PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Erivaldo dos Santos
Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégias de ler e escrever pelo
avesso
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Erivaldo dos Santos
Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégias de ler e escrever pelo
avesso
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação do Profª. Drª. Maria
Rosa Duarte de Oliveira.
SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora
________________________________________
Dedico esta dissertação às duas mulheres eixo de minha
vida: minha mãe Antônia Rosa dos Santos (in memoriam) e
minha avó Maria Rosa da Conceição (in memoriam) que
sempre apoiaram e acreditaram na minha capacidade de
superar obstáculos e continuar no caminho do
conhecimento e da pesquisa.
Agradecimentos
Agradeço primeiramente à minha amada e estimada esposa, Vânia Coelho, que
esteve comigo nos momentos mais difíceis, incentivando-me e entendendo as horas
de ausência em nome dos estudos machadianos.
Agradeço à minha orientadora Maria Rosa Duarte de Oliveira pela paciência,
dedicação e crítica construtiva no decorrer da produção desta pesquisa.
Agradeço a Capes que me possibilitou estudar numa instituição altamente
qualificada com bolsa total, sem a qual não teria sido possível esta empreitada.
Agradeço a todos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica
Literária pela atenção dedicada e, principalmente, à secretária Ana Albertina de
Oliveira Miguel.
Aí vou escorregando para o passado, cousa que não
interessa no presente. O passado que o jovem leitor há de
saborear é o presente, lá para 1920, quando os relógios e
os almanaques criarem asas. Então, se ele escrever nessa
coluna, aos domingos, será igualmente insípido com as
suas recordações. (Machado de Assis. Crônica 25 de
março de 1894 “A Semana”).
RESUMO
Esta dissertação tem como tema a citação e a alusão na crônica machadiana.
Objetiva-se estudar o circuito do Sermão da Montanha como estratégia de leitura e
de escritura no processo de aludir e citar, tendo na inversão da fonte por ironia ou
paródia sua força de reescritura afinada com o sério-cômico de linhagem luciânica.
Cinco crônicas foram selecionadas para corpus desta pesquisa, a saber: “Parasita II”
na seção “Aquarelas” de 9 de outubro 1859, publicada no periódico O Espelho; as
publicadas na seção “Ao acaso” de 12 de junho de 1864 e de 22 de agosto de 1864,
no Diário do Rio de Janeiro; além de duas outras - as de 4 de setembro de 1892 e
25 de março de 1894, publicadas na seção “A Semana” do periódico Gazeta de
Notícias. Levantamos como problema da pesquisa a seguinte indagação: como
Machado de Assis, pelo uso da citação e da alusão, esvazia o discurso canônico e
revela seu antidogmatismo? Como hipótese, consideramos o uso da citação e da
alusão como método machadiano de ler-escrever pelo avesso, fundado sobre a
ironia e a paródia, de sorte a esvaziar o discurso canônico de tradição bíblica,
representado pelo Sermão da Montanha. Norteamos a pesquisa pelo suporte
teórico sobre texto legível e escriptível de Barthes e os de paródia alicerçados em
Linda Hutcheon e Bakthin, além dos estudos de Enylton de Sá Rego sobre o vínculo
da obra machadiana com a sátira menipeia de linhagem luciânica. Após leitura,
análise e comparação entre as citações e alusões do Sermão da Montanha nas
crônicas selecionadas, consideramos que Machado de Assis se utiliza de citação e
alusão, ainda que num gênero considerado menor como a crônica, como estratégias
discursivas que visam à formação do leitor.
Palavras-chave: Machado de Assis; crônica; alusão; citação; ler-escrever.
RESUMÉ
Cette dissertation traite de la citation et de l'allusion dans la chronique machadienne.
Cette étude se concentre sur le circuit du «Sermão da Montanha» en tant que
stratégie pour la lecture et l'écriture dans le processus de construction des allusions
et des citations, ayant dans l'inversion de la source de l'ironie ou de la parodie sa
force de reécriture en phase avec le sérieux-comique de la lignée lucianique. Il a été
choisi comme corpus de cette recherche cinq chroniques, à savoir: «Parasita II»
dans la section «Aquarelles», 9 octobre 1859, publiée dans le périodique O Espelho;
les chroniques publiées dans la section «Ao acaso», le 12 juin 1864 et le 22 août
1864, dans le Diário do Rio de Janeiro, et deux autres – la chronique du 4 septembre
1892 et du 25 mars 1894, publiées dans la section «A Semana» du périodique
Gazeta de Notícias. La recherche visait à répondre à la question suivante: comment
Machado de Assis avec l'utilisation de la citation et de l'allusion vide le discours
canonique et révèle son anti-dogmatisme? Comme réponse possible à la question
soulevée, on a considéré l'utilisation de la citation et de l'allusion comme une
méthode de Machado de lecture-écriture en sens inverse, basée sur l'ironie et la
parodie, de manière à vider le discours canonique de la tradition biblique, représenté
par le «Sermão da Montanha". Notre recherche a été orientée et soutenue par
l'apport théorique de Roland Barthes, avec son concept de texte lisible et escriptible,
de Linda Hutcheon et Bakhtine, avec la parodie, en plus des études d'Enylton de Sá
Rego sur le lien entre le travail de Machado de Assis et la satire menipée de lignée
lucianique. Après la lecture, l'analyse et la comparaison entre les citations et les
allusions du «Sermão da Montanha" dans les chroniques sélectionnées, on en
conclut que Machado de Assis cite et fait allusion – même dans un genre mineur,
telle qu’est considérée la chronique – comme une stratégie discursive visant à la
formation du lecteur.
Mots-clés: Machado de Assis; chronique; allusion; citation; lire-écrire.
ABSTRACT This dissertation deals with the quotations and allusions found in Machado’s chronicles. This study focuses on the circuit of the Sermon on the Mount as a reading and writing strategy in the process of alluding and quoting; its rewriting strengths are found in inversion through irony or parody in tune with the seriocomic Lucianic lineage. Five chronicles were selected for the body of this research, namely: "Parasite II" in the "Watercolors" section of October 9th, 1859, published in “The Mirror” newspaper; the chronicles published in the "By chance" section of June 12nd, 1864 and 22 August 1864, in the Rio de Janeiro newspaper, and besides these, two more chronicles from September 4th , 1892 and March 25th , 1894, which were published in the " The Week" section of the Gazeta de Noticias newspaper. We raised the following question as the central issue of this study: how does Machado de Assis make use of quotations and allusions, thus emptying the canonical discourse and revealing its anti-dogmatism? We hypothesize that the use of quotations and allusions is Machdo’s method of reading and writing inside out, which is based on irony and parody, so as to empty the canonical discourse of the biblical tradition, represented by the Sermon on the Mount. Our research was guided by the theoretical support on the readable and writeable text of Barthes and parody grounded in Linda Hutcheon and Bakhtin, in addition to the studies of Enylton de Sá Rego regarding the link of Machado's work with the Menippus satire genre of Lucianic lineage. After reading, analyzing and comparing the quotations and allusions of the Sermon on Mountain in selected chronicles, we believe that Machado de Assis makes uses of quotations and allusions, albeit in a lesser degree, a genre called chronicle, as the discursive strategies that aim at training the reader. Keywords: Machado de Assis; chronicles, allusion, quotation and read-write.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................10
CAPÍTULO I - A Citação e a alusão: ato de ler e escrever....................................12
CAPÍTULO II – Ler e escrever pelo avesso: paródia, ironia e sátira
menipeia....................................................................................................................29
CAPÍTULO III – Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégia de ler e
escrever pelo avesso...............................................................................................37
3.1. Machado de Assis cronista..............................................................................37
3.2. A ruminação mastigativa: O “Sermão da Montanha” em cinco crônicas
machadianas.............................................................................................................40
3.2.1. O Parasita........................................................................................................42
3.2.2. Ao Acaso.........................................................................................................46
3.2.3. Ao Acaso II......................................................................................................48
3.2.4. O Diabo e o Sermão da Montanha................................................................51
3.2.5. A Guerra do Paraguai, Eclesiastes e o Sermão da Montanha...................58
CONSIDERAÇÕES FINAIS – Ler e escrever nas trincheiras da citação e da
alusão........................................................................................................................66
REFERÊNCIAS..........................................................................................................68
ANEXO A - “Parasita II” na seção “Aquarelas” de 9 de outubro 1859, publicada
no jornal O Espelho..................................................................................................71
ANEXO B - Crônica de 4 de setembro de 1892, publicada na seção “A Semana”
- Gazeta de Notícias.................................................................................................73
ANEXO C - Crônica de 12 de junho de 1864, Diário do Rio de Janeiro...............76
ANEXO D - Crônica de 22 de agosto de 1864, Diário do Rio de Janeiro.............77
ANEXO E - Crônica de 25 de março de 1894 publicada originalmente na Gazeta
de Notícias, Rio de Janeiro......................................................................................78
ANEXO F - Sermão da Montanha - São Mateus Capítulo V..................................81
10
INTRODUÇÃO
O tema deste trabalho é o estudo da citação e da alusão entendidas como
estratégias de leitura e de escritura em Machado de Assis, tendo por recorte o texto
Sermão da Montanha e o modo como é reconfigurado em cinco crônicas, a saber:
―Parasita II‖, de 9 de outubro de 1859, publicada no Espelho; ―Ao acaso‖, 12 de
junho e 22 de agosto de 1864, publicadas na coluna A Semana Ilustrada, no
periódico Diário do Rio de Janeiro e as crônica de 4 de setembro de 1892 e 25 de
março de 1894 publicadas no jornal Gazeta de Notícias.
Vislumbra-se nesta sucessão de citações e alusões do Sermão da Montanha
um Machado leitor da Bíblia, que se apropria do texto sagrado para reescrevê-lo por
meio do processo simultâneo de leitura e de escritura. Neste jogo, o leitor se depara
com um novo texto, um sermão paródico e irônico que se caracteriza pelo desvio e
pela subversão do sentido dogmático e religioso original do texto sacro. A partir do
desvio e do rebaixamento, o sermão recebe um novo contexto temporal - segunda
metade do século XIX - e um novo topos - Rio de Janeiro no Brasil.
Ao se posicionar sobre a citação e a alusão como estratégias de leitura e de
escritura, esta dissertação se aproxima dos trabalhos realizados por Passos (1995),
Senna (2003) e Oliveira (2008), no sentido de que os pesquisadores veem as
citações e as alusões em Machado de Assis como um procedimento escritural.
Embora tenhamos certeza de que nos textos escolhidos para corpus desta
pesquisa haja outras citações e alusões já exploradas em vários trabalhos,
pretendemos estudar apenas o circuito do Sermão da Montanha como discurso
citado, na acepção de Bakhtin (1979, 1993, 2003, 2005), isto é, o discurso dentro do
discurso de forma a criar um campo bivocal e dialógico entre duas vozes textuais: a
da fonte citada e aquela que a desloca para outro contexto escritural.
Tal procedimento, seja por meio da citação explícita, seja por meios indiretos
como a alusão, implica o método machadiano de escrever como quem lê ou de ler
como aquele que escreve, revelando uma semelhança com a concepção de Barthes
sobre o ―escrever a leitura‖. (2004, p. 63).
11
Machado de Assis não cita ou alude para referendar uma fonte ou para
demonstrar erudição, mas revela o uso e a apropriação do discurso do outro como
elemento fundador de uma reescrita à luz de uma nova leitura.
O trabalho escritural de Machado de Assis nas crônicas escolhidas revela o
Sermão da Montanha como uma rede que interpõe diálogo entre o texto legível e
canônico e o escriptível, isto é, aquele que, na acepção barthesiana, cria, a partir do
texto legível, outro que o reescreve sob nova perspectiva. Isso pressupõe um
circuito dialogal, um choque entre sujeitos: o do texto fonte e os daqueles que o
reinterpretaram, deslocando-o para outros contextos. É esta tensão entre dois ou
mais planos discursivos que estabelece o campo de forças dialógicas da
enunciação, dando origem a um texto, a partir de estratégias como a paródia ou o
jogo irônico, fundados sobre a linhagem luciânica do sério-cômico da sátira
menipeia.
Esta dissertação é constituída de três capítulos, a saber: O primeiro capítulo –
A citação e a alusão: ato de ler e escrever – põe em evidência diferentes
perspectivas teóricas sobre citação e alusão, a partir das concepções de discurso
citado de Bakhtin (1979, 1993, 2003, 2005), texto legível - escriptível e leitura-
escritura, sob o enfoque de Barthes (2004), além do estudo desenvolvido por
Antoine Compagnon (2007). O segundo capítulo – Ler e escrever pelo avesso:
paródia, ironia e sátira menipeia – prima por reflexão teórica sobre estes
procedimentos discursivos de inversão e crítica estabelecendo as conexões com o
ato de leitura-escritura. Já o capítulo três – Citação e alusão nas crônicas
machadianas: estratégia de ler e escrever pelo avesso – analisa as citações e
alusões do Sermão da Montanha nas crônicas selecionadas, demonstrando o
antidogmatismo machadiano por meio de um ato de leitura-escritura pelo avesso,
isto é, tendo por referência a linhagem da menipeia de tradição luciânica.
Com esta pesquisa, esperamos oferecer contribuição para os muitos estudos
críticos empenhados na reflexão sobre o método machadiano das citações e
alusões, especialmente as de fonte bíblica, como é o caso do Sermão da
Montanha.
12
Capítulo I – A citação e a alusão: ato de ler e escrever
Voltemos à frase de Balzac. Ninguém (isto é, nenhuma "pessoa") a diz: sua
fonte, sua voz não é o verdadeiro lugar da escritura; é a leitura. [...] o texto é
tecido de palavras de duplo sentido que cada personagem compreende
unilateralmente [...] há, entretanto, alguém que ouve cada palavra na sua
duplicidade, e ouve mais, pode-se dizer, a própria surdez das personagens
que falam diante dele: esse alguém é precisamente o leitor (ou, no caso, o
ouvinte). (BARTHES, 2004, p. 63).
Citar em latim – Citare - significa pôr em movimento, fazer passar do repouso
à ação. O termo ainda se traduz pelo verbo citar como sinônimo de provocar, de
incitar ou como os cognatos suscitar, solicitar, incitar, ressuscitar, entre outros, na
concepção de um jogo lúdico, de uma provocação. Citar significa provocar, erguer
da terra, trazer à vida, tornar vivo e seduzir. (COMPAGNON, 2007, p. 60).
Etimologicamente, a palavra citação, a partir do radical ―cit‖, pode ser
associada ao conceito de texto legível e de texto escriptível, uma vez que a citação
tende a incitar um movimento no leitor que é levado a associar a memória da citação
com seu novo contexto e, desta forma, investigar a fonte. Neste sentido, a citação
move o leitor para um campo de significação diferente daquele em que fora tomada.
Já a palavra alusão, do latim allusio, alludere, tem como significação primária
o sentido de jogar com, referir-se a, porque faz uma referência direta ou indireta à
obra, personagem ou situação.
Fundida no magma do texto, ou explícita, a alusão impõe-se pela própria
natureza do que se pretende transmitir e, só assim, tem razão de ser. As
mais das vezes, a alusão insere a obra que a contém numa tradição comum
julgada digna de preservar-se. [...] nem sempre o leitor, ainda que culto e
atento, capta a alusão encerrada numa passagem. Na realidade, quando
um texto nos evoca outro, só podemos supor que existe alusão, a menos
que tenhamos ciência de que o escritor conhece o trecho evocado.
(MOISÉS, 2004, p. 18).
A palavra alusão ainda se aproxima do vocábulo latino ludo, ludus que
significa ―jogar, divertir-se; compor; imitar; gracejar; enganar; iludir, fingir, lograr,
13
simular, zombar, escarnecer, ridicularizar, jogo ou espetáculo público‖. (FERREIRA,
s/d, p. 687).
O que chama a atenção é o fato de a palavra estar ligada ora ao ato lúdico,
ora ao logro (vejamos o radical de lud presente no verbo iludir) e ao simulacro, como
se colocasse o leitor em confronto com o texto numa postura desafiadora.
A percepção da alusão é mais subjetiva, isto é, altera-se de sujeito para
sujeito dependendo do repertório do leitor e, vista como um ato que implica leitura,
torna-se mais desafiadora do que a citação, uma vez que esconde o texto tomado
como referência.
Já a citação para Compagnon (2007), é uma ―dinamys cujo texto é o ergon; o
trabalho ou a ação‖ (p. 60), isto é, citar significa também, entre outras definições, pôr
em movimento, fazer passar do repouso à ação.
Se relacionarmos com o contexto da leitura e da escritura, tanto a citação
quanto a alusão são o resultado do trabalho de ler e de escrever, isto é, implicam um
movimento da inércia inicial (um texto legível e cristalizado pela tradição) para a
ação provocadora de deslocamento e apropriação. O autor leu, recortou e escreveu
a sua leitura, como diria Barthes (2004), num novo espaço, o que significa também,
na concepção bakthiniana, inserir um discurso no outro, estabelecendo um contexto
dialógico alicerçado sobre uma palavra bivocal.
Tanto a citação quanto a alusão, portanto, caracterizam-se como estratégias
de provocação para a memória literária e cultural do leitor, que o desafia para
desvendar o jogo instaurado por trás da palavra tomada como empréstimo. Neste
caso, podem ser consideradas semelhantes a ―recortes‖, como quer Compagnon
(2007), que se deslocam de um contexto original e atuam num outro, estranho
àquele de onde partiram.
Citar é recortar como faz uma criança com uma tesoura nas mãos de modo a
permitir que o objeto mutilado seja reeditado num espaço de criação. O que foi
recortado perde sua autenticidade, mas passa a ser outro também verdadeiro, sem
anular as marcas que o associam ao texto original.
14
[...] quando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Um objeto primeiro, colocado
diante de mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se
interrompe numa frase. Volto atrás: re-leio. A frase relida torna-se fórmula
autônoma dentro do texto. [...] o fragmento escolhido converte-se ele
mesmo em texto, não mais um fragmento de texto, membro amputado;
ainda não o enxerto, mas órgão recortado e posto em reserva.
(COMPAGNON, 2007, p. 14).
Há neste processo de recortar-colar um prazer singular que se vincula ao ato
de ler, selecionar, guardar e, ao mesmo tempo, recusar a fonte citada.
Recorte e colagem são as experiências fundamentais com papel, das quais
a leitura e a escrita não são senão formas derivadas, transitórias [...]. Entre
a infância e a senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a escrever.
Leio e escrevo. Não paro de ler e escrever. [...] Gosto do segundo tempo da
escrita, quando recorto, junto e recomponho. Antes ler, depois escrever:
momentos de puro prazer preservado. [...] Dois dentre os grandes escritores
deste século comprovariam essa definição: Joyce e Proust. O primeiro
apresentava a tesoura e a cola, scissors and paste, como objetos
emblemáticos da escrita; o segundo pregando aqui e ali seus pedaços de
papel comparava de bom grado seu trabalho ao do costureiro que constrói
seu vestido, [...] E no texto, como prática complexa do papel, a citação
realizada, de maneira privilegiada, uma sobrevivência que satisfaz a minha
paixão pelo gesto arcaico do recortar-colar. (ibidem, p. 13).
Para o autor, citar é o gesto segundo da leitura, que significa mutilar,
desenraizar, é a extração, pois o texto colocado diante do leitor é interrompido pela
necessidade de recompor os passos da leitura, instaurando o jogo de avanço e
recuo, próprio do ato de ler. Nesse sentido, o fragmento escolhido transforma-se em
outro texto, autônomo, sem ser um membro mutilado ou um pedaço deslocado de
um discurso.
15
A leitura é procedimento explosivo, mutilador, desmonta o texto e o
dispersa, mesmo quando não se está recortando, ocorre um processo de
citação que ―desagrega o texto e o destaca do contexto‖. Dentro desse
movimento, a leitura seleciona frases, recorta-as mentalmente, mesmo que
não haja o trabalho do sublinhar, ocorrerá o da citação, pois são frases das
quais se gosta, que são consideradas como parte de um mostruário.
(COMPAGNON, 2007, p. 13).
A citação se torna resultado do deslocamento ou da recusa realizada pela
leitura, porque nem sempre é demarcada graficamente para indicar a inserção do
outro na escrita literária. A ausência deste artifício gráfico, no caso as aspas,
caracteriza um jogo estabelecido pelo autor textual, como fez Montaigne (1972) ao
omitir o nome dos autores citados para fazer valer o efeito não somente estético,
mas também o da argumentação.
E, no que tomo de empréstimo aos outros, vejam unicamente se soube
escolher algo de realçar ou apoiar a ideia que desenvolvo, a qual, sim, é
sempre a minha. Não me inspiro nas citações; valho-me delas para
corroborar o que digo e que não sei tão bem expressar, ou por insuficiência
da língua ou por fraqueza dos sentidos. (p. 196).
O uso da citação e da alusão resulta, então, de um trabalho duplo de leitura e
de escritura e pode ser visto como jogo de sedução, que ora conduz o leitor ao
desvio da fonte, ora o provoca, escondendo a autoria de maneira intencional e
comprometendo a sua originalidade, por meio de um jogo de inversão, rebaixando,
trocando as posições semânticas de um enunciado por outro.
Desta forma, a citação e a alusão podem ser vistas como um gesto lúdico que
torna o espaço da escrita um lugar de transformação, uma vez que operam como
estratégias capazes de ―ressuscitarem aquilo que estava morto‖, dando uma nova
vida ao citado pelo desvio e deformação.
Imitar asseguraria o domínio da língua, e citar, o domínio do discurso.
Proust não teria dito que todo escritor começa pelo pastiche? A citação teria
existido sempre, desde o nascimento da linguagem até a sociedade de
lazer. Quem contestaria sua universalidade? (COMPAGNON, 2007, p. 61).
16
Ainda temos que a citação e a alusão são como estratégias de leitura e de
escrita abrindo a possibilidade do diálogo, com a concepção de escritura que, para
Barthes, o texto literário deveria ser chamado de escritura no sentido de ―encenar a
língua‖, isto é, torná-la um ―tecido de significantes que constitui a obra, porque é o
texto próprio o aflorar da língua‖. (2004, p.16).
Entendendo literatura não como um corpo ou uma sequência de obras, nem
mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das
pegadas de uma prática: a prática de escrever. Nela viso, portanto,
essencialmente, o texto, isto é, o tecido dos significantes que constitui a
obra, porque o texto é o aflorar da língua, e porque é no interior da língua
que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela
é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro. (op. cit.)
Para o autor, o trabalho do escritor se centraliza no deslocamento que faz no
tecido da língua, na maneira como o subverte, tornando as palavras um conjunto
cênico de múltiplas sensações e sabores interpretativos, que fazem ―do saber uma
festa‖. (ibidem, p. 20).
Tendo por base estas reflexões, podemos pensar que o texto literário é
também o lugar da leitura, pois é a manipulação da língua no processo de escritura
que faculta ao escritor o seu gesto criador que só se completa no outro que o
deseja.
Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram
escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do
escritor). Mas ao contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim,
escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que
eu o procure ( que eu o ―drague‖), sem saber onde ele está. Um espaço de
fruição fica então criado. Não é a pessoa do outro que me é necessária, é o
espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do
desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo.
(BARTHES, 1999, p. 9).
Barthes vê a literatura como um prato a ser saboreado, estabelece uma
comparação entre o léxico e a culinária; as palavras devem ter um sabor, um gosto
profundo. Curiosa esta analogia, pois os vocábulos ―sabor‖ e ―saber‖ possuem na
língua portuguesa o mesmo radical. O sabor das palavras está no saber profundo
17
que a elas está atrelado. Ao se fazer uma leitura, pratica-se uma ação mastigatória
em que é possível ao leitor deliciar-se com as palavras, como se houvesse um prato
a ser saboreado; é o gesto fágico a que se refere Quintiliano (1889, p. 1 e p. 19)
quando é citado por Compagnon (2004, p. 14).
Assim como se mastiga por muito tempo os alimentos para digeri-lo mais
facilmente, da mesma maneira o que lemos, longe de entrar totalmente cru
em nosso espírito, não deve ser transmitido à memória e à imitação senão
depois de ter sido mastigado e triturado.
O ato de ler, para Oliveira (2008), ao referir-se às Memórias Póstumas de
Brás Cubas, está relacionado ao ―desvestir antropofágico e dessacralizador desse
corpo pela arte da mastigação‖. (p. 29). É a mastigação que propicia o melhor
aproveitamento do alimento, torna-o mais aceitável à digestão, logo, o gesto fágico
referido por Quintiliano é uma ação que favorece a assimilação de um texto pela
memória. Quando se cita, é porque se prevê que o texto ou parte dele se encontra
guardado na memória dos livros e do leitor.
O que faz o leitor ―levantar a cabeça‖, segundo Barthes, é a ação digressiva
que caracteriza atividade de leitura (2004, p. 26), é o desejo desencadeado pelo
sabor das palavras que o leva a estabelecer associações por meio de um
movimento de imersão e volta à superfície.
Nunca lhe aconteceu. Ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura,
não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de idéias. Excitações,
associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?
É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e
apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, [...] em outras palavras,
interrogar a minha própria leitura é tentar captar a forma de todas as
leituras. (op. cit.)
Percebe-se que o texto escapa da mão do autor, deixa de ser dele na forma
concebida, cai no colo do leitor que o acolhe numa relação de aventura e de ruptura,
preenchendo os espaços com a fruição de sua leitura. É desta forma que o texto
legível se torna escriptível.
Segundo Perrone-Moisés, o texto legível é aquele que só permite uma
representação, enquanto o escriptível é aquele que permite uma re-apresentação.
18
―O primeiro só pode ser lido, o segundo pode ser re-escrito. O primeiro se presta à
crítica, o segundo solicita uma outra escritura‖. (2005, p. 43). Instala-se entre os
textos uma fenda no sentido de tornar visível a avaliação sobre a prática da
escritura: o fato de um texto segundo surgir como ―instigação‖ a partir de um primeiro
atesta o seu valor.
[...] a leitura, pelo contrário (esse texto que escrevemos em nós quando
lemos), dispersa, dissemina; ou, pelo menos, diante de uma história. [...]
associa-se ao texto material (a cada uma de suas frases) outras idéias,
outras imagens, outras significações. ―O texto, apenas o texto‖, dizem-nos,
mas, apenas o texto, isso não existe: há imediatamente nesta novela, neste
romance, neste poema que estou lendo, um suplemento de sentido de que
nem a gramática pode dar conta. (BARTHES, 2004, p 28).
Ainda de acordo com Perrone-Moisés, a citação é também o centro nervoso
da relação entre escritura/leitura. O escritor se coloca estrategicamente no jogo da
citação e da alusão, denunciando, dessa forma, a biblioteca universal a que está
vinculado.
Leitura e escritura são obras coletivas, em maior ou menor grau,
dependendo da consciência assumida pelo leitor e pelo escritor com relação
à amplitude e à responsabilidade de sua empresa comum: não obra
individual. A obra de um indivíduo é uma espécie de nó que se produz no
interior de um produto cultural, no seio do qual o indivíduo é, desde a
origem, um momento desse tecido cultural. Assim, uma obra é sempre obra
coletiva. [...] a citação, como vimos, é o ponto nevrálgico da ligação leitura-
escritura. (2005, p. 131).
Senna, por sua vez, entende que as citações e alusões no caso machadiano
fazem parte de um procedimento de escrita como resultado de um processo de
leitura.
19
POUCOS — TALVEZ NENHUM — AUTORES DA LITERATURA brasileira
fazem, como Machado de Assis, uso da citação e da alusão a outras obras
da tradição literária. Do Antigo Testamento a Victor Hugo, da Ilíada a Edgar
Allan Poe, das Mil e uma noites a Álvares Azevedo, o universo referencial
de Machado parece infinito. E, o que é melhor, o autor faz dos textos que
apropria ferramenta de trabalho, pondo a citação e a alusão, nem sempre
muito precisas ou fiéis ao original, a serviço da técnica de narrar: ora
funciona para complementar a caracterização de uma personagem, ora
para encadear a trama romanesca, ora para servir ao narrador na sua
necessidade de controlar a recepção do leitor. (SENNA, 2003, p. 1).
Enquanto isso, Oliveira (2008) também em seu estudo sobre o livro Memórias
Póstumas de Brás Cubas analisa a estratégia das citações e alusões como ato
duplo de leitura-escritura que opera tanto no nível do autor quanto no do próprio
leitor, desde que seja convidado a partilhar a autoria do texto que escreve durante a
leitura.
[...] escrever tendo a leitura como princípio de composição textual significa,
em primeiro lugar, dividir a responsabilidade da escritura com outros autores
de cuja leitura Machado de Assis é devedor [...]. Na medida que esses
empréstimos textuais se realizam, fazendo do livro uma condensação da
memória de outros livros que nele se inscrevem, o leitor Machado de Assis
inviabiliza a já tradicional crítica de fontes na sua busca por reconstituir os
originais, inevitavelmente roídos pela invenção da leitura. (p. 25).
É o ato da leitura que provoca no leitor o desejo da escrita como produto de
um ato mastigativo gerador de uma cadeia que não se esgota, uma vez que cada
leitura vale ―pela escritura até o infinito‖. (BARTHES, 2004, p. 40).
Barthes menciona que a leitura propicia três tipos de prazer: o primeiro surge
da relação entre o livro e o sujeito-leitor, que tira prazer de certos arranjos das
palavras; o segundo modo diz respeito a uma força que impulsiona o leitor para
frente na leitura, graças ao suspense que o força a interromper e retomar o ritmo da
leitura em função do desvendamento narrativo, da suspensão e da espera pelo
desfecho; o terceiro tipo de prazer trazido pela leitura é a aventura de tornar-se
escritura, respondendo ao desejo de ―escrever a leitura‖ e instaurar o ―gozo da
escritura‖ fazendo uma espécie de ―ritual de passagem‖ por meio do qual o ―sujeito-
leitor‖ transforma-se em sujeito-escritor. (ibidem, p. 39).
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Se considerarmos a palavra texto pelo seu sentido etimológico de tecido,
trama, enredamento de fios mínimos que se entrelaçam no emaranhado de sua
superfície, as citações podem ser entendidas como parte do alinhavar1, do sentido
aberto pela escritura. Perceber as linhas que cruzam o texto não significa desfazê-lo,
nem provocar buracos em sua superfície, mas entender por quais caminhos
intricados o sentido se configura no entrelaçar desta rede escritural. Ao tomar
contato com o texto, que é um ―tecido de citações‖ (BARTHES, 2004, p. 62), o leitor
dá unidade a este mosaico por meio do diálogo entre as citações presentes no texto
e a sua biblioteca individual como efeito de um processo dinâmico de forças opostas
que se encontram num espaço comum: a escritura.
O texto, dessa forma, é tecido de escrituras múltiplas, vindas de culturas
diferentes e ―que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em
contestações [...]. Toda essa multiplicidade reúne-se não no autor, mas no leitor‖ [...],
que ―é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as
citações de que é feita uma escritura‖. (ibidem, p. 64).
Barthes também amplia a definição de texto que não se confunde com a obra,
objeto material e fixo, porque o texto, que é linguagem e só existe como discurso em
movimento constante entre o texto legível e o escriptível, expande os limites físicos
da obra, inaugurando um espaço dialogal entre leitura-escritura, leitor e autor, texto
e obra.
O texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária
do texto. Ou ainda só se prova o texto num trabalho, numa produção. A
conseqüência é que o texto não pode parar (por exemplo, numa prateleira
de biblioteca); o seu movimento constitutivo é a travessia (ele pode
especialmente atravessar a obra, várias obras). (ibidem, p. 67).
Assim, texto, para Barthes, é o equivalente a texto escriptível, isto é, aquele
que se instaura como um espaço aberto a re-escrituras possíveis no universo de
leituras-escrituras vindouras.
Perrone-Moisés ao tecer comentários sobre o vínculo entre escritura e
literatura para Barthes, afirma que a literatura é:
1 Alinhavar: passar a linha sobre o orifício de uma agulha, relativo à linha. Como linha, a palavra
também possui a semântica de texto, escrita, palavra escrita numa mesma direção, coisa escrita, nesse sentido, o termo ―alinhavar‖ significa, portanto, tornar algo escriptível, que tem propriedade de escrita, que pode ser escrito, ou vir a ser escrito.
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um saber ao qual só tem acesso pela produção de um novo texto: texto
mental da leitura, texto concretizado numa nova obra literária. Texto que o
sujeito não pré-existe como sujeito-que-sabe, mas na produção do qual o
sujeito se cria e se recria, numa significância infinitamente aberta.
(PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 14).
Há duas margens no texto: a primeira estabelece uma relação indireta com a
tradição, enquanto a outra trilha o caminho do vazio, apta a tomar não se sabe quais
contornos, uma vez que nunca é mais do que o lugar de seu efeito. O gozo
encontra-se na fenda entre duas margens. A presença de um prazer do texto na
leitura e na escritura só é possível no duplo leitor-autor.
Se leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra, é porque foram
escritas no prazer (este prazer não está em contradição com as queixas do
escritor). Mas e o contrário? Escrever no prazer me assegura – a mim,
escritor – o prazer de meu leitor? De modo algum. Esse leitor, é mister que
eu o procure (que eu o ―drague‖), sem saber onde ele está. Um espaço de
fruição2 fica então criado. Não é a ―pessoa‖ do outro que me é necessária, é
o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do
desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo
(BARTHES, 1999, p. 9).
A citação como resultado de uma leitura do gozo estético é ―a neurose, como
último recurso, [...] é o único que permite escrever (ler)‖. (ibidem, p. 11). A margem
da ruptura, da subversão se estabelece pela perda, pela fenda, pelo corte, dessa
maneira ―a cultura retorna, portanto, como margem: sob não importa qual forma‖.
(ibidem, p. 13).
A leitura que desencadeia o gozo é aquela que nos convida a desrespeitar a
tradição para provocar o strip-tease do texto, isto é, mostrá-lo em sua intimidade,
oculta sob a vestimenta de uma leitura consagrada pelo cânone.
Este instante de subversão da leitura pelo leitor não pode ser previsto pelo
autor, ―ele não pode querer escrever o que se não lerá. No entanto, é o próprio ritmo
daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer do texto‖ (ibidem, p. 18).
2 Na tradução do livro ―O Prazer do Texto, o tradutor optou por usar o termo ―Fruição‖ em vez de
Gozo‖, como foi feito em outros livros citados neste trabalho.
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O gozo situa-se na leitura escusa, na clandestinidade, numa leitura de texto
furtado. A leitura que provoca o gozo é aquela que desloca o leitor do seu centro de
segurança, é aquela que balança as raízes das suas referências culturais e
históricas.
[...] texto de prazer: aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está
ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição (gozo): aquele
que coloca em estado de perda, que desconforta (talvez até um certo
enfado), faz vacilar os alicerces históricos, culturais, psicológicos do leitor, a
consistência de seus gostos, de seus valores, de suas lembranças, põe em
crise sua relação com a linguagem. (BARTHES, 1999, p. 22-23).
Segundo o conceito de texto de gozo e de texto de prazer, a citação como
argumento de função científica está dentro do que foi colocado como texto de
prazer, porque dialoga com as bases culturais e históricas sem questioná-las, sem
provocar ruptura. Já a citação e a alusão quando provocam um deslocamento,
fazendo a movência do sentido, subvertem suas bases referenciais e, por isso,
escrevem-se como texto de gozo, pois é aquele tipo de enunciado que causa o
desconforto, a perda e a ruptura com o referente original.
Pela reflexão de Barthes é possível perceber que escritura é o resultado de
um processo de leitura. O texto se encontra entre a leitura e a escritura. O trabalho
presente na escritura é marcado pela recusa ao estilo, não é mera cópia de um texto
anterior, logo o que se caracteriza em Barthes como escritura diz respeito ao
trabalho laborioso com a linguagem.
Outro aspecto que se destaca na reflexão barthesiana é o fato de se ver a
citação como a estratégia de leitura que retoma o já dito, porém, afastando-se da
cópia, assumindo uma postura de invenção, subversão e criatividade, num jogo de
concessões e retomadas. A escritura, nesse sentido, aproveita-se do atrito da
língua, forçando-a a ir ―além de suas possibilidades‖. (PERRONE-MOISÉS, 2005, p.
42).
Quem sabe o contato com a cultura anterior firmado pelo deslize abrupto seja
também o estabelecimento de um dialogismo bakhtiniano, pois, pelo que se entende
do pensamento barthesiano, a escritura não se isenta do choque com o outro. A
escritura se faz neste jogo de forças entre a tradição e o novo, que não é novo, mas
que se faz pela re-escritura do que já foi dito. A percepção da escritura pelo leitor
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abre opções em que cada livro lido tece outra escritura num leque de universalidade
ao infinitum.
A citação ou a alusão é uma força escritural presente no processo de escrita,
escreve-se porque se lê, lê-se no sentido de que haverá uma escrita daquilo que foi
lido, mesmo que seja realizada mentalmente. Escreve-se porque se busca o dizível,
busca-se exprimir o que se sente, pensar em palavras grafas. Tem-se a certeza de
que escrever não é fruto de um trabalho mecânico ou simplesmente o objeto final do
ato de recorte e colagem, mas caso possa ser, é também o fruto de um eco que
ressoa e se aloja no escritor.
Barthes não usa as expressões ―discurso citado‖, ―dialogismo‖ e ―polifonia‖,
estas expressões pertencem ao pensamento bakhtiniano, mas se percebe que a
maneira como trata a escritura muito se aproxima do que Bakhtin reflete sobre o
discurso citado.
[...] um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e
que encontram umas com as outras em diálogo, em paródia, em
contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse
lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o
espaço mesmo onde se inscrevem, sem que perca todas as citações de que
é feita a escritura; [...]. (BARTHES, 2004, p. 64).
O leitor é o mediador do diálogo entre as múltiplas escrituras, sendo que é ele
que se torna o lugar em que o texto se atualiza e se torna outro pelo ato da leitura. O
pensamento de Barthes sobre escritura coaduna-se com o de Bakhtin, no sentido de
que ambos possuem a reflexão sobre a presença da alteridade no discurso literário,
ou, no caso barthesiano, de seu outro, que é a leitura.
Os conceitos de citação de Compagnon (2007) e Barthes (2004) foram vistos
como elemento extra-texto, um jogo de recorta e cola inserido numa relação de
leitura e escritura. A partir de Compagnon, tem-se m painel descritivo e analítico
sobre o uso da citação com todas as possibilidades inerentes à etimologia,
restaurando definições clássicas de Montaigne a Quintiliano, passando por Barthes,
no estudo de texto como algo inacabado, aberto ao processo de reescritura pela
leitura e escritura, e concebendo dentro das associações realizadas os conceitos de
texto legível e de texto escriptível. Portanto, abre-se um diálogo com as formulações
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sobre discurso citado, que combina em alguns aspectos com os autores estudados
até o momento.
É necessário que se veja a citação como força tensional entre enunciados
opostos, ou então, como espaço estratégico da escritura, filha da leitura, eco de
vozes multiformes e resultado de um jogo dialógico, servindo, portanto, ao trabalho
literário.
A partir de Bakthin, a citação pode ser vista como um duplo que estabelece
relações dialógicas.
Dois enunciados alheios confrontados, que não se conhecem e toquem
levemente o mesmo tema (idéia), entram inevitavelmente em relações
dialógicas entre si. [...] O autor de uma obra literária (romance) cria uma
obra (enunciado) de discurso único e integral. Mas ele cria a partir de
enunciados heterogêneos, como alheios. Até o discurso direto do autor é
cheio de palavras conscientizadas dos outros. (2003, p. 321).
É desta maneira que se instaura o discurso citado, uma vez que todo
enunciado parte do pressuposto do já dito e que a relação estabelecida entre dois
enunciados caracteriza um conflito, um confronto de forças opostas de cuja tensão
dialética surge o discurso citado como resultado de um trabalho de leitura e de
escritura.
Em todas as circunstâncias humanas, nas suas relações discursivas, ocorre
algum tipo de citação, uso de referência ou de alusão. Os discursos são constituídos
por um jogo dialógico de múltiplas vozes.
Pode-se mesmo dizer: fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que
os outros dizem - transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, julgam-se a as
palavras dos outros, as opiniões, [...] referem-se a elas. Se prestarmos
atenção aos trechos de um diálogo tomado ao vivo na rua, [...] ouviremos
com que freqüência [...] as palavras ―diz‖, ―dizem‖, [...] Qualquer conversa é
repleta de transmissões e interpretações das palavras dos outros. A todo
instante se encontra nas conversas ―uma citação‖ ou uma ―referência‖ ao
que disse uma determinada pessoa, ao que ―se diz‖ ou àquilo que ―todos
dizem‖, às palavras de um interlocutor [...] a um jornal, a um decreto, a um
documento, a um livro, etc. (BAKHTIN, 1993, p.139-140).
25
Segundo Bakhtin (1993), a transmissão discursiva pela oralidade, na maioria
das vezes, é feita de maneira indireta, sem que seja feita alguma alusão à fonte, à
citação ou à referência a que se faz menção. Funde-se no enunciado representado
nos procedimentos de transmissão, que podem ser a literalidade do discurso alheio
(discurso direto ou uma citação truncada) ou paródia.
Entendemos que o universo discursivo oral é fruto também de enunciados
emprestados de discurso alheios, afetando, portanto, o sentido de originalidade, uma
vez que estas apropriações ganham vida e contextos distintos. A percepção da
citação direta ou indireta é referendada pelos verbos dicendi, isto é, verbos do dizer,
que demarcam linguisticamente o distanciamento entre o sujeito como autor ou não
do enunciado.
Para Bakthin, por mais precisa que seja a citação do discurso alheio no
contexto, ―o discurso sempre está submetido a notáveis transformações‖. (ibidem, p.
141). Não se podem separar os procedimentos de elaboração do discurso de outrem
daqueles que implicam o seu enquadramento dialógico (contextual). Uma palavra
alheia inserida num novo contexto discursivo funde-se a ele tanto no plano de
expressão quanto no plano do conteúdo, numa relação indissolúvel, o que
impossibilita a percepção dos limites entre um e outro.
O autor de uma obra literária (romance) cria uma obra (enunciado) de
discurso única e integral. Mas ele a cria a partir de enunciados
heterogêneos, como que alheios. Até o discurso direto do autor é cheio de
palavras conscientizadas dos outros. (BAKHITN, 2003, p. 321).
Este texto nunca seria inteiramente novo, mas uma atualização de outros
enunciados, de outros textos; seria, portanto, um eco de outras vozes, como define
Bakhtin, um espaço em que o dialógico se manifestasse num jogo de forças
estabelecidas entre o sujeito-leitor versus o sujeito-autor, um eu versus outro. Este
jogo é caracterizado pela dualidade de forças opostas e pode ser visto como uma
manifestação dialógica em que ocorre o ―jogo entre opiniões em confronto, confronto
entre duas, ou mais consciências‖. (1993, p. 378).
Ainda segundo o autor russo, ―o discurso citado pode entrar no discurso e na
sua construção sintática, por assim dizer ―em pessoa‖ [...] conservando sua
autonomia estrutural e semântica, sem nem alterar a trama lingüística [...] (1979, p.
26
130), ou seja, passa a fazer parte de um novo contexto sem a perda de traços
identificadores, o que significa que a mudança de sentido é decorrente do
deslocamento, traduzindo-se em outro texto.
No deslocamento do discurso narrativo para o citado, o contexto narrativo
elimina sua
objetividade e passa a ser percebido como a fala de outra pessoa. O
narrador fala através da linguagem das personagens representadas na obra
e o autor desaparece. Todos os acontecimentos passam pela cabeça dos
personagens. Nesta passagem, as fronteiras se desfazem e é preciso ler
um discurso pelo outro. (MACHADO, 1995, p. 112, 113).
Para Bakthin (1979), a transmissão do discurso do outro considera uma
terceira pessoa, isto é, quem está recebendo as enunciações citadas. No decorrer
deste processo, o relevante a ser considerado é a presença de forças sociais que
organizam o modo de apreensão do discurso. Este fato revela a importância do
contexto social a que o falante está envolvido, assim como a presença de traços
sociais presentes no discurso citado.
No entanto, o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a
interação dinâmica dessas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que
serve para transmiti-lo, na verdade, eles só têm uma existência real, só se
formam e vivem através dessa inter-relação, e não de maneira isolada. O
discurso citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma
inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da
inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal.
(p.134).
A apreensão do discurso citado por um enunciatário não o torna mudo,
privado de palavra, todavia, está repleto de palavras interiores. Ocorre, pois, uma
relativização entre a atividade mental (fundo perceptivo), ―é mediatizado para ele
pelo discurso interior que se efetua a apreensão e é aí que se opera a junção com o
discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra.‖ (ibidem, p.133).
O discurso citado (discurso dentro do discurso) não anula as palavras daquele
que apreendeu o discurso do outro, ocorre uma inter-relação dos dois contextos
discursivos.
27
Fica estabelecido um diálogo, que é a condição do discurso citado. O
dialogismo decorre da ação verbal entre o enunciador e o enunciatário no espaço
textual.
O diálogo implica complexidade, porque rompe as trincheiras do discurso de
um com o do outro, criando um terceiro, sem que haja uma fusão, porque não se
pode fundi-los, visto que apresentam pontos de visão diferentes, mas que
estabelece uma inter-relação, porque o diálogo é um confronto. Isso é alteridade,
uma tensão, porque não se tem uma visão total particular, mas se tem o excedente
de visão sobre o outro.
A potência do diálogo é o confronto, a tensão, é isso que constrói a cena da
enunciação. Na cena enunciativa, é possível que haja dois discursos; na citação
como discurso citado tem-se um confronto de dois sujeitos, isto é, o texto recortado,
que veio para um novo contexto e o novo contexto em que o texto entrou. Este texto
se encontrava numa cena enunciativa, porque estava num contexto, tinha um
sentido no todo, mas quando foi recortado, passou a fazer parte de uma nova
enunciação.
A relação entre o sujeito e o outro neste diálogo, mais o que está em torno
dele, implica a discursividade, a receptividade e a tensão, pois a enunciação é um
campo dialogal, tensional. Aqui encontramos o narrador, os personagens, os outros
textos da cultura pela citação, alusão, tudo isso se tornando uma grande polifonia
vocal, subconjuntos dentro de conjuntos.
É na enunciação que se modulam os enunciados, é uma relação de
significado, que está na relação dialogal. Embora o enunciado ofereça elementos
que estão em processo dialogal, deve-se colocá-los em processo para se criar a
cena da enunciação. Portanto, o leitor se torna peça importante para se criar uma
nova cena enunciativa, com o seu contexto; a relação do leitor com o texto
estabelece o surgimento de um novo campo dialogal.
O novo campo dialogal, a nova cena produzida pelo deslocamento de uma
citação ou de uma alusão inserida num outro contexto revela o sentido por trás do
aspecto etimológico destas palavras: possibilidade do desvio, do embuste, do
engodo, principalmente no que se refere ao termo ―alusão‖, se o intuito usado pelo
expedidor for provocado pelo afastamento da cena original.
Quando se realiza uma citação direta ou indireta (alusão) se desloca o
fragmento ou o discurso da cena enunciativa. O choque entre a cena original e o
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novo contexto fica latente quando se tem a oportunidade do confronto, mas no
momento em que esta possibilidade é apagada pelo esvaziamento dos traços que
indiquem a fonte, ocorre a inserção da cena A na cena B, confundido-se no novo
contexto.
Este aspecto do apagamento dos traços identificadores da fonte é que faz
com que haja o trabalho do texto escriptível, um texto que se renova pelo ato da
leitura. O trabalho da leitura é tomar um texto legível (texto consagrado pela tradição
e pela crítica) em um texto escriptível (um novo texto, aberto a novas leituras e
interpretações) novo no sentido de que o leitor atento consegue encontrar novas
possibilidades de leitura em um texto que foi marcado pela visão crítica que engessa
o olhar sobre o texto, que direciona o leitor à mesma direção interpretativa de
sempre, não permitindo que se faça um caminho diferente no tratamento do discurso
literário.
Tentamos ao longo deste capítulo fazer um breve levantamento de aspectos
teóricos que norteiam os conceitos de discurso citado cuja fundamentação teórica
pautou-se nos estudos de Bakthin (1979, 1993, 2003 e 2005). Muito já foi dito e
discutido sobre discurso citado e polifonia, por isso não se pretende esgotar o
assunto. Nossa preocupação aqui foi retomá-los a fim de que pudéssemos costurar
uma aproximação entre os conceitos barthesianos de texto legível e texto escriptível.
A partir desta aproximação, entendemos que tanto o ato de citar como o de aludir,
visto por Compagnon (2007) como um gesto de recorta e cola, é mais do que um
simples ato de bricolagem, é, na verdade, uma extensão do processo de tessitura de
uma literatura que, guardadas as devidas idiossincrasias teóricas, completam-se
para responder ao problema da formação de um público leitor na obra machadiana,
em especial, as crônicas selecionadas para esta dissertação.
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Capítulo 2 – Ler e escrever pelo avesso: paródia, ironia e sátira
menipeia
Considerando a citação e a alusão como estratégias do ler e do escrever, já
que citar e aludir são resultados destas duas práticas que intimamente se
consolidam no texto escriptível machadiano, notamos que, dadas as possibilidades
de desvio, pelo deslocamento e pela inserção numa nova cena contextual, a citação
e a alusão sofrem a ação da ironia e da paródia, estratégias próprias da linhagem da
menipeia à qual Machado de Assis se filiou.
Para Linda Hutcheon (1985), a paródia é recurso estilístico.
[...] é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com
distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo.
Versões irônicas de ―transcontextualização‖ e inversão são os seus
principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do
ridículo desdenhoso à homenagem reverencial. (p. 54).
Para a autora, citação, alusão e paródia implicam bivocalidade, aproximando-
se assim da interpretação bakthiniana, porém, com uma ressalva: apenas a paródia
implica a relação necessária com um texto-fonte cuja repetição se fará por diferença
no novo texto que o parodia.
A paródia tem uma determinação bitextual mais forte do que a citação ou
até que a alusão simples; partilha tanto o código paródico genérico de um
texto particular a ser parodiado, como código paródico genérico em geral.
Incluo a alusão aqui, porque também ela tem sido definida de maneira que a
têm levado a ser confundida com a paródia. A alusão é um expediente para
a ―ativação simultânea de dois textos‖ (Ben-Porat 1976, 107), mas fá-lo
essencialmente através da correspondência – não da diferença, como é o
caso da paródia. Todavia, a alusão irônica estaria mais próxima da paródia
[...] A paródia está, pois, relacionada com o burlesco, a farsa, o pastiche, o
plagiariarismo, a citação e alusão, mas mantém-se distinto deles. [...] sua
repetição é sempre de outro texto discursivo. (ibidem, p. 61).
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A paródia como um texto que se põe a dialogar com outro, delineando
diferenças entre o original parodiado e aquele que o parodia, também instaura um
diálogo necessário com o leitor, posto que só se pode reconhecer a existência de
uma paródia na relação entre os dois textos envolvidos e o leitor. Observando por
este aspecto, a paródia se coloca numa posição de rejuvenescimento do texto
parodiado.
Os escritores literários sempre se viraram para os textos do passado, mas
nem sempre tiveram de ser tão didáticos e abertos como, digamos, John
Fowles em The French Lieutenant‘s Woman. A prática clássica de citar as
grandes obras do passado visava tomar de empréstimos parte do seu
prestígio e autoridade, mas, para que isto acontecesse, partia igualmente do
princípio de que o leitor reconheceria os modelos literários interiorizados e
colocaria no complementar circuito da comunicação – de uma ―memória
erudita‖ (learnèd memory, memória dotta). (HUTCHEON, 1985, p. 112).
O gesto maior na construção do sentido paródico está na relação
estabelecida entre o ler e o escrever, por isso a ponte entre o leitor e sua memória
literária é fundamental para a interpretação do ler pelo avesso, que implica, assim,
atualização e renovação da tradição. A diferença crítica em relação à fonte tomada
por empréstimo ou apropriação evidencia a produção de um efeito destronador, isto
é, retira-se do original o status canônico e o reveste com roupagens de arlequim.
A função dessacralizadora realizada pela paródia reavalia o modo operante
do ler e do escrever. Cria-se um ludus duplo que se atualiza entre o ler do texto-
fonte pelo autor e o seu escrever, ou ainda, entre o ler do leitor e a escritura de sua
leitura. O ato de provocar uma escrita que subverta um texto canônico exige que
haja também uma leitura que interprete o avesso do parodiado inscrito nas tramas
daquele que o parodia, aproximando-o do burlesco, da farsa, do pastiche e do
plagiariarismo, conforme afirma Hutcheon (1985). A partir destes pontos, guardadas
as devidas diferenças e posicionamentos entre os autores, podemos aproximar a
concepção de paródia de Hutcheon à de Bakthin (2005), cujas raízes estão numa
tradição medieval: a carnavalização.
No estudo feito por Bakthin (2005), a paródia, que compreende uma análise
histórico-literária desde a tradição dos diálogos socráticos até a Idade Média,
encontra-se na tradição dos festejos populares, especialmente no carnaval, seu
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locus. É neste mundo às avessas que se instaura um jogo de inversões e
rebaixamentos responsável pela subversão paródica do sério e elevado num híbrido:
o sério-cômico. O consagrado é rebaixado ocupando a esfera inferior da desordem.
Quebra-se a barreira hierárquica entre os homens de níveis sociais diferentes, que
passam a coabitar o mesmo espaço social, a praça carnavalizada. Com isso, o
carnaval, para Bakthin, não é o espetáculo em si, mas a vivência de uma prática que
rompe a ordem habitual, por isso vive-se o carnaval como uma vida às avessas.
A paródia, como uma prática vinculada à carnavalização, surge pela
necessidade do homem em lidar com o riso, que reduz as fronteiras entre o sério e o
cômico, fazendo do distante, canonizado e aurático, próximo e contemporâneo; daí a
sua força para o gênero romance, desde seu nascimento na menipeia, ao se
posicionar, justamente, no presente da cultura, de onde o passado e o futuro podem
ser contemplados e reconfigurados na história do homem ―que fala‖, isto é, do seu
discurso, a verdadeira personagem do romance na concepção bakthiniana.
Bakthin, ao aprofundar a análise do romance no contexto medieval, verifica
que a influência de cultura popular manifesta-se nas tradições carnavalescas.
O homem medieval levava mais ou menos duas vidas: uma oficial,
monoliticamente séria e sombria, subordinada à rigorosa ordem hierárquica,
impregnada de medo, dogmatismo, devoção e piedade, e outra público-
carnavalesca, livre, cheia de riso ambivalente, profanações de tudo o que é
sagrado, descidas e indecências do contato familiar com tudo e com todos.
E essas duas vidas eram legítimas, porém separadas por rigorosos limites
temporais. (2005, p. 129).
Para se entender adequadamente a originalidade da consciência cultural do
homem medieval, além de fenômenos como ―paródia sacra‖, é preciso compreender
a ―alternância e o mútuo estranhamento desses dois sistemas de vida e pensamento
(oficial e o carnavalesco).‖ (ibidem, p. 130).
Dessa forma, a Palavra Sagrada na Idade Média assumiu o lugar de
protagonista na literatura paródica, graças às mudanças de tonalidade na pronúncia,
alteridade do padrão linguístico do latim eclesiástico ao vulgar, etc. O texto paródico
permite entrever a presença cultural da época por meio da estilização e de seu efeito
deformador.
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Esta palavra, seu estilo e sentido, tornaram-se objeto de representação,
transformaram numa imagem, circunscrita e cômica. A ―paródia sacra‖ latina
era construída sobre a língua nacional vulgar, cujo sistema de pronúncia se
infiltrou no texto latino. Por isso, a paródia é na realidade um fenômeno
bilíngue: ainda que uma língua única, ela é construída e expressa à luz de
outra língua; algumas vezes não só os acentos, mas mesmo as formas
sintáticas dessa língua vulgar são claramente sentidas na paródia latina. A
paródia latina é um híbrido premeditado. (BAKTHIN, 1993, p. 389).
A forma pela qual se parodiavam os textos sacros na Idade Média inclui
várias manifestações de citação: ―semidissimulada, dissimulada, semiconsciente,
inconsciente, correta, intencionalmente deformada, não intencionalmente
deformada, reinterpretada tencionalmente.‖ (BAKHTIN, 1993, p. 385). Por
conseguinte, a presença da citação como estratégia paródica no contexto medieval
leva Bakthin a criar uma tipologia que evidencia a força desta estratégia discursiva,
aventando o problema da intencionalidade.
E aqui não raro surge o problema de saber se o autor faz uma citação
respeitosa ou, ao contrário, cita com ironia e ―escárnio‖. A ambigüidade para
com o discurso do outro era freqüentemente proposital. (op. cit.).
Como se pode ver, a paródia funda-se no dialogismo, no confronto entre
linguagens e no jogo de alteridade, de modo que estabelece o cruzamento entre
dois pensamentos linguísticos, dois sujeitos do discurso e é isso que lhe confere o
estatuto de bivocalidade.
A paródia se instaura no elemento de criação literária deixando perceber o
fundo ativo desta criação artística. De maneira invisível, nota-se o outro texto
(discurso) parodiado sob aquele que o parodia. Por haver este jogo entre as
linguagens, entre os sujeitos do discurso, entre os dois pensamentos linguísticos, é
que a paródia é definida como um ―híbrido dialogizado‖, pois ―nela, as linguagens e
os estilos se esclarecem reciprocamente.‖ (ibidem, p. 390).
Outro aspecto relevante a respeito da paródia é a sua ligação com a sátira
menipeia que, por sua vez, liga-se à carnavalização. Por sátira menipeia, entende-se
um gênero textual em farsa que mistura o erudito, o burlesco e o popular e está na
33
origem das formas romanescas, inscritas na cultura popular, segundo Bakhtin
(1993).
A sátira menipeia tem sua origem em Menipo de Gádara, filósofo do séc. II a.
C, porém, como forma nominal de gênero, foi usada pela primeira vez pelo erudito
romano do século I a. C Marco Terêncio Varro, que chamou à sua sátira de ―saturae
menippea‖. (ibidem, p.112).
Segundo o autor russo, a sátira menipeia atravessa vários gêneros
influenciando a literatura cristã antiga.
Esse gênero carnavalizado, extraordinariamente flexível e mutável como
Proteu, capaz de penetrar em outros gêneros, teve uma importância
enorme, até hoje ainda insuficientemente apreciada, no desenvolvimento
das literaturas européias. A ―sátira menipéia‖ tornou-se um dos principais
veículos e portadores da cosmovisão carnavalesca na literatura até os
nossos dias. (2005, p.113).
A sátira menipeia é fortemente marcada pelo elemento cômico, livre das
limitações histórico-memoralísticas inerentes aos diálogos socráticos.
Descompromissada em relação à verossimilhança, embora possa haver menção a
personagens históricos, podem habitar no mesmo espaço literário personagens
históricos e lendários. A sátira menipeia tem como particularidade mais importante a
finalidade filosófico-ideológica, isto é, por mais que a fantasia seja extremamente
audaciosa e descomedida, a intenção é ―criar situações extraordinárias para
provocar e experimentar uma verdade filosófica‖. (ibidem, p.114).
Entre quatorze características apresentadas por Bakthin, ao analisar a sátira
menipeia, destacam-se ainda, a combinação orgânica do fantástico livre e do
simbolismo e, às vezes, elementos místicos religiosos com o submundo extremado e
grosseiro; a ação e as síncrises (oposições) dialógicas fundadas em três planos
distintos – Terra, Inferno, Olimpo (céu) – a representação de inusitados estados
anímicos, psicológico-morais anormais do homem e toda espécie de loucura, as
cenas de escândalos, comportamentos excêntricos, discursos e declarações
inoportunas; o jogo de contrários, o alto e baixo, o rico pobre, o imperador convertido
em escravo, etc.; o cruzamento de gêneros intercalados como cartas, discursos
oratórios e a fusão dos discursos da prosa e do verso e; por ultimo, o gênero
jornalístico da antiguidade, como registro de uma época, cheio de polêmica aberta e
34
velada e de figuras atuais, tendências e correntes da atualidade. (BAKHITIN, 2005,
p. 116-118).
Ao levantarmos as características gerais da sátira menipeia, necessário
realçar que a paródia é um elemento inseparável dela e de todos os gêneros
carnavalizados: ―O parodiar é a recriação do duplo destronante, do mesmo mundo
às avessas. Por isso, a paródia é ambivalente‖ (ibidem, p. 127) e não se limita à
negação simples do parodiado, mas é a confirmação de um duplo paródico, isto é,
―representa tanto o riso fúnebre quanto o triunfal‖. (op. cit.).
Para Machado (1995, p. 183), a ―manifestação paródica é irônica graças a
esta visão especular: riso e seriedade se espelham mutuamente numa mesma
esfera‖, porque os duplos contrários são elementos presentes em tudo, estabelecem
pleno reconhecimento mútuo, espelham-se um no outro e firmam compreensão de
plena reciprocidade.
Em Luciano, segundo Enylton de Sá Rego (1989), a paródia é vista como um
expediente literário no qual a sátira menipeia se dá, justamente, pela imitação
paródica de outros gêneros textuais. Nos textos luciânicos, pode-se encontrar tanto
o diálogo quanto a sátira num mesmo espaço textual. Com relação ao aspecto da
hibridização e da inversão dos gêneros, tem-se o mesmo jogo de inversão presente
na carnavalização estudada por Bakthin, porque ao usar o diálogo num contexto
extra-filosófico e re-significação do diálogo num contexto popular inerente à
comédia, temos os mesmos processos ―invertidos‖ e de ―representação‖ em que se
estabelece um nova ordem do mundo: a ordem carnavalizada. (MACHADO, 1995, p.
183).
Ainda de acordo com Rego, a sátira menipeia é caracterizada pelo hibridismo
textual, porém, este hibridismo, esta mistura de gêneros, que marca a inovação da
obra luciânica, ―se realiza exatamente através da paródia a temas, idéias e
passagens textuais específicas praticadas por Luciano‖. (ibidem, p. 56).
Desta forma, a presença de ―estilos altos e baixos‖, ou seja, a coabitação de
gêneros elevados e inferiores é que caracteriza a sátira menipeia e a aproxima do
conceito carnavalização.
Assim como Bakthin, Rego destaca o papel da citação e da alusão como
estratégia textual na construção do texto paródico, isto é, a citação literal ou quase
literal (citação truncada) ou, ainda, a alusão são recursos textuais em que os estilos
altos e baixos se fazem notar na obra de Luciano.
35
Rego (1989) sistematizou, a partir do estudo que fez da obra de Luciano,
cinco características estruturadoras da sátira menipeia de tradição luciânica: a
mistura de gêneros, a paródia e as citações truncadas, a liberdade de imaginação, o
caráter ambíguo e não moralizante e o ponto de vista distanciado do narrador.
A primeira característica se refere ao hibridismo, isto é, à mistura de gêneros
textuais, que se caracteriza pelo desrespeito ao modelo da tradição literária e à
invenção de um outro, regido por novos princípios.
Quando me apropriei [do Diálogo], quase todos o consideravam aborrecido
e árido, por suas freqüentes interrogações. É bem verdade que elas lhe
davam um ar venerável, mas pouco gracioso e absolutamente desagradável
para o público. Eu comece por ensinar-lhe a caminhar com os pés na terra,
à maneira dos homens; em seguida, lavei as sujeiras em que andava
metido, e obriguei-o a sorrir, tornando-o mais agradável aos espectadores.
Mas, sobretudo, eu o associei à Comédia, e com esta aliança conquisteis o
apreço dos ouvintes. (LUCIANO, 1874, p. 168 citado por REGO, 1989, p.
49).
Luciano de Samosata mistura dois gêneros ímpares, diferentes entre si; de
um lado, a seriedade do ―Diálogo‖ como gênero voltado para questões filosóficas; do
outro, a ―Comédia‖ vista como gênero menor, relegada às coisas baixas, à imitação
dos homens inferiores. O que faz Luciano? Remodela o ―Diálogo‖, limpa-o do
―engessamento‖ crítico construído ao longo de uma tradição clássica, faz com que
desça de seu pedestal e passe a habitar o mundo dos homens, isto é, o mundo da
Comédia.
O hibridismo textual é uma marca essencial nos textos menipeicos, conforme
evidenciou Bakthin (2005) ao destacar a presença de vários gêneros parodiados na
Idade Média, principalmente os textos de ordem sacra.
A mistura de gêneros como uma das características da sátira menipeia torna
possível que se considere como segunda característica deste gênero o uso
sistemático da ―paródia aos textos literários clássicos e contemporâneos, como meio
de renovação artística‖. (REGO, 1989, p. 44).
Rego localiza três procedimentos de prática da paródia como ―procedimento
literário‖:
36
a) Paródia aos gêneros e convenções da literatura passada e presente; b)
paródia aos temas e idéias da literatura e da vida social contemporânea,
[...]; c) paródia aos textos definidos, através de citações literais ou quase
literais, geralmente num contexto distinto daquele do qual a passagem em
questão teria sido apropriado. (REGO, 1989, p. 42).
O que une os dois estudos, o de Bakhtin e o de Rego, é o fato de que em
ambos notamos a reflexão sobre a citação e a alusão como estratégias de criação
literária mediada pelo ato de (re)ler e (re)escrever.
A citação e alusão estão na interface da criação literária, quer pela paródia
das ideias ou temas, quer pela paródia a gêneros consagrados pela tradição
literária. Embora sejam vistos como textos legíveis por Barthes (2004), quando são
parodiados, ironizados e citados truncadamente ou apenas reproduzem o gênero
parodiado, como fez Luciano, ao parodiar um encômio, gênero laudatório, e o fez
escrevendo um elogio à arte de se viver como um parasita no texto intitulado ―O
parasita, ou como a profissão de parasita é uma arte‖, o texto legível passa a ser
escriptível, aberto a outras leituras e releituras. (REGO, 1989).
As definições de citação e de alusão em relação aos conceitos de discurso
citado, leitura e escritura como texto legível e escriptível, estabelecem afinidades
com os postulados barthesianos, uma vez que há para ambos um vínculo com a
tradição literária anterior, não para reduzi-la a pó, mas para dela se apropriar com a
finalidade de fazê-la contemporânea por meio da recriação.
Nesse sentido, a citação e a alusão nos textos de Machado de Assis podem
anunciar, conforme veremos no capítulo a seguir, elementos textuais deturpados
que, inseridos em novo contexto, fazem surgir outra cena dialogal, uma cena
paródica, que provoca no leitor a necessidade de questionar criticamente o texto
lido, abrindo-se um espaço para o surgimento de outro texto: aquele que Barthes
denomina de escriptível.
A forma como Machado de Assis usa a citação e a alusão no Sermão da
Montanha de modo a criar um circuito dialogal é o que vamos analisar a partir de
um corpus oriundo das crônicas machadianas.
37
Capítulo III: Citação e alusão nas crônicas machadianas: estratégia
de ler e escrever pelo avesso
Compilador do século XX, quando folheares a coleção da Gazeta de
Notícias, no ano da garça de 1844, e deres com estas linhas, não vás
adiante sem saber qual foi minha observação. Não é que lhe atribua
nenhuma mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser agradável aos
meus manes saber que um homem de 1944 dá atenção a uma velha
crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em
algum livro ou revista: ―Um escritor do século XIX achou um caso de cor
local que não parece destituído de interesse...‖, se fizeres isso, podes
acrescentar como o soldado da canção francesa:
―Du haut ciel – ta derneniére –
Mon colonel – dois être contet “...3 (Machado de Assis)
3.1. Machado de Assis cronista
Machado de Assis, antes de ser o célebre contista e romancista conhecido
pela crítica literária, iniciou a trajetória escritural em um gênero considerado por
muitos como menor: a crônica, mas foi exatamente nesse formato de texto, presente
nos primeiros jornais do século XIX, que o jovem Machado deu um passo importante
para se firmar na história da literatura brasileira. Publicou suas primeiras crônicas no
Diário do Rio de Janeiro e, mais tarde, na Semana Ilustrada (1860-1875).
Interrompeu este percurso nas páginas dos folhetins na seção ―A Semana‖ no ano
de 1897, quando atingira o grau máximo de excelência como cronista e romancista.
Fica clara a multiplicidade da pena machadiana durante estes quase quarenta
anos de colaboração nos jornais do Rio de Janeiro publicando poesias, crônicas,
contos, ensaios e críticas teatrais e, não foi à toa que, no início, Machado de Assis
fora um entusiasta do jornal e de sua missão civilizatória no Brasil, como se pode ver
no artigo ―O Jornal e o Livro‖:
3 Do alto do céu – ou dos confins dos infernos – ele agradece.
38
Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um
exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão rebenta uma
nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso
nos moldes conhecidos em que prendesse o fim do pensamento humano?
Não, nenhum era vasto como jornal, nenhum liberal, nenhum democrático
como ele.
[...] Tratemos do jornal, esta alavanca que Arquimedes pedia para abalar o
mundo, e que o espírito humano, este Arquimedes de todos os séculos,
encontrou.
O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?
(ASSIS, 1959, p. 955, grifos nossos).
Machado de Assis usará o jornal como veículo de transformações
significativas no próprio processo de escrita, pois na carreira do próprio escritor, ao
experimentar gêneros tão diferentes, o jornal será o lugar em que Machado
aprimorou a escrita num trabalho de experimentação literária.
No entanto, para o autor, a crônica não possuía qualidades suficientes que
justificassem a sua edição em livro, a não ser algumas que foi capaz de selecionar,
como relata Mário de Alencar.
A idéia de coligi-las nasceu do desejo de servir à memória do escritor,
acrescentando-lhes às obras editadas em volume esta outra que tão bem
caracteriza o seu engenho literário, e que seria de lamentar ficasse
esquecida ou ignorada. Ao próprio autor lembrei e pedi que as reunisse em
livro e posto me objetasse às vezes com dúvida sobre o valor desse
escritos, salvo um ou outro publicado nas páginas recolhidas, não me
pareceu que ficasse alheio ao pensamento de fazer a coleção. (ALENCAR,
1937, s/p citado por GRANJA, 2006, p. 384).
Considerada menor entre os outros gêneros, até mesmo pelo próprio autor, a
crônica não recebeu a atenção da crítica especializada até meados dos anos 80 do
século do século passado, quando o cenário começa a mudar, principalmente, pelos
estudos de Gledson (1986) sobre o gênero. Para Granja, é uma das ―facetas da
crônica, a história miúda da política e do cotidiano, que fazia com que os textos
‗envelhecessem‘ rapidamente‖ (ibidem, p. 388) e esse seria o motivo para não dar à
crônica o relevo dado ao conto e ao romance.
39
Gustavo Corção, em artigo para o Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em
1959, faz o seguinte comentário a respeito de Machado de Assis cronista:
[...] deveríamos dividir o gênero em duas espécies: de um lado teríamos as
crônicas que se submetem aos fatos, e que pretendem fornecer material
contemporâneo à peneira dos historiadores; e de outro lado, teríamos
aquelas crônicas que servem dos fatos para superá-los, ou que tomam os
fatos do tempo como pretextos para as divagações que escapam à ordem
dos tempos. As crônicas de Machado de Assis pertencem, evidentemente, a
essa segunda espécie em que os fatos não valem por si mesmos. (1959, p.
362).
A crônica é um gênero que está entre a ficção literária e a informação do
universo da imprensa, sendo marcada pelo hibridismo com outros gêneros textuais
como é o caso do conto, do diálogo e da própria informação jornalística, como bem
salienta Cândido.
[...] o cronista usa diversos meios. Há crônicas que são diálogos, como
―Gravação‖ de Carlos Drummond de Andrade, ou ―Conversinha mineira‖ e
―Albertina‖, de Fernando Sabino. Outras parecem marchar rumo ao conto, à
narrativa mais espraiada com certa estrutura de ficção. Como ―Os
Teixeiras‖. De Rubem Braga. (1992, p. 21).
É também a crônica um espaço para a inscrição da estratégia escritural das
citações e alusões, próprias do discurso machadiano, porém, aí a função delas deve
sofrer alteração devido ao veículo novo em que se encontram – o jornal – que exige
outra espécie de escrita, mais coloquial e receptiva à oralidade, e outro tempo de
leitura, mais rápido e dialogal. A paródia e a ironia ganham espaço justamente por
contribuírem para aproximar o leitor deste texto em nova chave: a do sério-cômico
da menipeia.
Enylton de Sá Rego (1989) liga a produção de segunda fase literária de
Machado de Assis, considerada fase madura, à tradição luciânica, ao considerar a
existência da Obra Completa de Luciano de Samosata numa tradução francesa de
1874 na biblioteca do autor. Embora, Rego aponte como marco cronológico o ano de
1870, que delineia a transformação da obra machadiana, é possível perceber ecos
da tradição luciânica em algumas crônicas escritas antes desta data.
40
Luciano parodia os sermões em favor da ―vida simples e da pobreza‖,
segundo Rego (1989, p. 52) e o mesmo faz Machado com o Sermão da Montanha
que ora cita truncadamente, ora parodia integralmente. Esta total liberdade criativa e
o desrespeito à tradição fazem com que o texto machadiano coadune-se com um
dos traços da sátira menipeia: ―extrema liberdade de imaginação‖ (ibidem, p.57).
Considerando o desapego ao realismo identificador com os fatos cotidianos, a
crônica alia-se também por esta tendência com a tradição luciânica e permanece no
terreno da invenção criativa, da fantasia criadora.
A terceira característica fundamental da obra de Luciano é a extrema
liberdade de imaginação demonstrada pelo artista frente às limitações a ele
impostas pela história ou por uma visão ―realista‖ ou ―representacional‖ da
obra de arte. (op. cit.)
O papel do cronista diante dos fatos e da vida cotidiana pode ser comparado
a de um ―historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete
escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor‖ conforme
afirma o cronista em História de Quinze Dias (1959, p. 395), pontuando a diferença
básica entre o ficcionista e o historiador, o primeiro atende às necessidades do povo,
pois fantasia os fatos, sendo ele fruto da invenção popular, em contraponto com o
historiador, que não mostra ―ouvidos‖ para as crônicas. No entanto, o historiador
também é um re-configurador dos fatos históricos por meio de seu discurso, e isso
Machado de Assis aponta com lucidez, demarcando aí uma área fronteiriça para a
crônica, que apresenta este vínculo com a história desde suas origens.
Machado de Assis tratou de escrever suas crônicas usando como expediente
de leitura e de escritura a citação e a alusão por meio de desvios e inversões
provocados pela ironia e pela paródia, estratégias que implicam uma atuação direta
sobre o leitor que Machado estava interessado em formar.
3.2. A ruminação mastigativa: “O Sermão da Montanha” em cinco crônicas
machadianas
Entre os mecanismos usados por Machado de Assis para a elaboração
textual de sua escrita, a citação e alusão estão presentes como estratégias
41
recorrentes. São inúmeras as obras citadas ou aludidas por Machado ao longo de
sua trajetória escritural, todavia, o texto bíblico é um dos que mais aparece.
No caso desta pesquisa, tomamos por referência as citações e alusões feitas
ao Sermão da Montanha. Trata-se de um texto canônico, conservado pela tradição
judaico-cristã, cujo valor moral e filosófico está associado aos paradigmas
dogmáticos que nortearam o surgimento da igreja cristã na Idade Média. O
conhecimento do Sermão da Montanha é notório entre as populações letradas e
não letradas e talvez seja este o motivo de ser tão recorrente nas crônicas
machadianas publicadas nos periódicos, meio mais acessível ao leitor mediano que
Machado estava interessado em formar.
Entende-se que a Bíblia para Machado de Assis foi uma fonte de inspiração
estilística da qual se nutriu, reescrevendo-a por meio daquilo que citou
truncadamente, aludiu, inverteu, fez analogias políticas e criticou a sociedade.
Quanto à Bíblia já não pode subsistir nenhuma dúvida de que Machado de
Assis só se utilizava de seus textos com finalidade simplesmente literária, o
que justifica alguns lapsos já observados neste particular. Não é outra
opinião de uma grande autoridade eclesiástica brasileira, o Bispo Dom Hugo
Bressane de Araújo, em pequeno, mas notável estudo: ‗Machado de Assis
buscou nas escrituras, como em Dante ou em Shakespeare, tão somente
belezas literárias e usava com freqüência de reminiscências, episódios ou
versetos do livro santo como roupagem elegante dos humorismos que aos
milhares marchetam seus livros‘. (ARAUJO, 1939, s/p citado por GOMES,
1959, p. 59).
É evidente que Machado de Assis não usa a Bíblia para salientar o valor
dogmático-filosófico que o texto canônico carrega, mas, ao contrário disso, vale-se
do texto bíblico como fonte de criação literária por meio de citações e alusões às
quais recorre constantemente.
Levando-se em consideração o pouco público-leitor dos jornais, ou a baixa
escolarização da população carioca, ao se escolher um texto que se tem
conhecimento pela repetição memorialística dos rituais católicos e populares, nota-
se uma intencionalidade escritural por parte de Machado, presente até mesmo nos
romance iniciais.
42
Nos romances iniciais, o procedimento é, até certo ponto, discreto, mas já aí
o autor recorre, mais que quaisquer outros textos, à Bíblia, tanto ao Antigo
quanto ao Novo Testamento. É notável, na utilização de passagens da
Escritura sagrada, um procedimento de dessacralização, que consiste
basicamente, em aplicar a palavra bíblica a situações profanas, desprovidas
de qualquer solenidade. (SENNA, 2003, p. 11).
Tendo em vista que o circuito de citação e alusão ao Sermão da Montanha
se torna uma prática recorrente em vários textos machadianos pertencentes a
gêneros diferentes, optamos por focalizar aqui as crônicas, em especial cinco delas,
selecionadas de periódicos publicados em datas diversas, respeitando a cronologia
das mais antigas para as mais recentes; são elas: ―Parasita II‖ da seção ―Aquarelas‖
de 9 de outubro 1859, publicada em O Espelho (ASSIS, 1959, p. 965); as crônicas
publicadas na seção ―Ao acaso‖ de 12 de junho de 1864 e de 22 de agosto de 1864
no Diário do Rio de Janeiro (ASSIS, 1937, p. 9 e p. 121), as crônicas de 4 de
setembro de 1892 e 25 de março de 1894, publicadas na seção ―A Semana‖ do
periódico Gazeta de Notícias. (ASSIS, 1959, p. 628-630).
3.2.1. O Parasita
Em ―O parasita II‖, o cronista discorre sobre o vazio dos fanqueiros literários,
e aí surge a alusão ao Sermão da Montanha presente no versículo 3 do capítulo V
de S. Mateus.
Mas, por compensação, há a modéstia nas palavras ou certo abatimento,
que faz lembrar esse ninguém elogiado da comedia. Mas ainda assim vem
a afetação; o parasita é o primeiro que está cônscio de que é alguma coisa,
apesar da sinceridade com que procura pôr-se abaixo de zero.
Pobre gente!
Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a
musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma
noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...
É que têm o evangelho diante dos olhos...
Bem-aventurados os pobres de espírito.
43
O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da
sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por
toda a parte.
Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a
piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a
âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de
dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.
A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.
O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa
vendeu as absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas.
Mediante o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam;
depois levantou a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca
uma bolsa.
É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa idéia em
embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica
para a estupidez, que toma o altar como um canal de absorver ouro e
regalias.
Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé,
rasga as crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das
famílias, sem haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias.
Dominou imoralmente as massas, os espíritos fracos, as consciências
virgens. (ASSIS, 1959, p. 965, grifos nossos).
Observamos que neste fragmento há uma única frase do sermão da
montanha ―bem aventurados os pobres de espírito‖ que cria toda uma ressonância
de inversão irônica com o original por meio de uma estratégia dupla de sentido
literal-figurativo, além de ser uma citação truncada, representada pelas reticências,
que indicam interrupção ou supressão de um texto. A respeito do parasita, o cronista
faz reflexões sobre a natureza dele, o parasita, ao usar o verbo ―poder‖ no pretérito
imperfeito ―podiam‖, embora o tempo verbal adequado seja o futuro do pretérito, o
autor usa o imperfeito, conotando como sentido a interrupção da formação de uma
índole, de um caráter de homem de bem. O tempo verbal no pretérito imperfeito
indica que nunca houve qualquer menção por parte do parasita de ser diferente do
que ele se apresenta à sociedade.
Com relação às estratégias usadas nesta crônica, temos duas: num primeiro
instante, parece se tratar da alusão ao evangelho de São Mateus tão caro na
tessitura de uma tradição escritural machadiana. Entendemos que seja alusão, pois
44
Machado não indica de qual fonte retirou a frase bíblica; por outro lado, temos o
versículo 3 do capítulo V de S. Mateus reproduzido parcialmente ―Bem-aventurados
os pobres de espírito‖, mas, ainda assim, não se trata de uma citação direta, pois
falta o restante do versículo, que indica como recompensa desta bem-aventurança o
céu. O efeito deste recurso provoca um distanciamento do sentido original e o
rebaixamento da mensagem sacra, uma vez que a descontextualização do
fragmento citado aliado à frase anterior criam um sentido agressivo ao parasita
religioso. Observemos que antes da citação do texto bíblico há uma expressão que
retoma, de certa forma, o evangelho, porém o efeito provocado é o da ironia, como
podemos notar no excerto transcrito abaixo.
Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a
musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma
noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...
É que têm o evangelho diante dos olhos...
Bem-aventurados os pobres de espírito.
(ASSIS, 1959, p. 965, grifos nossos).
Por que não podem ser ―homens de bens‖? Por que não podem contribuir
para a sociedade? Por que ―têm o evangelho diante dos olhos‖, ora isso denota que
os parasitas não são pessoas de boa índole, porque o evangelho lhes faculta não
sê-las, uma vez que há os pobres de espírito, porque ser homens de bens, não há
motivo para uma mudança. O cronista deixa claro que os parasitas são seres nulos,
que nada têm a oferecer à sociedade, e ainda podem cometer crimes, talvez no
texto machadiano citado, a interpretação de crime subentendida por nós se dê no
sentido de enganar, aproveitando-se da pobreza de espírito dos crédulos.
O sentido figurado atribuído pelo cronista à expressão ―pobre de espírito‖,
para nós, revela-se como estupidez, como falta de moral, como torpeza; ou ausência
de bens materiais, todavia, para que isso seja possível, seria necessário que
houvesse uma inversão sintática na estrutura frasal, passando de ―pobre de espírito‖
para ―de espírito pobre‖. A troca da posição do adjetivo ―pobre‖ na língua portuguesa
provoca uma alteração que interfere na apreensão do sentido. A inversão realizada
por M. de Assis não se deu na estrutura sintática, mas na contextualização da frase
citada, tornando a compreensão do que o cronista quis fazer ao usar o fragmento do
Sermão da Montanha muito mais difícil, pois exige do leitor uma posição sobre a
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fonte e sobre o contexto original, além deste conhecimento bíblico, que muitos não o
têm. Há ainda o conhecimento histórico sobre as indulgências cobradas pelo clero
medieval. Caracteriza-se um jogo inversivo pela dupla possibilidade de leitura: não
se sabe se a expressão ―pobre de espírito‖ refere-se aos chamados parasitas ou aos
fiéis que se deixam levar pela fala sedutora do clero. A ambiguidade desloca o leitor
de um lado a outro na leitura deste texto machadiano. Como podemos notar, a partir
desta citação do Sermão da Montanha, exige-se um leitor que vasculhe os
detalhes, o miúdo, visto que a construção do sentido ―total‖ das crônicas
machadianas deve ser feito na junção de todos os elementos indiciais: a citação e a
alusão se prestam a este serviço, serem norteadoras da leitura do leitor.
Tomemos, por exemplo, a interpretação de que os parasitas da igreja estejam
sendo chamados de ―pobres de espírito‖, portanto, ao observarmos os dois
possíveis significados para pobreza, a ironia fortalece esta crítica à ―pobreza
espiritual‖ da igreja como denúncia de uma máscara que encobre uma série de
ações desviantes destes ―parasitas‖. Nesse sentido, a ironia se põe como arma para
operar a crítica a certos membros do clero. Tem-se nesta crônica um versículo do
Sermão da Montanha deslocado do seu contexto, provocando, assim, duplo jogo
de sentido na cena enunciativa. Numa segunda leitura em que a expressão ―pobres
de espírito‖ é direcionada aos fiéis, é possível perceber um comentário crítico em
relação aos fiéis e à falta de capacidade para discernirem o engodo em que se
lançarão, caso acreditem nas promessas religiosas.
A citação do texto bíblico assume um teor sócio-político ao ser usada como
metáfora do esvaziamento de caráter dos religiosos medievais desta classe que
inaugura, segundo Machado de Assis, a categoria social dos fanqueiros religiosos,
tornando-se sinônimo de parasita. O escritor também subverte o próprio termo
fanqueiro, já que o sentido literal significa comerciante de tecido. (HOUAISS, 2001,
p. 1306).
O que faz Machado? Apropria-se do sentido figurado da expressão fanqueiro,
a partir da ideia de que ―o fanqueiro‖ é um comerciante, portanto, o comércio passa
a ser a referência para a subversão, isto é, com a ideia de compra e venda, de
trocas por uma margem de lucro, que é inerente à pratica comercial.
A âmbula é o vaso em que se guardam os óleos litúrgicos, portanto, um lugar
dedicado às praticas religiosas, relacionadas à tradição sacra do rito católico, porém,
no contexto do texto machadiano, este recipiente assume o lugar da balança que
46
frauda o cliente, o altar é o balcão e por uma relação metonímica, tem-se a igreja
como comércio, lugar de compra e venda das indulgências, logo, o clero assume o
papel do comerciante que vende o perdão ao pecador.
Machado toma emprestado o versículo 3 do capítulo V de S. Mateus,
provocando um desvio sutil no sentido canônico do Sermão. Ao usar a locução
adjetiva ―pobre de espírito‖, promove uma reviravolta ao atribuir o duplo sentido de
pobreza para os clérigos: aquele vinculado à exploração dos fiéis e, no sentido
literal, para os ingênuos que se deixam enganar: ―Na Igreja, sob o pretexto do
dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos incautos, e das turbas.
Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança [...]‖. (ASSIS, 1959, p. 965).
No sermão bíblico, a bem aventurança para os justos é o reino dos céus, mas
no texto machadiano o sentido subliminar é outro: é o motivo pelo qual os pobres de
espírito podem ser convencidos a pagarem pela absolvição dos pecados. Machado
usa o texto bíblico com a função dessacralizadora da ironia, no sentido de um
desvio, pois inverte o sentido do versículo do ―Sermão da Montanha‖. Além desta
alusão irônica ao Sermão da Montanha, outro aspecto que aproxima esta estratégia
discursiva à tradição da menipeia luciânica é a temática do ―parasita‖. Luciano havia
feito um encômio, um texto laudatório à arte de se viver do parasitismo social
(REGO, 1989), que é a tônica desta crônica machadiana.
O versículo do evangelho de S. Mateus trata da humildade como princípio
básico dogmático da salvação da alma pela tradição cristã, todavia, no uso feito pelo
cronista, refere-se à pobreza moral e à falta de escrúpulos, argumentando contra o
vazio moral e religioso do fanqueiro, que como o próprio nome já diz, trata-se de um
comerciante, isto é, aquele que negocia o perdão pelos pecados. Nesse sentido,
Machado coloca a igreja como um balcão de negócios, em que a hipocrisia é o
código do avesso da ética e da moral religiosa. O ceticismo machadiano é latente
neste texto por meio da figura-chave da ironia.
3.2.2. Ao Acaso
Em crônica publicada na seção ―Ao acaso‖ em 12 de junho de 1864, no Diário
do Rio Janeiro, o cronista eleva o folhetinista à esfera de apóstolo, com função e
autoridade para converter e se encarregar das almas.
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Também o folhetim tem cargo de almas.
É apóstolo e converte.
Fácil apostolado,é certo. Não há terras inóspitas ou áridos desertos, aonde
levar a palavra da verdade; nem se corre o risco de ser decapitado, como S.
Paulo, ou crucificado, como S. Pedro.
É um apostolado garantido pela polícia, feito em plena sociedade urbana.
Em vez de pisar areias ardentes ou subir por montanhas escalvadas, tenho
debaixo dos pés um assoalho sólido, quatro paredes dos lados e um teto
que nos abriga do orvalho da noite e das pedradas dos garotos. E por
cúmulo de garantia ouço os passos da ronda que vela pela tranqüilidade do
quarteirão.
É cômodo, e nem por isso deixa de ser glorioso.
Deste modo o folhetim faz de ânimo alegre o seu apostolado. Entra em todo
o lugar, por mais grave e sério que seja. Entra no senado, como S. Paulo
entrava no areópago, e aí levanta a voz em nome da verdade, fala em tom
ameno e fácil, em frase ligeira e chistosa, e no fim do discurso tem
conseguido, também como S. Paulo, uma conversão.
(ASSIS, 1937, p. 9, grifos nossos).
Se o cronista pode julgar o folhetim como o porta-voz da verdade e ele próprio
o baluarte desta verdade, por que não ter os textos bíblicos a seu serviço? É o que
se verá nas crônicas analisadas por nós, especificamente, o Sermão da Montanha.
Ora o cronista se põe como apóstolo, ora coloca o folhetim, exercendo o
papel de converter as almas perdida; fica clara aqui a alusão ao apostolado do
Sermão da Montanha, pois o cronista menciona dois lugares característicos bíblicos
que remetem à ideia da pregação: ―areias escaldantes‖ e ―montanhas escavadas‖.
No primeiro, pode-se pensar em ―áridos desertos‖, pelos quais os apóstolos foram
obrigados a viajar para levarem a pregação e; no segundo, liga-se indiretamente ao
Sermão da Montanha por um referencial topográfico.
Machado de Assis não por uma ou duas vezes, muito mais do que isso, toma
o nome do apóstolo Paulo como referência de virtualismo religioso. A pretensão do
cronista é tanta, que se coloca em pé de igualdade a Paulo, pregador da mensagem
cristã aos gregos. Não seria sem igual valor, o desempenho da mensagem veiculada
no jornal, entretanto, seria um conversor de ―almas‖, mesmo que fosse apenas uma.
É claro que aqui o cronista não estava pensando no mesmo aspecto bíblico, mas em
algo mundano, como, por exemplo, a conversão de algum político em causa própria.
48
Entra no senado, como S. Paulo entrava no areópago, e aí levanta a voz em
nome da verdade, fala em tom ameno e fácil, em frase ligeira e chistosa, e
no fim do discurso tem conseguido, também como S. Paulo, uma
conversão. (ASSIS, 1937, p. 9).
A crônica como gênero jornalístico possui papel civilizador, o papel de
divulgar a verdade, mas não nos esqueçamos de que estamos falando de M. de
Assis, sendo assim, por que acreditar na fala séria do cronista? Devemos, pois,
desconfiar do tom ameno com que trata deste assunto. É pretensão do cronista se
elevar ao mesmo nível do apóstolo Paulo? Ou de colocar a matéria folhetinesca: a
crônica, na mesma esfera dos textos sacros? Se a crônica já não é mais a
representante da história, se ela colhe apenas as miudezas do cotidiano, qual é a
verdade que ela se põe a anunciar?
Se tomarmos a afirmação do cronista de que o folhetim tem apostolado e
também converte, devemos indagar sobre qual é este apostolado. É evidente que
não se trata aqui de um discurso religioso, mas da sua apropriação alusiva pelo
cronista. O substantivo ―apóstolo‖, o verbo ―converte‖ e a alusão ao deserto, lugar
conhecido pelos quarenta dias de isolamento de Jesus, trazem ainda, ao referir-se à
―montanha‖, uma alusão sutil ao Sermão da Montanha e, por fim, a expressão
―palavra da verdade‖ tão comum no discurso religioso cristão.
Notamos que se trata neste texto de um jogo irônico entre o ofício apostolar e
o ofício do cronista, pois, embora haja uma sutil e vaga menção ao Sermão da
Montanha, o que fica mais forte é o jogo irônico e não o paródico, já que não há
texto-fonte sendo invertido, mas uma ironia ao apostolado da igreja em geral, que
sofre o procedimento irônico por meio da apropriação de personagens bíblicas como
o apóstolo S. Paulo.
3.2.3. Ao Acaso II
Na crônica de 22 de agosto de 1864 na seção ―Ao acaso‖, Machado cita o
Sermão da Montanha inscrito no Evangelho de S. Mateus, capítulo V, versículos de
1 a 4. O autor se vale da fonte bíblica de maneira integral, para denunciar a conduta
dupla do clero envolvido também no jogo social entre o ser e o parecer. O cronista
49
usa o espaço jornalístico para chamar a atenção da sociedade sobre uma prática
comum: fazer caridade e anunciar na imprensa.
―A repartição da caridade da irmandade da candelária distribuiu pelas suas
600 pobres a quantia de 7:000$000 durante este último trimestre.‖
Leram, não? Pois bem: diz agora o evangelho de S. Matheus, capítulo V,
versículos 2, 3 e 4:
―- Quando derdes alguma esmola, não façais tocar diante de vós a
trombeta, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem
glorificados pelos homens. Em verdade vos digo, esses já têm o devido
prêmio.
―- Mas quando derdes alguma esmola, que a vossa mão esquerda não
saiba o que fez a vossa mão direita.
―- A fim de que a vossa esmola seja em segredo, e vosso pai, que vê em
segredo, vos dará a recompensa‖. (ASSIS, 1937, p.121).
O que ocorre nesta crônica já não é apenas a citação deslocada da fonte,
como na de 1859, ou a simples alusão ao sermão pelo ato de pregar e pela
referência à montanha, mas a presença do texto bíblico como fonte para a
apropriação paródica. Este gesto do cronista provoca o leitor ao colocá-lo diante do
texto citado quase integralmente, com marcas textuais que o convidam a conferir a
veracidade das palavras aqui reproduzidas, muito embora o recurso gráfico das
aspas induza-o a crer na autenticidade do texto-fonte.
Antes de analisarmos a crônica e o devido desvio da fonte, bem como a
apropriação do discurso bíblico e seu caráter paródico, observemos, pois, como se
dá a apresentação deste texto machadiano.
Num primeiro momento, o cronista estabelece um diálogo com o leitor,
pergunta se o leitor havia lido a notícia veiculada no jornal católico chamado A cruz,
para, num segundo instante, citar literalmente partes do Sermão da Montanha
extraído de S. Mateus capítulo V, versículos, 2, 3 e 4. Esta pergunta cria uma
aproximação com o leitor, torna-o íntimo do cronista e serve de ponto de partida
para se tecer a matéria da crônica: a indignação diante da propaganda da
distribuição de 7 mil contos de réis durante o trimestre de 1864.
Se colocarmos lado a lado o texto sobre os parasitas sociais e os religiosos
de 1859, poderemos notar que o discurso usado por Machado de Assis é o mesmo:
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a cobrança feita à sociedade sobre seus atos, denunciando a hipocrisia latente no
interior da sociedade burguesa de finais do século XIX.
Um recurso frequente nas crônicas, mas de maneira mais sutil, é o diálogo.
Trata-se de um expediente utilizado com amenidade, porque o leitor é inquirido
sobre a leitura da matéria publicada no jornal católico A Cruz, contudo não tem sua
voz representada, apenas intuída na continuidade da crônica. Por este
procedimento, o cronista age como um narrador intruso, que se coloca na cena
narrada e, ao mesmo tempo, força o leitor a fazer o mesmo. Apesar disso, não
podemos dizer que se trata aqui do diálogo de tradição luciânica, todavia, trata-se de
uma estratégia de aproximação com o leitor, demonstrando certa intimidade que
posiciona o leitor na cena apresentada pela crônica. O indicativo de que o leitor
responde ou dá de ombros é quando o cronista diz ―pois bem‖ logo depois da
pergunta, quer dizer, ―você leu, sim ou não, pois bem, vou ler então‖. O cronista
desconsidera a resposta ou a possível resposta, pois representa o papel de um
arguidor cuja voz se coloca acima daquelas que só poderiam se manifestar no
mesmo meio que o dele: o jornal. Daí a entender o porquê do cronista se interpor
como difusor da verdade, uma verdade unilateral, alicerçada em um conhecimento
de mundo que passa do texto bíblico a elementos históricos.
Esta verdade pode ser uma verdade construída, parcial, presa a certos
critérios sociais, cabendo ao leitor decifrá-la e entendê-la nos meandros de sua
leitura.
Notamos que a citação usada pelo cronista teria o efeito de autoridade
argumentativa para reprovar a falta de humildade diante do gesto da doação. É uma
citação truncada no sentido de que não corresponde ao original, nem a estrutura
textual, que é alterada sob a pena machadiana para se passar por autoridade de
crítica aos religiosos e é deslocada, porque a fonte mencionada não corresponde ao
original. O texto bíblico a que o cronista cita truncadamente está localizado em
Mateus capítulo VI, versículos 1, 2, 3 e 4 e não em Mateus capítulo V, versículos 2,
3 e 4 como cita o cronista.
51
1º Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes
vistos por eles. Do contrário, não recebereis recompensa junto ao vosso Pai
que estais nos céus.
2º Por isso, quando deres esmola, não te ponhas a trombetear em público,
como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de
serem glorificados pelos homens. Em verdade eu vos digo já receberam a
sua recompensa.
3º Tu, porém, quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que
faz a tua direita,
4º para que a tua esmola fique em segredo; e o teu pai, que vê no segredo,
te recompensará. (BÍBLIA SAGRADA, 2006, p. 568).
Machado de Assis não cita com o intuito de exibir erudição, mas a citação
tende a ser vista de outra forma, deve ser olhada pelos procedimentos de uso da
paródia como um sistema de produção de sentido e criação literária.
Notamos que o circuito do Sermão da Montanha está presente em todas as
crônicas analisadas até aqui, mas em cada uma delas, o procedimento de
apropriação e o seu efeito são diferentes, o que revela o método machadiano de
escritura-leitura: parte de um texto consagrado e o desloca para um universo
profano, transformando-o num novo texto, tanto em termos de escritura quanto de
leitura.
Há um movimento que arquiteta uma escritura em torno no circuito do
Sermão da Montanha, que se inicia pela citação truncada no versículo 3 do capítulo
V de S. Mateus e alude ao Sermão da Montanha como um todo; depois na crônica
de 12 de junho de 1864 presentifica-se a cena bíblica do evangelizador na pele do
cronista representado pelo folhetim e, por fim, na crônica de 22 de agosto de 1864 o
Sermão da Montanha retorna pela citação truncada do livro de S. Mateus, capítulo
V, versículos 2, 3 e 4. Este movimento preparatório anuncia a hora da profanação
maior que acontecerá na crônica de 4 de setembro de 1892, conforme veremos
adiante.
3.2.4. O Diabo e o Sermão da Montanha
Um exemplo bem mais definido de citação paródica ocorre na crônica de 4 de
setembro de 1892 de ―A Semana‖: ―Não se apavorem as almas católicas. Já Santo
52
Agostinho dizia que ―a igreja do Diabo imita a igreja de Deus‖. Daí a semelhança
entre os dois evangelhos.‖ (ASSIS, 1996, p. 113).
Nela, além da inversão, notamos que a profanação é completa e a paródia ao
texto bíblico acentua-se, no sentido de que o Diabo assume o posto de
evangelizador, assim como acontece com o cronista na crônica de 12 de junho de
1864.
O diabo como personagem subversiva toma para si o papel de pregar o
sermão criado por ele mesmo. Seu papel é o de perturbar a ordem, é criar regras
paralelas, numa crítica aos valores do modelo comportamental do burguês cristão.
Na crônica de 4 de setembro de 1892, qual é a estratégia usada pelo
cronista? Pensemos primeiro que se apresenta como sendo o recebedor de um
documento velho e que nele consta o sermão do Diabo, que lhe entrega
pessoalmente o novo sermão que produziu.
Nem sempre respondo por papéis velhos; mas aqui está um que parece
autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do
evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de S.
Mateus. (ASSIS, 1996, p.113).
Primeiro o cronista apresenta o sermão do Diabo como sendo justamente um
novo Sermão da Montanha, com isso dá a entender que existem vários sermões de
natureza similar a este, como se colocasse em dúvida a autenticidade do sermão
bíblico. No segundo momento, diz que o sermão do Diabo foi feito à maneira de S.
Mateus e tenta acalmar os católicos, ao citar uma fala de Santo Agostinho: ―a igreja
do Diabo imita a igreja de Deus‖ e justifica com esta citação a semelhança entre os
dois sermões.
Embora, Gledson (1986) em nota a esta crônica tenha mostrado que tal
citação não corresponde ao filósofo católico e sim a um provérbio popular, então o
sermão do Diabo já começa por uma leitura pelo avesso, na qual a base da
justificativa da semelhança é um jogo machadiano de leitura. Observemos como se
dá a semelhança e a diferença.
O Sermão da Montanha estrutura-se em três capítulos, a saber: os capítulos
5, 6 e 7, divididos em 111 versículos. O Sermão da Montanha também está presente
no Evangelho de S. Lucas capítulo VI do versículo 20 ao versículo 38 com variações
53
textuais e concisão textual em relação ao primeiro livro dos evangelhos do Novo
Testamento. Embora não seja de interesse o levantamento das variações entre os
dois evangelhos, mas fazer o cotejo entre o sermão sacro e o profanado pela pena
da galhofa de Machado de Assis, cabe aqui realçar o fato de que certos versículos
presentes em S. Lucas parecem ter servido também de base para o Sermão do
Diabo, assim como a forma concisa com que o evangelista apresenta a sua versão
do discurso inaugural de Jesus.
O público-alvo do sermão, a princípio, era os discípulos, porém, estendeu-se
à multidão que estava em volta. O uso de uma linguagem simbólica era estratégia
para se atingir uma retórica eficiente diante de leigos, conforme o uso de parábolas,
que possuem alto teor alegórico.
A crônica de 4 de setembro de 1892 apresenta o sermão do diabo estruturado
em capítulo único, curto e conciso, embora o cronista diga que seja à maneira de S.
Matheus.
Outro aspecto que aproxima os sermões é a presença do cronista como
testemunha, mas não podemos esquecer o papel desempenhado por ele como
contador de histórias; nesse sentido, o cronista representa também o papel de
observador do seu momento, da sua época, registrando e transformando fatos fúteis
em úteis e, de certa forma, como o evangelista bíblico S. Mateus assume, no
aspecto de testemunha, a posição do cronista, pois era um dos que estavam com
Jesus no momento da enunciação do discurso bíblico; é o seu relato histórico que
chega até nós, conservando a essência de uma crônica.
O cronista, por sua vez, reproduz o discurso do Diabo de forma direta, entre
aspas. O autor se coloca na cena como testemunha, por isso o texto citado pelo
cronista-personagem encontra-se entre aspas. O sermão é apresentado ao leitor
como um documento profano, porém, possível de ser verdadeiro.
―1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por
nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus
discípulos.
―2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes. (Assis,
1996, p.113).
As aspas são marcas gráficas que orientam o leitor na direção da fonte, isto
é, pressupõe-se que a citação tenha o seu fundo de veracidade, porém, como se
54
trata de um texto paródico, elas apenas servem de estratégia textual da paródia,
consolidando-se, portando, num falso discurso direto, que inverte e carnavaliza a
fonte bíblica, por vários índices: ―evangelho do diabo‖ X evangelho de Cristo;
evangelista X cronista; texto sagrado X profano (folhetim); sermão da montanha
―travestido‖ (à maneira) de S. Mateus.
O ―sermão‖ é entregue pelo diabo, mas o cronista não se posiciona diante
daquilo que narrou, colocando em dúvida a autenticidade do texto apresentado ao
leitor. A questão sobre a veracidade do texto é posta como uma possível verdade,
embora, o cronista permita que o leitor verifique a legitimidade textual, como
notamos na expressão ―mas aqui parece autêntico‖. (ASSIS, 1996, p. 113). O jogo
de aparência entre o falso e o verdadeiro é logo desfeito quando diz que, pelo
menos, se não for verdadeiro, vale pelo texto, isto é, pela criação artística do autor.
Além do questionamento sobre ser o sermão do Diabo ou não, o texto
paródico ainda traz um dado diferente em relação ao texto parodiado: trata-se da
nomeação do lugar em que ocorre o suposto sermão apócrifo - o morro do
Corcovado, na cidade do Rio de Janeiro, o que é uma inversão extremamente
carnavalizada da fonte bíblica, que nos diz:
1º E vendo Jesus a grande Multidão do Povo, subiu a um monte, e depois
de ter sentado, se chegaram para o pé dele os seus discípulos;
2° E ele abrindo a sua boca os ensinava, dizendo:
3º Bem-aventurados os pobres de espíritos, porque deles é o reino dos
céus; (BÍBLIA SAGRADA, 2006, p. 568).
Além da diferença em relação ao lugar em que os sermões foram realizados,
há outros pontos divergentes tomados apenas como exemplo do jogo paródico que
se materializa justamente pela inversão, mas sem que se anule o original.
1º E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome
Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.
2º E ele, abrindo a boca, ensinou dizendo as palavras seguintes.
3º Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão
embaçados. (ASSIS, 1996, p.113).
55
A citação paródica do Sermão do Diabo evidencia a inversão da ordem social,
como pode ser visto na exaltação que faz do ato de embaçar, no sentido de tornar
escuro, escurecer, impedir o brilho; dessa maneira, ele promove em sua doutrina ―o
engano‖ como regra da bem-aventurança, pois é melhor enganar primeiro do que
ser enganado depois. As bem-aventuranças serão representadas pelo que antes era
pecado, alterando o moralismo cristão, o que era pecado passa a ser virtude e o que
era virtude passa a ser pecado. A nova religião não é mais vertical, mas horizontal,
isto é, trata das coisas da terra, do homem, para o homem. Isso revela a natureza do
discurso do diabo que é o da negação dos valores fundados na crença católica, pois
o mundo em que havia se estruturado já não mais existia. A nova sociedade
capitalista se alicerça na competição mercadológica, o cristão cede lugar ao
banqueiro e a igreja já é um símbolo do passado.
O que direciona este novo modelo de comportamento é não só o espírito da
negação, mas também o espírito da dúvida, pois como aceitar que a fala
promulgada pelo Diabo deva ser observada literalmente? Não se pode confiar nela.
Assim como não se deve confiar numa citação machadiana, numa alusão mesmo
com possíveis referenciais.
O leitor machadiano tem por essência desconfiar do que está lendo, porque a
leitura ingênua só cabe à manipulação pelo que foi escrito. Isso traduz um
procedimento de criação artística capaz de transformar o legível, legitimado pelo
cânone da tradição, em escriptível, isto é, alvo de rearticulação, deslocamento,
acréscimo e subtração. A paródia e a carnavalização são mecanismos nos quais a
citação e alusão se presentificam, criando, portanto, outra direção e inaugurando um
circuito dialogal no texto machadiano.
Esta rede dialogal polariza os preceitos morais do cristianismo e os novos
valores apresentados no sermão do Diabo, porque o universo de recompensas
espirituais por uma vida abnegada dos males do pecado é negado no Sermão do
Diabo, portanto, se inverte o critério de recompensas, permitindo que se tenha a
nítida impressão de que é pelo jogo de inversão e negação que o homem alcança o
que é exigido por Deus.
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4º Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
5º Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais
leves.
6º Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por
meu respeito.
8º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra
coisa se há de salgar?
10º Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um
chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela.
11º Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as
desfeitas. (ASSIS, 1996, p.113).
Para o Cristianismo, as posses materiais não são consideradas
necessariamente más, apenas perigosas. Demonstra-se que os pobres geralmente
são mais felizes do que os ricos, pois aos pobres é mais fácil ter uma atitude
dependente de Deus. Foi para os pobres que Jesus veio pregar o evangelho. (Lucas
4:18, 7:22). Os pobres é que são abençoados em primeiro lugar. E a eles é
assegurada a posse do reino de Deus. (DOUGLAS, 1995, p. 1296).
Na crônica, que tem como tema o sermão do Diabo, no entanto, a pobreza é
representada pela metáfora: ―limpos de algibeira‖, o que significa que os que estão
com as algibeiras limpas, ou melhor, vazias, não terão qualquer recompensa a não
ser a própria pobreza. (ver o versículo V do Sermão do Diabo).
No versículo 9 do Sermão do Diabo, a certeza da confirmação de um
materialismo presente pode ser visto na expressão ―Vós sois o sal do money
market.‖ O versículo paródico tem como correspondente o versículo 13 do capitulo V
do evangelho de S. Mateus que considera os apóstolos e os discípulos como o sal
da terra. ―E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há de salgar? Para
nenhuma coisa mais fica servindo, senão para se lançar fora, e ser pisado dos
homens‖.
O significado do sal no texto paródico se inverte drasticamente com a
presença de uma expressão pertencente ao mundo dos negócios, cunhada em
inglês, o que realça a menção ao capitalismo dos grandes centros urbanos e sua
influência no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX.
57
Considerando que exista uma nova ordem social, aquilo que era condenado
passa a ser valorizado como bem-aventurança, como sinônimo de boa sorte e
recompensa. Se estivermos falando de um mundo pelo avesso, em que já não se
justificam velhas práticas religiosas e burguesas pela derrocada da burguesia e de
seu sistema social, os valores veiculados na sociedade capitalista se mostram
corretos diante do mundo ao avesso, representado pelo sermão do diabo.
Para o Diabo, a felicidade é terrena e material e quanto à pobreza, ela é vista
na doutrina cristã como desapego material e exemplo de virtude que livra o homem
da influência do Diabo e que permite a entrada para o reino dos Céus. Contrastando
com este pensamento, surge o discurso do Diabo enfático à valorização dos bens e
à redefinição da compaixão e dos gestos altruístas.
O ―Sermão do Diabo‖ vai sendo construído pela citação indiretamente
paródica, provocando no leitor a percepção daquilo que Barthes chama de texto
escriptível, isto é, a sensação de inacabamento do texto que lê-escreve. Este texto
continua em aberto, por se fazer a cada olhar e neste olhar, as citações, as alusões
e a paródia ganham uma vida, que antes não sabíamos que estava ali; sentidos não
percebidos anteriormente, porque o tempo é sempre outro e nós nos tornamos
outros à medida que aprendemos a ler com os olhos desembaçados para o novo.
Percebe-se uma triangulação entre os textos, num claro trabalho de
retomadas e deslocamentos, num nível de diálogo também intratextual, assumindo
valores distintos a cada trabalho apresentado.
Considerando-se que um texto é o resultado de leituras múltiplas e que se
atualiza em novas leituras, assim como diz Barthes que ―todo texto é um tecido novo
de citações passadas‖ (2004, p. 40), entende-se que Machado de Assis usa este
recurso para fornecer aos seus leitores uma espécie de biblioteca provocadora,
cujos títulos revelados ou não, podem vir a formar o leitor machadiano.
Ao escrever a crônica de 4 de setembro de 1892, que parodia o Sermão da
Montanha, Machado de Assis atualiza a tradição bíblica, torna o texto sacro
escriptível, deslocado de uma leitura canonizada, dando ao texto cristão uma nova
roupagem. A paródia construída a partir da citação do Sermão da Montanha trilha os
mesmos caminhos das paródias medievais dos textos bíblicos.
As citações desempenham um papel fundador na tessitura literária
machadiana e exigem do leitor um olhar arguto, em contínuo diálogo com a fonte
citada. O leitor passa a ser o autor também do texto lido: texto mental da leitura,
58
texto concretizado numa nova escritura. Cada parte citada é retrabalhada pela
leitura e pela escrita, exige-se do leitor que tome uma postura diante do texto lido.
Não se fica inerte diante do texto machadiano; o leitor é provocado a cotejar com o
original, neste jogo de ler e perceber as diferenças, ―desenterrando‖ os sentidos
ocultos por trás do texto. Obtém-se, assim, a feitura de outro texto, produzido pelo
choque entre dois discursos que se confrontam sem que um anule o outro: o da
fonte citada e o daquele que dela se apropria.
A crônica machadiana não é um gênero menor, ao contrário, mostra-se fonte
inesgotável de possibilidades interpretativas vislumbradas por meio das estratégias
discursivas como as da citação e da alusão construídas por meio dos
deslocamentos e inversões que a ironia e a paródia proporcionam, revelando a
dívida machadiana à linhagem luciânica da sátira menipeia.
3.2.5. A Guerra do Paraguai, Eclesiastes e o Sermão da Montanha
Prestemos atenção à crônica de 25 de março de 1894 em ―A Semana‖ de
Gazeta de Notícias, em que o cronista, durante a Semana Santa, encontra-se numa
igreja ouvindo as orações e em segundos é movido pelo incenso e pelas ladainhas
ao tempo de Cristo, aos pés do Messias ouvindo diretamente da boca de Jesus o
Sermão da Montanha, que servirá de resposta para todos os males do homem.
Mesmo assim, como São Tomé não crê no que escuta e em posição de igualdade
contra-argumenta, citando o livro de Eclesiastes.
Tomemos o início da crônica, quando destaca de forma carregada de
espanto, a chegada da semana santa, e indaga sobre aqueles que nasceram após a
guerra do Paraguai e depois da batalha de Aquibadã. A guerra do Paraguai é o
primeiro marco inicial do diálogo do cronista com a História.
A Semana foi santa – mas não foi a semana santa que eu conheci quando
tinha a idade de mocinho nascido de pois da guerra do Paraguai. Deus
meu! Há pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes
que fazem a barba, que namoram, que se casam, que têm filhos e, não
obstante, nasceram depois da batalha de Aquidabã! Mas então o que é o
tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou este tufão
impetuoso que aparece apostar com a eletricidade? Não há dúvida que os
relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa. (op. cit.).
59
São quatro marcas que evidenciam o diálogo da crônica com a história do
Brasil, com seus personagens e seus eventos importantes. O primeiro deles remete
à guerra do Paraguai, além de ser um dado histórico pontual nesta crônica, serve
como parâmetro para a tessitura fantasiosa do cronista ao se posicionar como
alguém que tivesse nascido depois da guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e
1870. Se a crônica é de 25 de março de 1894 e Machado de Assis nasceu em 21 de
junho de 1839, logo estaria com 54 anos quando escreveu este texto, então, se
ficcionaliza na figura do cronista e se põe como um jovem de mais ou menos dez ou
doze anos ―idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai‖. (ASSIS, 1959,
p. 628).
Outro ponto de encontro com a história se refere ao encouraçado Aquidabã,
que foi uma embarcação militar que esteve presente na última batalha da guerra do
Paraguai em 1870, seguida da morte de Solano López, o ditador paraguaio e, por
último, a revolta armada em 1871.
O tempo é uma curva no dobrar de páginas da imaginação ficcional e nele o
cronista viaja ao passado ou ao futuro, vai ao ano de 1920 e se coloca na posição
de um leitor que se tornará o cronista da crônica do dia seguinte. O cronista põe o
leitor em seu papel de cronista, o que nos faz perceber o jogo entre o ler e o
escrever, isto é, o leitor será o escritor (cronista) do futuro na própria coluna em que
o cronista está escrevendo.
Aí vou escorrendo para o passado, cousa que não interessa no presente. O
passado que o jovem leitor há de encontrar é o presente, lá para 1920,
quando os relógios e os almanaques criarem asa. Então, se ele escrever
nesta coluna, aos domingos, será igualmente insípido com suas
recordações. (ASSIS, 1959, p. 628).
O cronista não só lida com a noção de tempo-histórico como trata da
relatividade do tempo ao posicionar o leitor no lugar do cronista, depois de situá-lo
em 1920, passa a dar voz a esse ―cronista do futuro‖, indaga sobre as mudanças
comerciais ocorridas na Rua do Ouvidor com a Gonçalves Dias, que antes era uma
confeitaria, relata a transformação da confeitaria para uma casa de jóias de um
italiano Cesar Farani. Este aspecto relativo do tempo usado por Machado, que se
desloca do século XIX ao século XX, como o colibri que voa de uma a flor a outra,
60
meio desordenadamente, pode ser visto sob a perspectiva do trabalho da citação,
cujos recortes fragmentários praticados por Machado de Assis dão a entender que
se vai de uma obra a outra.
Depois de fazer longo comentário sobre a natureza do tempo, principalmente
trazendo personagens históricos, o cronista trata de narrar um fato estranho que lhe
aconteceu, precisamente, num domingo de Ramos; neste evento, a imaginação-
alucinação invade o relato com a presença de Cristo e sua pregação do ―Sermão‖ na
Galileia.
Soou o canto-chão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me
embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram
de oeste a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu
ressurgi, antes de Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e
ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galileia, e, abrindo os
lábios, disse-me que sua palavra dá solução a tudo.
- Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter
visto a lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
- Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.
- Vede a injustiça do mundo. ―nem sempre o prêmio é dos que melhor
correm, diz ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.
- Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão
fartos.
- Mas ainda é o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm
males...
- Bem-aventurados os que são perseguidos por amor à justiça, porque é
deles o reino do céu.
E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma
palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu
que estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E
o sermão continuava. Bem-aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os
mansos... (ASSIS, 1959, p. 629-630).
O cronista inverte a ordem cronológica dos fatos históricos, regride e progride
temporalmente, migra do passado para o futuro e vice-versa, assim como sofre de
um súbito alucinógeno, que projeta Jesus diante de si. Tamanha desfaçatez
proporciona um diálogo entre a figura máxima do cristianismo e o abusado cronista,
61
que rebate as frases do sermão com respostas supostamente retiradas do livro de
Eclesiastes.
A suposta argumentação retirada de Eclesiastes pelo cronista para rebater e
provocar as possíveis respostas de Jesus, também são citações truncadas e
paródicas, como se pode cotejá-las com a fonte abaixo.
(sic)
10º vi também levarem os ímpios; quando saem do lugar santo, esquecem
de como eles tinham agido na cidade. Isso também é vaidade.
12º Um pecador sobrevive, mesmo que cometa cem vezes o mal. Mas eu
sei que acontece o bem aos que temem a Deus, porque eles o temem;
13º mas que não acontece o bem ao ímpio e que, com a sombra, não
prolongar seus dias, porque não tem a Deus.
14º Há uma vaidade que se faz sobre a terra:há ímpios que são tratados
conforme a conduta dos justos. (A BIBLIA DE JERUSALÉM, 1973, p. 1177).
O cronista recorre a passagens de Eclesiastes, cuja etimologia vem do
hebraico Coélet que significa aquele que fala perante assembleia, o termo foi
traduzido para o correspondente português o pregador. Pensemos na estratégia
usada pelo cronista em seu devaneio: ele se coloca diante do maior pregador da
tradição religiosa judaica e contra-argumenta citando parodicamente trechos
truncados do livro de Eclesiastes, que apresenta supostamente como autor um
personagem judeu considerado o edificador do templo de Israel: Rei Salomão.
Colocam-se frente a frente duas tradições em conflito, a do velho testamento,
presa ao judaísmo conservador e a do cristianismo, inaugurada pelo pregador do
Sermão da Montanha. As citações truncadas do livro de Eclesiastes assumem um
tom irônico diante da prédica, pois, a ironia e a dubiedade da fala do cronista podem
ser levantadas pelo questionamento sobre a autoria de Eclesiastes, como nos
aponta texto introdutório ao livro na Bíblia de Jerusalém.
62
(sic)
Eclesiastes [...] é um nome de ofício e designa aquele que fala na
assembléia, [...] é chamado ―filho de Davi e rei em Jerusalém‖, embora o
nome não seja mencionado, ele é certamente identificado como Salomão,
[...] Embora essa atribuição do autor não passe de mera ficção literária do
autor, [...] Muitas vezes se tem contestado a unidade de autor e distinguido
duas mãos, ,. três,.. quatro e até oito mãos distintas. (BÍBLIA DE
JERUSALÉM, 1973, p.1165).
A partir da leitura do comentário crítico sobre a autoria do livro de Eclesiastes,
ficamos tentados a pensar sobre como o cronista estrutura as estratégias de
produção de sentido nesta crônica: primeiro, temos um fragmento citado e
deturpado, pois o trecho apresentado como sendo de Eclesiastes fora modificado
livremente, numa releitura irônica; segundo, foi usado como resposta à prédica de
Jesus; terceiro, o livro de Eclesiastes tem este nome porque significa em português:
―pregador‖; quarto, a autoria é posta em dúvida, talvez nem haja um autor, mas
vários autores; e, por último, a estrutura do livro é um compósito, isto é, ele é
digressivo, num movimento de ―vai e vem‖. (op. cit.).
Ao usar a referência de Eclesiastes, é como se colocasse a fala suposta de
Salomão em oposição à fala de Jesus, dois homens sábios digladiando-se pela boca
do cronista, dois pregadores disputando entre si. Outro aspecto que merece ser
salientado é a possível não autoria do livro por Salomão, o que realça o caráter
irônico da citação, pois se o papel da citação, o da alusão e o da paródia, grosso
modo, é o afastamento da fonte, da autoria, nada mais apócrifo do que usar uma
citação cuja autoria é contestada, por isso, há elementos suficientes para se duvidar
da intenção do cronista que cria dois jogos duplos de sentido: o diálogo paródico da
crônica com o Sermão da Montanha e o circuito entre o velho e o novo testamento,
ambos representados, respectivamente, pelo livro de Eclesiastes e pelo Sermão da
Montanha.
Machado nesta crônica vai do relato histórico aludido pelos personagens
apresentados a começar, por ordem cronológica, Jesus, Solano López, Visconde do
Rio Branco, Visconde de Sinimbu e por associação ao imperador Dom Pedro II, à
viagem ficcional, quando se projeta no leitor do futuro e ao pô-lo no papel de
cronista, à paródia bíblica pela citação e recriação do Sermão da Montanha, com
direito à participação de Jesus, ao diálogo travado entre ambos. Todos estes
63
apontamentos revelam a ligação das crônicas machadianas estudadas à linhagem
luciânica de sátira menipeia.
A alusão a elementos históricos e elementos bíblicos situados num mesmo
contexto enunciativo, unindo-se à mistura de gêneros textuais e à liberdade criadora,
isto é, à desnecessidade da verossimilhança pautada pela presença de um cronista
no futuro, assim como a presença imagética de Jesus em diálogo com o cronista, só
pode ser revelado por uma fala do cronista machadiano nesse texto: ―Tenho mais
critério que meu sucessor de 1920; não quero matá-lo com algumas notícias que ele
não há de entender.‖ (ASSIS, 1959, p. 628). O cronista do futuro não se interessará
pelas notícias do passado, pois elas não têm valor histórico suficiente para se tornar
parte da história, é apenas parte do universo miúdo colhido pelo escriba do
cotidiano.
O que podemos entender da afirmação do cronista? Entendemos que a
crônica estaria presa ao seu tempo, porém, o cronista nesta crônica, trata de dar a
ela um tratamento que a tornaria memorável, revestindo-a do tecido literário. Tecido
conseguido pela sobreposição de elementos fragmentários da guerra do Paraguai e
de recortes particulares de sua memória à citação truncada do Sermão da
Montanha e fragmentos do livro de Eclesiastes, configurando todo o aparato
inversivo e paródico que encobre a citação ao sermão bíblico.
O ponto de partida para o relato ficcional e fantástico da aparição de Jesus foi
uma espécie de prefácio memorialístico dos domingos de Ramos da sua infância,
que também são frutos de uma construção imaginária; a história real mescla-se com
a inventada pela imaginação do cronista. Fundem-se os espaços: o ficcional e o
histórico, porque o cronista é também um observador do miúdo, daquilo que é
considerado menor para os historiadores. O cronista é aquele que observa, colhe
pela sua imaginação e reinventa a história cotidiana do fundo ―de seu gabinete
escuro‖. (ASSIS, 1959, p. 395).
E é de dentro do seu gabinete escuro que o Sermão da Montanha sai aos
poucos, pinçado em pedaços, em citações e alusões, e é na escuridão desse
gabinete que, como míope, escreve enviesado, torto, ao avesso. Por isso, a citação
paródica principia pela maneira como o cronista se posiciona diante de Jesus, ao
mudar o início do sermão e a ordem dos versículos, conforme poderemos perceber
pelo confronto com a fonte.
64
1º E vendo Jesus a grande Multidão do Povo, subiu a um monte, e depois
de ter sentado, se chegaram para o pé dele os seus discípulos;
2°E ele abrindo a sua boca os ensinava, dizendo:
3º Bem-aventurados os pobres de espíritos, porque deles é o reino dos
céus;
5º Bem-aventurados os que choram: porque eles serão consolados.
6º Bem-aventurados os que têm fome, e sede de justiça: porque eles serão
fartos.
9º Bem-aventurados os pacíficos: porque eles serão chamados filhos de
Deus.
10º Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor de justiça:
porque deles é o reino dos Céus... (BIBLIA SAGRADA, 2006, p. 568).
Ao estabelecermos o paralelo entre os dois textos, as diferenças acentuam-
se, primeiro quando o cronista desloca Jesus da cena bíblica, colocando-se diante
dele como um discípulo, pondo-se no mesmo nível de Cristo, dialogando e contra-
argumentando a mensagem bíblica. ―E Jesus apareceu-me antes de morto e
ressuscitado, como nos dias em que rodeava a Galiléia e, abrindo os lábios, disse-
me que sua palavra dá solução a tudo. (ASSIS, 1959, p. 630).
No texto bíblico, não há menção de que Cristo tenha dito que a sua
mensagem seria a solução para tudo, essa inserção já é fruto do trabalho escritural
machadiano, além do deslocamento temos o truncamento, a intromissão escritural,
isto é, a livre interferência do autor. A grande multidão, à que se refere Cristo, torna-
se apenas um homem, presente ao sermão, é ele o discípulo a quem Cristo profere
o sermão, tudo fruto de sua alucinação.
O cronista coloca palavras na boca de Jesus, interfere no texto citado, muda o
contexto, trunca a ordem dos versículos, altera o sentido bíblico e inaugura um
diálogo entre o velho testamento e o novo testamento. Este diálogo serve de
parâmetro ao método de escritura-leitura machadiana.
Esta crônica serve de exemplo claro para uma das características da sátira
menipeia de tradição luciânica, pois além do Sermão da Montanha parodiado,
temos alguns elementos que demonstram certa gradação em que o circuito do
sermão é tomado, nela encontraremos uma reinvenção da história do Brasil, em
específico o conflito chamado de ―Guerra do Paraguai‖ que marcou a década de
setenta do Século XIX no Brasil. Esta liberdade fantasiosa é uma das características
da sátira menipeia, porque Machado toma um fato histórico e subverte, revira-o à
65
sua maneira, como faz com o ―sermão‖. Primeiro, observamos os procedimentos
históricos e imaginários em torno da história do Brasil, depois, percebemos o sermão
adulterado em diálogo com o livro de Eclesiastes, que é citado pelo cronista como se
fizesse parte de um mesmo corpo textual.
66
Considerações Finais
Ler e escrever nas trincheiras da citação e da alusão
Machado de Assis citou, aludiu, parodiou e satirizou textos bíblicos,
principalmente, o Sermão da Montanha e, é este texto que tomamos como base
para esta dissertação. Pudemos perceber que a incidência do texto sacro
configurava um circuito dialogal, um procedimento escritural usado por Machado de
Assis como método de escrita. Este método revelou-se em sua duplicidade de ler e
de escrever.
O trabalho de Machado de Assis apresenta um movimento que direciona todo
jogo de leitura e escritura, a maneira com que Machado escreve revela o seu
percurso de leitor, tem-se um rastro que indica como as ideias foram sendo
desenvolvidas, a partir de uma citação, de um fragmento textual, de uma alusão. É
interessante notar que o Sermão da Montanha está presente em vários momentos
escriturais de Machado de Assis, tanto na crônica, quanto no ensaio, no conto e no
romance, o que nos permite entender que se caracteriza como parte de um
procedimento escritural, que pode se iniciar na citação, ou na alusão e chega à
paródia, configurando um diálogo entre o velho e o novo.
Machado de Assis usa a citação, a alusão e a paródia como estratagemas,
pois no texto machadiano uma leitura por si só não basta. As crônicas machadianas
se abrem a novas frentes interpretativas, antes relegadas a gênero menor,
passaram a ser observadas sob a ótica da crítica especializada como literatura, fato
que as torna texto escriptível, aberto e não apenas legível, muito embora,
necessitassem também, da aprovação crítica dos especialistas.
Este cronista deixa aos leitores o convite para se aventurar nos meandros
complexos de sua teia. O que fizemos, foi tentar evidenciar por quais fios são
tecidas as crônicas que se fiam no Sermão da Montanha. Os detalhes que
estabelecem esta teia em torno do sermão nas cinco crônicas espalham pistas que
mostram o trabalho escritural machadiano que percorre o citar, o aludir e o parodiar,
todos numa linhagem luciânica de sátira menipeia. Apontamento que denuncia
67
serem menipeicas as crônicas estudadas nesta dissertação, muito antes das
produções consideradas da fase madura do autor de Capitu.
Acreditamos ter contribuído no estudo da citação e da alusão, bem como o da
paródia de linhagem luciânica, lançando luzes sobre o método machadiano de ler e
escrever, entendendo que este método consolida-se nas crônicas como um
esquema de leitura-escritura pelo avesso que denuncia um sistema pautado no uso
da ironia e da paródia, a fim de esvaziar a canonicidade da tradição bíblica,
representada pelo Sermão da Montanha.
68
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69
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SENNA, Marta de. Alusão e Zombaria: Considerações sobre citações e referências
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71
ANEXO A - “Parasita II” na seção “Aquarelas” de 9 de outubro
1859, publicada no jornal O Espelho.
II
O PARASITA
(...)
Pobre gente!
Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a
musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada, saem uma
noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...
É que têm o evangelho diante dos olhos...
Bem-aventurados os pobres de espírito.
O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade.
Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte.
Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação contra a piedade dos
incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a âmbula em balança.
Regala-se à custa de crenças e superstições, de dogmas ou preconceitos, e lá vai
passando uma vida de rosas.
A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à sombra do culto.
O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado em papa vendeu as
absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas. Mediante o ouro, aplanou
as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois levantou a abstinência
alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa.
É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa idéia em embrenhar-se
pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica para a estupidez, que
toma o altar como um canal de absorver ouro e regalias.
Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja, polui a fé, rasga as
crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das famílias, sem haver
sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias. Dominou imoralmente as
massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.
Esta transformação do parasita não tende por ora a desaparecer; a fogueira de J.
Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo desse edifício
72
de miséria levantado por uma turba de parasitas, parasita da fé, da moralidade e do
futuro. Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião
ao grado das circunstâncias, deixando-a ao paladar das situações, como uma
verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a fronte levantada,
votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.
Exíguo de luz intelectual, — toma lá o seu assento e trata de palpar para apoiar as
maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se encosta...
Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou menos o peso do
domínio desses boêmios de ontem.
Deixá-los subir às mesas supremas do festim público. Mas tenham cuidado na
solidez das cadeiras em que se sentarem.
Na diplomacia, é mais fácil o ingresso ao parasita. Encarta-se aí em qualquer
legação ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou em Viena. Lá representam
tristemente a pátria que os viu nascer, na massa coletiva da embaixada ou da
legação. O que faz de melhor, esse parvenu sem gosto, é brilhar na arte das roupas,
como corifeu da moda que é. Já é muito.
Podia, se não temesse fatigar, fazer uma enumeração mais longa das famílias de
parasitas que irradiam destas espécies cardeais. Seria, entretanto, uma longa
história que demandaria mais largo espaço; e não caberia nestas ligeiras aquarelas.
O parasita é tão antigo, creio eu, como o mundo, ou pelo menos quase. Em
economia política é um elemento para estacionar o enriquecimento social;
consumidor que não produz, e que faz exatamente a mesma figura que um zangão
na república das abelhas.
Extinguir o parasita não é uma operação de dias, mas um trabalho de séculos.
Os meios não os darei aqui. Reproduzo, não moralizo.
73
ANEXO B - Crônica de 4 de setembro de 1892, publicada na seção
“A Semana” - Gazeta de Notícias.
Nem sempre respondo por papéis velhos; mas aqui está um que parece autêntico; e,
se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo,
justamente um sermão da montanha, à maneira de S. Mateus. Não se apavorem as
almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que ―a igreja do Diabo imita a igreja de
Deus‖. Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo:
―1. E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome
Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.
―2. E ele abrindo a boca, ensinou, dizendo as palavras seguintes:
―3. Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.
―4. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
―5. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.
―6. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
―7. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu
respeito.
―8. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
―9. Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa
se há de salgar?
―10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu,
pois assim se perdem o chapéu e a vela.
―11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.
―12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se
concertam, e se não for com remendo da mesma cor, será com remendo de outra
cor.
―13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos:
Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito
mais nutritivo que o próprio.
―14. Também foi dito aos homens: não matareis a vosso irmão, nem a vosso
inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar o
vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa.
74
―15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda
meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu
irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo.
―16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao
Senhor os vossos juramentos.
―17. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e
crua, além de indecente, é dura de roer; mas jura e sempre e a propósito de tudo,
porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que
não juram nada. Se disserdes que o sol acabou, todos acenderão velas.
―18. Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia.
―19. Quando, pois, quiserdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito
Hábil, que faça treze de cinco e cinco.
―20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os
consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.
―21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a
ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los
no dia do juízo.
―22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é
capaz de comer o seu vizinho, e boa cara não quer dizer bom negócio.
―23. Vendei gato por lebre, e concessões ordinárias por excelentes, a fim de que a
terra se não despovoe das lebres, nem as más concessões pareçam nas vossas
mãos.
―24. Não queirais julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do
próximo para que ele não examine os vossos, e não resulte irem os dois para a
cadeia, quando é melhor não ir nenhum.
―25. Não tenhais medo às assembléias de acionistas, e afagai-as de preferência às
simples comissões, porque as comissões amam a vangloria e as assembléias as
palavras.
―26. As percentagens são as primeiras flores do capital; cortai-as logo para que as
outras flores brotem mais viçosas e lindas.
―27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contadas, e
perpétuas as contas que se não contam.
―28. Deixai falar os acionistas prognósticos; uma vez aliviados, assinam de boa
vontade.
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―29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom negócio;
mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos.
―30. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao
homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do
homem sem consideração, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...‖
Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio Diabo, ou alguém por ele;
mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles.
Fiz-lhe uma cruz com os dedos e ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo
papel, nem pelas doutrinas nem pelos erros de cópia.
Já agora parece que estou em dia de fantasmas. Mal pingava o ponto final do outro
parágrafo, quando me apareceu um senhor, que me disse ser defunto e haver-se
chamado Barão Luis.
— Conheço muito, disse-lhe eu: tenho ouvido a sua celebre máxima: ―Dai-me boa
política e eu vos darei finanças‖.
— Ah! meu caro senhor, acudiu o barão; essa máxima tem-me tirado o sono da
eternidade. Já não a posso ouvir, sem tédio. Quer ajudar-me a publicar uma troca de
palavras que fiz, mudando o sentido, a ver se pegam na segunda forma e deixam-
me em descanso a primeira?
— Senhor barão...
— Escute-me.
— Em vez de: ―dai-me boa política e eu vos darei boas finanças‖, arranjei esta outra
forma: ―Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política‖. Promete-me?
— Pois não!
— Não esqueça: ―Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política‖.
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ANEXO C - Crônica de 12 de junho de 1864, Diário do Rio de
Janeiro.
Também o folhetim tem cargo de almas.
É apóstolo e converte.
Fácil apostolado, é certo. Não há terras inóspitas ou áridos desertos, aonde levar a
palavra da verdade; nem se corre o risco de ser decapitado, como S. Paulo, ou
crucificado, como S. Pedro.
É um apostolado garantido pela polícia, feito em plena sociedade urbana. Em vez de
pisar areias ardentes ou subir por montanhas escalvadas, tenho debaixo dos pés um
assoalho sólido, quatro paredes dos lados e um teto que nos abriga do orvalho da
noite e das pedradas dos garotos. E por cúmulo de garantia ouço os passos da
ronda que vela pela tranqüilidade do quarteirão.
É cômodo, e nem por isso deixa de ser glorioso.
Deste modo o folhetim faz de ânimo alegre o seu apostolado. Entra em todo o lugar,
por mais grave e sério que seja. Entra no senado, como S. Paulo entrava no
areópago, e aí levanta a voz em nome da verdade, fala em tom ameno e fácil, em
frase ligeira e chistosa, e no fim do discurso tem conseguido,
também como S. Paulo, uma conversão.
(...)
77
ANEXO D - Crônica de 22 de agosto de 1864, Diário do Rio de
Janeiro.
(...)
Só agora me chega às mãos o número da Cruz que foi distribuído ontem. Nada tens
de novo, a não ser uma noticiazinha curiosa.
Diz a Cruz:
―A repartição da caridade da irmandade da Candelária distribuiu pelas suas 600
pobres a quantia de 7:000$000 durante este último trimestre‖.
Leram, não? Pois bem: diz agora o evangelho de S. Matheus, capítulo V, versículos
2, 3 e 4:
―— Quando derdes alguma esmola, não façais tocar diante de vós a trombeta, como
fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos
homens. Em verdade vos digo, esses já têm o devido prêmio.
―— Mas quando derdes alguma esmola, que a vossa mão esquerda não saiba o que
fez a vossa mão direita.
―— Afim de que a vossa esmola seja em segredo, e vosso pai, que vê em segredo,
vos dará a recompensa‖.
Apliquem el cuento.
78
ANEXO E - Crônica de 25 de março de 1894 publicada
originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro.
A semana foi santa, — mas não foi a semana santa que eu conheci, quando tinha a
idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai. Deus meu! Há pessoas
que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes que fazem a barba, que
namoram, que se casam, que têm filhos, e, não obstante, nasceram depois da
batalha de Aquidabã! Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de
outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não
há dúvida que os relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa.
Antigamente tinham o andar próprio de uma quadra em que as notícias de Ouro
Preto gastavam cinco dias para chegar ao Rio de Janeiro. Ia-se a São Paulo por
Santos. Ainda assim, na semana, os estudantes de Direito desciam a Serra de
Cubatão e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio. Que digo? Caso houve em
que vieram unicamente assistir à primeira representação de uma peça de teatro.
Lembras-te, Ferreira de Meneses? Lembras-te, Sizenando Nabuco? Não
respondem; creio que estão mortos.
Aí vou escorrendo para o passado, coisa que não interessa no presente. O passado
que o jovem leitor há de saborear é o presente lá para 1920, quando os relógios e os
almanaques criarem asas. Então, se ele escrever nesta coluna, aos domingos, será
igualmente insípido com as suas recordações:
―Tempo houve (dirá ele) em que o primeiro Frontão da Rua do Ouvidor, descendo, à
esquerda, perto da Rua de Gonçalves Dias, era uma confeitaria, Confeitaria
Pascoal. Este nome, que nenhuma comoção produz na alma do rapaz nascido com
o século, acorda em mim saudades vivíssimas. A casa da mesma rua, esquina da
dos Ourives, onde ainda ontem (perdoem ao guloso) comprei um excelente paio, era
uma casa de jóia, pertencente a um italiano, um Farani, César Farani, creio, na qual
passei horas excelentes. Fora, fora, memórias importunas!‖
Assim poderá escrever o leitor, em 1920, nesta ou noutra coluna para os jovens
desse ano não será menos aborrecido.
Mas, por isso mesmo que os há de enfadar, deixe-me enfadá-lo um pouco, repetindo
que a semana santa que acabou ontem ou acaba hoje não é a semana santa
anterior à passagem do Passo da Pátria ou ao último ministério Olinda.
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As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais compridas. O
Domingo de Ramos valia por três. As palmas que traziam das igrejas eram muito
mais verdes que as de hoje, mais e melhor. Verdadeiramente já não há verde. O
verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram lentas, não
longas; não sei se percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas, por serem
vazias. Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série de
cerimônias, e de ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o Sábado de
Aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a
chave de ouro.
Tenho mais critério que meu sucessor de 1920; não quero matá-lo com algumas
notícias que ele não há de entender. Como entender, depois da passagem de
Humaitá, que as procissões do enterro, uma de São Francisco de Paula, outra do
Carmo, eram tão compridas que não acabavam mais? Como pintar-lhe os andores,
as filas de tochas inumeráveis, as Marias Beús, segundo a forma popular, o
centurião, e tantas outras partes da cerimônia, não contando as janelas das casas
iluminadas, acolchoadas e atapetadas de moças, bonitas, — moças e velhas —
porque já naquele tempo havia algumas pessoas velhas, mas poucas. Tudo era da
idade e da cor das palmas verdes. A velhice é uma idéia recente. Data do berço de
um menino que vi nascer com o ministério Sinimbu. Antes deste, — ou mais
exatamente, antes do ministério Rio Branco, — tudo era juvenil no mundo, não
juvenil de passagem, mas perpetuamente juvenil. As exceções, que eram raras,
vinham confirmar a regra.
Não entenderíeis nada. Nem sei se chegareis a entender o que sucedeu agora, indo
ver o ofício da Paixão em uma igreja. Outrora, quando de todo o Sermão da
Montanha eu só conhecia o Padre-Nosso, a impressão que recebia era muito
particular, uma mistura de fé e de curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os
cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o turíbulo. Entrei na igreja. A
gente não era muita; sabe-se que parte da população está fora daqui. Metade dos
fiéis ali presentes eram senhoras, e senhoras de chapéu. Nunca me esqueceu o
escândalo produzido pelos primeiros chapéus que ousaram entrar na igreja em tais
dias; escândalo sem tumulto, nada mais que murmuração. Mas o costume venceu a
repugnância e os chapéus vão à missa e ao sermão. Algumas senhoras rezavam
por livros, outras desfiavam rosários, as restantes olhavam só ou rezariam
mentalmente. Não quero esquecer um velho cantor de igreja, que ali achei, e que,
80
em criança, ouvira cantar nas festas religiosas; creio que nunca fez outra coisa,
salvo o curto período em que o vi no coro da defunta Ópera Nacional.
Que idade teria? Sessenta, setenta, oitenta...
Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me embalar pela
música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste a leste. Atrás
dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de Jesus. E Jesus
apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que rodeava a
Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a tudo.
— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter visto
as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.
— Vede a injustiça do mundo. ―Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz
ainda o Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade.‖
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm males...
— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque deles é o
reino do Céu. E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com
uma palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que
estava na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o sermão
continuava.
Bem aventurados pobres de espírito. Bem aventurados os pacíficos. Bem-
aventurados os mansos...
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ANEXO F - Sermão da Montanha - São Mateus Capítulo V.
São Mateus, 5
1. Jesus viu as multidões, subiu à montanha e sentou-Se. Os discípulos
aproximaram-se
2. e Jesus começou a ensiná-los:
3. Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.
4. Felizes os aflitos, porque serão consolados.
5. Felizes os mansos, porque possuirão a Terra.
6. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
7. Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia.
8. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.
9. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.
10. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do
Céu.
11. Felizes de vós, se fordes insultados e perseguidos, e se disserem toda a espécie
de calúnia contra vós por causa de Mim.
12. Ficai alegres e contentes, porque será grande para vós a recompensa no Céu.
Do mesmo modo perseguiram os profetas que vieram antes de vós.
13. «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal perde o sabor, com que poderemos salgá-
lo? Não serve para mais nada; só serve para ser lançado fora e ser pisado pelos
homens.
14. Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre
um monte.
15. Ninguém acende uma lâmpada para a colocar debaixo de uma vasilha, mas sim
para a colocar no candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão em casa.
16. Assim também: que a vossa luz brilhe diante dos homens, para que eles vejam
as boas obras que fazeis e louvem o vosso Pai que está nos céus.
17. Não penseis que Eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes
pleno cumprimento.
18. Eu vos garanto: antes que o Céu e a Terra deixem de existir, nem sequer uma
letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça.
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19. Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja,
e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu.
Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do
Céu.
20. Com efeito, Eu vos garanto: se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei
e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu.
21. Ouvistes o que foi dito aos antigos: "Não matarás! Quem matar será condenado
pelo tribunal".
22. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que fica com raiva do seu irmão, torna-se réu
perante o tribunal. Quem diz ao seu irmão: "imbecil", torna-se réu perante o Sinédrio;
quem chama ao irmão "idiota", merece o fogo do inferno.
23. Portanto, se fores até ao altar para levares a tua oferta, e aí te lembrares de que
o teu irmão tem alguma coisa contra ti,
24. deixa a oferta aí diante do altar e vai primeiro fazer as pazes com o teu irmão;
depois, volta para apresentar a oferta.
25. Se alguém fez alguma acusação contra ti, procura logo entrar em acordo com
ele, enquanto estais a caminho do tribunal; senão o acusador entregar-te-á ao juiz, o
juiz entregar-te-á ao guarda, e irás para a prisão.
26. Eu te garanto: daí não sairás, enquanto não pagares até ao último centavo"
27. «Ouvistes o que foi dito: "Não cometerás adultério".
28. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la,
já cometeu adultério com ela no coração.
29. Se o olho direito te leva a pecar, arranca-o e lança-o fora! É melhor perder um
membro do que o teu corpo todo ser lançado no inferno.
30. Se a mão direita te leva a pecar, corta-a e lança-a fora! É melhor perder um
membro do que o teu corpo ir para o inferno.
31. Também foi dito: "Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de
divórcio".
32. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por
causa de fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a
mulher divorciada comete adultério.
33. «Ouvistes também o que foi dito aos antigos: "Não jurarás falso", mas "cumprirás
os teus juramentos para com o Senhor".
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34. Eu, porém, digo-vos: não jureis de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trono
de Deus;
35. Nnem pela Terra, porque é o suporte onde Ele apóia os pés; nem por Jerusalém,
porque é a cidade do grande Rei.
36. Não jures nem mesmo pela tua própria cabeça, porque não podes fazer com que
um só dos teus cabelos fique branco ou preto.
37. Diz apenas "sim", quando é "sim"; e "não", quando é "não". O que disseres para,
além disto, vem do Maligno.
38. «Ouvistes o que foi dito: "Olho por olho e dente por dente!"
39. Eu, porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal. Pelo contrário: se
alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda!
40. Se alguém faz um processo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa!
41. Se alguém te obriga a andar um quilômetro, caminha dois quilômetros com ele!
42. Dá a quem te pedir e não vires as costas a quem te pedir emprestado.
43. «Ouvistes o que foi dito: "Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!"
44. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos
perseguem!
45. Assim tornar-vos-eis filhos do Pai que está no Céu, porque Ele faz nascer o sol
sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos.
46. Pois, se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Os
cobradores de impostos não fazem a mesma coisa?
47. E se cumprimentais somente os vossos irmãos, o que é que fazeis de
extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?
48. Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu.