2,

3 e 4 como cita o cronista.

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1º Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes

vistos por eles. Do contrário, não recebereis recompensa junto ao vosso Pai

que estais nos céus.

2º Por isso, quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em público,

como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de

serem glorificados pelos homens. Em verdade eu vos digo já receberam a

sua recompensa.

3º Tu, porém, quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que

faz a tua direita,

4º para que a tua esmola fique em segredo; e o teu pai, que vê no segredo,

te recompensará. (BÍBLIA SAGRADA, 2006, p. 568).

Machado de Assis não cita com o intuito de exibir erudição, mas a citação

tende a ser vista de outra forma, deve ser olhada pelos procedimentos de uso da

paródia como um sistema de produção de sentido e criação literária.

Notamos que o circuito do Sermão da Montanha está presente em todas as

crônicas analisadas até aqui, mas em cada uma delas, o procedimento de

apropriação e o seu efeito são diferentes, o que revela o método machadiano de

escritura-leitura: parte de um texto consagrado e o desloca para um universo

profano, transformando-o num novo texto, tanto em termos de escritura quanto de

leitura.

Há um movimento que arquiteta uma escritura em torno no circuito do

Sermão da Montanha, que se inicia pela citação truncada no versículo 3 do capítulo

V de S. Mateus e alude ao Sermão da Montanha como um todo; depois na crônica

de 12 de junho de 1864 presentifica-se a cena bíblica do evangelizador na pele do

cronista representado pelo folhetim e, por fim, na crônica de 22 de agosto de 1864 o

Sermão da Montanha retorna pela citação truncada do livro de S. Mateus, capítulo

V, versículos 2, 3 e 4. Este movimento preparatório anuncia a hora da profanação

maior que acontecerá na crônica de 4 de setembro de 1892, conforme veremos

adiante.

3.2.4. O Diabo e o Sermão da Montanha

Um exemplo bem mais definido de citação paródica ocorre na crônica de 4 de

setembro de 1892 de ―A Semana‖: ―Não se apavorem as almas católicas. Já Santo

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Agostinho dizia que ―a igreja do Diabo imita a igreja de Deus‖. Daí a semelhança

entre os dois evangelhos.‖ (ASSIS, 1996, p. 113).

Nela, além da inversão, notamos que a profanação é completa e a paródia ao

texto bíblico acentua-se, no sentido de que o Diabo assume o posto de

evangelizador, assim como acontece com o cronista na crônica de 12 de junho de

1864.

O diabo como personagem subversiva toma para si o papel de pregar o

sermão criado por ele mesmo. Seu papel é o de perturbar a ordem, é criar regras

paralelas, numa crítica aos valores do modelo comportamental do burguês cristão.

Na crônica de 4 de setembro de 1892, qual é a estratégia usada pelo

cronista? Pensemos primeiro que se apresenta como sendo o recebedor de um

documento velho e que nele consta o sermão do Diabo, que lhe entrega

pessoalmente o novo sermão que produziu.

Nem sempre respondo por papéis velhos; mas aqui está um que parece

autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do

evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de S.

Mateus. (ASSIS, 1996, p.113).

Primeiro o cronista apresenta o sermão do Diabo como sendo justamente um

novo Sermão da Montanha, com isso dá a entender que existem vários sermões de

natureza similar a este, como se colocasse em dúvida a autenticidade do sermão

bíblico. No segundo momento, diz que o sermão do Diabo foi feito à maneira de S.

Mateus e tenta acalmar os católicos, ao citar uma fala de Santo Agostinho: ―a igreja

do Diabo imita a igreja de Deus‖ e justifica com esta citação a semelhança entre os

dois sermões.

Embora, Gledson (1986) em nota a esta crônica tenha mostrado que tal

citação não corresponde ao filósofo católico e sim a um provérbio popular, então o

sermão do Diabo já começa por uma leitura pelo avesso, na qual a base da

justificativa da semelhança é um jogo machadiano de leitura. Observemos como se

dá a semelhança e a diferença.

O Sermão da Montanha estrutura-se em três capítulos, a saber: os capítulos

5, 6 e 7, divididos em 111 versículos. O Sermão da Montanha também está presente

no Evangelho de S. Lucas capítulo VI do versículo 20 ao versículo 38 com variações

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textuais e concisão textual em relação ao primeiro livro dos evangelhos do Novo

Testamento. Embora não seja de interesse o levantamento das variações entre os

dois evangelhos, mas fazer o cotejo entre o sermão sacro e o profanado pela pena

da galhofa de Machado de Assis, cabe aqui realçar o fato de que certos versículos

presentes em S. Lucas parecem ter servido também de base para o Sermão do

Diabo, assim como a forma concisa com que o evangelista apresenta a sua versão

do discurso inaugural de Jesus.

O público-alvo do sermão, a princípio, era os discípulos, porém, estendeu-se

à multidão que estava em volta. O uso de uma linguagem simbólica era estratégia

para se atingir uma retórica eficiente diante de leigos, conforme o uso de parábolas,

que possuem alto teor alegórico.

A crônica de 4 de setembro de 1892 apresenta o sermão do diabo estruturado

em capítulo único, curto e conciso, embora o cronista diga que seja à maneira de S.

Matheus.

Outro aspecto que aproxima os sermões é a presença do cronista como

testemunha, mas não podemos esquecer o papel desempenhado por ele como

contador de histórias; nesse sentido, o cronista representa também o papel de

observador do seu momento, da sua época, registrando e transformando fatos fúteis

em úteis e, de certa forma, como o evangelista bíblico S. Mateus assume, no

aspecto de testemunha, a posição do cronista, pois era um dos que estavam com

Jesus no momento da enunciação do discurso bíblico; é o seu relato histórico que

chega até nós, conservando a essência de uma crônica.

O cronista, por sua vez, reproduz o discurso do Diabo de forma direta, entre

aspas. O autor se coloca na cena como testemunha, por isso o texto citado pelo

cronista-personagem encontra-se entre aspas. O sermão é apresentado ao leitor

como um documento profano, porém, possível de ser verdadeiro.

―1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por

nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus

discípulos.

―2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes. (Assis,

1996, p.113).

As aspas são marcas gráficas que orientam o leitor na direção da fonte, isto

é, pressupõe-se que a citação tenha o seu fundo de veracidade, porém, como se

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trata de um texto paródico, elas apenas servem de estratégia textual da paródia,

consolidando-se, portando, num falso discurso direto, que inverte e carnavaliza a

fonte bíblica, por vários índices: ―evangelho do diabo‖ X evangelho de Cristo;

evangelista X cronista; texto sagrado X profano (folhetim); sermão da montanha

―travestido‖ (à maneira) de S. Mateus.

O ―sermão‖ é entregue pelo diabo, mas o cronista não se posiciona diante

daquilo que narrou, colocando em dúvida a autenticidade do texto apresentado ao

leitor. A questão sobre a veracidade do texto é posta como uma possível verdade,

embora, o cronista permita que o leitor verifique a legitimidade textual, como

notamos na expressão ―mas aqui parece autêntico‖. (ASSIS, 1996, p. 113). O jogo

de aparência entre o falso e o verdadeiro é logo desfeito quando diz que, pelo

menos, se não for verdadeiro, vale pelo texto, isto é, pela criação artística do autor.

Além do questionamento sobre ser o sermão do Diabo ou não, o texto

paródico ainda traz um dado diferente em relação ao texto parodiado: trata-se da

nomeação do lugar em que ocorre o suposto sermão apócrifo - o morro do

Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro, o que é uma inversão extremamente

carnavalizada da fonte bíblica, que nos diz:

1º E vendo Jesus a grande Multidão do Povo, subiu a um monte, e depois

de ter sentado, se chegaram para o pé dele os seus discípulos;

2° E ele abrindo a sua boca os ensinava, dizendo:

3º Bem-aventurados os pobres de espíritos, porque deles é o reino dos

céus; (BÍBLIA SAGRADA, 2006, p. 568).

Além da diferença em relação ao lugar em que os sermões foram realizados,

há outros pontos divergentes tomados apenas como exemplo do jogo paródico que

se materializa justamente pela inversão, mas sem que se anule o original.

1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome

Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.

2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes.

3º Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão

embaçados. (ASSIS, 1996, p.113).

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A citação paródica do Sermão do Diabo evidencia a inversão da ordem social,

como pode ser visto na exaltação que faz do ato de embaçar, no sentido de tornar

escuro, escurecer, impedir o brilho; dessa maneira, ele promove em sua doutrina ―o

engano‖ como regra da bem-aventurança, pois é melhor enganar primeiro do que

ser enganado depois. As bem-aventuranças serão representadas pelo que antes era

pecado, alterando o moralismo cristão, o que era pecado passa a ser virtude e o que

era virtude passa a ser pecado. A nova religião não é mais vertical, mas horizontal,

isto é, trata das coisas da terra, do homem, para o homem. Isso revela a natureza do

discurso do diabo que é o da negação dos valores fundados na crença católica, pois

o mundo em que havia se estruturado já não mais existia. A nova sociedade

capitalista se alicerça na competição mercadológica, o cristão cede lugar ao

banqueiro e a igreja já é um símbolo do passado.

O que direciona este novo modelo de comportamento é não só o espírito da

negação, mas também o espírito da dúvida, pois como aceitar que a fala

promulgada pelo Diabo deva ser observada literalmente? Não se pode confiar nela.

Assim como não se deve confiar numa citação machadiana, numa alusão mesmo

com possíveis referenciais.

O leitor machadiano tem por essência desconfiar do que está lendo, porque a

leitura ingênua só cabe à manipulação pelo que foi escrito. Isso traduz um

procedimento de criação artística capaz de transformar o legível, legitimado pelo

cânone da tradição, em escriptível, isto é, alvo de rearticulação, deslocamento,

acréscimo e subtração. A paródia e a carnavalização são mecanismos nos quais a

citação e alusão se presentificam, criando, portanto, outra direção e inaugurando um

circuito dialogal no texto machadiano.

Esta rede dialogal polariza os preceitos morais do cristianismo e os novos

valores apresentados no sermão do Diabo, porque o universo de recompensas

espirituais por uma vida abnegada dos males do pecado é negado no Sermão do

Diabo, portanto, se inverte o critério de recompensas, permitindo que se tenha a

nítida impressão de que é pelo jogo de inversão e negação que o homem alcança o

que é exigido por Deus.

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4º Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.

5º Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais

leves.

6º Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.

7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por

meu respeito.

8º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.

9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra

coisa se há de salgar?

10º Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um

chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela.

11º Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as

desfeitas. (ASSIS, 1996, p.113).

Para o Cristianismo, as posses materiais não são consideradas

necessariamente más, apenas perigosas. Demonstra-se que os pobres geralmente

são mais felizes do que os ricos, pois aos pobres é mais fácil ter uma atitude

dependente de Deus. Foi para os pobres que Jesus veio pregar o evangelho. (Lucas

4:18, 7:22). Os pobres é que são abençoados em primeiro lugar. E a eles é

assegurada a posse do reino de Deus. (DOUGLAS, 1995, p. 1296).

Na crônica, que tem como tema o sermão do Diabo, no entanto, a pobreza é

representada pela metáfora: ―limpos de algibeira‖, o que significa que os que estão

com as algibeiras limpas, ou melhor, vazias, não terão qualquer recompensa a não

ser a própria pobreza. (ver o versículo V do Sermão do Diabo).

No versículo 9 do Sermão do Diabo, a certeza da confirmação de um

materialismo presente pode ser visto na expressão ―Vós sois o sal do money

market.‖ O versículo paródico tem como correspondente o versículo 13 do capitulo V

do evangelho de S. Mateus que considera os apóstolos e os discípulos como o sal

da terra. ―E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há de salgar? Para

nenhuma coisa mais fica servindo, senão para se lançar fora, e ser pisado dos

homens‖.

O significado do sal no texto paródico se inverte drasticamente com a

presença de uma expressão pertencente ao mundo dos negócios, cunhada em

inglês, o que realça a menção ao capitalismo dos grandes centros urbanos e sua

influência no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX.

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Considerando que exista uma nova ordem social, aquilo que era condenado

passa a ser valorizado como bem-aventurança, como sinônimo de boa sorte e

recompensa. Se estivermos falando de um mundo pelo avesso, em que já não se

justificam velhas práticas religiosas e burguesas pela derrocada da burguesia e de

seu sistema social, os valores veiculados na sociedade capitalista se mostram

corretos diante do mundo ao avesso, representado pelo sermão do diabo.

Para o Diabo, a felicidade é terrena e material e quanto à pobreza, ela é vista

na doutrina cristã como desapego material e exemplo de virtude que livra o homem

da influência do Diabo e que permite a entrada para o reino dos Céus. Contrastando

com este pensamento, surge o discurso do Diabo enfático à valorização dos bens e

à redefinição da compaixão e dos gestos altruístas.

O ―Sermão do Diabo‖ vai sendo construído pela citação indiretamente

paródica, provocando no leitor a percepção daquilo que Barthes chama de texto

escriptível, isto é, a sensação de inacabamento do texto que lê-escreve. Este texto

continua em aberto, por se fazer a cada olhar e neste olhar, as citações, as alusões

e a paródia ganham uma vida, que antes não sabíamos que estava ali; sentidos não

percebidos anteriormente, porque o tempo é sempre outro e nós nos tornamos

outros à medida que aprendemos a ler com os olhos desembaçados para o novo.

Percebe-se uma triangulação entre os textos, num claro trabalho de

retomadas e deslocamentos, num nível de diálogo também intratextual, assumindo

valores distintos a cada trabalho apresentado.

Considerando-se que um texto é o resultado de leituras múltiplas e que se

atualiza em novas leituras, assim como diz Barthes que ―todo texto é um tecido novo

de citações passadas‖ (2004, p. 40), entende-se que Machado de Assis usa este

recurso para fornecer aos seus leitores uma espécie de biblioteca provocadora,

cujos títulos revelados ou não, podem vir a formar o leitor machadiano.

Ao escrever a crônica de 4 de setembro de 1892, que parodia o Sermão da

Montanha, Machado de Assis atualiza a tradição bíblica, torna o texto sacro

escriptível, deslocado de uma leitura canonizada, dando ao texto cristão uma nova

roupagem. A paródia construída a partir da citação do Sermão da Montanha trilha os

mesmos caminhos das paródias medievais dos textos bíblicos.

As citações desempenham um papel fundador na tessitura literária

machadiana e exigem do leitor um olhar arguto, em contínuo diálogo com a fonte

citada. O leitor passa a ser o autor também do texto lido: texto mental da leitura,

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texto concretizado numa nova escritura. Cada parte citada é retrabalhada pela

leitura e pela escrita, exige-se do leitor que tome uma postura diante do texto lido.

Não se fica inerte diante do texto machadiano; o leitor é provocado a cotejar com o

original, neste jogo de ler e perceber as diferenças, ―desenterrando‖ os sentidos

ocultos por trás do texto. Obtém-se, assim, a feitura de outro texto, produzido pelo

choque entre dois discursos que se confrontam sem que um anule o outro: o da

fonte citada e o daquele que dela se apropria.

A crônica machadiana não é um gênero menor, ao contrário, mostra-se fonte

inesgotável de possibilidades interpretativas vislumbradas por meio das estratégias

discursivas como as da citação e da alusão construídas por meio dos

deslocamentos e inversões que a ironia e a paródia proporcionam, revelando a

dívida machadiana à linhagem luciânica da sátira menipeia.

3.2.5. A Guerra do Paraguai, Eclesiastes e o Sermão da Montanha

Prestemos atenção à crônica de 25 de março de 1894 em ―A Semana‖ de

Gazeta de Notícias, em que o cronista, durante a Semana Santa, encontra-se numa

igreja ouvindo as orações e em segundos é movido pelo incenso e pelas ladainhas

ao tempo de Cristo, aos pés do Messias ouvindo diretamente da boca de Jesus o

Sermão da Montanha, que servirá de resposta para todos os males do homem.

Mesmo assim, como São Tomé não crê no que escuta e em posição de igualdade

contra-argumenta, citando o livro de Eclesiastes.

Tomemos o início da crônica, quando destaca de forma carregada de

espanto, a chegada da semana santa, e indaga sobre aqueles que nasceram após a

guerra do Paraguai e depois da batalha de Aquibadã. A guerra do Paraguai é o

primeiro marco inicial do diálogo do cronista com a História.

A Semana foi santa – mas não foi a semana santa que eu conheci quando

tinha a idade de mocinho nascido de pois da guerra do Paraguai. Deus

meu! Há pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes

que fazem a barba, que namoram, que se casam, que têm filhos e, não

obstante, nasceram depois da batalha de Aquidabã! Mas então o que é o

tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou este tufão

impetuoso que aparece apostar com a eletricidade? Não há dúvida que os

relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa. (op. cit.).

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São quatro marcas que evidenciam o diálogo da crônica com a história do

Brasil, com seus personagens e seus eventos importantes. O primeiro deles remete

à guerra do Paraguai, além de ser um dado histórico pontual nesta crônica, serve

como parâmetro para a tessitura fantasiosa do cronista ao se posicionar como

alguém que tivesse nascido depois da guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e

1870. Se a crônica é de 25 de março de 1894 e Machado de Assis nasceu em 21 de

junho de 1839, logo estaria com 54 anos quando escreveu este texto, então, se

ficcionaliza na figura do cronista e se põe como um jovem de mais ou menos dez ou

doze anos ―idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai‖. (ASSIS, 1959,

p. 628).

Outro ponto de encontro com a história se refere ao encouraçado Aquidabã,

que foi uma embarcação militar que esteve presente na última batalha da guerra do

Paraguai em 1870, seguida da morte de Solano López, o ditador paraguaio e, por

último, a revolta armada em 1871.

O tempo é uma curva no dobrar de páginas da imaginação ficcional e nele o

cronista viaja ao passado ou ao futuro, vai ao ano de 1920 e se coloca na posição

de um leitor que se tornará o cronista da crônica do dia seguinte. O cronista põe o

leitor em seu papel de cronista, o que nos faz perceber o jogo entre o ler e o

escrever, isto é, o leitor será o escritor (cronista) do futuro na própria coluna em que

o cronista está escrevendo.

Aí vou escorrendo para o passado, cousa que não interessa no presente. O

passado que o jovem leitor há de encontrar é o presente, lá para 1920,

quando os relógios e os almanaques criarem asa. Então, se ele escrever

nesta coluna, aos domingos, será igualmente insípido com suas

recordações. (ASSIS, 1959, p. 628).

O cronista não só lida com a noção de tempo-histórico como trata da

relatividade do tempo ao posicionar o leitor no lugar do cronista, depois de situá-lo

em 1920, passa a dar voz a esse ―cronista do futuro‖, indaga sobre as mudanças

comerciais ocorridas na Rua do Ouvidor com a Gonçalves Dias, que antes era uma

confeitaria, relata a transformação da confeitaria para uma casa de jóias de um

italiano Cesar Farani. Este aspecto relativo do tempo usado por Machado, que se

desloca do século XIX ao século XX, como o colibri que voa de uma a flor a outra,

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meio desordenadamente, pode ser visto sob a perspectiva do trabalho da citação,

cujos recortes fragmentários praticados por Machado de Assis dão a entender que

se vai de uma obra a outra.

Depois de fazer longo comentário sobre a natureza do tempo, principalmente

trazendo personagens históricos, o cronista trata de narrar um fato estranho que lhe

aconteceu, precisamente, num domingo de Ramos; neste evento, a imaginação-

alucinação invade o relato com a presença de Cristo e sua pregação do ―Sermão‖ na

Galileia.

Soou o canto-chão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me

embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram

de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu

ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e

ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galileia, e, abrindo os

lábios, disse-me que sua palavra dá solução a tudo.

- Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter

visto a lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.

- Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

- Vede a injustiça do mundo. ―nem sempre o prêmio é dos que melhor

correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.

- Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão

fartos.

- Mas ainda é o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm

males...

- Bem-aventurados os que são perseguidos por amor à justiça, porque é

deles o reino do céu.

E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma

palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu

que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E

o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os

mansos... (ASSIS, 1959, p. 629-630).

O cronista inverte a ordem cronológica dos fatos históricos, regride e progride

temporalmente, migra do passado para o futuro e vice-versa, assim como sofre de

um súbito alucinógeno, que projeta Jesus diante de si. Tamanha desfaçatez

proporciona um diálogo entre a figura máxima do cristianismo e o abusado cronista,

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que rebate as frases do sermão com respostas supostamente retiradas do livro de

Eclesiastes.

A suposta argumentação retirada de Eclesiastes pelo cronista para rebater e

provocar as possíveis respostas de Jesus, também são citações truncadas e

paródicas, como se pode cotejá-las com a fonte abaixo.

(sic)

10º vi também levarem os ímpios; quando saem do lugar santo, esquecem

de como eles tinham agido na cidade. Isso também é vaidade.

12º Um pecador sobrevive, mesmo que cometa cem vezes o mal. Mas eu

sei que acontece o bem aos que temem a Deus, porque eles o temem;

13º mas que não acontece o bem ao ímpio e que, com a sombra, não

prolongar seus dias, porque não tem a Deus.

14º Há uma vaidade que se faz sobre a terra:há ímpios que são tratados

conforme a conduta dos justos. (A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1973, p. 1177).

O cronista recorre a passagens de Eclesiastes, cuja etimologia vem do

hebraico Coélet que significa aquele que fala perante assembleia, o termo foi

traduzido para o correspondente português o pregador. Pensemos na estratégia

usada pelo cronista em seu devaneio: ele se coloca diante do maior pregador da

tradição religiosa judaica e contra-argumenta citando parodicamente trechos

truncados do livro de Eclesiastes, que apresenta supostamente como autor um

personagem judeu considerado o edificador do templo de Israel: Rei Salomão.

Colocam-se frente a frente duas tradições em conflito, a do velho testamento,

presa ao judaísmo conservador e a do cristianismo, inaugurada pelo pregador do

Sermão da Montanha. As citações truncadas do livro de Eclesiastes assumem um

tom irônico diante da prédica, pois, a ironia e a dubiedade da fala do cronista podem

ser levantadas pelo questionamento sobre a autoria de Eclesiastes, como nos

aponta texto introdutório ao livro na Bíblia de Jerusalém.

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(sic)

Eclesiastes [...] é um nome de ofício e designa aquele que fala na

assembléia, [...] é chamado ―filho de Davi e rei em Jerusalém‖, embora o

nome não seja mencionado, ele é certamente identificado como Salomão,

[...] Embora essa atribuição do autor não passe de mera ficção literária do

autor, [...] Muitas vezes se tem contestado a unidade de autor e distinguido

duas mãos, ,. três,.. quatro e até oito mãos distintas. (BÍBLIA DE

JERUSALÉM, 1973, p.1165).

A partir da leitura do comentário crítico sobre a autoria do livro de Eclesiastes,

ficamos tentados a pensar sobre como o cronista estrutura as estratégias de

produção de sentido nesta crônica: primeiro, temos um fragmento citado e

deturpado, pois o trecho apresentado como sendo de Eclesiastes fora modificado

livremente, numa releitura irônica; segundo, foi usado como resposta à prédica de

Jesus; terceiro, o livro de Eclesiastes tem este nome porque significa em português:

―pregador‖; quarto, a autoria é posta em dúvida, talvez nem haja um autor, mas

vários autores; e, por último, a estrutura do livro é um compósito, isto é, ele é

digressivo, num movimento de ―vai e vem‖. (op. cit.).

Ao usar a referência de Eclesiastes, é como se colocasse a fala suposta de

Salomão em oposição à fala de Jesus, dois homens sábios digladiando-se pela boca

do cronista, dois pregadores disputando entre si. Outro aspecto que merece ser

salientado é a possível não autoria do livro por Salomão, o que realça o caráter

irônico da citação, pois se o papel da citação, o da alusão e o da paródia, grosso

modo, é o afastamento da fonte, da autoria, nada mais apócrifo do que usar uma

citação cuja autoria é contestada, por isso, há elementos suficientes para se duvidar

da intenção do cronista que cria dois jogos duplos de sentido: o diálogo paródico da

crônica com o Sermão da Montanha e o circuito entre o velho e o novo testamento,

ambos representados, respectivamente, pelo livro de Eclesiastes e pelo Sermão da

Montanha.

Machado nesta crônica vai do relato histórico aludido pelos personagens

apresentados a começar, por ordem cronológica, Jesus, Solano López, Visconde do

Rio Branco, Visconde de Sinimbu e por associação ao imperador Dom Pedro II, à

viagem ficcional, quando se projeta no leitor do futuro e ao pô-lo no papel de

cronista, à paródia bíblica pela citação e recriação do Sermão da Montanha, com

direito à participação de Jesus, ao diálogo travado entre ambos. Todos estes

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apontamentos revelam a ligação das crônicas machadianas estudadas à linhagem

luciânica de sátira menipeia.

A alusão a elementos históricos e elementos bíblicos situados num mesmo

contexto enunciativo, unindo-se à mistura de gêneros textuais e à liberdade criadora,

isto é, à desnecessidade da verossimilhança pautada pela presença de um cronista

no futuro, assim como a presença imagética de Jesus em diálogo com o cronista, só

pode ser revelado por uma fala do cronista machadiano nesse texto: ―Tenho mais

critério que meu sucessor de 1920; não quero matá-lo com algumas notícias que ele

não há de entender.‖ (ASSIS, 1959, p. 628). O cronista do futuro não se interessará

pelas notícias do passado, pois elas não têm valor histórico suficiente para se tornar

parte da história, é apenas parte do universo miúdo colhido pelo escriba do

cotidiano.

O que podemos entender da afirmação do cronista? Entendemos que a

crônica estaria presa ao seu tempo, porém, o cronista nesta crônica, trata de dar a

ela um tratamento que a tornaria memorável, revestindo-a do tecido literário. Tecido

conseguido pela sobreposição de elementos fragmentários da guerra do Paraguai e

de recortes particulares de sua memória à citação truncada do Sermão da

Montanha e fragmentos do livro de Eclesiastes, configurando todo o aparato

inversivo e paródico que encobre a citação ao sermão bíblico.

O ponto de partida para o relato ficcional e fantástico da aparição de Jesus foi

uma espécie de prefácio memorialístico dos domingos de Ramos da sua infância,

que também são frutos de uma construção imaginária; a história real mescla-se com

a inventada pela imaginação do cronista. Fundem-se os espaços: o ficcional e o

histórico, porque o cronista é também um observador do miúdo, daquilo que é

considerado menor para os historiadores. O cronista é aquele que observa, colhe

pela sua imaginação e reinventa a história cotidiana do fundo ―de seu gabinete

escuro‖. (ASSIS, 1959, p. 395).

E é de dentro do seu gabinete escuro que o Sermão da Montanha sai aos

poucos, pinçado em pedaços, em citações e alusões, e é na escuridão desse

gabinete que, como míope, escreve enviesado, torto, ao avesso. Por isso, a citação

paródica principia pela maneira como o cronista se posiciona diante de Jesus, ao

mudar o início do sermão e a ordem dos versículos, conforme poderemos perceber

pelo confronto com a fonte.

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1º E vendo Jesus a grande Multidão do Povo, subiu a um monte, e depois

de ter sentado, se chegaram para o pé dele os seus discípulos;

2°E ele abrindo a sua boca os ensinava, dizendo:

3º Bem-aventurados os pobres de espíritos, porque deles é o reino dos

céus;

5º Bem-aventurados os que choram: porque eles serão consolados.

6º Bem-aventurados os que têm fome, e sede de justiça: porque eles serão

fartos.

9º Bem-aventurados os pacíficos: porque eles serão chamados filhos de

Deus.

10º Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor de justiça:

porque deles é o reino dos Céus... (BIBLIA SAGRADA, 2006, p. 568).

Ao estabelecermos o paralelo entre os dois textos, as diferenças acentuam-

se, primeiro quando o cronista desloca Jesus da cena bíblica, colocando-se diante

dele como um discípulo, pondo-se no mesmo nível de Cristo, dialogando e contra-

argumentando a mensagem bíblica. ―E Jesus apareceu-me antes de morto e

ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia e, abrindo os lábios, disse-

me que sua palavra dá solução a tudo. (ASSIS, 1959, p. 630).

No texto bíblico, não há menção de que Cristo tenha dito que a sua

mensagem seria a solução para tudo, essa inserção já é fruto do trabalho escritural

machadiano, além do deslocamento temos o truncamento, a intromissão escritural,

isto é, a livre interferência do autor. A grande multidão, à que se refere Cristo, torna-

se apenas um homem, presente ao sermão, é ele o discípulo a quem Cristo profere

o sermão, tudo fruto de sua alucinação.

O cronista coloca palavras na boca de Jesus, interfere no texto citado, muda o

contexto, trunca a ordem dos versículos, altera o sentido bíblico e inaugura um

diálogo entre o velho testamento e o novo testamento. Este diálogo serve de

parâmetro ao método de escritura-leitura machadiana.

Esta crônica serve de exemplo claro para uma das características da sátira

menipeia de tradição luciânica, pois além do Sermão da Montanha parodiado,

temos alguns elementos que demonstram certa gradação em que o circuito do

sermão é tomado, nela encontraremos uma reinvenção da história do Brasil, em

específico o conflito chamado de ―Guerra do Paraguai‖ que marcou a década de

setenta do Século XIX no Brasil. Esta liberdade fantasiosa é uma das características

da sátira menipeia, porque Machado toma um fato histórico e subverte, revira-o à

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sua maneira, como faz com o ―sermão‖. Primeiro, observamos os procedimentos

históricos e imaginários em torno da história do Brasil, depois, percebemos o sermão

adulterado em diálogo com o livro de Eclesiastes, que é citado pelo cronista como se

fizesse parte de um mesmo corpo textual.

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Considerações Finais

Ler e escrever nas trincheiras da citação e da alusão

Machado de Assis citou, aludiu, parodiou e satirizou textos bíblicos,

principalmente, o Sermão da Montanha e, é este texto que tomamos como base

para esta dissertação. Pudemos perceber que a incidência do texto sacro

configurava um circuito dialogal, um procedimento escritural usado por Machado de

Assis como método de escrita. Este método revelou-se em sua duplicidade de ler e

de escrever.

O trabalho de Machado de Assis apresenta um movimento que direciona todo

jogo de leitura e escritura, a maneira com que Machado escreve revela o seu

percurso de leitor, tem-se um rastro que indica como as ideias foram sendo

desenvolvidas, a partir de uma citação, de um fragmento textual, de uma alusão. É

interessante notar que o Sermão da Montanha está presente em vários momentos

escriturais de Machado de Assis, tanto na crônica, quanto no ensaio, no conto e no

romance, o que nos permite entender que se caracteriza como parte de um

procedimento escritural, que pode se iniciar na citação, ou na alusão e chega à

paródia, configurando um diálogo entre o velho e o novo.

Machado de Assis usa a citação, a alusão e a paródia como estratagemas,

pois no texto machadiano uma leitura por si só não basta. As crônicas machadianas

se abrem a novas frentes interpretativas, antes relegadas a gênero menor,

passaram a ser observadas sob a ótica da crítica especializada como literatura, fato

que as torna texto escriptível, aberto e não apenas legível, muito embora,

necessitassem também, da aprovação crítica dos especialistas.

Este cronista deixa aos leitores o convite para se aventurar nos meandros

complexos de sua teia. O que fizemos, foi tentar evidenciar por quais fios são

tecidas as crônicas que se fiam no Sermão da Montanha. Os detalhes que

estabelecem esta teia em torno do sermão nas cinco crônicas espalham pistas que

mostram o trabalho escritural machadiano que percorre o citar, o aludir e o parodiar,

todos numa linhagem luciânica de sátira menipeia. Apontamento que denuncia

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serem menipeicas as crônicas estudadas nesta dissertação, muito antes das

produções consideradas da fase madura do autor de Capitu.

Acreditamos ter contribuído no estudo da citação e da alusão, bem como o da

paródia de linhagem luciânica, lançando luzes sobre o método machadiano de ler e

escrever, entendendo que este método consolida-se nas crônicas como um

esquema de leitura-escritura pelo avesso que denuncia um sistema pautado no uso

da ironia e da paródia, a fim de esvaziar a canonicidade da tradição bíblica,

representada pelo Sermão da Montanha.

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ANEXO A - “Parasita II” na seção “Aquarelas” de 9 de outubro

1859, publicada no jornal O Espelho.

II

O PARASITA

(...)

Pobre gente!

Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a

musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma

noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...

É que têm o evangelho diante dos olhos...

Bem-aventurados os pobres de espírito.

O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade.

Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte.

Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos

incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança.

Regala-se à custa de crenças e superstições, de dogmas ou preconceitos, e lá vai

passando uma vida de rosas.

A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.

O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa vendeu as

absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas. Mediante o ouro, aplanou

as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois levantou a abstinência

alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa.

É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa idéia em embrenhar-se

pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica para a estupidez, que

toma o altar como um canal de absorver ouro e regalias.

Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé, rasga as

crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das famílias, sem haver

sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias. Dominou imoralmente as

massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.

Esta transformação do parasita não tende por ora a desaparecer; a fogueira de J.

Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo desse edifício

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de miséria levantado por uma turba de parasitas, parasita da fé, da moralidade e do

futuro. Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião

ao grado das circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações, como uma

verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a fronte levantada,

votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.

Exíguo de luz intelectual, — toma lá o seu assento e trata de palpar para apoiar as

maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se encosta...

Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do

domínio desses boêmios de ontem.

Deixá-los subir às mesas supremas do festim público. Mas tenham cuidado na

solidez das cadeiras em que se sentarem.

Na diplomacia, é mais fácil o ingresso ao parasita. Encarta-se aí em qualquer

legação ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou em Viena. Lá representam

tristemente a pátria que os viu nascer, na massa coletiva da embaixada ou da

legação. O que faz de melhor, esse parvenu sem gosto, é brilhar na arte das roupas,

como corifeu da moda que é. Já é muito.

Podia, se não temesse fatigar, fazer uma enumeração mais longa das famílias de

parasitas que irradiam destas espécies cardeais. Seria, entretanto, uma longa

história que demandaria mais largo espaço; e não caberia nestas ligeiras aquarelas.

O parasita é tão antigo, creio eu, como o mundo, ou pelo menos quase. Em

economia política é um elemento para estacionar o enriquecimento social;

consumidor que não produz, e que faz exatamente a mesma figura que um zangão

na república das abelhas.

Extinguir o parasita não é uma operação de dias, mas um trabalho de séculos.

Os meios não os darei aqui. Reproduzo, não moralizo.

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ANEXO B - Crônica de 4 de setembro de 1892, publicada na seção

“A Semana” - Gazeta de Notícias.

Nem sempre respondo por papéis velhos; mas aqui está um que parece autêntico; e,

se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo,

justamente um sermão da montanha, à maneira de S. Mateus. Não se apavorem as

almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que ―a igreja do Diabo imita a igreja de

Deus‖. Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo:

―1. E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome

Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.

―2. E ele abrindo a boca, ensinou, dizendo as palavras seguintes:

―3. Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.

―4. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.

―5. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.

―6. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.

―7. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu

respeito.

―8. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.

―9. Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa

se há de salgar?

―10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu,

pois assim se perdem o chapéu e a vela.

―11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.

―12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se

concertam, e se não for com remendo da mesma cor, será com remendo de outra

cor.

―13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos:

Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito

mais nutritivo que o próprio.

―14. Também foi dito aos homens: não matareis a vosso irmão, nem a vosso

inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar o

vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa.

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―15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda

meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu

irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo.

―16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao

Senhor os vossos juramentos.

―17. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e

crua, além de indecente, é dura de roer; mas jura e sempre e a propósito de tudo,

porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que

não juram nada. Se disserdes que o sol acabou, todos acenderão velas.

―18. Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia.

―19. Quando, pois, quiserdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito

Hábil, que faça treze de cinco e cinco.

―20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os

consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.

―21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a

ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los

no dia do juízo.

―22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é

capaz de comer o seu vizinho, e boa cara não quer dizer bom negócio.

―23. Vendei gato por lebre, e concessões ordinárias por excelentes, a fim de que a

terra se não despovoe das lebres, nem as más concessões pareçam nas vossas

mãos.

―24. Não queirais julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do

próximo para que ele não examine os vossos, e não resulte irem os dois para a

cadeia, quando é melhor não ir nenhum.

―25. Não tenhais medo às assembléias de acionistas, e afagai-as de preferência às

simples comissões, porque as comissões amam a vangloria e as assembléias as

palavras.

―26. As percentagens são as primeiras flores do capital; cortai-as logo para que as

outras flores brotem mais viçosas e lindas.

―27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contadas, e

perpétuas as contas que se não contam.

―28. Deixai falar os acionistas prognósticos; uma vez aliviados, assinam de boa

vontade.

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―29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom negócio;

mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos.

―30. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao

homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do

homem sem consideração, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...‖

Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio Diabo, ou alguém por ele;

mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles.

Fiz-lhe uma cruz com os dedos e ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo

papel, nem pelas doutrinas nem pelos erros de cópia.

Já agora parece que estou em dia de fantasmas. Mal pingava o ponto final do outro

parágrafo, quando me apareceu um senhor, que me disse ser defunto e haver-se

chamado Barão Luis.

— Conheço muito, disse-lhe eu: tenho ouvido a sua celebre máxima: ―Dai-me boa

política e eu vos darei finanças‖.

— Ah! meu caro senhor, acudiu o barão; essa máxima tem-me tirado o sono da

eternidade. Já não a posso ouvir, sem tédio. Quer ajudar-me a publicar uma troca de

palavras que fiz, mudando o sentido, a ver se pegam na segunda forma e deixam-

me em descanso a primeira?

— Senhor barão...

— Escute-me.

— Em vez de: ―dai-me boa política e eu vos darei boas finanças‖, arranjei esta outra

forma: ―Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política‖. Promete-me?

— Pois não!

— Não esqueça: ―Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política‖.

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ANEXO C - Crônica de 12 de junho de 1864, Diário do Rio de

Janeiro.

Também o folhetim tem cargo de almas.

É apóstolo e converte.

Fácil apostolado, é certo. Não há terras inóspitas ou áridos desertos, aonde levar a

palavra da verdade; nem se corre o risco de ser decapitado, como S. Paulo, ou

crucificado, como S. Pedro.

É um apostolado garantido pela polícia, feito em plena sociedade urbana. Em vez de

pisar areias ardentes ou subir por montanhas escalvadas, tenho debaixo dos pés um

assoalho sólido, quatro paredes dos lados e um teto que nos abriga do orvalho da

noite e das pedradas dos garotos. E por cúmulo de garantia ouço os passos da

ronda que vela pela tranqüilidade do quarteirão.

É cômodo, e nem por isso deixa de ser glorioso.

Deste modo o folhetim faz de ânimo alegre o seu apostolado. Entra em todo o lugar,

por mais grave e sério que seja. Entra no senado, como S. Paulo entrava no

areópago, e aí levanta a voz em nome da verdade, fala em tom ameno e fácil, em

frase ligeira e chistosa, e no fim do discurso tem conseguido,

também como S. Paulo, uma conversão.

(...)

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ANEXO D - Crônica de 22 de agosto de 1864, Diário do Rio de

Janeiro.

(...)

Só agora me chega às mãos o número da Cruz que foi distribuído ontem. Nada tens

de novo, a não ser uma noticiazinha curiosa.

Diz a Cruz:

―A repartição da caridade da irmandade da Candelária distribuiu pelas suas 600

pobres a quantia de 7:000$000 durante este último trimestre‖.

Leram, não? Pois bem: diz agora o evangelho de S. Matheus, capítulo V, versículos

2, 3 e 4:

―— Quando derdes alguma esmola, não façais tocar diante de vós a trombeta, como

fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos

homens. Em verdade vos digo, esses já têm o devido prêmio.

―— Mas quando derdes alguma esmola, que a vossa mão esquerda não saiba o que

fez a vossa mão direita.

―— Afim de que a vossa esmola seja em segredo, e vosso pai, que vê em segredo,

vos dará a recompensa‖.

Apliquem el cuento.

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ANEXO E - Crônica de 25 de março de 1894 publicada

originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro.

A semana foi santa, — mas não foi a semana santa que eu conheci, quando tinha a

idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai. Deus meu! Há pessoas

que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes que fazem a barba, que

namoram, que se casam, que têm filhos, e, não obstante, nasceram depois da

batalha de Aquidabã! Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de

outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não

há dúvida que os relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa.

Antigamente tinham o andar próprio de uma quadra em que as notícias de Ouro

Preto gastavam cinco dias para chegar ao Rio de Janeiro. Ia-se a São Paulo por

Santos. Ainda assim, na semana, os estudantes de Direito desciam a Serra de

Cubatão e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio. Que digo? Caso houve em

que vieram unicamente assistir à primeira representação de uma peça de teatro.

Lembras-te, Ferreira de Meneses? Lembras-te, Sizenando Nabuco? Não

respondem; creio que estão mortos.

Aí vou escorrendo para o passado, coisa que não interessa no presente. O passado

que o jovem leitor há de saborear é o presente lá para 1920, quando os relógios e os

almanaques criarem asas. Então, se ele escrever nesta coluna, aos domingos, será

igualmente insípido com as suas recordações:

―Tempo houve (dirá ele) em que o primeiro Frontão da Rua do Ouvidor, descendo, à

esquerda, perto da Rua de Gonçalves Dias, era uma confeitaria, Confeitaria

Pascoal. Este nome, que nenhuma comoção produz na alma do rapaz nascido com

o século, acorda em mim saudades vivíssimas. A casa da mesma rua, esquina da

dos Ourives, onde ainda ontem (perdoem ao guloso) comprei um excelente paio, era

uma casa de jóia, pertencente a um italiano, um Farani, César Farani, creio, na qual

passei horas excelentes. Fora, fora, memórias importunas!‖

Assim poderá escrever o leitor, em 1920, nesta ou noutra coluna para os jovens

desse ano não será menos aborrecido.

Mas, por isso mesmo que os há de enfadar, deixe-me enfadá-lo um pouco, repetindo

que a semana santa que acabou ontem ou acaba hoje não é a semana santa

anterior à passagem do Passo da Pátria ou ao último ministério Olinda.

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As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O

Domingo de Ramos valia por três. As palmas que traziam das igrejas eram muito

mais verdes que as de hoje, mais e melhor. Verdadeiramente já não há verde. O

verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram lentas, não

longas; não sei se percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas, por serem

vazias. Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série de

cerimônias, e de ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o Sábado de

Aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a

chave de ouro.

Tenho mais critério que meu sucessor de 1920; não quero matá-lo com algumas

notícias que ele não há de entender. Como entender, depois da passagem de

Humaitá, que as procissões do enterro, uma de São Francisco de Paula, outra do

Carmo, eram tão compridas que não acabavam mais? Como pintar-lhe os andores,

as filas de tochas inumeráveis, as Marias Beús, segundo a forma popular, o

centurião, e tantas outras partes da cerimônia, não contando as janelas das casas

iluminadas, acolchoadas e atapetadas de moças, bonitas, — moças e velhas —

porque já naquele tempo havia algumas pessoas velhas, mas poucas. Tudo era da

idade e da cor das palmas verdes. A velhice é uma idéia recente. Data do berço de

um menino que vi nascer com o ministério Sinimbu. Antes deste, — ou mais

exatamente, antes do ministério Rio Branco, — tudo era juvenil no mundo, não

juvenil de passagem, mas perpetuamente juvenil. As exceções, que eram raras,

vinham confirmar a regra.

Não entenderíeis nada. Nem sei se chegareis a entender o que sucedeu agora, indo

ver o ofício da Paixão em uma igreja. Outrora, quando de todo o Sermão da

Montanha eu só conhecia o Padre-Nosso, a impressão que recebia era muito

particular, uma mistura de fé e de curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os

cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o turíbulo. Entrei na igreja. A

gente não era muita; sabe-se que parte da população está fora daqui. Metade dos

fiéis ali presentes eram senhoras, e senhoras de chapéu. Nunca me esqueceu o

escândalo produzido pelos primeiros chapéus que ousaram entrar na igreja em tais

dias; escândalo sem tumulto, nada mais que murmuração. Mas o costume venceu a

repugnância e os chapéus vão à missa e ao sermão. Algumas senhoras rezavam

por livros, outras desfiavam rosários, as restantes olhavam só ou rezariam

mentalmente. Não quero esquecer um velho cantor de igreja, que ali achei, e que,

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em criança, ouvira cantar nas festas religiosas; creio que nunca fez outra coisa,

salvo o curto período em que o vi no coro da defunta Ópera Nacional.

Que idade teria? Sessenta, setenta, oitenta...

Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela

música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás

dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus

apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a

Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.

— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto

as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.

— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

— Vede a injustiça do mundo. ―Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz

ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.‖

— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males...

— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o

reino do Céu. E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com

uma palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que

estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o sermão

continuava.

Bem aventurados pobres de espírito. Bem aventurados os pacíficos. Bem-

aventurados os mansos...

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ANEXO F - Sermão da Montanha - São Mateus Capítulo V.

São Mateus, 5

1. Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-Se. Os discípulos

aproximaram-se

2. e Jesus começou a ensiná-los:

3. Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.

4. Felizes os aflitos, porque serão consolados.

5. Felizes os mansos, porque possuirão a Terra.

6. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.

7. Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia.

8. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.

9. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.

10. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do

Céu.

11. Felizes de vós, se fordes insultados e perseguidos, e se disserem toda a espécie

de calúnia contra vós por causa de Mim.

12. Ficai alegres e contentes, porque será grande para vós a recompensa no Céu.

Do mesmo modo perseguiram os profetas que vieram antes de vós.

13. «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal perde o sabor, com que poderemos salgá-

lo? Não serve para mais nada; só serve para ser lançado fora e ser pisado pelos

homens.

14. Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre

um monte.

15. Ninguém acende uma lâmpada para a colocar debaixo de uma vasilha, mas sim

para a colocar no candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão em casa.

16. Assim também: que a vossa luz brilhe diante dos homens, para que eles vejam

as boas obras que fazeis e louvem o vosso Pai que está nos céus.

17. Não penseis que Eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes

pleno cumprimento.

18. Eu vos garanto: antes que o Céu e a Terra deixem de existir, nem sequer uma

letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça.

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19. Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja,

e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu.

Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do

Céu.

20. Com efeito, Eu vos garanto: se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei

e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu.

21. Ouvistes o que foi dito aos antigos: "Não matarás! Quem matar será condenado

pelo tribunal".

22. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que fica com raiva do seu irmão, torna-se réu

perante o tribunal. Quem diz ao seu irmão: "imbecil", torna-se réu perante o Sinédrio;

quem chama ao irmão "idiota", merece o fogo do inferno.

23. Portanto, se fores até ao altar para levares a tua oferta, e aí te lembrares de que

o teu irmão tem alguma coisa contra ti,

24. deixa a oferta aí diante do altar e vai primeiro fazer as pazes com o teu irmão;

depois, volta para apresentar a oferta.

25. Se alguém fez alguma acusação contra ti, procura logo entrar em acordo com

ele, enquanto estais a caminho do tribunal; senão o acusador entregar-te-á ao juiz, o

juiz entregar-te-á ao guarda, e irás para a prisão.

26. Eu te garanto: daí não sairás, enquanto não pagares até ao último centavo"

27. «Ouvistes o que foi dito: "Não cometerás adultério".

28. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la,

já cometeu adultério com ela no coração.

29. Se o olho direito te leva a pecar, arranca-o e lança-o fora! É melhor perder um

membro do que o teu corpo todo ser lançado no inferno.

30. Se a mão direita te leva a pecar, corta-a e lança-a fora! É melhor perder um

membro do que o teu corpo ir para o inferno.

31. Também foi dito: "Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de

divórcio".

32. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por

causa de fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a

mulher divorciada comete adultério.

33. «Ouvistes também o que foi dito aos antigos: "Não jurarás falso", mas "cumprirás

os teus juramentos para com o Senhor".

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34. Eu, porém, digo-vos: não jureis de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trono

de Deus;

35. Nnem pela Terra, porque é o suporte onde Ele apóia os pés; nem por Jerusalém,

porque é a cidade do grande Rei.

36. Não jures nem mesmo pela tua própria cabeça, porque não podes fazer com que

um só dos teus cabelos fique branco ou preto.

37. Diz apenas "sim", quando é "sim"; e "não", quando é "não". O que disseres para,

além disto, vem do Maligno.

38. «Ouvistes o que foi dito: "Olho por olho e dente por dente!"

39. Eu, porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal. Pelo contrário: se

alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda!

40. Se alguém faz um processo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa!

41. Se alguém te obriga a andar um quilômetro, caminha dois quilômetros com ele!

42. Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pedir emprestado.

43. «Ouvistes o que foi dito: "Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!"

44. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos

perseguem!

45. Assim tornar-vos-eis filhos do Pai que está no Céu, porque Ele faz nascer o sol

sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos.

46. Pois, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os

cobradores de impostos não fazem a mesma coisa?

47. E se cumprimentais somente os vossos irmãos, o que é que fazeis de

extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?

48. Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu.