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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP AMANDA EUFRÁSIO TRABALHO COM FAMÍLIAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: NOVAS EXPRESSÕES DO CONSERVADORISMO? MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

AMANDA EUFRÁSIO

TRABALHO COM FAMÍLIAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: NOVAS EXPRESSÕES DO CONSERVADORISMO?

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

AMANDA EUFRÁSIO

TRABALHO COM FAMÍLIAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: NOVAS EXPRESSÕES DO CONSERVADORISMO?

Mestrado em Serviço Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE

em Serviço Social, sob a orientação da Professora

Doutora Maria Carmelita Yazbek.

São Paulo

2014

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BANCA EXAMINADORA

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DEDICATÓRIA

À Wanderley de Almeida Eufrásio e Maria das Graças

Soares Eufrásio, meus amados pais.

À Daniela Aparecida Eufrásio, minha irmã e grande inspiradora.

Ao Celso, meu querido companheiro.

Às pessoas usuárias do Centro de Referência da Assistência Social

onde trabalhei, em Arujá/SP, com as quais me relacionei durante

quatro anos, relação que suscitou em mim todas as reflexões presentes neste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Wanderley e Graça, que se esforçaram juntamente comigo durante toda a minha formação acadêmica e profissional, a quem devo muito por todos os ensinamentos que me repassaram.

À minha irmã, Daniela, sem a qual não seria possível chegar até aqui pois foi ela que despertou em mim o interesse pelos estudos e pela busca de conhecimento, a vontade de fazer um curso de graduação e seguir na pós-graduação. Obrigada por todas as orientações, dicas, pela revisão gramatical da dissertação, pelas conversas, pelo tempo disponibilizado, por tudo.

Ao Celso, pelo companheirismo e pela paciência comigo. Obrigada por compreender as minhas decisões e permanecer ao meu lado. Também aprendo muito com você.

Aos amigos e amigas, que fizeram parte desta trajetória comigo e me ajudaram a construir este trabalho, o qual foi elaborado “com várias mentes e várias mãos”. Alguns deles são a Renata, Talita, Andréia, Tamires, Vivi, Nei, Thais, Michelli, Keu, Janaína e tantos outros que contribuíram para os momentos de reflexão e descontração ao longo desses dois anos de mestrado.

Não poderia deixar de fazer um agradecimento especial aos meus amigos e amigas do grupo de estudos de Guarulhos: Guinho, Flor, Ana Paula, Rafa, Marli, Renan, Aline, pelos momentos juntos, ao longo desses anos, na tentativa de compreender o mundo. Obrigada Weber pelas conversas, reflexões, indicações de bibliografia, troca de idéias, orientações e dicas que foram fundamentais para a elaboração da presente dissertação.

À orientadora deste trabalho, Maria Carmelita Yazbek, pessoa e profissional admirável que, com muita paciência e atenção, me conduziu neste processo e me encorajou a seguir confiante no que eu estava fazendo.

À todos os professores e professoras da PUC-SP, da graduação e pós-graduação em Serviço Social, que são muito solícitos e atenciosos com as nossas dúvidas e questionamentos, são excelentes docentes que fazem a diferença nesta universidade.

Em especial, gostaria de agradecer as professoras Maria Lúcia Barroco e Maria Lúcia Martinelli que participaram da banca do Exame de Qualificação e me orientaram na definição final do problema de pesquisa, assim como fizeram apontamentos essenciais que tentei seguir na construção da dissertação.

Às professoras Dirce Koga e Vania Neri, por terem aceitado o convite para integrar a banca de defesa.

Aos sujeitos que participaram dessa pesquisa, pela disponibilidade em participar das entrevistas e contribuir para a troca de conhecimentos nesse momento de amadurecimento intelectual, momento único que também me fez aprender muito.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de estudos que permitiu a realização desta pesquisa.

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Título: Trabalho com famílias na assistência social: novas expressões do conservadorismo? Autor: Amanda Eufrásio.

RESUMO

A investigação das expressões do conservadorismo no trabalho com famílias executado por assistentes sociais na contemporaneidade constitui o foco da presente pesquisa. Foi com base no pressuposto de que práticas conservadoras se (re) atualizam no âmbito do Serviço Social, que tivemos como objetivo nesta pesquisa apreender modos de ser conservador no exercício da profissão, mais especificamente, no campo da assistência social. Para isso, além da pesquisa bibliográfica realizada sobre a temática, a pesquisa apoiou-se em metodologia qualitativa através da realização de entrevistas individuais semi-estruturadas com cinco assistentes sociais (selecionadas aleatoriamente) que atuam em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), em quatro municípios da região Alto Tietê, em São Paulo, sendo eles: Santa Isabel, Arujá, Mogi das Cruzes e Guararema. Estes sujeitos foram selecionados de acordo com a dinâmica populacional de seus municípios e o grau de consolidação do trabalho desenvolvido com famílias no âmbito da assistência social. No primeiro capítulo, tratamos dos significados sócio-históricos do conservadorismo e os seus reflexos na profissão de Serviço Social. No segundo capítulo, situamos o contexto em que se desenvolvem as políticas sociais na atualidade e tratamos das principais características da política de assistência social hoje no Brasil. No terceiro capítulo, realizamos a análise dos dados coletados. Como parte dos resultados da pesquisa, destacamos: 1. há mudanças positivas nas formas de compreender quem são as famílias que procuram a assistência social, mas estigmas e preconceitos com relação a essas pessoas ainda se revelam na prática profissional; 2. a leitura que profissionais fazem do público usuário da assistência social e das possibilidades de enfrentamento da questão social sofre a influência de tendências conservadoras como a despolitização do significado da pobreza; 3. famílias são “disciplinadas” para manter um desempenho “satisfatório” durante a sua participação nos programas de transferência de renda; 4. o trabalho social com famílias através do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) se apresenta como uma tentativa de romper com práticas conservadoras nessa esfera de atuação profissional e alguns (as) profissionais se apropriam das propostas deste serviço para lutar contra as incidências do conservadorismo na profissão; 5. as famílias são educadas para a conquista de autonomia, o que nos revelou aspectos positivos no sentido de desconstruir práticas assistencialistas e propiciar às famílias pobres o acesso à direitos e às políticas e serviços públicos, assim como a reivindicação de sua melhoria. Porém, a pesquisa demonstrou também a tendência de individualizar problemas que são sociais e de responsabilizar, cada vez mais, as famílias por sua condição de pobreza.

PALAVRAS-CHAVE: Conservadorismo, assistência social, prática profissional.

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Title: Work on families under social assistance – conservatism new expressions? Author:Amanda Eufrásio.

ABSTRACT

The conservatism expressions investigation done on families under social assistance nowadays is what this research is focused on.It was based on the assumption that conservative practices (re) update under Social Service, that we aimed in this research in order to grasp ways of being conservative when executing the profession, more specifically, in the area of social assistanceFor this, besides the literature survey on the topic, the research went on based on qualitative methodology by conducting semi structured interviews with five social workers (randomly selected) who work in Reference Centers for Social Welfare (CRAS), in four cities on the Alto Tiete area, in Sao Paulo, being: Santa Isabel, Aruja, Mogi das Cruzes e Guararema. These people were picked according to the population dynamics of their cities and the consolidation degree of the work with families under social assistancein the first chapter; we go on social-historical meanings of the conservatism and its impact on the profession of Social Work.In the second chapter, we situate the context in which they develop social policies nowadays and we cover the main features of social assistance policy in Brazil today.In the third chapter, we analyze the data collected.As a part of the research results, we figured that: 1. 1 – There are positive changes in ways of understanding who are the families that seek for social assistance, but stigmas and prejudices on these people are still shown in professional execution; 2 - the way professionals look upon the people that make use of the social assistance and the possibilities of facing social is influenced by conservative tendencies as the politicization of the meaning of poverty; 3 – families are “disciplined” to keep a “satisfactory” performance during their participation on the income transfers programs; 4 – The social work with families through the Protection Service and Integral Care of Family (PAIF) is presented as an attempt to break in with conservative practices in this sphere of professional activity and some (as) professionals take ownership of these service proposals to face the effects of the conservatism of the professional; 5 – families are educated to achieve autonomy, which revealed the positive aspects in the sense of deconstruct welfare practices and to give poor families access to their rights and the policies and public services, as well as claiming their improvement.However, the survey also showed a tendency to individualize problems that are social responsibility and, increasingly, families for their poverty condition.

KEYWORDS: Conservatism, social assistance, professional practice.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………… 09

CAPÍTULO I- DELIMITAÇÕES HISTÓRICAS DO CONSERVADORISMO ...... 21

1. Desvendando os significados do conservadorismo ................................................ 21

2. Algumas facetas do conservadorismo no Brasil ..................................................... 47

3. O conservadorismo e a gênese do Serviço Social no Brasil ................................... 68

4. Os desdobramentos do conservadorismo na atualidade ......................................... 103

CAPÍTULO II- ASSISTÊNCIA SOCIAL ...................................................................... 122

1. As políticas sociais na atualidade ........................................................................... 122

2. A política de assistência social no Brasil ................................................................ 144

CAPÍTULO III- ANÁLISE DOS DADOS ..................................................................... 156

1. Expressões do conservadorismo na atuação profissional de assistentes sociais ..... 163

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 210

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 222

Apêndice A- Roteiro de entrevista ..................................................................................... 231

Apêndice B- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................................. 233

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INTRODUÇÃO

Ser radical é tomar as coisas pela raiz, mas a raiz,

para o homem, é o próprio homem.

MARX

O tema “conservadorismo” que escolhemos para tratar nesta dissertação é muito

denso e contém um grau de complexidade que exige uma análise profunda e minuciosa dos

seus significados. O conservadorismo perpassa as várias esferas da vida humana e pode se

expressar por meio de muitas mediações com o ser social, como, por exemplo, a cultura, a

política, a ideologia, entre outras. Não é possível tratar desse tema sem falar em ideologia

emancipatória e revolucionária, um assunto tão em “desuso” e “ultrapassado” nos meios em

que circulamos e, em certa medida, também nos espaços acadêmicos. Portanto, ao ler as

páginas seguintes desse trabalho, os leitores e leitoras irão se deparar o tempo todo com essa

dicotomia conservar/transformar e tantas outras que fazem parte do processo contraditório de

afirmação e negação da ideologia conservadora na sociedade capitalista.

Tendo em vista o escopo dessa investigação, no tempo de pesquisa em que ela foi

realizada, optou-se por delimitar o objeto de estudo desta dissertação à identificação de

expressões do conservadorismo no trabalho com famílias no âmbito da política de assistência

social.

Com o projeto de pesquisa vinculado à linha de pesquisa “Serviço Social: Identidade,

Formação e Prática”, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, voltamo-nos para o estudo do

significado sócio-histórico do conservadorismo, as suas novas configurações na atualidade, as

suas expressões nas políticas sociais contemporâneas e no Serviço Social brasileiro, bem

como efetivamos entrevistas com assistentes sociais que trabalham nos Centros de Referência

da Assistência Social (CRAS), em quatro municípios selecionados da região Alto Tietê, em

São Paulo.

Sabe-se que, desde 2004, a assistência social é regulamentada pela Política Nacional

de Assistência Social (PNAS-2004), que visa implementar o Sistema Único de Assistência

Social (SUAS) no país e inaugurar mudanças na concepção de assistência social e na criação

de parâmetros para a efetivação desta política nos vários municípios brasileiros. A PNAS-

2004 reforçou o significado da assistência social como uma política de proteção social, ou

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seja, que deve garantir proteção a todos (as) que dela necessitem e, nesse sentido, o

atendimento e a sua organização se dividem em Proteção Social Básica e Proteção Social

Especial. Para a realização da presente dissertação, entrevistamos assistentes sociais que

executam serviços, programas, projetos, benefícios da Proteção Social Básica nos CRAS

(unidades públicas estatais instaladas em territórios de vulnerabilidade social nos vários

municípios brasileiros).

De acordo com a pesquisa mais recente sobre o perfil profissional dos assistentes

sociais no Brasil, realizada pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), em parceria

com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e os Conselhos Regionais de Serviço Social

(CRESS), no ano de 2005, 78,16% das/dos assistentes sociais brasileiros estavam empregados

na esfera pública estatal, contabilizando nesse percentual as instituições municipais, estaduais

e federais. Tendo em vista a abrangência do universo dessa pesquisa, selecionamos uma

pequena parte desse todo para a coleta e análise dos dados que servirão de base para o

desenvolvimento da dissertação e que, portanto, se constitui em cinco sujeitos de pesquisa que

atuam nos CRAS dos municípios de Santa Isabel, Arujá, Mogi das Cruzes e Guararema, em

São Paulo.

Os sujeitos de pesquisa foram selecionados de acordo com a dinâmica populacional

de seus municípios, classificação que consta da PNAS-2004, e que é um importante indicador

para a efetivação da política de assistência social: Santa Isabel (município de médio porte com

50.453 habitantes), Arujá (município de médio porte com 74.905 habitantes), Mogi das

Cruzes (município de grande porte com 387.779) e Guararema (município de pequeno porte II

com 25.844 habitantes)1.

Optamos pelo método qualitativo de pesquisa, o que nos dá possibilidades de uma

maior aproximação com o caráter complexo da questão social, o qual, dificilmente, pode ser

compreendido apenas pela pesquisa quantitativa por meio da experimentação e análise

circunscrita dos dados coletados. Baseando-nos em Martinelli (1999), entendemos que, apesar

da importância da pesquisa quantitativa no que se refere ao dimensionamento dos problemas

sociais com os quais trabalhamos no Serviço Social e à sua viabilidade para o delineamento

de um mapa detalhado da realidade social na qual atuamos, o método quantitativo não nos

parece suficiente para apreender “modos de ser conservador” no exercício da profissão de

Serviço Social na assistência social. Conforme a autora explica: “O dado numérico em si nos

1 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Infográficos: dados gerais do município. 2010. Disponível em: < http://www.cidades.ibge.gov.br/>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2014.

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instrumentaliza, mas não nos equipa para trabalhar com o real em movimento, na plenitude

que buscamos” (MARTINELLI, 1999, p. 21). Além disso, a pesquisa qualitativa privilegia o

contato do pesquisador com os sujeitos de pesquisa e sua experiência cotidiana, movimento

fundamental no qual precisamos nos inserir para investigar o problema de pesquisa

delimitado, mas principalmente para observarmos a sua dinâmica real e extrairmos dela as

determinações fundamentais que a constitui. Conforme se detalhará no que segue, no caso da

presente investigação, que delimitou como problema de pesquisa a identificação e análise de

expressões do conservadorismo na atuação das/dos assistentes sociais, a realização de

entrevistas foi eficiente no sentido de possibilitar um contato mais estreito com os sujeitos de

pesquisa.

Dessa maneira, fizemos uso de entrevistas para confirmar ou não o seguinte

pressuposto da pesquisa: o trabalho de assistentes sociais nos CRAS evidencia novas

expressões do conservadorismo que se refletem no Serviço Social brasileiro. As entrevistas

foram parcialmente estruturadas, voltadas para o problema e a hipótese de pesquisa,

previamente elaboradas, mas deixando espaço para a flexibilidade, permitindo um contato

entre entrevistador e entrevistado que privilegiasse a exploração dos seus saberes, de suas

experiências, de seus valores, em conformidade com requisitos da pesquisa qualitativa. Após

o registro das entrevistas em áudio, por meio de gravador, transcrevemos fielmente as

respostas das profissionais entrevistadas e fizemos a análise dos dados coletados, tendo em

vista o nosso referencial teórico. O roteiro de entrevista dessa dissertação foi um misto de

perguntas abertas e fechadas, acerca do problema de pesquisa, tendo sido elaborado

considerando as diretrizes éticas e a legislação específica de ética na pesquisa, a partir das

quais conduzimos as entrevistas e o tratamento dos dados.

Não anexamos a essa dissertação a transcrição das entrevistas concedidas, já que,

para a análise, foram feitos os recortes necessários para o seu desenvolvimento. Sendo assim,

apresentamos, no corpo do presente texto, os dados que nos permitiram argumentar em defesa

das análises e interpretações realizadas. Na transcrição desses dados, o tipo de letra utilizado

foi “Times New Roman”, tamanho 10, com as seguintes referências às profissionais

entrevistadas: Assistente Social 1, Assistente Social 2, Assistente Social 3, Assistente Social 4

e Assistente Social 5, já que optamos por não identificá-las por seus nomes reais ao longo da

pesquisa.

Foram cinco profissionais entrevistadas com o seguinte perfil: mulheres, assistentes

sociais, com idade entre 26 e 52 anos, as quais trabalham nos CRAS de dois a quatro anos, as

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mesmas possuem vínculo empregatício e são concursadas, quatro delas se graduaram entre os

anos de 2008 e 2009, sendo que uma delas concluiu a graduação em Serviço Social em 1984,

somente uma das profissionais entrevistadas possui pós-graduação na área de Serviço Social.

A etapa posterior à realização das entrevistas foi de análise dos dados com base nos

fundamentos teóricos apreendidos durante a pesquisa bibliográfica e considerando as

reflexões sobre os conteúdos das disciplinas cursadas, os debates travados em eventos e outras

atividades que acompanharam a trajetória dessa pesquisa. Com os dados da pesquisa em

mãos, caminhamos ao encontro das questões em busca de respostas para o nosso problema de

pesquisa, caminho difícil que nos exigiu relacionar dados da realidade com as várias

produções teóricas que foram referência para o nosso trabalho.

Como metodologia para a realização da pesquisa, esforçamo-nos para colocar em

prática princípios da tese marxiana que nos ensinam que a realidade constrói a teoria e não o

contrário, por isso, é preciso desvendá-la fazendo as conexões necessárias de maneira

desmistificada, de modo que as categorias teóricas da totalidade, historicidade e contradição

são fundamentais para o cumprimento dessa função no processo de investigação. Nesse

sentido, a nossa concepção de pesquisa se apoiou na ideia de que esta é uma modalidade

específica de conhecimento que exige captar da realidade o objeto a ser pesquisado, tal como

ele é, para então reproduzi-lo no plano do pensamento buscando compreender as

determinações que incidem sobre a sua essência, e retornando a esse mesmo objeto a partir de

uma análise crítica e abrangente sobre ele (NETTO, 2011b, p. 21). A teoria para Marx é:

[...] a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto.

Ser fiel ao objeto significa partir da sua forma real no processo de investigação e a

partir das formas sob as quais ele é representado, buscar compreendê-lo no nível teórico em

seu movimento histórico e repleto de complexidades. A teoria social de Marx aponta para a

necessidade de identificarmos categorias teóricas na realidade pesquisada, mas mais do que

isso, de articulá-las entre si na totalidade histórica. Netto (2011b) explica que Karl Marx

(1818-1883) buscou conhecer o mundo e a sociedade burguesa direcionando o seu

pensamento à totalidade sócio-histórica (e não aos recursos reducionistas de compreensão da

realidade a partir somente de fatores econômicos, como sugerem os seus principais

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adversários), isso quer dizer que Marx buscou explicar a sociedade burguesa a partir da inter-

relação entre as várias esferas da vida.

Para Marx, o trabalho deve ser compreendido como categoria central na vida dos

homens e a liberdade como um valor central na sociedade moderna. O teórico apreendeu que

o alto grau de desenvolvimento das forças produtivas que se atingira no mundo ocidental,

entre os séculos XVIII e XIX, criou possibilidades nunca dantes vivenciadas pelos seres

humanos de se reconhecerem como sujeitos na história a partir da consciência de si mesmos e

de se tornarem livres na sociedade moderna. Por isso, a teoria social elaborada por ele tem um

conteúdo emancipatório e revolucionário, o que gera muitos conflitos e descrédito no meio

intelectual, principalmente, entre os setores mais conservadores. Segundo Netto (2011b), são

essas razões ideopolíticas (e não subjetivas no significado estrito da palavra), muito mais do

que fatores de ordem teórica e filosófica, que criam polêmicas entre cientistas e acadêmicos,

políticos e a sociedade em geral, no que diz respeito à confiabilidade desse tipo de teoria.

A obra marxiana não nos oferece um conjunto de regras orientadoras das etapas de

elaboração de uma pesquisa científica, mas aponta para a utilização de categorias teóricas

como a totalidade, a contradição e a mediação, dentre outras, que foram apreendidas por Marx

durante a sua trajetória de construção do conhecimento. Essas categorias nos possibilitam a

construção de um caminho teórico-metodológico baseado na dialética, a partir do qual

apreendemos o objeto real, negamos a sua aparência até alcançarmos o seu significado

essencial. Ao nos introduzir na discussão sobre a questão do método em Marx, Netto (2011b,

p. 52-53) explica que esse teórico:

[...] não nos apresentou o que “pensava” sobre o capital, a partir de um sistema de categorias previamente elaboradas e ordenadas conforme operações intelectivas: ele (nos) descobriu a estrutura e a dinâmica reais do capital; não lhe “atribuiu” ou “imputou” uma lógica: extraiu da efetividade do movimento do capital a sua (própria, imanente) lógica- numa palavra, deu-nos a teoria do capital: a reprodução ideal do seu movimento real.

Ressaltamos então que a opção por uma metodologia de pesquisa fundamentada

nesses pressupostos teóricos, a partir dos quais tentamos conduzir as nossas análises, não se

caracteriza pela neutralidade por parte de quem pesquisa. Ou seja, conforme explicou Marx,

diferentemente das pesquisas no campo das ciências naturais, em que a experimentação e o

rigor na aplicação de metodologias buscam garantir uma relação neutra entre o sujeito e o

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objeto de pesquisa (neutralidade confundida com objetividade), no caso das ciências sociais,

“[...] o sujeito está implicado no objeto” (NETTO, 2011b, p. 23).

Mészáros (2004), baseado na teoria marxiana, também faz uma análise sobre esse

apelo às formas e às técnicas metodológicas “neutras”, nos vários campos da ciência,

alertando para o fato de que essa almejada neutralidade ideológica nem sempre garante a

objetividade dos trabalhos científicos. Isso porque a ideia de que a formulação de teorias

sociais pode ser isenta de valores humanos não passa de uma idealização do real que ele

denomina de “mito da neutralidade ideológica”. Martinelli (1999, p. 26) também reforça essa

afirmação ao explicar que a pesquisa qualitativa não pode ocultar a sua dimensão política, já

que ela mesma se justifica em um determinado projeto de sociedade pelo qual lutamos.

Segundo ela: “Não há nenhuma pesquisa qualitativa que se faça à distância de uma opção

política”.

No caso da perspectiva crítico-dialética aplicada à pesquisa nas ciências sociais, a

objetividade dos dados analisados é garantida pelo recurso à história durante o processo de

investigação, pela compreensão da sociedade com base no seu movimento histórico. Isso nos

garante a veracidade dos dados, que são reais porque são históricos e que, apesar de estarem

em constante mudança, colocam-nos o desafio de desvendar essas transformações. Netto

(2011b, p. 23-24) explica que:

[...] da sua análise do movimento do capital, Marx (1968a, p. 712-827) extraiu a lei geral da acumulação capitalista, segundo a qual, no modo de produção capitalista, a produção da riqueza social implica, necessariamente, a reprodução contínua da pobreza (relativa e/ou absoluta); nos últimos 150 anos, o desenvolvimento das formações sociais capitalistas somente tem comprovado a correção de sua análise, com a ‘questão social’ pondo-se e repondo-se, ainda que sob expressões diferenciadas, sem solução de continuidade. E ainda outro exemplo: analisando o mesmo movimento do capital, Marx (1974, 1974a e 1974b) descobriu a impossibilidade de o capitalismo existir sem crises econômicas; também, no último século e meio, a prática social e histórica demonstrou o rigoroso acerto dessa descoberta. Essas e outras projeções plenamente confirmadas sobre o desenvolvimento do capitalismo não se devem a qualquer capacidade ‘profética’ de Marx: devem-se a que sua análise da dinâmica do capital permitiu-lhe extrair de seu objeto ‘a lei econômica do movimento da sociedade moderna’ (Marx, 1968, p. 6)- não uma ‘lei’ no sentido das leis físicas ou das leis sociais durkheimianas ‘fixas e imutáveis’, mas uma tendência histórica determinada, que pode ser travada ou contrarrestada por outras tendências.

Os (as) leitores (as) desse trabalho notarão que a estrutura da presente dissertação foi

elaborada com o cuidado de datar e mencionar fatos históricos que são importantes para a

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compreensão do objeto de estudo desta pesquisa. Foi com base no movimento dinâmico e

histórico da realidade que tentamos apreendê-lo de maneira crítica.

Segundo Kosik (1976), somente é possível investigar a essência dos fenômenos reais

quando caminhamos em direção à destruição do mundo da “pseudoconcreticidade”. Segundo

o mesmo autor, esse mundo esconde um “duplo sentido” na medida em que a essência do que

é real não se revela totalmente. Ao se mostrar, faz isso parcialmente, mas ainda assim, essa

essência tem vida e a sua manifestação é o que move a realidade (KOSIK, 1976). Segundo o

autor,

No mundo da pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece (KOSIK, 1976, p. 16).

Esse falso mundo da concreticidade apresenta a realidade como se esta não tivesse

relação com o seu conteúdo essencial, como se o real e a essência fossem esferas distintas e

separadas. Kosik (1976, p. 16) explica que o mundo fenomênico não é:

[...] algo independente e absoluto; os fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência. O fenômeno não é radicalmente diferente da essência, e a essência não é uma realidade pertencente a uma ordem diversa da do fenômeno. Se assim fosse efetivamente, o fenômeno não se ligaria à essência através de uma relação íntima, não poderia manifestá-la e ao mesmo tempo escondê-la; a sua relação seria reciprocamente externa e indiferente. Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno, sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível.

Partindo desse referencial teórico, para pesquisar com seriedade e profundidade

científica um fenômeno concreto que se manifesta em nossa cotidianidade, como é o caso do

exercício profissional de assistentes sociais na política de assistência social e as formas sob as

quais o pensamento conservador se expressa nessa esfera, devemos considerar que há algo

para além dos seus aspectos mais superficiais, que há uma verdade que não se manifesta

imediatamente aos nossos olhos, que merece ser especulada com maior dedicação, por isso, o

pensamento crítico filosófico marxiano se constitui como referencial teórico do presente

trabalho.

Kosik (1976, p. 18) explica, ainda, que para conhecer a “coisa em si” é preciso

adentrar em sua estrutura e decompor o todo que a constitui:

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A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.

Contudo, a utilização desse referencial teórico na presente dissertação de mestrado

ocorreu com algumas limitações, tendo em vista os propósitos e o tempo de realização dessa

pesquisa. Essas restrições foram, em alguma medida, superadas com a valiosa orientação da

Profa. Dra. Maria Carmelita Yazbek, durante todo o período de construção do trabalho e com

as contribuições, igualmente importantes, de Maria Lúcia Barroco e Maria Lúcia Martinelli,

que participaram da banca do Exame de Qualificação desta pesquisa e fizeram apontamentos

fundamentais para a sua conclusão. Cabe destacar que, quanto ao tempo supracitado de

investigação científica, dispusemos de 24 meses para o seu desenvolvimento e conclusão, fato

que dificulta a maior apropriação da massa crítica existente.

O que nos motivou a realizar essa investigação foi querer entender o que é o

conservadorismo na realidade prática de assistentes sociais. A principal motivação para a

realização dessa pesquisa foram os questionamentos que fui elaborando durante a minha

experiência profissional no CRAS em que vivenciei, juntamente com outras profissionais e

estagiárias da equipe técnica da qual fiz parte, situações em que o nosso trabalho era

coordenado e avaliado de acordo com a lógica da produtividade inerente ao atual contexto em

que vivemos, em que critérios de seletividade do público usuário da assistência social eram

aplicados rigorosamente, ferindo os princípios ético-políticos da nossa profissão e da própria

PNAS-2004, bem como as ações socioeducativas voltadas para famílias beneficiárias de

programas de transferência de renda eram planejadas, sobretudo, com base na subjetivação e

moralização da questão social, entre outras situações. Questões como a universalização das

políticas sociais e o acesso aos direitos, a mobilização popular e a organização sócio-política

em movimentos sociais, a busca pela apreensão das várias manifestações da questão social no

cenário contemporâneo, as reivindicações por uma nova sociabilidade humana, apareciam no

planejamento de trabalho das/dos assistentes sociais naquele equipamento público, mas

frequentemente tinham os seus sentidos distorcidos por valores conservadores que se

sobrepunham nos debates e nas ações de uma equipe multiprofissional.

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Outra motivação para o desenvolvimento dessa pesquisa foi o fato de que, durante o

levantamento e consulta à bibliografia inicial da pesquisa, pudemos observar que são poucos

os trabalhos na área do Serviço Social que aprofundaram as análises sobre o conservadorismo

na prática dos assistentes sociais, a partir dos anos 20002. Consideramos ainda que é uma

constante no Serviço Social se falar em conservadorismo, mas que esta é uma categoria que

precisa ser mais bem explicitada e compreendida, não apenas a partir de definições teóricas,

mas também por meio da explicitação desse modo de ser na realidade. Com base nessa

reflexão, constituímos o problema de pesquisa previamente anunciado, que diz respeito à

investigação das expressões do conservadorismo no trabalho com famílias na

contemporaneidade.

Quanto à importância dessa dissertação, no campo da produção teórica, acreditamos

que esse estudo poderá contribuir para as discussões sobre as tendências da prática

profissional contemporânea. Esperamos, assim, que esse estudo contribua, fundamentalmente,

para as/os assistentes sociais e outros trabalhadores da política de Assistência Social no

sentido de propor reflexões críticas sobre a operacionalização do trabalho com famílias na

assistência social e as “armadilhas” que podem nos desviar dos objetivos que pretendemos

alcançar com o exercício da profissão.

O objetivo geral da pesquisa é investigar formas de expressão do conservadorismo

no Serviço Social brasileiro na contemporaneidade, particularmente na prática profissional da

assistência social e, mais especificamente, estudar os significados do conservadorismo e suas

expressões na atualidade; identificar a presença de tendências conservadoras no trabalho com

famílias no campo teórico e prático do Serviço Social brasileiro, ao longo de sua história;

estudar as políticas sociais brasileiras, a prática da assistência social no Brasil e os marcos

legais que a regulamentam; compreender as determinações sócio-históricas que incidem sobre

as concepções teórico-políticas e ideológicas da sociedade e da profissão, que subjazem à

atuação dos sujeitos de pesquisa.

O texto que ora se apresenta foi dividido da seguinte forma: o primeiro capítulo se

constitui de quatro seções, sendo que, na primeira delas, tratamos do conservadorismo em sua

origem “clássica”, com o objetivo de compreender as raízes desse tipo de pensamento, o seu

2 Dos trabalhos que aprofundam essa temática e foram consultados para essa pesquisa, destacamos: “Neoconservadorismo pós-moderno e Serviço Social brasileiro”, de Josiane Soares Santos (2007); “Bárbarie e neconservadorismo: os desafios do projeto ético-político”, de Maria Lucia S. Barroco (2011) e “Reflexões sobre uma das tendências à reatualização do conservadorismo no Serviço Social brasileiro”, de Costa et al., (2005).

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conteúdo ídeo-político cultural, a sua ênfase no estudo da sociedade e de soluções propostas

para o enfrentamento de problemas sociais.

Com essa finalidade, situamos a origem do pensamento conservador, em fins do

período feudal e, a partir da revolução burguesa na França e em outros países da Europa

ocidental, momento em que a classe dominante daquele período contestou as transformações

da era capitalista. Fizemos referência também à Revolução de 1848 e aos movimentos

proletários que eclodiram em várias partes do mundo, momento em que trabalhadores se

uniram em prol de mudanças e da construção de outro modelo de sociedade. Estudamos ainda

algumas transformações sofridas pelo pensamento conservador, com destaque para o período

pós-1848, momento em que a tradição progressista nas ciências entrou em decadência,

conforme explica Lukács (1968), e com isso o conservadorismo renovou suas forças e

alastrou-se por várias áreas do conhecimento no mundo moderno, o que influenciou a

compreensão da questão social e as formas de intervenção sobre ela. Cabe ressaltarmos aqui

que, ao longo do texto, utilizamos a expressão “questão social” tendo por referência a análise

de Yazbek (2001). Para a autora, a questão social se constitui em elemento central para se

compreender a relação entre a profissão de Serviço Social e a realidade:

Ao colocar a questão social como referência para a ação profissional, estou colocando a questão da divisão da sociedade em classes, cuja apropriação da riqueza socialmente gerada é extremamente diferenciada. Estou colocando em questão, portanto, a luta pela apropriação da riqueza social. Questão que se reformula e se redefine, mas permanece substantivamente a mesma por se tratar de uma questão estrutural, que não se resolve numa formação econômico social por natureza excludente. Questão que, na contraditória conjuntura atual, com seus impactos devastadores sobre o trabalho, assume novas configurações e expressões entre as quais destacamos: 1- as transformações das relações de trabalho; 2- a perda dos padrões de proteção social dos trabalhadores e dos setores mais vulnerabilizados da sociedade que vêem seus apoios, suas conquistas e direitos ameaçados (YAZBEK, 2001, p. 33-34).

Na segunda seção do primeiro capítulo, tratamos das particularidades do pensamento

social conservador no Brasil, destacando as marcas do racismo, da desqualificação do povo

brasileiro, por parte das elites nacionais, e do autoritarismo nas relações políticas. Intelectuais

brasileiros, como Oliveira Vianna, destacaram-se por suas obras acerca da sociedade

brasileira, com análises sobre o caráter e a psicologia do povo brasileiro, caracterizadas, por

ele, como inferiores, o que se soma a outros aspectos conservadores que constituíram a

diretriz dos seus estudos. Foi com base nessa lógica e, sob influência da dominação

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estrangeira, que algumas proposituras para o enfrentamento da questão social foram

elaboradas no Brasil.

A terceira seção do primeiro capítulo trata da gênese do Serviço Social brasileiro,

que se deu em um contexto reformista e conservador, como afirmou Iamamoto (2008), de

modo que o desenvolvimento da profissão se processou a partir dessa base histórica e, desde

meados da década de 1960, vivenciamos um processo de renovação crítica na profissão, em

meio a diferentes correntes de pensamento. A tradição marxista influenciou, de maneira

bastante significativa, a construção do projeto hegemônico da profissão, do nosso Código de

Ética profissional, de legislações específicas na área, além de parte do embasamento teórico-

metodológico do Serviço Social. No caso da política de assistência social brasileira,

assistentes sociais e outros atores participaram ativamente dos processos que levaram à sua

regulamentação, enquanto política pública, por meio da PNAS-2004. Isso tem se dado em um

contexto mundial de intensificação da desigualdade social, (des) proteção social e perda

progressiva de direitos, cenário propício para a disseminação de ideias e práticas (neo)

conservadoras.

Na última parte do capítulo primeiro, abordamos a renovação de velhas

características conservadoras no atual estágio de desenvolvimento capitalista que influencia a

interpretação e análise de fatos sociais. Ela foi iniciada com considerações sobre o estágio de

desenvolvimento capitalista no mundo e no Brasil, a partir da década de 1970, momento em

que transformações econômicas, políticas, sociais e culturais de grande impacto redundaram

em novas estratégias para o enfrentamento da questão social, até chegarmos aos dias atuais

em que vivenciamos – a fase do capitalismo contemporâneo – e tendências ao

conservadorismo nas relações entre os sujeitos sociais tornam-se cada vez mais evidentes em

várias situações, como, por exemplo, na naturalização e criminalização da questão social.

Desse modo, buscamos demonstrar as várias faces do conservadorismo que foram se

constituindo, a partir da era moderna, e se expressaram com força em teorias sociais que

influenciam a compreensão da questão social ainda nos dias de hoje, particularmente, no

campo profissional de assistentes sociais. Apesar de novas características que essa forma de

pensamento foi adquirindo, a sua essência continua a mesma: manter a sociedade como ela

está e combater transformações que interfiram em sua estrutura.

O segundo capítulo trata das políticas sociais na contemporaneidade e da política de

assistência social no Brasil, das principais tendências no campo das políticas sociais hoje,

como, por exemplo, a prevalência de programas focalizados de transferência de renda no

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combate à pobreza. No que se refere à política de assistência social no Brasil, traçamos um

breve histórico dessa história do nosso país com destaque para a aprovação da PNAS-2004, as

mudanças introduzidas por esta nova legislação, principalmente, no que diz respeito aos

novos parâmetros para o trabalho com famílias nos CRAS. Iniciamos o capítulo tratando dos

significados das políticas sociais na sociedade capitalista, mencionamos as primeiras formas

de políticas voltadas para os pobres, os progressos e retrocessos no seu processo de evolução,

de modo que destacamos o desenvolvimento de políticas de proteção social, no período do

Welfare State (Estado de Bem Estar Social), em alguns países da Europa ocidental. Por fim,

abordamos as principais tendências do contexto mundial que influenciaram a configuração

das políticas sociais na atualidade como, por exemplo, o desmonte das políticas de proteção

social.

No último capítulo, realizamos a análise dos dados. Nele, expusemos recortes das

entrevistas realizadas, permeadas por suas interpretações, baseadas no referencial teórico e

nas considerações históricas expostas no decorrer dos capítulos anteriores. Nele, também

pudemos fazer relações entre as abordagens teóricas, que foram destacadas no interior dessa

dissertação, e os dados coletados e analisados na presente pesquisa. A este último capítulo,

seguem-se as considerações finais, com as quais buscamos apresentar uma síntese das

reflexões propostas no decorrer do trabalho.

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CAPÍTULO I- DELIMITAÇÕES HISTÓRICAS DO CONSERVADORISMO

1. Desvendando os significados do conservadorismo

Denominar alguém de conservador pode soar como um insulto ou como o

reconhecimento de uma escolha político-ideológica. No primeiro caso, o seu sentido

geralmente está relacionado a uma postura retrógrada, antiquada, reacionária diante de fatos e

ideias que trazem o novo, podendo assim resultar em posicionamentos de resistência diante

das mudanças, inovações e dos progressos somados a contestações quanto à substituição de

antigos valores, costumes, tradições. No segundo caso, ser conservador pode significar

defender um projeto societário que visa preservar os “bons costumes” e a “moral”, em nome

da ordem e do bom funcionamento da sociedade.

Por causa desse entendimento, é muito comum que os termos “conservadorismo” e

“tradicionalismo” sejam utilizados como se os seus significados fossem equivalentes. Com

base nos estudos realizados para essa pesquisa, compreendemos que o tradicionalismo se

diferencia do conservadorismo na medida em que o primeiro relaciona-se, sobretudo, à

transmissão de uma determinada cultura visando à sua preservação em tempos históricos

diferentes, com o objetivo de valorizar costumes, instituições, rituais, etc. Nesse sentido, o

tradicionalismo não é necessariamente conservador. Explica-nos Carvalho (2005) que o

tradicionalismo está presente em todas as sociedades, nos diversos tempos históricos, porque

nos vinculamos a certas ações e situações que desejamos que tenham continuidade, o que não,

necessariamente, restringem-nas ao uso político-ideológico. No caso do conservadorismo,

este se caracteriza como uma resposta às mudanças que ameaçam romper com uma dada

ordem social estabelecida e um dado status quo. Além disso, conforme veremos a seguir, a

gênese do conservadorismo está situada historicamente no período moderno. Já o

tradicionalismo, em concordância com o que viemos expondo, pode atravessar gerações sem

focar em interesses específicos, podendo perpassar a condução da história.

Na tentativa de apreender o significado do conservadorismo, baseamo-nos na obra de

Netto (2011a)3 em que a autora define a primeira forma de conservadorismo como

“conservadorismo clássico” e faz uma análise do estudo do conservadorismo por alguns

3 Referimo-nos aqui à Leila Escorsim Netto e sua obra “O conservadorismo clássico- Elementos de caracterização e crítica” (2011).

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teóricos da Sociologia. Netto (2011a) defende que o conservadorismo não é natural a todos os

seres humanos, não é uma forma de pensamento “a-histórica”, nem uma resposta neutra e

imparcial de pessoas que, simplesmente, temem tudo o que é novo e resultado de um processo

de transformações gerado pelo movimento histórico do real. Para ela, o pensamento

conservador está muito bem delimitado no tempo e na história da cultura ocidental e sua

funcionalidade está circunscrita aos interesses da burguesia. A autora afirma que o

conservadorismo é

[...] uma expressão cultural (obviamente complexa e diferenciada [...]) particular de um tempo e um espaço sócio-histórico muito precisos: o tempo e o espaço da configuração da sociedade burguesa- configuração que deve ser tomada como uma “rica totalidade de determinações e relações diversas” (Marx, 1982, p. 14) e em que operam movimentos e tensões em todas as esferas e instâncias sociais (NETTO, 2011a, p. 41).

Quanto à delimitação histórica do conservadorismo, grande parte dos pesquisadores

dessa temática concorda com a localização do seu surgimento a partir da Revolução Francesa,

em 1789. A autora corrobora que o conservadorismo

[...] não é um “estilo de pensamento” intemporal, a-histórico, encontrável em qualquer tempo e em qualquer sociedade. Nem se confunde com quaisquer formas intelectuais e comportamentais que valorizam, sancionam e defendem o existente- formas a que cabe a denominação de tradicionalismo (NETTO, 2011, p. 40).

O excerto citado enquadra-se no panorama geral, retratado pela autora, sobre as

profundas transformações ocorridas na Europa Ocidental, entre os séculos XIV e XIX, com

destaque para os períodos da Revolução Francesa e Industrial. Antes disso, o sistema feudal

em crise já apontava para a ascensão do pensamento conservador enquanto “expressão

cultural” (NETTO, 2011a, p. 41), como forma de compreensão do mundo e ação sobre ele.

O Feudalismo foi um tempo em que as relações sociais eram marcadas pela

hierarquia e semi-escravidão entre os indivíduos de distintas classes sociais, resultado do

modo como se estruturava a produção. A produção feudal era voltada basicamente para a

subsistência e pequenas trocas entre os membros daquela sociedade: senhores feudais, servos,

pequenos comerciantes, o clero, a nobreza e a monarquia. Sucedendo o escravismo e

vigorando entre os séculos V e XV, durante a Idade Média, na Europa Ocidental, o modo de

produção feudal caracterizava-se pelo cultivo da terra, a principal base econômica e social

desse período. A terra estava dividida em feudos, onde os seus proprietários cediam uma

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pequena parte de sua área para a moradia e para o consumo de subsistência dos camponeses

que, em troca disso, cultivavam as terras dos seus senhores feudais, além de prestar outros

tantos serviços que lhes eram impostos num “acordo de cavalheirismo e fidelidade”, entre

ambas as partes. A condição social dos camponeses era de servidão, isto quer dizer que o

trabalho nas terras do senhor era a prioridade e a exigência para a manutenção da sua vida

miserável (HUBERMAN, 1967). Conforme nos explica o autor (1967, p. 14-15):

A propriedade do senhor tinha que ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada primeiro. Uma tempestade ameaçava fazer perder a colheita? Então, era a plantação do senhor a primeira que deveria ser salva. Chegava o tempo da colheita, quando a ceifa tinha que ser rapidamente concluída? Então, o camponês deveria deixar seus campos e segar o campo do senhor. Havia qualquer produto posto de lado para ser vendido no pequeno mercado local? Então, deveriam ser o grão e o vinho do senhor os que o camponês conduzia o mercado e vendia- primeiro. Uma estrada ou uma ponte necessitavam reparos? Então, o camponês deveria deixar seu trabalho e atender à nova tarefa. O camponês desejava que seu trigo fosse moído ou suas uvas esmagadas na prensa de lagar? Poderia fazê-lo- mas tratava-se do moinho ou prensa do senhor e exigia-se pagamento para sua utilização. Eram quase ilimitadas as imposições do senhor feudal ao camponês. De acordo com um observador do século XII, o camponês “nunca bebe o produto de suas vinhas, nem prova uma migalha do bom alimento; muito feliz será se puder ter seu pão preto e um pouco de sua manteiga e queijo...”.

As terras da Idade Média pertenciam aos reis e eram arrendadas a outras pessoas que

se intitulavam proprietárias destas, como era o caso dos senhores feudais. Estes tinham poder

econômico e social suficiente para arrendar as terras e o trabalho de cultivá-las ficava para os

camponeses pobres. Grande parte dos feudos nesse período era de propriedade da Igreja

Católica, detentora de grandes fortunas na era feudal, se considerarmos que a maior fonte de

riqueza naquela época era a terra. Outro mediador importante dessa relação, entre o dono da

terra e o camponês que a cultivava, era o costume. Segundo afirma Huberman (1967), na

sociedade moderna, os costumes tinham força de lei. Portanto, os conflitos eram resolvidos

com base nos costumes seculares desse povo e, na maioria das vezes, a favor dos grupos mais

poderosos, ou seja, dos senhores feudais. Quando a terra para plantio começou a se esgotar,

por causa da falta de cuidados e falta de conhecimento sobre o tratamento ideal para que esta

se mantivesse produtiva, mas também por conta do crescimento da população medieval que já

não cabia mais nos espaços dos feudos; e, no momento em que as tensões entre servos e

senhores feudais se intensificaram por insatisfações geradas com as mudanças nas relações

econômicas que transferiram o papel mediador principal da terra para o dinheiro, conforme

veremos adiante, o regime feudal foi perdendo força. Até esse momento da história, a

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circulação de capital não era o fator mais importante das relações econômicas porque a

economia feudal era, em sua essência, auto-suficiente, ou seja, os membros daquela sociedade

produziam todos os artigos e produtos necessários à sua sobrevivência, como alimentos,

roupas, móveis, dentre outros. As trocas aconteciam, eventualmente, quando não havia

matéria-prima suficiente para a produção. Ainda assim, tais trocas não eram realizadas com o

intermédio da moeda e, sim, entre produtos de espécies diferentes. No entanto, quando se

iniciaram os movimentos das Cruzadas, momento em que a monarquia e a Igreja Católica

financiaram grandes expedições marítimas para outros países e continentes, a fim de

conquistar novas terras e extrair novas riquezas de outros povos e territórios, o comércio local

na Europa ganhou maior importância, na medida em que os comerciantes buscavam atender

às necessidades desses viajantes e desbravadores que passavam pelas cidades, assim como às

novidades em termos de produtos que eles traziam consigo no retorno de suas viagens

(HUBERMAN, 1967).

Dos mercados locais para as grandes feiras de comércio, houve um “salto”

significativo de muitas mudanças na vida da sociedade feudal que rumava a outro modelo de

organização econômica e social: o capitalismo. O pequeno comércio, típico da Idade Média,

passou a se expandir e a inserção do dinheiro nos negócios e nas transações financeiras,

realizados nesses espaços, foi uma solução encontrada pelos medievais para facilitar o acesso

a produtos, como nos explica Huberman (1967, p. 34):

Havia desvantagens na permuta de gêneros, nos primórdios da Idade Média. Parece simples trocar cinco galões de vinho por um casaco, mas na realidade não era assim tão fácil. Era necessário procurar quem tivesse o produto desejado, e quisesse trocá-lo. Introduza-se porém, o dinheiro como meio de intercâmbio, e o que acontecerá? Dinheiro é aceitável por todos, não importa o que necessitem na ocasião, porque pode ser trocado por qualquer coisa. Quando o dinheiro é largamente empregado, não é necessário carregar cinco galões de vinho pela redondeza, até encontrar alguém que queira vinho e tenha um casaco para trocar. Não; basta vender o vinho por dinheiro e, então, com esse dinheiro comprar um casaco. Embora a transação de troca simples se transformasse com isso numa transação dupla, com a introdução do dinheiro, não obstante poupam-se tempo e energia. Assim, o uso do dinheiro torna o intercâmbio de mercadorias mais fácil e, dessa forma, incentiva o comércio.

Com o surgimento do dinheiro como moeda de troca, os camponeses passaram a

enxergar possibilidades que antes não existiam, como por exemplo, o arrendamento de terras

por eles, o que até então era um privilégio somente da nobreza feudal e do clero. Foi nesse

momento que os camponeses depositaram todas as suas esperanças de libertação, da relação

hierárquica entre eles e os senhores feudais, no trabalho livre recompensado com dinheiro,

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para que, futuramente, se tornassem proprietários de terras também. Os conflitos entre esses

dois grupos foram intensos e alguns senhores se viram obrigados a remunerar os seus

trabalhadores ou conceder-lhes a liberdade para contratar novos empregados, não mais na

condição de servos.

Com base nisso, podemos notar que o desenho e a dinâmica da sociedade medieval

vinham sofrendo grandes transformações. Muitos servos deixaram os feudos e foram para as

cidades em busca de outras formas de trabalho como, por exemplo, o comércio. Historiadores

apontam para a relação entre a expansão do comércio e o progresso das cidades. Foi, nesse

contexto, que uma nova classe surgiu: a classe média, que conquistara privilégios e direitos

por meio de uma organização crescente entre os seus membros, como foi o caso das

corporações de mercadores que, praticamente, monopolizaram toda a atividade comercial de

certas regiões e foram ganhando espaços naquela sociedade.

Juntamente com essa nova classe social, surgiam também novas formas de pensar e

práticas sociais tais como os empréstimos em dinheiro para investimentos em negócios e o

lucro por meio dos juros, atividades anteriormente condenadas pela Igreja Católica, instituição

que foi, aos poucos, recuando em seus ensinamentos doutrinários e facilitando a introdução de

novos valores e costumes na sociedade que transitava do regime feudal para o sistema

capitalista. A peste negra, que devastou países quase inteiros na Europa ocidental, foi um fator

que também contribuiu para a decadência do sistema feudal. Isto porque milhões de pessoas

morreram e a força de trabalho disponível nos feudos diminuiu drasticamente. Sendo assim,

os camponeses podiam exigir preços mais altos por seus serviços prestados aos senhores

feudais, fato que só aumentava o tensionamento entre essas duas classes.

O poder dos senhores feudais e a organização da sociedade, com base em regras e

tradições daquele período, estavam muito desgastados, como exemplo disso, podemos citar o

questionamento veemente, por parte dos mercadores, da prática de cobrança de taxas e

pedágios pelos senhores feudais. Mediante as novas relações que se estabeleciam entre a

nobreza feudal, os camponeses, comerciantes e outros atores sociais daquela sociedade, fazia-

se necessária a presença mais incisiva do poder central na figura dos representantes da

monarquia. Os reis, que até então defendiam, sobretudo, os seus interesses e dos senhores

feudais, passaram a incorporar os moldes de um Estado Absolutista que se aproximava, cada

vez mais, dos comerciantes e mercadores. Afinal, eram estes que financiavam novas

instituições e recursos necessários à nova sociedade que estava sendo construída: o sistema

fiscal, os aparelhos burocráticos, as forças armadas, etc. (HUBERMAN, 1967).

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Somando esse conjunto de fatos com o sucesso das expedições marítimas que

contrabandearam muitas riquezas de países até então desconhecidos, também com o

surgimento de manufaturas e inovações tecnológicas, além de mudanças profundas nas forças

produtivas como, por exemplo, o processo de aniquilação dos feudos que criou as bases para o

modo de produção capitalista (MARX, 1975), o Estado Absolutista “[...] expressão maior das

relações próprias à feudalidade” (NETTO, 2011a, p. 84) foi caminhando para o seu

esfacelamento e para a “roubada de cena” de uma nova classe, a burguesia.

Netto (2011a, p. 85) esclarece ainda que:

[...] a tomada do poder político pela burguesia, cujo marco emblemático é 1789, não constitui mais que o desfecho de uma luta de classes plurissecular, que teve no domínio da cultura e das idéias um campo de batalhas decisivo, como o provam a Reforma protestante e a Ilustração. Foi a hegemonia conquistada pela burguesia no terreno das idéias que lhe permitiu organizar o povo (o conjunto do Terceiro Estado) e liderá-lo na luta que pôs fim ao Antigo Regime.

O Estado burguês ascendeu em substituição ao Antigo Regime, no século XIX, e

foram criadas, então, as condições favoráveis para o desenvolvimento do sistema capitalista

que já vinha sendo concebido ainda no período feudal.

Contudo, imaginemos os impactos de tantas mudanças estruturais e no plano das

ideias e valores na vida desses homens e mulheres da Idade Média, uma sociedade tão

marcada pela rigidez e força dos seus costumes. E os embates com o poder hegemônico da

Igreja Católica que orientava as pessoas para um modo de vida fixo e imutável regido pelas

leis dos proprietários de terras? Muito provavelmente, as resistências a essas transformações

se manifestaram em todos os grupos sociais daquele período: os camponeses, os reis, a

nobreza feudal, os senhores feudais, os artesãos, entre outros. Contudo, a resistência marcada

pelo medo de perder tudo (bens materiais, poder, status, privilégios, etc) surgiu dos estratos

mais poderosos da sociedade, que temiam a emancipação dos trabalhadores e/ou a ascensão

do povo ao poder. Segundo Nisbet (1987, p. 62), ideias como:

status, coesão, ajustamento, função, norma, ritual, símbolo, são idéias conservadoras não apenas no sentido superficial de que cada uma delas tem como seu referencial um aspecto da sociedade plenamente interessado na manutenção ou na conservação da ordem, mas no importante sentido de que todas essas palavras são partes integrantes da história intelectual do conservadorismo europeu.

Pouco antes da Revolução Francesa, a Revolução Industrial “explodiu”

(HOBSBAWN, 2012, p. 58) na Inglaterra e depois para grande parte do mundo ocidental, por

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volta da década de 1780, resultado de um processo que se iniciou muito antes do século

XVIII. A partir dela, o modo de produção das sociedades humanas e a vida social dos homens

sofreram enormes transformações voltadas, sobretudo, para a produção incessante de

mercadorias e para o lucro a partir da exploração do trabalho. O agravamento dos problemas

sociais foi uma característica marcante do período da Revolução Industrial, na medida em que

a miséria se tornava mais evidente e o descontentamento popular, com a degradação da vida

humana gerada pelas novas condições de trabalho, acentuava-se. Expressão disso foram os

movimentos sociais de trabalhadores da indústria, os movimentos cartistas na Grã-Bretanha e

as revoluções sociais que surgiram nesse momento histórico.

No caso particular da Inglaterra, havia um esforço para diminuir os custos da

produção de algodão e as classes manufatureiras não hesitavam em comprimir cada vez mais

os salários dos trabalhadores. Os empresários capitalistas investiam na construção de

ferrovias, o que facilitava o transporte do carvão (principal fonte de energia e combustível

nesse período), além da comunicação entre os países europeus e destes com o mundo.

Inovações tecnológicas, a partir do século XVIII, foram essenciais para atender a demanda

por alimentos que crescia a cada dia por conta do aumento da população urbana nos países

europeus. Na direção contrária desse crescimento, a população agrícola diminuía, assim como

a mão-de-obra necessária para o cultivo dos alimentos. Nesse sentido, a aplicação de métodos

racionais específicos para otimizar a produção agrícola e atender a todos os cidadãos se fazia

muito necessária, de modo que tal metodologia foi colocada em prática na Grã-Bretanha.

Durante esse processo, os pequenos produtores e os trabalhadores pobres eram incentivados e,

muitas vezes, forçados a migrar para o trabalho industrial, fase do capitalismo que Marx

(1975) denominou de acumulação primitiva4.

4 Para Marx, há uma acumulação original que não é a acumulação capitalista, trata-se do seu ponto de partida: “A chamada acumulação original nada é, portanto, senão o processo histórico de divórcio de produtor e meios de produção. Ele aparece como “original” porque forma a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde”. Marx continua explicando que: “O produtor imediato, o trabalhador, só podia dispor da sua pessoa a partir do momento em que deixara de estar preso à gleba e de ser servo e vassalo de uma outra pessoa. Para se tornar vendedor livre de força de trabalho, o qual leva a sua mercadoria a toda a parte em que ela encontra um mercado, ele tinha além disso de ter escapado ao domínio das corporações, às suas ordenações sobre aprendizes e oficiais e aos preceitos de trabalho inibitivos. Com isto surge o movimento histórico que transforma os produtores em operários assalariados, por um lado como a libertação destes da servidão e da coacção das corporações; e só este lado existe para os nossos historiógrafos burgueses. Mas por outro lado estes recém-libertos só se tornam vendedores de si mesmos depois de lhes serem roubados todos os seus meios de produção e todas as garantias da sua existência proporcionadas pelas velhas instituições feudais. E a história desta sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com caracteres de sangue e fogo” (MARX, 1975, p. 851).

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No entanto, após conseguir a mão-de-obra suficiente para o trabalho da indústria,

outro desafio estava posto: o de habilitar esses homens à função de operários5. Um dos

grandes desafios nessa capacitação era adaptá-los ao novo ritmo de trabalho que era muito

diferente das atividades no campo. Para os padrões da época, a industrialização na Grã-

Bretanha era um fenômeno impressionante e, ao mesmo tempo assustador, na medida em que

as cidades das províncias se transformaram com a presença das indústrias e com o

agravamento das condições de vida dos trabalhadores pobres. Contudo, essa revolução

industrial culminaria na transformação do mundo dali em diante (HOBSBAWN, 2012).

Enquanto a Grã-Bretanha propagou no mundo ocidental a revolução econômica, a

França introduziu ideias, princípios e diretrizes que, até hoje, constituem as bases da política

no mundo. O século XVIII foi um palco repleto de revoluções democráticas que

reivindicavam, dentre outras coisas, a queda dos regimes monárquicos e seus respectivos

sistemas econômicos, a Revolução Francesa caracterizou-se por ter sido um desses

movimentos que mais fortemente repercutiu sobre os outros países. Para além da iniciativa de

um partido em especial ou de líderes individuais, a Revolução Francesa foi um amplo

movimento composto por burgueses, os quais aspiravam por um sistema constitucional que

garantisse as liberdades civis e o lucro privado.

Essa proposta transformou-se em uma revolução quando o povo, desesperado com a

crise socioeconômica que a França enfrentava, levantou-se contra as regalias da nobreza e os

meios de opressão dos grupos então dominantes. O levante popular resultou na destruição dos

privilégios feudais (mesmo que apenas oficialmente) e na aprovação da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789.

Como era de se prever, a classe média temerosa das consequências sociais dessa

insurreição, afastou-se cada vez mais dos ideais revolucionários com tendências ao

conservadorismo. Todavia, um segmento da classe média liberal, os jacobinos, dispuseram-se

5 Para isso, a legislação teve papel importante na punição das pessoas que foram expulsas do campo e não haviam conseguido um posto de trabalho na indústria: “Eduardo VI.- Uma lei do primeiro ano de seu governo, 1547, estabelece que, se alguém se recusa a trabalhar, será condenado como escravo da pessoa que o tenha denunciado como vadio. O dono deve alimentar seu escravo com pão e água, bebidas fracas e restos de carne, conforme achar conveniente. Tem o direito de forçá-lo a executar qualquer trabalho, por mais repugnante que seja, flagelando-o e pondo-o a ferros. Se o escravo desaparecer por duas semanas, será condenado à escravatura por toda a vida e será marcado a ferro, na testa e nas costas, com a letra S; se escapa pela terceira vez será enforcado como traidor. O dono pode vendê-lo, legá-lo, alugá-lo, como qualquer bem móvel ou gado. Se o escravo tentar qualquer coisa contra seu senhor, será também enforcado. Os juízes de paz quando informados, devem providenciar a busca dos velhacos. Se se verifica que um vagabundo está vadiando há 3 dias, será ele levado à sua terra natal, marcado com ferro em brasa no peito com a inicial V e lá posto a trabalhar a ferros na rua ou em outros serviços” (MARX, 1975, p. 852).

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a continuar com a Revolução Francesa, momento em que esta assumiu sua forma mais

radical. Em 1792, a monarquia na França foi derrubada e instalou-se a República em seu

lugar, com a contribuição armada dos “sansculottes” (grupo de artesãos, trabalhadores,

pequenos proprietários revolucionários) em Paris. O partido girondino, que compunha a

maioria dos governantes, na Convenção Nacional da França, foi destituído em 1793 e

substituído pela república jacobina. Os revolucionários a enxergaram como “a república do

povo” (HOBSBAWN, 2012, p. 120) e os conservadores como a ditadura mais sanguinária de

todos os tempos. Uma nova Constituição foi proclamada dando direitos ao povo de votar, de

se manifestar publicamente, de ser respaldado pelo Estado em suas necessidades de cidadania:

Foi a primeira Constituição genuinamente democrática proclamada por um Estado moderno. Mais concretamente, os jacobinos aboliram sem indenização todos os direitos feudais remanescentes, aumentaram as oportunidades para o pequeno comprador adquirir as terras confiscadas dos emigrantes e- alguns meses mais tarde- aboliram a escravidão nas colônias francesas, a fim de estimular os negros de São Domingos a lutarem pela República com os ingleses. Estas medidas obtiveram os mais amplos resultados. Na América, ajudaram a criar o primeiro grande líder revolucionário independente, Toussaint-Louverture (HOBSBAWN, 2012, p. 121-122).

Em 1794, partidários da esquerda e da direita foram executados na guilhotina, entre

eles, muitos revolucionários da Comuna de Paris. Segundo Hobsbawn (2012), a partir daí,

todos os outros regimes na França foram uma tentativa de evitar uma nova república jacobina

ou a de restauração do velho regime.

As batalhas travadas entre as classes, no período do século XVIII, particularmente,

durante o processo revolucionário francês, enfrentaram os seus maiores desafios no campo

das ideias, conforme afirma Netto (2011a). Os representantes da antiga nobreza feudal,

sobretudo, protestavam contra uma nova forma de compreender o mundo que partia da

centralidade nos homens enquanto agentes construtores e transformadores de tudo o que

existia, inclusive das condições sob as quais se estabeleciam as relações humanas em todas as

suas esferas.

Ideias que são fruto do Movimento Iluminista6 causaram um choque muito grande

nas pessoas e desmistificaram uma noção do mundo que, até então, estava baseada em

6 A partir dos séculos XVII e XVIII, a Europa vive o Movimento Iluminista que confere novo status à razão e à verdade, as quais passam a se basear na observação e na lógica dos fatos. Assim como nas ciências físicas, os filósofos pretendiam descobrir “leis naturais” para a vida social e cultural. Eles estudaram as instituições políticas, religiosas, sociais e morais, de modo que as submeteram a uma árdua crítica, sob o ponto de vista da razão, reivindicando a sua transformação pois entendiam que os valores e as instituições tradicionais eram

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princípios religiosos que orientavam o pensamento e os modos de vida. Além disso, o

progresso científico, que se materializava através das manufaturas, de invenções tecnológicas

e que favoreciam mais e mais o desenvolvimento das indústrias e da urbanização, legitimava e

convencia os mais descrentes que “novos mundos” abriam-se diante dos seus olhos.

Dentre as respostas hostis, no campo teórico, dos grupos reacionários às mudanças

introduzidas pelas Revoluções Industrial e Francesa, às quais acabamos de nos referir,

tomemos como exemplo a obra “Reflections on the Revolution in France” (Reflexões sobre a

Revolução em França), escrita pelo filósofo político Edmund Burke, em 1790, na Inglaterra.

A sua publicação teve grande influência em vários países da Europa e tornou-se um marco

histórico que explicita a ascensão do pensamento conservador, em seu período “clássico”,

como trata Netto (2011a).

Esse teórico era contrário às mudanças introduzidas pela Revolução na França, como

a democracia e a participação popular nas decisões políticas, os direitos individuais, o

racionalismo e, como não poderia deixar de ser, a própria revolução. Nisbet (1987) afirma que

os grupos aristocráticos feudais daquele tempo inspiraram-se na obra de Burke e de outros

intelectuais da linha conservadora, tais como de Bonald, de Maistre, Lamennais, dentre

outros, para defender a autonomia dos povos e das cidades provincianas históricas da Europa

Ocidental, com suas culturas, tradições, folclore e dialetos, além de preservar as instituições

tradicionais daquela ordem social mas, acima de tudo, com vistas a manter o status

econômico, político e social dessa classe (NISBET, 1987).

Na referida obra de Burke (1790), podemos encontrar ataques explícitos ao sistema

político democrático na França e a fiel defesa ao regime monárquico que fora destituído pelos

revolucionários no século XVIII, a preocupação com os ideais de liberdade se dava em torno

dos efeitos indesejáveis que estes poderiam gerar sobre o poder público, os bons costumes e a

moral, além disso, o teórico enaltecia os princípios religiosos cristãos e fazia apologia à

estrutura desigual de classes. De acordo com o pensamento de Burke, a Assembléia da França

não tinha legitimidade para tomar decisões políticas, pois a violência com que sucedeu a sua

implantação não justificava a sua existência enquanto autoridade apta a deliberar pela maioria.

Para ele, o rei e a rainha não podiam ser questionados em sua autoridade divina, de modo que

os homens comuns tinham a obrigação de serem leais a essa forma de regime político. Em seu

irracionais. O Movimento Iluminista tinha um objetivo muito claro: romper com as estruturas sociais, econômicas e políticas do feudalismo (BAUM, 1992).

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livro, o autor assim expressa a sua revolta contra o desaparecimento do cavalheirismo7 na

sociedade:

Quando estiver extinto das mentes dos homens o velho espírito feudal da Lealdade, que, ao liberar os reis do medo, liberou, ao mesmo tempo, os reis e seus súditos das precauções contra a tirania, os complôs e assassinatos serão evitados pela morte preventiva e pela confiscação preventiva, e pela aplicação daquela longa lista de máximas sinistras e sanguinárias que formam o código político do poder, o qual não repousa em sua própria honra, nem na honra daqueles que devem obedecê-lo. Os reis serão tiranos pela política quando os súditos se tornarem rebeldes por princípio (BURKE, 1982, p. 102).

Em suas reflexões sobre o governo democrático francês, Burke considera ainda que

os riscos de opressão por parte de um grupo majoritário sobre uma minoria de pessoas são

mais perigosos do que qualquer sistema da monarquia. Ele faz a seguinte afirmação:

Estou certo, entretanto, que em uma democracia, a maioria dos cidadãos é capaz de exercer, sobre a minoria, a mais cruel das opressões, todas as vezes que ocorram, o que pode ocorrer freqüentemente, grandes divisões. Acredito, também, que essa dominação exercida sobre a minoria, se estenderá sobre um número maior de indivíduos e será conduzida com muito mais severidade do que, de modo geral, poderia ser esperado da dominação de uma só coroa (BURKE, 1982, p. 135-136).

O teórico reconhecia, como direitos fundamentais dos homens, todos aqueles que não

chegassem a prejudicar os demais indivíduos e que fossem resultado de suas próprias

conquistas de forma justa, mérito pessoal. Para ele,

O Governo é uma invenção da sabedoria humana para atender às necessidades humanas. Os homens têm o direito a que essas necessidades lhes sejam satisfeitas por meio daquela sabedoria. Conta-se, entre elas, na sociedade civil, a necessidade de que se exerça suficiente constrangimento sobre as paixões. A sociedade exige não apenas que as paixões dos indivíduos sejam dominadas, mas também que, mesmo na massa e no conjunto bem como nos indivíduos, as inclinações dos homens sejam freqüentemente contrariadas, sua vontade controlada, e suas paixões reprimidas. Isso apenas pode ser obtido através de um poder independente dos indivíduos; e, no exercício de suas funções, não sujeitos à vontade e às paixões, as quais, pelo contrário, eles têm o dever de restringir e subjugar. Nesse sentido, os direitos dos homens compreendem tanto suas liberdades quanto as restrições que lhes são impostas. Contudo, como as liberdades e as restrições variam conforme os tempos e as circunstâncias e admitem infinitas modificações, elas não podem ser fixadas mediante o estabelecimento de algum princípio abstrato; e torna-se absolutamente leviano discuti-las tendo por base tal princípio (BURKE, 1982, p. 89).

7 Para Burke, o espírito de cavalheirismo era um “[...] sistema misto de opinião e de sentimento que teve sua origem na antiga nobreza; [...] Sem recorrer à força e sem encontrar oposição, subjugou a arrogância do orgulho e do poder; obrigou soberanos a submeterem-se à macia corrente da estima social; compeliu a autoridade rígida a sujeitar-se à elegância, e levou um tirano que se colocava acima das leis a ceder às boas maneiras” (BURKE, 1982, p. 100-101).

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Destaca-se que a obra citada expressa a materialização dos principais elementos

característicos do pensamento conservador, a começar pela negação dos valores democráticos

e revolucionários do século XVIII, pois se argumentava que estes ameaçavam a ordem natural

das coisas. Isso quer dizer que, por um lado, a substituição do decadente regime feudal por um

novo sistema econômico era aceitável para o grupo dos conservadores, na medida em que os

anseios projetados no desenvolvimento capitalista prometiam lucro e acumulação de riquezas

para estes; por outro lado, o medo que esse futuro incerto lhes causava no âmbito

sociocultural, de ideias, valores e modos de vida que, em geral, apontavam para um sentido

humano emancipatório (depois de 1830, esse conteúdo irá mudar), causava terror nesses

contrarrevolucionários (NETTO, 2011a).

De acordo com Nisbet (1987), os escritos conservadores do século XIX na Europa

evidenciam algumas perspectivas comuns: “das massas”, “da alienação”, “do poder”, que

apelavam para a necessidade de controlar a população, caracterizada por eles como grupos

atomizados e que eram compostos por indivíduos inseguros, frustrados e que necessitavam de

uma autoridade centralizada que pudesse orientá-los num quadro de intensas mudanças.

Segundo o autor, o conservadorismo em sua origem estava enraizado no combate a

ideias e “problemas” do mundo moderno, como a desordem e a desintegração social e as suas

repercussões foram mais expressivas em estudos de teóricos da sociologia moderna, durante o

século XIX, do que na época do seu surgimento. Ao invés de possibilidades de emancipação

dos sujeitos e sua libertação criativa, os conservadores viam nos novos padrões de liberdade e

no racionalismo perigos a que os homens estavam sujeitos na construção de suas

individualidades, no desapego a instituições tradicionais e religiosas, etc. Ele destaca ainda

algumas ideias conservadoras a respeito da sociedade e do homem, são elas de natureza

orgânica da sociedade; da primazia da sociedade e suas instituições em detrimento dos

indivíduos; da valorização de membros da sociedade que representam os papéis de mães, pais,

filhos, trabalhadores, patrões, padres, entre outros, e da desvalorização dos sujeitos

individuais. O teórico destaca ainda como idéia conservadora a noção de que elementos como

a crença, os hábitos, as instituições devem estar relacionados para o funcionamento de uma

sociedade coerente; assim como de que o provimento de mecanismos de satisfação das

necessidades básicas dos sujeitos não deve ser tratado como direito natural fictício; a ideia de

que toda pessoa, costume ou instituição tem uma função social; do reconhecimento da

importância dos pequenos grupos sociais que são as fontes da moralidade, da ordem social e

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da segurança individual; da preocupação com a desorganização social relacionada com a

moral e da “desarticulação histórica da interdependência legítima das funções e do poder na

sociedade” (NISBET, 1987, p. 69); da valorização do sagrado e irracional (insuficiência da

racionalidade); da hierarquia e do status; do princípio da legitimidade da autoridade quando

proveniente dos costumes e tradições de um povo (NISBET, 1987).

Contudo, Netto (2011a) afirma que o interesse de Robert A. Nisbet (1913-1996) pelo

pensamento conservador como objeto de investigação decorre de dois traços particulares da

sua obra: a constatação de que há uma “relação genética” entre o conservadorismo e a

sociologia e o seu próprio posicionamento também conservador. Nisbet apreciava um modelo

de comunidade pluralista que, para ele, “é a construção ideal daqueles pensadores ‘que

resistiram ao apelo do Único, do Um [...] e descobriram que não é só a realidade, mas a

liberdade, a justiça e a equidade se encontram no pluralismo’” (NISBET, 1982 apud NETTO,

2011a, p. 101). Sobre a obra de Nisbet, também são observados apontamentos que o autor faz

sobre semelhanças entre o conservadorismo e o socialismo, na medida em que ambos,

segundo ele, se opõem à ordem social estabelecida. Além disso, as proposições gerais

conservadoras sobre o homem e a sociedade que foram elencadas por ele retomam a noção de

que o pensamento conservador é um estilo de pensamento que se dirige contra as ideias do

Iluminismo (NETTO, 2011a).

O “conservadorismo clássico” (NETTO, 2011a) foi então analisado por vários

estudiosos, pois influenciou fortemente a política e as teorias sociais desde a sua origem até a

contemporaneidade. O pensamento conservador vem se reconfigurando, em diferentes

períodos históricos, mas o seu conteúdo essencial de preservação da ordem social dominante e

de luta contra qualquer forma de transformação social em favor da classe trabalhadora

permanece vivo em nossa sociedade.

De acordo com Hobsbawn (2012), entre as décadas de 1830 e 1840, as ideias

emancipatórias construídas a partir do movimento revolucionário francês, em 1789, foram

reavivadas nas mentes e nas ações dos trabalhadores pobres da Europa Ocidental, com

repercussões em outros países. O mundo vivenciava transformações de grande impacto no

modo de vida da população, a quantidade de pessoas crescia vertiginosamente, ao mesmo

tempo em que os espaços ocupados e explorados pelos seres humanos na Terra também se

ampliavam, a ciência e o conhecimento avançavam a cada dia e os industriais deslumbravam

novas possibilidades de ampliar os seus lucros. Invenções importantes como a eletricidade, as

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ferrovias, o telégrafo, entre outras, transformavam hábitos e formas de viver, assim como nos

conduziam mais intensamente ao universo do capitalismo.

A organização revolucionária do proletariado nesse período foi estimulada por uma

realidade que se contrapunha a todo o progresso capitalista: a exacerbação do processo de

pauperização dos trabalhadores. O esforço físico e a capacidade laboral exigidos pelos donos

das indústrias faziam os trabalhadores adoecerem e, até mesmo, diminuíam

consideravelmente as estimativas de vida dessa parcela da população. Além disso, a riqueza

gerada na produção industrial, não somente sob a forma de dinheiro e meios de produção, mas

também na forma de conhecimentos, ciência, cultura, artes, não alcançavam o proletariado

pobre que vivia em condições subumanas de existência, em muitos aspectos, inferiores ao

modo de vida feudal.

Engels (2010), ao descrever com detalhes A situação da classe trabalhadora na

Inglaterra8, mostra a perversidade das condições em que os trabalhadores pobres

sobreviviam. Por meio de sua obra, podemos observar que era quase insuportável resistir aos

esforços descomunais do trabalho que a indústria demandava naquela época e ainda se manter

vivo no lado mais sombrio desse mundo em evolução, ou seja, o lado daqueles que dedicavam

toda a sua vida ao trabalho (ou não trabalho, quando a oferta de emprego não era suficiente a

todos que dele necessitavam). O teórico cita uma descrição detalhada dos bairros londrinos

feita por um inspetor do governo, J. C. Symons, sobre a situação dos tecelões manuais

naquele país, o que nos auxilia a visualizar o nível de pauperização da classe trabalhadora

nesse período do capitalismo, durante o século XIX:

Vi aqui e no continente a miséria em alguns dos seus piores aspectos, mas antes de ter visitado os wynds de Glasgow não acreditava que tantos crimes, miséria e doenças pudessem existir em qualquer país civilizado. Nos albergues de categoria inferior dormem, no mesmo chão, dez, doze, e por vezes vinte pessoas dos dois sexos e de todas as idades, numa nudez mais ou menos total. Estes alojamentos estão normalmente tão sujos, úmidos e arruinados que ninguém alojaria, neles, o seu cavalo (ENGELS, 2010, p. 81).

Para o autor, o seguinte problema estava colocado:

[...] o que farão esses milhões de despossuídos que consomem hoje o que ganharam ontem, cujas invenções e trabalho fizeram a grandeza da Inglaterra, que a cada dia se tornaram mais conscientes de sua força e exigem cada vez mais energicamente a participação nas vantagens que proporcionam às instituições sociais?

8 Título do livro que Engels escreveu em 1845.

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E este era um debate que estava em pauta nos espaços parlamentares da Inglaterra,

no século XIX, e que resultou na criação de várias leis para atender as necessidades de pobres

e trabalhadores daquele período9. Apesar disso, a classe industrial não se preocupava

suficientemente com essa questão social, a ponto de se surpreender com a dimensão que esta

assumiu posteriormente (ENGELS, 2010).

É certo que as condições de pobreza descritas por Engels não eram uma novidade no

mundo humano, mas o grau e a intensidade com que tais condições foram se desenvolvendo

no mundo capitalista eram muito maiores e desastrosos do que em tempos anteriores. De

acordo com Marx (1975), uma das contradições que constitui essa realidade é o alto grau de

empobrecimento dos trabalhadores em face do alto nível de desenvolvimento das forças

produtivas que a sociedade alcançara. O progresso e as conquistas nos âmbitos cultural,

intelectual, tecnológico, dentre outras, não justificavam a existência de tanta miséria. Porém,

esse movimento é parte do processo de acumulação capitalista. A lógica da acumulação

capitalista pode ser explicada por meio da mais-valia que (em breve explicação feita por nós)

está contida na produção excedente transformada em capital, portanto, uma estratégia que os

empregadores utilizam para obter lucro. Inicialmente, os empresários investem o seu capital

em meios de produção e contratação dos empregados, ao vender suas mercadorias, eles

vendem também a produção excedente gerando a mais-valia em sua forma primitiva. O valor

desse excedente é transformado novamente em capital e reinvestido na compra de materiais,

meios de produção e força de trabalho, gerando uma nova mais-valia em um processo

contínuo. Para Marx (1975), a mais-valia se transforma em capital porque o excedente

produzido contém elementos materiais para a criação de um novo capital. Dessa maneira, a

escala de produção capitalista vai se ampliando por meio da capitalização da mais-valia,

oriunda do trabalho não pago e isso gera a acumulação de riquezas, explica Marx (1975). A

força de trabalho é um componente essencial para o processo de acumulação, de modo que ela

deve estar sempre disponível às variações de expansão do capital e, ao se transformar em uma

9 Ao citar a sessão parlamentar de 1844, na Inglaterra, Engels faz as seguintes observações: “A legislação sobre os pobres- Poor Law (chamada também de “Lei dos Pobres”)- surgiu em 1601, em 19 de dezembro, pelas mãos da rainha Elizabeth ou Isabel I (1533-1603), formulada sobre quatro princípios: a) a obrigação do socorro aos necessitados; b) a assistência pelo trabalho; c) o imposto cobrado para o socorro aos pobres; e d) a responsabilidade das paróquias pela assistência de socorros e de trabalho; em 1834, sofreu notável reformulação por meio da chamada “nova lei dos pobres” (de fato, editou-se não uma New Poor Law [Nova Lei dos Pobres], mas um Poor Law Amendment Act [Ato de Alteração da Lei dos Pobres]), adequando-a a exigências burguesas, com forte repressão sobre os pobres considerados aptos para o trabalho- recorde-se que, desde 1697, já existiam na Inglaterra as temidas workhouses (casas de trabalho); também em 1834 criou-se a Royal Commission on the Poor Law (Comissão Real para a Lei dos Pobres)” (ENGELS, 2010, p. 61).

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superpopulação relativa10, regula também a lei da oferta e da procura no mercado, conforme

o autor expõe

Quanto maiores a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia de seu crescimento e conseqüentemente a magnitude absoluta do proletariado e da força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce portanto com as potências da riqueza, mas, quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista (MARX, 1975, p. 747).

Sendo o capitalismo “um sistema que se baseia na exploração do trabalho e na

apropriação privada da riqueza socialmente produzida, deixando aos trabalhadores a venda da

força de trabalho como possibilidade única de obter sua reprodução física e espiritual”

(MARANHÃO, 2010), uma enorme massa de trabalhadores tornou-se refém do movimento

de reprodução do capital e sujeita às intempéries do desemprego e do pauperismo. Contudo,

esses mesmos trabalhadores se rebelaram e continuam se rebelando contra as más condições

de vida e de trabalho geradas pelo modo de produção capitalista. A Revolução de 1848 foi um

momento muito importante na história que expressou a organização de trabalhadores, em

várias partes do mundo, contra a consolidação do sistema capitalista.

Segundo Netto (2001), a Revolução de 1848 foi um “divisor de águas” também no

que se refere à compreensão da questão social no campo da teoria social moderna. Questão

Social é um termo utilizado entre estudiosos do Serviço Social e por alguns autores das

Ciências Sociais para expressar a relação conflituosa entre o capital e o trabalho, ou seja, entre

10 De acordo com Marx (1975, p. 731): “Sendo a procura de trabalho determinada não pela magnitude do capital global, mas pela magnitude de sua parte variável, ela cai progressivamente com o aumento do capital global, ao invés de crescer proporcionalmente com ele, conforme supomos anteriormente. Diminui em relação à grandeza do capital global e em progressão acelerada quando essa grandeza aumenta. Com o aumento do capital global cresce também sua parte variável, ou a força de trabalho que nele se incorpora, mas em proporção cada vez menor. Reduzem-se os intervalos em que a acumulação resulta da ampliação da produção sem alterar-se a base técnica. É necessário que a acumulação do capital global seja acelerada em progressão crescente para absorver um número adicional determinado de trabalhadores ou mesmo, em virtude da constante metamorfose do capital velho, para continuar ocupando os trabalhadores que se encontram empregados. Demais, essa acumulação crescente e a própria centralização causam novas mudanças na composição do capital ou nova redução acelerada de sua parte variável em relação à constante. Essa redução relativa da parte variável do capital, acelerada com o aumento do capital global, e que é mais rápida do que este aumento, assume, por outro lado, a aparência de um crescimento absoluto da população trabalhadora muito mais rápido que o do capital variável ou dos meios de ocupação dessa população. Mas, a verdade é que a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora supérflua relativamente, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo, excedente”.

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os detentores do capital e dos meios de produção e os trabalhadores que vendem a sua força

de trabalho para sobreviver. Quando as diferenças entre essas duas classes se acentuaram (e

isto se deu na fase do capitalismo), a disputa de interesses entre elas se tornou mais latente, de

modo que os trabalhadores se organizaram para reivindicar direitos sociais e melhores

condições de vida e trabalho. De acordo com Netto (2001), a compreensão teórica sobre a

verdadeira gênese, a constituição e os processos de reprodução da questão social foi alcançada

primeiramente por Marx, mais especificamente, em 1867, com o seu amadurecimento

intelectual expresso na obra “O Capital”. Apesar de não ter feito uso dessa expressão, a

questão social está no âmago das análises de Marx sobre a sociedade burguesa e a relação

entre capital e trabalho, relação geradora do processo de exploração e de uma sociabilidade

que aprofunda as desigualdades sociais, fazendo emergir movimentos sócio-políticos de

contestação do pauperismo. Foi a tradição teórica marxista que nos possibilitou compreender

a questão social como indissociável do desenvolvimento capitalista, portanto, insuprimível

sem a extinção desse modelo econômico. Porém, no período pós-1848, essa expressão passou

a ser utilizada por teóricos sociais conservadores, indistintamente:

Posta em primeiro lugar, com o caráter de urgência, a manutenção e a defesa da ordem burguesa, a “questão social” perde paulatinamente sua estrutura histórica determinada e é crescentemente naturalizada, tanto no âmbito do pensamento conservador laico quanto no do confessional (que, aliás, tardou até mesmo a reconhecê-la como pertinente). Entre os pensadores laicos, as manifestações imediatas da “questão social” (forte desigualdade, desemprego, fome, doenças, penúria, desamparo frente a conjunturas econômicas adversas etc.) são vistas como o desdobramento, na sociedade moderna (leia-se burguesa), de características inelimináveis de toda e qualquer ordem social, que podem, no máximo, ser objeto de uma intervenção política limitada (preferencialmente com suporte “científico”), capaz de amenizá-las e reduzi-las através de um ideário reformista (aqui, o exemplo mais típico é oferecido por Durkheim e sua escola sociológica). No caso do pensamento conservador confessional, se reconhece a gravitação da “questão social” e se apela para medidas sócio-políticas para diminuir os seus gravames, insiste em que somente sua exacerbação contraria a vontade divina (é emblemática, aqui, a lição de Leão XIII, de 1891) (NETTO, 2001, p. 43-44).

O autor citado chama a atenção para o fato de que tanto a corrente de pensamento

laico, como a confessional, apontam para soluções da questão social baseadas na educação

moral dos homens e da sociedade em geral, ou seja, medidas reformistas de “conscientização”

individual, ações que visam à inserção dos sujeitos a uma nova sociedade, o ajustamento

dessas pessoas ao modo de vida capitalista, a recristianização das famílias, a mistificação da

questão social, são propostas por esses grupos conservadores na tentativa de desmobilizar a

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classe trabalhadora na luta contra o modo de produção e as relações sociais capitalistas, seja

em seu processo de consolidação vivenciado no século XIX, seja nos dias atuais em que este

alcançou o seu ápice.

Vejamos então, muito sucintamente, o que foi a Revolução de 1848, momento

crucial na história do capitalismo que gerou mudanças no desenvolvimento das teorias sociais.

Na verdade, foram várias revoluções que ocorreram nesse período, em diversos países

europeus, tais como a França, a Confederação Alemã, parte do Império austríaco e da Itália,

com “respingos” em outras localidades desse continente e fora dele também, como foi o caso

da revolta em Pernambuco, no Brasil, e da insurreição na Colômbia, no caso desta última,

ocorrida poucos anos mais tarde do fim desse período revolucionário. Apesar das diferenças

regionais no que diz respeito a território, cultura, estrutura política e econômica; a população

desses países se identificava com um anseio comum a todas elas, ou seja, o de construir uma

república democrática que fosse orientada por princípios construídos a partir da Revolução

Francesa. As monarquias eram predominantes em todas essas nações e a classe média

ascendente, representada principalmente pela burguesia, somava os seus interesses políticos e

econômicos à revolta dos trabalhadores que protestavam contra as suas péssimas condições de

vida.

Por mais inusitado que possa parecer, o que unia esses dois polos contrários,

burguesia e proletariado, no século XIX, era o reconhecimento da necessidade de uma

revolução social. Os motivos que os levavam a esse posicionamento eram muito diferentes,

como não poderia deixar de ser: no primeiro caso, os homens da burguesia buscavam derrubar

os regimes monárquicos que ainda existiam e, juntamente com eles, acabar com os resquícios

do sistema feudal, da concentração de poder nas mãos de parte da nobreza aristocrata e do

setor agrário, a fim de garantir o seu lugar na sociedade e seguir com o seu projeto societário

capitalista e de manutenção e extensão do poder já conquistado. No segundo caso, isto é, do

outro lado desse campo de batalhas, estavam os trabalhadores sofrendo “na pele” as

conseqüências negativas do “lado obscuro” (HOBSBAWN, 2012, p. 467) de todo o

desenvolvimento e progresso vivenciados pela humanidade, o que lhes dava consciência e

força para lutar por uma nova sociedade, em nome de um sonho por uma vida melhor

(HOBSBAWN, 2012).

Foi nesse contexto que o pensamento conservador, antes contra-revolucionário,

reacionário a muitos princípios e mudanças propostas pela Revolução Industrial e Francesa,

no século XVIII, assumiu novos contornos. De certa maneira, os conservadores aceitaram

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esse rompimento com a velha estrutura da sociedade, que não tinha mais condições de se

manter diante dos rumos que a humanidade tomava, e assim se puseram ao lado da burguesia,

que se tornara conservadora, para a manutenção do seu poder e a luta contra o proletariado.

Tomando o cuidado de considerar as particularidades do Estado alemão11, os artigos de Marx

apresentam a análise da simulação de aliança da burguesia prussiana com o povo alemão,

publicados na Revista Nova Gazeta Renana, na Alemanha, em 1848, e elucidam bem este

acontecimento. Segundo o teórico, destituir o poder monárquico, naquele período, era

pressuposto para o erguimento da sociedade burguesa, já que o Estado Absolutista:

[...] tornara-se um entrave para a nova sociedade burguesa, com seu modo de produção modificado e suas necessidades alteradas. Era preciso que a burguesia reivindicasse sua parte no domínio político, desde logo pelos seus interesses materiais. Somente ela própria seria capaz de fazer valer legalmente suas necessidades industriais e comerciais. Tinha que tirar das mãos de uma burocracia ultrapassada, tão ignorante quanto arrogante, a administração de seus “interesses mais sagrados”. Tinha que reclamar para si o controle do tesouro do Estado, do qual se acreditava criadora. Depois de ter tomado da burocracia o monopólio da assim chamada educação, consciente de ser em muito superior a ela no conhecimento real das necessidades da sociedade burguesa, tinha também a ambição de conquistar uma posição política correspondente à sua posição social. Para alcançar seu fim tinha que poder debater livremente seus interesses, suas opiniões e os negócios do governo (MARX, 1989, p. 38-39).

Não havia outro caminho para depor o velho governo que não fosse a revolução. A

opção pela monarquia constitucional tornou-se favorável para a “inviolabilidade da Coroa”

(MARX, 1989, p. 41) e a derrota do povo, pois, ao contrário do que a população esperava, a

classe burguesa, quando ascendeu ao poder político na Alemanha, não rompeu

definitivamente com o antigo regime, mas sim com o povo que lhe confiou a representação

dos seus interesses que não foram satisfeitos. Segundo Marx (1989, p. 44-45) a burguesia

alemã: [...] estava disposta desde o início a trair o povo e ao compromisso com o representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma já pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma sociedade nova contra uma sociedade velha, mas interesses renovados no interior de uma sociedade envelhecida; ao leme da revolução não porque o povo está atrás dela, mas porque o povo a empurrava à sua frente; na ponta não porque representava a iniciativa de uma nova época social, mas o rancor de uma época social velha; não era um extrato

11 “A Alemanha foi o penúltimo país do continente europeu a constituir um Estado Nacional. Este país não viveu o processo da revolução burguesa e, por isso, se unificou tardiamente assim como se laicizou posteriormente também. A Igreja não estava ainda separada do Estado. Além disso, a nobreza alemã deteve, por muito tempo, o domínio do aparato burocrático e institucional” (Informação verbal. Aula expositiva da disciplina Fundamentos Filosóficos e questões de método nas ciências sociais, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, da PUC-SP, ministrada pelo prof. Dr. José Paulo Netto, no primeiro semestre de 2012).

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social do velho Estado que havia irrompido, mas tinha sido projetada por um terremoto à superfície do novo Estado; sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de idéias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando- sem energia em nenhum sentido, plagiária em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade- traficando com seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si mesma, sem fé no povo, sem missão histórico-mundial- um ancião maldito que se via condenado a dirigir e a desviar, em seu próprio interesse decrépito, as primeiras manifestações de juventude de um povo robusto- sem olhos! sem ouvidos! sem dentes! sem nada-; assim se encontrou a burguesia prussiana, depois da revolução de março, ao leme do Estado prussiano.

Além disso, outros grupos moderados liberais, os quais se colocaram ao lado da

revolução, abandonaram a luta e se contentaram com a vitória sobre a nobreza feudal e os

seus representantes políticos, ao se depararem com o furor das massas revoltosas prestes a

realizar transformações profundas na ordem social estabelecida. No entanto, há de se destacar

o conteúdo genuinamente radical e revolucionário desse período, já que a sua “frente de

batalha” era composta basicamente por trabalhadores pobres odientos contra os ricos e contra

a situação de miséria que eram obrigados a suportar (HOBSBAWN, 1977). Ao apreenderem e

vivenciarem esse momento particular na história da humanidade, Marx e Engels redigiram “O

Manifesto Comunista”, em 1848, documento construído a partir de debate coletivo na Liga

dos Comunistas, antiga Liga dos Justos, em Paris, o qual teve importância fundamental para a

revolução na Alemanha e em outros países, dada a repercussão do panfleto entre os

movimentos organizados de trabalhadores em todo o mundo. Neste documento, a Liga dos

Comunistas faz um chamamento aos proletários de todas as partes do mundo para se unirem

em face dos acontecimentos daquele período e a favor da revolução social. Após uma série de

medidas que foram elencadas por Marx e Engels para se alcançar a revolução comunista,

ambos escreveram que:

Quando, no curso do desenvolvimento, as diferenças de classe tiverem desaparecido e toda a produção tiver sido concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá o seu caráter político. O poder político, propriamente chamado, é, meramente, o poder organizado de uma classe para oprimir outra. Se o proletariado se eleva necessariamente à condição de classe dominante em sua luta contra a burguesia e, na condição de classe dominante, tira de cena as antigas relações de produção, então, com isto, ele tira também de cena a condição para a existência da oposição entre as classes e para a própria existência dessas classes. E acaba por abolir seu papel de classe dominante. No lugar da sociedade burguesa antiga, com suas classes e antagonismos de classe, teremos uma associação na qual o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos (MARX; ENGELS, 1998, p. 45).

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Contudo, as revoluções de 1848 “explodiram” quase que simultaneamente na França,

em fevereiro; no sudoeste alemão, Bavária, Berlim, Viena, Hungria, Milão e Itália, em março

deste mesmo ano. Nesse curto espaço de tempo, governos de reis e príncipes, em sua maioria,

foram derrubados instalando-se um novo cenário político mundial, que estava sendo

redesenhado por duas classes bem distintas: burguesia e proletariado. O grau de extensão e

repercussão que essas revoluções atingiram foi impressionante e determinante também para os

períodos históricos subsequentes, na medida em que a ameaça da revolução se tornou uma

realidade para as classes dominantes deste momento em diante. Todavia, o êxito dos governos

revolucionários duraria pouco e o seu sucesso não foi igual em todos os países, após pouco

mais de um ano, com exceção da França, as monarquias foram imediatamente reinstauradas,

em alguns casos, sob condições ainda mais severas e sob o jugo do pensamento conservador

predominantemente.

Uma das conquistas importantes desse período foi a “abolição da escravatura no

Império dos Habsburgos” (HOBSBAWN, 1977, p. 34), mas grande parte das reivindicações

dos movimentos revolucionários permaneceu no plano dos ideais, afora a ruptura com a

cultura política tradicional da monarquia e a maturação dos modelos democráticos de governo

que, gradualmente, substituiriam-na (HOBSBAWN, 1977). Sobre a reinstauração dos antigos

regimes, o historiador esclarece que:

De volta, os regimes conservadores restaurados estavam bem preparados para fazer concessões ao liberalismo econômico, legal e até cultural dos homens de negócios, desde que isto não significasse um recuo político. [...] os anos reacionários de 1850 viriam a ser, em termos econômicos, um período de sistemática liberalização. Em 1848-49, os moderados liberais fizeram então duas importantes descobertas na Europa ocidental: que revoluções eram perigosas e que algumas de suas mais substanciais exigências (especialmente nos assuntos econômicos) poderiam vir a ser atingidas sem elas. A burguesia cessara então de ser uma força revolucionária (HOBSBAWN, 1977, p. 40).

O período pós-1848 foi marcado por uma extraordinária expansão econômica até a

década de 1870, momento em que, de fato, o capitalismo triunfou e alguns países tornaram-se

economias industriais. O emprego cresceu na Europa e no resto do mundo, a migração do

campo para as cidades tornou-se frequente e as consequências políticas deste boom foram um

alívio para os governos que se instauraram com a revolução e um sentimento de fracasso para

os revolucionários. Os governos e os donos de indústrias comemoravam a vitória do

capitalismo ao mesmo tempo em que temiam uma nova revolução do proletariado

(HOBSBAWN, 1977).

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Foi nesse período que as teorias sociais e as propostas de enfrentamento à questão

social sofreram grande impacto, pois com o término da Revolução proletária, o pensamento

social e outras áreas da ciência se voltaram para a legitimação da ordem social capitalista e de

sua manutenção. Isto quer dizer que a teoria social já não questionava mais as teorias

econômicas. Nascia, assim, a sociologia fundada no pensamento conservador, “des-

economicizado”, que não abria mais espaço para pensar a exploração no campo científico.

Sobre as mudanças no Pensamento Social, Coutinho (2010, p. 28-29) compreende que:

[...] Em lugar do humanismo, surge ou um individualismo exacerbado que nega a sociabilidade do homem, ou a afirmação de que o homem é uma ‘coisa’, ambas as posições levando a uma negação do momento (relativamente) criador da práxis humana; em lugar do historicismo, surge uma pseudo-historicidade subjetivista e abstrata, ou uma apologia da positividade, ambas transformando a história real (o processo de surgimento do novo) em algo ‘superficial’ ou irracional; em lugar da razão dialética, que afirma a cognoscibilidade da essência contraditória do real, vemos o nascimento de um irracionalismo fundado na intuição arbitrária, ou um profundo agnosticismo decorrente da limitação da racionalidade às suas formas puramente intelectivas.

Ao reafirmar o pensamento marxiano, Goldmann (1993) explica que os fatores

econômicos sempre tiveram importância na história que se desenvolveu até os nossos dias.

Segundo ele (1993, p. 73):

[...] O homem é um ser vivo e consciente, situado no mundo ambiente de realidades econômicas, sociais e políticas, intelectuais, religiosas, etc. Sofre a ação global desse mundo e, por sua vez, reage sobre ele. É o que chamamos de uma relação dialética.

Porém, o que verificamos nesse período pós-48 é um completo afastamento da

ciência de categorias econômicas, filosóficas e históricas na explicação do mundo. Trata-se do

fenômeno da decadência ideológica, conforme denominou Lukács (1968), momento em que a

burguesia tornou-se conservadora e abandonou todas as conquistas no nível do conhecimento

que estavam voltadas para a compreensão do mundo, do homem e da sociedade a partir de

recursos teóricos como o humanismo, o historicismo e a dialética, construídos desde o

período do Renascimento e que foram bastante amadurecidos durante o período da

Modernidade com Hegel.

Coutinho (2010) explica que o abandono da essência do pensamento de Hegel foi um

processo que se desenvolveu no decorrer da década de 1840, a que ele se refere como um

“rompimento com a tradição progressista”. A tradição progressista, que começa a ser

construída com os pensadores renascentistas e atinge um grande amadurecimento com o

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pensamento filosófico de Hegel, caracteriza-se pela essência de categorias teóricas que são

essenciais para a compreensão do mundo e da sociedade em sua totalidade, quais sejam:

[...] o humanismo, a teoria de que o homem é um produto de sua própria atividade, de sua história coletiva; o historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter ontologicamente histórico da realidade, com a conseqüente defesa do progresso e do melhoramento da espécie humana; e, finalmente, a razão dialética, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade objetiva imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma da unidade dos contrários), e aquele das categorias capazes de apreender subjetivamente essa racionalidade objetiva, categorias estas que englobam, superando, as provenientes do ‘saber imediato’ (intuição) e do ‘entendimento’ (intelecto analítico) (COUTINHO, 2010, p. 28).

Segundo o autor, a teoria construída sob esse tripé de categorias analíticas foi

produto do caráter progressista do capitalismo que criava as condições necessárias para o

conhecimento objetivo da realidade. A burguesia foi a classe que melhor representou essa

tendência, até o momento em que esta conquistou o poder e passou a lutar contra os princípios

que ela mesma ajudou a construir. Os pensadores burgueses do início da era capitalista não se

limitavam a descobrir e refletir sobre o já existente, eles aprofundaram formas de pensamento

utópicas, sobre aquilo que poderia vir a ser e com isso, apontavam para as possibilidades de

uma sociedade emancipada. Nesse sentido, Coutinho (2010, p. 28-29) esclarece que a ruptura

com o pensamento de Hegel:

[...] representa não apenas uma ruptura no interior da filosofia burguesa, o abandono daquela trajetória, mas também a necessária decadência e empobrecimento daqueles pensadores que, depois de Hegel, deixam de lado mais ou menos inteiramente o seu conceito de razão. É ainda pelo mesmo motivo que o desenvolvimento crítico da tradição progressista, efetivado pelo marxismo, parte diretamente de Hegel e não de outro qualquer de seus predecessores ou sucessores. Assim, não é arbitrário afirmar que o rompimento com a tradição progressista pode ser considerado, imediatamente, como um rompimento com o pensamento de Hegel.

Ao analisar esse período de decadência ideológica, Lukács (1968) fez alguns

destaques no que se refere à literatura e sua relação com correntes sociais, políticas e

ideológicas desse período da década de 1840. O autor escreveu que a fuga da realidade é uma

constante nas obras literárias desse período que redirecionam o pensamento para o campo da

subjetividade e do misticismo sem considerar o processo sócio-histórico do qual os seres

humanos fazem parte. A economia vulgar também é analisada pelo teórico sob a perspectiva

de uma ciência que não ultrapassa a leitura superficial dos fenômenos, apostando também

numa solução equilibrada de acontecimentos que parecem equivocados, mas com

possibilidades de reparações. Segundo Lukács (1968), o período da decadência não é próprio

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da fase de ascensão da burguesia ao poder, ou seja, ele já existia no início da formação dessa

classe social, mas a divisão capitalista do trabalho que acentuou a separação entre trabalho

físico e espiritual, durante o processo de consolidação do sistema capitalista, desenvolveu

alterações ainda mais profundas nos modos de pensar a sociedade. Exemplo disso foi a

fragmentação da ciência em vários campos de especialização que não dialogam entre si. A

sociologia surgiu exatamente nesse período de decadência ideológica, portanto, este ramo

científico já nasce conservador, tendo por finalidade estudar a sociedade em si, nos seus fatos

mais particulares, sem relacioná-los com as outras esferas da vida e do conhecimento como a

política, a economia, a filosofia, entre outras. Essas tendências teóricas do período da

decadência ideológica pretendem suscitar em nós um afastamento, cada vez maior, do saber

universal construído pelos homens. Primeiramente, nos distanciamos do sentido real da vida;

depois, analisamos os fatos como coisas que independem da ação humana e, ainda

fragmentamos o pensamento, dificultando assim uma noção geral dos mecanismos e

processos que compõem aquilo que o autor denomina de “máquina capitalista” (LUKÁCS,

1968, p. 68).

Dessa forma, o conservadorismo do período pós-1848 diferencia-se do

conservadorismo do século XVIII em sua nova funcionalidade: este perde o seu caráter

antiburguês e se alia ao projeto societário da burguesia para combater a ameaça socialista.

Nesse momento, o pensamento conservador formou um campo da ciência que,

posteriormente, forneceu as bases estruturais para a criação da Sociologia. Segundo Netto

(2011a, p. 51-52), o pensamento conservador:

[...] tende tanto a estruturar-se como filosofia social quanto como conhecimento científico-social, seja sob a forma de ciência social, seja sob a forma de teoria política. Na filosofia social, o anticapitalismo romântico original do pensamento conservador se mesclará ao irracionalismo moderno, dando origem ao reacionarismo que sustentará a apologia indireta da ordem burguesa, exemplificado na obra de Nietzsche e de um Splenger (Lukács, 1968). Mas o irracionalismo não pode, aberta e expressamente, pretender uma ciência social- neste domínio, pela sua própria natureza, a destruição da razão (Lukács) tem seu lugar ocupado pela razão miserável (Coutinho), cuja primeira expressão acabada se encontra no positivismo cientificista da segunda metade do século XIX. É assim que o conservadorismo vai dar as mãos ao positivismo e, no pós-48, fundando as modernas ciências sociais, tornar-se-á um importante componente da cultura burguesa do período da decadência (Lukács).

Émile Durkheim (1858-1917) é o exemplo de um pensador desse período, de

extraordinária capacidade intelectual, que desenvolveu uma teoria social orientada pelo

pensamento conservador e que tinha como núcleo central: a moral. Ele batalhou pela

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institucionalização da Sociologia na academia francesa e elaborou a sua teoria social

influenciado pelo contexto sócio-histórico no qual viveu, durante a Terceira República da

França, período em que o país estava sob um governo extremamente reacionário, em meio às

pressões políticas de vários grupos da direita e da esquerda, da Igreja Católica e do

proletariado francês.

A teoria social de Durkheim, fortemente influenciada pela Sociologia fundada por

Comte, ainda na primeira metade do século XIX, buscava explicar as transformações sociais

vigentes naquele momento conservando o status quo em sua estrutura. O autor procurou

provar que a sociedade moderna caminhava para a sua desintegração, por isso, uma nova

moral era necessária para evitar a sua autodestruição. Durkheim entendia que a especificidade

do ser social estava na moral. Mas ele também sabia que, a moralização e a reforma da

sociedade não eram suficientes para resolver os problemas fundamentais da sociedade

capitalista, por isso, Durkheim entendia que a estratificação de classes era natural e sempre

existiria. Ele também tinha a preocupação de fazer um estudo científico sem fundar juízos de

valor, esforçando-se para chegar a uma imagem adequada dos fatos sociais. Esse método

(quase cartesiano para explicar a sociedade) levou-o a resultados superficiais e sob uma

perspectiva conservadora (GOLDMANN, 1993).

O conservadorismo durkheimiano estava também na sua concepção científica de que

há leis sociais fixas e imutáveis, assim como as leis da Natureza que regem os fenômenos

sociais. Assim, todas as ações sociais devem ser conduzidas pelo conhecimento sobre estas

leis, bem como pelo respeito a elas. O estilo positivista ou neopositivista pensa as relações

sociais como coisas. Sob esse ponto de vista, não há vínculos na relação entre sujeito e objeto

na pesquisa das Ciências Sociais, por isso, a objetividade nas pesquisas científicas nesse

campo deve se caracterizar também pela neutralidade. Esta era a base científica da Sociologia

para Durkheim que, apesar da sua impossibilidade de ser realizada na prática, mostra-se muito

adequada ao contexto sócio-histórico no qual vivemos, onde as relações são coisificadas e

burocratizadas num nível cada vez mais crescente. E é por esse motivo que as repercussões

desse tipo de teoria não se esgotam no século XIX e continuam presentes até os dias atuais.

Assim sendo, a obra de Durkheim expressa o amadurecimento do pensamento

conservador em suas novas configurações, marcando o fim de uma tendência otimista na

forma de conduzir essa corrente teórica, segundo NETTO (2011a). Ou seja, a partir da

Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Revolução de 1917, o pensamento conservador se

reestruturou a partir de um ceticismo levado ao extremo. Porém, essa é apenas uma das

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características que o conservadorismo contemporâneo foi incorporando ao longo dos anos e

dos acontecimentos históricos, esclarece a autora.

Com base no que foi exposto aqui, compreendemos o significado do

conservadorismo da seguinte maneira: trata-se de uma forma de pensamento que se traduz em

ações por meio da cultura, da ideologia, da política, da moral e de tantas outras vias. No

presente trabalho, procuramos pesquisar um pouco sobre o conjunto de idéias conservadoras

que influenciam as teorias sociais. E, apreendemos que o conservadorismo não é apenas uma

forma de apego ao passado a que todos nós estamos sujeitos enquanto seres sociais. Isto

porque essa forma de pensar e agir é datada historicamente, não surgiu por acaso e nem é

natural a todos os homens e mulheres. O conservadorismo nasceu com as classes dominantes,

no período de decadência do feudalismo e gênese do capitalismo, fazendo-se presente até os

dias atuais. Muitas foram as transformações sofridas pelo pensamento conservador (algumas

características foram mantidas, outras estão em constante modificação), mas a sua essência

está na defesa de uma dada ordem social e no combate a transformações profundas que

sustentam a sua estrutura.

Enquanto um conjunto de ideias políticas, sociais, econômicas, culturais que tenta

explicar o mundo, o conservadorismo expressa os objetivos da classe social que detém o

poder e luta para mantê-lo por meio de várias instâncias nas quais este ideário pode ser

disseminado: família, escola, igreja, meios de comunicação, mercado de trabalho,

universidades, Estado, dentre outras. No caso da ideologia conservadora, ela escamoteia a

realidade para que as pessoas apreendam o mundo à sua volta e a si próprios por meio de

fenômenos aparentes do real, sem qualquer relação com a história ou com o entendimento da

sociedade em que vivemos. As ideias que construímos sobre o mundo e as pessoas são

elaboradas a partir das relações sociais, das relações que os seres humanos estabelecem com a

natureza e das relações entre os próprios seres humanos. É preciso conhecer a essência dessas

relações para desmistificarmos a realidade em que vivemos no sentido da emancipação, de

modo que a ideologia conservadora caminha em sentido contrário a isso.

Na sociabilidade capitalista, ideias e representações do mundo são produzidas em um

contexto de divisão de classes sociais opostas: a classe dominante e a classe dominada.

Portanto, ao mesmo tempo em que a ideologia conservadora, assim como a ideologia liberal, a

ideologia cristã, entre tantas outras, tem o papel de ocultar o processo sócio-histórico da vida

em sociedade, há ideologias que podem desvelá-lo, como é o caso da ideologia comunista ou

socialista, baseada na ontologia do trabalho e na teoria social marxiana, por exemplo. Esta

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última perdeu e vem perdendo, cada vez mais, espaço junto à população em geral. Já a

ideologia conservadora vem adquirindo uma dimensão cada vez maior em vários países do

mundo e na sociedade brasileira, conforme veremos adiante.

2. Algumas facetas do conservadorismo no Brasil

No livro “História do Brasil” (1995), de Boris Fausto, o autor retrata um panorama

geral sobre o processo histórico brasileiro e os principais fatos que marcaram a formação da

sociedade brasileira. De modo que nos orientamos por esta obra para localizarmos os marcos

mais relevantes da história do nosso país e fazermos as conexões necessárias com o

pensamento conservador brasileiro.

Por um longo período de tempo, vivemos em um sistema colonial em que as nossas

terras e os povos indígenas que aqui habitavam, além dos negros traficados da África, foram

explorados por portugueses e, posteriormente, por outros povos europeus como os holandeses,

espanhóis e franceses, para que as economias em seus países se desenvolvessem. A expansão

marítima dos europeus para continentes longínquos e desconhecidos foi consequência de um

momento ímpar na história do capitalismo. Segundo Góes (2011, p. 23), a expansão comercial

iniciada no século XV pelos europeus colonizadores tinha por objetivo “abastecer o mercado

europeu e impulsionar o desenvolvimento do modo de produção capitalista”, de modo que as

demandas comerciais aumentaram expressivamente e o trabalho forçado foi a solução

encontrada pelos colonizadores para atendê-las e satisfazer os seus lucros. A expansão do

capital comercial e o processo de colonização impulsionados pelos europeus, ao longo dos

séculos XV e XVIII, foram etapas necessárias para a ampliação das manufaturas, das grandes

indústrias e para a formação de trabalhadores livres nos países dominantes. De acordo com o

autor:

O desdobramento do desenvolvimento do capital comercial possibilitou abrochar as condições estruturais para a consolidação do capitalismo verdadeiro, dinamizado com os resultados dos grandes empreendimentos marítimos, a partir da implantação do sistema colonial, isto é, do estabelecimento da colonização de novas terras e à formação de engenhos e fazendas, ocorria na Europa, em particular na Inglaterra, a acumulação primitiva. Neste país, se consolidou a intensificação da acumulação de capital comercial concatenada com a cisão do trabalhador e seus meios de produção, cujo resultado foi a formação do trabalhador livre. Nesta direção, foi o capital comercial, parafraseando Ianni (1988), que possibilitou a formação nas colônias no Novo Mundo, edificando intensa acumulação de capital nos países metropolitanos, sobretudo na Inglaterra. Devido a sua hegemonia comercial, este país pôde impor à Espanha, Portugal e outros países as medidas comerciais a fim de acelerar a

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acumulação primitiva em seu território, visto que sob o manto do mercantilismo os lucros eram exorbitantes. Mais ainda, o mercantilismo está dentro do processo de acumulação primitiva do capital e, nesta esteira, verificamos a relação entre metrópole (centro de decisão) e colônia (esta subordinada à primeira, mas que ao mesmo tempo é responsável pela dinamização das atividades à metrópole); completa-se, entrementes, ‘a conotação do sentido profundo da colonização: comercial e capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo da formação do capitalismo moderno’ (NOVAIS, 2005, p. 70 apud GÓES, 2011, p. 23-24).

Durante o período da colonização nas terras brasileiras, muitos índios e africanos

foram escravizados e mortos. Inicialmente, o Brasil Colônia foi depreciado pela Coroa

Portuguesa que tinha por objetivo principal chegar à Índia. Nesse período, o país foi utilizado

também como ponto de passagem e descanso pelos espanhóis que exploravam outras terras; e

foi ainda disputado pelos franceses. O Brasil colonial e seus habitantes viveram por,

aproximadamente, três séculos (desde a chegada dos portugueses no século XVI até meados

do século XIX), uma história sangrenta de exploração da sua gente e das suas riquezas

(FAUSTO, 1995).

O capital estrangeiro sempre teve um papel de destaque na economia brasileira,

desde a determinação de ciclos econômicos como os do açúcar, do algodão, do cacau, entre

outros produtos que foram cultivados aqui, pois se diferenciavam dos produtos das

metrópoles e, assim, evitavam a concorrência e geravam mais lucros para os mercantilistas;

até a criação de um vultoso déficit orçamentário que tornou o Brasil, desde os tempos

coloniais, dependente dos empréstimos internacionais (ASSUNÇÃO, 1999). O processo de

colonização significou para o nosso país a dependência econômica, mas, além disso, instituiu

o racismo e várias práticas discriminatórias contra as pessoas de várias etnias que aqui

residiam: os índios, negros e mestiços. Os racismo trazido com os europeus que atribuíam ao

povo daqui a qualidade de seres inferiores está muito vivo ainda nos dias de hoje e essa

herança do período colonial aprofunda a distância entre os ricos e pobres nesse país.

De acordo com Góes (2011), o racismo teve origem nesse período das grandes

navegações marítimas, entre os séculos XV e XVII, quando Portugal e Espanha foram

pioneiros nessa empreitada. Foi durante a invasão do então denominado Novo Mundo que as

discussões e produções “científicas” sobre civilizados/ incivilizados, seres superiores/seres

inferiores, seres com boa alma/ de almas perdidas foram travadas para classificar as

diferenças entre os povos europeus e não-europeus, com destaque para os africanos, momento

em que foram criados vários mitos e preconceitos acerca deste continente:

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O que se vislumbra, naquele momento, é a verificação se esses povos externos/ não-europeus tinham a qualidade e natureza de seres humanos e seriam capazes de assimilar a religião cristã e de exercer o trabalho almejado pelos colonizadores. Portugal, não teve propriamente essa preocupação, embora havia influência do cristianismo; a preocupação foi dar ânimo à sua economia interna e impulsionar o mercado europeu, assim, a perspectiva foi buscar mercadorias para satisfazer as necessidades daquele momento (GÓES, 2011, p. 20-21).

Durante esse processo de colonização, várias “teorias” foram criadas para justificar o

trabalho forçado e as atrocidades cometidas contra os povos colonizados e foram essas

argumentações que deram base para a concretização da ideologia do racismo, ideologia que

sofreu modificações, mas continua vigorando na atualidade (GÓES, 2011). O racismo é um

elemento muito presente na ideologia conservadora e que faz parte da herança do pensamento

conservador brasileiro, como veremos a seguir em alguns apontamentos a partir das análises

de Oliveira Vianna.

Após a invasão dos europeus na costa brasileira, as terras daqui foram divididas entre

os colonizadores, por meio das Capitanias hereditárias12. Estas renderam muitos impostos aos

portugueses e também deram origem à instalação de engenhos de açúcar e vastos latifúndios,

momento em que um fluxo imenso de africanos chegou ao Brasil e foi escravizado pelos

senhores de engenho, conforme explica Fausto (1995). A economia brasileira foi sendo

moldada de acordo com as necessidades e os interesses da metrópole portuguesa, após o

fracasso do sistema de governo das Capitanias hereditárias, instalou-se o Governo Geral e os

seus representantes locais administravam extensos pedaços de terra com o apoio dos jesuítas,

circunstância em que o Estado e a Igreja Católica foram se desenhando no Brasil. A

colonização no Brasil foi organizada, sobretudo, pelo Estado e pela Igreja Católica:

Ao Estado coube o papel fundamental de garantir a soberania portuguesa sobre a Colônia, dotá-la de uma administração, desenvolver uma política de povoamento, resolver problemas básicos, como o da mão-de-obra, estabelecer o tipo de relacionamento que deveria existir entre Metrópole e Colônia. Essa tarefa pressupunha o reconhecimento da autoridade do Estado por parte dos colonizadores que instalariam no Brasil, seja pela força, seja pela aceitação dessa autoridade, ou por ambas as coisas (FAUSTO, 1995, p. 60).

12 De acordo com Bueno (1999), as Capitanias hereditárias foram uma forma de divisão do Brasil feita pelos colonizadores portugueses na América para que estes dessem início à importação de seu projeto civilizatório (e exploratório) para o continente do Novo Mundo. Este modelo já havia sido testado em ilhas do Atlântico e até mesmo no próprio território português com a invasão dos mouros. Os extensos lotes no Brasil foram repassados para membros da pequena nobreza que fracassaram na sua administração. Por outro lado, este projeto de colonização deixou o seguinte legado: “A estrutura fundiária do futuro do país, a expansão da grande lavoura canavieira, a estrutura social excludente, o tráfico de escravos em larga escala, o massacre dos indígenas: tudo isso se incorporou à história do Brasil após o desembarque dos donatários” (BUENO, 1999, p. 13).

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Quanto ao papel da Igreja Católica nesse período:

Como tinha em suas mãos a educação das pessoas, o ‘controle das almas’ na vida diária, era um instrumento muito eficaz para veicular a idéia geral de obediência e, em especial, a de obediência ao poder do Estado. Mas o papel da Igreja não se limitava a isso. Ela estava presente na vida e na morte das pessoas, nos episódios decisivos do nascimento, casamento e morte. O ingresso na comunidade, o enquadramento nos padrões de uma vida decente, a partida sem pecado deste ‘vale de lágrimas’ dependiam de atos monopolizados pela Igreja: o batismo, a crisma, o casamento religioso, a confissão e a extrema-unção na hora da morte, o enterro em um cemitério designado pela significativa expressão ‘campo santo’ (FAUSTO, 1995, p. 60).

Enquanto o Estado no Brasil Colônia tratava de cuidar dos interesses econômicos da

Coroa Portuguesa; a Igreja Católica, por meio da ação dos jesuítas, ficou responsável por

educar as “almas perdidas” para um novo modo de vida e para a obediência ao Estado. Ambas

as instituições eram desconhecidas pelos indígenas e estes foram sendo moldados por elas,

que tinham a função, entre outras coisas, de controlar a vida naquela sociedade em formação.

Até o século XIX, o Brasil foi governado por um Estado Absolutista. O rei tinha

“poderes divinos” para comandar o território, a população e todo o patrimônio nacional.

Portanto, a noção de esfera pública não existia, já que tudo e todos estavam subordinados ao

poder real. Uma das particularidades do Estado Absolutista no Brasil era que este se dividia

entre as ordens da Metrópole portuguesa e as necessidades imediatas dos colonizadores que

estavam no país. Contudo, as relações entre Estado e a sociedade eram pouco solidificadas e,

ao longo da história, o Estado foi impondo um maior controle sobre a sociedade em geral

(FAUSTO, 1995). O autor chama a atenção para uma característica importante nessa relação:

a rede de alianças entre famílias das classes dominantes. Este foi um elemento que se

destacou na composição da máquina estatal, desde os tempos da monarquia no Brasil. Isto

porque os governantes eram escolhidos a partir da lealdade que dedicavam ao rei e também

porque muitos desses membros leais à Coroa Portuguesa provinham das elites em formação

no país. Quando não eram nomeados “governantes”, os membros dessas famílias recebiam

“benefícios” por parte da monarquia. Podemos perceber que a relação de hierarquia entre os

vários setores da sociedade brasileira foi muito frequente na nossa história, desde os tempos

da Colônia, de modo que os privilégios concedidos pela monarquia no Brasil não se

limitavam à fidalguia portuguesa que veio junto com a Corte para o país, mas se estendia

também aos demais setores dominantes da sociedade que fincavam raízes aqui para acumular

riquezas.

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Enquanto os escravos africanos passavam a compor a totalidade da mão-de-obra nos

engenhos, sofrendo as mais terríveis atrocidades nesse trabalho, os senhores de engenho

alcançaram grande poderio econômico, social e político na vida da Colônia formando uma

aristocracia aqui. Em meados do século XVIII, países da Europa Ocidental lutavam contra o

Antigo Regime e a favor da introdução de novas ideias como o racionalismo, o liberalismo e a

democracia, ideias que movimentaram a sociedade e os seus representantes políticos em

diversas ações revolucionárias que respondiam à realidade sócio-histórica de cada país, como

foi o caso da Guerra da Independência dos Estados Unidos, em 1776, e da Revolução

Francesa, em 1789. Todas essas transformações, incluindo os impactos da Revolução

Industrial nas relações econômicas do Brasil colônia com a Inglaterra e outros países,

redundaram no início de uma crise no sistema colonial do país. Revoltas de caráter regional

ocorreram no Brasil colonial, como por exemplo, a Inconfidência Mineira, em 1789, a

Conjuração dos Alfaiates, em 1798, e a Revolução de Pernambuco, em 1817, as quais

expressavam a mobilização de vários setores da sociedade brasileira em torno de interesses

distintos da Metrópole Portugal (FAUSTO, 1995). O autor afirma que:

Longe de constituir um grupo homogêneo, esses setores abrangiam desde grandes proprietários rurais, de um lado, até artesãos ou soldados mal pagos, de outro, passando pelos bacharéis e letrados. Também não tinham em comum exatamente a mesma ideologia. As ‘idéias francesas’ ou o liberalismo da revolução americana eram suas fontes inspiradoras. Mas os setores dominantes tratavam de limitá-las, sendo, por exemplo, muito prudentes no tocante ao tema da abolição da escravatura, que viria ferir seus interesses. Pelo contrário, para as camadas dominadas a idéia de independência vinha acompanhada de propósitos igualitários de reforma social (FAUSTO, 1995, p. 113-114).

Após vários movimentos insurrecionais pela independência do Brasil, conflitos

armados e medidas repressivas por parte da Coroa Portuguesa e do Exército, além dos

acontecimentos políticos e econômicos que movimentavam o cenário brasileiro, o país

tornou-se “independente” sob a regência de um governo imperial.

O que é importante destacar desse período colonial que marcou o pensamento

conservador brasileiro é a ideologia do colonialismo, assim denominada por Sodré (1965).

Trata-se do viés racista das análises sobre a formação do povo brasileiro e de subestimação

das massas no Brasil que estão presentes nas obras de vários teóricos brasileiros do início do

século XX, como por exemplo, no livro “Populações Meridionais do Brasil”, escrito em 1920,

por Francisco José de Oliveira Vianna. Figura emblemática da sociologia brasileira, Oliveira

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Vianna (1883-1951) foi professor, jurista, historiador e sociólogo. As suas obras tiveram

grande repercussão entre os intelectuais brasileiros e se destacaram pelas concepções

conservadoras sobre a formação da sociedade nacional que estão contidas nelas. Para Sodré

(1965), as suas idéias expressam uma ideologia do colonialismo muito influente no Brasil

deste período. Na pesquisa sobre a produção bibliográfica de Oliveira Viana, ele constatou

que nos levantamentos feitos pelo teórico sobre a formação da sociedade brasileira:

[...] o povo brasileiro, a massa da população, nada representou, e apenas ofereceu condições para que esses aristocratas do interior criassem o Brasil à sua imagem e semelhança. As tentativas para esconder o papel do povo em nossa história são muito mais perigosas e errôneas desde o advento de tais processos justamente porque, de um lado, aparentam erudição e método, e de outro lado, manifestam pelo povo uma simpatia distante, disfarçando a questão social profunda que se alicerça nos contrastes raciais, ou alimentando teses e idéias que parecem, à visão menos atenta, revisionistas e até ‘revolucionárias’. Essa demagogia pretensamente científica está muito longe de ter desaparecido, e a substituição de processos ou ‘métodos’ empregados pelo ensaísta fluminense por outros processos e ‘métodos’, que viriam a destruir os anteriores, não representa mais do que a ânsia em servir e a singular deformação da inteligência a que vamos assistindo, e que passa, em procissão de aplausos e de homenagens, como se, no fim de contas, isso fosse mesmo ciência e fosse mesmo verdade (SODRÉ, 1965, p. 171).

Neste trabalho, nos baseamos no livro “A Ideologia do Colonialismo”, de Nelson

Werneck Sodré, de 1965 e na Dissertação de Mestrado de Maria Dolores Prades, intitulada

“Ideologia e Política na obra de Oliveira Vianna”, de 1991, para fazermos apontamentos sobre

alguns pontos importantes da obra de Oliveira Vianna que evidenciam aspectos conservadores

da teoria por ele elaborada.

Em “Populações Meridionais do Brasil”, Oliveira Vianna estudou a história do povo

brasileiro dividindo-o entre os sertanejos (que povoaram a região norte do Brasil), os matutos

(da região centro-sul) e os gaúchos (da região do extremo-sul). Tal diferenciação se ancorou

em três elementos: o meio físico, a raça e as “pressões históricas e sociais” as quais essas

diferentes regiões sofreram durante a formação do nosso país. Em sua obra, o sociólogo deu

destaque à aristocracia brasileira enquanto uma classe superior constituída por pessoas de

espírito culto e nobre que se mostravam superiores até mesmo à nobreza da Metrópole:

Pela elevação dos sentimentos, paulistas ou pernambucanos, mostram-se muito superiores à nobreza da própria metrópole. Não são eles somente homens de cabedais, com hábitos de sociabilidade e de luxo; são também espíritos do melhor quilate intelectual e da melhor cultura. Ninguém os excede nos primores do bem falar e do bem escrever. Sente-se na sua linguagem ainda aquele raro sabor de vernaculidade, que na Península parecia já haver-se perdido. Pois é aqui, na colônia, segundo Bento Teixeira Pinto, que os filhos de Lisboa vêm aprender aqueles bons

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termos, que já lhes faltavam, e com os quais se fazem, no trato social, polidos e distintos (VIANNA apud SODRÉ, 1965, p. 174).

Sobre isso, Sodré (1965, p. 174) faz o seguinte comentário:

Lindo quadro, realmente- pena que falso e tristemente destoante, sob qualquer ponto de vista, do que se poderia esperar de um mínimo de informação, para não dizer de cultura individual. Quem acreditar em tais descrições tem o direito de deduzir que, no fim de contas, a colonização do Brasil não passou de uma grandíssima orgia.

Oliveira Vianna descrevia a fase inicial da colonização no Brasil como a “reprodução

da vida européia dos fins da Idade Média”, em um ambiente descrito como “um recanto da

corte européia transplantada para o meio da selvageria americana” (PRADES, 1991, p. 22).

Para o escritor, valores da Idade Média como, por exemplo, o cavalheirismo, estavam

presentes na época da Colônia no Brasil. Tais valores e características da sociedade colonial

nasceram com os atos de desbravamento dos homens que “descobriram” o Brasil; estes eram

figuras corajosas e fortes que portavam qualidades nobres. A aristocracia colonial no Brasil se

esforçava para superar as qualidades da aristocracia na Metrópole, a qual, segundo Vianna, já

não mais preservava valores nobres e puros do espírito lusitano (PRADES, 1991).

A mudança da nobreza colonial do litoral para o interior do Brasil foi explicada por

Vianna como uma “opção espiritual” que não estava relacionada somente a interesses

econômicos de exploração agrícola, mas a certo sentimento bucólico de viver em contato com

a natureza e cultivar uma posição social superior que somente a posse de terras e a vida no

latifúndio poderiam proporcionar a esses grupos. O sociólogo explica que certas tradições

familiares eram mais difíceis de serem cultivadas nos centros urbanos, o que seria

fundamental para a preservação de costumes. As pessoas que não pertenciam a esse grupo

aristocrático, para ele, faziam parte de uma “plebe rural” (composta por mestiços) que viviam

em condições amorais e maléficas para o desenvolvimento da personalidade humana. Para

Vianna, a “plebe rural” era produto de uma “mistura de sangues bárbaros” que o meio rural

proporcionava, mas que não chegava a atingir os membros da aristocracia rural pois, nestes,

as influências rurais eram positivas por força do próprio sangue. Sobre isso, o autor afirmou

que:

Nesse ponto, a organização da família fazendeira se distingue nitidamente da organização da família das classes inferiores, na plebe rural. Nesta, o princípio dominante da sua formação é a mancebia, a ligação transitória, a poliandria difusa- e essa particularidade de organização enfraquece e dissolve o poder do pater-famílias. Daí o ter nossa família plebéia, em contraste com a família fazendeira, uma estrutura

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instabilíssima. Dessa instabilidade, e dessa dissolução da autoridade paterna é que provêm a maior parte das falhas morais do baixo povo dos campos (VIANNA apud SODRÉ, 1965, p. 179).

Deste modo, além do elemento rural que legitimava o poder da aristocracia colonial

no Brasil, Vianna cita também a “raça pura” que atribuía superioridade a essa “grande

nobreza”. Para o autor, o grupo dos mestiços era dividido entre os mestiços superiores e os

mestiços inferiores. Os mestiços superiores se diferenciavam dos demais quando reconheciam

a sua raça originária e se submetiam à raça superior, a dos arianos que compunham a

aristocracia rural. Portanto, sob esse ponto de vista alimentado por Vianna, os mestiços só

conseguiam romper com a sua condição de inferioridade, no momento em que se

identificavam com os valores arianos e se subordinavam aos traços culturais e ideológicos das

classes superiores (PRADES, 1991). De acordo com a autora, sob esse ponto vista:

[...] é possível depreender que a superação da inferioridade da plebe depende, de um lado, do reconhecimento da superioridade do branco e, de outro, da disposição do mestiço de a ele se identificar. Nesta formulação reside- ao lado da perspectiva aristocrática- um dos nódulos centrais do discurso viannista, presente em toda a sua obra e decisivo para a posterior elaboração de sua proposta nacional: sua concepção racista (PRADES, 1991, p. 39).

No caso de Oliveira Vianna, esse tipo de ideologia com ênfase num viés racista foi

levado ao extremo. Porém, a ideologia do colonialismo que foi elaborada nesse período de

expansão colonialista européia, a partir do século XVI, e que se tornou uma forte expressão

do pensamento conservador brasileiro, pode ser assim definida:

[...] a convicção, inclusive revestindo-se de aparências científicas, de que há países naturalmente destinados a dirigir e países naturalmente destinados a subordinar-se aos primeiros. De forma esquemática, estes configuram uma estrutura de produção industrial ampla, e aqueles permanecem, e devem mesmo permanecer, como fornecedores de matérias-primas ou de produtos alimentícios que os primeiros, por condições ecológicas ou econômicas, não podem produzir ou não estão interessados em produzir. Dessa divisão natural que corresponde à divisão do trabalho no campo, especializando-se as zonas geográficas na produção de determinados bens de consumo- resulta o colonialismo. Do colonialismo, a sua ideologia” (SODRÉ, 1965, p. 12).

O autor explica então que esse tipo de ideologia promovia a aceitação da

subordinação econômica a outros países com base em elementos não materiais, como por

exemplo, a superioridade da raça, do clima, da situação geográfica em que se encontravam os

países colonialistas. Sodré (1965) destaca ainda que este foi um processo preparatório para o

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Imperialismo dos dias de hoje, com a cópia e adoção de modelos externos nos campos

político, cultural, econômico, em países como o Brasil, por exemplo.

Segundo o autor, as nações colonizadoras fortaleciam o seu poderio e as classes

dominantes que se beneficiavam desse processo de colonização também se fortificavam. Para

ele, as teorias utilizadas por Vianna (de superioridade da raça, do clima, da posição

geográfica) dificilmente são difundidas entre nós na atualidade, mas elas ressurgem sob novas

formas como, por exemplo, por meio de ideias e práticas de subordinação da economia

brasileira aos ditames do modelo econômico dos países desenvolvidos:

[...] parece perfeitamente claro que os pregadores da inferioridade brasileira quanto à possibilidade de explorarmos as nossas riquezas com os nossos próprios recursos e em nosso próprio benefício, os que acreditam e proclamam que só podemos nos desenvolver com a ‘ajuda’ estrangeira, os que confiam apenas nos capitais externos para fomentar o nosso progresso, são herdeiros diretos daqueles que pregavam a superioridade geográfica, da parte dos países dominantes. E a nossa conseqüente inferioridade (SODRÉ, 1965, p. 15-16).

De acordo com Prades (1991), o elemento negro e indígena sequer foi investigado

por Vianna, tamanho o seu pensamento racista. Para ele, estes não tiveram nenhuma

importância na formação da sociedade brasileira e da nacionalidade, ao contrário dos

portugueses que integravam a aristocracia colonial:

Sem nenhuma aproximação com o elemento ariano, o negro é simplesmente desconsiderado por Vianna, que faz da escravidão algo absolutamente natural na vida da Colônia. Com isto, o escravo deixa de ser problema e passa a ser uma extensão própria da desigualdade natural entre os homens. Daí a explicação de sua existência residir, não em qualquer tipo de relação explorador/explorado, mas na diferença étnica e moral entre raça superior e inferior (PRADES, 1991, p. 39-40).

O latifúndio também foi um elemento muito importante para a configuração da

sociedade brasileira, já que influenciou as relações sociais no Brasil deixando marcas até os

dias de hoje. Nesses espaços, havia uma concepção de família enquanto um espaço

privilegiado de desenvolvimento do caráter de pessoas moralmente superiores e que se

contrapunha ao ambiente das famílias da “plebe rural”, em que os seus integrantes

enfraqueciam o poder da tradição e dos bons costumes em função da imoralidade inerente a

esses seres inferiores. A concentração de terras em mãos desses grupos aristocráticos foi

justificada por Vianna e outros intelectuais que aderiram às suas idéias como uma forma de

proteger os seus membros das pequenas propriedades de trabalhadores livres e escravos. Para

Vianna, uma das consequências desse isolamento social no campo foi a formação de uma

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sociedade sem vínculos de solidariedade entre os seus membros, laços que, para ele, só

poderiam ser desenvolvidos através dos trabalhadores livres e não dos escravos, índios e

mestiços. Essa falta de solidariedade explica a formação de um povo sem capacidade para

exercer a sua cidadania, diferente do povo europeu, qualquer revolta ou revolução era

impraticável por parte de um povo que tinha como principal característica a submissão à

aristocracia rural, em troca de amparo e proteção. Os clãs característicos da vida no campo

também eram considerados muito importantes para a vida em sociedade no Brasil Colônia

porque, de acordo com Vianna, este era um meio de representação dos interesses dos

despossuídos. Em meio a tanta miséria entre as classes inferiores, a insuficiência de

instituições sociais e a incapacidade do povo em dirigir o seu destino, a figura de um chefe

para organizar e dirigir o cotidiano da vida rural fazia-se fundamental (PRADES, 1991). Em

síntese, Prades (1991, p. 52) explica que:

[...] podemos caracterizar esse processo de colonização pelo seu aspecto essencialmente rural, pois, é a partir da opção da aristocracia que se dão, como tivemos oportunidade de ver, os desdobramentos singulares da sociedade colonial. A vida no campo favorece a positividade originária do caráter nacional, ao mesmo tempo que a estrutura fundiária do latifúndio impede o desenvolvimento de laços de solidariedade. As conseqüências disso resultantes são, de um lado, a superioridade da nobreza aristocrática e, de outro, a subordinação dos setores populares ao seu comando.

Os grandes latifúndios que, depois abrigaram os engenhos de açúcar, criaram uma

sociabilidade e cultura muito particulares no Brasil, que se ancoravam, principalmente, na

relação escravo e senhor de engenho, fazendo com que grande parte da vida na colônia se

desenvolvesse em torno da figura e do poder político deste último. Assim, o trato opressivo

das classes dominantes com o povo brasileiro foi se configurando também como uma

extensão dessas relações de subordinação dos “mais fracos” (população nativa e pobre

considerada incapaz) com relação aos “mais fortes” (detentores do poder econômico e político

no país). De acordo com Ribeiro (1995), é interessante notar que as classes dominantes

incorporaram tão bem esse “papel senhorial” que podiam assumir dois “estilos” totalmente

diferentes: o da mais refinada educação e gentileza para com os seus pares e, por outro lado, a

mais pura crueldade e descaso com os seus subordinados.

De acordo com o pensamento conservador de Vianna, a psicologia política e social

do povo brasileiro estava embasada nas diferenças de meio e raça entre as pessoas, o que

constituiu o caráter da sociedade nacional. Sendo assim, foi no período colonial, sob forte

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influência da aristocracia rural, que foi construída a “alma nacional”, de modo que somente o

reencontro com essa história poderia resolver os problemas do Brasil. Além de não respeitar

os acontecimentos históricos reais em suas análises sobre a sociedade brasileira, o sociólogo

construiu uma visão romântica em torno dos “homens especiais” que construíram o país

(PRADES, 1991). A autora afirma ainda que:

Esta tendência analítica de privilegiamento do elemento branco aristocrático e de desqualificação e negação dos setores subalternos, configura a concepção aristocrática característica de Oliveira Vianna. Ponto de partida de toda elaboração posterior- tanto no que se refere à ‘crítica do estado’ como à formulação de sua proposta política-, é na recuperação dos traços originários da ‘nossa mentalidade coletiva’ que o autor fluminense vislumbra a possibilidade de solucionar, de uma perspectiva nacional, a crise do seu tempo (PRADES, 1991, p. 41).

D. Pedro I proclamou a “independência” do Brasil, em 1822, e, após alguns conflitos

militares em todo o país para a expulsão dos portugueses, o Brasil “independente” se

consolidou através da forma de governo imperial. Segundo Fausto (1995), éramos uma

monarquia em meio à solidificação de repúblicas em vários países. A primeira Constituição

brasileira nasceu em 1824, imposta pelo rei e pelo corpo burocrático da monarquia, nela não

havia nenhum dispositivo legal ao qual os escravos ou libertos pudessem recorrer. A

aplicação dos direitos individuais nela prevista ainda era muito distante das condições reais,

tendo em vista a realidade de grande parcela da população brasileira, que dependia dos

grandes proprietários rurais, era carente de qualquer instrução e vivia em um contexto de

intenso autoritarismo. Contudo, muitas rebeliões e revoltas, provocadas pela insatisfação com

o governo monárquico e a imposição da Constituição brasileira, ocorreram durante o século

XIX, principalmente na região nordeste do país. Estas foram incentivadas também por ideais

liberais e republicanos trazidos do exterior. Devido a uma série de fatores, entre eles, a

debilidade da política externa brasileira, as consequências da derrota do Brasil numa guerra

com Buenos Aires, em 1825; os acontecimentos na França que davam início à Monarquia de

Julho e suas repercussões no país; D. Pedro I foi obrigado a abdicar do seu trono no Brasil,

colocando em seu lugar o filho D. Pedro II, em 1831 (FAUSTO, 1995). De 1831 a 1840, o

Brasil foi regido por grupos políticos em nome do imperador que ainda era menor de idade.

Fausto (1995, p. 161) assim define este período:

O período regencial foi um dos mais agitados da história política do país e também um dos mais importantes. Naqueles anos, esteve em jogo a unidade territorial do Brasil, e o centro do debate político foi dominado pelos temas da centralização ou

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descentralização do poder, do grau de autonomia das províncias e da organização das Forças Armadas.

Rebeliões populares ocorreram em várias províncias e surgiram dois partidos

imperiais: o “Conservador” e o “Liberal”, que apontavam para a consolidação de algumas

tendências políticas de grande expressão no país. Em 1840, D. Pedro II ascendeu ao trono do

Império brasileiro e, sob a regência da corrente conservadora, medidas de regresso foram

implantadas a partir desse período como, por exemplo, a centralização dos aparelhos

administrativos e judiciários. Em meados de 1847, foi se desenhando no Brasil um misto de

governo imperial, regido por meio do Poder Moderador em conjunto com o Conselho de

Ministros que se assemelhava ao parlamentarismo, mas não o era exatamente. Esse tipo de

governo favorecia o revezamento entre os Partidos Liberal e Conservador, de tempos em

tempos.

Durante as primeiras décadas do século XIX, o café começou a ser produzido no

Brasil, em larga escala no Vale do Rio Paraíba, entre o Rio de Janeiro e São Paulo,

empregando em larga escala a força de trabalho escrava. A ocupação e exploração das terras

para plantação de café se deram de forma desordenada, mais uma vez com base na “lei do

mais forte”, o que privilegiou as pessoas detentoras de maior poder na região para a

legalização das posses (FAUSTO, 1995). O complexo cafeeiro fez da região Centro-Sul o

maior polo econômico do país:

Em função do café, aparelharam-se portos, criaram-se empregos e novos mecanismos de crédito, revolucionaram-se os transportes. Isso não ocorreu da noite para o dia. Houve um processo relativamente longo de decadência do Nordeste e de fortalecimento do Centro-Sul, que se tornou irreversível por volta de 1870 (FAUSTO, 1995, p. 190).

O tratado, de 1826, que determinava ilegal o tráfico de escravos no Brasil, começou a

ter alguma (pouca) eficácia somente a partir de 1830, sendo que a abolição da escravatura

apenas ocorreu em 1888. A economia cafeeira do Oeste Paulista deu origem à burguesia

cafeeira nas últimas décadas do século XIX, assim como o ingresso de imigrantes cresceu

enormemente para substituir a mão-de-obra escrava que diminuía com a abolição. As elites

brasileiras não aceitavam o fim da escravidão e resistiram até o último momento, quando o

Estado brasileiro cedeu às pressões da Inglaterra para findar o comércio de escravos. O

preconceito da burguesia cafeeira com relação aos escravos e ex-escravos ainda vigorava

fortemente, a ponto de ter sido dada preferência à vinda de estrangeiros ao Brasil para o

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trabalho nas zonas cafeeiras. No entanto, as condições de trabalho aqui eram tão ruins e

precárias que também foi preciso certo esforço por parte do governo e de grandes

proprietários brasileiros para manter os imigrantes aqui, fato que ocorreu com alguns italianos

(FAUSTO, 1995).

Na análise conservadora de Vianna sobre a evolução histórica do Brasil, o período

imperial correspondeu à formação das bases legais do Estado nacional. Então, ele se propôs a

pensar não mais as origens da psicologia do povo brasileiro, e sim as origens das instituições

políticas nacionais. O escritor fez isso com base na problemática centralização/

descentralização da autoridade pública, como expõe Prades (1991). Para ele, a organização da

sociedade brasileira em clãs, durante a Colônia, gerou a ausência de poder centralizado no

país- certa “anarquia”. Contudo, Vianna fez questão de pontuar a não responsabilidade dos

políticos coloniais por esse processo, já que estes não fizeram mais que demonstrar respeito

pela evolução histórica nacional.

De acordo com a análise de Oliveira Vianna, as elites políticas brasileiras mudaram o

rumo desse cenário quando o Ato Adicional foi aprovado, em 1840, visando à centralização

política. Como não poderia ser diferente, Vianna compreendia que as elites políticas,

descendentes da aristocracia colonial, eram (ao lado do monarca) as responsáveis pela

construção do Estado nacional, tendo em vista a sua superioridade, se comparadas com outros

setores sociais. Para o autor, somente um Estado forte e centralizado poderia garantir a

unidade e as bases da nacionalidade, remediando assim o problema da falta de consciência

coletiva no Brasil e assegurando a manutenção da autoridade, da disciplina nos territórios

brasileiros que precisavam continuar unidos (PRADES, 1991).

Prades (1991) informa ainda que, de acordo com o pensamento viannista, a ilusão do

ideário liberal pôs fim ao sistema monárquico no Brasil. Para ele, tratava-se de “idéias

exóticas” importadas de países europeus e dos Estados Unidos, as quais não condiziam com a

realidade nacional e, por isso, estavam fadadas ao fracasso, pois o povo brasileiro, portador de

uma psicologia política muito peculiar à sua história, não seria capaz de colocar em prática

idéias como a liberdade, a democracia, a participação política, entre outras.

Vianna enfatiza ainda que o movimento pela abolição da escravatura foi motivador

do ingresso de idéias liberais no país, o que era negativo na sua compreensão. Vianna era

contra a abolição da escravatura e acreditava que os destinos da monarquia foram colocados

em risco quando a realeza passou a “simpatizar” com a idéia abolicionista, uma vez que,

segundo ele, disso sucedeu o rompimento de alianças entre os escravocratas e a monarquia.

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O autor de “Populações Meridionais do Brasil” condenava os políticos liberais por

propagarem ideias que desconsideravam as “leis da evolução social” e não passavam de uma

fé em ideias completamente distantes da realidade. Ele criticava o programa de 1870

(manifesto divulgado pelo Partido Republicando do Rio de Janeiro, o qual repudiava o regime

monárquico e defendia ideais republicanos como a soberania do povo, o progresso, a

liberdade individual, etc.) que, para ele, era um exemplo de imaturidade: “vago programa de

aspirações vagas, formulado em frases vagas: os ‘imortais princípios’, ‘o regime da opinião’,

a ‘soberania do povo’, a ‘organização federativa’, ‘o princípio da liberdade’, a ‘democracia’, a

‘república’” (VIANNA apud PRADES, 1991, p. 76).

As idéias republicanas se configuraram no Brasil desde o final do século XVIII e o

Movimento Republicano nasceu em 1870, no Rio de Janeiro. Este era constituído,

principalmente, por profissionais liberais e jornalistas que defendiam a implantação de uma

República com maior representação política dos cidadãos, direitos e garantias individuais

previstos em lei, mas nem todos os grupos defendiam o fim da escravidão, como foi o caso do

Partido Republicano Paulista (PRP), um partido conservador composto basicamente por

pessoas da burguesia cafeeira que enfatizavam a luta pela federação no Brasil, mas eram a

favor do trabalho escravo. Nesse mesmo período, as relações entre a Igreja e o Estado

começaram a se afrouxar porque, dentre outras coisas, o Vaticano se colocava contra o

liberalismo que pregava a laicização das instituições e do Estado (FAUSTO, 1995).

Os militares brasileiros tinham muitas críticas ao governo Imperial referentes a

questões internas da corporação e outras que envolviam a situação geral do país, como

decorrência disso, as ideias republicanas também influenciaram este setor. Sob fortes

influências do positivismo e sua proposição de ditadura republicana como forma de governo,

os militares brasileiros foram construindo suas propostas políticas para o Brasil até que, em

1889, após muitos desentendimentos entre o governo e os militares do Exército, estes, sob o

comando de Marechal Deodoro, proclamaram a República no Brasil e a família real partiu

exilada (FAUSTO, 1995). Segundo o autor, após a Proclamação da República, o clima entre

os vários grupos que disputavam o poder no Brasil (representantes da burguesia cafeeira,

políticos do PRP, políticos gaúchos, militares do Exército e Marinha) era tenso, pois os

interesses em disputa eram bastante diversos. Contudo, entre todas as divergências, o governo

republicano caminhou para a instauração da “Ordem e Progresso” no país, visando à adoção

de um Poder Executivo forte (evitando a fragmentação do Brasil) e a execução de um amplo

projeto de modernização. Em 1891, foi criada a primeira Constituição Republicana no Brasil e

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muitas inovações foram introduzidas na nova legislação, tais como a consagração de uma

República Federativa Liberal (assim como nos Estados Unidos); novas atribuições às

províncias e à União; a constituição dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; o sistema

presidencialista de governo e de voto direto e universal; entre outras (FAUSTO, 1995).

É perceptível que a monarquia e a aristocracia brasileiras tinham um medo tão

grande da desordem social e da mobilização das massas revoltadas, que a República demorou

a se concretizar enquanto sistema de governo no país e, quando houve a sua proclamação (em

meio a muitos conflitos), isto foi feito com muita cautela, sob o lema da “Ordem e Progresso”

e de forma autoritária para evitar o descontrole num território de imensas proporções como é

o Brasil.

De acordo com Fausto (1995), o primeiro ano da República no Brasil foi marcado

por um grande movimento de especulação financeira, gerado pelo aumento da emissão de

moeda e pela expansão do crédito. Logo em seguida, vieram a crise e a queda dos militares no

poder, além de revoltas a favor e contra o sistema de governo republicano, como foi o caso da

Guerra de Canudos, em 1896. Neste período, a elite cafeeira paulista governou o país através

de Prudente de Morais e outros representantes paulistas que o sucederam. Havia então uma

forte aliança entre o governo e as classes dominantes dos Estados brasileiros, o que permitia a

estabilidade política interna e configurava-se numa “manipulação da representação popular”

que, conforme explica o autor, foi a denominada República das oligarquias ou República do

“café-com-leite”. O coronelismo foi um fenômeno muito presente na Primeira República,

quando os chefes políticos locais (em sua maioria, grandes proprietários rurais que foram

coronéis da antiga Guarda Nacional) trocavam votos em troca de favores. Isto é, as pessoas

que moravam nos arredores dos territórios dominados por coronéis votavam em candidatos

indicados por eles como forma de terem acesso a empregos, serviços públicos, doações

materiais. Em troca, os coronéis se beneficiavam com mais recursos financeiros, alianças

políticas que lhes eram convenientes, entre outros privilégios. Na região Nordeste do Brasil, o

coronelismo tomou outra magnitude mais alarmante.

A política do “café-com-leite” no Brasil representou o revezamento de governantes

paulistas e mineiros na presidência do país, ou seja, o sistema produtivo nacional estava

centrado em um único produto destinado à exportação, o café, e o poder político do país se

concentrava nas mãos dessa elite cafeeira. Novos atores sociais surgiram no cenário político

como o Movimento Operário (mesmo que, em um número ainda muito pequeno, mas não

insignificante) e os donos de indústrias, entre outros. A Igreja Católica continuava sofrendo

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com a inserção das ideias republicanas no modo de vida da sociedade e no contexto político

do país (FAUSTO, 1983).

Nesse período, muitos imigrantes chegavam ao Brasil, de modo que esta corrente

imigratória se prolongou até meados da década de 1930. A burguesia cafeeira e os imigrantes

tiveram importante papel na implantação das primeiras indústrias, sobretudo em São Paulo, e

de muitos serviços urbanos básicos como, por exemplo, o transporte e a energia elétrica,

foram financiados com capital estrangeiro. O movimento operário nas cidades surgiu da

diversificação das atividades dos trabalhadores e do crescimento urbano, sendo que as greves

tiveram alguma repercussão no contexto nacional, mas os trabalhadores que aderiam a elas ou

se sindicalizavam sofriam perseguições por parte dos industriais. O movimento operário

reivindicava o aumento dos salários, limitação da jornada de trabalho, direito à sindicalização,

entre outras coisas, e o anarco-sindicalismo13 foi uma forma de organização sindical que

ganhou espaço entre os operários paulistas. A influência anarquista entre os brasileiros foi

muito difusa, já que os operários se dividiam entre aqueles que lutavam por reivindicações

mais imediatas e os adeptos dessa corrente que almejavam uma grande ação revolucionária, o

movimento era pouco organizado e havia um forte aparato repressivo por parte do governo e

dos industriais. Até a década de 1920, as relações de trabalho no Brasil não eram reguladas

por uma legislação trabalhista, o que gerava muitos abusos dos patrões com relação aos seus

empregados, estes não tinham direito a férias, as mulheres operárias não tinham direito à

licença maternidade, crianças e mulheres sofriam em maior grau com a exploração do

trabalho. A partir desse período, o Estado passou a intervir nas relações de trabalho e

regulamentar leis trabalhistas (FAUSTO, 1995).

Sobre o período republicano no Brasil, Vianna o caracteriza como um momento na

história nacional em que os políticos e as elites republicanas se valeram de um “idealismo

utópico” para vencer o Império e implantar a República. Segundo o sociólogo, nem mesmo os

republicanos que lutaram em favor dela, tinham a exata dimensão das mudanças que estavam

por vir ou maturidade suficiente para lidar com elas. Ele insistiu no argumento de que esses

13 “A evolução fundamental do anarquismo brasileiro surgiu após a controvérsia sobre autoridade e organização. A quintessência do anarquismo opõe-se dogmaticamente a qualquer estrutura. Consideram-na uma repressão à liberdade, herança do autoritarismo burguês. O anarcossindicalismo representa uma fissura nesse dogma, pois preceitua que o primeiro interesse do trabalhador é o pão, e não a teoria revolucionária. Portanto o sindicato é o meio mais eficaz para a propagação dos ideais revolucionários, pois seu objetivo é a melhoria dos salários e das condições de trabalho. Asseguram que, ao lutar por melhores condições, ‘o trabalhador absorve mais facilmente a propaganda anarquista, conseguindo uma compreensão cada vez mais clara sobre a origem de seus problemas. E fica moral e materialmente preparado para conhecer a conclusão lógica do movimento sindicalista: a expropriação revolucionária da terra e de todos os meios de produção” (MARAM, 1979, p. 23).

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homens não respeitaram a “singularidade histórica nacional” e tentaram transplantar ideias

alheias e impossíveis de serem concretizadas na realidade brasileira. Se essas ideias não

tinham como fonte de inspiração o povo desse país, o modelo liberal não era adequado ao

Brasil (PRADES, 1991). Para Viana, os idealistas utópicos

[...] seriam os que ‘imaginando uma constituição para um povo novo ainda em formação, cujas classes sociais, mesmo as mais elevadas, não tiveram tempo histórico para adquirir sequer uma mediana educação política, compusessem um aparelhamento constitucional, majestoso e moderníssimo, mas cujo perfeito funcionamento só seria possível numa sociedade cujas classes dirigentes e dirigidas, em virtude das condições particulares da sua formação histórica, fossem dotadas de uma alta educação cívica e política’ (VIANA apud PRADES, 1991, p. 88-89).

Os traços conservadores do pensamento social de Vianna ficam evidentes por meio

de sua recorrente apelação para o caráter e para a psicologia política dos indivíduos

brasileiros, para a singularidade dos sujeitos enquanto elementos justificadores do existente,

ou seja, as características do povo brasileiro deveriam ser respeitadas e qualquer mudança

nessa “evolução natural” da sociedade em questão poderia trazer muitos prejuízos ao país.

Sobre a análise viannista do governo republicano no Brasil, Prades (1991, p. 89) considera

que:

Dito de outro modo, o papel do indivíduo na história, limitar-se-ia aqui a ratificar a evolução, tal como ela se processa de acordo com as especificidades de cada povo. O passado, portanto, se transforma no referencial maior que fornece os elementos necessários para respeitar e obedecer a realidade de acordo com suas limitações e traços característicos. Donde a positividade ou negatividade de um ideário político ser o resultado do maior ou menor grau de adequação à realidade social a que se destina, cujo conhecimento objetivo só é possível quando parametrado pelo norteamento do passado e pela ação disciplinadora do presente. O universo da ação política, nesse sentido, se restringe à aceitação do presente enquanto algo dado, cuja evolução e desdobramentos independem da atividade humana. Essa sujeição, esse respeito pelo ‘real’, que desautoriza toda e qualquer ação criativa dos homens, pressupõe um sentido próprio da história. Ou em outros termos, a regência natural, a que as evoluções sociais estariam subordinadas, reduz a ação dos indivíduos à mera observação e captação das possíveis tendências da evolução.

Para ele, essa busca das elites nacionais pela importação de modelos políticos

estrangeiros estava relacionada com a educação da primeira geração de políticos no Brasil que

teria sofrido grande influência das disciplinas e produção de conhecimento vindas do exterior,

dos movimentos democráticos que eclodiam na Europa e do processo de Independência que

se deu nos Estados Unidos. Para Vianna, os políticos conservadores também estariam sujeitos

a esse “idealismo político”, mas enquanto “espíritos superiores” agiam em conformidade com

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o sentido da construção nacional e, por isso, não poderiam ser confundidos com os

republicanos. Os conservadores, segundo o autor, fundavam suas propostas numa “visão

prática e realista” da sociedade. Vianna era contrário à instalação do regime republicano e, na

sua compreensão, este sistema estava fadado ao fracasso desde o começo:

Fadada ao fracasso, comprometida desde as suas origens, a República vai se constituir num dos maiores erros políticos da história nacional, uma vez que não apenas interrompe o processo de centralização do poder característico do Império, como concorre para o aprofundamento dos traços imaturos do caráter nacional, ao mesmo tempo que provoca o esfacelamento dos velhos quadros partidários. Em suma, a opção republicana contribui para desviar a evolução nacional da direção que um país com as características do Brasil- de povo em formação- teria de seguir. Disto resulta um atraso no processo de construção da nacionalidade, haja visto o não amadurecimento da consciência do povo brasileiro (PRADES, 1991, p. 93).

Quando o sistema republicano fracassou no Brasil, Vianna reconheceu que um dos

motivos causadores desse insucesso foi a crise econômica gerada pela abolição da

escravatura; ele falava também da não penetração de idéias republicanas em uma classe social

coesa como a elite imperial, único grupo capaz de levar adiante mudanças sociais tão

significativas; do despreparo e da incapacidade do povo brasileiro (gerado tempos atrás pela

inexistência de solidariedade de classe) para o exercício da democracia; da existência de uma

única fonte de opinião pública: a dos partidos políticos que estavam subordinados aos

interesses dos chefes locais das províncias brasileiras (PRADES, 1991). Sobre isso, Prades

(1991, p. 104) conclui que:

[...] através da condenação da República, o autor fluminense condena indiretamente toda e qualquer tentativa de promover o ideário democrático-liberal na realidade nacional. Defensor da inadequação do liberalismo, a República se transforma no maior exemplo desse fracasso e dessa impossibilidade histórica. Ponto de chegada do esforço viannista de revisão historiográfica, é na República que se concentram e articulam o conjunto de características da ‘singularidade’ histórica nacional. Tudo porque, em realidade, é a perspectiva aristocrática que fornece a angulação da leitura da história do autor fluminense, sintonizada no sentido de explicar as razões da crise do seu tempo.

Prades (1991, p. 105) expõe que, para a saída dessa crise, Vianna propôs uma

“regeneração da nossa alma” por meio da “recuperação das velhas virtudes morais, a exemplo

dos grandes homens do Império, oriundas da tradição rural da sociedade nacional”. Sem fazer

mais críticas ao meio urbano, Vianna viu na modernização a possibilidade de conciliar os

bons costumes e a positividade do mundo rural com as tendências de urbanização que vinham

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chegando ao Brasil e foi, com base nisso, que ele construiu um projeto nacional14 que

repercutiu de maneira considerável na década de 1920.

Após a cisão entre as principais elites oligárquicas que comandavam o país, chegou

ao fim a Primeira República no Brasil. Em 1929, o então presidente da República,

Washington Luís, enfrentou imensas dificuldades por causa da crise mundial financeira15 que

assolava vários países, inclusive, o Brasil e o seu principal produto de exportação: o café.

Somavam-se a isso, outros descontentamentos advindos dos setores populares e das classes

dominantes com relação ao governo deste presidente. O candidato paulista Júlio Prestes,

indicado por Washington Luís, venceu as eleições presidenciais e assumiu o poder em 1930.

Por iniciativa dos “tenentes civis”, que não concordavam com a posse do presidente eleito, a

revolução estourou em alguns estados brasileiros, como foi o caso de Minas Gerais e o Rio

Grande do Sul. O presidente da República foi deposto assumindo uma Junta provisória em

seu lugar. Após isso, Getúlio Vargas ascendeu à Presidência da República por meio de um

golpe militar:

A junta tentou permanecer no poder mas recuou, diante das manifestações populares e da pressão dos revolucionários vindos do Sul. Getúlio Vargas deslocou-se de trem a São Paulo e daí seguiu para o Rio, onde chegou precedido por 3 mil soldados gaúchos. O homem que, no comando da nação, iria insistir no tema da unidade nacional, fez questão de fazer transparecer, naquele momento, seus traços regionais. Desembarcou na capital da República em uniforme militar, ostentando um grande chapéu dos pampas. O simbolismo do triunfo regional se completou quando os gaúchos foram amarrar seus cavalos em um obelisco existente na Avenida Rio Branco. A posse de Getúlio Vargas na presidência, a 3 de novembro de 1930, marcou o fim da Primeira República e o início de novos tempos, naquela altura ainda mal definidos (FAUSTO, 1995, p. 325).

14 O projeto nacional de Oliveira Vianna estava ancorado na contraposição à implementação do liberalismo no Brasil, na defesa das particularidades da evolução histórica nacional, as quais, para ele, justificavam a existência de um poder forte e centralizado no país, baseado em relações colonialistas: “Mudança sem ruptura, na ordem e para a ordem que, no quadro brasileiro, dada a profunda conexão entre o ‘novo’ e o ‘velho’, acaba defendendo e garantindo os interesses mais tradicionais, ao mesmo tempo que dá forma ao ‘novo’ pelos moldes do ‘velho’. Preocupado em evitar toda e qualquer crise, em nome da singularidade ‘histórica nacional’. Vianna formula uma proposta que revela a dualidade entre conservação e desenvolvimento atrofiado e restrito do capital de extração colonial. Obliterado por tal angulação, o autor fluminense não consegue romper com as limitações históricas impostas pela forma hipertardia e subordinada do capitalismo brasileiro, desempenhando o papel de justificador teórico e, formulador de uma propositura marcada pela conciliação e conservação” (PRADES, 1991, p. 261). 15 A crise de 1929 foi de superprodução industrial e agrária. [...] O que ocorreu em 1929 foi a bancarrota dos preços das mercadorias mais vendidas na época, levando ao fechamento de fábricas, falência de negócios rurais, desvalorização brutal das ações das empresas, diminuição das exportações e importações. [...] O mercado liberal, das primeiras décadas do século XX, sem quaisquer travas, produzia sem considerar os limites dos potenciais compradores. A economia dos países capitalistas que funcionava sem planejamento e auto-regulada pelas forças de mercado, ruiu em dias, levando anos para se recompor. Os efeitos foram diferentes de país para país. O denominador comum foi o aumento dos problemas sociais e da crise política, com desdobramentos específicos. O desemprego de milhões foi conhecido por toda parte, bem como a intensa agitação política, baseada na busca popular de alternativas (LOPES, 2008).

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O autor entende que esse grupo revolucionário que assumiu o poder era muito

diverso, com interesses diversos e, na prática, representou a substituição de uma elite por

outra na presidência do Brasil, com algumas diferenças:

A heterogeneidade dos grupos revolucionários nada tinha de excepcional, sendo mesmo fato comum na maioria das revoluções. Importa saber que setores predominaram e quais os objetivos desenhados no pós-trinta. Sob o primeiro aspecto, podemos dizer que, a partir de 1930, ocorreu uma troca da elite do poder sem grandes rupturas. Caíram os quadros oligárquicos tradicionais, os ‘carcomidos da política’, como se dizia na época. Subiram os militares, os técnicos diplomados, os jovens políticos e, um pouco mais tarde, os industriais. Muitos, a começar pelo próprio Getúlio, já tinham começado uma carreira vitoriosa, no interior da antiga ordem. Sob o segundo aspecto, lembremos que desde cedo o novo governo tratou de centralizar em suas mãos tantos as decisões econômico-financeiras como as de natureza política. Desse modo, passou a arbitrar os diversos interesses em jogo. O poder de tipo oligárquico, baseado na força dos Estados, perdeu terreno. Isso não quer dizer que as oligarquias tenham desaparecido, nem que o padrão de relações sociopolíticas baseado na ‘troca de favores’ deixasse de existir. Mas a irradiação vinha agora do centro para a periferia, e não da periferia para o centro (FAUSTO, 1995, p. 327).

Sobre algumas das diferenças entre o governo de Getúlio Vargas e o governo da

Primeira República, Fausto (1995, p. 327) segue explicando que:

Um novo tipo de Estado nasceu após 1930, distinguindo-se do Estado oligárquico não apenas pela centralização e pelo maior grau de autonomia como também por outros elementos. Devemos acentuar pelo menos três dentre eles: 1. a atuação econômica, voltada gradativamente para os objetivos de promover a industrialização; 2. a atuação social, tendente a dar algum tipo de proteção aos trabalhadores urbanos, incorporando-os, a seguir, a uma aliança de classes promovida pelo poder estatal; 3. o papel central atribuído às Forças Armadas- em especial o Exército- como suporte da criação de uma indústria de base e sobretudo como fator de garantia da ordem interna.

Considerando-se o exposto, vimos que o pensamento conservador no Brasil nasce em

condições muito particulares, que advêm da formação social e econômica do nosso país, isto

é, do capitalismo que se desenvolveu através do processo de colonização, tendo como base do

sistema produtivo a exploração de matérias-primas e o trabalho agrário. Esse trabalho voltado

para a produção de açúcar, do cacau, do café, etc, gerou uma “estrutura agrária” latifundiária

de “origem colonial” subordinada aos mandos e desmandos do capital estrangeiro. Além

disso, o povo sempre foi excluído de qualquer decisão política ou conjuntural e o

desenvolvimento das forças produtivas aqui foi mais lento do que em outros países. A

constituição do capitalismo industrial no Brasil foi tardia e tal transição foi profundamente

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marcada por características dessa estrutura agrária latifundiária e colonial. A burguesia

brasileira sempre esteve subordinada aos países capitalistas centrais e jamais buscou a

emancipação econômica ou política, por meio da luta a favor da democracia, por exemplo.

Sempre ligada às burguesias dos países desenvolvidos, a burguesia brasileira sempre se

preocupou em destinar o excedente econômico nacional para o exterior, em nome da

modernização do país, mas, em contrapartida, o desenvolvimento do capitalismo industrial no

Brasil se deu desassociado dos processos emancipatórios dos seres humanos, protagonistas

dessa dinâmica (ASSUNÇÃO, 1999). Baseada nas análises de Florestan Fernandes, a autora

faz a seguinte referência:

Florestan Fernandes reitera que, no caminho do Brasil ao capitalismo industrial, “É o imperialismo que tem o papel hegemônico /.../. O capital estrangeiro moderniza mas, ao mesmo tempo, retira da modernização o seu conteúdo e sentido revolucionário. E com isso temos uma sociedade que pode avançar no sentido do desenvolvimento capitalista, mas raramente pode associar esse desenvolvimento capitalista a uma democracia que estenda a todos as liberdades fundamentais dos cidadãos, as garantias sociais” (FERNANDES, 1989, p. 137 apud ASSUNÇÃO, 1999, p. 24).

Contudo, apreendemos que, no período da história brasileira estudado até aqui,

alguns aspectos do pensamento conservador nacional foram se constituindo a partir da nossa

realidade sócio-histórica e tomando forma na mente de intelectuais e brasileiros na sociedade

em geral. O fator raça/etnia, um dos mais relevantes, teve enorme peso na forma de pensar e

interpretar a sociedade brasileira. Ora, desde a chegada do branco europeu ao Brasil e o seu

contato com os indígenas desta terra, o choque entre culturas e a exploração foram tão

intensos e destrutivos que marcaram profundamente a história do Brasil, a mesma ponderação

vale para os negros africanos que foram escravizados aqui pelos portugueses.

A questão social estava posta e os povos indígenas, negros, mestiços a enfrentavam

por meio de tocaias, rebeliões, combates armados, fugas, formação de quilombos, suicídios e

outras formas de resistência, como afirma Ianni (1989). Os conservadores nesse país, com as

lentes da classe dominante, viam e explicavam os problemas da sociedade brasileira com base

no caráter e na psicologia inferiores do povo brasileiro. Sob tais lentes, tratava-se de uma

“ralé mestiça” que, diferentemente, dos grupos aristocráticos de “sangue nobre”, não tinha as

condições necessárias para progredir autonomamente sem o amparo e a proteção do branco

europeu e os seus costumes e idéias civilizatórias.

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O Estado se impôs no poder centralizador da Coroa Portuguesa, primeiramente, e,

depois, na figura do rei, a quem todas as outras pessoas estiveram submetidas, num rígido

sistema de hierarquia e tradições. A religião católica foi igualmente imposta aos habitantes do

Brasil, que não tiveram liberdade nem para escolher o Deus ou deuses nos quais acreditarem.

E, tudo isso foi feito, tendo em vista as afirmações e as defesas sobre a incapacidade dos

índios, negros e mestiços de construir uma sociedade organizada e decente para se viver. Para

os conservadores, os problemas sociais do Brasil somente poderiam ser resolvidos por meio

de um poder centralizador forte liderado pela “nata da população brasileira”, ou seja, os

membros das elites nacionais, e pudesse organizar a bagunça e a despolitização natural de um

povo que precisa ser controlado por dirigentes “de punhos fortes” e autoritários.

Coerentemente a este cenário, após a destituição da República no Brasil, quem assumiu o

poder foi um ex-militar, Getúlio Vargas, por meio de um golpe militar e com forte apoio das

Forças Armadas.

3. O conservadorismo e a gênese do Serviço Social no Brasil

Segundo Netto (2011a, p. 28), o Serviço Social, assim como a Sociologia, é uma

“profissão geneticamente vinculada ao pensamento conservador”. Iamamoto (2008) foi uma

das primeiras autoras, no campo do Serviço Social brasileiro, a escrever sobre os fundamentos

dessa herança conservadora, por meio de uma teoria crítica. De acordo com a sua análise, as

marcas de origem da profissão estão situadas no “bojo do reformismo conservador” no Brasil,

estas renovam e preservam “seus compromissos sociopolíticos com o conservadorismo, no

decorrer da evolução do Serviço Social” (IAMAMOTO, 2008, p. 17).

Se resgatarmos alguns fatos históricos do período de emergência da profissão no

país, encontraremos elementos importantes desse contexto reformista conservador em que as

bases do Serviço Social brasileiro foi se constituindo.

Apresentamos no que segue, em linhas gerais, uma retomada sobre como estava o

Brasil no período de emergência da profissão de Serviço Social. Nos anos 1930, Getúlio

Vargas assumiu o governo provisório do Brasil, conforme vimos anteriormente. Este processo

ocorreu por meio de um golpe militar e o que decorreu a partir dele foi a continuidade de um

processo lento de industrialização, dependente do capital estrangeiro e das antigas classes

dominantes que se baseavam ainda em relações colonialistas, o que repercutiu nos rumos

políticos desse novo governo. No plano da conjuntura internacional, para citar alguns poucos

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exemplos, estendiam-se os impactos da crise financeira de 1929 por vários países, inclusive,

no Brasil; o nazismo ascendia na Alemanha. Na conjuntura nacional, a situação também era

de crise econômica e desemprego, de embate com o velho modelo político das oligarquias

regionais, de desavenças no corpo das Forças Armadas. No primeiro ano do seu governo,

Vargas colocou em prática a proposta de centralização nacional, o Congresso foi dissolvido e

no lugar dos representantes municipais e estaduais foram nomeados interventores federais. A

economia cafeeira também foi centralizada no governo federal, na tentativa de encontrar

medidas para a falta de saída do café para o mercado estrangeiro, medida que foi tomada pela

gestão Vargas com a queima de parte dos estoques brasileiros do produto.

Um dos marcos do governo Vargas foi a implantação de uma política trabalhista no

país. No entanto, esta política se caracterizou pela concessão de direitos, por um lado, e, por

outro lado, pela forte repressão aos movimentos organizados de trabalhadores e pela tentativa

do Estado em controlá-los através de medidas governamentais. O Ministério do Trabalho,

Indústria e Comércio foi criado em 1930 e, neste momento, foram formuladas “leis de

proteção ao trabalhador, de enquadramento dos sindicatos pelo Estado, e criavam-se órgãos

para arbitrar conflitos entre patrões e operários- as Juntas de Conciliação e Julgamento”

(FAUSTO, 1995, p. 335). Apesar das tentativas de resistência por parte das organizações

operárias de esquerda, dos movimentos dos trabalhadores, estes, em sua maioria, acabaram

aderindo ao sindicalismo corporativo16. A criação da legislação trabalhista foi uma forma de

resposta do Estado brasileiro à questão social, o seu conteúdo se sustentava em princípios

repressivos e paternalistas que se refletiam nas relações entre governo e população. Enquanto

estratégia governamental e resposta às manifestações populares, a política trabalhista teve

início ainda na República Velha, mas foi aprofundada durante o governo Vargas. Durante a

sua gestão, Getúlio Vargas reviu e ampliou as leis trabalhistas, de modo a responder e

apaziguar as manifestações operárias que se intensificavam no Brasil.

Na esfera política, o programa tenentista previa um modelo de desenvolvimento que

abrangesse várias regiões do país, a instalação de indústrias, de meios de transporte, de

16 Para Lamounier (2005, p. 116), foi uma resposta política encontrada pelo Governo Vargas para estruturar o Estado. Segundo ele, o Corporativismo consistiu na “separação das políticas sindical e partidária, com a estrita regulamentação da primeira, tendo por base o sistema corporativista, cuja expressão sistemática viria a ser a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Pelo sistema corporativista, o Estado confere o monopólio da representação de uma dada categoria (trabalhista ou patronal), em determinada circunscrição geográfica, a um e apenas um sindicato- assim credenciado para ser o único interlocutor oficial da categoria junto a seus afiliados e ao governo. Em contrapartida, o governo, por meio do Ministério do Trabalho, delimita o âmbito legítimo da ação sindical, valendo-se para isso de uma complexa teia de controles legais e administrativos- a começar pela própria prerrogativa de reconhecer ou não a existência oficial da entidade”.

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comunicação, entre outras propostas de reforma do Estado que pressupunham um Estado forte

e centralizado para a sua execução. As ações tenentistas nos estados continuaram com o

objetivo de diminuir o poder das antigas oligarquias regionais, objetivo que foi alcançado em

parte, já que, em muitos casos, os interventores federais acabaram se aliando aos grupos

dominantes locais. Dos conflitos entre os tenentes e as bases regionais, resultou a Revolução

Constitucionalista de 193217, em São Paulo. Após a derrota da elite paulista e com a

desagregação do movimento tenentista, ao longo do ano de 1933, o governo provisório que

tinha à frente Getúlio Vargas, cedeu às pressões de alguns setores da sociedade brasileira pela

constitucionalização do país e realizou eleições para a Assembléia Nacional Constituinte. Os

eleitos eram, quase todos, pertencentes às elites regionais e a Constituição foi aprovada em

1934, inspirada na Constituição de Weimar (Constituição do Império alemão vigente durante

a República de Weimar, entre 1919 e 1933, e durante o Terceiro Reich, entre 1933 e 1945).

Pela primeira vez, o tema “segurança nacional” apareceu na Constituição brasileira, de modo

que as questões referentes a ele estavam submetidas à análise do Conselho Superior de

Segurança Nacional, que tinha como presidente Getúlio Vargas e faziam parte dele também

ministros e chefes de Estado do Exército e Marinha nacionais. Nesse período, Vargas foi

eleito, por voto indireto da Assembléia Nacional Constituinte, como presidente da República

do Brasil (FAUSTO, 1995).

O autoritarismo é recorrente na história política brasileira. Quanto ao Estado

Getulista, Fausto (1995) aponta que os governantes que estavam no poder eram adeptos de

uma corrente autoritária que defendia um processo de modernização conservadora18 no Brasil

e a organização de todos os estados da nação em prol do desenvolvimento econômico e social.

Segundo ele: “A corrente autoritária não apostava no partido e sim no Estado; não acreditava

na mobilização em grande escala da sociedade, mas na clarividência de alguns homens”

(FAUSTO, 1995, p. 357). Por isso, todas as decisões estratégicas nas áreas da economia,

política, cultura e assuntos sociais estavam centralizadas em órgãos do governo e vinham “de

17 Em 1932, militares e representantes da elite paulista enfrentaram o governo federal de Getúlio Vargas, com o apoio da classe média de São Paulo, numa luta pela constitucionalização do país. De acordo com Fausto (1995, p. 346), “os temas da autonomia e da superioridade de São Paulo diante dos demais Estados eletrizaram boa parte da população paulista. Uma imagem muito eficaz, na época, associava São Paulo a uma locomotiva que puxava vinte vagões vazios- os vinte demais Estados da federação”. 18 De acordo com Fausto (1995, p. 357): “A corrente autoritária assumiu com toda conseqüência a perspectiva do que se denomina modernização conservadora, ou seja, o ponto de vista de que em um país desarticulado como o Brasil, cabia ao Estado organizar a nação para promover dentro da ordem o desenvolvimento econômico e o bem-estar geral. O Estado autoritário poria fim aos conflitos sociais, às lutas partidárias, aos excessos da liberdade de expressão que só serviam para enfraquecer o país”.

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cima para baixo” para a população. A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi um instrumento

autoritário e repressivo utilizado pelo governo nesse período que procurava responder não só

às reivindicações operárias e da sociedade em geral por melhores condições de vida, mas

também ao enfrentamento de grupos políticos opostos que ameaçavam a estabilidade

nacional: os anti-fascistas e integralistas19, mas, sobretudo, os comunistas que eram os

inimigos centrais do governo e que, posteriormente, em 1935, tentariam um golpe de Estado

contra o governo de Getúlio Vargas. A partir dessa tentativa fracassada de golpe comunista,

as medidas repressivas e autoritárias do Estado Novo20 aumentaram sobremaneira com a

criação de órgãos específicos para investigação e punição de pessoas ligadas ao comunismo.

Também nesse período da década de 1930 foi fundada, no Brasil, a Ação Integralista

Brasileira (AIB), organização de caráter conservador e fascista, que vinha ganhando força no

país desde a década de 1920.

Se, por um lado, como vimos, havia uma forte corrente autoritária que orientava as

ações políticas do governo Vargas, por outro lado, a questão social que se tornava cada vez

mais evidente, o que é comum em épocas de crise, como trata Ianni (1991), ganhava

relevância nos debates políticos e planejamento do Estado. Uma das causas deste fenômeno

foram os avanços do processo de industrialização no Brasil, as demandas de grupos

industriais e comerciais que pressionavam o Estado para intervir de forma mais eficiente nos

assuntos econômicos e sociais nacionais. Outra razão para a atenção dada à questão social,

durante o governo Vargas, foram os impactos da crise internacional de 1929, que gerou altos

índices de desemprego e piora nas condições de vida da população, tornando assim

impossível fechar os olhos para essa questão, até porque os próprios trabalhadores passaram a

pressionar o governo. Tratá-la somente como um “caso de polícia”, como ocorreu durante a

República Velha, já não era mais possível. Gomes (1979, p. 202-203) aponta que:

19 Adeptos de um ideário fundado por Plínio Salgado, os integralistas defendiam um regime que respeitasse as características histórico-culturais do Brasil e que fosse nacionalista. Tal doutrina foi bastante difundida nos meios de comunicação e a Ação Integralista Brasileira (AIB) foi um movimento político que existiu no Brasil de 1932 a 1937. Cf. em Chasin (1978). 20 Em 1937, Getúlio Vargas instaurou, por meio de um golpe militar, o Estado Novo, em substituição ao governo provisório. O Congresso Nacional foi dissolvido e a Carta Constitucional de 1937 que dava amplos poderes ao presidente entrou em vigor: “O Estado Novo concentrou a maior soma de poderes até aquele momento da história do Brasil independente. A inclinação centralizadora, revelada desde os primeiros meses após a Revolução de 1930, realizou-se plenamente. Os Estados passaram a ser governados por interventores, eles próprios controlados, a partir de um decreto-lei de abril de 1939, por um departamento administrativo. Esse departamento era uma espécie de substituto das Assembléias estaduais, pois o orçamento e todos os decretos-leis dos interventores dependiam de sua aprovação para serem expedidos” (FAUSTO, 1995, p. 366).

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[...] a análise política que então se faz da questão social centra-se no reconhecimento do problema e da necessidade de resolvê-lo, sem entretanto considerá-lo um indicador de conteúdo negativo para o desenvolvimento do país. Ao contrário, a existência da questão social nada teria por si mesmo de grave, na medida em que deveria e poderia ser encarada como um fenômeno mundial, fruto do progresso e da industrialização. Acoplando-se a este diagnóstico estava, não só a crítica aos governos ‘situacionistas’ da República Velha, que a teriam ignorado, como também a proposta de uma verdadeira atualização do papel do Estado, assumindo suas funções arbitrais, através da efetiva criação de um direito social.

Políticas sociais foram elaboradas pelo Estado agradando aos industriais que viam o

trabalho nas indústrias e comércio tomar uma nova dimensão face à produção agrícola, e aos

trabalhadores que tinham os seus direitos reconhecidos, mesmo que sob a constante vigilância

do Estado. O Estado também se beneficiava com a implantação de políticas sociais, na

medida em que ganhava o apoio das camadas populares (GOMES, 1979).

É interessante notar ainda que os discursos políticos, de intelectuais e da burguesia

industrial, acerca da problemática social no Brasil, foram gradualmente mudando. Gomes

(1979, p. 204) evidencia que:

Assim, se a questão social não deveria mais ser encarada como um ‘caso de polícia’, a legislação social não poderia mais ser considerada como uma forma de ‘ferir’ ou de ‘castigar’ os interesses da burguesia comercial e industrial, em nome das camadas urbanas (classes médias, operariado e empregados do comércio) e também das oligarquias agrárias. A importância daqueles interesses e o golpe que ‘a vocação agrária do país’ acabava de sofrer interferiam na construção de um novo discurso sobre a questão social. Neste sentido, também já não se tratava de pensar a legislação social como uma mera medida sanitária ou filantrópica. O próprio movimento operário e os interesses políticos governamentais se encarregavam de, cada um por vias e razões distintas, erigi-la na posição de um direito social e de uma questão política. Portanto, todo o universo no qual a política social seria discutida e aplicada alterara-se, fundamentalmente, desde o tipo de líderes que a defenderia, aos motivos que a impulsionariam e aos setores que passariam a apoiá-la. A legislação trabalhista e previdenciária passaria a ser vista como um instrumento necessário não só à estabilidade política, como ao crescimento econômico e particularmente industrial do país. A nível político e ideológico, a legislação social abandonava definitivamente o estatuto de arma de ataque à burguesia, para se constituir, cada vez mais, em arma de defesa e promoção de seus próprios interesses. Tal transição pode ser observada tanto no discurso do próprio empresariado, quanto nas formulações de alguns importantes políticos e ideólogos do período.

Um desses ideólogos, já citado na segunda parte deste capítulo, foi Oliveira Vianna,

intelectual conservador que participou de várias comissões sobre a questão trabalhista,

durante o governo provisório de Getúlio Vargas, e tornou-se consultor jurídico do Ministério

do Trabalho, em 1932. Neste contexto, um dos questionamentos era: como integrar a nação

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brasileira, portadora de uma psicologia política tão defasada e sem qualquer forma de

consciência coletiva, aos tempos modernos?

Segundo Vianna, uma política social capaz de oferecer amparo e proteção aos

trabalhadores dos abusos da sociedade industrial moderna, tendo como principais recursos os

sindicatos e corporações, seria a melhor solução para tal impasse. Sob o ponto de vista desse

estudioso, a questão social devia ser resolvida através de medidas que pudessem manter o

equilíbrio entre capital e trabalho, sem grandes transtornos (PRADES, 1991). Para ele,

Esse processo subentende a atualização da estrutura institucional, através da incorporação ao estado da problemática trabalhista e da adoção dos mecanismos de garantia do bem-estar social, tudo complementado por um processo de adequação das leis, cujo respaldo teórico encontrar-se-ia na modernização do direito (PRADES, 1991, p. 168).

Os discursos a favor da “resolução” da questão social não significavam a pacífica

aceitação do patronato das regulamentações trabalhistas via Estado, e sim a busca de uma

necessária sintonia com as medidas governamentais de amparo aos trabalhadores visando à

afirmação dos negócios no Brasil e um ambiente tranquilo e propício para tal finalidade.

Nesse período, pensadores como Oliveira Vianna elaboraram propostas políticas baseadas

numa terceira via entre o liberalismo e o comunismo. Tendo em vista que, para eles, o Brasil

era um país “sem tradição de luta de classes”, a questão social então poderia ser resolvida de

maneira eficaz por meio da criação de uma política social centralizada nas mãos do Estado e

voltada para a regulação dos conflitos entre capital e trabalho (GOMES, 1979). Para Vianna

(apud GOMES, 1979, p. 208):

[...] a intervenção necessária do Estado na questão social não teria mais o sentido da proteção física do trabalhador e sim o objetivo da organização de um sistema de instituições sociais que permitisse a harmonização dos interesses de patrões e operários. Portanto, se de um lado podemos apontar, na legislação do pós-trinta, uma alteração no que se refere ao alcance e extensão das leis, podemos igualmente situar esta mudança crucial do ‘sentido’ da referida legislação, orientada por uma proposta clara e globalizadora.

Sobre isso, a autora afirma ainda que escritores como Oliveira Vianna e Alceu

Amoroso Lima acreditavam que, para a execução de políticas sociais no Brasil, a Igreja, além

do Estado, tinha papel fundamental na harmonização das relações de classes, ao mesmo

tempo em que o Estado deveria supervisionar tais relações.

Foi nesse contexto sócio-histórico que a profissão de Serviço Social teve origem. Ela

nasceu fincada no pensamento conservador da Doutrina Social Católica, que preconizava

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valores cristãos baseados na moralidade religiosa, tais como o caritativismo, a benemerência,

a subserviência ao poder divino, entre outros, e que vinha sendo ameaçada por ideias

republicanas no âmbito do pensamento social brasileiro, desde os tempos da Primeira

República no Brasil (1889-1920). Ideias essas que reivindicavam um novo modelo

institucional, a valorização dos indivíduos e suas potencialidades, a democratização dos

espaços de poder. Durante o governo Vargas, a aliança entre a Igreja Católica e o Estado (que,

“entre altos e baixos”, sempre existiu) tornou-se ainda mais estreita com um grande

contingente da população católica apoiando o novo governo e este, por sua vez, cedendo às

exigências da Igreja no que dizia respeito à presença da religião em instituições como, por

exemplo, nas escolas e na vida cotidiana da sociedade em geral. Sendo assim, com o

propósito de retomar cada vez mais o poder da Igreja junto à sociedade brasileira e de sua

influência nas questões de ordem política e econômica que estavam em processo de transição

no país, a hierarquia religiosa passou a preparar e organizar figuras da intelectualidade

católica para combater idéias como o “anticlericalismo, o positivismo e o laicismo”

(IAMAMOTO; CARVALHO, 2003, p. 144) e para formar a opinião pública laica acerca

desses assuntos, segundo os princípios da doutrina cristã, esclarece a autora. A partir daí,

estava configurado o Movimento de Reação Católica no Brasil, que culminou com o

surgimento do Serviço Social brasileiro.

De acordo com Iamamoto; Carvalho (2003), um dos principais representantes dessa

“aristocracia intelectual” religiosa, no Brasil, foi dom Sebastião Leme, que reivindicava junto

à sociedade brasileira o cumprimento de princípios e práticas católicas condizentes com a

realidade de um país composto por uma maioria de cidadãos católicos, característica que

permanece nos dias de hoje (mesmo com a perda de um grande número de fiéis para as

Congregações Evangélicas21). Ao expor, em sua obra, o trecho de uma Carta Pastoral redigida

por dom Sebastião Leme, em 1916, Iamamoto; Carvalho (2003: 143) apontam que:

Nesse documento são lançadas as bases do que seria o programa de reivindicações a serem atingidas através da mobilização da opinião católica. Restabelecendo as bases da noção de Nação Católica, exige que através da Igreja seja respeitada a vontade dessa maioria: a legitimação jurídica do acesso da Igreja ao ensino público, a obras e entidades de caráter de interesse público- e, através destes, aos cofres públicos- a superioridade da Igreja sobre o Estado. Expõe também os mecanismos a serem ativados para obrigar o regime republicano a ceder à Igreja parte de sua soberania:

21 De acordo com o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de evangélicos no Brasil aumentou 61,45% entre os anos de 2000 a 2010, mantendo uma maioria católica de 123,3 milhões de pessoas.

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universidade católica, jornais católicos, eleitorado católico organizado, ação social católica, etc.

Deste modo, nesse período denominado por Iamamoto; Carvalho (2003, p. 141)

como “primeira fase da Reação Católica”, o foco da Igreja estava voltado para a reconquista

de influência política na sociedade brasileira e à reação ao projeto de laicização proposto pelo

Estado, desde os tempos da República. Um dos caminhos para a realização desse projeto eram

as ações sociais voltadas para o atendimento das pessoas pobres. Enquanto o governo

brasileiro se preocupava com a centralização do seu domínio, a Igreja Católica, instituição

conservadora em sua essência, defendia a hierarquia, a ordem social vigente, portanto,

reforçava a necessidade do respeito à autoridade por meio da figura do Estado. O Movimento

de Reação Católica chegou a pleitear um “monopólio” das ações sociais junto ao Estado. Os

parâmetros para o trabalho de enfrentamento da questão social, por parte do Movimento de

Reação Católica, estavam contidos nas Encíclicas Papais Rerum Novarum e Quadragesimo

Anno, de 1891 e 1931, respectivamente.

As Encíclicas Papais são documentos emitidos pelos papas com orientações

doutrinárias aos membros da Igreja Católica e seus fiéis. Tais documentos se configuram em

“programas gerais de ação” com fins políticos (CASTRO, 2000). A mais recente Encíclica

Papal intitula-se Lumen Fidei (ou A Luz da Fé, traduzida para o português) e reforça a

importância da fé nos dias de hoje, de modo que somente atos de fé baseados no amor e

dedicação ao próximo podem levar a transformações sociais neste mundo repleto de

turbulências em que vivemos. A nova Encíclica foi escrita pelas mãos do papa Bento XVI22 e

do seu sucessor e atual papa Francisco I, em mais uma tentativa de superar a crise moral

vivenciada pela Igreja Católica e reconquistar os seus fiéis e a sua imagem enquanto uma

instituição próxima das pessoas que creem em Deus.

Contudo, as Encíclicas Papais influenciaram diretamente o surgimento do Serviço

Social no Brasil e em outros países da América Latina. A Rerum Novarum, escrita em 1891,

foi um enfrentamento direto, sobretudo, ao pensamento socialista, na medida em que o seu

conteúdo defendia explicitamente o direito “natural” à propriedade privada e considerava a

existência da desigualdade social um fato necessário à vida em sociedade, o que reforçava a

orientação política da Igreja baseada na terceira via e que fora apoiada por representantes

22 O papa Bento XVI renunciou ao papado neste ano de 2013, após o episódio “vatileaks” em que denúncias sobre corrupção, disputas internas e conspirações entre membros do Vaticano em Roma foram divulgados no livro “Sua Santidade: As Cartas Secretas de Bento 16”, escrito pelo jornalista Gianluigi Nuzzi, em 2012.

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políticos e intelectuais brasileiros, conforme citado anteriormente. No caso da Encíclica

Quadragesimo Anno, o papa Pio XI retomou orientações da Rerum Novarum, que

comemorava 40 anos, e reforçou a oposição da Igreja ao liberalismo e ao socialismo. A Ação

Social Católica se concentrava então no “socorro” aos operários que sofriam com as

exaustivas e árduas jornadas de trabalho, por meio de práticas com base no comunitarismo

cristão23, com ações voltadas para o bem comum, a partir da ótica religiosa. Esse tipo de ação

tinha por finalidade atacar os males sociais gerados por uma sociedade cada vez mais

individualista e egoísta, assim como expulsar, das mentes dos trabalhadores, ideias

subversivas que ameaçavam a ordem social.

Diante das ameaças da organização política do operariado e do socialismo, a Igreja

Católica se via numa difícil situação: como recusar os princípios liberais que regem o

mercado de trabalho capitalista, combater a propagação das idéias anarco-sindicais que se

espalhavam entre as famílias operárias e, ainda, mostrar-se ao lado dos interesses dos seus

fiéis? Neste momento, o Movimento de Reação Católica no Brasil abandonou o seu

posicionamento antiliberal e revigorou a sua aliança com o Estado na prática de ações

doutrinárias em instituições como os Centros Operários24, por meio das ações de militantes

católicas, que foram até as famílias operárias, observaram as suas condições de vida,

estudaram sobre os seus hábitos e costumes e disseminaram princípios cristãos como uma

“forma de salvação” desses grupos em meio a tanto sofrimento e descontentamento

vivenciados por eles. Segundo Iamamoto (2008, p. 18-19), o posicionamento da Igreja

Católica diante da questão social era o seguinte:

A sociedade é tida como um todo unificado, através de conexões orgânicas existentes entre seus elementos, que se sedimentam pelas tradições, dogmas e princípios morais de que a Igreja é depositária. Deus é a fonte de toda a justiça, e apenas uma sociedade baseada nos princípios cristãos pode realizar a justiça social. A intervenção do Estado na “questão social” é legítima, já que este deve servir ao bem comum. O Estado deve assim preservar e regular a propriedade privada, impor

23 Segundo Souza (2008), o comunitarismo já era valorizado para a organização de ações sociais, coletivas e políticas pelos primeiros cristãos na história da humanidade. Após o Concílio Vaticano II (1962-1965), o tema do comunitarismo ganhou ainda mais força na Igreja Católica, o que se expressou na formação de colegiados, assembléias, associações, comunidades eclesiais de base. A filosofia e o movimento comunitarista surgiram como uma crítica à sociedade liberal, na medida em que contrapunha a idéia do indivíduo-cidadão à idéia do bem comum, ou seja, de que a construção de uma sociedade justa é feita com base em tradições, na cultura, nas virtudes de determinados grupos em um dado contexto social. 24 Os Centros Operários foram instituições criadas pelo Centro de Estudos e Ação Social de São Paulo (CEAS), em meados da década de 1930, com o objetivo de oferecer um contato entre o apostolado social da Igreja Católica e o movimento operário, sobretudo, com as mulheres operárias para o estudo do ambiente em que essas famílias viviam e suas principais necessidades. Este trabalho era feito “[...] por meio de aulas de tricô e trabalhos manuais, conferências, conselhos sobre higiene etc.” (IAMAMOTO, 2003, p. 171).

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limites legais aos excessos da exploração da força de trabalho e, ainda, tutelar os direitos de cada um, especialmente dos que necessitam de amparo. Mas o Estado não pode negar a independência da sociedade civil. Entre ele e os indivíduos existem os grupos sociais “naturais” (a família, a corporação, a nação etc.), organismos autônomos, mais que mera soma de indivíduos, que limitam a ação dominadora do Estado. A Igreja deve compartilhar com este a atuação diante da “questão social”, na tarefa de recristianização da sociedade através de grupos sociais básicos, especialmente a família. Impõe-se uma ação doutrinária e organizativa com o objetivo de livrar o proletariado das influências da vanguarda socialista do movimento operário e harmonizar as classes em conflito a partir do comunitarismo cristão.

Dessa maneira, a aprovação e implantação de uma legislação trabalhista que

garantisse o Seguro Social, Salário Mínimo, entre outros direitos, além da criação de

instituições de caráter assistencial em conjunto com a Igreja Católica, e órgãos públicos como

o da Justiça do Trabalho e da Assistência Social, entre outros, caracterizaram as principais

formas de intervenção do Estado na questão social nesse período. As militantes católicas, as

quais integravam o Movimento de Reação da Igreja, e atuavam diretamente com as famílias

operárias para reforçar a figura do Estado e o papel da religião em suas vidas e no combate

aos excessos do capitalismo, são consideradas as pioneiras do Serviço Social brasileiro25.

Em 1932, foi criado o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), em São Paulo, a

partir de uma necessidade das agentes sociais do Movimento de Reação Católica em

qualificar a sua intervenção junto às famílias pobres e melhor compreender os problemas

sociais daquele período. Sob forte influência do Serviço Social franco-belga; que se voltava

para o apostolado social a fim de minimizar as sequelas que o modo de produção capitalista

gerava sobre o modo de vida da classe trabalhadora, o número de Centros Operários no Brasil

foi ampliado e a primeira Escola de Serviço Social foi fundada, em São Paulo (IAMAMOTO;

CARVALHO, 2003). A fundação da primeira Escola de Serviço Social, em 1936, ocorreu

concomitantemente a um processo de racionalização das práticas assistenciais que se iniciava

sob a gerência do Estado brasileiro. Sobre isso, Iamamoto; Carvalho (2003, p. 176) nos

lembra que:

[...] quando em 1936 é fundada pela CEAS a primeira Escola de Serviço Social, esta não pode ser considerada como fruto de uma iniciativa exclusiva do Movimento

25 Sobre as primeiras instituições e obras do apostolado social da Igreja Católica, Iamamoto (2003, p. 167) considera que: “A importância dessas instituições e obras, e de sua centralização, a partir da cúpula da hierarquia, não pode ser subestimada na análise da gênese do Serviço Social no Brasil. Se sua ação concreta é extremamente limitada, se seu conteúdo é assistencial e paternalista, será a partir de seu lento desenvolvimento que se criarão as bases materiais e organizacionais, e principalmente humanas, que a partir da década seguinte permitirão a expansão da Ação Social e o surgimento das primeiras Escolas de Serviço Social”.

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Católico Laico, pois já existe presente uma demanda- real ou potencial- a partir do Estado, que assimilará a formação doutrinária própria do apostolado social.

As primeiras alunas da Escola de Serviço Social de São Paulo receberam uma “sólida

formação técnica e moral para o trabalho social” (LIMA, 1987, p. 48), a qual envolvia o

desvendamento da complexidade dos problemas sociais naquele período e a formação de

personalidade condizente com a doutrina da Igreja de amor ao próximo e com a missão social

a que estariam destinadas essas moças. Com o apoio do CEAS, a Escola de Serviço Social de

São Paulo formava assistentes sociais para desempenharem o trabalho com famílias, em

escolas e outros grupos sociais direcionados para educar os trabalhadores às novas condições

de existência, alterá-las quando possível e criar novas formas de bem estar social. Para isso,

disciplinas variadas eram ministradas na escola como, por exemplo, Direito, Economia

Política, Pedagogia, Psiquiatria, dentre outras. O Currículo da Escola sofreu constantes

transformações por conta das demandas apresentadas pelo Estado como, por exemplo, a

necessidade de profissionais capacitados para o ensino de trabalhos domésticos e a assistência

aos “menores”. Foram as pioneiras Escolas de Serviço Social, primeiramente, em São Paulo,

e, depois, no Rio de Janeiro, que contribuíram para a fundação de outras escolas em outros

estados do país (LIMA, 1987).

O ideário católico, na gênese do Serviço Social brasileiro, fundamentava-se em um

sentimento cristão de justiça social preocupado com a exploração dos homens pelos

capitalistas que se orientam por princípios liberais como o individualismo, a ganância e a

competitividade, que são contrários aos princípios religiosos católicos. Porém, como

abordado anteriormente, a doutrina religiosa também se baseava no medo do comunismo,

corrente de pensamento que se colocava enquanto uma opção na sociedade para o combate ao

pauperismo e às desigualdades sociais. Entre o individualismo do modelo liberal que se

instalava no Brasil e o materialismo que se expressava através das ideias marxistas, que

contradiziam a moral espiritual religiosa, o catolicismo apelou para a propaganda de uma

ordem social cristã, enquanto alternativa capaz de solucionar os problemas pelos quais o país

passava.

Desde a instauração do Estado Novo no Brasil, em 1937, o país caminhava rumo a

uma ditadura. O setor econômico do país voltava-se basicamente para o apoio de criação de

indústrias e investimentos nesse setor. Na esfera política, a burguesia industrial reforçava a

sua aliança com o Estado e mantinha fortes relações com antigos setores agrários interessados

na manutenção do seu poder econômico. Sendo assim, o modelo de Estado corporativista

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prevaleceu para atender as necessidades de uma sociedade em fase de industrialização e

urbanização, cenário em que as primeiras políticas sociais continuavam se desenvolvendo. O

Estado Novo reforçou ainda mais instituições e práticas autoritárias em âmbito federal, de

modo que foram atribuídos ao presidente poderes extremos como, por exemplo, governar com

base em decretos-leis e escolher os governantes dos estados. O apoio do governo à instalação

de indústrias de base no país para o fortalecimento da economia e, com isso, a manutenção da

aliança com a burguesia industrial, fizeram com que Getúlio Vargas incentivasse no campo

educacional a formação técnica e profissionalizante, momento em que surgiu o Serviço

Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), em 1942, com o objetivo de preparar os

jovens para o trabalho operário. Aliás, a conjuntura nesse período era de retomada do

aprofundamento capitalista com a produção interna a todo vapor. A indústria nacional

funcionava em um parque já instalado e em crescimento, com altos níveis de exploração da

força de trabalho existente e a forte intervenção do Estado nesse processo. O Estado

colaborou, sobremaneira, para a acumulação capitalista da burguesia industrial e, nesse

processo de industrialização acelerada voltada para a acumulação de capitais, o Estado

brasileiro chegou a intervir por meio de medidas legais que favoreciam a burguesia industrial,

em especial, o aumento da jornada de trabalho, a proibição de férias e de demissões, dentre

outras medidas. Segundo Iamamoto e Carvalho (2003, p. 245):

Dessa maneira, o Estado subsidia a aceleração da acumulação, contrapondo medidas legais aos mecanismos naturais do mercado de trabalho. Verifica-se o fato aparentemente paradoxal de, num período de grande expansão industrial em que o emprego urbano atinge nível extremamente elevado relativamente aos períodos anteriores, o salário real dos trabalhadores urbanos tenha acentuado declínio, na mesma medida em que pioram suas condições de trabalho, aumentando o ritmo e a intensidade da exploração.

Com base nessa realidade, Netto (2009) analisa esse período de consolidação do

capitalismo monopolista26 como o principal fator que explica a emergência do Serviço Social

26 De acordo com Netto (2009, p. 20-21): “[...] a constituição da organização monopólica obedeceu à urgência de viabilizar um objetivo primário: o acréscimo dos lucros capitalistas através do controle dos mercados. Essa organização- na qual o sistema bancário e creditício tem o seu papel econômico-financeiro substantivamente redimensionado- comporta níveis e formas diferenciados que vão desde o ‘acordo de cavalheiros’ à fusão de empresas, passando pelo pool, o cartel e o truste. Na prossecução da sua finalidade central, a organização monopólica introduz na dinâmica da economia capitalista um leque de fenômenos que deve ser sumariado: a) os preços das mercadorias (e serviços) produzidas pelos monopólios tendem a crescer progressivamente; b) as taxas de lucro tendem a ser mais altas nos setores monopolizados; c) a taxa de acumulação se eleva, acentuando a tendência descendente da taxa média de lucro (Mandel, 1969, 3: 99-103) e a tendência ao subconsumo; d) o investimento se concentra nos setores de maior concorrência, uma vez que a inversão nos monopolizados torna-se progressivamente mais difícil (logo, a taxa de lucro que determina a opção do investimento se reduz); e) cresce a tendência a economizar trabalho ‘vivo’, com a introdução de novas tecnologias; f) os custos de venda

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enquanto profissão27. Afinal, segundo ele, foi nesse contexto que profissionais como

assistentes sociais, dentre outros de várias áreas, foram requeridos em grande número para

formular e executar políticas estatais direcionadas para aqueles que sofrem com as sequelas da

questão social, geradas por essa nova fase do desenvolvimento capitalista, que demandava

também uma nova estratégia do Estado para lidar com essa dinâmica. O aparato institucional

do Estado criado para atender as demandas sociais cresceu enormemente tendo em vista a sua

refuncionalização e o seu redimensionamento28, desde o último quartel do século XIX.

As/os assistentes sociais tiveram função importante também na educação dos

trabalhadores para o modo de viver e pensar capitalista29. Tratou-se de uma “campanha

ideológica”, segundo colocam Iamamoto e Carvalho (2003) pois contribuiu, em conjunto com

vários outros elementos que pulsavam no movimento histórico da sociedade naquele

momento, para a consolidação do capitalismo no Brasil. Conforme observado anteriormente,

as ações sociais católicas das primeiras assistentes sociais no Brasil estavam embasadas em

um sentimento de solidariedade com o sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras da classe

operária, os quais viviam em condições subumanas que não correspondiam aos esforços por

eles (as) prestados no pesado trabalho da indústria, mas estas se limitavam a estimular essas

pessoas a resistirem da melhor forma (com fé nos princípios religiosos católicos) às situações

penosas em que viviam, e a apoiar os esforços do Estado e dos industriais para implantar

sobem, com um sistema de distribuição e apoio hipertrofiado- o que, por outra parte, diminui os lucros adicionais dos monopólios e aumenta o contingente de consumidores improdutivos (contrarrestando, pois, a tendência ao subconsumo)”. 27 Cf. Netto (2009). 28 “Até então, o Estado, na certeira caracterização marxiana o representante do capitalista coletivo, atuara como o cioso guardião das condições externas da produção capitalista. Ultrapassava a fronteira de garantidor da propriedade privada dos meios de produção burgueses somente em situações precisas- donde um intervencionismo emergencial, episódico, pontual. Na idade do monopólio, ademais da preservação das condições externas da produção capitalista, a intervenção estatal incide na organização e na dinâmica econômicas desde dentro, e de forma contínua e sistemática. Mais exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente com as suas funções econômicas” (NETTO, 2009, p. 24-25). 29 “O modo capitalista de pensar, enquanto modo de produção das idéias, marca tanto o senso comum quanto o conhecimento científico. Define a produção das diferentes modalidades de idéias necessárias à produção das mercadorias nas condições da exploração capitalista, da coisificação das relações sociais e da desumanização do homem. Não se refere estritamente ao modo como pensa o capitalista, mas ao modo de pensar necessário à reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação- ideológicas e sociais. O modo capitalista de pensar também está minado, não obstante, pelas contradições do capitalismo, fato que se reflete nas suas ambigüidades e dilemas. É o que leva para o conhecimento de senso comum e para o conhecimento científico as tensões do capitalismo, expressas nas diferenciações ideológicas e de tendências dentro da mesma formação social. É o que leva, enfim, o capitalismo para o pensamento de outras classes, como a pequena burguesia, o proletariado, os proprietários de terra. O modo capitalista de pensar é a mediação necessária na produção e reprodução em crise da alienação que subjuga quem não é capitalista, invertendo o sentido do mundo e dando uma direção conservadora e reacionária à ação que deveria construir a sociedade transformada, desvinculando e contrapondo entre si o saber e a prática” (MARTINS, 1986, p. 1).

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“medidas sociais de atenção” ao operariado. Um exemplo disso foram as ações profissionais

de assistentes sociais em parceria com o empresariado através do SENAI. De acordo com

Iamamoto e Carvalho (2003), mais do que a qualificação profissional para o trabalho na

indústria, era uma demanda do empresariado a educação dos jovens para a reprodução de

novos hábitos e, com isso, o desenvolvimento de novas formas de se relacionar socialmente.

Ora, o país avançava cada vez mais para a consolidação do sistema produtivo capitalista e os

brasileiros deviam se adaptar a essas novas condições.

Assistentes sociais tinham um importante papel nesse processo por meio da formação

psicossocial desses jovens e na identificação de necessidades básicas como alimentação,

saúde, higiene e recreação que visavam melhorar as condições de vida desse público e,

consequentemente, o seu desempenho nas tarefas da indústria. Além disso, os profissionais

atuavam também na prevenção de acidentes de trabalho junto a esses jovens trabalhadores.

Dentre as causas relacionadas a um número bastante elevado de acidentes no trabalho na

indústria naquele período, estavam os problemas psicológicos e morais desses jovens

operários que eram oriundos de famílias operárias e, por isso, conviviam em um “ambiente

negativo” que afetavam diretamente o seu convívio social. Para resolver essa problemática,

as/os assistentes sociais eram peças fundamentais na educação moral desses jovens

(IAMAMOTO; CARVALHO, 2003). Ao citar dados de uma pesquisa realizada em 1945,

pelo Sindicato da Indústria de Fiação e Tecelagem em geral, em São Paulo, os autores

destacam a seguinte observação:

Dentre essas carências, serão destacados ainda os ‘maus hábitos’ e os ‘problemas de moralidade’, as ‘baixas tendências (que) não estão sofreadas e podem agravar-se quando há promiscuidade e co-educação’. Essas carências trazem a necessidade de ‘ressocialização’ dos jovens proletários, ‘sem a qual não é possível manter a instituição’, ao que se deve somar outras medidas que visem ‘à reeducação individual do menor’ e ao ‘reajustamento dos inadaptados’ (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003, p. 261-262).

A lógica dos setores dominantes sofreu alterações durante o período de

industrialização no Brasil, o que se refletiu diretamente na prática profissional dessas/desses

assistentes sociais. Constituiu-se a noção de que o desenvolvimento capitalista gerava muitas

sequelas sociais que atingiam principalmente as famílias operárias e que, apesar desses males

serem inevitáveis para se conquistar avanços no país, mereciam sofrer alguma forma de

intervenção profissional para que os seus impactos fossem amenizados. Além de

encaminhamentos sociais, tais como os fazemos ainda nos dias de hoje como, por exemplo, a

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regularização de documentos pessoais, encaminhamentos para os serviços de saúde,

orientações, dentre outros; as/os assistentes sociais que trabalhavam no SENAI faziam um

trabalho de educação social voltado para o mercado de trabalho e estimulavam o

desenvolvimento de certos valores nos jovens como a lealdade, o sentido de coletividade, o

respeito a regras no trabalho e outros que os adaptavam às suas novas funções. A formação

humanista e religiosa das/dos assistentes sociais despertou-lhes um novo sentido para o seu

papel profissional nessa fase da história brasileira, o de “olhar” e “cuidar” do ser humano que

trabalhava na indústria e que, no entendimento destas e destes, não estava mais submetido

somente às regras do jogo capitalista, pois estava amparado pelo “trabalho social”

desenvolvido pelo empresariado (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003). Sobre o trabalho

das/dos assistentes sociais no SENAI, os autores fazem a seguinte análise:

As práticas sociais desenvolvidas pelos técnicos educadores cooptados pela instituição estarão assim voltadas- em diferentes graus de intencionalidade- para a suavização dos aspectos contraditórios (antagônicos) desse ajustamento, reforçando, objetivamente, a dominação de classe. As técnicas sociais que acompanham e fazem parte desse ‘investimento no fato humano’ estão assim voltadas para a inculcação e reforço das determinações subjetivas do trabalho e do trabalhador para sua produção, conservação e reprodução, enquanto mercadoria Força de Trabalho. O Assistente Social, integrante desse quadro de técnicos manipuladores de técnicas sociais englobadas no processo educacional, aparecerá, teoricamente, na estrutura do SENAI como coordenador e reforçador dessa prática social e como explicitamente encarregado dos casos de desviança mais aparentes verificados no âmbito da instituição (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003, p. 266).

Nesse mesmo período, o Brasil vivenciava mais um momento de transição política

importante. Fausto (1995) descreve que, após divergências nas relações com outros países

como, por exemplo, a Alemanha; o desgaste do regime ditatorial perante a sociedade e os

opositores políticos de Vargas, o surgimento de novos partidos políticos e vários outros fatos

resultantes de um complexo jogo político; o então presidente Getúlio Vargas foi deposto em

1945, assumindo em seu lugar, provisoriamente, José Linhares.

Após a vitória do presidente Dutra nas eleições diretas, em 1945, que levou um

número considerável de eleitores às urnas, uma nova Constituição Brasileira foi promulgada

com um conteúdo que dava continuidade ao sistema corporativo, mas ao mesmo tempo

incorporava ideias liberais e democráticas. Porém, o governo de Dutra não foi tão

democrático quanto o próprio presidente pregava. Se baseando nos termos da Constituição

para governar, Dutra reforçou o controle sobre os sindicatos, proibiu as greves de

trabalhadores e cassou o registro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de seus

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governantes. Em 1951, Getúlio Vargas tomou posse na presidência da República, novamente,

em um contexto que ele já conhecia de divisão no interior das Forças Armadas: um grupo era

a favor da interferência do capital estrangeiro na industrialização brasileira e outro era

nacionalista, portanto, contrário a intervenções externas na política e economia locais.

Investimentos públicos foram realizados nos setores de transporte e energia, no entanto, com

o aumento da inflação econômica, os investimentos privados se tornaram uma opção viável

para o governo. Muitas greves explodiram em vários estados brasileiros e após algumas

indisposições com setores sociais conservadores e a tentativa de assassinato do principal

adversário de Getúlio Vargas, Carlos Lacerda, o movimento pela renúncia do presidente

ganhou força. De acordo com Aguiar (1995, p. 76):

Em 1954, esses aspectos se acentuam. A política nacionalista de Vargas inquietava a classe média, membros das Forças Armadas e outros setores da sociedade. A oposição, marcadamente a UDN, assumiu uma campanha frontal contra Vargas, denunciando aliança com os peronistas, seu desejo de continuar no poder através de um golpe e responsabilizando-o pela inflação do país. Além da UDN tinha contra si toda a grande imprensa. Em 1953, nomeou um ministério que pudesse elaborar e executar uma política de estabilidade. Buscou nesse período cortejar a classe trabalhadora e para isso nomeou João Goulart para o Ministério do Trabalho. Em 1954, as tensões aumentam, existem greves, os coronéis e tenente-coronéis lançam manifesto pedindo equipamentos e salários e aumenta a desconfiança das Forças Armadas e da burguesia nacional. Nesse período Vargas radicaliza sua posição nacionalista; seus discursos nessa perspectiva aumentam, buscando com isso encontrar apoio nas medidas antiinflacionárias que vinha tomando (AGUIAR, 1995, p. 76).

Com a morte de Vargas, ainda no ano de 1954, Café Filho assumiu a presidência do

Brasil e, no ano seguinte, Juscelino Kubitschek venceu as eleições tomando posse em 1956

(FAUSTO, 1995).

No que se refere à atuação de assistentes sociais no Brasil, desde a década de 1940, a

profissão já vinha se configurando em um misto de características doutrinárias (fincadas no

pensamento e na ação católicos) e científicas próprias das Ciências Sociais, que começavam a

ser incorporadas na profissão e de demandas que exigiam da profissão uma intervenção mais

“técnica”. Iamamoto (2008, p. 21) utilizou o termo arranjo teórico-doutrinário para definir

esse processo muito peculiar do Serviço Social brasileiro:

O Serviço Social mantém seu caráter técnico-instrumental voltado para uma ação educativa e organizativa entre o proletariado urbano, articulando- na justificativa dessa ação- o discurso humanista, calcado na filosofia aristotélico-tomista, aos princípios da teoria da modernização presente nas Ciências Sociais. Esse arranjo teórico-doutrinário oferece ao profissional um suporte técnico-científico, ao mesmo

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tempo em que preserva o caráter de uma profissão “especial”, voltada para os elevados ideais de “serviço ao Homem” (IAMAMOTO, 2008, p. 21).

O Serviço Social norte-americano, desdobrado em Serviço Social de Caso e Serviço

Social de Comunidade, foi uma novidade trazida por assistentes sociais ao Brasil, após curso

realizado nos Estados Unidos com a ajuda financeira do governo norte-americano, em 194430.

O Serviço Social de Caso que, segundo Ander-Egg, já era praticado desde o século XIX na

Europa, por meio das Sociedades de Organização da Caridade, adquiriu grande repercussão

nos Estados Unidos, país onde Mary Richmond se tornou a precursora na sistematização das

técnicas empregadas nesse tipo de trabalho e que, até hoje, é muito comum entre os

profissionais norte-americanos, tendo em vista o referencial teórico positivista utilizado por

eles. Para ela, o Serviço Social de Caso consistia numa soma de métodos que tinham por

objetivo contribuir para o desenvolvimento dos indivíduos e ajustá-los ao meio em que

viviam. Para isso, eram necessários o estudo científico dos sujeitos e a aplicação de técnicas

específicas. Esta metodologia sofreu grande influência da psicologia, no início do século XX

e, no atendimento dos indivíduos. Profissionais orientados por essa perspectiva valorizavam

aspectos como emoções, condutas, relações afetivas, personalidade, etc. Ao longo do tempo, o

enfoque do Serviço Social de Caso foi se alterando e incorporando aspectos econômicos e

sociais mais abrangentes na leitura dos problemas individuais. Criou-se o conceito de caso

psicossocial e, a partir daí, a referida técnica se modificou bastante, mas ela ainda mantém um

forte caráter psicológico e uma compreensão microssocial da realidade (ANDER-EGG,

1974).

Principalmente nas duas primeiras décadas do Serviço Social no Brasil, esse método

que abrange o estudo de caso, diagnóstico e tratamento foi bastante empregado aqui. O livro

“Serviço Social- Infância e Juventude Desvalidas, da Série Serviço Social- Documento

Histórico”, publicado em 1985, retrata bem essa realidade no ano de 1939 a partir de artigos,

experiência de trabalho e outras fontes documentais reunidas por Maria Esolina Pinheiro,

então Assistente Técnica Social do Laboratório de Biologia Infantil do Juízo de Menores do

Distrito Federal. No capítulo II do livro, intitulado “Família, Habitação, Alimentação”, a

autora reconhece as transformações no âmbito familiar, mas reitera o papel fundamental da

30 “Helena Iracy Junqueira, outra assistente, fez nos Estados Unidos o curso de aperfeiçoamento em Serviço Social na Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, de 1944 a 1945. Tinha a intenção de especializar-se em Community Organization, pelo interesse em estudar Desenvolvimento de Comunidade, Ação Comunitária ou Organização de Comunidade. Por tratar-se de uma nova área, organizaram um curso só para ela. Ao regressar ao Brasil, assumindo função docente, introduziu em 1945, no currículo da Escola de Serviço Social de São Paulo, a disciplina Organização Social de Comunidade” (LIMA, 1987, p. 69).

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família na sociedade: “Célula produtora, distribuidora de valores humanos, precisa ser

apoiada material e moralmente para o equilíbrio dessa sociedade” (PINHEIRO, 1985, p. 20).

A conquista de direitos sociais pelas mulheres na sociedade moderna era compreendida como

um problema sério causador de desajustamentos familiares:

Ressalta desse panorama a mudança que a revolução industrial gerou para a vida da mulher. Foi ela tão rápida, criou-lhe tantas obrigações, abriu-lhe tantos caminhos, que parece ainda desprotegida no torvelinho das transições. Desprotegida principalmente de elementos de defesa pessoal. Cooperando hoje, par a par com o homem, nas ciências, nas artes, no pensamento, no trabalho, a mulher dele difere totalmente, pela maternidade. A adaptação social dos seus novos direitos criou, em relação ao lar, grandes desequilíbrios familiares (PINHEIRO, 1985, p. 20).

O que mais se destaca no trabalho executado por assistentes sociais nesse período é a

forma como as/os profissionais analisavam as situações familiares, sempre se esquivando da

sua leitura universal e contextualizada, quase sempre focando nos problemas imediatos, mais

visíveis. Para Pinheiro (1985), as causas dos desajustamentos familiares (reconhecidas como

complexas) estavam centradas nas incapacidades de ordem orgânica (moléstia, cansaço),

familiar (morte, abandono, negligência, desvio de conduta), econômica (salário insuficiente,

imprevidência paterna, desorientação doméstica, desemprego). No que se referia à habitação,

a escassez de moradias e o consequente amontoamento de famílias em locais insalubres e

superlotados eram considerados graves problemas de saúde pública (pois os índices de

mortalidade infantil eram bastante altos) e de agravo à moralidade que deve existir na

sociedade. Entre as soluções para esses problemas estão a necessidade de se construir

habitações para os pobres, porém, de preferência, de tipo diferenciado em um sistema de

“vilas operárias”, onde serviços como escolas, igrejas, comércio e outros estivessem à

disposição dos moradores (PINHEIRO, 1985). Ora, o importante era que esse aglomerado de

pessoas tivesse condições mínimas de moradia evitando problemas que podem surgir no lar

como doenças, promiscuidade, má educação, etc.

A falta de alimentação adequada da população era vista como uma das causas do

“desequilíbrio orgânico” e da incidência de “moléstias graves” (PINHEIRO, 1985, p. 25). Ao

discorrer sobre esse assunto, a autora cita o professor Dr. Clementino Fraga:

Em verdade, as pandemias e as guerras são transitórias e atingem determinado número de pessoas. A sub-alimentação generalizada a um povo, torna-o incapaz de prover as grandes aspirações de seu destino, materialmente desservido pela incapacidade geral, que pode cumular no desfibramento da raça (FRAGA apud PINHEIRO, 1985, p. 25).

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Pinheiro (1985) coloca ainda que o “Serviço de Assistência Social” exigia múltiplas

tarefas que são bastante úteis para as famílias atendidas, mas estas deviam ser organizadas

para um melhor rendimento, de modo que o estabelecimento de uma relação de confiança e

autoridade entre profissionais e “clientes” facilitasse esse processo:

A assistente social captando a confiança das famílias, adquire prestígio e autoridade que se estendem à direção moral dos adultos e à educação das crianças; traça rumos à orientação profissional dos filhos e procura encaminhá-los; desperta em todos o interesse pela vida sadia cujos prazeres aponta e seleciona. Ainda mais, procura ensinar quais são os benefícios, direitos e regalias que a lei garante aos trabalhadores, às gestantes, aos menores, enfim a todos os que vivem do trabalho e precisam de proteção. Ministra conhecimentos para organização do orçamento do lar nos limites da receita, sobre a maneira de aproveitar e conservar a roupa, de tomar o banho diário, de fazer a limpeza da casa e o arejamento da mesma, e ainda sobre o horário do trabalho e das refeições. São noções, por vezes, rudimentares que exigem, entretanto, cuidado e carinho (PINHEIRO, 1985, p. 26).

Segundo Yazbek (2009), o conservadorismo se reforçou na profissão, a partir desse

momento, pela mediação das Ciências Sociais. Sobre essa matriz teórica positivista que

influenciou e ainda influencia a profissão, a autora explica que:

Este horizonte analítico aborda as relações sociais dos indivíduos no plano de suas vivências imediatas, como fatos, como dados, que se apresentam em sua objetividade e imediaticidade. O método positivista trabalha com as relações aparentes dos fatos, evolui dentro do já contido e busca a regularidade, as abstrações e as relações invariáveis (YAZBEK, 2009, p. 147).

Mais tarde, a influência da sociologia positivista e as suas várias correntes de

pensamento sobre o Serviço Social brasileiro se revelaram também durante o processo de

renovação da profissão, conforme se tratará a seguir. Contudo, foi nesse contexto histórico

que as bases para o pensamento conservador no Serviço Social brasileiro se solidificaram,

influenciando algumas práticas profissionais. Influência que, por um lado, não cessou ainda

hoje, mas que, por outro lado, divide o espaço com novas características que vêm,

paulatinamente, sendo incorporadas.

Durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), oficiais do Exército

brasileiro estavam dispostos a preservar o regime democrático, porém continuavam atentos

aos movimentos dos comunistas e prontos para atacar em qualquer momento, caso estes

tentassem um novo golpe. O presidente Juscelino, embalado por essa dinâmica, promoveu o

lema do “desenvolvimento e ordem” na sua gestão, atendeu a algumas reivindicações da

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corporação militar, manteve os sindicatos sob o controle do governo e indicou militares para

postos governamentais estratégicos. Ele governou também sobre um Plano de Metas. O Plano

de Metas abrangia alguns dos objetivos que ele pretendia alcançar no campo da política

econômica do país e que envolviam o desenvolvimento dos transportes, da energia, das

indústrias de base, da educação, da alimentação, e também a construção de Brasília, entre

outros (FAUSTO, 1995).

O foco das ações governamentais de Juscelino estava no desenvolvimento do país

por meio da industrialização, conforme exposto no que segue: “O governo JK promoveu uma

ampla atividade do Estado tanto no setor de infra-estrutura como no incentivo direto à

industrialização, mas assumiu também abertamente a necessidade de atrair capitais

estrangeiros, concedendo-lhes inclusive grandes facilidades” (FAUSTO, 1995, p. 427), esta

foi a expressão nacional-desenvolvimentista da sua política que ganhou amplitude nos anos

pós-1964 no Brasil. O valor da produção industrial cresceu em grande escala, assim como o

Produto Interno Bruto (PIB), o número de empresas estrangeiras no país, com destaque para o

setor automobilístico, a dívida externa também se expandiu enormemente.

No ano de 1960, Juscelino inaugurou a nova capital do Brasil- Brasília- símbolo do

seu governo até os dias de hoje. No entanto, esse programa de industrialização gerou déficits

econômicos ao governo brasileiro, assim como os índices inflacionários aumentaram. A

popularidade de Juscelino foi decrescendo e, em 1960, Jânio Quadros o sucedeu na

presidência da República.

Nessa época, o Serviço Social estava muito voltado para o trabalho com grupos e

comunidades. O Desenvolvimento de Comunidade foi uma forma de intervenção realizada

por assistentes sociais entre as décadas de 1950 e 1960 que visava preparar e organizar as

comunidades pobres para a participação no processo de desenvolvimento econômico da nação

(AGUIAR, 1995). Segundo Castro (2000), o Desenvolvimento de Comunidade procedeu de

técnicas e políticas utilizadas pelos Estados Unidos e Inglaterra na administração de suas

colônias na Ásia e África, no início do século XX. Para evitar rebeliões, dentre outras coisas,

ambos os países implementaram medidas de atenção às necessidades sociais mais urgentes

das populações colonizadas, concomitantemente ao controle militar dessas áreas. Mesmo após

a conquista da independência nesses países, o método de Desenvolvimento de Comunidade

continuou a ser útil para a realidade norte-americana, em que minorias se rebelavam contra as

consequências sociais geradas pela crise de 1929, além de outras questões que o governo dos

Estados Unidos procurava resolver com a implantação de Conselhos Locais que atuavam na

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coordenação dos serviços assistenciais e na resolução de problemas sociais estruturais que

ficavam a cargo das próprias comunidades. De acordo com a análise do mesmo autor, o

debate sobre o Serviço Social e o Desenvolvimento de Comunidade ganhava uma importância

cada vez maior no sentido de adaptar as pessoas aos novos processos sociais que se

desenrolavam naquele contexto. Este debate se estendeu aos países latino-americanos,

inclusive ao Brasil, onde suas técnicas foram concretizadas de maneira particular. Em muitos

aspectos semelhantes ao Serviço Social de caso e de grupo, Aguiar (1995, p. 142) faz a

seguinte análise sobre o Desenvolvimento de Comunidade, procedimento predominante na

ação profissional, principalmente, na década de 1950, no Brasil:

A conceptualização sobre organização de comunidade revela uma perspectiva profundamente funcionalista no trato da questão social e o seu desenvolvimento, quase exclusivamente, está centrado nas peculiaridades da sociedade norte-americana. A identificação das necessidades e a alocação de recursos reduzem a questão social a problemas técnicos, construindo, a partir deles, uma fórmula central que contempla múltiplas variantes de intervenção profissional. Adestrado nestes parâmetros (adequação entre necessidades e recursos, identificação de umas e alocação de outros), o profissional de Serviço Social tende a concentrar a sua atenção sobre os elementos factuais e disponíveis, uma vez que a sua habilidade consistiria, justamente, em combiná-los de um modo otimizado. Seu trabalho justificar-se-ia na medida em que fosse capaz de responder aos problemas com aquilo que estivesse ao seu dispor. O apoio de entidades e agências era um componente que deveria ser adicionado à fórmula na medida em que fosse factível. Ademais, seu esforço deveria dirigir-se substancialmente para organizar a população com o objetivo de colimar realizações materiais- construção de escolas, centros médicos, serviços, etc.

A ideologia do desenvolvimentismo que norteava a prática dos assistentes sociais no

Desenvolvimento de Comunidade sustentava, basicamente, a tese de que as comunidades

locais eram capazes de se “reerguer” e acompanhar o ritmo do progresso no país, partindo da

premissa de que eram elas mesmas as responsáveis por seu atraso e problemas sociais gerados

em seu interior. Segundo Aguiar (1995, p. 148-149), essa busca pela “igualdade” se

configurava uma ficção:

De acordo com esta ficção, à comunidade compete aportar a sua energia e o seu compromissamento, enquanto ao governo, exercendo o seu poder em benefício de todas as classes sociais, cabe, nesta associação, colocar ao dispor daquela recursos financeiros, apoio técnico etc. Isto é: a comunidade deve contribuir com esta fórmula associativa, aceitando diversas condições, nem sempre explícitas, e que, por seu turno, implicam o reconhecimento da ordem social construída pelas classes proprietárias em seu próprio interesse. A aceitação deste padrão de relações acarretaria, por parte da comunidade, tanto a anuência com as formulações desenvolvimentista quanto o estabelecimento de laços de gratidão e lealdade ao governo articulando-se um- entre vários outros- circuito reprodutor da ideologia dominante, apto para “mascarar as relações de exploração” e as “contradições

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fundamentais”. Em suma, embora formalmente se assinalasse o contrário, as organizações populares deveriam sujeitar-se à tutela oficial.

Aguiar (1995) expõe ainda que o governo brasileiro apoiava o desenvolvimento de

políticas sociais com esse direcionamento e contava com o consentimento de outros países

que financiavam o desenvolvimento econômico brasileiro em um contexto mundial particular.

Esse contexto estava marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, a criação da Organização

das Nações Unidas (ONU) e as medidas políticas e sociais tomadas por esse órgão para a

reconstrução de muitos países que ficaram destruídos com a guerra. Além da reconstrução

desses países, a ajuda financeira e técnica aos países pobres se tornaram pauta das discussões

nesse grupo.

Importa ressaltar que as ações da ONU tinham por finalidade “reorganizar” e

fortalecer o sistema capitalista após uma crise gerada pela guerra e combater o comunismo

nos países subdesenvolvidos, além de fortalecer a hegemonia dos Estados Unidos sobre os

demais países. Para isso, organismos voltados para os “Assuntos Sociais” foram instituídos,

assim como políticas desenvolvimentistas fundamentadas em uma ideologia

desenvolvimentista, de modo que o Serviço Social absorveu essa dinâmica no ensino e na

prática cotidiana da profissão. O autor cita o conceito de desenvolvimento definido pelo 20º

Relatório da Comissão Administrativa, da ONU:

Esforços da população aliados aos do governo, para melhorar a situação econômica, social e cultural das comunidades, integrá-las na vida da nação e torná-las capazes de contribuir decisivamente para o progresso nacional. Esta maneira de proceder se compõe de dois elementos essenciais: participação do povo para elevação de seu nível de vida, baseada na sua própria iniciativa e fornecimento de assistência técnica e de outros serviços para desenvolver esta iniciativa; a ajuda mútua e a assistência podem ser expressas em programas visando grande variedade de campos de melhoramentos (VIEIRA apud AGUIAR, 1995, p. 71).

Já o Serviço Social assim foi definido por especialistas da ONU, em 1959:

[...] uma atividade organizada, cujo objetivo é contribuir para a adaptação recíproca dos indivíduos e de seu meio social. Este objetivo se atinge através da utilização de técnicas e métodos destinados a fazer com que indivíduos, grupos e comunidades possam satisfazer suas necessidades e resolver seus problemas de adaptação a um tipo de sociedade em processo de mudança, assim como através de uma ação cooperativa destinada a melhorar as condições econômicas e sociais (SILVA apud AGUIAR, 1995, p. 89).

Contudo, somente a partir da década de 1960 quando o presidente Kennedy, nos

Estados Unidos, propôs a criação da “Aliança para o Progresso”, o Serviço Social assumiu de

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fato a sua posição a favor do desenvolvimentismo. Exemplo disso foi o II Congresso

Brasileiro de Serviço Social, realizado em 1961, no Rio de Janeiro, com o tema “O

Desenvolvimento Nacional para o Bem-Estar Social”, momento em que surgiram várias

propostas para a reformulação do currículo de formação dos assistentes sociais com base nas

novas tarefas a serem desempenhadas por estes profissionais na sociedade brasileira que

vivenciava intensas transformações. O enfoque da ação profissional que era reivindicado

pelos participantes desse Congresso estava numa compreensão dualista sobre o conceito de

subdesenvolvimento, segundo o qual as regiões atrasadas do Brasil deviam ser preparadas

para avançar junto com o país. Além disso, o Serviço Social Rural, instituído por lei federal,

foi se organizando para oferecer às comunidades do campo uma melhor formação e

infraestrutura, adequadas ao processo de modernização pelo qual o país passava. Este era o

processo estrutural-dualista do conceito de subdesenvolvimento que também foi sustentado

pelo governo de Juscelino, esclarece Aguiar (1995).

Em 1961, quando Jânio Quadros assumiu o poder, a ameaça comunista continuava

viva e revigorada na América Latina com a vitória da Revolução Cubana, que se deu em

1959. Jânio Quadros, apesar de despertar a desconfiança dos conservadores devido a alguns

contatos que tivera com representantes do regime cubano, como Fidel Castro e Che Guevara,

não tinha a intenção de se aliar aos revolucionários, muito menos implantar um regime

comunista no Brasil. As suas intenções estavam relacionadas à construção de uma política

externa “independente”. O novo presidente desenvolveu uma política econômica de

estabilização considerando o valor altíssimo da dívida externa do Brasil, assim, ele operou um

plano de desvalorização cambial, contenção dos gastos públicos e da expansão monetária.

No mesmo ano de 1961, ao renunciar à presidência da república do Brasil, João

Goulart tomou posse e se tornou o novo presidente. Neste período histórico, os movimentos

sociais do campo se agitavam por esse país afora, com destaque para a Liga dos Camponeses;

os estudantes, organizados por meio da União Nacional dos Estudantes (UNE), também se

destacaram com maior participação no cenário político; a Igreja Católica se dividiu entre

grupos ultraconservadores e grupos com posições a favor de reformas sociais, como por

exemplo, a Juventude Universitária Católica (JUC). O presidente João Goulart propôs à

sociedade brasileira reformas de base nas áreas agrária, urbana, política, econômica, com o

apoio de grande parte do povo do campo e do movimento operário. Após um período de

governo sob o regime parlamentar, João Goulart voltou a governar num sistema

presidencialista, em 1963, quando um Plano Trienal de enfrentamento à inflação e aos

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problemas econômicos pelos quais o Brasil passava foi proposto. Tal Plano previa a

combinação de medidas para o crescimento econômico, as reformas sociais e o combate à

inflação, mas, em meio a dificuldades de conjuntura e resistências dos diversos grupos

políticos, a sua efetiva execução não se realizou.

O cenário brasileiro estava agitado e muitos grupos se organizavam contra o

presidente. Prevaleciam os posicionamentos contrários às reformas de base e o medo da

vitória comunista que assombrava o mundo e o país. Após um ato estratégico do governo João

Goulart para anunciar as reformas de base, em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, a

“Marcha da Família com Deus pela Liberdade” reuniu milhares de pessoas, em São Paulo,

para medir forças com o governo e mostrar a insatisfação dos setores burgueses da sociedade

brasileira com a sua gestão e as ameaças do comunismo no mundo. Em 1º de abril de 1964, os

militares tomaram o poder por meio de um golpe de Estado (FAUSTO, 1995).

Para Netto (1998), a emergência do golpe de abril foi ocasionada por um contexto de

proporções muito maiores, internacionais, já que sucessivos golpes de Estado ocorreram ao

longo desse período no mundo e tinham como pano de fundo o desenho de uma nova divisão

internacional capitalista do trabalho. Segundo ele, a finalidade do que denomina de contra-

revolução preventiva:

[...] era tríplice, com seus objetivos particulares íntima e necessariamente vinculados: adequar os padrões de desenvolvimento nacionais e de grupos de países ao novo quadro do inter-relacionamento econômico capitalista, marcado por um ritmo e uma profundidade maiores da internacionalização do capital; golpear e imobilizar os protagonistas sociopolíticos habilitados a resistir a esta reinserção mais subalterna no sistema capitalista; e, enfim, dinamizar em todos os quadrantes as tendências que podiam ser catalisadas contra a revolução e o socialismo (NETTO, 1998, p. 16).

O autor continua explicando que os resultados de golpes militares em todo o mundo,

tais como a afirmação do imperialismo, a exclusão de atores sociais ligados a projetos

nacional-populares e democráticos, a efetivação de um discurso anti-comunista, devem ser

compreendidos a partir das peculiaridades de cada sociedade31. Contudo, no caso da

sociedade brasileira: O desfecho de abril foi a solução política que a força impôs: a força bateu o campo da democracia, estabelecendo um pacto contra-revolucionário e inaugurando o que Florestan Fernandes qualificou como ‘um padrão compósito e articulado de dominação burguesa’ (suprimimos a nota de rodapé). Seu significado imediatamente político e econômico foi óbvio: expressou a derrota das forças democráticas,

31 Cf. Netto (1998, p. 17-18).

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nacionais e populares; todavia, o seu significado histórico-social era de maior fôlego: o que o golpe derrotou foi uma alternativa de desenvolvimento econômico-social e político que era virtualmente a reversão do já mencionado fio condutor da formação social brasileira. O que os estrategistas (nativos ou não) de 1964 obtiveram foi a postergação de uma inflexão política que poderia- ainda que sem lesionar de imediato os fundamentos da propriedade e do mercado capitalistas- romper com a heteronomia econômica do país e com a exclusão política da massa do povo. Nesse sentido, o movimento cívico-militar de abril foi inequivocadamente reacionário- resgatou precisamente as piores tradições da sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo em que recapturava o que parecia escapar (e, de fato, estava escapando mesmo) ao controle das classes dominantes, deflagrava uma dinâmica nova que, a médio prazo, forçaria a ultrapassagem dos seus marcos (NETTO, 1998, p. 25).

Para Netto (1998, p. 26), o essencial no período de 1961 a 1964 é que vivenciamos

“uma crise da forma da dominação burguesa no Brasil”, contexto no qual o capitalismo se

desenvolvia em uma fase de industrialização pesada em contraste com camadas sociais da

população exigindo reformas democráticas. Estas tensões sociais eclodiram então no cenário

político brasileiro fragilizando o poder das classes dominantes nacionais. Os estratos

burgueses da sociedade brasileira optaram por um regime de ditadura militar para resolver tal

impasse. O Estado ditatorial manteve o padrão de desenvolvimento econômico implementado

pelo governo brasileiro desde a década de 1950, levando ao extremo a falta de participação

popular e democrática, característica que já era marcante no Brasil. Somente assim a

acumulação de capital nessa nova dinâmica de desenvolvimento seria (e foi) possível. Quanto

ao modelo econômico e político dos anos 1950 no Brasil, Netto (1998, p. 27) esclarece que:

Readequado, aquele esquema é definido em proveito do grande capital, fundamentalmente dos monopólios imperialistas. O Estado erguido no pós-64 tem por funcionalidade assegurar a reprodução do desenvolvimento dependente e associado, assumindo, quando intervém diretamente na economia, o papel de repassador de renda para os monopólios, e politicamente mediando os conflitos setoriais e intersetoriais em benefício estratégico das corporações transnacionais na medida em que o capital nativo ou está coordenado com elas ou com elas não pode competir (e não é infreqüente que a coordenação se dê também por incapacidade para competir).

Durante o período da ditadura militar no Brasil, vários Atos Institucionais (AI’s)

foram aprovados modificando e limitando as funções das instituições. Mandatos foram

cassados, direitos políticos suspensos, perseguições, prisões, assassinatos aconteceram e

torturas contra adversários do regime e civis foram realizadas. Entre as medidas econômicas

adotadas durante o governo de Castelo Branco, em 1964, tivemos cortes nos gastos da União

e dos Estados, aumento dos impostos e no custo de vida da população, compressão dos

salários mínimos e a criação de regulamentações que impediam o direito de greve e também

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campanhas de exportação para facilitar a entrada de capital estrangeiro no país. Todas essas

medidas foram impostas pelo governo ditatorial sem que os trabalhadores pudessem ao menos

resistir a elas. Na esfera política, além dos ilimitados poderes do presidente de governar por

decretos, especialmente no que se referia às questões de segurança nacional, o cerco se

fechava para os outros partidos políticos que acabaram sendo extintos pelos militares.

O sistema multipartidário brasileiro se resumiu à existência de dois únicos partidos: a

Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Porém, a oposição se organizava para a redemocratização do país, de modo que, em 1968 32,

os movimentos sociais que ganharam o cenário internacional foram um incentivo adicional

para a organização de estudantes, setores da classe média, representantes da Igreja e

trabalhadores brasileiros que partiam para o embate com o governo (FAUSTO, 1995).

Segundo o autor, entre os anos de 1969 e 1973, o Brasil viveu o chamado “milagre

econômico”, período em que a economia cresceu extraordinariamente e as taxas de inflação se

mantiveram relativamente baixas. De acordo com Netto (1998, p. 30-31), o Estado interveio

fortemente na economia com o intuito de criar condições para a consolidação da centralização

do capital:

Ao Estado pós-64 cabia ‘racionalizar’ a economia: não somente criar o melhor quadro legal-institucional para a concentração e a centralização, mas ainda induzi-las mediante uma ação interna no processo de produção e acumulação. A política econômica estatal, em todos os seus níveis (dos dispositivos tributários, creditícios e financeiros à alocação de capitais diretamente para a produção), deveria voltar-se para acelerar o processo de concentração e centralização. Isto equivale a determinar que, no Brasil, o Estado autocrático burguês não pode ser visto somente como tendo em sua gênese um processo de concentração e centralização prévio; em si mesmo, ele se constituiu para induzir esta concentração e esta centralização. Analisado quantitativa e qualitativamente o período ditatorial, não resta nenhuma dúvida de que esta projeção histórico-societária, a que cabe perfeitamente a caracterização de modernização conservadora, realizou-se exemplarmente, amarrando toda a ordenação da economia brasileira.

Sob a “desculpa” de que o bolo precisava crescer para depois ser distribuído, a

concentração de renda foi aumentando nas mãos de poucas pessoas, de modo que a sua

32 “[...] ao longo dos anos sessenta e na abertura dos setenta, o peso do movimento sindical aumentou significativamente nos países centrais, demandando não somente melhorias salariais, mas ainda contestando a organização da produção nos moldes taylorista-fordistas (a mobilização francesa de 1968 e a italiana de 1969 foram extremamente significativas a esse respeito). Além disso, modificações culturais que tinham raízes nos anos imediatamente anteriores- sinalizadas pela contracultura, pela revolução nos costumes etc.- lançaram outros sujeitos na cena política, com movimentos de categorias sociais específicas, impropriamente designadas como ‘minorias’, nos quais existiam componentes anticapitalistas (nos anos sessenta, a revolta estudantil foi notável, assim como a mobilização dos negros norte-americanos em defesa de direitos civis; torna-se mais visível, também, o movimento feminista)” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 223-224).

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redistribuição nunca foi feita. Em 1974, com Geisel à frente da presidência da República, o

Brasil caminhou para a abertura política, a passos bastante lentos. Nesse mesmo ano,

ocorreram as eleições legislativas entre os partidos do MDB e Arena, com propaganda

eleitoral veiculada por rádio e televisão e a vitória de vários candidatos da oposição do

governo. A prática de tortura no DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações do

Centro de Operações de Defesa Interna), então, começava a ser extinta. No entanto, a

liberalização política não aconteceu de maneira completa durante o governo Geisel, que

continuava a decretar muitas medidas de repressão popular e restritivas no que se referia à

organização da oposição. Como sabemos, a crise mundial do petróleo afetou negativamente a

economia brasileira nesse período e o governo se dedicou ainda mais à produção de insumos

básicos como aço, alumínio, bens de capital e o próprio petróleo, mantendo-se firme no

objetivo de levar o país ao crescimento. Todavia, a economia brasileira não escapou dos

impactos da crise, os quais se expressaram através do agravamento da dívida oriundo da alta

das taxas de juros internacionais, dentre outros fenômenos. Os movimentos sindicais foram

ganhando certa autonomia e se desvinculando do Estado, greves dos metalúrgicos e

professores exprimiram essa nova fase do sindicalismo brasileiro (FAUSTO, 1995).

O autor descreve ainda que, quando Figueiredo tomou posse como presidente, em

1979, juntamente com os ministros do seu regime militar, este teve que impor uma política

econômica de mais cortes ao setor público, ao empresariado nacional e a outros setores da

sociedade, pois uma segunda crise internacional do petróleo fez subir ainda mais as taxas

internacionais de juros, do mesmo modo que aumentou as pressões com relação aos

empréstimos do Brasil no exterior. Mais grave ainda do que no período da crise internacional

de 1929, ficou a situação da população em geral que sofreu com o desemprego e a queda

brusca no nível de renda das famílias trabalhadoras, além da estagnação econômica, a alta da

inflação e a repressão de uma ditadura militar que, mesmo em menor grau, ainda existia.

Em 1979, a Nova Lei Orgânica dos Partidos foi criada, o que possibilitou a

emergência de novas organizações partidárias como o Partido dos Trabalhadores (PT), o

Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Partido Popular (PP), a Central Única dos

Trabalhadores (CUT), entre outras. Todo esse processo de abertura política se deu de forma

gradual com muitas resistências por parte do governo militar e seus aliados. Em 1982,

vereadores e governadores foram eleitos por voto direto, pela primeira vez desde 1965. No

ano de 1983, o PT encabeçou a Campanha pelas “Diretas Já” para presidente da república,

juntamente com outros partidos políticos e o povo foi às ruas para reivindicar este direito. A

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eleição direta não foi aprovada pelo Legislativo, contudo, em 1985, Tancredo Neves foi eleito

presidente da república do Brasil numa eleição indireta imposta pelo governo militar que o

antecedeu. Após a sua morte no mesmo ano, o vice-presidente José Sarney assumiu a

presidência do país.

Quanto ao Serviço Social brasileiro nesse momento histórico, concomitantemente a

um movimento de reforço do Serviço Social “tradicional”, existiu uma demanda pela

“modernização” da profissão. As novas condições em que a sociedade brasileira se encontrava

inauguraram um novo cenário para o exercício da profissão e para a formação profissional. A

prática profissional se desenvolveu integrada a um processo de modernização conservadora.

Tal processo gerou a ampliação do mercado nacional de trabalho que vinha se constituindo

desde os anos 1940. Este mercado de trabalho se constituía de novas características: foi

estruturado de acordo com o desenvolvimento do grande capital no Brasil e estava

salvaguardado pelo Estado autocrático burguês. O redimensionamento desse mercado foi

notável no âmbito do Estado, Netto (1998, p. 120) explica que:

A reorganização do Estado, ‘racionalizado’ para gerenciar o processo de desenvolvimento em proveito dos monopólios, reequaciona inteira e profundamente não só o sentido das políticas setoriais (então voltadas prioritariamente para favorecer o grande capital), mas especialmente toda a malha organizacional encarregada de planejá-las e executá-las. O tradicional grande empregador dos assistentes sociais reformula substantivamente, a partir de 1966-1967, as estruturas onde se inseriam aqueles profissionais- na abertura de uma série de reformas que, atingindo primeiramente o sistema previdenciário, haveria de alterar de cima a baixo o conjunto de instituições e aparatos governamentais através dos quais se interfere na ‘questão social’. Esta reformulação foi tanto organizacional quanto funcional: não implicou só uma complexificação (a que correspondeu uma vaga de burocratização) dos aparatos em que se inseriam os profissionais; acarretou , igualmente, uma diferenciação e uma especialização das próprias atividades dos assistentes sociais, decorrentes quer do elenco mais amplo das políticas sociais, quer das próprias seqüelas do ‘modelo econômico’.

Esta reformulação implicou, da mesma forma, o aumento da contratação de

profissionais de Serviço Social pelo setor público, mas a expansão e reformulação de

profissionais sucederam também em empresas e organizações filantrópicas. Novas exigências

foram postas também às/aos assistentes sociais, como por exemplo, uma postura mais

“moderna” diante das demandas, a adaptação aos fluxos e rotinas de cada instituição, a

subordinação a uma nova racionalidade de ordem burocrática e administrativa. Um dos

resultados disso foi o lento processo de erosão do Serviço Social tradicional, até porque o

perfil de profissional exigido pelo mercado de trabalho mudou, as instituições passaram a

contratar assistentes sociais mais familiarizados com esses novos procedimentos racionais e

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não mais aquelas/aqueles que se limitavam a uma visão humanista da sociedade. Para isso, o

ensino do Serviço Social se inseriu definitivamente no âmbito universitário que, devemos

lembrar, funcionava sob um rol de particularidades do regime autocrático burguês (NETTO,

1998).

Uma das características mais marcantes para o Serviço Social brasileiro nesse

período foi o seu processo de renovação. Este processo ocorreu no Brasil e em quase toda a

América Latina. Netto (1998, p. 131) assim o definiu:

Entendemos por renovação o conjunto de características novas que, no marco das constrições da autocracia burguesa, o Serviço Social articulou, à base do rearranjo de suas tradições e da assunção do contributo de tendência do pensamento social contemporâneo, procurando investir-se como instituição de natureza profissional dotada de legitimação prática, através de respostas a demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica, mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais (NETTO, 1998, p. 131).

Segundo o autor, o foco deste movimento estava na análise da própria profissão que

se gestava em meio a um pluralismo de idéias e concepções e, a partir de uma nova relação

que o Serviço Social estabelecia com as Ciências Sociais, na tentativa de um diálogo mais

crítico e melhor elaborado. Alguns aspectos apontavam para tensionamentos nesse processo

de renovação, entre eles, a instauração do pluralismo, a diferenciação nas concepções sobre a

profissão, a interlocução com as Ciências Sociais e a constituição de segmentos da vanguarda

na pesquisa e investigação. Netto (1998) chama a atenção ainda para o fato de que a

renovação no Serviço Social brasileiro foi um movimento de rompimentos e continuidades

com vários traços tradicionais que a profissão tinha até então. Contudo, o que importa

ressaltar é que, nesse período, várias outras tendências, no nível teórico e prático, foram

surgindo e se desenvolvendo no interior da profissão (NETTO, 1998).

O mesmo autor ressalta ainda que os cenários nacional e internacional em que o

processo de ruptura com o tradicionalismo no Serviço Social se desenvolveu foram elementos

decisivos para a sua concretização. Segundo ele,

Num curto prazo de tempo, o novo “processo” profissional começou a polarizar intensamente os quadros mais jovens da categoria dos assistentes sociais. Contribuía para isso, de um lado e fortemente, o cenário sociopolítico brasileiro e, igualmente, um caldo de cultura internacional: a temática da superação do subdesenvolvimento dava a tônica nas ciências sociais, na atividade política e imantava interesses governamentais e recursos em programas internacionais- estava-se em plena era do desenvolvimentismo (a sua expressão brasileira foi estudada, entre outros, por Cardoso, 1977). Mas, de outro lado, a gravitação do Desenvolvimento de Comunidade crescia porque, além da incorporação ao seu ideário de nomes

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respeitados na profissão, nele os novos quadros visualizavam a forma de intervenção profissional mais consoante com as necessidades e as características de uma sociedade como a brasileira- onde a “questão social” tinha magnitude elementarmente massiva. É nesta postura que, nem sempre elaborada teórica e estrategicamente, se filtra a erosão das bases do Serviço Social “tradicional”: sem negar-lhe explicitamente a legitimidade, as novas energias profissionais dirigiam-se para formas de intervenção (e de representação) que apareciam como mais consentâneas com a realidade brasileira que as já consagradas e cristalizadas nos “processos” que o identificavam historicamente (o Caso e o Grupo) (NETTO, 1998, p. 138).

Cabe lembrar que o Serviço Social “tradicional” caminhava para a sua erosão desde

a década de 1950, pois o processo de industrialização pelo qual o país passava demandava

novas formas de intervenção, com base na compreensão da questão social em dimensões

macrossocietárias. Ou seja, a prática profissional fundamentada no Desenvolvimento de

Comunidade era, em sua essência, acrítica e voltada para a lógica do desenvolvimentismo,

mas a abordagem sobre o trabalho nas comunidades continha elementos para uma possível

ultrapassagem do tradicionalismo na profissão (NETTO, 1998).

Contudo, Netto (1998) ressalta que, neste período, em meados da década de 1950, o

Serviço Social “tradicional” não foi abolido, apenas sinais sobre a sua erosão emergiram, de

modo que na década seguinte, esse processo se intensificou também por influência do quadro

sociopolítico brasileiro, com destaque para quatro eventos que rebateram sobre a profissão

(NETTO, 1998, p. 139-140):

O primeiro remete ao próprio amadurecimento de setores da categoria profissional, na sua relação com outros protagonistas (profissionais: nas equipes multiprofissionais; sociais; grupos da população politicamente organizados) e outras instâncias (núcleos administrativos e políticos do Estado). O segundo refere-se ao desgarramento de segmentos da Igreja católica em face do seu conservantismo tradicional; a emersão de “católicos progressistas” e mesmo de uma esquerda católica, com ativa militância cívica e política, afeta sensivelmente a categoria profissional. O terceiro é o espraiar do movimento estudantil, que faz seu ingresso nas escolas de Serviço Social e tem aí uma ponderação muito peculiar. O quarto é o referencial próprio de parte significativa das ciências sociais do período, imantada por dimensões críticas e nacional-populares.

Nesse contexto, as/os assistentes sociais foram elaborando críticas mais

aprofundadas ao Serviço Social “tradicional” e incrementando o procedimento técnico em

maior evidência naquele momento, o Desenvolvimento de Comunidade. Surgiam então

vertentes profissionais diferenciadas na categoria profissional que enriqueciam o

desenvolvimento da profissão e o debate acerca de questões teórico-metodológicas, operativas

e ideológicas no campo do Serviço Social, segundo Netto (1998). No entanto, o golpe militar

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de abril de 1964, no Brasil, atingiu de maneira abrupta esse movimento que se desenhava no

meio profissional: os atores engajados numa leitura mais crítica e de enfrentamento ao Serviço

Social “tradicional” tiveram que se posicionar de maneira mais “moderada” no período

ditatorial. Ao mesmo tempo, o projeto de modernização conservadora da ditadura militar

acelerou o processo de erosão do Serviço Social “tradicional” brasileiro (NETTO, 1998).

Com base nisso, o autor afirma que:

Evidencia-se, assim, que a renovação do Serviço Social que se processa no marco da autocracia burguesa mantém uma relação complexa com o quadro anterior da profissão: erguendo-se sobre o colapso da legitimação das formas profissionais “tradicionais”, resgata alguns de seus núcleos tanto quanto bloqueia alternativas de desenvolvimento que estavam embutidas naquele colapso- ao mesmo tempo em que dinamiza, sobre novo piso, outras tendências emergentes no processo da crise que converteu em dado explícito (NETTO, 1998, p. 141).

A crise do Serviço Social “tradicional” foi um processo que se deu em vários países

da América Latina que vivenciavam um contexto sócio-político, econômico e cultural muito

particular, durante os anos sessenta. O contexto mundial, nessa década, era de recessão

econômica, com manifestações populares que questionavam a ordem social capitalista, de

reordenamento das políticas sociais de Estado e da emergência de diferentes movimentos

sociais que reivindicavam por direitos. Toda essa conjuntura se refletiu nos países latino-

americanos de maneira peculiar tendo em vista a condição de “subdesenvolvimento” e

subordinação destes em relação aos países denominados centrais. Além disso, outros

elementos característicos do movimento interno da profissão, os quais já foram citados

anteriormente, corroboraram a dissolução do Serviço Social “tradicional” (NETTO, 1998).

Para Netto (1998), um dos principais movimentos que emergiu nesse período de

renovação do Serviço Social brasileiro, foi o Movimento de Reconceituação da profissão.

Segundo ele, foi no decorrer deste Movimento que as especificidades latinas adquiriram maior

peso no redesenho da profissão. De acordo com Faleiros (apud NETTO, 1998, p. 146), “a

ruptura com o Serviço Social tradicional se inscreve na dinâmica de rompimento das amarras

imperialistas, de luta pela libertação nacional e de transformações da estrutura capitalista

excludente, concentradora, exploradora”. O Movimento de Reconceituação do Serviço Social

brasileiro foi um marco de suma importância na história da profissão, que coroou esse

processo de erosão do Serviço Social “tradicional” que já vinha se desenvolvendo no interior

da categoria profissional em décadas anteriores.

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Na conjuntura histórica da década de 1960, assistentes sociais se questionavam sobre

o papel profissional diante das novas configurações da questão social, dos problemas locais e

regionais, assim como colocavam em pauta discussões sobre a eficácia das ações

profissionais, a pertinência dos fundamentos teóricos que embasavam a prática profissional,

entre outros temas. Os primeiros passos desse Movimento marcaram a união de forças de uma

grande parcela da categoria profissional contra as práticas tradicionais ainda vigentes no

Serviço Social brasileiro, como exposto nos parágrafos anteriores.

Dois grupos se distinguiam nesse grande movimento: aquelas/aqueles profissionais

que pretendiam modernizar a prática profissional e aquelas/aqueles que reclamavam uma

ruptura com as antigas práticas. Tais diferenças entre os grupos não puderam ser

desenvolvidas, tendo em vista o seu “congelamento” por mais de uma década, a partir dos

anos 1970, ocasionado pela repressão militar no Brasil e em outros países da América Latina.

O Movimento de Reconceituação do Serviço Social tomou sentidos diferentes nos vários

países latino-americanos, no caso do Brasil, este se traduziu especialmente em seus anos

iniciais, basicamente numa corrente de modernização profissional. A perspectiva

modernizadora foi a incorporação, na prática do Serviço Social, de técnicas voltadas para o

atendimento das demandas sociais nos limites da racionalidade burocrática que caracterizava

o conjunto de reformas implementadas durante a ditadura militar. (NETTO, 1998).

Um dos marcos históricos do Movimento de Reconceituação foi o I Seminário

Regional Latino-Americano de Serviço Social, realizado no Brasil, em 1965. A este seguiram-

se outros seminários regionais que ocorreram em diferentes países da América do Sul. Para

citarmos um deles, faremos uma breve referência ao Seminário de Araxá, realizado em 1967.

O Seminário de Araxá reuniu 38 assistentes sociais que debateram questões como a definição

da profissão, os objetivos das ações profissionais, as funções profissionais, metodologia,

princípios da ação profissional, entre outras. As discussões desse encontro resultaram no

Documento de Araxá que, basicamente, discorria sobre a profissão enquanto uma prática

institucionalizada a ser desenvolvida com indivíduos com desajustamentos familiares e

sociais; a promoção humana era tida como fundamental para a intervenção junto aos

indivíduos em sua globalidade; o atendimento a valores humanos universais era um dos

objetivos profissionais colocado pelo grupo; “o enfoque orientado por uma visão global do

homem, integrado em seu sistema social” (CBCISS, 1986:31 apud NETTO, 1998, p. 170) era

considerado uma peculiaridade do trabalho profissional de assistentes sociais; a metodologia

deveria se situar no nível da microatuação, ou seja, operacional e no nível da macroatuação

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que compreendia as atividades voltadas para a integração com outras esferas das políticas

sociais, etc (NETTO, 1998). Contudo, o autor compreende que neste momento não houve

rompimento com o tradicionalismo, e sim a sua apreensão sob novas bases. Ele explica ainda

que o terreno teórico do estrutural-funcionalismo se destacava no conteúdo do documento,

assim como havia uma preocupação que se limitava à modernização da profissão atendendo

às exigências da nova realidade no país (NETTO, 1998).

Este é um exemplo de como a profissão tentou se adaptar à nova ordem social

imposta pela autocracia burguesa. A forma encontrada por parte das/dos profissionais de

Serviço Social naquele período foi o rearranjo de procedimentos profissionais apoiados em

correntes do pensamento com matriz na sociologia positivista, tais como o funcionalismo que

já havia sido trazido como uma novidade por assistentes sociais, após formação nos Estados

Unidos.

O funcionalismo ganhou visibilidade em meados dos anos 1945, após a Segunda

Guerra Mundial, nos Estados Unidos, quando o país vivia uma situação de prosperidade

econômica e política com a sua afirmação enquanto potência mundial e que, por isso, buscava

meios para garantir a sua estabilidade social. Desse modo, alguns estudiosos norte-americanos

voltavam as suas preocupações para variáveis individuais no que dizia respeito ao âmbito

profissional, familiar, do mercado de consumo, do sistema eleitoral, etc., as quais podiam ser

coletadas por meio de pesquisas empíricas e quantitativas respondendo aos questionamentos

de como as pessoas viviam, como se comportavam e o que pensavam. A finalidade desses

estudos era identificar os elementos desviantes presentes no comportamento dos indivíduos

(os quais, acreditavam os seus adeptos, incidiam sobre uma determinada categoria social, a

dos pobres) e corrigi-los, de modo a se criar uma sociedade mais igualitária e atenta às

principais necessidades oriundas do processo de industrialização. Uma das principais ideias

propagadas pelo funcionalismo foi a seguinte: a sociedade deve funcionar como um

organismo, um sistema que necessita de todas as partes funcionando de forma integrada. Os

indivíduos e grupos sociais são partes essenciais nesse organismo e devem exercer bem a sua

função para que este todo se mantenha em pleno funcionamento. Aplicada ao Serviço Social,

a teoria funcionalista se concretizou através da classificação dos fenômenos mais recorrentes

durante a prática profissional, da elaboração de variáveis que podem ser construídas a partir

da observação atenta desses fenômenos, da localização de funções profissionais para a

adequada intervenção nos fenômenos.

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Conforme dito anteriormente, em meados da década de 1970, por conta do

fortalecimento do governo militar, o Movimento de Reconceituação do Serviço Social foi se

esvaindo, primeiramente, no Brasil e, depois, em outros países do Cone Sul (NETTO, 1998).

Ainda de acordo com esse autor, a unidade nesse movimento era uma “ilusão” e as tendências

progressistas de renovação da profissão no Brasil foram sendo abafadas por uma direção

modernizadora da prática profissional fortalecida pelo contexto da ditadura militar.

Concomitantemente a esse processo de modernização no Serviço Social brasileiro,

outras vertentes teóricas surgiram durante a década de 1970, como por exemplo, as vertentes

fenomenológica e marxista. Netto (1998) explica que a fenomenologia foi uma renovação do

conservadorismo na profissão, momento em que a autocracia burguesa começava a entrar em

crise, a “(auto) representação” das/dos assistentes sociais sob a “perspectiva modernizadora”

também estava perdendo forças e um grupo forte de profissionais ainda muito ligados ao

“Serviço Social tradicional” começou a se articular dentro dessa nova realidade, conduzindo o

Serviço Social para uma nova direção, com traços religiosos, que Netto (1998, p. 156) irá

denominar de “reatualização do conservadorismo”. Tal vertente que se desenvolveu no

processo de renovação do Serviço Social brasileiro buscava se opor à brutalidade da vida

cotidiana moderna por meio de uma “retórica irracionalista da humanização” (NETTO, 1998,

p. 158) e se traduzia na valoração da personalidade e de situações existenciais para a

intervenção profissional. De acordo com o autor:

Trata-se de uma vertente que recupera os componentes mais estratificados da herança histórica e conservadora da profissão, nos domínios da (auto) representação e da prática, e os repõe sobre uma base teórico-metodológica que se reclama nova, repudiando, simultaneamente, os padrões mais nitidamente vinculados à tradição positivista e às referências conectadas ao pensamento crítico-dialético, de raiz marxiana (NETTO, 1998, p. 157).

Já a obra clássica de Iamamoto e Carvalho, “Relações Sociais e Serviço Social no

Brasil (Esboço de uma interpretação histórico-metodológica)”, publicada em 1982, explica o

significado social da profissão sob o referencial marxiano, com grande maestria. Com base

nesse marco teórico da profissão, as/os assistentes sociais brasileiros (as) construíram o

Código de Ética, o currículo de formação profissional e a regulamentação jurídica do Serviço

Social brasileiro, que, por sua vez, estão fundamentados na compreensão histórico-dialética

sobre a sociedade, movimento que mais de uma vez buscou romper com o conservadorismo

histórico da profissão.

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A terceira perspectiva renovadora da profissão de Serviço Social no Brasil, à qual já

nos referimos anteriormente e que foi interrompida, durante a década de 1970, foi a “intenção

de ruptura com o Serviço Social tradicional” (NETTO, 1998, p. 158) que se baseava em

críticas ao conteúdo teórico, metodológico e ideológico das velhas práticas que deveriam ser

extintas do meio profissional, como esclarece o autor (NETTO, 1998, p. 159): “Com efeito,

ela manifesta a pretensão de romper quer com a herança teórico-metodológica do pensamento

conservador (a tradição positivista), quer com os seus paradigmas de intervenção social (o

reformismo conservador)”.

Em síntese, reafirmamos a tese de Yazbek (2010) de que, apesar de todo o processo

de maturação do Serviço Social nesse período, este não rompeu definitivamente com o

conservadorismo inerente a ele, de maneira que esse modo de pensar e agir se mantém e se

atualiza nos dias atuais. No entanto, o processo de maturação da profissão que está em pleno

movimento, do ponto de vista teórico e prático, vem resultando na construção de uma forte

representação organizativa da categoria de assistentes sociais e também na participação desses

agentes em movimentos históricos da luta por direitos, como é o caso da consolidação do

sistema de Seguridade Social regulamentado pela Constituição Federal de 1988, a aprovação

da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), em 1993, dentre outros.

Contraditoriamente, nesse momento histórico entre os anos 1980 e 1990, o mundo

sentia os efeitos de uma grave crise econômica que se refletia nos altos índices de

desigualdade social, sendo que o capital respondia a ela por meio da implementação de ajustes

fiscais, das reformas neoliberais e de outras medidas de reajuste econômico. A questão social

também sofreu mudanças obrigando as/os assistentes sociais a lidar com novas formas de

exploração do trabalho humano, com o reducionismo das políticas públicas e com o

enfraquecimento dos espaços públicos de participação da sociedade civil, nos quais outrora o

Serviço Social marcou presença ativa.

Todavia, foi também nesse período que a assistência social conquistou novos

paradigmas e ganhou a dimensão de política pública inserida no Sistema de Seguridade

Social, juntamente com a Saúde e a Previdência Social, conforme abordaremos a seguir. Foi

uma longa trajetória de lutas no sentido da garantia de direitos, dentre elas, destacaremos

nesse trabalho a aprovação da PNAS-2004. Os avanços que se destacam nesse processo são

muitos, dentre os quais a transformação da assistência social em política pública provedora de

proteção social a todos (as) que dela necessitarem e que deve ser regida sob os princípios da

universalização dos direitos sociais, do respeito à dignidade, do respeito à autonomia dos

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indivíduos, da convivência familiar e comunitária, da proibição de comprovações vexatórias

de necessidades sociais, da igualdade no acesso ao atendimento e da divulgação dos serviços,

benefícios, programas e projetos assistenciais (PNAS, 2004). A partir desse momento, um

contexto inovador de conceituação teórica e reconfiguração de toda a estrutura do

atendimento na área da assistência social, começou a ser experimentado e amadurecido

pelas/os profissionais no seu cotidiano de trabalho, em diversas realidades locais, com traços

ainda muito fortes do conservadorismo constitutivo da história da profissão de Serviço Social,

somados a ideias conservadoras da sociedade contemporânea em que vivemos.

4. Os desdobramentos do conservadorismo na atualidade

Entre o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e início da década de 1970, o

capitalismo passou por intensas mudanças. Alguns economistas denominam esse período de

“anos dourados” porque, apesar das crises cíclicas33 que continuavam a existir na economia

capitalista, estas tiveram impactos reduzidos sobre o conjunto da sociedade, as taxas de

crescimento econômico alcançaram níveis excelentes com a produção industrial dos países

desenvolvidos, o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou nessas regiões e, consequentemente,

as taxas de lucro dos industriais e empresários ampliaram. Contraditoriamente, também foi

nesse período que o sistema capitalista foi alvo de várias contestações (NETTO, BRAZ, 2011,

p. 206). Os autores assim exemplificam esse movimento:

De uma parte, tendo sido a força decisiva na vitória contra o fascismo, a União Soviética passou a desfrutar de grande prestígio e poder, agora não mais isolada, mas cercada por um conjunto de países que, libertados da ocupação nazista, romperam com o capitalismo e se dispunham à experiência socialista. De outra, especialmente na Europa Nórdica e Ocidental (à exceção de Espanha e Portugal, onde as ditaduras fascistas se prolongaram até meados dos anos setenta), o movimento operário e sindical e os partidos ligados aos trabalhadores conquistaram enorme legitimidade, impondo limites e restrições efetivos aos monopólios. Nesse mesmo período, ganhou dimensão mundial a mobilização anticolonialista que, ao fim, acabou por destruir os impérios coloniais- com a exitosa luta pela libertação nacional por vezes derivando em expressivas opções pelo socialismo (foi o caso da China, do Vietnã, de várias nações africanas e, na América, de Cuba).

33 Sobre isso, Netto e Braz (2011, p. 167) nos explicam que: “A análise teórica e histórica do modo de produção capitalista comprova que a crise não é um acidente de percurso, não é aleatória, não é algo independente do movimento do capital. Não é uma enfermidade, uma anomalia ou uma excepcionalidade que pode ser suprimida no capitalismo. Expressão concentrada das contradições inerentes ao modo de produção capitalista, a crise é constitutiva do capitalismo: não existiu, não existe e não existirá capitalismo sem crise”.

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A liderança militar, política e econômica dos Estados Unidos se afirmou perante os

países europeus e o resto do mundo por meio de episódios como, por exemplo, a Guerra Fria,

entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 1990, que solidificou ainda mais

a estrutura da economia capitalista imperialista. Outras características desse período foram as

mudanças nos fluxos de exportação de capitais, na organização do trabalho industrial que

passou a se estruturar sob o modelo taylorista-fordista34, houve também a expansão do

“american way of life” (ou estilo americano de vida), o aumento do crédito ao consumidor, a

incidência frequente do fenômeno da inflação e o enorme crescimento do setor de serviços

(NETTO; BRAZ, 2011).

Contudo, uma modificação igualmente importante nesse contexto de transformações

do mundo capitalista foi a instauração do modelo de Estado de Bem-Estar Social, Welfare

State, sob a orientação do modelo econômico keynesiano35. O Welfare State (do qual tratamos

no capítulo a seguir) foi pensado para responder a algumas contradições inerentes ao modo de

produção capitalista e que se acentuaram durante o estágio imperialista, tais como a

concorrência acirrada entre as grandes empresas monopolistas e os seus reflexos sobre o

sistema produtivo, as relações de trabalho e as condições de vida dos trabalhadores (NETTO,

BRAZ, 2011). Tendo em vista o que foi exposto anteriormente, compreende-se que, a partir

do estágio do capitalismo imperialista, o Estado precisou intervir também nas condições

internas de produção e acumulação capitalistas, como se depreende da citação a seguir:

O Estado passou a se inserir como empresário nos setores básicos não-rentáveis (especialmente os que fornecem aos monopólios, a baixo custo, insumos e matérias-primas fundamentais), a assumir o controle de empresas capitalistas em dificuldades, a oferecer subsídios diretos aos monopólios e a lhes assegurar expressamente taxas de lucro. Suas funções indiretas, além das encomendas/compras aos monopólios, residem nos subsídios mascarados (a renúncia fiscal), nos maciços investimentos em meios de transporte e infra-estrutura, nos gastos com investigação e pesquisa; (suprimimos nota de rodapé) mas residem, sobretudo, no plano estratégico: aqui, através de planos e projetos de médio prazo, o Estado sinaliza a direção do desenvolvimento, indicando aos monopólios áreas de investimento com retorno garantido no futuro (NETTO, BRAZ, 2011, p. 214).

Netto e Braz (2011) atentam ainda para o fato de que um dos diferenciais mais

marcantes do Estado na era dos monopólios é o seu papel perante a força de trabalho. Este

34 Trata-se de um padrão de produção industrial baseado na produção em massa de mercadorias, no maior controle das operações realizadas pelos trabalhadores, na redução do tempo de produção e intensificação do ritmo de trabalho. Cf. Antunes (2010). 35 O keynesianismo foi uma teoria econômica que rompeu com o ideal liberal da “mão invisível do mercado” e propôs a intervenção do Estado nos assuntos de economia e sociais. No pós-guerra, seguindo essa orientação, Estados europeus adotaram o modelo do Welfare State. Cf. Pereira (2011).

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responde aos problemas decorrentes da exploração da força de trabalho por meio de medidas

que buscam privilegiar os monopolistas. Um exemplo desse favorecimento é a exoneração de

impostos por parte desses grupos e a taxação da classe trabalhadora que acaba financiando

parte significativa dos serviços públicos como saúde, educação, habitação, assistência social,

etc. As funções estatais passam a servir, em grande medida, aos interesses dos monopólios.

Contudo, onde os movimentos populares e a classe trabalhadora resistiram no enfrentamento

com o Estado (aliado da burguesia monopolista), direitos sociais, civis e políticos foram

reconhecidos. Este reconhecimento se deu por meio da “consolidação de políticas sociais e a

ampliação da sua abrangência, na configuração de um conjunto de instituições que dariam

forma aos vários modelos de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State)” (NETTO, BRAZ,

2011, p. 216).

A partir dos anos 1970, os “anos dourados” entraram em crise e adentramos num

período que Cueva (1989) denominou de tempos conservadores, vivenciados no Ocidente e

na América Latina. Segundo o autor, grande parte da intelectualidade nesses países

compactuou com essa realidade e reproduziu idéias conservadoras em suas teorias. Netto e

Braz (2011) fazem referência a esse momento histórico sob a denominação de “capitalismo

contemporâneo”, conforme será tratado adiante. Uma das teses que explica a crise dos “anos

dourados” é a do fim de uma onda longa expansiva do capital36, que fez reduzir as taxas de

crescimento econômico nos países capitalistas centrais e gerou, dentre outras situações, a crise

do petróleo no mundo.

Os autores salientam também um fator muito importante para as mudanças no

percurso do sistema capitalista: o fortalecimento do movimento sindical e de movimentos

sociais, sobretudo, em países desenvolvidos na Europa, que contestavam as relações sociais

baseadas no modo de produção taylorista-fordista e que agudizavam diversos problemas

sociais como, por exemplo, a redução dos salários dos trabalhadores e a concentração de

renda nas mãos de pequenos grupos. Um exemplo marcante desse movimento contestatório

36 Com base na teoria mandeliana do capitalismo tardio, Netto e Braz (2011, p. 223) explicam que um dos principais suportes da fase dos “anos dourados” do capitalismo, na economia, foi uma onda longa expansiva do capital em que os momentos de prosperidade do capital foram mais intensos do que os seus momentos de crise: “[...] as crises não foram suprimidas, mas seus impactos viram-se reduzidos (em vez das depressões, recessões) e as retomadas foram rápidas e intensas; pode-se dizer que as crises constituíram uma série de pequenos episódios num arco em que o crescimento econômico mostrou-se dominante. Os ‘anos dourados’ expressam exatamente esta onda longa de expansão econômica (que não foi a primeira a registrar-se na história do capitalismo), durante a qual crescimento econômico e taxas de lucro mantiveram-se ascendentes entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a segunda metade dos anos sessenta”.

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foi a mobilização francesa, em 1968, já referida neste trabalho. Entre os anos 1974 e 1975,

iniciou-se o processo de declínio da fase áurea do capitalismo:

A onda longa expansiva é substituída por uma onda longa recessiva: a partir daí e até os dias atuais, inverte-se o diagrama da dinâmica capitalista: agora, as crises voltam a ser dominantes, tornando-se episódicas as retomadas (NETTO; BRAZ, 2011, p. 224).

Nessas condições, para combater o levante das massas populares e uma nova crise

econômica, o capital monopolista se utilizou de uma “estratégia política global” que

envolveu o combate ferrenho ao movimento sindical por meios repressivos, a culpabilização

do Welfare State pela crise econômica instalada e a luta pelo seu fim, a introdução da

acumulação flexível37 como um novo sistema produtivo, o processo de reestruturação

produtiva38. Medidas que tiveram por objetivo renovar a força do capital monopolista sob a

forma de recuperação da taxa de lucros dos negócios (NETTO; BRAZ, 2011). Os custos disso

recaíram sobre os trabalhadores que sofreram com o desemprego, a redução dos salários, a

precarização do trabalho, entre outras consequências que são características dessas

transformações no mundo do trabalho. Além do desemprego ter se tornado um “fenômeno

permanente” na sociedade contemporânea, a questão social adquiriu uma grave dimensão

nesses tempos de crise.

O capitalismo contemporâneo integra uma “terceira fase do estágio imperialista”,

portanto, este ainda se desenvolve em função dos interesses dos grandes monopólios, mas

agora com novas características (NETTO; BRAZ, 2011). Segundo os autores, as mudanças no

processo produtivo culminam em um processo que eles denominam de “gigantesca invasão do

capital” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 232) em domínios que anteriormente estavam a salvo da

37 O modelo de acumulação flexível “[...] se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (Harvey, 1993, p. 140 apud NETTO; BRAZ, 2011, p. 225). 38 Ferrari (2012, p.53) nos explica que esse termo tem sido empregado de forma genérica, então, a autora pormenoriza as suas principais transformações no âmbito socioeconômico de organização e controle do trabalho social pelo capital, sendo elas “a reconfiguração da base técnica dos processos de trabalho no chão da fábrica, ocasionando elevados índices de desemprego industrial; o aumento no caráter cooperativo do trabalho, com o consumo produtivo pelo capital de maior número de atividades expulsas ou não do interior das unidades produtivas fabris, acarretando uma intensificação do uso do solo urbano; a indicação de que o setor de serviços é a solução para esse desemprego industrial; a generalização do uso da informática e da teleinformática; o reacomodamento do Estado às exigências da reprodução do capital; a implantação de uma ordem institucional diversa; um arcabouço ideológico pautado no cooperativismo, no voluntariado, na cidadania, no desenvolvimento econômico local; a ampliação da produtividade do trabalho”.

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mercantilização e em outros em que o comando do capital já existia, mas que foi acentuado

nos tempos atuais como, por exemplo, na saúde, na educação, na moradia, na cultura, no

lazer, no esporte, entre outros. Entretanto, o que mais se destaca nesse cenário recente é a

concentração e centralização de capital por parte dos grandes monopólios no campo das

finanças.

Conforme afirmam Netto e Braz (2011), os fluxos econômicos mundiais sempre

fazem parte do modo de produção capitalista, porém, na fase contemporânea do capitalismo,

os mais importantes acordos comerciais são feitos entre os países centrais (o chamado

comércio intracorporativo); países de uma mesma região se unem em blocos para a

realização de transações econômicas sob o comando dos monopólios, como é o caso da União

Européia e outros; e o ritmo da especulação financeira cresceu enormemente. A

superacumulação resultante da crise dos anos setenta e oitenta propiciou o surgimento de um

novo segmento social, o segmento dos rentistas que vivem da “massa de capital dinheiro que

não é investida produtivamente, mas que succiona seus ganhos (juros) da mais-valia global-

trata-se, como se vê, de uma sucção parasitária” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 241). Portanto,

um grande montante de capital acumulado, sob a forma de capital-monetário39, foi investido

no setor produtivo e de serviços, durante esse período, de modo que a sua outra parte ficou

aguardando valorização na esfera da circulação. Atualmente, muitos capitalistas passaram a

viver desse capital no circuito da circulação e quando ele cresce e passa a render juros, torna-

se fonte de acumulação para esses rentistas. Junto com a elevação desse capital-monetário

cresceu também o capital em sua forma fictícia, ou seja, a falsa imagem de que a esfera

financeira está desvinculada da esfera produtiva e, por isso, o dinheiro assumiu uma forma

fetichizada, um poder independente dos seres humanos. As finanças ostentam de um destaque

tão grande na contemporaneidade que os seus agentes concentram um poder em condições de

igual disputa com os Estados Nacionais e seus bancos centrais (NETTO; BRAZ, 2011).

Os autores explicam ainda que, com o crescimento do capital fictício40, as atividades

financeiras passaram a constituir o sistema nervoso do capitalismo e uma oligarquia rentista é

39 Com base na teoria marxiana, Netto e Braz (2011) esclarecem que o capital-monetário é o capital na forma de dinheiro que constitui um dos momentos do movimento do capital. É o capital no seu momento inicial, quando “o capitalista adquire meios de produção e força de trabalho para produzir mercadorias” (p. 138). A partir daí, o capital monetário se transforma em capital produtivo e um segundo momento deste movimento se processa: “trabalhadores assalariados operam meios de produção e produzem novas mercadorias (M’), criando valores excedentes (mais-valia)” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 138). A mais-valia só se completa quando estas novas mercadorias são trocadas por dinheiro na esfera da circulação. 40 “Entende-se por capital fictício ‘as ações, as obrigações e os outros títulos de valor que não possuem valor em si mesmos. Representam apenas um título de propriedade, que dá direito a um rendimento [...]’ (Koslov, dir., 1,

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responsável por grandes crises econômicas e políticas que atingem países no mundo inteiro,

como é o caso da atual crise mundial que teve início com o estouro da bolha financeira, em

2008, nos Estados Unidos41. Contudo, o processo de financeirização do capital é o fenômeno

mais marcante dessa era do capitalismo contemporâneo, de modo que este mantém relação

com a mundialização do capital42, na medida em que os grandes grupos industriais se

organizam em monopólios aliados a instituições financeiras e aos Estados Nacionais,

permitindo a ação livre de investidores financeiros nesse nicho, o que interfere diretamente

nas relações sociais e políticas dos países envolvidos, conforme demonstra Iamamoto (2010).

Sendo assim, consideramos que o conservadorismo é uma forma de pensamento e

ação que sempre esteve em vigor na sociedade, desde o seu surgimento na Modernidade. Ora

ele está mais oculto, ora está mais evidente entre nós. Segundo Cueva (1989), desde a década

de 1970, quando o capitalismo entrou nessa nova fase histórica, o conservadorismo tem se

expressado com força por meio de várias situações como a despolitização crescente do povo,

a adesão cada vez maior da intelectualidade às idéias da direita, a prática do racismo com

traços nazi-fascistas, a implantação de políticas de Estado xenófobas, entre outras. E, em

tempos de crise, quando os países desenvolvidos atingem altos índices de desemprego,

famílias passam a vivenciar a pobreza, as pessoas perdem o direito de acessar os sistemas de

proteção social, dentre outras problemáticas, o pensamento conservador tende a ganhar nova

1981: 217). Assim como o capitalismo não pode funcionar sem uma determinada massa de capital conservada enquanto capital dinheiro, também não pode funcionar sem capitais fictícios- mas, do mesmo modo que contemporaneamente aquela massa cresceu de forma espetacular, igualmente cresceu, de modo assombroso, o montante do capital fictício. Esse crescimento tem sido de caráter nitidamente especulativo, ou seja: não guarda a menor correspondência com a massa de valores reais” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 242). 41 Com a circulação de bilhões de dólares na “cadeia de securitização”, ou seja, no processo de transformação de uma dívida com determinado credor em dívida com compradores de títulos originados no montante dessa dívida, criou-se um “boom” imobiliário nos Estados Unidos. Além disso, o nível de “alavancagem” dos bancos era muito alto, o que se transformou em outro risco para o sistema financeiro. Os investidores de Wall Street optaram por colocar suas empresas financeiras em risco, em função dos altos lucros que essas ações poderiam gerar. Em 2008, a “cadeia de securitização” implodiu e os emprestadores não podiam mais vender os seus empréstimos falindo muitos deles. O mercado para CDO´s (os emprestadores vendem hipotecas para os bancos de investimento, de modo que os últimos combinam essas hipotecas com outras hipotecas e outros empréstimos, criando assim uma combinação de derivativos ou o que eles denominam de CDO´s) ruiu e os bancos de investimentos que possuíam empréstimos, CDO´s e imóveis já não podiam mais vendê-los. Exemplo disso foi o Banco Bear Stearns que, neste mesmo ano, faliu. As instituições financeiras Lehman Brothers e Merril Lynch também faliram e o mundo vivenciou e ainda vivencia um período de caos. Após isso, a folha de pagamentos das empresas também foi atingida prejudicando milhares de trabalhadores e suas famílias (Filme Trabalho interno- Inside Job, Diretor Charles Ferguson, de 2010). 42 Categoria analítica utilizada por Chesnais, a qual ele define como “o quadro político e institucional que permitiu a emersão, sob a égide dos EUA, de um modo de funcionamento específico do capitalismo, predominantemente financeiro e rentista, situado no [...] prolongamento direto do estágio do imperialismo” (CHESNAIS, 1997:46 apud NETTO; BRAZ, 2011, p. 221).

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força, sendo algumas de suas expressões mais marcantes a naturalização e criminalização da

questão social. As famílias pobres são criminalizadas por sua condição de pobreza e o apelo

às saídas por meio do fortalecimento da auto-estima e/ou da religiosidade são frequentes.

Ao destacar o “conformismo da classe operária” nas sociedades capitalistas

avançadas, Cueva (1989) se baseia nas idéias de Marcuse43 para escrever que o “totalitarismo

técnico-ideológico” se une a uma “ilusão de soberania do povo” nesse modelo de sociedade

pós-1970. Ou seja, na sociedade contemporânea há uma tendência de se negar qualquer tipo

de oposição à ordem social consolidada, e, com isso, as manifestações populares, os espaços

de participação popular, tornaram-se perigosos, pois assumiram uma nova função: a de buscar

um sentido de coesão social no mundo em que vivemos, e não mais de transformação social.

O que presenciamos nas últimas décadas do século XX e ainda no início do século XXI,

particularmente nos países da América Latina, é essa “ilusão de soberania popular”

alimentada por um “conformismo prático das massas despolitizadas” (CUEVA, 1989, p. 20),

mas também por “idéias conservadoras refinadamente elaboradas pelas antigas elites

progressistas” (CUEVA, 1989, p. 21), as quais se fazem valer por meio de práticas baseadas

no consenso, na democracia tal como é colocada em prática hoje, sem a real participação do

povo. Segundo o autor, essa tendência avançou com a “brusca guinada à direita da grande

maioria dos intelectuais do Ocidente” (CUEVA, 1989, p. 21). Já as classes populares foram

forçadas, por métodos repressivos modernos e sutis, a se limitarem à luta isolada pela

sobrevivência cotidiana.

No Brasil, por um lado, após a crise do regime militar, Sarney assumiu a presidência

da república, em 1985, sem romper totalmente com as práticas do antigo regime: o saldo da

balança comercial continuou a ser destinado, prioritariamente, ao pagamento dos juros da

dívida externa, o setor público se manteve como alvo de cortes financeiros, os índices

inflacionários caminharam para o seu topo máximo, etc. Por outro lado, acontecimentos como

a constituição da Assembléia Nacional Constituinte e a aprovação da nova Constituição

Federal, em 1988, tiveram a participação de vários setores da sociedade brasileira resultando

na conquista de direitos sociais e políticos dos cidadãos, na votação por um sistema político

presidencialista e republicano no país, momento em que a população se mobilizou em favor

da redemocratização no Brasil. Contudo, Fausto (1995) atenta para o fato de que esse

43 Herbert Marcuse (1898-1979) foi um filósofo político alemão que combinou marxismo e psicologia freudiana em suas obras, pertenceu à Escola de Frankfurt, entre as suas principais obras estão Razão e Revolução (1941) e Eros e Civilização (1955).

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processo não passou de um “acordo geral pela democracia” que ocorreu entre vários atores

políticos naquele momento, o que não se constituiu na passagem para um verdadeiro regime

democrático. Muitos trabalhadores brasileiros que, há muito tempo, sofriam com a repressão

ao modo de organização operária, continuaram sem usufruir as liberdades democráticas.

Segundo Ianni (1989, p. 109):

Na história da democracia brasileira, predominam as crises, interrupções e retrocessos. São poucos e relativamente breves os períodos de vigência das liberdades democráticas. Nesses períodos, as liberdades não estão ao alcance de todos. Florescem nas grandes cidades. Mesmo assim, limitam-se às classes dominantes e médias. Alguns setores operários ocasionalmente ingressam nos espaços democráticos. São extensos os contingentes da população urbana que pouco ou nada desfrutam das liberdades democráticas. Mais afastados estão os que trabalham na agricultura. No mundo rural é limitado e descontínuo o acesso que as pessoas, famílias, grupos e classes sociais podem ter ao poder público, direitos políticos, garantias democráticas. São muitos os que se acham submetidos ao mando do fazendeiro, latifundiário, grileiro, estancieiro, seringalista, pecuarista, empresário. No campo, a violência privada freqüentemente atua ao lado da violência estatal, quando não se sobrepõe a ela.

Ao estudarmos a história do Brasil, percebemos que esta é feita de muitos momentos

de autoritarismo, ditadura e anti-democracia. Quando o povo avança mais um pouco, a

máquina estatal trabalha no sentido de frear coercitivamente esse movimento. Quando esse

movimento não apresenta muitos riscos para a classe dominante, há o consenso entre as

classes (IANNI, 1989).

A luta pela democracia no Brasil foi feita de conflitos e consensos entre as diferentes

classes sociais. Isto não quer dizer que a população não tenha lutado pela transformação

social, mas que as forças da ditadura militar ainda se faziam presentes nesse momento da

constituição da Nova República do Brasil. Os protestos populares no país, nesse período,

foram intensos, já que foi a população quem arcou com os custos sociais do desenvolvimento

econômico e político desencadeado desde o período do desenvolvimentismo e que teve

continuidade durante a ditadura militar. O povo se rebelou contra as condições sociais

existentes. Porém, é muito difícil avançar democraticamente nas sociedades capitalistas, ainda

mais em um país onde existem desigualdades de várias ordens. Ianni (1989, p. 115) faz a

seguinte observação acerca desse quadro no Brasil:

As desigualdades sociais, econômicas e culturais são tão acentuadas que as conquistas democráticas, em termos jurídico-políticos, encontram dificuldades para tornar-se efetivas. Acontece que os interesses privados, de cunho oligárquico e empresarial, freqüentemente enraízam-se nessas desigualdades; e aí florescem.

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Soma-se a isso a prevalência de interesses econômicos e políticos das grandes

empresas e do capital estrangeiro, típicos de um sistema de governo neoliberal como o

brasileiro. O que temos é um Estado que finge atender aos interesses do povo e uma burguesia

descompromissada com a democracia que conferem à sociedade brasileira características

extremamente autoritárias. Por isso, amplos setores dessa sociedade são criminalizados, assim

como as suas manifestações. A questão social aqui é tratada como um problema de violência

(IANNI, 1989).

O autor analisa que, com a ascensão da Nova República, o discurso político

elaborado por intelectuais brasileiros incorporou novos aspectos que iam além da busca pelo

desenvolvimento econômico. Segundo ele, “[...] passou-se a falar em transição, conciliação,

consenso, pacto social, pacto político, identidade nacional, unidade cultural etc.” (IANNI,

1989, p. 122). As ciências sociais foram inseridas com mais ênfase nos novos discursos do

poder no Brasil, desde esse período da década de 1980, para explicar as mudanças na

sociedade e a “melhor forma” de lidar com elas. Ocorre que grande parte dessa contribuição

intelectual existe para manter o poder das classes dominantes em detrimento da defesa das

reais necessidades populares. Os principais veículos de comunicação no país também

despejam a sua repugnância às causas dos trabalhadores por meio de suas publicações diárias,

que são lidas por milhões de pessoas que desejam um pouco mais de informação.

Em junho de 2013, tiveram início no Brasil várias manifestações populares que

foram organizadas inicialmente pelo Movimento Passe Livre (MPL), após aprovação do

aumento de tarifas do transporte público em várias cidades do país. Em 6 de junho de 2013,

ocorreu o primeiro protesto que reuniu cerca de 2.000 manifestantes em São Paulo, seguiram-

se a isso vários outros protestos em todo o Brasil, de modo que, no dia 20 de junho de 2013,

cerca de 1 milhão de pessoas foram às ruas em diversas capitais brasileiras44. Logo após as

primeiras manifestações populares que ocuparam parte de uma das principais avenidas de São

Paulo- a Av. Paulista- um dos principais jornais do estado, o Jornal Folha de S. Paulo,

publicou que era necessário RETOMAR A PAULISTA, frase que intitulava o texto. Esta

retomada, segundo o jornal, deveria ser feita pela polícia para retirar os “jovens baderneiros”

que atrapalhavam o trânsito da cidade. De acordo com a Folha de S. Paulo, o terceiro protesto

do Movimento Passe Livre (MPL) se vangloriava por parar São Paulo e deixar o seguinte

saldo: “Oito policiais militares e um número desconhecido de manifestantes feridos, 87

44 MAISONNAVE, FABIANO. Ativistas apóiam protestos marcados para amanhã na periferia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 jun. 2013. Cotidiano. p. C1.

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ônibus danificados, R$ 100 mil de prejuízos em estações de metrô e milhões de paulistanos

reféns do trânsito45”. Ainda segundo o Jornal, a reversão do aumento das tarifas de ônibus e

metrô não passava de um subterfúgio para “jovens violentos” praticarem atos de vandalismo

na cidade:

Sua reivindicação de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20- abaixo da inflação, é útil assinalar- não passa de pretexto, e dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados. Pior que isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça. O irrealismo da bandeira já trai a intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista. O que vidraças de agências bancárias têm a ver com ônibus? Os poucos manifestantes que parecem ter algo na cabeça além de capuzes justificam a violência como reação à suposta brutalidade da polícia, que acusam de reprimir o direito constitucional de manifestação. Demonstram, com isso, a ignorância de um preceito básico do convívio democrático: cabe ao poder público impor regras e limites ao exercício de direitos por grupos e pessoas quando há conflitos entre prerrogativas.

Expressando a sua revolta com o agendamento de protestos em “horário de pico” do

trânsito em São Paulo, o Jornal Folha de S. Paulo concluiu ainda que o poder público deveria

vetar as manifestações no local e combater os atos de vandalismo na forma da lei punindo

esses “crimes”. Esse tipo de mensagem foi passada a milhões de brasileiros e brasileiras, por

meio de vários veículos de comunicação em massa, e teve o seu tom punitivo amenizado ao

longo do processo, quando grande parte da população passou a apoiar as manifestações e

participar destas levando as suas diferentes bandeiras de reivindicações. Ora, o que foi isso,

senão a vocalização das idéias conservadoras de grupos dominantes no Brasil acerca do povo

e sua mobilização política?

Sem nos concentrarmos nas recentes análises das manifestações de junho no Brasil,

até porque não temos espaço aqui para expô-las, fazemos as seguintes observações desses

acontecimentos recentes no país que se relacionam ao fenômeno que Cueva (1989)

denominou de “ilusão de soberania do povo”:

a) a fragmentação da classe trabalhadora provoca sua desmobilização política, fazendo com

que parte das reivindicações populares se tornem difusas e até mesmo conservadoras. A cruel

realidade da exploração da força de trabalho permanece escamoteada e há uma ainda

45 EDITORIAL DO JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Retomar a Paulista. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. 2013, Opinião, p. A2.

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deficiente direção política democrática e de lutas na realização dos protestos populares, o que

esvazia o seu conteúdo político e até mesmo revolucionário;

b) grupos conservadores e de direita fazem uso do espaço das ruas e da mídia para mobilizar

campanhas apartidárias e de despolitização das massas no que diz respeito à luta

anticapitalista. Os movimentos sociais e partidos de esquerda são criminalizados e reprimidos

em suas manifestações;

c) a crise de hegemonia das esquerdas e dos projetos socialistas de modo geral, como expõe

Barroco (2011), faz com que as manifestações mais recentes no Brasil tenham grande adesão

e repercussão populares num primeiro momento, mas continuem a ocorrer de maneira isolada

sem perspectivas de romper com a estrutura social que sustenta os problemas sociais mais

graves no país.

Ianni (1989) expõe que, no Brasil, há certa continuidade no jogo de forças políticas

oriundo da revolução burguesa no Brasil46 e que alguns pontos essenciais relacionados a isso

atribuem peculiaridades ao processo de transição democrática no país:

Primeiro, desenvolvimento econômico extensivo e intensivo, na indústria e agricultura, acompanhado de escasso desenvolvimento político e cultural. As transformações sociais provocadas pelo acentuado crescimento das forças produtivas não se desdobraram em transformações políticas e culturais para todos, ou a maioria. Segundo, a metamorfose da população de trabalhadores em um povo de cidadãos não ocorre, a não ser em escala reduzida. Terceiro, são freqüentes as interrupções das experiências democráticas, precisamente porque sempre estão relacionadas ao ascenso político, econômico e cultural do povo (IANNI, 1989, p. 128).

Quanto aos longos períodos de anti-democracia e autoritarismo no Brasil, adeptos do

conservadorismo justificam que a sociedade brasileira é desorganizada e precisa de controle,

que o Estado forte nacional é necessário ao nosso país que tem um histórico colonial, entre

outros argumentos. Quando, na verdade, uma das explicações mais viáveis para essa realidade

é a existência da conjuração de forças da burguesia com setores militares, alguns setores da

classe média, da Igreja e de intelectuais que atuam em prol da manutenção do poder do

Estado, quando estes se sentem ameaçados pelas forças populares (IANNI, 1989).

46 “Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no plano político, antes de converter a dominação sócio-econômica no que Weber entendia como ‘poder político indireto’. As próprias ‘associações de classe’, acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer pressão e influência sobre o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder político estatal, de acordo com seus fins particulares. Em conseqüência, a oligarquia não perdeu a base de poder que lograra antes, como e enquanto aristocracia agrária; e encontrou condições ideais para enfrentar a transição, modernizando-se, onde isso fosse inevitável, e irradiando-se pelo desdobramento das oportunidades novas, onde isso fosse possível” (FERNANDES, 1987, p. 204).

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Dessa maneira, o que vemos e vivenciamos hoje é a desvalorização da política

enquanto uma esfera de suspensão da vida cotidiana47. Os recentes protestos no Brasil nos

demonstraram que os movimentos sociais populares estão aí (e sempre estiveram) na luta

coletiva cotidiana para reivindicar melhores condições de vida (o gigante nunca esteve

adormecido!), mas a batalha é lenta e árdua. Assim, o povo participa mais das decisões

políticas que são tomadas em nosso país, o que é muito positivo, porém, dentro de limites da

sociabilidade capitalista em que vivemos e que, por si só, não nos permite avançar em direção

à emancipação humana. Além disso, as particularidades da história brasileira também

contribuem para a sustentação desse fenômeno da “ilusão da soberania popular”.

Desde o final do regime militar no Brasil, as propostas e medidas governamentais já

traziam uma abertura para a implantação do neoliberalismo em nosso país. O neoliberalismo

que passou a vigorar no mundo, com mais força em meados da década de 1980, expressa um

conjunto de idéias que legitimam o movimento do capital sem limites. Ou seja, o capitalismo

tem limitações inerentes a ele, mas este foge incessantemente a qualquer tipo de controle

externo como, por exemplo, as regulações sociopolíticas. Sendo assim, são características das

sociedades capitalistas regidas pelo neoliberalismo a falta de regulamentação das relações de

trabalho, a destruição dos sistemas de bem-estar social, a queda das barreiras alfandegárias

para os produtos dos países centrais, a “demonização do Estado” que passa a sofrer um

processo de contra-reforma48, tudo isso para não prejudicar a livre circulação e a acumulação

de capital no mundo (NETTO; BRAZ, 2011). Com a finalidade de efetivar tais práticas, o

grande capital e seus representantes resgatam velhas idéias alicerçadas no pensamento liberal

de que os seres humanos são, em sua essência, competitivos e possessivos; de que a sociedade

capitalista é lugar propício para que os indivíduos se desenvolvam e realizem os seus sonhos;

de que toda sociedade é desigual por natureza, sendo assim, os homens devem se esforçar

47 “Sabemos que a vida cotidiana é heterogênea, que solicita todas as nossas capacidades em várias direções, mas nenhuma capacidade com intensidade especial. Na expressão de Georg Lukács: é o ‘homem inteiro’ [ganze Mensch] quem intervém na cotidianidade. O que significa homogeneização? Significa, por um lado, que concentramos toda nossa atenção sobre uma única questão e ‘suspenderemos’ qualquer outra atividade durante a execução da anterior tarefa; e, por outro lado, que empregamos nossa inteira individualidade humana na resolução dessa tarefa. Utilizemos outra expressão de Lukács: transformamo-nos assim em um ‘homem inteiramente’ [Menschen ganz]. E significa, finalmente, que esse processo não se pode realizar arbitrariamente, mas tão-somente de modo tal que nossa particularidade individual se dissipe na atividade humano-genérica que escolhemos consciente e autonomamente, isto é, enquanto indivíduos” (HELLER, 2008, p. 43-44). 48 De acordo com Behring (2008, p. 281), ao longo dos anos 1990 no Brasil, houve uma contra-reforma do Estado, ou seja: “Uma contra-reforma que se compôs de um conjunto de mudanças estruturais regressivas sobre os trabalhadores e a massa da população brasileira, que foram também antinacionais e antidemocráticas”.

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para vencer as desigualdades e conquistar oportunidades na vida; a idéia de que somos livres49

na sociedade em que vivemos. Além da não intervenção do Estado nas relações de trabalho e

no campo da seguridade social, a ideologia neoliberal defende a privatização dos órgãos de

controle estatal, a desregulamentação do trabalho numa dimensão universal que elimina

qualquer barreira para o fluxo de mercadorias, capitais e força de trabalho conhecida também

como globalização. Decorrente desse cenário em que nos encontramos, ideias xenófobas e

racistas têm se fortalecido nos últimos tempos.

Para além do sistema de produção e de troca de mercadorias entre os vários países, a

globalização se dá enquanto um processo de intercâmbio cultural, social e político entre as

pessoas do mundo inteiro, o qual é facilitado por inovações tecnológicas, dentre as quais se

destaca a internet. Esta forma de organização societária tem trazido benefícios para o mercado

e a população em geral como, por exemplo, a circulação de informações em nível global; mas

ela também suscita, entre outros fatos, manifestações de caráter racista, discriminatório entre

as pessoas de várias etnias e nacionalidades. Mais do que um intercâmbio sociocultural, a

globalização é uma estratégia político-econômica voltada para o avanço do desenvolvimento

capitalista. Então, alguns dos seus efeitos se expressam na padronização de costumes e

valores relacionados ao consumo, assim como na desigual relação entre os países centrais e

periféricos.

Segundo Netto e Braz (2011), o grande capital propõe uma “desregulamentação” que

vai muito além das relações de trabalho, na era da globalização. Os monopólios pretendem o

livre fluxo de mercadorias e capitais, regra que não vale para todos os países, já que os países

imperialistas não abrem mão da proteção dos seus mercados. Ademais, há uma gradativa

desregulamentação das relações de trabalho que faz com que grandes empresas contratem

mão-de-obra mais barata nos países menos desenvolvidos (acentuando ainda mais os níveis de

exploração do trabalho humano) e que alguns países mais desenvolvidos expulsem imigrantes

que tentam buscar ali os seus sonhos alimentados pela ideologia capitalista neoliberal.

Recentemente, acompanhamos o anúncio do primeiro-ministro britânico David

Cameron sobre o corte de benefícios dos imigrantes oriundos de países membros da

Comunidade Européia. O premiê do Reino Unido pretende limitar benefícios do governo aos

novos imigrantes que procuram emprego no país e deportar os indivíduos que forem flagrados

49 É comum na sociedade em que vivemos percebermos a liberdade numa concepção limitada que se resume à seguinte frase: “a minha liberdade termina onde começa a do outro”, o que expressa, sobretudo, a prevalência da idéia de preservação da propriedade privada. No entanto, a liberdade, quando pensada a partir de uma ética revolucionária, ganha significados mais abrangentes e emancipatórios. Cf. Barroco (2010).

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pedindo esmola ou dormindo nas ruas. Críticos do governo reagiram ao pronunciamento de

Cameron alegando que europeus e não europeus levam benefícios à economia britânica por

meio do seu trabalho e estes são muito maiores do que os custos que o Estado tem com

políticas de auxílio aos imigrantes. Além disso, a crítica questiona o governo britânico por

proferir um discurso de unificação do mercado e, ao mesmo tempo, aplicar medidas que

impedem o livre trânsito de todas as pessoas na região50. Antes disso, o Partido Conservador

inglês, ao qual pertence David Cameron, já havia dado início a uma campanha anti-imigrantes

que levava a seguinte mensagem aos moradores dos subúrbios de Londres: Go home or face

arrest51, por meio de outdoors levados por vans aos bairros mais habitados por imigrantes

naquele país52. Com base nisso, podemos perceber que a propagação de uma política voltada

para a livre circulação em nível global privilegia as mercadorias e capitais, e não os seres

humanos.

Além das práticas xenófobas em várias partes do mundo, situações de racismo

continuam a ocorrer com bastante frequência. Recentemente, a revista francesa de extrema

direita Minute publicou em sua capa uma foto da ministra da Justiça da França, Christiane

Taubira, com a seguinte frase “Maliciosa como um macaco, Taubira recupera sua banana”53.

A ministra se tornou alvo de ataques frequentes após levar a lei sobre a o casamento

homossexual para ser votado no Parlamento francês. Alegando não suportar mais a “ditadura

do politicamente correto”, a revista classificou o infeliz episódio como uma simples piada. É

exatamente isso que tem ocorrido atualmente. Defender os direitos humanos tornou-se uma

“coisa chata”, “fora de moda”, “coisa de quem é muito certinho” ou de quem “não tem senso

de humor”. As lutas anticapitalistas então são consideradas “idealistas”, “românticas”,

“ultrapassadas”.

Outro exemplo recente de prática do racismo com traços nazi-fascistas foi a atitude

do jogador de futebol da seleção da Croácia, Josip Simunic, que comemorou a vitória do seu

time e a classificação para a Copa do Mundo no Brasil com cânticos nazistas de um grupo de

extrema direita que governou o seu país durante a Segunda Guerra Mundial. Além de multa, o

jogador foi banido do Campeonato Mundial. A socióloga e professora Carla Cristina Garcia,

50 COLON, LEANDRO. Cameron quer cortar benefício de imigrante. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 2013. Mundo. p. A-20. 51 “Vá embora ou seja preso!”. 52 FRANCO, BERNARDO MELLO. Ofensiva anti-imigrantes abre crise no Reino Unido. Folha de S. Paulo, São Paulo, 31 jul. 2013, Mundo. p. A14. 53 AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS. Semanário francês compara ministra do país a macaco. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 2013. Mundo. p. A18.

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da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, lembrou que este não foi um fato isolado

nos últimos tempos. Ela citou outros fatos recentes como a eleição de parlamentares do

partido neonazista “Aurora Dourada” na Grécia; as declarações do deputado federal brasileiro

Marco Feliciano (PSC-SP) sobre a África que, segundo ele, é um “continente amaldiçoado” e

sobre os homossexuais que, em sua opinião e de sua bancada no atual governo, são doentes e

necessitam de cura. Muitos outros exemplos poderiam ser citados aqui. Entretanto, o que

importa saber é: o que motiva o fortalecimento de tais ideias? Para a estudiosa supracitada,

trata-se de uma “nova onda do pensamento eugenista”, forma de pensamento que “nunca

deixou de existir”, mas que agora ganha nova força com a ascensão dos movimentos mais

progressistas. De acordo com a entrevistada: Há uma nova movimentação no mundo todo contra os abusos do capitalismo e do pensamento colonial. Acredito que a luta por direitos ainda está longe de acabar. Estas novas configurações dos movimentos sociais podem levar a um recrudescimento das forças conservadoras ou podem levar a outro tipo de organização social mais efetiva54.

Quanto à implementação do projeto neoliberal no Brasil, este processo se deu com

mais força durante o governo Collor (1990-1992), quando se configurou em uma opção para o

enfrentamento da crise econômica no país. Amplos setores da sociedade, principalmente,

aqueles ligados ao empresariado e aos partidos políticos conservadores defenderam a sua

implantação. Empresas estatais começaram a ser privatizadas em larga escala, as poucas

barreiras que a nossa economia ainda preservava contra o capital estrangeiro foram sendo

extintas e o mercado passou a ditar as regras na vida social brasileira e os trabalhadores foram

privados de muitos direitos sociais. Após o impeachment de Collor, Itamar Franco e Fernando

Henrique Cardoso (FHC), no decorrer da década de 1990 e início dos anos 2000, deram

continuidade a esse projeto político neoliberal no Brasil. Entre as características que nos

permitem classificar o governo FHC de neoliberal estão o aumento do desemprego e do

emprego na economia informal com intensificação da precarização do trabalho, as reformas

da Previdência nas áreas administrativa e econômica que diminuíram significativamente o

papel do Estado nessas políticas, as privatizações, a falta de medidas protecionistas que

prejudicou setores da economia brasileira, entre outras. Sem dúvida, o Plano Real baixou a

inflação e a manteve estável, a renda da população pobre teve uma pequena melhora por conta

54 HAILER, MARCELO. Estamos vivendo uma onda neonazista no Ocidente, diz socióloga. Revista Fórum, São Paulo, dez. 2013. Disponível em: < http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/estamos-vivendo-uma-onda-neonazista-no-ocidente-diz-sociologa/>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2014.

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disso, mas essas medidas que foram tomadas pelo governo FHC deixaram sequelas graves

que se refletem em nossa sociedade ainda nos dias de hoje (NEGRÃO, 1996).

Durante o governo Lula (2003-2010), a política econômica iniciada por Fernando

Henrique Cardoso sofreu um processo de continuidade. Desde a década de 1990, o Partido

dos Trabalhadores (PT) já vinha perdendo as características de um partido de esquerda e Lula

foi eleito, em 2002, com a promessa de executar um plano de reformas sem muitos riscos à

estabilidade financeira do país e aos interesses dos grandes capitalistas. Após a sua reeleição

em 2006, a gestão federal foi beneficiada com uma situação econômica mundial que era

favorável à manutenção de baixos índices inflacionários e à diminuição do desemprego, o que

possibilitou um maior acesso da população em geral ao crédito e à ampliação de políticas

sociais como, por exemplo, o Programa Bolsa-Família (ARCARY, 2008). Em uma breve

retomada deste panorama recente de nossa história, podemos dizer que o presidente Lula

conduziu uma política de governo orientada pelos princípios da social-democracia e que se

destacou pelo reconhecimento de crimes políticos ocorridos durante a ditadura militar no

Brasil; pela cooptação política de lideranças de movimentos populares e sindicais; pelo

sucesso da política externa que, apesar de manter o seu caráter colonialista, alcançou grandes

méritos; pelos avanços no âmbito da defesa dos direitos das minorias como, por exemplo, a

criação de Secretarias de Promoção da Igualdade Racial, de Políticas para Mulheres e dos

Direitos Humanos; pela severa política de ajuste fiscal; e também pelas denúncias de

episódios de corrupção, como foi o caso do “mensalão”, entre outros exemplos.

Desde a sua eleição em 2010, a presidenta Dilma Rousseff dá sequência à política

econômica do governo Lula com alguns problemas como a queda na produção industrial, a

desaceleração no consumo, índices mais altos de inflação, déficit no comércio exterior e

aumento do desemprego. No que diz respeito às políticas sociais, a atual presidenta tem

focado em programas de combate à extrema miséria como o “Brasil Sem Miséria”, além de

outras medidas que foram tomadas em outros campos como a retomada da discussão de

pontos importantes no que se refere à Reforma da Previdência Social. Problemas como a falta

de acesso da população aos serviços de saúde pública, a má qualidade desses serviços e a falta

de profissionais qualificados; falta de equipamentos escolares e vagas na educação infantil, a

péssima qualidade do ensino público, entre tantos outros desafios, marcam o atual governo

que trabalha para a implementação de políticas (neo) desenvolvimentistas55 que combinam o

55 De acordo com Castelo (2012, p. 614): “Desde os anos 1930 o nacional-desenvolvimentismo exerceu uma forte influência ideológica e política nos principais debates da agenda nacional, até o seu ocaso nos anos 1990

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bom desempenho econômico do país com indicadores sociais satisfatórios para os grupos

sociais e instituições financeiras que comandam o desenvolvimento capitalista no Brasil.

Contudo, compreendemos que a moralização e criminalização da questão social,

tendências (neo) conservadoras bastante evidentes nos dias de hoje, em vários países e

também no Brasil, devem ser alvos de intensas críticas e enfrentamento constante, pois

invertem a realidade na qual vivemos e transformam as sequelas das relações sociais

capitalistas e as várias formas de resistência da população às condições sociais de existência

impostas pela ordem do capital em atos repugnantes passíveis de reeducação

moral/conscientização e pré-julgamentos/punições. Tais tendências, por muito tempo

presentes na sociedade capitalista, ganham novos adeptos na sociedade contemporânea, tendo

em vista que novas expressões da questão social surgem em tempos de mundialização do

capital. Conforme vimos anteriormente, a vida social é regida pela lógica da acumulação

financeira que gera momentos de crescimento econômico e momentos de crise e recessão. A

financeirização do capital resulta também em concentração da renda nas mãos de poucos e a

formação de outro polo de pessoas que se encontram em situação de extrema pobreza. As

desigualdades se concentram em regiões específicas nos bairros, cidades, estados, países e

continentes. Os trabalhadores recebem salários bastante diferenciados, principalmente,

quando não são qualificados de acordo com as exigências do mercado. Os países periféricos

obedecem às regras impostas pelos organismos multilaterais ampliando o déficit da balança

comercial, causando o fechamento de empresas nacionais, elevando os juros e as dívidas

interna e externa, como descreve Iamamoto (2010). Enfim,

Os investimentos especulativos são favorecidos em detrimento da produção, o que se encontra na raiz da redução dos níveis de emprego, do agravamento da questão social e da regressão das políticas sociais públicas (IAMAMOTO, 2010a, p. 143).

A desregulamentação do capital atinge as formas de organização dos processos

produtivos, de gestão do trabalho, remuneração dos trabalhadores, do mercado de trabalho,

dos direitos e dos padrões de consumo. Nesse contexto, o Estado restringe cada vez mais os

gastos sociais com saúde, educação, moradia, trabalho e outras políticas públicas, em nome de

uma crise fiscal do Estado. Os níveis de exploração e as desigualdades crescem, assim como

os movimentos de resistência no âmbito dos direitos sociais e trabalhistas, da luta contra as

com a ascensão do neoliberalismo. A partir do segundo mandato do governo Lula (2007-10), com o aumento das taxas de crescimento econômico e a tímida melhora de alguns indicadores sociais, a ideologia desenvolvimentista voltou repaginada à cena- acoplada dos prefixos “novo” e “social”- e tornou-se o tema da moda no Brasil”.

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discriminações étnico-raciais, de gênero, defesa do meio ambiente, entre outros. Tais

manifestações ocorrem não somente nos países pobres, mas também nos países ricos. No

campo das políticas sociais, assistentes sociais se deparam com um grande contingente de

trabalhadores que não conseguem sobreviver com a renda do seu trabalho, não possuem

garantias trabalhistas, não são atendidos pelos serviços públicos e não têm condições de

custear os serviços que foram privatizados, além de uma considerável massa de pessoas

desempregadas. As políticas públicas de caráter universal estão cada vez mais restritas aos

programas focalizados de combate à pobreza (IAMAMOTO, 2010).

A sociabilidade em que vivemos nos leva a um sentimento de insegurança social que

se desenvolve em um ambiente em que tudo é instável: os nossos empregos, o mercado, as

nossas vidas em meio a tanta violência. O dinheiro e os bens materiais são objetos de culto

enquanto as relações humanas, cada vez mais, coisificam-se. As políticas de proteção social

perdem espaço para as estratégias de competitividade mais acirradas entre os trabalhadores

que disputam um posto de trabalho com maiores vantagens e alguma possibilidade de

estabilidade social. Tudo isso gera reações diferentes nas pessoas quando se trata de analisar

as expressões da questão social oriundas do conflito entre capital e trabalho. Muitas delas as

tratam como algo natural já que são necessárias para o desenvolvimento capitalista ou,

simplesmente, declaram a impossibilidade de se lutar contra essa realidade, como é o caso dos

pensadores pós-modernos56, que entendem que o agravamento de problemas sociais como o

desemprego, a pobreza extrema, a violência, entre outros, é uma situação que não pode se

evitar nessa era em que vivemos. Então, o que nos restaria a fazer é lamentarmos essa terrível

realidade que marca o “fim da história”, não haveria nada o que poderia ser feito. Barroco

(2011, p. 207) explica que:

Valorizando a instabilidade e a dispersão, a ideologia neoliberal pós-moderna declara o ‘fracasso’: dos projetos emancipatórios, das orientações éticas pautadas em valores universais, da razão moderna, da idéia de progresso histórico e de totalidade. O estímulo à vivência fragmentada centrada no presente (resumida ao aqui e ao agora, sem passado e sem futuro), ao individualismo exacerbado, num contexto penetrado pela violência, dá origem a novas formas de comportamento, que,

56 Santos (2007, p. 11) explica que a pós-modernidade que faz “[...] críticas ao projeto civilizatório moderno jogam no sentido da desqualificação de seu potencial emancipatório. Determinantes da sua emergência são as alterações nos diversos âmbitos das relações sociais, desde a economia até a cultura que têm provocado uma ânsia na busca de interpretações para essas mudanças causadoras de uma generalizada perplexidade nas ciências sociais. Levando-se em consideração o agravante de localizar-se no final do milênio, essa sensação, nos anos 1990, adquiriu ‘um certo ar’ apocalíptico, em especial para alguns analistas que identificaram em seu curso acontecimentos de ordem inteiramente nova para os quais os parâmetros analíticos clássicos não mais oferecem, segundo eles, respostas adequadas. A pós-modernidade surge assim imbricada à atual crise capitalista e caracteriza-se em oposição às teorias sociais modernas se propondo como uma alternativa à sua ineficiência”.

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segundo Chauí (2006, p. 324), buscam ‘algum controle imaginário sobre o fluxo temporal’”.

Em outros casos, as soluções propostas para o enfrentamento da questão social estão

na sua criminalização, noção segundo a qual as pessoas que não se adaptam a esse tipo de

sociabilidade em que vivemos devem ser excluídas e sofrer as conseqüências desse tipo de

“escolha”. Devemos mencionar ainda a repressão aos movimentos sociais, às manifestações

populares e greves de trabalhadores, além dos altos índices de encarceramento de pessoas

pobres no Brasil. É muito comum também a culpabilização dos indivíduos por sua situação de

pobreza, como podemos verificar no depoimento de Ricardo Salles, presidente do Movimento

Endireita Brasil, em entrevista concedida à Revista Brasileiros, de dezembro de 2012.

Segundo ele, Tem muita gente que é pobre porque não quer trabalhar! Tem muita gente que não vai pra frente na vida porque não quer se esforçar. Tem muita gente que comete o crime porque realmente não tem valores. Não tem nada a ver com problema social, que ela foi criada em favela57.

A moralização da questão social está relacionada à subjetivação das condições

sociais dos sujeitos, condições que têm sua base no processo sócio-histórico que vivenciamos.

No entanto, muitas pessoas atribuem como causas da problemática social na atualidade a falta

de religiosidade, os distúrbios de personalidade, a pouca autoestima, a ausência de força de

vontade, de empenho pessoal e de autoconfiança, etc. Assim, as práticas terapêuticas

ressurgem no campo profissional do Serviço Social e, frequentemente, são executadas por

assistentes sociais e também por voluntários que se sensibilizam com a situação vivenciada

por muitas famílias pobres acreditando que a questão social pode ser superada no Brasil por

meio dessas ações.

Barroco (2011) esclarece que a sociabilidade contemporânea nos impulsiona a

apreender a realidade de forma fragmentada, já que a reificação da vida social58 oculta a

57 SOLNIK, A. Vanguarda popular: a direita sai do armário- com roupas de esquerda. Revista Brasileiros, n. 62, dez./2012. Disponível em: <http://www.revistabrasileiros.com.br>. Acesso em: 13 de março de 2013. 58 Tese desenvolvida por Marx e Lukács. Sobre isso, Goldmann (1979, p. 122) explica que: “Uma das características fundamentais da sociedade capitalista é a de mascarar as relações sociais entre os homens e as realidades espirituais e psíquicas, dando-lhes o aspecto de atributos naturais das coisas ou de leis naturais. É por isso que as relações de troca entre os diferentes membros da sociedade- transparentes e claros em todas as demais formas de organização social- tomam aqui a forma de um atributo de coisas mortas: o preço. ‘Um par de sapatos custa cinco mil francos’. É a expressão de uma relação social e implicitamente humana entre o criador de gado, o curtidor de couro, seus operários, seus empregados, o revendedor, o negociante de sapatos e, finalmente, o último, consumidor. Mas nada disso é visível; a maioria desses personagens não se conhecem e até ignoram sua existência mutuamente. Ficariam todos espantados de saber da existência de um laço que os une. Tudo isso

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essência dos processos que a constitui. Os meios de comunicação, em geral, contribuem para

a reprodução da ideologia neoliberal que naturaliza a questão social e banaliza a violência que

vivenciamos no cotidiano. A autora lembra que, mesmo em um cenário favorável às práticas

(neo) conservadoras, há lutas que combatem esse tipo de prática e a profissão de Serviço

Social, ao mesmo tempo em que tem raízes no pensamento conservador, também tem uma

trajetória de engajamento nas lutas que buscam romper com este tipo de orientação teórica.

Por isso, está colocado um novo desafio às/aos profissionais de Serviço Social: o

enfrentamento das novas expressões do conservadorismo que incidem sobre a profissão na

contemporaneidade (BARROCO, 2011).

Enfim, o que procuramos demonstrar neste item do trabalho, é que o

conservadorismo vai se “atualizando”, ao longo da história, e revelando características

próprias de um tipo de pensamento que se limita a interpretar o real, em sua imediaticidade, a

fim de reparar algumas “disfunções” e “defeitos” em sua estrutura. Daí, decorre a elaboração

de teorias sociais e propostas de enfrentamento à questão social que são, igualmente

imediatistas, e não apontam para qualquer sentido de transformação da sociedade em que

vivemos, como é o caso de muitas políticas sociais na contemporaneidade, assunto para o

nosso próximo capítulo.

CAPÍTULO II- ASSISTÊNCIA SOCIAL

1. As políticas sociais na atualidade

Conforme exposto no primeiro capítulo, pesquisadores do Serviço Social e áreas

afins explicam que a emergência das políticas sociais está relacionada com as necessidades do

Estado e de grupos detentores do capital em responder à questão social, que foi tomando uma

dimensão cada vez maior ao longo do desenvolvimento da sociedade capitalista. Importante

retomar que a pobreza e a miséria não eram fenômenos novos para os seres humanos, porém a

intensidade com que estes foram se desenvolvendo nos tempos iniciais do capitalismo, com

destaque para o período do século XVIII na Europa, tornaram a questão social muito mais

se exprime por um só fato: ‘um par de sapatos custa cinco mil francos’. Ora, isto não é um fato isolado; é, pelo contrário, o fenômeno social fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a manifestação do trabalho social necessário empregado para produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses bens; a reificação que conseqüentemente se estende progressivamente ao conjunto da vida psíquica dos homens, onde ela faz predominar o abstrato e o quantitativo sobre o concreto e o qualitativo”.

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visível aos olhos de toda a sociedade e motivo de preocupação para os industriais e os

governos. Além disso, o empobrecimento dos trabalhadores contrastava com os avanços do

modo de produção capitalista e a acumulação de riquezas por parte dos donos dos meios de

produção e investidores, o que gerou a formação de uma grande massa de trabalhadores

explorados, mas também um campo de possibilidades para a organização desses sujeitos em

movimentos de lutas por interesses comuns e pela transformação social: estava configurada

assim a questão social.

Entre as várias expressões da questão social nesse período em que ela ganhou

grandes proporções, entre os séculos XVIII e XIX, estavam as diversas formas de exploração

da mão-de-obra urbana disponível, com destaque para o emprego abusivo de mulheres e

crianças nas indústrias; a deterioração do modo de vida nas cidades que abrigavam cada vez

mais pessoas sem a infraestrutura adequada para o atendimento de suas necessidades básicas;

a pauperização crescente da classe trabalhadora que sobrevivia em péssimas condições de

moradia e alimentação; a manifestação de doenças e os altos índices de mortalidade, entre

outros fatores. Em virtude dessa situação, operários ingleses, inicialmente, e, depois, outros de

várias nacionalidades, rebelaram-se e reconheceram-se enquanto sujeitos de uma mesma

classe explorada e miserável, capazes de transformar tal realidade em que viviam. Esse

processo de constituição da classe trabalhadora se deu por meio de várias rebeliões

revolucionárias que foram eclodindo nos países. Por meio das ações dos sindicatos, da

realização de greves e manifestações, o movimento dos trabalhadores foi ganhando força e

conquistando direitos antes inexistentes. Após a Revolução de 1848, a que fizemos referência

no primeiro capítulo, o movimento operário sofreu um processo de retraimento e foi, de certa

forma, reavivado com a Comuna de Paris, em 1870. Após esses acontecimentos, a classe

trabalhadora continuou emergindo no cenário mundial, enquanto um movimento organizado e

reivindicatório, que expressou e ainda expressa as particularidades de cada momento histórico

e social que caracterizam o desenvolvimento da luta de classes. Dessa maneira, a questão

social vem sendo produzida e reproduzida sob a “lei geral da acumulação capitalista”, que é

universal, mas em contextos sócio-históricos e culturais específicos exige uma leitura e

análises qualificadas por parte dos seus estudiosos (SANTOS, 2012).

Além dos diversos movimentos de massa democráticos que emergiram nesse período

inicial do capitalismo na Europa, a formação dos Estados-Nação também contribuiu para a

criação das primeiras políticas sociais. A formação de Estados nacionais foi uma

consequência, em primeiro lugar, das mudanças nas relações econômicas, políticas, sociais,

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nos processos de trabalho, etc., como trata Pereira (2011). A partir dessas transformações, os

movimentos democráticos passaram a exigir do Estado um novo formato, baseado no

reconhecimento da cidadania e não mais no autoritarismo das monarquias que vigoraram

durante o período feudal. Isto significou: [...] uma transformação na estrutura, funções e legitimidade desse Estado. Nos termos de Pietro Ingrao, isso configurou um processo complexo, fomentado por fatores econômicos, sociais e políticos simultâneos, que resultou, de um lado, do aumento das forças produtivas e da penetração do capital em toda a sociedade, e, de outro, da participação política de parcelas da população antes exploradas. Tudo isso repercutiu no âmago do Estado e de suas políticas, propiciando mudanças significativas. A instituição estatal deixou de ser simples ‘guardiã do quadro político, ou sustentadora do mecanismo produtivo (Estado liberal), para ser centro de regulação do processo de acumulação, da relação poupança-investimento que os instrumentos normais do mercado capitalista não conseguiam mais controlar’, configurando um Estado com crescentes funções sociais (Ingrao) (PEREIRA, 2011, p. 35).

Ações de caridade voltadas aos mais pobres perpassam a história da humanidade em

diferentes épocas históricas. As primeiras políticas sociais que se apresentavam na forma de

leis, durante a era pré-capitalista, situavam-se ainda no campo da caridade e da filantropia,

mas, ao mesmo tempo, diferenciavam-se destas ações na medida em que tinham por

finalidade regular a força de trabalho em formação, durante os primeiros estágios do

desenvolvimento capitalista, e atender aos interesses comuns da população. Entre os seus

objetivos estavam a proibição da vagabundagem e a obrigatoriedade do trabalho na indústria

de pessoas pobres. Destacavam-se, entre o fim do Feudalismo e a emergência do sistema

capitalista, as seguintes leis dos pobres: o Estatuto dos Trabalhadores (de 1349), o Estatuto

dos Artesãos (de 1563), as Leis dos pobres elisabetanas (se sucederam entre 1531 e 1601), a

Lei de Domicílio (de 1662), a Nova Lei dos Pobres (de 1834) e outras, as quais são

consideradas protoformas das políticas sociais (BEHRING; BOSCHETTI, 2008).

Tais protoformas representavam, entre outras coisas, o medo da aristocracia com

relação aos pobres. Por isso, medidas emergenciais e de socorro a essa população foram

tomadas, ainda no século XIV, pois a Igreja Católica já não respondia mais, de forma

eficiente, às velhas demandas da ordem feudal e do novo sistema capitalista que emergia na

forma da prestação de serviços de assistência pública. Além disso, conforme visto

anteriormente, as Leis dos Pobres tinham por objetivo “adestrar” os trabalhadores ao modo de

produção capitalista, de modo que os sujeitos considerados vagabundos e que estivessem

mendigando pelas ruas das cidades na Inglaterra e França, fossem castigados duramente por

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cometer tal “delito”. Com o passar dos séculos, vagabundos inválidos, ou seja, aquelas

pessoas que não tinham condições físicas para o trabalho na indústria foram autorizados a

mendigar e recebiam assistência do Estado. Porém, os considerados vagabundos válidos eram

cruelmente punidos com castigos e mutilações físicas, escravidão e expulsão das regiões onde

eles estavam. Além disso, crianças eram facilmente asiladas e outras medidas sociais

punitivas e voltadas para a “eliminação” dos pobres eram aplicadas pelo Estado nesse

período.

A obrigatoriedade imposta aos mais pobres de trabalhar para receber os recursos

necessários à sobrevivência, por meio da prática assistencial, era comum, assim como a

tipificação de pobres classificados nos grupos dos impotentes, capazes para o trabalho,

corruptos. A cobrança de tributos para o financiamento da assistência pública tornaram-se

uma prática frequente a partir de meados dos séculos XVI e XVII na Europa. Interessante

notar que resquícios da Poor Law se fazem ainda presentes nas atuais legislações de políticas

sociais como, por exemplo, a comprovação de residência e naturalidade para o atendimento de

cidadãos numa determinada localidade (PEREIRA, 2011). Entre os séculos XVII e XIX, as

Paróquias locais já utilizavam esse sistema de atendimento aos necessitados que exigia a

comprovação de residência fixa nas províncias européias, explica a autora.

As instituições que atendiam de forma diferenciada os pobres, de acordo com as

diferentes categorias que elencamos anteriormente (impotentes, capazes para o trabalho e

corruptos) foram se restringindo, ao longo do século XVII, sobretudo, na Inglaterra, às

Workhouses, isto é, Casas de trabalho onde os pobres eram obrigados a trabalhar sob

quaisquer condições para sobreviver. A exploração dessa mão-de-obra contribuiu, em grande

medida, para o progresso mercantilista do país. Após a tentativa de outras formas de

assistência pública como, por exemplo, a distribuição de trabalhadores sociais pelas casas da

população pobre visando à concessão de “pensões, subsídios desemprego ou recompensas

monetárias” (PEREIRA, 2011, p. 67), sob a coordenação das paróquias locais, medidas

sociais que ofereciam subsídios financeiros, inclusive para os trabalhadores, como forma de

complementar os salários foram se tornando mais comuns na Inglaterra. O contexto em que se

deu a implementação desse tipo de subsídio aos pobres, durante o século XVIII, foi marcado

pelo aumento exponencial da população urbana, pela intensificação do processo de

industrialização, pela escassez de alimentos, pelo crescimento do desemprego, pelo

agravamento das condições de vida da classe trabalhadora, o que gerou o medo de novas

rebeliões populares, por parte da classe detentora do poder. Todavia, esse tipo de política

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introduziu novos parâmetros no âmbito da assistência pública que estavam relacionados ao

direito de acesso à proteção social. Esta não mais se limitava somente aos desempregados e

inválidos, mas abrangia também os demais trabalhadores. Além disso, a relação automática

entre assistência e trabalho assalariado forçado foi sendo substituída pela idéia de direito

social (PEREIRA, 2011). Porém, todo esse contexto mudou com a ascensão do liberalismo

econômico, conforme retrataremos a seguir.

Com a consolidação do sistema capitalista, em fins do século XIX e início do século

XX, nos países centrais, tornou-se vigente a doutrina liberal59 que orientava a política e a

economia na oposição à construção de políticas sociais voltadas para os trabalhadores, já que

o trabalho, na condição de uma mercadoria como outra qualquer, devia ser regulado pelas

regras do jogo livre do mercado. Em contraposição à intervenção do Estado sobre a melhoria

das condições de trabalho e de vida da população trabalhadora, predominava o estímulo à

busca individual por recursos de subsistência, por meio do trabalho e da livre concorrência,

com a ilusão de que o sucesso estaria garantido a qualquer cidadão que estivesse disposto a

entrar nesse “jogo”. Os defensores do liberalismo reivindicavam a intervenção estatal por

meio da criação de leis regulamentadoras do mercado, as quais garantissem, dentre outras

coisas, a livre circulação de mercadorias e trabalhadores, o que foi assegurado em nome do

crescimento econômico e de uma suposta “igualdade social”. Nesse contexto, as respostas

institucionais à questão social foram bastante limitadas.

As Leis dos Pobres passaram por reformas baseadas nessas idéias liberais de

autorregulação do mercado e de fé ilimitada nas capacidades individuais para a superação da

pobreza. Sendo assim, as complementações salariais foram abolidas, a internação de pobres e

o trabalho forçado nas Workhouses se intensificaram, os benefícios concedidos pela

assistência pública seguiam o princípio da menor elegibilidade “que consistia em fazer com

que as condições de vida dos beneficiários da assistência pública fossem menos atraentes e

59 O liberalismo compreende vários significados, no caso do liberalismo político, segundo Bobbio (2000, p. 689), este é “[...] onde se manifesta com força o sentido da luta política parlamentar: resume-se no princípio do ‘justo meio’ como autêntica expressão de uma arte de governar capaz de promover a inovação, nunca porém a revolução. Apesar disso, na sua atuação concreta, esta arte de governar oscilou constantemente entre o simples comprometimento parlamentar, objetivando manter inalterados os equilíbrios existentes, e a capacidade de uma síntese criadora entre conservação e inovação, capaz de libertar e mobilizar novas energias. Foi esta política que causou a passagem da monarquia constitucional para a parlamentar, embora o liberal não tenha sido por princípio um republicano; ou o encontro entre Liberalismo e democracia, embora as resistências tenham sido notáveis, devido às lembranças da experiência jacobina ou, ao medo dos clericais e dos socialistas. Temos, enfim, um Liberalismo econômico, intimamente ligado à escola de Manchester: este Liberalismo, muitas vezes, por acreditar que o máximo de felicidade comum dependeria da livre busca de cada indivíduo da própria felicidade, não pesou suficientemente os custos que tal teoria acarretava em termos de liberdades civis e esqueceu que a felicidade tinha sido o objetivo, também, dos Estados absolutistas”

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confortáveis do que as condições de vida dos trabalhadores pior remunerados” (PEREIRA,

2011, p. 76).

Ideologias conservadoras acerca da pobreza e da questão social foram propagadas

por teóricos como Thomas Malthus. Este influenciou fortemente vários setores da sociedade,

nos séculos XVIII e XIX, com repercussões que se fazem sentir até os dias atuais. Malthus

defendia a contenção do crescimento populacional por meios naturais (ausência de medidas

contra fatores de desequilíbrio demográfico como a fome, a disseminação de epidemias, a

realização de guerras, etc.) e por meios preventivos (que se constituíam, principalmente, na

pregação moral aos pobres da abstinência sexual e do controle de uniões matrimoniais),

esclarece Pereira (2011). Malthus era adepto não só das reformas nas Leis dos Pobres, com

base nas teorias liberais, como da eliminação destas na sociedade moderna:

Sinteticamente, Malthus condenava as Leis dos Pobres pelos seguintes motivos: elas estimulavam casamentos precoces e insustentáveis financeiramente pelo chefe de família pobre, assim como propiciava aumento da população; impediam que o pobre tivesse medo da miséria, já que contava com auxílios paroquiais; diminuíam a oferta da força de trabalho, pois o pobre, sendo amparado em uma Paróquia, não procurava empregos em outra. Além disso, Malthus não via com bons olhos a distribuição gratuita de alimentos em albergues, porque isso desviava mantimentos dos que trabalhavam para se sustentar, e, em casos de escassez, poderia aumentar os preços dos produtos. A condenação malthusiana a qualquer ajuda ao pobre era tão forte e genérica que até a esmola em dinheiro, concedida pelos ricos, era rechaçada, não só por razões morais, mas também econômicas. No seu entendimento, se um pobre recebesse dinheiro sem esforço, ele deixaria de trabalhar; e, ao assim proceder, continuaria pobre, impingindo à sociedade déficit de produção. Ademais, com o dinheiro ganho sem produzir, o pobre compraria alimentos cuja produção não havia aumentado por falta de mão-de-obra. Tudo isso redundaria em aumento de preços, que afetaria toda a sociedade. Portanto, a única ajuda útil ao pobre seria a dele mesmo,a partir do momento em que se livrasse das Leis dos Pobres, tornando-se produtivo e adiando a procriação (PEREIRA, 2011, p. 72).

Contudo, a rigorosidade dos princípios liberais que passaram a orientar as políticas

sociais, na forma das antigas Leis dos Pobres, foi sendo amenizada com o passar do tempo, já

que estas se mostraram ineficazes no combate à pobreza. Em meio a críticas e estudos

elaborados para evidenciar as causas da pobreza, algumas medidas reformistas voltadas para o

seu enfrentamento foram propostas, estas destoavam em parte das teorias liberais como, por

exemplo, a construção de uma nova legislação social, o desenvolvimento de um sistema de

proteção social, a criação da Charity Organization Society (Sociedade de Organização da

Caridade), que oferecia assistência pública aos pobres por meio de cidadãos voluntários. No

entanto, cabe ressaltar aqui que esta organização ajudava os pobres orientada pela idéia liberal

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de que os indivíduos eram responsáveis por sua condição social e, por isso, as possibilidades

de superação da pobreza estavam em suas próprias mãos. Entretanto, atribuir as causas da

pobreza aos pobres era uma forma de entendimento que estava prestes a ser descartada pelos

teóricos, governantes e legisladores europeus, ainda no século XIX (PEREIRA, 2011). De

acordo com a autora:

O tamanho da pobreza existente era maior do que qualquer esforço privado de querer contorná-la. Os achados dos estudos de Booth e Rowntree teriam de despertar- como despertaram- o entendimento de que havia muito mais causas da pobreza do que a renitente culpabilização do pobre, construída pelos liberais. E mais: que essas causas estavam intimamente relacionadas a fatores estruturais e procedimentos do sistema industrial. A falácia do controle liberal sobre a pobreza pode ser atestada, inclusive, com os primeiros resultados do emprego da legislação de 1834 que revelaram um enorme hiato entre o que se pretendia e o que, de fato, aconteceu. Não apenas a experiência de prestação de assistência nas Workhouses trouxe à tona questões de custos e de praticidade dessas instituições totais, como também mostrou que elas eram mais compatíveis com o mundo rural e paroquial do que com a nova era industrial. Por isso, era comum encontrar, nos emergentes centros urbanos, grande contingente de trabalhadores sem ocupação que não queriam se submeter ao teste das Workhouses, visto que suas promessas de dignificação do trabalho eram irrealistas (Blackmore) (PEREIRA, 2011, p. 83).

Por isso, as primeiras tentativas de implantação de um sistema de proteção social na

Grã-Bretanha se iniciaram ainda no século XIX, sob influência do sistema de seguro social

inaugurado na Alemanha por Bismarck. Tendências impulsionadas por um novo tipo de

liberalismo foram abrindo caminho para a instituição de medidas, sob a perspectiva dos

direitos sociais, como os seguros contra acidentes de trabalho, as pensões concedidas às

pessoas idosas, a criação da Lei de Seguridade Nacional inglesa, os programas de seguro-

desemprego. Importa ressaltar que tais ações reformistas, nesse período, foram realizadas com

base na racionalidade de que concessões deveriam ser feitas aos trabalhadores para a

manutenção das atividades industriais e do funcionamento ideal do sistema capitalista, e

muito menos com base na compreensão de que a proteção social é um direito inalienável de

qualquer cidadão (PEREIRA, 2011). Desse modo, em um dos períodos de recessão do capital,

entre os anos de 1914 e 1939, houve a multiplicação das políticas sociais e sua expansão até

meados da década de 1960, cuja marca mais expressiva foi o keynesianismo, na Europa

Ocidental, conforme tratam Behring e Boschetti (2008).

Segundo Pereira (2011), em meados da década de 1940, quando a Segunda Guerra

Mundial estava prestes a se encerrar, a política social do Welfare State entrou em vigor na

Europa. O Welfare State (que foi um modelo estatal de proteção social aos trabalhadores,

efetivado por meio do aumento no orçamento social público, no redirecionamento dos gastos

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nessa área, na expansão dos programas sociais e no acesso aos benefícios sociais) inaugurou

um moderno sistema de proteção social fundamentado nos conceitos de seguridade e

cidadania que engloba as esferas econômica, social e política, o qual respondeu às

reivindicações da população trabalhadora, mas também atendeu às necessidades do capital de

se revitalizar após constantes crises na economia (como a crise de 1929) e na política (com a

expansão do socialismo e do fascismo) que afetaram a estabilidade do sistema capitalista.

Pereira (2011, p. 89-90) esclarece que:

Para dar racionalidade às suas ações, o Welfare State guiou-se (apesar de não ser idêntico ou unívoco nos vários contextos nacionais em que se realizou e se processou) por três marcos orientadores que, combinados, formam o que venho chamando, inspirada em Roche (1992), de Paradigma dominante de Estado de Bem-Estar, a saber: o receituário keynesiano de regulação econômica e social, inaugurado nos anos 1930; as postulações do Relatório Beveridge sobre a Seguridade Social, publicadas em 1942; e a formulação da teoria trifacetada da cidadania, de T. H. Marshall, nos fins dos anos 1940. Cada um desses marcos gira em torno de um eixo particular que, conjuntamente, formam as colunas mestras (teóricas, políticas e ideológicas) modernas do Welfare State e de suas políticas: pleno emprego (Keynes); seguridade econômica e de existência (Beveridge) e direitos de cidadania (Marshall).

O Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social se desenvolveu na fase monopolista

do capital, marcada por particularidades como a reordenação do processo de acumulação

capitalista por meio do fortalecimento dos monopólios, ou seja, da fusão de grandes empresas,

bancos e instituições financeiras que aumentaram os seus lucros com investimentos no

exterior, controle dos mercados, inovações tecnológicas, medidas imperialistas e a

interferência dos Estados que vão além do setor econômico (NETTO; BRAZ, 2011). Segundo

os autores, os Estados na era do capitalismo monopolista se redimensionaram e passaram a

exercer funções extra-econômicas:

Na idade do monopólio, ademais da preservação das condições externas da produção capitalista, a intervenção estatal incide na organização e na dinâmica econômicas desde dentro, e de forma contínua e sistemática. Mais exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente com as suas funções econômicas (NETTO; BRAZ, 2011, p. 213).

Foi nesse momento, entre o final da Segunda Guerra Mundial e o término dos anos

1960, que o capitalismo viveu uma “fase única”, como denomina Netto e Braz (2011, p. 205).

Trata-se do período denominado por muitos estudiosos de Anos dourados ou Trinta Anos

Gloriosos, como já expusemos no capítulo anterior. O que, para nós, é importante apreender

de tudo isso é que, após um longo período de acumulação estimulado pelo recurso dos

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monopólios no sistema capitalista em seu estágio imperialista, e após diversas e longas crises

deste sistema, o modelo econômico capitalista vivenciou um dos seus melhores momentos

expressos por altas taxas de crescimento econômico e lucratividade. Isto se deu mesmo em

um ambiente político e social conturbado por grandes contestações e mobilizações sociais que

questionavam as promessas de prosperidade do capitalismo e criticavam as desigualdades

entre os vários segmentos sociais, além dos movimentos anticolonialistas em todo o mundo e

das lutas por libertação nacional que sucederam nesse período e, não raras vezes, resultaram

na opção pelo Estado socialista. Nesse contexto, as contradições inerentes ao modo de

produção capitalista continuavam se acentuando, em escala mundial, mas sob a gerência de

um novo modelo de Estado: o Estado a serviço dos monopólios, que passou a desempenhar

novas funções como a de empresariar setores básicos não-rentáveis, controlar grandes

empresas em dificuldades, subsidiar os monopólios de várias formas, planejar

estrategicamente o desenvolvimento dos países sinalizando os melhores investimentos para os

monopólios (NETTO; BRAZ, 2011). Contudo, o grande diferencial do Estado nos anos

dourados estava no papel exercido por ele perante a reprodução e o controle da força de

trabalho:

[...] no capitalismo concorrencial, a intervenção estatal sobre as seqüelas da exploração da força de trabalho respondia básica e coercitivamente às lutas das massas exploradas ou à necessidade de preservar o conjunto de relações pertinentes à propriedade privada burguesa como um todo- ou, ainda, à combinação desses vetores; no capitalismo monopolista, a preservação e o controle contínuos da força de trabalho, ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem: não está condicionada apenas àqueles dois vetores, mas às enormes dificuldades que a reprodução capitalista encontra na malha de óbices à valorização dão capital no marco do monopólio (NETTO, 2009, p. 27).

Isto significa que a refuncionalização do Estado no capitalismo monopolista é parte

de um processo muito mais complexo, como os próprios autores explicitam:

Não se trata aqui, simplesmente, da ‘socialização dos custos’ de que fala Galper (1986: 99)- obviamente que este é o fenômeno geral, através do qual o Estado transfere recursos sociais e públicos aos monopólios. O processo é mais abrangente e preciso: quer pelas contradições de fundo do ordenamento capitalista da economia, quer pelas contradições intermonopolistas e entre os monopólios e o conjunto da sociedade, o Estado- como instância da política econômica do monopólio- é obrigado não só a assegurar continuamente a reprodução e a manutenção da força de trabalho, ocupada e excedente, mas é compelido (e o faz mediante os sistemas de previdência e segurança social, principalmente) a regular a sua pertinência a níveis determinados de consumo e a sua disponibilidade para a ocupação sazonal, bem como a instrumentalizar mecanismos gerais que garantam a sua mobilização e

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alocação em função das necessidades e projetos do monopólio (NETTO, 2009, p. 27).

Além disso, a necessidade de legitimar-se enquanto um órgão interventor e sob fortes

pressões da sociedade organizada e dos movimentos sindicais e de trabalhadores, em parte da

Europa Nórdica e Ocidental, obrigou o Estado a fazer concessões, reconhecer direitos sociais

e implantar medidas protetivas. A partir daí, a questão social tornou-se objeto de intervenção

contínua e sistemática no âmbito do Estado, de modo que todo um aparato institucional e

burocrático foi construído para tal fim. A questão social, recortada em várias problemáticas

(desemprego, fome, falta de moradia, etc.) que são passíveis de atendimento em instituições

responsáveis por diversas políticas sociais, é compreendida, no máximo, sob o viés da

integração social, sem as mediações necessárias para uma leitura mais completa do seu

significado, fato que não elimina as conquistas históricas de movimentos de trabalhadores que

contribuíram enormemente para a construção desse sistema de proteção social. Foram assim

que se configuraram os vários modelos de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State),

explicam Netto e Braz (2011).

A ordem econômica dos monopólios desencadeou orientações teóricas, políticas,

ideológicas, citadas em parágrafos anteriores e que serão retomadas, neste ponto, para melhor

compreender essa conjuntura na qual se desenvolveu o Welfare State. Conforme exposição

anterior, a teoria econômica keynesiana difundia a ideia de que o Estado deveria interferir na

economia para um necessário equilíbrio no sistema capitalista. Contrariando as teorias

econômicas liberais de estudiosos clássicos, como Adam Smith e David Ricardo, o

keynesianismo teve ampla repercussão, a partir dos anos 1930, e influenciou a efetivação do

Estado de Bem-Estar Social. De acordo com a teoria keynesiana, o equilíbrio entre a oferta e a

demanda no mercado:

[...] seria assegurado se um agente externo ao mercado regulasse variáveis chaves do processo econômico. Esse agente seria o Estado (a máxima autoridade pública) e, as variáveis, a ‘propensão ao consumo’ e o ‘incentivo ao investimento’, de acordo com a seguinte lógica: o Estado teria o dever (e não somente a opção) de intervir na economia a fim de garantir um alto nível de ‘demanda agregada’ (conjunto de gastos dos consumidores, investidores e do poder público) por intermédio de medidas macroeconômicas, que incluiriam o aumento da quantidade da moeda, a repartição de rendas e o investimento público suplementar. Tais medidas, contudo, não poderiam ser financiadas por impostos adicionais- pois isso estrangularia a demanda privada- mas por meio do gasto deficitário (déficit spending), isto é, da contração de empréstimos e da emissão de moeda. Para implantar o gasto deficitário, Keynes concebeu medidas estatais que pareciam extravagantes, como ‘cavar buracos e tapá-los novamente’ a fim de gerar dispêndios

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capazes de remover o desemprego e, de modo geral, manter a procura em um nível propício à criação do pleno emprego (PEREIRA, 2011, p. 91)

Em 1942, foi publicado o “Relatório ou Informe Beveridge sobre o Seguro Social e

Serviços Afins”, que propunha uma revisão no sistema de proteção social da Grã-Bretanha.

Entre as suas propostas, elaboradas por um Comitê coordenado por William Beveridge,

estavam a elaboração das Leis Nacionais de Seguro e Assistência, a criação de políticas de

emprego e de um Sistema Nacional de Saúde gratuito e universal (PEREIRA, 2011). Segundo

a autora, apesar dos “pontos fracos” desse relatório, ele instituiu mudanças importantes no

campo das políticas sociais enquanto direito da população.

Já a teoria de T. H. Marshall colaborou para implementação do Welfare State, ainda

nos anos 1940, disseminando a ideia de que os serviços sociais públicos oferecidos por esse

modelo de Estado deveriam ser considerados como direitos de cidadania. O sociólogo inglês

elaborou uma notável reflexão sobre os direitos na modernidade e a sua relação com as

classes sociais e as lutas democráticas, que se tornou referência para os estudos e debates

sociológicos no período, sendo que a sua teoria é utilizada até os dias de hoje. Ao fazer a

distinção entre os direitos civis, políticos e sociais, o autor considerou que estes últimos

devem abranger:

[...] tudo que vai desde direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar por completo da herança social e levar uma vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade (MARSHALL apud PEREIRA, 2011, p. 96).

Diante desse quadro sócio-histórico e do ideário que foi se construindo nesse período

acerca das condições de vida da classe trabalhadora e dos meios para a sua reprodução, os

Estados de Bem-Estar Social se desenvolveram de forma diferenciada em vários países e, em

alguns deles, como é o caso do Brasil, nem chegou a ser implantado. Em países como Estados

Unidos, Canadá e Austrália vigoraram modelos de Bem-Estar Social com base num regime

liberal60. Já na Áustria, França, Alemanha e Itália, prevaleceram modelos fundados num

regime conservador-corporativo61 e em países como a Suécia, por exemplo, imperaram

60 De acordo com Pereira (2011, p. 189-190): “No regime liberal prevalece o Welfare State liberal dominado, naturalmente, pela lógica do mercado. Neste modelo, os benefícios sociais são modestos, voltados para grupos de baixa renda e geralmente condicionados a comprovações constransgedoras de pobreza, que estigmatizam os beneficiários”. 61 “No regime conservador-corporativo, o forte não é propriamente a lógica do mercado e a mercadorização da política social, mas a subordinação dos direitos de cidadania ao status quo que preserva tradicionais diferenças de classe e de status. [...] Seu principal exemplo é o da Alemanha de Bismarck, do século XIX, sendo que, em

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modelos baseados no regime social-democrata, segundo o qual o Estado é o principal

provedor de políticas sociais, serviços sociais universais, buscando zelar pelo pleno emprego

também. Nesses Estados, o sistema está voltado para a garantia de direitos sociais universais e

desmercadorizados, afirma Pereira (2011) com base nas classificações de Esping-Andersen.

Em fins dos anos 1960, as taxas de crescimento econômico começaram a cair, o

desemprego aumentou, as dívidas públicas aumentaram, vieram a revolta de 1968 e a crise do

petróleo, de modo que tudo isso contribuiu para o enfraquecimento do Estado de Bem-Estar

Social, até porque esse modelo estatal passou a ser responsabilizado pela crise econômica

daquele período (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Alguns autores defendem que, desde esse

período, tem havido uma reconfiguração/reestruturação do Estado de Bem-Estar Social,

sobretudo nos países da Europa ocidental, onde esse sistema se desenvolveu com maior

intensidade. Podemos afirmar aqui que, nesse período de crise atual, as políticas de proteção

social implantadas por esse modelo de Estado sofreram cortes e perdas irreparáveis em países

como a Grécia, Portugal, Espanha, entre outros. Tais modificações ocorrem em meio a

resistências e reivindicações das classes populares e movimentos sociais, mesmo que estes

apresentem grande heterogeneidade em sua composição.

No Brasil, as políticas sociais foram se consolidando a partir de especificidades da

realidade brasileira e a questão social somente foi reconhecida nas primeiras décadas do

século XX, portanto, a implantação de políticas sociais se deu posteriormente ao processo

ocorrido nos países centrais (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). As autoras destacam duas

particularidades do processo de emergência das políticas sociais no Brasil, são elas: a

formação do capitalismo e da sociedade brasileira na condição de colônia submetida aos

interesses dos países estrangeiros, fato que gerou uma marca de dependência no Estado

brasileiro que privilegia os interesses externos e não se compromete com os direitos dos

cidadãos no país; e os resquícios de uma sociedade até pouco tempo atrás escravista e que

tentou se adaptar às idéias liberais gerando a marca do favor nas relações entre o Estado e o

povo brasileiro. Ambas as marcas influenciaram o desenho das políticas sociais brasileiras.

De acordo com Behring e Boschetti (2008), o reconhecimento de direitos sociais no Brasil

expressou conquistas do movimento organizado de trabalhadores que estava iniciando no

muitos casos, esse modelo recebe forte influência da Igreja que procura zelar pela preservação da família tradicional, na qual a mulher é considerada dependente do homem. [...] no modelo conservador o Estado subsidia outras instituições intermediárias, notadamente a Igreja, as organizações voluntárias, para que, mediante o princípio da subsidiaridade entre atores sociais mais próximos, o bem-estar seja atingido” (PEREIRA, 2011, p. 190-191).

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país, mas também foi um instrumento de legitimação das classes dominantes nacionais.

Segundo elas, nesse contexto:

Tem-se também uma forte instabilidade dos direitos sociais, denotando a sua fragilidade, que acompanha uma espécie de instabilidade institucional e política permanente, com dificuldades de configurar pactos mais duradouros e inscrever direitos inalienáveis (BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 79).

A crise de 1929 impactou diretamente a política e economia brasileiras, sendo uma

das causas de mudança na correlação de forças entre as classes dominantes com

consequências para a vida dos trabalhadores. As perdas no setor da agroexportação do café e a

insatisfação popular com as medidas de governo naquele momento expressaram os efeitos da

crise financeira internacional no Brasil. A ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930,

culminou com a regulamentação de políticas sociais e trabalhistas no país, construídas sob a

ótica populista e repressiva de um governo que procurava se afirmar em um país dominado

por grupos oligárquicos e pelo coronelismo regional. Em um processo de modernização

conservadora, o Brasil foi sendo moldado de acordo com as necessidades da industrialização

emergente, dentre elas, a implantação de um aparato estatal e burocrático de atendimento às

demandas sociais. Com o término do governo Vargas, em 1945, as políticas sociais

evoluíram mais lentamente, se comparadas com o período anterior, afinal, havia uma forte

instabilidade política no país e o acirramento da luta de classes. Episódios que foram

sufocados com a construção de expectativas em torno de um projeto nacional de

desenvolvimentismo (BEHRING; BOSCHETTI, 2008).

Enquanto os países europeus vivenciavam o enfraquecimento do Welfare State e os

efeitos de mais uma crise econômica que eclodiu entre os anos de 1969 e 1973, o Brasil vivia

um momento político muito difícil de ditadura militar. Após o golpe de 1964, o governo

promoveu o chamado “Milagre Brasileiro”, período de crescimento do mercado interno e de

acesso da classe média aos bens de consumo viabilizados por meio de investimentos do

capital estrangeiro no país e de sua valorização com o consequente endividamento do governo

brasileiro no exterior. No que se refere às políticas sociais, elas passaram por um processo de

modernização tecnocrática, ao mesmo tempo em que direitos civis e políticos de grande parte

da população eram extintos pela repressão militar. Apesar do crescimento econômico

proporcionado pelo “Milagre Brasileiro”, no período da ditadura militar, a riqueza nacional

não foi distribuída entre a população e os índices de desigualdade social foram se agravando

ao longo dos anos. A política social brasileira ganhava os contornos necessários à estruturação

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de uma sociedade regida pelo capital monopolista estrangeiro e por um governo que buscava

legitimação perante os seus governados para mascarar as inúmeras barbáries cometidas pela

repressão ditatorial. Sendo assim, os militares brasileiros que estavam no poder investiram na

expansão de instituições voltadas para a área social como, por exemplo, a criação do

Ministério da Previdência e Assistência Social, a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-

Estar do Menor), o BNH (Banco Nacional de Habitação), entre outras. Foi também neste

período que o sistema de proteção social brasileiro começou a ser construído sob um esquema

de dualidade que se caracterizou pela oferta de serviços sociais básicos públicos e privados,

ao mesmo tempo (BEHRING; BOSCHETTI, 2008).

Durante a década de 1980 no Brasil, quando a ditadura militar se encerrava e

iniciava-se um período de transição democrática no país, o quadro social instalado era de

recessão econômica com desemprego gerado pela redução dos investimentos estrangeiros no

mercado brasileiro, pela exportação de grandes volumes monetários para arcar com as dívidas

herdadas do governo militar. Era também um momento de conquistas políticas importantes

que expressavam avanços na conquista de direitos sociais concebidos sob os princípios da

“universalização, responsabilidade pública e gestão democrática” (Behring; Boschetti, 2008,

p. 144), concepção inovadora naquele momento histórico. A Constituição de 1988 foi

elaborada por “várias mãos” e representou um marco regulatório no campo dos direitos

sociais em nosso país. O processo de sua construção não ocorreu sem disputas ou resistências

no jogo de forças contrárias representadas pelo Estado, sociedade civil e mercado no Brasil,

explicam as autoras.

Segundo Behring e Boschetti (2008), foi nos anos 1990 que o neoliberalismo chegou

com força no país e ressignificou o termo “reforma”, até então utilizado pelo movimento dos

trabalhadores para reivindicar melhores condições de vida e acesso a alguns benefícios sociais

por meio da luta política. O Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), ao eleger o seu

candidato à Presidência da República do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, colocou em

prática o projeto societário ao qual estavam vinculados e que, dentre outras coisas,

privilegiava o investimento no mercado em detrimento de uma maior atenção à questão

social, além da reestruturação do Estado brasileiro visando ao ajuste fiscal e à superação da

crise econômica do país. Então, as autoras denominam esse processo de “contra-reforma” do

Estado brasileiro que, por meio do Plano Real, venceu a inflação em níveis alarmantes e

desmontou os serviços públicos estatais que se tornaram alvos dos especuladores do setor

financeiro, da privatização e da precariedade em sua gestão.

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Conforme abordamos no capítulo anterior, após os anos de ouro do capitalismo, a

partir da década de 1970, a economia capitalista entrou em crise no Ocidente, quando a

expansão do capital foi decaindo até gerar uma grave crise do petróleo, que gerou impactos

em países de todo o mundo. Mais uma vez, as manifestações populares, de trabalhadores e

sindicatos, tiveram grande peso na deflagração da crise e, novamente, o sistema capitalista foi

“colocado em xeque”. Todavia, os representantes e defensores desse modelo econômico

responderam duramente a essa situação e, além de implementarem mudanças drásticas no

sistema produtivo, o que resultou no reordenamento do conjunto das relações sociais,

reprimiram os movimentos sociais e de trabalhadores e “assaltaram” os direitos e conquistas

sociais obtidas por meio da luta histórica do povo, tudo isso em nome da recuperação do

capital e do fortalecimento desse sistema em que vivemos hoje.

Nesse contexto de intensas mudanças, o neoliberalismo ganhou espaço na economia,

na política, na cultura e nos assuntos sociais. Velhas idéias (com novos formatos) foram

introduzidas com força na sociedade contemporânea com o intuito de que os indivíduos se

adaptassem ao mercado de trabalho como ele está, sem maiores questionamentos. A ideologia

neoliberal prega também a importância do esforço pessoal mesmo que seja (e, geralmente é)

por meio do trabalho incessante, desgastante, com baixos salários, sem nenhuma garantia

trabalhista, enfim, o emprego no mercado de trabalho que explora e desumaniza quem dele

necessita para sobreviver. Com base nessas idéias, os sujeitos são levados a acreditar que a

submissão ao modo de vida capitalista é o único caminho possível para a realização de sonhos

particulares. Nesse contexto, tudo é mercadoria e os serviços de atendimento às necessidades

básicas dos seres humanos não fogem às regras desse sistema de modo que, cada vez mais,

estão sendo mercantilizados os serviços de educação, saúde, habitação, cultura, lazer,

proteção social, entre outros.

Em tempos neoliberais que vivemos hoje, a autora Behring (2010, p. 3) chama a

nossa atenção para um “revival do funcionalismo”, no trato com as políticas sociais no mundo

contemporâneo. Segundo ela, há fortes tendências de se pensar a funcionalidade das políticas

sociais relacionada ao conserto de uma sociedade desorganizada e destruída pela crise do

capitalismo.

Ao citar Draibe, Behring (2010) afirma que o neoliberalismo cumpriu sua primeira

fase, de ataque ao keynesianismo e Welfare State, conforme vimos anteriormente, e coloca em

prática sua segunda fase, de “desuniversalização” e “assistencialização” das políticas sociais

em vigor na atualidade, de modo que o carro-chefe dessa proposta está ancorado nos

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programas de transferência de renda e no apelo à solidariedade para o enfrentamento da

desigualdade social por meio de organizações da sociedade civil.

Atualmente, o que tem ocorrido na Europa, em especial, nos países membros da

União Européia, desde os anos 1990 com mais força, é a reconfiguração das políticas sociais

que são oferecidas à população em troca do comprometimento, por parte do público usuário,

de reinserção no mercado de trabalho, sejam quais forem as condições empregatícias,

explicita Moser (2011). Segundo a autora, este processo que vem se consolidando em vários

países, com mais intensidade na Grécia e Portugal e, na América Latina, no Chile e no Brasil,

procede de uma situação internacional e transnacional em que os Estados e as sociedades,

cada vez mais integrados, por conta do processo de mundialização do capital, estão sujeitos a

seguir determinados modelos e orientações que influenciam as políticas nacionais, como é o

caso do “Consenso de Washignton”, aprovado em meados dos anos 1980. Esse documento foi

elaborado por países desenvolvidos, sob orientações das agências multilaterais como o Banco

Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional), entre outras, com o propósito de

estabelecer e implantar medidas de reforma econômica e política que priorizavam a abertura

das economias de países em desenvolvimento (como o Brasil) para o mercado estrangeiro

para a sua modernização e resolução de problemas internos, assim como a transferência da

formulação e execução de políticas macroeconômicas, monetárias e fiscais para os países

desenvolvidos e organismos internacionais. Dessa maneira, pregava-se que os problemas

sociais relacionados à saúde, educação, combate à pobreza, etc., seriam naturalmente

resolvidos com a liberalização econômica. A proteção social foi sendo privatizada, as

políticas sociais se transformaram em medidas residuais e foram direcionadas aos grupos mais

pobres e vulneráveis (MOSER, 2011).

O workfare é um modelo de proteção social baseado na ativação das políticas sociais,

ou seja, há a substituição de uma “lógica passiva” por uma “lógica ativa” na formulação

dessas políticas, em que as pessoas desempregadas “ajudadas” pelo Estado, por meio da

assistência pública, são requalificadas e preparadas para assumir novos empregos, em geral,

no terceiro setor ou em atividades de economia solidária, como forma de retribuir essa

“ajuda” concedida pelo Estado para o enfrentamento do desemprego e de todas as mazelas

que essa situação resulta. O sistema do Welfare State está sendo substituído pelo sistema do

workfare, e várias outras tendências condizentes com essa lógica estão se refletindo no

sistema de proteção social em vários países do mundo.

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Continuamos a viver então os efeitos da “contrarreforma do Estado”, como afirma

Behring (2010), por isso, as políticas sociais são redirecionadas e o investimento neste setor

ainda é muito baixo. O trabalho profissional dos assistentes sociais nesse campo é

subutilizado de maneira a limitar-se à gestão da pobreza e não a pensar formas de organização

da população ou uma intervenção mais incisiva na esfera pública, a formação profissional

segue o mesmo rumo com a crescente privatização do ensino superior e a formação de

profissionais com base na lógica do lucro. No caso do Serviço Social, as/os assistentes sociais

em formação estão sendo preparados, sobretudo, para administrar a pobreza e lidar com as

exigências de produtividade nessa área. Além disso, estas/estes são, muitas vezes, obrigados a

submeterem-se aos ditames da “refilantropização da assistência social”, da precarização no

mercado de trabalho, da responsabilidade social nas empresas onde são contratados

(BEHRING, 2010). A autora faz uma citação de Netto acerca das tendências no campo das

políticas sociais hoje. Segundo ela, são evidentes:

a desresponsabilização do Estado e do setor público com uma política social de redução da pobreza articulada coerentemente com outras políticas sociais (de trabalho, emprego, saúde, educação e previdência); o combate à pobreza opera-se como uma política específica; a desresponsabilização do Estado e do setor público, concretizada em fundos reduzidos, corresponde à responsabilização abstrata da “sociedade civil” e da “família” pela ação assistencial; enorme relevo é concedido às organizações não-governamentais e ao chamado terceiro setor; desdobra-se o sistema de proteção social: para aqueles segmentos populacionais que dispõem de alguma renda, há a privatização/mercantilização dos serviços a que podem recorrer; para os segmentos mais pauperizados há serviços públicos de baixa qualidade; a política voltada para a pobreza é prioritariamente emergencial, focalizada e, no geral, reduzida à dimensão assistencial (NETTO apud BEHRING, 2010, p. 22).

Yazbek (2012) faz uma reflexão sobre isso, baseada no pressuposto de que:

[...] há uma profunda relação entre as transformações, em andamento, no regime de acumulação na ordem capitalista, especialmente as mudanças que caracterizam a esfera da produção e o mundo do trabalho, associadas à nova hegemonia liberal-financeira e as transformações que ocorrem nas políticas sociais com o advento, por um lado da ruptura trabalho/proteção social e por outro com a recomposição das políticas sociais que tornam-se cada vez mais focalizadas e condicionadas. Ou seja, trazem a lógica do workfare ou da contrapartida por parte dos que recebem algum benefício (YAZBEK, 2012, p. 1).

A autora ressalta, portanto, o fato de que os benefícios do sistema de proteção social

conquistados pelos trabalhadores, há mais de um século, estão se dissipando na atualidade e

sendo gradualmente substituídos por políticas sociais focalizadas. Trata-se de uma situação

acentuada pela crise do sistema capitalista mundial que, nos países desenvolvidos, encolhe o

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montante do dinheiro público destinado à proteção social, assim como obriga os trabalhadores

a optarem por qualquer tipo de trabalho para não ficarem desempregados, o chamado

workfare. E, no caso dos países periféricos, além da precarização do trabalho vivenciada pelos

trabalhadores, há também um movimento de priorização de políticas de combate à pobreza

que “passaram a ser vistas como estratégia de expansão de mercados via relações monetárias

através de um ‘piso de sobrevivência, o que o pensamento conservador sempre reconheceu

como necessário (BARR, 2004 in LAVINAS, 2012)’” (YAZBEK, 2012, p. 2). O trabalho no

âmbito das políticas sociais centraliza-se na gestão social do risco e contribui para a inserção

de parcela numerosa da população no mercado de consumo, mesmo que muito timidamente

(YAZBEK, 2012).

Se os programas de transferência de renda são uma “alternativa provisória”62 ao

desemprego e uma oportunidade para a reinserção no mercado de trabalho e para o

rompimento com o ciclo da pobreza, a desigualdade social gerada pelo modo de produção

capitalista e as relações sociais injustas que este gera, são questões que desaparecem no

debate sobre as políticas sociais e o seu foco volta-se para a preparação dos indivíduos para a

reinserção no mercado de trabalho, ora como ele está, e para a transformação dos pobres em

cidadãos consumidores, como denominou Mota (2010).

Segundo Yazbek (2012), a lógica do capital financeiro se estendeu para a sociedade

no mundo inteiro e passou a orientar as decisões econômicas, a vida em sociedade, a política,

as relações entre os países, a cultura. A consequência mais gritante desse processo é o

aumento da desigualdade social entre os países e, no interior dos países, entre os segmentos

sociais. Contudo, a autora ressalta que, dessa mesma sociabilidade, nascem também as

manifestações populares de resistência e descontentamento com os impactos negativos

gerados por esse sistema. É certo que, em tempos de crise, outras dificuldades se colocam

para a organização coletiva em prol de direitos sociais como as ameaças do desemprego, a

fragmentação da classe trabalhadora, o desgaste dos movimentos sociais, entre muitas outras.

Porém, as lutas no interior do capitalismo existem porque a questão social sempre estará viva

nesse sistema, diferentemente do que defendem as teorias pós-modernas e neoconservadoras,

segundo as quais “a guerra está vencida”, “o capitalismo venceu” e não há nada que possamos

fazer a não ser conviver com essa realidade.

62 Exceto o Benefício de Prestação Continuada- BPC- que é uma transferência de renda constitucional, portanto, um direito de idosos e deficientes que não é provisório.

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Agências internacionais como o Banco Mundial orientam o desenvolvimento de

políticas econômicas em países subdesenvolvidos que preveem o alcance de metas no

combate à pobreza como algo necessário ao desenvolvimento desses países. As metas

traçadas por esses organismos se baseiam em teorias como as de Amartyra Sen, segundo as

quais potencialidades devem ser desenvolvidas nos indivíduos com o objetivo de empoderá-

los para o enfrentamento da pobreza. A noção de “risco social” também advém desses estudos

e tornou-se um referencial para a implementação de políticas sociais nos países periféricos.

Outras agências multilaterais internacionais como o Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BID), Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), reforçam tais recomendações

para a construção de um novo modelo de assistência social (YAZBEK, 2012).

Contudo, o que tem ocorrido é o aumento da desigualdade social, mesmo com a

redução dos índices de extrema pobreza. De acordo com Iamamoto:

[...] as medidas modernizadoras anticrise, recomendadas aos países da periferia mundial desde a década de noventa pelos organismos multilaterais, vêm redundando em uma recuperação das taxas de lucro e, simultaneamente, têm acentuado a desigualdade no país (2010a, p. 2).

Portanto, nas últimas décadas, milhões de pessoas ultrapassaram a faixa de pobreza

no Brasil por causa do fim da inflação, do aumento do nível educacional das pessoas e até

mesmo por conta dos programas de transferência de renda, entre outros fatores, como alguns

jornais têm anunciado63. Porém, esses números poderiam ser ainda menores se não fosse a

desigualdade de renda que ainda existe em nosso país. Esse é o “terreno histórico” em que se

desenvolvem as políticas sociais no Brasil e, nós, assistentes sociais, formuladores e

executores dessas políticas, deparamo-nos com essa realidade durante a prática profissional.

Iamamoto (2010a, p. 3) expõe que a expansão monopolista do capitalismo:

[...] aprofundou as disparidades econômicas, sociais e regionais, na medida em que favorece a concentração ao nível social, regional e racial de renda, prestígio e poder. Engendrou uma forma típica de dominação política, de cunho contra- revolucionário, em que o Estado, capturado historicamente pelo bloco do poder, assume um papel decisivo na unificação dos interesses das frações e classes burguesas e na imposição e irradiação de seus interesses, valores e ideologias para o conjunto da sociedade, antecipando-se às pressões populares e realizando mudanças para preservar a ordem. Os traços elitistas e antipopulares da transformação política e da modernização econômica se expressam na conciliação entre as frações das classes dominantes com a exclusão das forças populares, no recurso freqüente aos

63 Jornal O Globo on line, 22 de agosto de 2009.

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aparelhos repressivos e à intervenção econômica do Estado (COUTINHO, 1989, p. 122), o que se atualiza hoje tanto na criminalização da questão social, quanto na decisiva interferência do Estado na estruturação de políticas anticíclicas para o capital, contra as necessidades das maiorias.

Segundo a autora, três tendências prevalecem na cultura liberal contemporânea que

interferem diretamente nas respostas institucionais à questão social, são elas: 1) o reforço do

individualismo e a responsabilização da família trabalhadora para o enfrentamento das

desigualdades sociais; 2) a moralização da questão social; 3) a assistencialização e a

criminalização da pobreza. No primeiro caso, assistentes sociais são chamados a fiscalizar as

ações das famílias beneficiárias de programas de transferência de renda e o uso do dinheiro

público transferido. A fiscalização das condicionalidades exigidas por esses programas de

transferência de renda no Brasil é marcada pela infantilização dessa população beneficiária e

pela criminalização de suas ações. Já a moralização da questão social se concretiza a partir da

subjetivação das necessidades das famílias pobres, fazendo desaparecer a condição social em

que estas vivem e os seus determinantes estruturais. Segue a autora explicando que:

Constata-se a tendência de ‘não sujar as mãos com as necessidades de sobrevivência material’ em favor de um trabalho considerado ‘mais nobre’ na esfera da cultura, da educação ou da esfera psicológica dos sujeitos’. Essa ‘subjetivação das necessidades’ também se expressa na tendência de encarar a vivência da pobreza como questão psicológica, cuja aceitação passaria pela via terapêutica, individual ou familiar, sublimando as desigualdades: a ironia de viver bem emocionalmente em condições de barbárie, confundindo competências e atribuições do assistente social com atividades terapêuticas (IAMAMOTO, 2010a, p. 10).

Ela cita ainda o voluntariado como outra expressão da moralização da questão social,

pois desqualifica o trabalho prestado à população usuária (além de não ser especializado, a

boa vontade não substitui o conhecimento teórico e técnico- político dos profissionais) e

esvazia o caráter político da militância, neutralizando a direção social do trabalho. Iamamoto

(2013) afirma que esse tipo de trabalho se situa acima do bem e do mal, é como se fosse

metafisicamente superior. A terceira tendência citada pela autora nos remete a uma realidade

em que a assistência social e a repressão são tidas como principais instrumentos de

enfrentamento à questão social, como se todos os problemas que resultam dela pudessem ser

solucionados por meio de medidas burocráticas expedidas por juízes e assistentes sociais, em

certos casos, efetivadas pelo encarceramento das pessoas pobres.

Contudo, as políticas sociais devem ser compreendidas sob várias dimensões,

conforme expõem Sposati et al. (2010, p. 32): “A dupla face da política social diferencia-se

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nas diversas conjunturas e momentos históricos e em suas particularizações, enquanto

prevalência de uma ou outra característica”. Se, por um lado, o Estado faz um “uso político”

dessas políticas tutelando o povo, “escondendo” o lado ruim do capitalismo e implantando

medidas coercitivas para a superação de crises que são inerentes a esse sistema; por outro

lado, as resistências e mobilizações populares podem fazer delas um instrumento para a

ampliação do atendimento das necessidades básicas da população, para o fortalecimento de

suas reivindicações e processos organizativos:

Não se nega que a política social é um mecanismo que o Estado utiliza para intervir no controle das contradições que a relação capital-trabalho gera no campo da reprodução e reposição da força de trabalho, ou, ainda, que cumpre uma função ideológica na busca do consenso a fim de garantir a relação dominação-subalternidade e, intrinsecamente a esta, a função política de alívio, neutralização das tensões existentes nessa relação. É ela uma forma de gestão estatal da força de trabalho e, nessa gestão, não só conforma o trabalhador às exigências da reprodução, valorização e expansão do capital, mas também é o espaço de articulação das pressões e movimentos sociais dos trabalhadores pela ampliação do atendimento de suas necessidades e reivindicações (SPOSATI et al., 2010, p. 33-34).

Todavia, Mota (2010, p. 48) nos alerta para o “tratamento unívoco ao que se vem

chamando de mecanismos de enfrentamento da questão social: a instituição de direitos

protetivos, materializados na oferta de bens e serviços sociais, enfim, das políticas sociais”.

Ou seja, no Brasil, os principais mecanismos de enfrentamento da questão social foram a

legislação trabalhista, sindical e social e, de fato, essas são fundamentais na sociabilidade

capitalista. No entanto, não há muitas alternativas para se pensar o enfrentamento da questão

social, a não ser a “sua administração no interior da ordem burguesa- demarcada pela

implementação de reformas sociais e morais, tanto mais ‘eficientes’ quanto mais ancoradas

tecnicamente” (MOTA, 2010, p. 49) ou a “sua superação como uma prática que transforma

não a questão social em si, mas a ordem social que a determina” (MOTA, 2010, p. 49). A

autora continua explicando que:

É evidente que tais tendências gerais se constituem e se explicitam no âmbito da política e da economia, sob condições históricas muito precisas. Contudo, implicam em escolhas ético-políticas e em uma direção ideológica referenciada por um projeto político de classe- e que, mormente no que toca à tendência superadora, para sua realização, requer rigorosa análise da realidade e delineamento de estratégias de luta, balizadas pelas possibilidades contidas nas condições históricas existentes. Lutas que, longe de serem profissionais, são sociais, apesar das profissões terem um papel a desempenhar no seu marco (MOTA, 2010, p. 49).

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Em síntese, consideramos que as políticas sociais são uma conquista histórica

importante da classe trabalhadora na disputa por seus interesses e que, no movimento

dinâmico e contraditório da sociedade capitalista, elas sofreram perdas e ganhos até chegar à

sua atual configuração que necessita ser estudada e analisada mais cuidadosamente (a sua

natureza, os seus objetivos e finalidades), para evitarmos o equívoco de tratá-las como

instrumento privilegiado de trabalho e enfrentamento da questão social.

No caso do Serviço Social brasileiro e da prática profissional nos Centros de

Referência da Assistência Social, em particular, por um lado, a execução da política de

assistência social tem sido um embate cotidiano (com muitas vitórias e desafios) contra a sua

depreciação enquanto uma política pública, na medida em que essa sempre foi considerada

uma prática secundária marcada pela benemerência e pelo clientelismo. Por outro lado, a sua

efetivação sofre os impactos de um contexto macrosocietário que nos leva a crer que a

pobreza e as desigualdades sociais são passíveis de “resoluções” no nível governamental,

sejam nas instituições prestadoras de serviços socioassistenciais ou nos espaços de controle

social com composição paritária entre membros da sociedade civil e do governo.

Concordamos com a afirmação de Behring (2002, p. 17) de que

[...] o significado da política social não pode ser apanhado nem exclusivamente pela sua inserção objetiva no mundo do capital, nem apenas pela luta de interesses dos sujeitos que se movem na definição de tal ou qual política, mas, historicamente, na relação desses processos na totalidade. A generalizada associação entre redistribuição de renda, cidadania e democracia nas condições específicas do capitalismo mundial (central e periférico) em fim deste século é, no mínimo, discutível. Assim, esse discurso cerca de enfeites ações compensatórias, muitas vezes mínimas, considerada a extensão das demandas reais da população, particularmente no Terceiro Mundo.

Esforçamo-nos aqui para oferecer um panorama geral sobre as políticas sociais na

contemporaneidade e as contradições que as permeiam, movimento em que assistentes sociais

estão diretamente envolvidas/os, durante o seu cotidiano de trabalho, no campo das políticas

públicas. Na seção seguinte desta dissertação, trataremos da política de assistência social

brasileira, a sua trajetória histórica e os principais parâmetros que esta institui para o trabalho

com famílias na atualidade.

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2. A política de Assistência Social no Brasil

Já expusemos, no primeiro capítulo, que o marco histórico da implantação de

políticas sociais estatais no Brasil foi caracterizado pelo aprofundamento de um modelo de

Estado corporativista, durante a era Vargas. Abordamos também que a burguesia industrial

brasileira aliou-se ao Estado para o incentivo das atividades industriais e o desenvolvimento

de uma estrutura voltada para isso, incluindo então as políticas estatais de apoio aos

trabalhadores. Essa aliança foi consequência também do movimento político que se

configurava no país através do crescimento da população industrial e da urbanização que

expressavam novas demandas e um forte poder de organização social e política que

ameaçavam a classe dominante. A incorporação de reivindicações populares se fez necessária

nesse contexto e a Legislação Social foi uma forma encontrada para a legitimação do Estado

corporativista e de todas as transformações oriundas dessa nova fase do capitalismo no Brasil.

Iamamoto e Carvalho (2003, p. 238) lembram que essa situação não foi apenas um “pacto de

classes”, mas tratou-se “no essencial de readaptar os mecanismos de exploração econômica e

dominação política às necessidades do aprofundamento capitalista”. E eles continuam

explicando que:

A legislação social se constitui de dispositivos legais que coíbem os maiores excessos e formas ‘primitivas’ de extração de trabalho excedente, mas, em última instância, representa a reafirmação da dominação do capital e nunca o seu contrário. Incorpora objetivamente reivindicações históricas do proletariado, para torná-las um acelerador da acumulação através da regulamentação e disciplinamento do mercado de trabalho, o que traz o avanço da subordinação do trabalho ao capital. A noção fetichizada dos direitos, cerne da política de massas do varguismo e da ideologia da outorga, tem por efeito obscurecer para a classe operária, impedi-la de perceber a outra face da legislação social, o fato de que representa um elo a mais na cadeia que acorrenta o trabalho ao capital, legitimando sua dominação (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003, p. 238).

Antes do aprofundamento das leis trabalhistas e sociais na Era Vargas, a assistência

aos pobres era feita no Brasil por particulares e instituições religiosas, como foi o caso dos

trabalhos realizados pelas Santas Casas de Misericórdia e, posteriormente, pela Ação Social

Católica, como vimos no primeiro capítulo. Contudo, foi nesse contexto do início da

industrialização do país e de emergência da profissão de Serviço Social que algumas das

principais instituições de Assistência Social foram criadas no país e a execução desses

serviços passou a ser de responsabilidade do poder público juntamente com as entidades de

filantropia social. Por causa dessa estreita relação, o Serviço Social está atrelado a essa

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política de modo que, ainda nos dias atuais, as atribuições das/dos assistentes sociais são

imediatamente relacionadas com os atendimentos à população por meio de programas de

enfrentamento à pobreza, de avaliações socioeconômicas, de repasse de donativos, dentre

outras práticas assistenciais. Essa relação é feita sob a ótica de um trabalho desenvolvido com

base no assistencialismo, na lógica do favor, do clientelismo, características ainda marcantes

no âmbito da assistência social, o que é resultado da trajetória histórica da política assistencial

no mundo e, particularmente, no contexto socioeconômico e político do Brasil. Viccari (2008)

afirma que a assistência social, por um longo período de tempo, foi:

[...] identificada como um ato subjetivo, movido espontaneamente pela boa vontade e pelo sentimento de pena, de comiseração ou, então, quando praticada pelos governos, como providência administrativa emergencial, de pronto atendimento, voltada tão-somente em estado de pobreza extrema (PEREIRA, 2002 apud VICCARI, 2008, p. 27).

Cabe esclarecermos que o Serviço Social é uma profissão inserida na divisão social e

técnica do trabalho, que atua em diversos espaços ocupacionais como organizações não-

governamentais (ONGs), empresas, movimentos sociais, universidades, hospitais e outros.

Uma parte significativa da categoria de assistentes sociais está empregada no âmbito do

Estado executando, planejando, monitorando ou gestando diferentes políticas sociais nas áreas

de Saúde, Habitação, Educação, Previdência Social, de modo que uma dessas políticas na qual

profissionais de Serviço Social atua é a Assistência Social.

As ações das primeiras instituições de assistência social no Brasil alcançavam,

inicialmente, os trabalhadores do mercado formal de trabalho. Portanto, as pessoas ativas no

mercado informal de trabalho que constituíam a população mais empobrecida do país, naquele

momento histórico, não tinham qualquer forma de proteção social oferecida pelo Estado, e

dependiam das ações caritativas e filantrópicas das obras sociais. Em 1938, foi criado o

Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), vinculado ao Ministério da Educação e Saúde e

medidas estatais de atendimento aos pobres e desamparados começaram a ser planejadas por

representantes do Estado e das instituições filantrópicas, indicados pelo governo Vargas. A

primeira grande instituição nacional de assistência social foi a Legião Brasileira de

Assistência (LBA) fundada por iniciativa privada e apoiada pelo governo e representantes da

indústria, a qual surgiu com o objetivo de apoiar as famílias dos combatentes brasileiros que

se “dispuseram” a participar da Segunda Guerra Mundial. Com o passar do tempo, a LBA

passou a atuar em outras áreas da assistência social, como na assistência às pessoas doentes,

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gestantes, crianças e aos idosos, entre outras, além de coordenar obras particulares,

instituições públicas e apoiar as escolas especializadas de Serviço Social. A prática

profissional nessa instituição se resumia aos inquéritos, visitas, entrevistas com foco no

Serviço Social de Casos. Tais técnicas eram necessárias para a concessão de auxílios

financeiros, para a regulamentação de documentos, para os encaminhamentos para outros

serviços, etc. Nesse período, a assistência social avançou no que diz respeito à coordenação e

administração das obras e instituições assistenciais, mas não à qualidade dos serviços

prestados (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003). Foi nesse momento também, quando a esposa

do então Presidente da República Getúlio Vargas, a Sra. Darcy Vargas, tomou a frente da

direção da LBA, que a prática do “primeiro-damismo” tornou-se comum nos serviços de

assistência do país.

Seguiram-se à LBA, a fundação de outras instituições que incorporaram os serviços

assistenciais, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço

Social da Indústria (SESI), a Fundação Leão XIII, os Institutos de Aposentadorias e Pensões

(IAPs), entre outras, que se dirigiam também ao atendimento de pessoas pobres excluídas do

mercado de trabalho e do sistema previdenciário.

As políticas sociais no Brasil, em geral, sempre tiveram um caráter assistencial

muito forte, como nos colocam Sposati et al. (2010). Esta característica era (e ainda é) mais

evidente na política de assistência social, de modo que esta última progrediu lentamente no

país até tornar-se de fato uma política pública, direito de qualquer pessoa que dela necessitar.

Podemos dizer que a trajetória da assistência social para se chegar à situação em que ela se

encontra hoje teve início em meados das décadas de 1970 e 1980, quando os movimentos

sociais ressurgiram com força no cenário brasileiro, unidos pelo objetivo de pôr fim ao regime

ditatorial, e uma Assembléia Constituinte foi formada no Congresso Nacional para a

aprovação e a construção de uma nova Constituição com base em princípios democráticos.

Durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), conforme sabemos, os

movimentos sociais e populares sofreram várias medidas repressivas com a perda de direitos

anteriormente conquistados. Por um lado, os serviços da assistência social foram

burocratizados e excluíram parcelas da população pobre ao seu acesso. Por outro lado, a

Previdência Social foi ampliada, recursos assistenciais aos trabalhadores do campo foram

criados e instituições como a FUNABEM, o BNH, o Instituto Nacional do Seguro Social

(INSS) foram fundados.

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Durante o processo de redemocratização do país, uma nova Constituição brasileira

foi aprovada regulamentando políticas sociais como a Saúde, Educação, Habitação, Cultura e

Assistência Social, entre outras, com base em princípios democráticos e na perspectiva dos

direitos sociais. A assistência social foi introduzida na Constituição Federal de 1988 como

uma política pública de Seguridade Social, ao lado da Saúde e da Previdência Social. Entre as

suas principais mudanças, a nova Constituição ampliou o público usuário da assistência

social, determinando em seu Artigo 203 que essa deveria ser prestada “a quem dela necessitar,

independentemente de contribuição à seguridade social” (CRESS-SP, 2008). Além disso,

foram regulamentadas a criação de orçamento próprio para a assistência social, a

descentralização político-administrativo dessa política, a participação da população na

formulação e no controle das ações nessa área em todo o país. Tais mudanças se tornaram

realizáveis por conta da intensa mobilização popular que reivindicava o fim da ditadura

militar e a efetivação de direitos sociais para a população. Sendo assim, muitas emendas

populares foram introduzidas na formulação da Constituição Federal de 1988, com o objetivo

de assegurar o acesso dos brasileiros e brasileiras a políticas sociais universais e de qualidade.

Para a regulamentação dos artigos constitucionais no âmbito da assistência social,

foram necessárias ainda a formulação e aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social

(LOAS), o que ocorreu em 1993. A LOAS criou o Conselho Nacional de Assistência Social

(CNAS), responsável pela fiscalização e pela gestão descentralizada e participativa da política

de Assistência Social; instituiu o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que prevê o

repasse de renda aos idosos e pessoas com deficiência; designou o comando único nos níveis

do Governo Federal, Estadual e Municipal para articular, integrar e coordenar as ações na área

da assistência social de acordo com as responsabilidades dos diferentes entes federativos;

estabeleceu a criação de Conselhos, Planos e Fundos de Assistência Social nos municípios,

estados e União, como requisito para garantir o acesso aos recursos financeiros destinados a

essa política, entre outras mudanças que foram fundamentais para a elaboração da política de

assistência social, como a conhecemos hoje.

Após um longo processo de debates e lutas por parte dos profissionais de Serviço

Social, entidades representativas da profissão, instituições, movimentos sociais e da

população, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) foi aprovada no ano de 2004,

após deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasília,

em dezembro de 2003. A elaboração desse documento foi uma tentativa de redesenhar a

política de assistência social brasileira visando à implementação do Sistema Único de

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Assistência Social (SUAS) em todos os municípios do Brasil, pois mediante transformações

tão profundas na concepção da assistência social e também a realidade do Brasil que se

configurava em imensas desigualdades sociais e regionais, era necessária a criação de

parâmetros para a real efetivação da política de assistência social, conforme previa a nova

legislação. A construção e aprovação da PNAS-2004 contaram com a participação de

representantes do governo e da sociedade civil, além dos usuários da assistência social. A

versão preliminar do referido documento já havia sido discutida nos vários espaços de

participação da categoria, conforme citado na PNAS-2004 (BRASIL, p. 7):

Ressalta-se a riqueza desse processo, com inúmeras contribuições recebidas dos Conselhos de Assistência Social, do Fórum Nacional de Secretários de Assistência Social- FONSEAS, do Colegiado e Gestores Nacional, Estaduais e Municipais de Assistência Social, Associações de Municípios, Fóruns Estaduais, Regionais, Governamentais e Não-governamentais, Secretarias Estaduais, do Distrito Federal e Municipais de Assistência Social, Universidades e Núcleos de Estudos, entidades de assistência social, estudantes de Escolas de Serviço Social, Escola de gestores da assistência social, além de pesquisadores, estudiosos da área e demais sujeitos anônimos.

Está implícito na construção da PNAS-2004, o anseio de todos os atores sociais

envolvidos nesse processo por efetivar a política de assistência social como uma política

pública de Estado e romper com práticas de “clientelismo, assistencialismo, caridade ou ações

pontuais” (BRASIL, 2004, p. 7) que, muito frequentemente, fazem parte da realidade

profissional nesse campo de atuação do Serviço Social, o que cria estigmas em torno de sua

concepção e prática.

Apesar das conquistas alcançadas desde a aprovação da Lei Orgânica da Assistência

Social (LOAS), em 1993, expressas por meio da responsabilização do Estado pela prestação

da assistência social à população, do crescimento dos gastos públicos nesse campo, da

descentralização por meio das várias secretarias espalhadas pelo país, alguns dos importantes

desafios que estavam colocados para a real efetivação dessa política eram a implementação do

SUAS, o aperfeiçoamento do processo de descentralização e intersetorialidade com as demais

políticas, a sua gestão democrática, o seu co-financiamento, a qualificação do quadro de

profissionais, a capacitação e a utilização de novas tecnologias para informação, o

monitoramento e avaliação de suas ações, o controle social. A construção da PNAS-2004 foi

um avanço para a constituição do SUAS, na medida em que a nova racionalidade inaugurada

por ela “apontou e exigiu um novo modelo assistencial com caráter público.

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Com a PNAS-2004, a condição da assistência social enquanto uma política de

proteção social foi reforçada, o que significou que ela deve “garantir a todos, que dela

necessitam, e sem contribuição prévia a provisão dessa proteção” (BRASIL, 2004, p. 11). Tal

definição pressupõe conhecer quem são os brasileiros que necessitam dessa proteção, quantos

são e onde eles estão nesse país tão diverso. Porém, para esse exame, fez-se necessária uma

mudança de paradigma sobre a forma de conceber a assistência social e os seus usuários. Para

compreendê-la, exige-se uma “visão social inovadora” sobre os “invisíveis” que são parte de

um contexto macrosocietário complexo; uma “visão social de proteção” que busca identificar

os riscos e vulnerabilidades aos quais os sujeitos estão submetidos, além dos recursos para

enfrentá-los; uma “visão social que capte as diferenças sociais”; uma “visão social que

perceba as possibilidades e capacidades dos sujeitos” que possam auxiliar na superação de

situações sociais difíceis; uma “visão social capaz de identificar forças e não fragilidades”

(BRASIL, 2004). A PNAS-2004 orienta que, para a construção e efetivação da assistência

social é necessário levar em consideração três vertentes de proteção social, são elas:

as pessoas, as suas circunstâncias e dentre elas seu núcleo de apoio primeiro, isto é, a família. A proteção social exige a capacidade de maior aproximação possível do cotidiano da vida das pessoas, pois é nele que riscos, vulnerabilidades se constituem (BRASIL, 2004, p. 11).

A presente normativa define em seu conteúdo dois tipos de proteção social: a

Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. No primeiro caso, ela tem como

objetivos “prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e

aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (BRASIL, 2004, p. 27) e

destina-se à população em situação de vulnerabilidade social, que pode ser decorrente de

pobreza, privações e fragilização de vínculos. Na Proteção Social Básica devem ser

desenvolvidos “serviços, programas e projetos locais de acolhimento, convivência e

socialização de famílias e de indivíduos, conforme identificação da situação de

vulnerabilidade apresentada” (BRASIL, 2004, p. 28). É nesse nível de proteção social que

também são ofertados os benefícios sociais, os de prestação continuada e os eventuais: Os serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica deverão se articular com as demais políticas públicas locais, de forma a garantir a sustentabilidade das ações desenvolvidas e o protagonismo das famílias e indivíduos atendidos, de forma a superar as condições de vulnerabilidade e a prevenir as situações que indicam risco potencial. Deverão, ainda, se articular aos serviços de proteção especial, garantindo a efetivação dos encaminhamentos necessários (BRASIL, 2004, p. 28-29).

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Os serviços da Proteção Social Básica devem ser executados nos Centros de

Referência da Assistência Social (CRAS) que são unidades públicas estatais localizadas em

áreas de vulnerabilidade social e atendem as famílias do território, além disso, os CRAS têm o

papel de organizar e coordenar a rede de serviços socioassistenciais local. Tais serviços

podem ser oferecidos também em outras unidades públicas de assistência social e, de forma

indireta, nas entidades e organizações de assistência social que estejam localizadas na área de

abrangência do CRAS.

Já a Proteção Social Especial deve atender as famílias que tiveram seus direitos

sociais violados, principalmente, no caso de crianças, adolescentes, jovens, idosos, pessoas

com deficiência. De acordo com a PNAS (2004, p. 31):

A proteção social especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras.

A Proteção Social Especial divide-se entre serviços de média complexidade

destinados às famílias e indivíduos que tiveram seus direitos violados, mas os vínculos

familiares e comunitários ainda não foram rompidos, tais como serviços de orientações, apoio

sociofamiliar, medidas socioeducativas em meio aberto, entre outros, e os serviços de alta

complexidade que garantem proteção integral para famílias e indivíduos que não têm qualquer

referência, estão sendo ameaçados ou precisam ser retirados do núcleo familiar e comunitário,

são eles os albergues, as Casas de Passagem, a Família Acolhedora, etc.

Dentre outros elementos inovadores no campo da assistência social brasileira que a

PNAS-2004 inaugura como os serviços socioassistenciais, a territorialização, o seu modo de

organização, a sua forma de inserção no sistema de seguridade social, etc., destacaremos aqui

uma de suas principais diretrizes: a centralidade na família.

Baseada na Constituição Federal de 1988 e na LOAS, a PNAS-2004 organiza a

assistência social com base na descentralização político-administrativa, na participação social,

na primazia da responsabilidade do Estado para sua condução e na “Centralidade da família

para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos” (BRASIL,

2004, p. 27). De acordo com a PNAS-2004, o conhecimento das demandas por proteção

social deve se dar em nível nacional, estadual e municipal por meio de levantamentos e

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pesquisas, mas também nos núcleos familiares, em que necessidades e recursos para atendê-

las podem ser mapeados. Com o intuito de se distanciar de uma tradicional prática tuteladora

e assistencialista, a atual política tem por finalidade oferecer proteção social suprindo

determinadas necessidades, mas ao mesmo tempo, “desenvolver capacidades para maior

autonomia” (BRASIL, 2004, p. 12). E assim continua: “O desenvolvimento depende também

de capacidade de acesso, vale dizer da redistribuição, ou melhor, distribuição dos acessos a

bens e recursos, isto implica incremento das capacidades de famílias e indivíduos” (BRASIL,

2004, p. 12).

A política de assistência social considera a dinâmica populacional um “importante

indicador” para a sua construção, tendo em vista que os espaços urbanos, por exemplo, com

suas características peculiares como a alta densidade demográfica, os problemas na

mobilidade, a divisão entre centro e periferia, as desigualdades geradas por essa divisão, as

dificuldades de acesso a muitos recursos urbanos, inclusive, aos serviços públicos- assim

como o espaço rural com suas particularidades- influenciam diretamente nas condições de

vida da população, muito frequentemente, gerando demandas a serem atendidas por serviços

socioassistenciais. Ao referir-se às metrópoles, na PNAS-2004, encontramos a seguinte

análise situacional:

Estes últimos espaços urbanos passaram a ser produtores e reprodutores de um intenso processo de precarização das condições de vida e de viver, da presença crescente do desemprego e da informalidade, de violência, da fragilização dos vínculos sociais e familiares, ou seja, da produção e reprodução da exclusão social, expondo famílias e indivíduos a situações de risco e vulnerabilidade (BRASIL, 2004, p. 13).

Portanto, a PNAS-2004 aponta para os profissionais dessa política uma necessidade

preeminente de se apropriar das condições socioeconômicas e da dinâmica interna do

território em que as famílias usuárias vivem. Considerar o contexto sócio-histórico do Brasil

como um todo também é outro apontamento importante que o documento faz. A atual política

de assistência social pondera ainda que, a família brasileira vem passando por transformações

bastante relevantes ao longo da história como, por exemplo, o aumento do número de

mulheres responsáveis pelo grupo familiar, o aumento na taxa de escolarização de crianças e

adolescentes, as altas taxas de gravidez na adolescência, o crescimento da expectativa de vida

e da população idosa, dentre outras mudanças em sua configuração.

Desde a aprovação da Constituição Federal, em 1988, quando a assistência social foi

concebida como uma política de proteção social que integra o sistema de Seguridade Social,

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as ações socioassistenciais passaram a ter uma nova configuração e o dever de suprir as

necessidades básicas de pessoas afetadas por determinadas situações de vulnerabilidade social

que as impedem de provê-las por meios próprios. Mais do que isso, tais ações devem ser

reconhecidas enquanto direito garantido e os usuários desses serviços devem se colocar como

protagonistas nesse processo. De acordo com a PNAS (2004, p. 25): “A proteção social deve

garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia);

de acolhida; de convívio ou vivência familiar”. Dessa forma, a segurança de rendimentos diz

respeito ao repasse de recursos monetários para garantir a sobrevivência de famílias, em

situações de limitações para o trabalho e de desemprego. A segurança de acolhida deve

oferecer abrigo, alimentação e vestuário às pessoas desprotegidas. A segurança de autonomia

visa garantir o protagonismo dos sujeitos no acesso aos direitos, além de uma participação

ativa e crítica deles na sociedade. Já a segurança de convívio familiar abrange o trabalho para

evitar situações de perda de relações tanto familiares como comunitárias. Enfim, todas essas

seguranças sociais devem ser afiançadas pelo Estado, enquanto uma responsabilidade pública

(BRASIL, 2004).

A PNAS-2004 é regida pelos seguintes princípios: 1) Atendimento voltado para

suprir as necessidades sociais dos cidadãos, independente de critérios de renda; 2)

Universalização dos direitos sociais no sentido de garantir o acesso dos usuários da assistência

social também às demais políticas públicas; 3) Respeito à dignidade e autonomia dos sujeitos,

ao repasse de benefícios e prestação de serviços de qualidade, assim como à convivência

familiar e comunitária; 4) Igualdade de direitos no acesso ao atendimento; 5) Divulgação dos

benefícios, serviços, programas, projetos e recursos oferecidos pelo Poder Público e os

critérios exigidos para participação (BRASIL, 2004). Os objetivos da política de assistência

social que estão descritos no documento são:

Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou, especial para famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem; contribuir com a inclusão e a eqüidade dos usuários e grupos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural; assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na família, e que garantam a convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2004, p. 27).

No que se refere ao público usuário da assistência social, este se constitui de pessoas

e grupos nas mais diversas situações de vulnerabilidade social e riscos:

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[...] famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social (BRASIL, 2004, p. 27).

Atualmente, o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF) é um serviço da

Proteção Social Básica que propõe novas formas de abordagem com as famílias e uma nova

concepção desse tipo de trabalho, que deve ser desenvolvido nos CRAS e

[...] ao qual todos os outros serviços desse nível de proteção devem articular-se, pois confere a primazia da ação do poder público na garantia do direito à convivência familiar e assegura a matricialidade sociofamiliar no atendimento socioassistencial, um dos eixos estruturantes do SUAS (BRASIL, 2009a, p. 31).

O trabalho social com famílias no âmbito do PAIF significa um:

Conjunto de procedimentos efetuados a partir de pressupostos éticos, conhecimento teórico-metodológico e técnico-operativo, com a finalidade de contribuir para a convivência, reconhecimento de direitos e possibilidades de intervenção na vida social de um conjunto de pessoas, unidas por laços consangüíneos, afetivos e/ou de solidariedade- que se constitui em um espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, com o objetivo de proteger seus direitos, apoiá-las no desempenho da sua função de proteção e socialização de seus membros, bem como assegurar o convívio familiar e comunitário, a partir do reconhecimento do papel do Estado na proteção às famílias e aos seus membros mais vulneráveis. Tal objetivo materializa-se a partir do desenvolvimento de ações de caráter ‘preventivo, protetivo e proativo’, reconhecendo as famílias e seus membros como sujeitos de direitos e tendo por foco as potencialidades e vulnerabilidades presentes no seu território de vivência (BRASIL, 2012, p. 12).

De acordo com as orientações técnicas do PAIF, elaboradas pelo Ministério do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), a apreensão deste conceito do trabalho

social com famílias é muito importante para evitar “procedimentos instintivos, personalistas e

inspirados no senso comum” (BRASIL, 2012, p. 12). O PAIF deve desenvolver ações como a

acolhida, as oficinas com famílias, as ações comunitárias, as ações particularizadas e os

encaminhamentos:

As ações do PAIF devem ser planejadas e avaliadas com a participação das famílias usuárias, das organizações e movimentos populares do território, visando o aperfeiçoamento do Serviço, a partir de sua melhor adequação às necessidades locais, bem como o fortalecimento do protagonismo destas famílias, dos espaços de participação democrática e de instâncias de controle social (BRASIL, 2012, p. 14).

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Tais ações devem ser materializadas de acordo com os seguintes objetivos do PAIF:

Fortalecer a função protetiva da família e prevenir a ruptura dos seus vínculos, sejam estes familiares ou comunitários, contribuindo para melhoria da qualidade de vida nos territórios; promover aquisições materiais e sociais, potencializando o protagonismo e autonomia das famílias e comunidades; promover acessos à rede de proteção social de assistência social, favorecendo o usufruto dos direitos socioassistenciais; promover acessos aos serviços setoriais, contribuindo para a promoção de direitos; apoiar famílias que possuem, dentre seus membros, indivíduos que necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de escuta e troca de vivências familiares (BRASIL, 2012, p. 15).

A organização gerencial do trabalho social com famílias do PAIF deve ser feita pela

coordenação do CRAS e a implementação das ações desse serviço deve ser executada por

profissionais de nível superior da equipe técnica do CRAS. Além do atendimento das famílias

por meio das ações anteriormente citadas do PAIF, pode-se fazer também o acompanhamento

social dessas por meio deste mesmo serviço. O acompanhamento familiar consiste em:

[...] um conjunto de intervenções, desenvolvidas de forma continuada, a partir do estabelecimento de compromissos entre famílias e profissionais, que pressupõem a construção de um Plano de Acompanhamento Familiar- como objetivos a serem alcançados, a realização de mediações periódicas, a inserção em ações do PAIF, buscando a superação gradativa das vulnerabilidades vivenciadas (BRASIL, 2012, p. 54).

Esse acompanhamento é destinado às famílias em situação de vulnerabilidade social,

visando prevenir as situações de risco social e violação de direitos. O trabalho de

acompanhamento social das famílias também deve ser executado por profissionais da equipe

técnica do CRAS com nível superior, pois esses possuem conhecimentos específicos para a

atuação nesse campo. De acordo com o Caderno de Orientações do PAIF (2012):

[...] o foco do acompanhamento familiar deve ser a abordagem cidadã e emancipatória, centrada no resgate dos saberes, superação de preconceitos, estímulo das potencialidades e enfrentamento dos conflitos familiares, de modo a respeitar as crenças e valores das famílias atendidas, valorizar o exercício da participação democrática, da tolerância, da cooperação, do respeito às diferenças, possibilitando a reflexão crítica sobre suas vulnerabilidades e possibilidades, estimulando projetos coletivos, desenvolvendo princípios e valores relacionados aos direitos, à cidadania e à democracia (BRASIL, 2012, p. 82).

Por fim, ressaltamos que o PAIF foi construído para romper com as práticas tutelares

junto às famílias no trabalho desenvolvido pela assistência social. Para que isso aconteça, a

descrição qualificada do PAIF e do trabalho social com famílias em documentos como a

PNAS-2004 e a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais não é suficiente, faz-se

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necessária também a adoção de abordagens diferenciadas, por parte dos profissionais

envolvidos nessas ações. Foi com esse objetivo que o Caderno de Orientações Técnicas sobre

o PAIF foi elaborado, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)

e da Secretaria Nacional de Assistência Social, com sugestões de abordagens metodológicas

para o trabalho social com famílias que correspondam às necessidades de cada território onde

o CRAS está instalado e que sejam desenvolvidas com base numa perspectiva mais

emancipatória e menos tutelar da assistência social. Consta neste mesmo material a seguinte

ressalva:

[...] é preciso compreender que o trabalho social com famílias não pode possuir abordagens metodológicas preestabelecidas, pois as ferramentas metodológicas devem ser edificadas com base nas especificidades das famílias, suas identidades, desejos, necessidades, demandas e realidade social, histórica e cultural, isto é, as metodologias devem responder à diversidade sociocultural do país, às particularidades de cada território (BRASIL, 2012, p. 97).

Desse modo, o documento esclarece que a escolha da abordagem mais adequada

deve ser discutida e refletida pela equipe de trabalho considerando as diferentes

“vulnerabilidades e potencialidades das famílias e dos territórios” (BRASIL, 2012, p. 103),

onde estão os CRAS.

Em síntese, consideramos que o estudo da trajetória histórica da assistência social no

Brasil mostra, por um lado, grandes avanços no que diz respeito à sua estruturação e

concepção, o que resultou em conquistas para os profissionais que atuam nessa área e

impactos positivos para a população usuária desses serviços. Entendemos também que a

PNAS-2004 é uma política que ainda está em processo de construção, amadurecimento e

aperfeiçoamento nos vários municípios do país, em meio a dificuldades de várias ordens, mas

já evidenciando muitas experiências positivas. Por outro lado, consideramos que algumas

questões tratadas na atual política de assistência social refletem algumas tendências que

incidem sobre as políticas sociais no mundo, as quais já tratamos aqui anteriormente como,

por exemplo, a recomendação de que ações e serviços socioassistenciais sejam desenvolvidos

com o objetivo de enfrentar situações de risco e vulnerabilidades sociais ou de garantir

autonomia às famílias pobres. Sobre um dos eixos estruturais da PNAS-2004, que é a

Matricialidade Sociofamiliar, compreendemos que uma das suas contribuições para a

materialização da assistência social enquanto uma política pública foi romper com o modelo

idealizado de família e compreendê-la em seus vários arranjos e (re) arranjos, evitando os

preconceitos e discriminação. Importa ressaltar que romper com essas concepções

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moralizadoras das famílias e dar fim à sua responsabilização por problemas gerados pela

sociedade em que vivemos, ainda se mostram como grandes desafios (COUTO et al., 2010).

Entretanto, reafirmamos a problematização das autoras sobre a condição de classe dessas

famílias que não podemos perder de vista durante a prática profissional, isto é,

[...] a necessidade de compreender essas famílias com suas singularidades, mas com seu pertencimento a uma classe social. O trabalho com as famílias que pode ser considerado um avanço, pois retira a condição individual do atendimento da política, pode repetir o mesmo equívoco, quando particulariza cada família como se fosse um universo único, destituído de sua identidade coletiva e de sua universalidade (COUTO et al., 2010, p. 57).

O trabalho na assistência social com base na “matricialidade sociofamiliar”, quando

executado sob influência de tendências conservadoras ou (neo) conservadoras, pode ser

direcionado para a educação moral dos indivíduos voltada para o cumprimento de suas

funções de pais, filhos, donas de casa, trabalhadores e outras, da maneira mais “correta”.

Nesse aspecto, cabe destacar que as mulheres têm sofrido fortes pressões para que cumpram o

seu papel social de mães atenciosas, esposas dedicadas, donas de casa eficientes, boas

educadoras de seus filhos e, mais recentemente, responsáveis chefes de família e provedoras

do sustento familiar.

Assim, dependendo do modo como o processo de implantação da atual política de

assistência social for conduzido, durante o cotidiano profissional, concepções e práticas

conservadoras podem ser reforçadas por assistentes sociais nos espaços sociocupacionais da

assistência social e na relação com os seus usuários, o que será tratado no capítulo que segue.

CAPÍTULO III- ANÁLISE DOS DADOS

Sob a perspectiva do pensamento conservador, a família é um “princípio

civilizatório” da maior importância na sociedade moderna, ou seja, é um dos principais

elementos necessários para o desenvolvimento de uma sociedade “sadia”, na medida em que

consiste em um espaço fundamental para o ensino e a adaptação dos indivíduos às normas

convencionais e regras gerais para a convivência em sociedade. Tal ideia se fundamenta no

fato de que as famílias são capazes de concentrar as pessoas, que se encontram “perdidas”

entre as massas, em grupos mais organizados e estáveis. Além disso, é no núcleo familiar que

o caráter pessoal, as opiniões e juízos de valor dos indivíduos são formados. Atitudes e

condutas humanas também são aprendidas no convívio familiar.

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A noção de que a sociedade deve se constituir em um todo orgânico, funcionando

bem com todas as suas partes integradas (as instituições, as tradições, as regras, os costumes,

etc.) permeia o imaginário e as ações dos conservadores, o que resulta na supervalorização da

família enquanto peça fundamental dessa engrenagem. Afinal, é no seio familiar que os

sujeitos se limitam a representar papéis sociais específicos (de mães, pais, filhos, donas de

casa, provedores do sustento de seus membros, educadores) que são fundamentais para o

funcionamento da sociedade capitalista, pois orienta a construção de relações de hierarquia

baseadas na ordem, na autoridade, nos costumes, valores que devem ser apreendidos para o

convívio humano e a vida social nos moldes da sociedade burguesa.

No caso do Serviço Social brasileiro e, especificamente, no campo da assistência

social, o trabalho com ênfase nas famílias é parte do cotidiano de trabalho profissional e

pressuposto para o emprego de metodologias ao longo da trajetória da profissão. Mioto (2010)

afirma que as ações profissionais que têm como “sujeitos da intervenção” as famílias, existem

desde os primórdios do Serviço Social.

Ao retomarmos brevemente a história do Serviço Social brasileiro, observamos que

as primeiras formas de trabalho com famílias, exercidas nessa profissão, estavam relacionadas

à disseminação de uma doutrina religiosa, que tinha por objetivo reforçar os valores cristãos,

mas também combater a luta por novos modelos de sociabilidade humana, o liberalismo e,

principalmente, o comunismo. Para isso, as pioneiras do Serviço Social brasileiro precisaram

se aproximar das famílias operárias com o intuito de assisti-las e, ao mesmo tempo, realizar

uma campanha ideológica e política em favor da Igreja Católica. Daí, as marcas mais

doutrinárias que científicas da profissão, como analisa Iamamoto (2008). Segundo a autora,

“a ênfase na formação social, moral e intelectual da família, considerada como célula básica

da sociedade” é uma das características do pensamento conservador que está arraigada “no

discurso e na prática profissional, tornando-se parte integrante da configuração da profissão”

(IAMAMOTO, 2008, p. 29).

O trabalho com famílias nesse período desconsiderava totalmente a dimensão da

desigualdade de classes em nosso país. A doutrina católica ocultava a essência das relações

sociais existentes e a tratava, fundamentalmente, como um problema espiritual religioso que

podia ser resolvido a partir da adesão à fé católica, com a participação mais ativa das

mulheres no processo de recristianização da sociedade, da mudança de valores, hábitos e

costumes, quer dizer, na esfera da moral e, especificamente, da moral religiosa. Iamamoto e

Carvalho (2003) ressaltam ainda que não foi possível a essas mulheres do apostolado católico

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romper com tal ideologia dominante, na medida em que a própria posição de classe daquelas

mulheres não permitia essa tomada de consciência naquele momento.

Em fins da década de 1930 e meados da década de 1940, o Serviço Social caminhou

para a sua profissionalização com a criação das primeiras escolas e demandas do Estado por

profissionais especializados, como tratado anteriormente. Apesar do caráter mais técnico que

a profissão ia tomando, as bases doutrinárias e moralistas que a fundamentaram ainda tinham

forte presença no trabalho com famílias. As causas da “desorganização familiar” recaíam

sobre as mulheres que conquistaram espaço no mercado de trabalho e sobre outros direitos

sociais que a distanciaram dos maridos, filhos e dos cuidados com o lar. Este fenômeno foi

compreendido por muitas/os assistentes sociais como um elemento determinante de vários

problemas sociais pelos quais as famílias passavam naquele período, portanto, um foco

privilegiado da atuação profissional. A noção de atendimento às necessidades básicas de

indivíduos e suas famílias se restringia à função meramente reprodutiva da força de trabalho

(comer, vestir, morar) e tais necessidades não eram compreendidas sob a dimensão dos

direitos humanos. O atendimento das necessidades básicas das famílias pobres era

explicitamente colocado como funcional à manutenção da sociedade capitalista, como

exemplo, podemos citar o direito à moradia que era interpretado a partir da função moral de

proporcionar às pessoas um espaço adequado ao bom convívio em família e de reprodução de

hábitos saudáveis que deviam ser disseminados entre as famílias operárias para um melhor

desempenho e maior produtividade nas indústrias. Profissionais de Serviço Social realizavam

um trabalho com famílias que era, basicamente, de cunho socioeducativo, preventivo e

psicossocial (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003).

Quando métodos do Serviço Social norte-americano foram incorporados por

assistentes sociais no Brasil, o trabalho com famílias partiu da concepção de que essas eram

as principais responsáveis por sua condição social, o que pressupunha a sua reorganização e

readaptação a um modelo de sociedade que ainda estava em construção, sob a orientação de

profissionais qualificados. Própria da corrente de pensamento positivista, esta forma de

compreender a realidade das famílias não fazia as mediações necessárias dos fatos com a

totalidade social. As conclusões eram imediatas e as soluções superficiais. Nos diagnósticos

de caso, eram muito frequentes a constatação de distúrbios de personalidade gerados pelo

meio social em que as famílias viviam, sendo que uma boa diagnose podia ser feita quando

a/o assistente social ou qualquer outro profissional, que se deparava com “clientes

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problemáticos”, tinha a capacidade de “se apagar” diante de situações específicas, ou seja,

manter-se neutro com relação à problemática para melhor ajudar o outro.

Quando a ideologia desenvolvimentista, sob influência de vários organismos

internacionais, espalhou-se pelo Brasil, alimentando o lema do crescimento econômico e da

superação do subdesenvolvimento, muitas/os profissionais do Serviço Social brasileiro

abraçaram essa bandeira e a adaptaram ao trabalho social com famílias, peça-chave do

exercício profissional. As famílias foram chamadas a participar do desenvolvimento da nação

e, para isso, deviam se adaptar às novas condições econômicas, políticas, sociais e culturais da

sociedade brasileira, unindo-se em prol deste objetivo, de modo que os altos índices de

pobreza seriam então extintos, conduzindo o país ao tão almejado desenvolvimento nos

marcos do sistema capitalista.

O trabalho com famílias nesse período se orientou por diretrizes presentes nas

políticas de desenvolvimento criadas pela ONU (Organização das Nações Unidas) e pela

OEA (Organização dos Estados Americanos) como, por exemplo, a organização de

comunidades para o enfrentamento da pobreza. Do Serviço Social de Casos, o trabalho

profissional foi caminhando para o atendimento em grupos, por meio de dinâmicas grupais e,

principalmente, do método de Desenvolvimento de Comunidade. As comunidades de várias

localidades eram estimuladas a participar de um processo de integração e união para a

superação de problemas que as atingiam. Havia um apelo à população para se mobilizar em

prol do progresso social e isto somente se daria através do esforço pessoal de cada membro da

comunidade que levaria ao desenvolvimento total da comunidade e, consequentemente, ao

desenvolvimento da nação. As/os assistentes sociais “compraram essa ideia” do governo

brasileiro e passaram a desempenhar tarefas voltadas para o fim de ajudar no desenvolvimento

das comunidades com a mudança de valores e de atitudes, conforme esclarece Jorge (2009).

Em sua pesquisa, a autora constatou também que a temática “família” não estava muito

presente em sistematizações teóricas do Serviço Social brasileiro nesse momento, no entanto,

estavam se construindo análises com base em uma dimensão mais ampla do papel social da

família. Mesmo durante os atendimentos individuais, os membros da família de um indivíduo

atendido eram considerados pelas/os assistentes sociais como colaboradores no “processo de

recuperação” daquele cliente, na medida em que eles deviam se responsabilizar por cuidados

especiais aos indivíduos pertencentes do núcleo familiar, principalmente, as crianças.

Outra característica que foi mantida no trabalho desempenhado por profissionais de

Serviço Social na era desenvolvimentista era a relação que se fazia dos “problemas das

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famílias” com o ambiente em que estas viviam e a proposta para a sua resolução era mudá-lo

ou retirar as pessoas dali. O tratamento individual dos clientes com a participação de suas

famílias ainda era uma técnica muito utilizada no Serviço Social. E, Jorge (2009) destaca

ainda que a educação das famílias era tida como um instrumento muito eficiente e adequado

para o “reajustamento” dos indivíduos na sociedade e junto às suas comunidades.

A partir dos anos 1970, a discussão profissional estava ainda mais centrada no

trabalho com as comunidades e um novo ator surgia com mais força no campo de atuação do

Serviço Social: os movimentos sociais. A abordagem profissional com as comunidades e

também com as famílias começava a se orientar por um referencial mais crítico e totalizante,

processo que foi impulsionado pelo movimento de intenção de ruptura com o Serviço Social

“tradicional” (NETTO, 1998), marco histórico da profissão, já tratado anteriormente.

As transformações mundiais ocorridas nessa época, resultantes, principalmente, do

ideário neoliberal, e os seus impactos para as políticas sociais, redirecionaram o trabalho com

famílias, o qual passou a centrar-se numa maior responsabilização das mesmas para o

enfrentamento da questão social. Contudo, o reconhecimento da importância em estudar as

mudanças no âmbito das relações familiares e os avanços no sentido da construção de

relações mais igualitárias entre homens e mulheres já despontava na sociedade e no seio da

categoria profissional (JORGE, 2009). Ainda de acordo com a autora, o tema “família” foi

ressurgindo nesse período com força na legislação social e nas produções teórico-acadêmicas.

A referência às famílias pobres como grupos em situação de risco e a exclusão social

começava a ganhar espaço no discurso e nas análises profissionais das/dos assistentes sociais.

O trabalho nessa área conquistou muitos avanços, mas ainda havia uma tendência muito forte

de compreender a família como principal agente responsável pelo enfrentamento dos

problemas sociais pelos quais ela passava. Esta tendência foi se desenvolvendo num cenário

de retração, cada vez maior, do Estado na esfera das políticas sociais. Muitos desafios foram

se colocando nesse contexto: como construir políticas públicas adequadas às famílias com

recursos financeiros cada vez mais escassos e sem o conhecimento suficiente de suas novas

demandas? A ausência de políticas públicas que fossem “eficientes” para a proteção das

famílias e o fortalecimento do seu potencial sócio-político era uma realidade a ser enfrentada.

E existia um peso ainda muito grande sobre as mulheres que se tornaram, em grande parte,

chefes de família, na responsabilidade pelo bem estar de seus entes, o que contribuiu para a

perpetuação da desigualdade de gênero (JORGE, 2009).

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Até recentemente, o trabalho social com famílias, sobretudo, em instituições de

assistência social, desenvolvia-se de maneira fragmentada, identificando problemas

específicos nos indivíduos que se tornavam “bodes expiatórios” no contexto familiar. Ou seja,

as famílias acreditavam que todos os seus problemas se resumiam às demandas de um dos

seus membros como, por exemplo, o uso e abuso de drogas, o mau desempenho escolar, o

alcoolismo, entre outras. E muitas/os profissionais de Serviço Social executavam as ações,

somente a partir dessas constatações. No trabalho com famílias focado em problemas

pontuais, as/os assistentes sociais acabavam exigindo certas mudanças das famílias, a que

essas, por sua vez, não conseguiam corresponder e a frustração de expectativas se dava em

ambos os lados. Não podemos deixar de citar ainda o apelo à solidariedade social, no âmbito

das políticas sociais voltadas para as famílias, o que Yazbek vai denominar de

refilantropização da questão social, momento em que o Estado:

passa à defesa de alternativas privatistas que envolvem a família, as organizações sociais e a comunidade em geral. Recoloca-se em cena práticas filantrópicas e de benemerência, ganhando relevância o nonprofit sector como expressão da transferência à sociedade de respostas às seqüelas da questão social (YAZBEK, 2008, p. 15).

As políticas públicas na década de 1990 seguiam o modelo do familismo, isto é, de

sobrecarga de atribuições sociais e legais às famílias, em que tendências das políticas externa

e interna afastaram cada vez mais a proteção social das famílias da responsabilidade do

Estado, de modo que a sociedade civil e as próprias famílias foram assumindo a

responsabilidade pelo seu bem estar social (JORGE, 2009).

Nos dias atuais, muitas dessas tendências no trabalho com famílias no âmbito das

políticas públicas prosseguem existindo, mas tivemos avanços no que diz respeito ao conceito

de família definido pela PNAS-200464 e também no direcionamento do trabalho com famílias

orientado por esta política, o que foi uma conquista histórica da categoria de profissionais do

Serviço Social em conjunto com diversos atores sociais.

As políticas públicas surgiram, na sociedade moderna, como meios de “resolução” da

problemática social ou, pelo menos, de diminuição dos seus efeitos sobre a reprodução da

força de trabalho disponível no mercado. As políticas públicas, inicialmente, eram destinadas

aos indivíduos amparados por estatutos e constituições de cidadania que foram aprovados

64 A PNAS-2004 define família como “[...] um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade” (p. 35).

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após os desastres da Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, tais políticas foram se

voltando para as famílias enquanto público privilegiado. O Estado, na sua condição de

regulador e, portanto, provedor de necessidades básicas por meio de políticas sociais

reformistas, atribui às famílias a obrigação e o dever de cumprir com suas funções de proteção

social por meio de respostas satisfatórias ao olhar público, no que se refere ao cumprimento

de exigências estabelecidas por essas políticas.

A importância da família para a elaboração e implementação de políticas sociais

estatais no Brasil não é uma novidade e a construção da PNAS-2004 legitimou essa tendência

após muitas discussões e reflexões sobre a política de assistência social e sobre os rumos que

essa deve tomar para a sua concretização enquanto política pública que garante aos cidadãos o

seu acesso como um direito, assim como para a unificação e universalização dos seus serviços

(respeitadas as diferenças territoriais), para a renovação da prática profissional com base na

realidade contemporânea e nos avanços conquistados pela profissão em termos técnicos,

legislativos, éticos, teóricos, etc.

Com base nisso e numa direção que já vinha se desenhando na condução das

políticas públicas no Brasil, a diretriz de centralidade na família ou “matricialidade

sociofamiliar” ganhou força no campo da assistência social, conforme verificamos no

segundo capítulo. Uma das diferenças que podemos destacar desse enfoque nas famílias nos

tempos recentes é a forma de conceituá-la e apreendê-la, que está relacionada com o sistema

de garantia de direitos, ou seja, a família passou a ser compreendida como um grupo que

precisa ter os seus direitos garantidos para exercer a função de protetora social dos seus

membros, portanto, não basta culpá-la pelos problemas sociais que vivencia. Para a

construção dessa nova concepção de família é necessária também a desconstrução da imagem

da família ideal65, estruturada/desestruturada.

Todavia, o trabalho com famílias na assistência social sofre influência de tendências

conservadoras ou (neo) conservadoras muito presentes na atualidade, como é o caso do

individualismo exacerbado. Sujeitos individuais são pressionados a agir para a transformação

de suas vidas por meio do esforço pessoal, da capacitação profissional, da autoestima, da

confiança, da fé, entre outras qualidades e capacidades pessoais que estes devem ter ou buscar

adquirir. A ideologia conservadora tenta nos impedir de enxergar que vivemos em um mundo

em que as condições objetivas para alcançarmos um alto grau de desenvolvimento pessoal

65 Cf. Szymanski (1992).

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existem, no entanto, usufruem delas uma pequena parcela das pessoas, se considerarmos que

o acesso a meios que nos possibilitem qualidade de vida se dá de maneira extremamente

desigual.

Nesse sentido, buscamos compreender durante a coleta de dados, em que medida

essas tendências têm influenciado o exercício profissional de assistentes sociais com as

famílias que procuram os serviços da assistência social, uma política em construção voltada

para o atendimento daqueles que sofrem diariamente com a desigualdade social. Dessa

maneira, na seção a seguir, discorreremos sobre as respostas das entrevistas realizadas com

assistentes sociais que trabalham nos CRAS e desenvolvem ações com famílias em vários

territórios, considerados de vulnerabilidade social, nos municípios de Santa Isabel, Arujá,

Mogi das Cruzes e Guararema, na região Alto Tietê, em São Paulo.

1. Expressões do conservadorismo na atuação profissional de assistentes sociais

No que se refere à concepção de família das profissionais da assistência social

entrevistadas, constatamos que há uma clara compreensão das mudanças sofridas no contexto

familiar que abriga novas composições, novos sentidos e novas demandas na sociedade

contemporânea. Além disso, verificamos também que há uma apreensão mais abrangente

sobre as famílias que podem se tornar público usuário da assistência social, a partir de

parâmetros legais:

[Sobre o perfil do público que procura o CRAS] Geralmente, são mulheres, mães, pessoas em situação de desemprego, de trabalho informal e precário, a maioria. Na acolhida em grupo a gente pede pra pessoa falar e, daí, a maioria que vem procurar programa de transferência de renda é porque está em situação de desemprego. Às vezes, em emprego informal, a grande maioria é “bico” que eles fazem. [...] tem uma grande parcela também de mães que não conseguem trabalhar porque não conseguem acessar a política de educação (Assistente Social 4, 2013).

Vem muitas pessoas que não conseguem acessar outras políticas, não são poucas. Principalmente, educação, saúde, moradia (Assistente Social 3, 2013).

[...] a gente tenta orientar e atender todos que vêm ao CRAS. [...] pra inclusão nos programas existem os próprios critérios dos programas, cada programa em si tem o seu critério que é o Renda Cidadã, o Bolsa e o Ação. Nas ações do Paif, por exemplo, não necessariamente existe o critério de renda. Por exemplo, o Conselho tutelar pode encaminhar uma família que está em situação de vulnerabilidade no sentido de uma criança com depressão ou alguma questão de atrito familiar ou alguma coisa assim. Não necessariamente é tão “carente”, mas merece ter um espaço de convívio, no horário extra-escolar; se já tem 15 anos encaminhamos para os programas de jovens, não recebe nenhum benefício [...]. Não tem como estabelecer o

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critério mesmo, vai de acordo com a demanda que a gente atende, cada família é uma situação diferenciada (Assistente Social 1, 2013).

[...] todas as famílias são atendidas no CRAS. Os critérios são somente dos programas, mas pra acessar o CRAS e o Paif, não (Assistente Social 3, 2013).

O perfil para as famílias serem atendidas: a gente diz que qualquer família pode acessar o serviço, chega no serviço tem os critérios de elegibilidade para inserir nos programas de transferência de renda que daí passa pela questão socioeconômica, mas não é o que a gente considera até porque a gente já passou dessa questão, já avançou nesse quesito [...]. E aí se tomava muito só essa questão do critério de renda mesmo, poder acessar o CRAS somente aquelas pessoas com renda per capita de meio salário mínimo ou do Bolsa-Família, era nesse sentido (Assistente Social 5, 2013).

Durante as entrevistas, foram recorrentes as menções às novas composições

familiares, com destaque para o lugar das mulheres nesses grupos que se tornou central, desde

que, muitas delas, se tornaram chefes de família, conquistaram maior autonomia financeira e

passaram a ter dupla ou tripla jornada de trabalho. São elas também que, na grande maioria

das vezes, procuram os CRAS e são convocadas a cumprir com algumas “obrigações” quando

a sua família participa das atividades realizadas no local ou é acompanhada pela assistência

social. As novas características do público usuário da assistência social (trabalhadores do

mercado informal de trabalho, pessoas que não conseguem acessar ou são atendidas de forma

precária nas políticas de educação, saúde, habitação, etc., demandas de conflito familiar, entre

outras) também foram bastante citadas nas entrevistas, o que demonstrou um grande

paradoxo: por um lado, os serviços socioassistenciais disponíveis nos CRAS têm como

proposta prevenir situações de vulnerabilidade social, portanto, não deve eleger as famílias

atendidas unicamente pelo critério da renda. Por outro lado, a maior demanda hoje nos CRAS

é por programas de transferência de renda, o que exige avaliações socioeconômicas por parte

de assistentes sociais, com base em um limite de renda. Ou seja, apesar de expressarem o

anseio por realizar um trabalho com famílias que seja mais abrangente e universal, as

assistentes sociais entrevistadas exprimiram dificuldades no que se refere a essa questão, que

serão tratadas adiante no texto.

Pesquisas têm demonstrado que as famílias contemporâneas mudaram e isto justifica

as mudanças no que diz respeito às concepções de família e do público usuário da assistência

social. Mas, também os novos preceitos estabelecidos pela PNAS-2004 e as novas diretivas

para o trabalho no SUAS contribuíram para isso. Foi tratado anteriormente que, segundo a

Política de Assistência Social, as famílias atendidas devem ser respeitadas em suas diversas

configurações e compreendidas enquanto parte da totalidade social e como sujeitos de

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direitos, por isso, os problemas sociais que as famílias brasileiras vivenciam devem ser

analisados com base na realidade em que estamos inseridos e nas possibilidades de

enfrentamento dos mesmos. O que apreendemos durante as entrevistas é que, em alguns

casos, há um discurso condizente com o novo perfil da família contemporânea e as novas

demandas na assistência social, porém, as ações se orientam por um reducionismo na análise

do público da assistência social e das causas que o levam a procurar o CRAS, a qual, muitas

vezes, se fundamenta em juízos moralistas:

Olha, esta afirmação [de que as famílias beneficiárias de programas de transferência de renda são acomodadas e não se esforçam para trabalhar] ela não é 100% verdade. Mas também não é 100% mentira. Nós vemos casos típicos de pessoas que eu digo... eu costumo dizer, “viciadas em assistência social”, nós temos famílias que nós sabemos nome e sobrenome, famílias que vem uma geração de pessoas que são realmente com aquele mesmo perfil de acomodação. [...] Mas, nós pegamos os casos de comodismo, claro que pegamos, mas não dá pra você generalizar e dizer assim: todas as pessoas que participam de grupos são acomodadas. Não. Até porque assim, se ela está no grupo é porque primeiro ela passou por uma avaliação [...] (Assistente Social 2, 2013).

Algumas famílias ainda são acomodadas. Mas, são poucas. Aqui, bastante gente que a gente fez um trabalho de, aproximadamente, um ano, dois anos no Projovem antigo, algumas mães também, a gente nota assim com o tempo a evolução dessas pessoas que conseguiram emprego, entrarem em cursos, às vezes, as Secretarias promovem cursos [...]. Eles buscam sim, o que falta às vezes é oportunidade de estudo por causa da situação mesmo. [...] Mas, dentro do possível, eles são esforçados sim em melhorar a situação. Às vezes, tem uma visão da sociedade em geral que não conhece o programa, não conhece os serviços, por exemplo, o bolsa-crack que saiu, o bolsa-recomeço que está sendo bem divulgado, bem polêmico, mas às vezes, as pessoas divulgam uma coisa que não tem entendimento. [...] Às vezes, acho que falta mais conhecimento do público em geral (Assistente Social 1, 2013).

Nesses casos, percebemos que os estigmas em torno das famílias pobres fazem parte

de um conjunto de idéias conservadoras que explica a pobreza, as desigualdades sociais e

econômicas, as mazelas do mundo humano por meio de julgamentos moralistas dos

indivíduos. Problemas como a falta de vontade individual e a preguiça dos brasileiros são

comumente citados nessas análises simplistas. Oriundos da ideia de que famílias são

“viciadas em assistência social”, os preconceitos criados a respeito das famílias pobres estão

ainda muito presentes na sociedade brasileira e no campo profissional dessa política. Contudo,

esses estigmas se generalizam em várias partes do mundo quando se trata da referência à

população pobre, já que vivemos em um mundo onde o individualismo toma formas

exacerbadas e a leitura de fatos históricos é realizada com base na responsabilização

individual.

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Partindo desta realidade, a intervenção profissional pode centrar os seus esforços

novamente nos casos particulares que merecem maior atenção por causa do “não progresso”

em função de vários fatores sociais e/ou individuais, entre eles, o comodismo, a falta de

esforço pessoal e de “espírito empreendedor”, dentre tantos outros motivos que podem fazer

parte de um diagnóstico social ancorado em uma leitura microssocial da realidade. Conforme

se demonstra a seguir que algumas ações com famílias nos dias de hoje, sob a denominação

de acompanhamento social, que são executadas principalmente por meio dos programas de

transferência de renda seguem essa tendência.

Em outros casos, há o enfrentamento desse tipo de ideia e prática no campo

profissional, como podemos observar nas seguintes respostas:

Acho que existem indivíduos acomodados de todas as rendas, de todas as classes sociais. E, aqui o que a gente vê é o contrário, toda família que procura programa de transferência de renda, a primeira fala dela é: “estou desempregada” ou, “eu faço um ‘bico’” [...]. é um direito da pessoa, não está lá na legislação? [...] as pessoas chegam aqui cabisbaixas, cabeça pra baixo, dizendo: “eu vim aqui pedir, mas quando eu começar a trabalhar eu não vou mais!”. Sabe, a gente tenta tirar isso: “Quando você vai numa escola pedir uma vaga, você não vai lá e pede uma vaga porque é um direito seu? Então, aqui você vai vir pedir um programa de transferência de renda, se você estiver dentro dos critérios, é um direito seu e ponto. E daí, o que você vai fazer com o seu dinheiro, se você quer comprar uma calça jeans, o dinheiro é seu!”. A gente brinca com eles às vezes: “Ah, você quer ir lá no Mcdonalds e comprar um lanche, vai! Se você quer comprar cigarro, o dinheiro é seu!” (Assistente Social 4, 2013).

Quando lá na faculdade a gente discutia essa questão, até mesmo o benefício do Bolsa-Família: “Ah, porque dá o peixe e não ensina a pescar!”. Aquela coisa do comodismo. [...] e quando eu fui pro estágio que eu comecei mesmo a lidar com a realidade, você passa a ter uma outra visão até porque quando a gente encontrava uma família denominada acomodada por algumas pessoas, você, quando você ia ver a história de vida você percebia que algumas famílias criavam mecanismos de defesa acessando um serviço ou um outro, ela não conseguia se perceber, ser agente transformador da própria realidade ou por diversos conflitos ou por outras vulnerabilidades ou por questões subjetivas mesmo, ela não conseguia superar essa situação.E daí, eu comecei a enxergar de uma outra forma [...]. Então, desmistificou pra mim essa questão de família acomodada (Assistente Social 5, 2013).

[...] eu não vejo uma família que você tenha que domesticar, botar ela num quadradinho onde ela tenha que se encaixar. “Ah, porque se ela não vier no CRAS, se ela não responder aos encaminhamentos, ela é acomodada, ela não quer mudança!”. Mas, o que vem por trás disso? O que será que ela não consegue enxergar nesse processo? Até por conta do histórico de vida da família, eu não posso culpabilizar, até por causa dos padrões estabelecidos: do que é bom e o que é ruim. O que é bom pra mim, não é bom pra família. Então, eu não posso impor pra ela que tem que vir, que tem que fazer: “Olha, então você tem que fazer isso aqui, você tem que fazer esse curso!”. Então, pra mim, essa questão da imposição e de dizer “olha, tá vendo ela não veio porque é acomodada!”. “Não! Ela não veio porque ela sofreu violência doméstica, ela não veio porque ela não tem com quem deixar os filhos e é uma região muito vulnerável onde os filhos podem ser aliciados pelo tráfico”. Então, essa culpabilização da família, nos relatórios de atividades que eu fiz eu coloquei

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muito isso de não culpabilizar a família, não temos que culpabilizar e, infelizmente, o órgão gestor tem muito essa visão de que as famílias são acomodadas: “Olha, porque eu levanto cedo e venho trabalhar!”. Ou críticas de quando você vai fazer visita domiciliar e encontra a família dormindo. Então assim, cada família tem uma dinâmica e a gente tem que considerar, não que isso não possa se modificar (Assistente Social 5, 2013).

A partir desses dados, compreendemos que a leitura do perfil das famílias usuárias da

assistência social avança, aos poucos, no sentido da compreensão de suas transformações que

se relacionam com as transformações societárias, das políticas sociais em geral e da política

de assistência social, em particular. Todavia, na intervenção cotidiana profissional, em alguns

casos, ainda persistem o trato moralista e discriminatório com famílias na assistência social

que, muitas vezes, sobrecarrega essas famílias com velhas e novas responsabilidades

contrárias aos “princípios inovadores” da PNAS-2004. De acordo com COUTO et al. (2010,

p. 54):

Crescem programas, projetos e serviços dirigidos ao atendimento de famílias. Essas iniciativas vêm sendo desenvolvidas tendo em vista o fortalecimento e o apoio a essas famílias para o enfrentamento das necessidades sociais, e tanto podem se constituir em ações protetivas que favoreçam a melhoria de suas condições sociais como em ações que acabem por sobrecarregar e pressionar ainda mais essas famílias, exigindo que assumam novas responsabilidades diante do Estado e da sociedade.

Durante a pesquisa, verificamos que esse trato moralista e discriminatório com as

famílias na assistência social não ocorre em todos os casos, pelo contrário, há assistentes

sociais que repudiam as abordagens profissionais baseadas nesse tipo de ideologia, o que nos

revela que a prática profissional se desenrola num movimento tenso de afirmação e negação

do conservadorismo, forma de pensamento que expressa as condições reais da nossa

existência.

Muitos elementos que impulsionam esse contexto são gerados a partir da dimensão

que o tema “família” ganhou na atualidade e os traços conservadores que foram se agregando

a ele. Conforme mencionado anteriormente, sabemos que a família é muito importante na

sociedade em que vivemos, a sua função vai muito além da reprodução biológica, ela exerce

também funções afetivas, simbólicas e ideológicas, de socialização e manutenção do

patrimônio privado, entre outras. Mesmo com as novas configurações da família

contemporânea, o seu papel ainda é muito relevante na sociabilidade capitalista, de modo que

nos arriscamos em afirmar que a tendência, cada vez maior, de nos submetermos ao

individualismo do mundo atual, faz com que as expectativas com relação à vida em família ou

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em círculos restritos de amigos e pessoas muito próximas que se assemelham aos grupos

familiares, ganhem contornos extremos. Como exemplo, podemos citar um fenômeno mais ou

menos recente do que Sawaya (2004) irá denominar de “fechamento exagerado” dos sujeitos

em suas próprias famílias. De acordo com a autora:

[...] o atual ‘revival’ da família ocorre no contexto neoliberal do Estado mínimo e de valorização do individualismo, do ‘intimismo’ e do caráter de subjetividade da vida social. Há o que poderíamos chamar de uma ditadura da intimidade, segundo expressão de Sennet, que significa o retraimento da vida pública, o enaltecimento do desejo particular de cada um e a tendência ao encastelamento do homem no ‘eu’ narcísico, conforme evidenciam as expressões tão em moda: auto-estima, auto-ajuda, auto-realização, entre outras. Esta ênfase no fechamento em si é tão forte que, para fazer face a essa expectativa, o eu torna-se um fardo (SAWAYA, 2004, p. 20).

A tendência das políticas neoliberais é retirar as responsabilidades do Estado na

garantia de direitos e de medidas de bem estar à população, as quais se reduzem a um

conjunto de mínimos sociais cada vez mais “minimizados”, em contrapartida, as funções do

Estado no plano econômico que visam ao “equilíbrio do mercado financeiro” se

“maximizam” a cada dia. Dessa maneira, há um retraimento da vida pública e uma

supervalorização dos espaços privados, com destaque para as famílias, as quais são

pressionadas a responder por problemas societários em suas esferas domésticas e

comunitárias.

Além disso, de acordo com Sawaya (2004, p. 21), “a ordem neoliberal global se vale

dos afetos para sustentar sua estrutura de poder, que depende da dominação da alma, dos

desejos e das motivações”. Cada vez mais, na sociedade contemporânea, a realização de

afetos se compra. Seja no âmbito individual, no matrimônio ou na união consensual, na

chegada dos filhos, etc., estão implicadas, nessas várias formas de relação e momentos da

vida, a realização de sonhos, a busca pelo bem estar e a felicidade que são muito mais difíceis

de serem conquistados sem a posse de dinheiro. Sendo assim, para conquistarmos aquilo que

almejamos e que, supostamente, irá nos fazer felizes, somos pressionados a nos adaptar às

condições de trabalho como estão configuradas hoje, ao modo de vida e às relações sociais

marcadas pela exploração, desigualdade, pela miséria humana em todos os sentidos, para

adquirirmos o poder de compra da nossa felicidade e das pessoas que nos são mais próximas.

Interessante notar que, mesmo com todas essas características negativas que a atual

sociedade nos apresenta, uma grande parcela da população (senão, a maioria) continua

apostando nesse modelo social capitalista enquanto o único possível para “se viver bem”. É

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essa ideologia neoliberal que predomina hoje na sociedade e que nos faz crer que o refúgio ao

mais extremo individualismo e a adaptação ao modelo da sociedade contemporânea sejam as

únicas direções possíveis para a superação das dificuldades e a conquista de um mínimo de

qualidade de vida.

Enfim, todas essas características da sociedade em que vivemos fazem com que no

cotidiano estejamos influenciáveis a esse tipo de ideologia. Portanto, reiteramos a tese de que

a família é espaço de proteção e socialização humana, por isso, ela é fundamental para o

desenvolvimento e a formação de seres sociais. Seguida pela escola, a família é reconhecida

por seus membros como um dos principais espaços de socialização para crianças e jovens. Em

pesquisa realizada pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância)66, entre os anos

de 2003 e 2007 no Brasil, mais de 90% dos (as) adolescentes entrevistados (as) responderam

ter na família a sua principal referência para a vida. Logo, este é um exemplo do quão

inconteste é a importância da família para os seres humanos, que fazem dela um espaço de

socialização e educação para os seus membros, sobretudo, os mais jovens, mas também um

lugar de construção de afetos.

Todavia, reforçamos que a função educativa do espaço familiar está relacionada a um

conjunto de ideias que é dominante na sociedade. Os nossos valores morais, escolhas

políticas, religiosas, entre outras, são construídos, inicialmente, a partir dos ensinamentos

sobre o que é bom ou ruim, bonito ou feio, correto ou incorreto, justo ou injusto no âmbito

familiar e das experiências vivenciadas nesse grupo. Tais ensinamentos e experiências são

produto das relações sociais nas quais estamos inseridos, de modo que em seu conteúdo estão

incorporadas diferentes ideologias, mas, sobretudo, uma ideologia dominante que tem o papel

de encobrir os verdadeiros significados da realidade contemporânea.

Assim como outras instituições, entre elas, a escola, os espaços de trabalho, o Estado,

os veículos de comunicação, a família também é responsável por reproduzir determinado

conjunto de ideias que, na maioria das vezes, é coerente com a ordem social vigente. Será

que, no trabalho com famílias que desempenhamos na condição de assistentes sociais,

estamos reforçando ou enfrentando esse tipo de ideologia? Chauí (2008), em seu livro O que é

ideologia, trata sobre a ideologia da competência. Segundo ela, desde os anos 1930 no

Ocidente, com a ascensão do fordismo, uma ideologia de novo tipo se espalha na sociedade

66 Pesquisa intitulada O direito de ser adolescente- Oportunidade para reduzir vulnerabilidades e superar desigualdades, 2011. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/br_sabrep11.pdf>. Acesso em: 16 de fevereiro de 2014.

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nos dando a impressão de que os seus agentes são invisíveis. A autora se refere às ideias que

emanam do mercado de trabalho e das suas organizações, as quais nos fazem acreditar que a

divisão social não está nas classes e, sim, nos grupos dos competentes e incompetentes. Os

primeiros constituem “especialistas que possuem conhecimentos científicos e tecnológicos” e

os segundos são aqueles “que executam as tarefas comandadas pelos especialistas” (CHAUÍ,

2008, p. 110).

Para além do reforço da condição de subalternidade67, do ensino da competência aos

indivíduos isoladamente, dos efeitos dessa ideologia sobre as pessoas que estão

desempregadas, questionamo-nos: a) até que ponto as/os assistentes sociais estão dando

continuidade a práticas do Serviço Social tradicional que difundem um discurso competente

que ensina às famílias pobres a melhor forma de se viver e conviver com as mazelas sociais?

b) será que as/os profissionais da assistência social estão fazendo a crítica a esse tipo de

ideologia, desvelando armadilhas do pensamento conservador e revelando uma realidade em

que prevalecem “a exploração econômica, a desigualdade social, a dominação política e a

exclusão cultural?” (CHAUÍ, 2008, p. 123).

Em meio a tantos esforços para se atingir um padrão de vida desejável dentro dos

moldes da sociedade capitalista, muito frequentemente, os sujeitos não conseguem atingi-lo

por vários motivos de ordem estrutural, então, a família se desfaz, assume novas

configurações ou mantém o seu núcleo principal transformando-se num espaço para lidar com

essa frustração e para preparar os seus descendentes para o desafio da competência. Ao nos

tornarmos reféns da estrutura política e econômica em que vivemos, buscamos nos adaptar da

melhor forma para a sobrevivência em paz com os nossos entes queridos, de modo que a

família cumpre uma função de apoio nessa busca.

No contexto em que vivemos, são constantes os problemas de desemprego, inserção

precária no mercado de trabalho com baixos salários, doenças e falta de atendimento médico

de qualidade, conflitos familiares, situações de violência, entre outros, que atingem as

famílias. As políticas sociais, criadas com o propósito de intervir nessas questões, são

elaboradas, executadas e monitoradas pelo poder público (em alguns casos, em parceria com

67 Sobre a subalternidade, Yazbek (2009, p. 81) nos esclarece que: “Trata-se, portanto, de uma concepção ampla na qual tanto incluímos os trabalhadores, cujo trabalho não é suficiente para garantir seu próprio sustento e o de sua família, como os desempregados e grupos sem condições de obtenção dos meios para subsistir. Temos aí uma imensa parcela da população, com grande diversidade de características e interesses, que vive imersa na esfera da necessidade, esfera marcada pela pertinência às classes subalternas e que transforma a vida cotidiana, sobretudo, na luta pela sobrevivência. É importante lembrar que esta diversidade, que deve ser considerada para fins de análise, não se coloca como um esvaziamento do conceito de classe social, mas antes deve dar-lhe concretude histórica”.

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empresas privadas e organizações da sociedade civil) tendo como público principal as

famílias pobres, como é o caso da assistência social. Como está sendo realizada essa

intervenção com as famílias? Qual é a concepção das/dos profissionais sobre família e do

trabalho que deve ser realizado com elas por meio do Serviço Social? São essas perguntas que

estamos tentando responder (parcialmente) na presente pesquisa. Quanto às concepções de

assistentes sociais sobre as famílias que procuram os CRAS, consideramos necessários os

seguintes destaques para refletir sobre os dados apresentados: 1. a noção de “vulnerabilidade

social” e suas implicações para o trabalho profissional; 2. a ideia que gera equivalência entre

mudanças na composição/relações familiares e ascensão social desses grupos.

Considerando, pois, nossa proposta de analisar expressões do conservadorismo na

prática profissional de assistentes sociais, no que segue apresentamos excertos das respostas

das profissionais que entrevistamos, nos quais comparecem elementos que apontam para uma

compreensão despolitizada da pobreza, já que situações de “vulnerabilidade social” a que

todos estamos sujeitos na atualidade, atingem com mais frequência e intensidade as famílias

pobres e, muitas vezes, esta informação se perde em discursos e ações generalizados sobre o

público da assistência. Além disso, constatamos outros pontos importantes nas falas das

entrevistadas como, por exemplo, as possibilidades que o conceito de “vulnerabilidade social”

abre para o combate às análises da pobreza e das desigualdades sociais que, muitas vezes, se

reduzem somente à renda per capita das famílias. O lugar que essas pessoas ocupam nas

cidades, isto é, o território em que elas vivem, o acesso aos serviços e as condições de

mobilidade urbana são outras temáticas que passaram a ser discutidas no âmbito da assistência

social, o que qualificou as discussões sobre a questão social. Seguem abaixo algumas

respostas sobre o que significa a expressão “família em situação de vulnerabilidade social”:

[...] a gente não pode levar em consideração somente a renda, tem outros fatores que podem deixar a família numa situação vulnerável. Às vezes, em isolamento social, uma criança em situação de trabalho infantil, uma criança, não só a criança, mas algum membro familiar em situação de violência doméstica, abuso ou alguma questão assim, ou violência psicológica, nesse sentido (Assistente Social 1, 2013).

Bom, são as famílias que eu atendo no grupo “Alta complexidade”. São famílias assim, como se diz, às vezes, a pessoa trabalhou a vida inteira como doméstica nunca se preocupou em pagar um INSS, chega numa determinada idade que ela tem uma doença grave [...]. Então, são casos assim extremos mesmo onde existe um risco social. [...] Muitas vezes, o pai que, nós temos casos assim, onde o pai falece e não deixa o INSS, a mãe nunca trabalhou fora porque tinha que criar os filhos: uma situação de vulnerabilidade, né. Um caso de uma pessoa sozinha que sempre foi um alcoolista e aí chega numa idade que também não consegue trabalhar, as pessoas não abrem mais as portas [..]. Família que existe algum jovem que faz uso de droga, se a mãe sair o jovem leva a casa inteira pra vender, às vezes, ela tem também um filho

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pra cuidar. Famílias que os filhos recebem o BPC, a mãe não pode trabalhar fora porque se ela trabalhar fora vão cortar o BPC. Então, tem um leque muito grande. Daria aí um livro inteiro de situações, na minha opinião, de vulnerabilidade (Assistente Social 2, 2013).

Tanta coisa (pode significar uma família em situação de vulnerabilidade social). O que não é só vulnerabilidade social é renda. Não é só renda, pelo amor de Deus! (Assistente Social 4, 2013).

Aqui dentro do território tem bairros que são totalmente isolados. Tem um bairro [...], você pega uma estradinha e no meio da estrada tem um desvio para o bairro, então é um bairro que você não precisa passar por ele para ir a lugar nenhum. Foram famílias retiradas de área de risco que foram colocadas em uma outra área, então, no bairro tem duas, três escolas, é o que tem no bairro. Lá não tem mercado, não tem comércio. A gente atende as pessoas, busca ter entendimento disso, a situação de vulnerabilidade não é só a questão da renda, mas o que falta? Tanto do público ou o que às vezes falta pra família, às vezes, é uma família que tem acesso a renda e tudo, mas tem um conflito ali (Assistente Social 4, 2013).

Todo mundo fala sobre esse termo, eu falei com as famílias, vamos conversar um pouco sobre o que seria isso? Estar vulnerável significa o quê? Então, na verdade, independente da questão socioeconômica, a vulnerabilidade passa por outras questões tanto objetivas quanto subjetivas. É compreender a família por um todo, não fragmentá-la, é entender que ela está vulnerável por não acessar um serviço, que ela está vulnerável por conflitos decorrentes da fragilização dos vínculos, vulnerabilidade social decorrente do território onde essa família reside, essa questão da territorialização, entender os territórios de vulnerabilidade. Então, a gente considera muito, pelo menos eu enquanto profissional, o território onde a família está inserida, as questões sociais que permeiam esse território, seja a questão do desemprego, seja a questão da falta de acesso à escola, falta de acesso à saúde e até mesmo dos equipamentos da assistência, um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos que é difícil pra ela acessar, uma situação de violência, negligência por parte dos pais, maus-tratos, é o que geralmente a gente observa. No decorrer das intervenções que a gente acaba nomeando essas situações de vulnerabilidades sociais. Porque, na verdade, a gente tenta generalizar pra tentar chegar no que seria a vulnerabilidade... são “n” coisas... não dá pra gente falar: ah, aquela família está em situação de vulnerabilidade por causa da questão econômica somente! Eu acho que são diversas questões sociais, são diversas coisas que influenciam nesse meio e que faz com que as pessoas estejam em situações de vulnerabilidade, vulnerável a determinadas coisas (Assistente Social 5, 2013).

O conceito de “vulnerabilidade social”, apesar de estar em uso a um tempo

relativamente curto no Serviço Social, já era utilizado por alguns cientistas sociais como

Moser, Kaztman, Vignoli, Busso, Villa, Abramoway, como nos explica Monteiro (2011).

Segundo a autora, trata-se de um conceito bastante complexo, que agrega várias definições.

Em síntese, o tema “vulnerabilidade social” emergiu nos anos 1990 na tentativa de ampliar os

conceitos de “pobreza” e “exclusão social” que significavam, principalmente, as limitações

econômicas. O termo foi adotado por organismos internacionais como a Organização das

Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e a Comissão Econômica para a América Latina e o

Caribe (CEPAL), entre outros, com a finalidade de orientar os países periféricos na

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solidificação de políticas sociais. O conceito nasceu para mapear grupos de risco na

sociedade, sob o viés econômico, e o seu uso possibilitou identificar problemas no campo da

mobilidade social e no acesso das pessoas a bens e serviços, entre outras situações. A noção

de “vulnerabilidade social” também foi muito utilizada na política de saúde, principalmente,

para referir-se às pessoas infectadas pelo vírus HIV (MONTEIRO, 2011). Ao longo do tempo,

o tema foi ganhando uma amplitude de sentidos e significados, conforme esclarece a autora:

Assim, a vulnerabilidade social passa a ser entendida a partir de múltiplos condicionantes. Nesse sentido, ‘a vulnerabilidade não é uma essência ou algo inerente a algumas pessoas e a alguns grupos, mas diz respeito a determinadas condições e circunstâncias que podem ser minimizadas ou revertidas’ (PAULILO; JEOLÁS, 1999, p. 1). A vulnerabilidade passa a ser compreendida a partir da exposição a riscos de diferentes naturezas, sejam eles econômicos, culturais ou sociais, que colocam diferentes desafios para seu enfrentamento (VIGNOLI, 2001; CAMARANO; et al., 2004). Logo, a idéia corresponde a uma predisposição. Portanto, pressupõe a eliminação do risco e substituir a vulnerabilidade, por força ou por resistência. Outro aspecto importante na concepção de vulnerabilidade social é que ela se constitui como um produto negativo da relação entre recursos simbólicos e materiais, de indivíduos ou grupos, e o acesso a oportunidades. A partir dessa definição, a compreensão de vulnerabilidade social requer uma articulação de pressupostos objetivos e subjetivos como condicionantes (VIGNOLLI, 2001; FIGUEIRA, 2001; ABRAMOWAY, 2002) (MONTEIRO, 2011, p. 33).

Sendo assim, a compreensão da “vulnerabilidade social” pressupõe a existência e a

intervenção em situações de risco de origem externa e a capacidade que os grupos sociais têm

de responder a isso. Para enfrentar os vários condicionantes da “vulnerabilidade social” são

necessários recursos simbólicos e materiais (MONTEIRO, 2011). Segundo a autora:

A vulnerabilidade social, assim compreendida, pressupõe um conjunto de características, de recursos materiais ou simbólicos e de habilidades inerentes a indivíduos ou grupos, que podem ser insuficientes ou inadequados para o aproveitamento das oportunidades disponíveis na sociedade. Assim, essa relação irá determinar maior ou menor grau de deterioração de qualidade de vida dos sujeitos. Dessa forma, a diminuição dos níveis de vulnerabilidade social pode se dar a partir do fortalecimento dos sujeitos para que possam acessar bens e serviços, ampliando seu universo material e simbólico, além de suas condições de mobilidade social. Para isso, as políticas públicas constituem-se de fundamental importância (MONTEIRO, 2011, p. 35).

Conforme descrito no capítulo anterior, a PNAS-2004 e o SUAS alteram a definição

do público usuário da assistência social na tentativa de considerar a pobreza em suas múltiplas

dimensões e de superar a histórica abordagem por segmentos (crianças e adolescentes, idosos,

gestantes, população em situação de rua, etc.).

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Apesar de todos os aspectos positivos que esse processo acarreta como, por exemplo,

a leitura mais crítica do perfil das famílias que procuram os CRAS, por parte das/dos

assistentes sociais que neles atuam, e o combate à estigmatização e discriminação dessas

pessoas, a concepção de “risco social”, que está contida no tema da “vulnerabilidade social”,

pode orientar as análises e as ações profissionais para um sentido transclassista da questão

social, como afirmam COUTO et al. (2010), ou seja, para uma leitura parcial da realidade do

público usuário da assistência social, que se constitui por uma maioria de pessoas

desempregadas/ empregadas informalmente, trabalhadores de baixa renda, mulheres, semi-

analfabetos, excluídos dos serviços públicos, afro-descendentes, pobres, vítimas dos vários

tipos de violência da sociedade contemporânea, explorados. Então, o que vivenciamos no

cenário atual é uma sensação de que toda e qualquer pessoa pode estar sujeita ao “risco da

vulnerabilidade social”, ideia que oculta a essência das relações desiguais entre os seres

humanos e fator principal da geração de situações de vulnerabilidade social: a divisão da

sociedade em classes e a apropriação por parte dos capitalistas de toda a riqueza socialmente

produzida. A ideia do risco inverte a realidade da sociedade capitalista em crise na qual

vivemos, esta nos faz pensar que alguns “remendos” são necessários para o total êxito desse

tipo de sociabilidade (IAMAMOTO, 2013).

Durante a prática profissional, podemos incorrer no mecanicismo de tentar “ajustar”

os indivíduos e famílias em situações de risco e vulnerabilidade social classificadas pela

PNAS-2004, como ressalta Iamamoto (2008), fato que evidenciamos a partir da fala da

Assistente Social 2, quando a mesma se refere às situações sociais atendidas no grupo que ela

coordena nomeado “Alta Complexidade”. Conforme descrito anteriormente pela entrevistada,

trata-se de um grupo socioeducativo voltado para pessoas que vivenciam diversas situações

sociais “extremamente graves”, na concepção de assistentes sociais que as analisam. Com

base nisso, questionamo-nos: quais os critérios utilizados para esse tipo de avaliação? Como

elencar situações menos e mais graves? Como estabelecer formas de atendimentos específicos

para cada “caso”? Ao afirmar que os casos extremos são aqueles que envolvem algum tipo de

risco social como doença, idade avançada e impossibilidade de trabalhar, morte na família,

alcoolismo, abuso de drogas, membro da família que possui deficiência, compreendemos que

há alguns critérios pré-estabelecidos que orientam a prática profissional e que exige das/dos

assistentes sociais habilidades para a sua utilização e a identificação dessas situações nos

contextos familiares. Sem desconsiderar a importância dessas tarefas para o trabalho

profissional com famílias na assistência social, chamamos a atenção para o risco de

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reducionismos e análises imediatistas da questão social, já que esta não se resume a situações

isoladas. Além disso, o trabalho investigativo de assistentes sociais pode recuperar um velho

enfoque do Serviço Social tradicional: fiscalizar, minuciosamente, as condições em que a

população vive por meio de visitas domiciliares e outros instrumentos, com o objetivo de

controlar o uso que as pessoas fazem dos recursos públicos concedidos pelo Estado. Daí, a

dimensão dos direitos na assistência social perde totalmente o seu sentido.

A visão mecanicista e discriminatória dos problemas sociais os quais, na realidade,

são gerados por uma complexidade de fatores sociais, econômicos e políticos, pode incentivar

uma prática fundamentada na “hierarquização dos riscos”, a partir da qual as/os profissionais

entendem que devem estar preparados tecnicamente para identificar “desajustamentos

biopsicossociais”, explica Iamamoto (2008). Assim, profissionais podem se dedicar mais à

investigação e classificação das situações de risco e vulnerabilidade social que atingem as

famílias atendidas pelos CRAS, atribuindo maior atenção a esses “casos” e, desse modo, o

trabalho na assistência social retorna ao antigo formato do “plantão social” ou “pronto-

socorro social”, como afirma Netto68, formas de trabalho que são velhas conhecidas da

profissão nessa área.

Além disso, o trabalho na assistência social referenciado pela noção de que vivemos

em uma “sociedade de risco” pode reforçar “a perspectiva da responsabilização individual

para enfrentar riscos que são societários, e fortalecem políticas de proteção social focalizadas

nos mais pobres ao invés de políticas universais” (COUTO et al., 2010, p. 53). Isto porque a

“teoria do risco” explica que é possível a sua administração e gestão por meio de algumas

medidas e estratégias que, apesar de serem positivas em alguns aspectos, não atingem a

essência das desigualdades sociais. Então, deparamo-nos com a seguinte contradição: há uma

ampliação da oferta de serviços socioassistenciais, assim como a diversificação do público a

ser atendido nos CRAS (mudanças regidas pela lógica da proteção social), porém, ao mesmo

tempo, a diretiva política dos órgãos federais e locais que administram a política de

assistência social prioriza a execução de ações pontuais centradas no combate à pobreza e à

extrema pobreza, por meio da transferência de renda e de ações socioeducativas que se

limitam a determinados grupos beneficiários desses programas. Como lidar com essa

realidade na prática cotidiana de trabalho?

68 NETTO, J. P. XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSISTENTES SOCIAIS (CBAS), 2013, Águas de Lindóia- SP.

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Na prática profissional, assistentes sociais se deparam com a seguinte problemática:

quem está desempregado, subempregado, é pobre ou miserável pode ser incluído em

programas de transferência de renda para minorar os agravos de sua condição social. E, as

demais pessoas que estão inseridas no mercado de trabalho e que também enfrentam várias

dificuldades de sobrevivência devem “se esforçar ao máximo”, “ter muita fé e força de

vontade”, “fazer das tripas coração”, em tempos de crise global que estamos vivenciando,

para custear serviços básicos como saúde, educação, moradia e outros bens de consumo

necessários para viver a vida com um mínimo de qualidade; de modo que também quase não

há espaço para eles nos serviços oferecidos pela proteção social básica na assistência social,

ao mesmo tempo em que esta prevê o atendimento a este público também. Ou seja, a lógica

institucional dos CRAS ainda não encontra sustentação na base conceitual da proteção social

que regulamenta a PNAS-2004: ao conjunto dos mais pobres são oferecidos a “inclusão” e o

acompanhamento social por meio dos programas de transferência de renda, enquanto outra

parte da população em situação de vulnerabilidade social, também sujeito de direitos e

público da Proteção Social Básica (como consta na PNAS-2004), não encontra outras opções

de serviços socioassistenciais sendo ofertados nos CRAS. Não queremos, com isso, colocar-

nos, contra os meios que possibilitam uma “maior visibilidade” (se é que a transferência de

renda pode ser considerada assim) daqueles que sempre estiveram esquecidos e “invisíveis”

na sociedade. Todavia, queremos chamar a atenção para uma reflexão que se faz muito

necessária nos dias de hoje: a prevalência dos programas de transferência de renda nos CRAS

é compatível com as propostas da proteção social básica inscritas na PNAS-2004? Este

modelo de intervenção profissional alcança todo o público usuário da assistência social? De

que forma está se dando esse alcance?

De acordo com Iamamoto (2013), as agências internacionais oferecem

“oportunidades” de desenvolvimento econômico aos países periféricos, o que envolve uma

exposição maior aos riscos que o progresso capitalista pressupõe:

O suposto é que a “globalização” oferece aos países em desenvolvimento “enormes oportunidades de prosperar no marco da economia mundial, mas também os expõe a riscos maiores, o que justificaria a agenda de reformas neoliberais. Emerge uma nova maneira de encarar a política de proteção social como estratégia de manejo ou administração de risco e transforma a proteção social “em mais um trampolim que permita às pessoas dar o salto para vidas mais seguras”. A proteção envolve estratégias voltadas à redução de riscos, à atenuação de riscos, ao enfrentamento dos riscos e ao manejo dos riscos, e incorpora as questões de vulnerabilidade nos debates sobre a pobreza (IAMAMOTO, 2013, p. 22).

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O segundo ponto a ser destacado sobre a leitura de profissionais do Serviço Social

acerca do perfil das famílias usuárias da assistência social é a indistinção entre a redução da

pobreza absoluta e a mobilidade social das famílias pobres. Para algumas/alguns profissionais,

as mudanças no perfil do público usuário dos serviços socioassistenciais correspondem à

ascensão a uma nova condição social de vida. Segue o relato de uma das entrevistadas acerca

dessa questão:

Com certeza absoluta estão (as famílias atendidas hoje na assistência social estão mais estabilizadas), não digo 100%, porque 100% nem em país desenvolvido existe 100%, isso aí é uma utopia, de achar que vamos conseguir 100% porque, se fosse assim, de apenas a questão financeira resolver, nós não teríamos moradores de rua ricos porque nós sabemos que há muitas famílias que moram nas ruas, de famílias abastadas. Então, não é o dinheiro que vai nortear tudo isso. [...] existe realmente uma mudança aí, você não consegue mais ver aquelas famílias extremamente, sem nenhum recurso [...]. Hoje, você vê o quê, você vê muitas pessoas assim, antigamente, o que a gente compara: telefone era luxo, hoje não é mais, faz parte da casa, faz parte da casa a pessoa ter celular, nem que seja o celular, ela tem o contato lá fora, alguém que precisa falar com ela, que consegue localizar. Antigamente não, você tinha que ir de porta em porta saber onde morava o fulano. Carro? Hoje você vê na cidade uma grande quantidade de carro por exemplo. Mesmo a família mais simples tem um carrinho pra poder se locomover, hoje você vê um número maior de ônibus, é o dia inteiro ônibus circulando pela cidade então você começa a perceber que houve alguma mudança (Assistente Social 2, 2013).

Hoje você vê as pessoas se vestindo melhor, tudo bem, ainda que seja uma doação, mas elas se vestem melhor, elas se portam melhor e isso mexe com a pessoa porque mexe com a auto-estima da pessoa. Então, nós tínhamos pessoas assim tristes e hoje você vê que até esse perfil também muda, vendo por esse lado psicológico, não sei, social. Não sei descrever, pontuar exatamente o que é, mas que você percebe uma diferença, você percebe. E é visto hoje o Serviço Social, o CRAS eles vêem como busca de direito mesmo, não é 100%, 100% volto a dizer que é utopia, mas você vê que as pessoas vêm em busca do seu direito e não em busca do favor. Antigamente, eles chegavam aqui no atendimento e diziam assim ó: será que você podia fazer o favor de me arrumar tal coisa? Hoje não: olha eu preciso de tal coisa! (Assistente Social 2, 2013).

Com esses dados, verificamos dificuldades por parte de algumas/alguns profissionais

na assimilação das transformações que vêm afetando a sociedade e as condições de vida da

população, o que cria novas demandas para as políticas sociais e exige respostas diferenciadas

para esse público. As mudanças no mundo contemporâneo, as quais mencionamos

anteriormente, processam-se no mundo do trabalho por meio de alterações no processo

produtivo, nas formas de contratação e na regulação das relações de trabalho, entre outras; nas

relações políticas e econômicas comandadas pelo grande capital; nas relações sociais e

humanas que são cada vez mais efêmeras e instáveis marcadas pela aparência reificada que

as várias esferas da vida assumem (BARROCO, 2011); na ascensão de novas idéias, formas

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de comportamento e culturas que valorizam o hoje sem referências à historicidade dos seres

sociais. Porém, todas essas mudanças que afetam o modo de vida das famílias na

contemporaneidade atendem às necessidades de revigoramento do sistema capitalista que

precisa se reinventar e criar novas estratégias para se manter vivo.

Essa reconstituição do capital se desenvolve em meio a conflitos, tensões sociais e

resistências. Ideias distorcidas sobre essa realidade, muitas vezes, fazem-nos crer que tais

transformações são indispensáveis para o amadurecimento da sociedade capitalista e para a

conquista de avanços que se refletem por meio das melhorias nas condições de vida de uma

parte da população. Entretanto, de quais avanços estamos tratando? Da urbanização e do

desenvolvimento de novas tecnologias que têm facilitado a vida em sociedade e o acesso a

recursos e informações? Do acesso ao consumo e posse de bens que nos possibilitam maior

conforto e momentos de prazer? São inúmeros os benefícios que o alto grau de

desenvolvimento da sociedade humana nos possibilita hoje, todavia, a questão é: quais as

consequências disso para as pessoas? As cidades crescem e os problemas sociais aumentam,

as informações disponibilizadas acobertam o processo real da vida, novas tecnologias se

desenvolvem em favor das grandes empresas e dos donos dos capitais, tornamo-nos adeptos

de apelos do mercado de consumo que nos vendem incessantemente cada vez mais produtos,

muitas vezes, desnecessários e que agridem o meio ambiente e/ou contribuem para a sua

destruição, além de aprofundar a inversão das relações sociais em que as coisas se humanizam

e os seres humanos se desumanizam. Os produtos do nosso trabalho são estranhos a nós e o

processo de reconhecimento humano inerente ao processo de trabalho já não existe mais, o

que faz de nós, trabalhadores, seres cada vez mais estranhos a si mesmos e ao mundo que nos

cerca, seres cada vez mais explorados e brutalizados por alguns grupos de pessoas que detêm

o poder econômico e político no mundo, poder que se esvai para diversas localidades e que

funciona para nos fazer acreditar que a vida está melhorando. Assim, quando comparamos as

famílias que eram atendidas na assistência social, antigamente, e as famílias usuárias desta

política na atualidade, percebemos mudanças positivas, até mesmo no que diz respeito, à

diminuição das situações de extrema pobreza, o que devemos atribuir, em certa medida, aos

programas de transferência de renda. Porém, numa análise mais aprofundada das classes

sociais no mundo e no Brasil, descobriremos que as desigualdades entre elas se aprofundaram

e o acesso ao consumo não é o indicador central para o exame das melhorias nas condições de

vida da população.

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Como destacaremos a seguir, o governo recente de Lula (2003-2010) e o atual

governo Dilma (2011-atualidade) dão ênfase a políticas sociais compensatórias de combate à

extrema pobreza. Em fevereiro de 2013, a presidenta do Brasil Dilma Roussef anunciou a

saída de, aproximadamente, 40 milhões de pessoas da situação de miséria, por meio dos

programas do governo federal Bolsa-Família e Brasil Sem Miséria69. Com base nesses

resultados, discursos e análises sobre o surgimento de uma “nova classe média” no Brasil

foram reproduzidos por representantes do governo e por intelectuais, criando a ideia de que

essas pessoas ascenderam socialmente e passaram a compor outra classe social.

Sem adentrarmos aqui nos amplos debates sobre a heterogeneidade das classes

sociais e a classe média hoje, é válido contrapô-lo à argumentação de Chauí, segundo a qual

não há uma nova classe média e, sim, “há uma nova classe trabalhadora, o que é um problema

para nós” (informação verbal)70. Segundo ela, nós, brasileiros, estamos acostumados com o

fato de que os trabalhadores estão excluídos absolutamente de tudo (diferentemente da Europa

e dos países onde existiu o Estado de Bem Estar Social) e, por isso, a diminuição dos índices

de pobreza nos parece um processo de ascensão social para a classe média. Essa nova classe

trabalhadora, segundo ela, abarca principalmente os trabalhadores terceirizados e todos

aqueles que são empregados de forma precária no mercado de trabalho (por meio de contratos

temporários, sem garantias trabalhistas, sem vínculo empregatício, desvinculados de

sindicatos e organizações de defesa dos trabalhadores, etc.). O problema aí está, no fato de

que, há alguns anos, vem se constituindo no Brasil e em outros países também um histórico de

muitas perdas para a classe trabalhadora. Muitos desses trabalhadores e trabalhadoras que

estão sujeitos a longos períodos de desemprego tornam-se usuários da política de assistência

social. E isso faz com que as/os profissionais de Serviço Social adquiram e exerçam uma

leitura diferenciada da realidade das famílias que chegam ao CRAS, a qual deve estar

concatenada às atuais transformações societárias. A política de assistência social foi

construída nessa direção, mas a sua materialização com base na leitura da realidade tem

esbarrado em algumas dificuldades que ficam evidentes, por exemplo, por meio da percepção

equivocada de que a diminuição da pobreza extrema e o tímido acesso dessas pessoas ao

69 REVISTA BRASILIS via Portal Brasil. Disponível em: <http://www. revista.brasil.gov.br/especiais/rio20/desenvolvimento-sustentavel/erradicação-da-pobreza>. Acesso em 14 de janeiro de 2014. 70 Palestra sobre a conjuntura atual, realizada em 2 de setembro de 2013, no Sindicato dos Químicos, em São Paulo.

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mercado de consumo significam a passagem para outra condição social melhor ou mais

elevada.

Sobre isso, Iamamoto (2013) expõe que uma das principais metas da diminuição de

riscos, por meio de iniciativas como a implantação de programas focalizados de combate à

extrema pobreza, é “a incorporação dos segmentos pobres ao mercado para dinamizar a

economia e menos pretende atender as reais necessidades sociais de que são portadores”

(IAMAMOTO, 2013, p. 23). De fato, isto é o que tem ocorrido recorrentemente nos anos

recentes: as famílias pobres conquistaram um maior “poder de consumo”, fato amplamente

divulgado pela mídia nacional, mas que não deve se confundir com ascensão social ou

mobilidade de uma classe social para outra, quando tratamos de famílias que eram

extremamente pobres e foram beneficiadas por programas de transferência de renda como, por

exemplo, o Bolsa-Família.

Ao serem questionadas sobre os programas, projetos, serviços ou benefícios voltados

para as famílias nos CRAS, as profissionais entrevistadas responderam que desenvolvem:

O Renda Cidadã, o Bolsa- Família e o Ação Jovem (programas voltados para as famílias) que são benefícios de repasse de renda. O PAIF que é um programa de atendimento integral à família, não é vinculado, não tem essa questão financeira, mas de participação enquanto público prioritário, eles são incluídos e a gente verifica se há necessidade de um acompanhamento mais aproximado, eles são incluídos nas ações do PAIF (Assistente Social 1, 2013).

Basicamente todos são voltados para as famílias. Eu acho que começa já do acolhimento que é o carro-chefe. Você já pega ali a problemática. Ele chega aqui, na verdade, já chega atrás de quê? De uma cesta básica. Eu costumo dizer que a cesta básica é a ponta do iceberg. Porque quando eles chegam aqui, eles pedem uma cesta básica, mas você pode buscar que tem mais coisas envolvidas, então começa ali o trabalho com a família na verdade. Depois você vai pras visitas e dentro dos grupos você consegue trabalhar alguma coisa (Assistente Social 2, 2013). Temos o Bolsa-Família, o Renda Cidadã, o Ação Jovem. A cesta básica ela poderia ser um benefício eventual desde que ela fosse regulamentada, ela não é regulamentada no município. Então, é distribuição material, a gente não pode nem contar como benefício eventual. O único que tem [...] é o auxílio-funeral, nem o de natalidade não está ainda regulamentado, não tem critério. Na LOAS, tem os dois: funeral e natalidade, (aqui no município onde trabalhamos), tem o funeral e poderia ter outros benefícios desde que o município arcasse com os custos disso, mas não tem. Então, vem cestas básicas, às vezes pro CRAS que é uma distribuição de material, mas não um benefício eventual. Tem esse, tem os cursos de artesanato, são abertos pra comunidade que também não estão dentro do PAIF, nem de geração de renda, nem de artesanato (Assistente Social 4, 2013). Aqui a gente tem o trabalho com famílias, prioritariamente, com os grupos do Renda Cidadã e Bolsa-Família. Então, a gente tem os grupos socioeducativos com as famílias do Renda e do Bolsa, mas a gente também tem o grupo com jovens que é referenciado aqui no CRAS [...] que é o Ação Jovem e o Serviço de convivência que estão muito atrelados porque a gente faz o trabalho com as famílias dessas crianças

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que estão nessas entidades, então é bem voltado para a questão da família mesmo. Tem a questão do serviço de convivência que é o grupo de idosos que nós temos e esse grupo do Ação Jovem, mas em geral, é mais voltado pra família (Assistente Social 5, 2013).

Com base nesses dados, constatamos a seguinte realidade do trabalho com famílias,

na política de assistência social, nos tempos atuais: O trabalho executado por assistentes

sociais abrange basicamente os programas de transferência de renda e, ainda em fase inicial, o

PAIF. Apesar dos atendimentos individuais no tradicional formato dos “plantões sociais”

(agora, sob a nomenclatura de acolhimento social) terem se tornado “secundários” no trabalho

da assistência social, esses ainda são realizados nos espaços dos CRAS de maneira mais ou

menos frequente.

Compreendemos que o trabalho profissional de assistentes sociais nos CRAS está

quase totalmente centrado na oferta, execução e administração dos programas sociais de

transferência de renda porque há uma grande procura por estes nos territórios, como nos

relatam as entrevistadas:

[...] a maioria vem com a necessidade de uma cesta básica ou de transferência de renda e daí a gente vai sentar com a família: hoje você vai atender uma família, então você vai sentar com ela, se você não tiver aquele recurso naquele momento, você vai encaminhá-la para um programa, vai demorar pra ela ser incluída (Assistente Social 3, 2013).

As famílias que procuram o CRAS sempre vêm atrás de um benefício (na maioria das vezes, programas de transferência de renda). Às vezes, vêm atrás de orientação, às vezes, demanda de conflito familiar, muitas com dificuldade de acesso a outras políticas públicas: saúde, educação, etc (Assistente Social 3, 2013).

[...] a maioria das pessoas que participam das oficinas nos territórios é de programa de transferência de renda (Assistente Social 4, 2013).

As profissionais dos CRAS são pressionadas pela demanda existente e pelas gestões

locais para desempenhar tarefas relativas à inclusão, acompanhamento, monitoramento e

desligamento de famílias beneficiárias de programas de transferência de renda:

A gente faz o socioeducativo dos programas, faz com as mães, mulheres em geral que participam [...]. A gente faz reuniões, são seis encontros no mês, em três datas diferentes, cada data tem dois horários [...]. A gente sempre tem que fazer pelo menos duas ou três reuniões referentes aos benefícios, critérios dos programas sociais para que as famílias tenham um entendimento de que estes não são vitalícios, são uma medida de emergência, numa situação em que eles precisem, qual é a proposta do governo por trás de cada programa, que não é só transferência de renda, mas que existem as condicionalidades [...] a gente faz bastante orientações nesse sentido [...] (Assistente Social 1, 2013).

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O Bolsa-Família hoje está com uma resolução que agora a gente tem que orientar essas famílias (em descumprimento de condicionalidades) e colocá-las em acompanhamento por um determinado período pra que não tenha reincidência na parte escolar (faltas escolares). Esse acompanhamento seria pelo PAIF, que daí a gente tem que acompanhar pelo sistema pelo SigPBF. É só cadastrar a família, o NIS dela e fazer um acompanhamento sistemático, de acompanhar mesmo. Na própria suspensão, a gente já consegue isso porque quando suspende o programa eles já procuram a gente pra não chegar ao bloqueio e, posteriormente, ao cancelamento do benefício porque daí a reversão fica mais difícil (Assistente Social 1, 2013).

Aqui, do Bolsa-Família tem tudo, também atualização, cadastro. Antes era num Terminal Central, daí teve a proposta de descentralização e agora são os CRAS que fazem (Assistente Social 3, 2013).

O CRAS que está ali na [proteção] básica é pra trabalhar com prevenção, mesmo que aquela família não é uma família público de transferência de renda, [...] mas o que a gente faz de fato pra prevenir para que ela não chegue a ser um público de transferência de renda? O que a gente pode trabalhar no território? E acaba não fazendo [...] até dentro do CRAS mesmo, então você fala: ah, vamos ter um grupo de acolhida? Então coloca lá o nome: Acolhida para grupos de programas de transferência de renda, não é acolhida para programas de transferência de renda! É acolhida dos serviços, vamos acolher as pessoas do serviço, não é só pra explicar como ela faz pra entrar no Bolsa-Família, no Renda Cidadã. [...] Grupo de descumprimento, descumprimento do Bolsa-Família, mas e as outras famílias? É prevenir, a gente quer garantir a prevenção (Assistente Social 4, 2013).

Diversas análises que expusemos aqui explicam que a conjuntura mundial em que se

desenvolvem as políticas sociais atuais favorece essa realidade fazendo crescer o número de

programas desse porte e a demanda por eles. Discutimos ao longo de toda a presente pesquisa,

que vivenciamos tempos de profundas transformações societárias e de crise do capital. O fim

da fase áurea do capitalismo interrompeu também o modelo do Welfare State nos países

europeus que, hoje, retrocedem no que diz respeito aos direitos sociais já conquistados,

quadro que se acentua com as medidas de austeridade fiscal nos países mais afetados pela

crise atual. Países europeus têm diminuído, gradativamente, os gastos na área social. Alguns

países da Europa, sofreram ajustes irreparáveis:

Em 2010, Portugal reduziu pela metade o salário extra de Natal que concedia aos trabalhadores. Na mesma época, a Espanha anunciava seus primeiros cortes em políticas de bem-estar social, como o do cheque-bebê, uma espécie de ‘prêmio’ de até € 3.500 concedidos a casais com recém-nascidos, para incentivar a natalidade. Em 2011, a aposentadoria entrou na mira dos governos: o Reino Unido mexeu nas pensões e aumentou as contribuições pagas por funcionários públicos, gerando protestos. A Itália subiu em três anos a idade mínima para aposentados, dentro de um plano de ajuste que levou a Ministra do Trabalho, Elsa Fornero, a chorar enquanto o anunciava. Neste ano, os cortes já foram mais profundos. A Espanha anunciou fim de benefícios na educação e na saúde, como a distribuição de remédios para idosos e o pagamento de taxas universitárias antes bancadas pelo governo. A

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Holanda, modelo de políticas de bem-estar, viu seu governo cair em abril por causa de um duro pacote de medidas de ajuste71.

Entre os anos 1970 e 1980, o neoliberalismo começou a vigorar na Europa e nos

Estados Unidos, estendendo-se para grande parte dos países no mundo, o que foi construindo

o cenário em que vivemos atualmente de falta de infraestrutura e investimentos no setor

público, de alianças mais próximas do Estado com o mercado financeiro e as instituições

privadas, de fragmentação e desmobilização dos movimentos dos trabalhadores. Diante desse

quadro e dos impactos da atual crise financeira, a interpretação da questão social e da pobreza

no mundo e as medidas para o seu enfrentamento foram se tornando cada vez mais

despolitizadas, como afirma Yazbek (2013).

Nesse sentido, atualmente, o que vemos é a transformação de políticas sociais

(vitórias dos movimentos de esquerda e de trabalhadores em tempos anteriores) em medidas

cada vez mais focalizadas e seletivas que tendem a reduzir a questão social a um “problema”

passível de ser resolvido por uma boa governabilidade, ou seja, por meio da capacidade de

gestão de um determinado governo.

O Brasil que nunca implementou um modelo de bem-estar social e quase sempre

investiu em políticas sociais pressionado por circunstâncias em que se viu obrigado a ceder

perante a correlação de forças e as necessidades do desenvolvimento capitalista, aprovou a

Constituição Federal de 1988 que regulamentou a implantação de políticas regidas sob os

princípios da universalidade e da democracia. No entanto, logo após esse marco histórico que

abriu portas para várias outras conquistas, tais garantias sociais começaram a sofrer os

impactos da política neoliberal e da “contra-reforma” do Estado. Em detrimento dos

investimentos nos negócios e no mercado, as políticas públicas foram sendo abandonadas e

sucateadas com graves consequências para a população. Quando Lula assumiu a presidência

da república em 2003, uma das prioridades de sua gestão foi o crescimento econômico

somado à implementação e ampliação de políticas sociais que, apesar de algumas mudanças

substanciais pelas quais o Brasil passou nesse período, a tendência ao desenvolvimento de

políticas focalizadas na área social se manteve e foi incorporada como uma das principais

metas desse governo.

71 BELCHIOR, L. Crise ameaça políticas sociais na Europa. Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 de maio de 2012. Caderno Mundo, p. A22.

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De acordo com Freitas (2007), em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito

presidente do Brasil, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), instaurando algumas novidades no

cenário político nacional como, por exemplo,

[...] um novo ciclo na política brasileira, do ponto de vista sociológico- pela origem do presidente (retirante nordestino, vítima da seca) e por sua trajetória forjada na luta sindical contra a ditadura militar e as injustiças sociais- e também do ponto de vista político, pela coalizão político-partidária- aliança do PT com o PL- e pela agenda programática com elevada ênfase social (FREITAS, 2007, p. 66).

No entanto, durante o seu mandato político, de 2003 a 2010, o que tivemos no Brasil

foi um “governo do possível” em consonância com a política econômica anterior e com os

interesses do capital privado. As políticas sociais implementadas pelo governo Lula foram,

sobretudo, de caráter compensatório (como é o caso do Programa Bolsa-Família) orientadas

pelo Banco Mundial e com o objetivo principal de diminuir a miséria e evitar “convulsões

sociais”, sem interferir no poder do capital financeiro. É claro que alguns aspectos positivos

desse governo devem ser considerados como o êxito em algumas medidas da política externa,

a não criminalização dos movimentos sociais, a redução da dívida externa, o aumento real dos

salários mínimos, os cuidados com a inflação e, até mesmo, o aumento de investimentos nas

políticas sociais, se compararmos com governos anteriores. Sem tratarmos aqui da Saúde e da

Previdência Social (políticas que também compõem o Sistema de Seguridade Social

brasileiro), destacamos algumas características da política de assistência social durante o

governo Lula, foram elas: o combate à fome e extrema pobreza, por meio do Programa Fome

Zero; o Programa Bolsa-Família; a consolidação do SUAS; entre outras (FREITAS, 2007).

Dilma Rousseff, ao assumir a presidência do Brasil, em 2011, deu continuidade ao

programa do governo Lula marcado pelo desenvolvimento de uma política voltada para o

crescimento econômico, pelos impactos da Reforma da Previdência Social, da falta de

recursos na área da saúde, de problemas de qualidade na educação, de dificuldades no acesso

à qualificação profissional, da aceitação da precarização das condições de trabalho, entre

outras marcas que se combinam com algumas melhoras pontuais no âmbito das políticas

sociais como a elaboração do Plano Nacional de Educação, a criação do PRONATEC

(Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), as medidas de expansão do

acesso aos bens culturais, a extensão da proteção do trabalho doméstico, o apoio à agricultura

familiar, o debate e a implantação de cotas raciais nas universidades, etc., mesmo que essas

estejam muito aquém do que é desejado e necessário à população brasileira.

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No que se refere especificamente à política de assistência social, foi lançado o Plano

Brasil sem Miséria, em 2011, que pretende “[...] incorporar ao sistema de proteção social

universal e ao sistema de garantia de renda aqueles segmentos da população cujo acesso às

políticas sociais ainda não se efetivou e que, por isto, permanecem em situação de extrema

pobreza” (IPEA, 2012, p. 50). Portanto, o atual governo alega que não se trata de substituir as

políticas sociais universais pelos programas focalizados de transferência de renda, mesmo que

a prioridade que está sendo dada a estes últimos esteja criando exatamente esse efeito na

realidade. O Plano Brasil sem Miséria consiste ainda em três dimensões: garantia de renda,

garantia do acesso aos serviços e inclusão produtiva. Mais uma vez, são os CRAS que devem:

[...] funcionar como pontos de atendimento e referência dos programas ofertados pelo Brasil sem Miséria. Ademais, aposta-se na busca ativa de beneficiários como estratégia fundamental para localizar os 16,27 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, a qual deverá ser protagonizada pelos profissionais do Suas em todo o país. As pessoas e as famílias identificadas como potenciais beneficiários deverão ser inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), caso ainda não o tenham sido, possibilitando-se melhor caracterização de suas demandas e suas vulnerabilidades e, por conseguinte, o delineamento de ações mais efetivas (IPEA, 2012, p. 54).

Outras medidas desse governo no campo da assistência social foram os reajustes na

renda dos beneficiários do Programa Bolsa-Família, principalmente, daquelas famílias com

filhos até 15 anos, o apoio técnico aos agricultores familiares, porém, compreende-se que

medidas relevantes no que tange à questão fundiária (e que beneficiaria a população rural que

é o contingente mais afetado pela extrema pobreza) não foram tomadas. Além disso, a rede

socioassistencial, sob gestão descentralizada e participativa, teve a adesão de 99% dos

municípios brasileiros, o PL Suas (Projeto de Lei nº 3.077/2008) foi aprovado e a Lei nº

12.435, de 2011, foi sancionada alterando a LOAS e fortalecendo o reconhecimento da

assistência social enquanto política pública, o que consolidou o processo de construção

institucional iniciado pela PNAS-2004. A Lei nº 12.101/2009 foi regulamentada para diminuir

os problemas de certificação das entidades beneficentes de assistência social que agora devem

estar vinculadas ao SUAS por meio do reconhecimento do Ministério do Desenvolvimento

Social e Combate à Fome. Estas são algumas das ações na esfera da assistência social que

foram desencadeadas durante o atual governo (IPEA, 2012).

Dessa maneira, o governo brasileiro escolheu o Programa Bolsa-Família como um

dos seus carros-chefe para o combate à pobreza e à desigualdade social no país combinado

com o tão almejado crescimento econômico. Este programa ganhou uma dimensão tão grande

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neste país (por seus efeitos positivos sobre a condição de vida de muitas famílias, mas

também pela propaganda política em torno dele) que o debate crítico sobre a questão social no

Brasil, muitas vezes, é sufocado por análises desqualificadas e despolitizadas que envolvem a

eficiência ou ineficiência do Programa Bolsa-Família no combate à desigualdade social.

Exceto no caso de alguns estratos conservadores da classe média que repudiam

veementemente o Programa Bolsa-Família e seus usuários, em geral, a sociedade “vê com

bons olhos” esse movimento, considerado, por alguns (e discordamos veemente disso), como

um movimento de “redistribuição de renda” que se iniciou na gestão do governo Fernando

Henrique Cardoso, que foi efetuado com mais ênfase pelo governo Lula e que continua agora

no governo Dilma. Discordamos desse tipo de afirmação porque a renda transferida pelo

governo, por meio de programas sociais, limita-se às famílias extremamente pobres e o seu

valor é irrisório. Inclusive, os setores que detêm o poder econômico e político do país

aplaudem (até certo ponto) o desenvolvimento de programas de transferência de renda, já que

oferecer “migalhas” aos pobres é melhor do que interferir em problemas estruturais.

Sendo assim, o marketing político em torno do Bolsa-Família, em muitos casos, tem

interferido na prestação de serviços socioassistenciais, garantidos pela PNAS-2004. Sobre

isso, compreendemos que a pobreza e a desigualdade social são problemas históricos em

nosso país, de modo que o processo de reestruturação produtiva e as decisões políticas do

Estado brasileiro em torno dessa questão aprofundaram ainda mais os níveis de desigualdade

no país. Para o enfrentamento dessa realidade, o Estado criou formas pontuais de ação, como

é o caso dos programas de transferência de renda, realidade previsível, já que o poder político

exercido pelo Estado capitalista é, em sua natureza, uma forma de poder apropriada por

setores dominantes da sociedade e não tem pretensões de acabar com a dominação e

exploração de uma classe sobre outra. Todavia, sabemos que os discursos proferidos por

porta-vozes do governo, assim como por alguns intelectuais e veículos de comunicação no

Brasil (e no exterior), podem transmitir à sociedade a ideia de que a superação da questão

social no Brasil é possível apenas com a efetivação de políticas públicas de qualidade no que

se refere à educação, saúde, moradia, assistência social (como é o caso do Programa Bolsa-

Família), entre outras. Acreditamos que este deve ser um passo para conquistas importantes

no sentido da emancipação dos homens e mulheres, mas a superação da desigualdade social

exige outra sociabilidade, pois o desenvolvimento capitalista pressupõe o desenvolvimento da

pobreza. Por este motivo, devemos ficar atentos aos discursos que se referem à eliminação da

pobreza e às transformações sociais no Brasil, por meio de políticas públicas.

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Discursos como o do Prof. André Portela Souza, da Escola de Economia de São

Paulo, da Fundação Getúlio Vargas, exemplificam bem essa realidade. O especialista afirmou

que o programa Bolsa-Família72 nasceu com um “duplo objetivo”: combater a pobreza em

curto prazo por meio da transferência de renda e reduzir a pobreza num prazo mais longo, por

meio das condicionalidades impostas às famílias pobres “que incentivam a acumulação do

capital humano de suas futuras gerações”. Para ele, em mais de uma década de existência, os

estudos sobre o Bolsa-Família revelam que houve redução da pobreza no país, porém “os

impactos sobre a acumulação do capital humano nas novas gerações são muito tênues ou de

pouca magnitude”. O professor explica que os impactos sobre a educação de crianças e jovens

são pequenos, assim como os indicadores positivos na saúde são pouco significativos. O

estudioso conclui afirmando que: “Talvez o maior mérito do programa até agora tenha sido

fazer com que as políticas sociais de transferência de renda cheguem aos mais pobres. Criou-

se no Brasil uma tecnologia de políticas públicas. O desafio está em aproveitar a tecnologia

para aumentar a eficácia das políticas sociais para eliminar a pobreza no Brasil”73 (Grifo

nosso).

Já a jornalista Miriam Leitão compreende que o Bolsa-Família é “uma política

vitoriosa” porque “reduziu muito a pobreza e a extrema pobreza no país”, “deu dignidade” às

pessoas. Segundo ela, o Bolsa-Família estimula as famílias a sonharem com novas conquistas,

ao contrário, de torná-las acomodadas com o auxílio do Estado. Ela considera que a

vinculação da transferência de renda com a obrigatoriedade da presença das crianças e jovens

nas escolas deve ser mais rigorosa já que “é a educação de qualidade que vai transformar o

futuro dessas famílias pobres e a sociedade como um todo, além de melhorar a

competitividade do Brasil”74 (Grifo nosso).

72 O Programa Bolsa-Família é um programa de transferência de renda com condicionalidades que integra o atual Sistema de Proteção Social Básica brasileiro. Ele é um programa do governo federal que alcança as famílias pobres de todos os municípios brasileiros e que completou dez anos de existência no ano de 2013. Dentre as propostas do programa estão a unificação de vários programas de transferência de renda de governos anteriores, como por exemplo, o Bolsa-Escola, o Auxílio-Gás, entre outros, que eram administrados durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), assim como o cumprimento de condicionalidades, por parte das famílias, isto é, a exigência de que estas mantenham os filhos na escola e realizem acompanhamento médico para os cuidados básicos de saúde de crianças e gestantes. Nesse programa, 13,8 milhões de famílias beneficiárias, recebem um valor médio mensal de R$ 152, proveniente de um orçamento federal de aproximadamente R$18,5 milhões, o que equivale a 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional (dados do Jornal Folha de São Paulo, 19/10/13). 73 CANZIAN, F. Efeitos do Bolsa-Família após dez anos são desiguais. Jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 de outubro de 2013. Caderno Poder, p. A8. 74 BOLSA FAMÍLIA FAZ DEZ ANOS E É UMA POLÍTICA VITORIOSA, DIZ MIRIAM LEITÃO. Disponível em: <http://www.g1.globo.com>. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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O governo Dilma divulgou dados dos impactos do Bolsa-Família na redução da

mortalidade infantil, da evasão escolar e da desigualdade da renda domiciliar per capita.

Durante a comemoração dos dez anos do programa, o governo anunciou ainda avanços na

queda dos índices de fecundidade entre as faixas de renda dos mais pobres e indicadores

favoráveis no que se refere à ocupação e procura por emprego dessa parcela da população.

Estes são dados que a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza

Campello, apresentou para responder aos “mitos” alimentados, principalmente, pela classe

média brasileira de que o Programa Bolsa- Família incentiva a geração de mais filhos pelas

mulheres pobres e a vagabundagem entre as famílias beneficiárias75.

O Bolsa-Família foi notícia também no exterior76, classificado como “o maior

sucesso de exportação do Brasil atualmente, uma forma barata e eficiente de melhorar a

vida dos mais necessitados”77 (Grifo nosso). Ora, o que representa isso senão a análise

imediatista de situações que incidem sobre o grave quadro de desigualdade social no mundo e

no Brasil e a elaboração de propostas políticas superficiais enquanto sua única e possível

solução? Contudo, não é só isso, há nesses discursos um tom coerente com as exigências de

um novo modelo societário ao qual somos obrigados a ajustar-nos, pois as críticas a este

sistema são atenuadas e “saídas” são criadas para se conviver com uma realidade política,

sócio-cultural e econômica que é inevitável.

Não queremos, com isso, negar os resultados positivos do programa que tem

suscitado certo “poder de consumo” entre as famílias pobres, o aumento da frequência e da

progressão escolar de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos (principalmente, em municípios

com altos índices de vulnerabilidade social na região Nordeste do Brasil), a ampliação da

cobertura de vacinação infantil, o cumprimento do cronograma vacinal, o aumento na

realização de consultas pré-natais, além de outros efeitos positivos que o Programa Bolsa-

Família tem gerado como o estímulo a um maior poder de decisão das mulheres em seus

domicílios e a redução do trabalho infantil78. De acordo com Araújo (2009, p. 100):

Num contexto em que a pobreza assume proporções tão imensas e tão absurdas (TELLES, 2001) é inegável a contribuição, ainda que limitada, que esses programas proporcionam na redução dos efeitos mais visíveis da pobreza, bem como a

75 BRASIL TEM 50 MILHÕES DE MOTIVOS PARA COMEMORAR OS 10 ANOS DO BOLSA FAMÍLIA. Disponível em:< http://www.bolsafamilia10anos.mds.gov.br>. Acesso em 30 de outubro de 2013. 76 Jornal inglês The Guardian, em 17/12/2013. 77 Disponível em: < http://www.bolsafamilia10anos.mds.gov.br>. Acesso em 30 de outubro de 2013. 78 Dados de pesquisa realizada pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), 20 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.pnud.org.br>. Acesso em: 3 de novembro de 2013.

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possibilidade de acesso a serviços sociais básicos, constitucionalmente concebidos como direitos de cidadania.

Mas, tratar a tecnologia do “Programa Bolsa-Família” como um meio possível de

eliminar a pobreza no Brasil ou associar a condicionalidade de manter os filhos das famílias

pobres na escola concomitantemente à melhoria da qualidade da educação em nosso país, o

que resolveria parte dos problemas na sociedade brasileira, evidenciam posicionamentos

conservadores na medida em que supõem transformações sociais (eliminar a pobreza e

construir um sistema de educação de qualidade) sem transformar a estrutura da sociedade em

que vivemos. Ou seja, mantemos a exploração da força de trabalho, a desigualdade de classes,

a concentração de renda e propriedades, a privatização dos serviços públicos, a perda

progressiva de direitos sociais, entre outras situações próprias e concretas da sociedade

contemporânea. No entanto, o aperfeiçoamento do Programa Bolsa-Família e outras medidas

de ajuste e reformas sociais podem nos levar ao fim da pobreza e à construção de um futuro

melhor para as nossas crianças por meio da educação. Em programas sociais e na educação,

podemos intervir (ou propor intervenções), mas sobre a problemática que desencadeia todas

as deficiências nesses ramos, é melhor e mais conveniente não propor nem uma discussão

sequer acerca disso.

É nesse contexto ideológico, somado à corrida eleitoral pela Presidência da

República no Brasil polarizada entre o PT (Partido dos Trabalhadores), da futura candidata e

atual presidenta Dilma Roussef e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), do

futuro candidato à presidência Aécio Neves, que vivenciamos uma clara disputa pela

“paternidade” do Programa Bolsa-Família, em que se discute nos veículos de comunicação se

foi Fernando Henrique Cardoso ou Lula que criou o programa, o que, consequentemente,

demanda méritos e votos em seu partido político por isso.

Logo após a comemoração dos dez anos do Programa Bolsa-Família, a presidenta

Dilma afirmou existir hoje “um Bolsa-Família renovado” que mantém a “sua força

transformadora” com melhorias e resultados positivos na renda, no trabalho, na educação, na

saúde, entre outros. O candidato Aécio Neves se pronunciou em defesa do programa fazendo

a seguinte constatação: “[...] nenhuma outra política de governança foi mais transformadora

da realidade brasileira que os programas de transferência de renda gestados e instituídos nos

anos 90 e continuados e adensados nos anos 2000”79. Porém, segundo ele, nos últimos anos, o

79 NEVES, A. Futuro. Jornal Folha de S. Paulo, 4 de novembro de 2013. Caderno Opinião, p. A2.

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governo se limitou a fazer a gestão da pobreza, deixando de lado outras “carências sociais”.

Então, ele informou ter apresentado projeto de lei para a incorporação do Bolsa-Família à

LOAS, de maneira que esse se eleve à condição de “política de Estado” e não seja mais

somente uma “ação de governo”. Por fim, ao se referir à falta de acompanhamento dos

beneficiários, principalmente no que diz respeito à educação, ele escreve que:

É preciso reconhecer que a pobreza é um conjunto de privações de renda, serviços e oportunidades. E é nessa abordagem multidimensional que precisa ser enfrentada e superada. Só assim faremos a travessia na direção da verdadeira inclusão social80.

Este é um exemplo que constata a apropriação, por parte da direita política em nosso

país, da ideia de reforma social e de um discurso voltado para a superação da pobreza que

antes pertencia aos setores de esquerda.

Durante as entrevistas, verificamos que, em alguns casos, o trabalho com famílias

nos CRAS expressa, de certa forma, o discurso dominante neoliberal de depositar

expectativas de melhorias de vida para a população pobre por meio de saídas particulares.

Nem sempre as expectativas são depositadas na transferência de renda, mas sim nas

orientações, encaminhamentos, condicionalidades e estímulos individuais que envolvem esse

tipo de programa:

[...] eu conscientizo elas que assim, é uma oportunidade, não é única mas é uma oportunidade e tanto né, dela pegar esse dinheiro e realmente transformar em sonho. E mostrar pra elas que elas podem alcançar então nós temos aí pessoas que começaram no grupo e hoje estão fazendo uma faculdade por quê? Pegaram o Renda Mínima, transformaram em alguma coisa e com o dinheiro dessa transformação paga curso e a busca maior hoje em dia é em cima de curso e eu acho isso um grande crescimento pras famílias (Assistente Social 2, 2013).

[...] eu costumo dizer programa social não é pra desocupado, não é pra desempregado, ela é pra quem tem ocupação, ela é pra quem quer mudar de vida, essa é a minha fala sempre pras famílias que vem procurar programa social (Assistente Social 2, 2013).

A partir desses dados, podemos observar que algumas/alguns profissionais depositam

esperanças na transferência de renda governamental, para além da segurança de sobrevivência

das famílias pobres. A participação dessas famílias em programas sociais pressupõe a

realização de sonhos, a mudança de vida, a autonomia financeira.

80 Idem.

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Nesse sentido, percebemos que ao vivenciarmos essa conjuntura social de

superdimensionamento dos programas de transferência de renda, estamos expostos ao risco de

atuarmos profissionalmente nos limites dessa direção. Assim, a compreensão mais totalizante

e crítica dos problemas sociais que atingem a população usuária da assistência social, a

apreensão da questão social e sua relação com a intervenção profissional ficam prejudicadas.

No âmbito da assistência social, particularmente, a importância desses programas no

cotidiano profissional de assistentes sociais ganha relevo se comparada com a atenção dada às

demais seguranças sociais previstas na PNAS-2004 como, por exemplo, a segurança de

acolhida e a segurança de convívio ou vivência familiar. Isso quer dizer que o acesso e

atendimento de qualidade junto à rede sociassistencial e às demais políticas públicas; o

exercício do protagonismo dos (as) usuários (as) na construção de respostas às demandas

públicas; o direito à acessibilidade; o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários; o

conhecimento do território; as campanhas socioeducativas; as ações comunitárias; os

movimentos de luta por direitos; a participação e o controle social; a construção de atividades

culturais, artísticas e de lazer; a prevenção social, os quais são aspectos importantes de ações

que devem ser planejadas e implementadas por meio do Sistema de Proteção Social Básica, na

política de assistência social, são tomados em segundo plano ou executados com foco nos

programas de transferência de renda. Por vezes, essas seguranças sociais tipificadas pela

PNAS-2004 nem são colocadas em prática, tendo em vista a pressão que os profissionais dos

CRAS sofrem para realizar atividades e tarefas concernentes aos programas focalizados e que

ocupam grande parte do seu expediente de trabalho. Algumas das profissionais entrevistadas

nos revelam que:

A gente tem o público do descumprimento de condicionalidades dos PTR que é a gente mesmo que faz, temos a dupla do acompanhamento social e é super difícil realizar a proposta de acompanhamento familiar que está no documento (do PAIF) porque tem a prioridade do público do atendimento que, por exemplo, já está suspenso dos PTR ou quase saindo dos programas [...]. Então, a gente consegue, em alguns casos, fazer o acompanhamento familiar, mas tem sempre esse problema, sempre o programa de transferência de renda atravessa outras ações (Assistente Social 3, 2013).

Porque o CRAS não é só o PAIF. Executamos o PAIF, mas tem os programas de transferência de renda e outras coisas que podem estar no CRAS, desde que não interfira no trabalho social do PAIF. Mas, às vezes, essas outras coisas acabam sobressaindo o PAIF, daí, você tem um ‘cabo de guerra’ (Assistente Social 4, 2013).

Os dados nos mostram que as tarefas concernentes aos programas sociais de

transferência de renda como, por exemplo, a busca ativa das famílias em descumprimento de

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condicionalidades do Programa Bolsa-Família e outros, as reuniões socioeducativas,

entrevistas, acompanhamento e monitoramento das famílias beneficiárias desses programas,

acabam sobrepondo-se ao desenvolvimento de outras ações e serviços socioassistenciais que

devem ser prestados na Proteção Social Básica, por meio do trabalho nos CRAS.

A partir desses dados, podemos destacar também a seguinte expressão do

conservadorismo no exercício profissional de assistentes sociais que trabalham nos CRAS: o

disciplinamento e a educação das famílias beneficiárias de programas de transferência de

renda para que estas tenham um desempenho “satisfatório” durante a sua participação nos

mesmos.

Os critérios para inclusão e permanência nos programas e as condicionalidades que

são exigidos para a participação nesses são constantemente passadas e repassadas às famílias

usuárias da assistência social, de modo que essas incorporem uma postura regrada ao longo de

todo o período em que elas se beneficiam desse “direito social”:

A gente sempre tem que fazer, pelo menos, duas ou três reuniões referentes aos benefícios, critérios, programas sociais para eles terem um entendimento de que não é vitalício, é uma medida de emergência, numa situação em que eles precisem, explicamos qual a proposta do governo por trás de cada programa, que não é só a questão da transferência de renda, mas tem as condicionalidades de colocar os filhos na escola, estar em dia com o peso, com a saúde, e tem um porquê disso né, porque não é simplesmente para dificultar o acesso ao programa, mas para os postos de saúde terem um melhor acesso às famílias, saberem como está a situação de cada um, a gente faz bastante orientações nesse sentido (Assistente Social 1, 2013).

Para além do objetivo de promover o acesso da população usuária às demais políticas

públicas, resultando na melhoria da sua qualidade de vida, a rigorosidade nos critérios de

seletividade e nas exigências do cumprimento de condicionalidades dos programas de

transferência de renda pode gerar novas formas de exclusão, julgamentos moralistas e

preconceituosos:

Bom, nós conversamos muito na reunião de inclusão, começa no acolhimento, nós frisamos muito que nós vamos fazer um contrato com elas. Nós fazemos um contrato, qual é o contrato? Chegar no horário, participar ativamente nas reuniões, não deixar acumular o dinheiro no banco ou não deixar ultrapassar valores, não usar celular durante as reuniões, etc. Mas, quando ela descumpre, eu entendo que aí sim entra, muitas vezes, o comodismo, muitas vezes, a falta de responsabilidade. Eu costumo não convocar as famílias que não estão comparecendo nas reuniões, por exemplo. Por quê? Porque elas já foram orientadas, então se elas não têm interesse mais eu não vou atrás. Posso errar nessa avaliação? Eu até posso, só que assim, como notícia ruim chega primeiro, se essa família aconteceu alguma coisa de tão grave, ela já sabe o caminho da assistência social, ela estaria vindo aqui. Logo no meu primeiro encontro com elas, eu digo: “Uma falta, você pode faltar, não tem

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problema, pode acontecer de você ir viajar, pode acontecer de você arrumar um bico naquele dia, pode acontecer várias coisas [...] nas outras vezes, a gente não pode fazer nada, na segunda falta, a gente suspende. Por quê? É uma forma de fazer com que elas tenham um pouco mais de responsabilidade. Quando suspendemos o pagamento, no dia seguinte, ela está aqui, por quê? Por que ela está aqui no dia seguinte que suspendeu o pagamento e não no dia da reunião? [...]. Então, nós chamamos a responsabilidade nesse sentido e na terceira falta ela realmente vai ser excluída. Então, eu particularmente, não vejo necessidade de ir atrás por conta disso, já foi trabalhado tanto, tanto, tanto quanto às condicionalidades, pelo menos eu estou dizendo em função do Renda Mínima e do Renda Cidadã. [...] Por que é que ela faz isso? [...]. Então, as condicionalidades são importantes desde que você firme, logo no primeiro contato, esse contrato com o usuário. Você tem essas condicionalidades, parou, deixou de cumprir, a mesma coisa assim: um funcionário entra na empresa, ele trabalha uma semana e depois ele não volta mais pro trabalho, o patrão que tem que ir atrás? Não. Ele vai atrás? Não. Põe no jornal lá: “Perdeu, acabou!”. Então, se a gente vai muito em cima, volta naquela pergunta anterior, se você fica muito em cima do usuário: por que você faltou? Você não pode faltar e não sei quê.... em alguns casos vai gerar comodismo porque as desculpas são as mais interessantes possíveis desde que “pintei o cabelo e ficou verde” até “eu estava internada no hospital” (Assistente Social 2, 2013).

Nesse caso, está implícito na concepção do direito à participação em programas

sociais de transferência de renda a ideia do mérito pessoal, ou seja, as pessoas podem acessar

e usufruir desse recurso previsto no direito à assistência social, desde que tenham capacidade

para se adequar e cumprir as regras, normas, condicionalidades, enfim, o contrato

estabelecido pelo programa e, muitas vezes, pela/o profissional que o executa. Provadas essas

qualidades de merecimento, as famílias estão aptas a participar dos programas, em caso

contrário, estas são privadas do acesso a esse direito e condenadas por certo desvio social, o

que muitas vezes explica a sua atual condição de vida. Ao suspender ou excluir as pessoas

beneficiárias de programas de transferência de renda com base nesses julgamentos, alguns

profissionais consideram que essa prática é necessária porque funciona como um aprendizado,

uma forma de ensinar que os padrões e condutas vigentes (muitas vezes, injustos e ilógicos)

não irão mudar, mesmo que os questionemos, o que significa que nós devemos nos adaptar a

eles.

Os acompanhamentos sociais, por meio dos programas de transferência de renda,

também são muito marcados por essa tendência ao disciplinamento das famílias para um

desempenho “satisfatório” nos referidos programas:

O Bolsa-Família hoje está com uma resolução que agora a gente tem que orientar essas famílias e colocá-las em acompanhamento por um determinado período pra que não caia, não tenha reincidência na parte escolar. Esse acompanhamento seria pelo PAIF e a gente tem que acompanhar pelo sistema pelo SigPBF. Cadastramos a família, o NIS dela e fazemos um acompanhamento sistemático, de acompanhar mesmo. Na própria suspensão, a gente já consegue isso, porque quando suspendemos o programa, eles já procuram a gente, pra não chegar ao bloqueio e,

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posteriormente ao cancelamento do benefício quando daí a reversão fica mais difícil (Assistente Social 1, 2013).

Entendemos que o alcance, pela assistência social, de famílias que não acessam os

serviços de saúde ou que tenham filhos em dificuldades na escola, é uma estratégia positiva

no sentido de enfrentar a questão social em suas mais variadas expressões na

contemporaneidade. Contudo, quando tal acompanhamento perde este foco, há grandes

probabilidades do trabalho de assistentes sociais se orientar apenas pelo controle rigoroso de

condicionalidades, exigidas por programas de transferência de renda, o que pode resultar em

penalizações das famílias pobres. Há aí uma inversão na compreensão dos processos que

geram a pobreza.

Com o intuito de direcionar como deve ser realizado o acompanhamento das famílias

em descumprimento das condicionalidades do Programa Bolsa- Família, por meio dos CRAS

e CREAS, pois o Governo Federal entende que esta é uma forma de avançar no

enfrentamento da pobreza, da fome e da desigualdade social, foi criado o Protocolo de Gestão

Integrada de Serviços, Benefícios e Transferências de Renda no âmbito do Sistema Único de

Assistência Social (SUAS), resolução CIT nº 7, de 10 de setembro de 2009. A Comissão

Intergestores Tripartite (CIT) compreende que, além do amplo alcance dos programas e

benefícios que levam as famílias à garantia de renda, é preciso materializar as ações do

SUAS, principalmente, no que diz respeito à oferta dos serviços socioassistenciais:

Gradualmente, busca-se que o SUAS seja capaz de ofertar, com qualidade, um volume de serviços compatível com as necessidades da população brasileira e, em especial, das famílias que atualmente já são beneficiadas pelas ações de transferência de renda. Entende-se que programas e benefícios como o PBF e o BPC constituem respostas extremamente importantes para a garantia da segurança de sobrevivência das famílias pobres. Entretanto, os riscos e vulnerabilidades sociais que atingem as famílias e indivíduos colocam desafios e necessidades que em muito extrapolam a dimensão da renda. Neste sentido, é somente por meio da oferta simultânea de serviços que a Assistência Social pode assegurar a promoção e proteção dos direitos e seguranças que lhe cabem afiançar. É no âmbito dos serviços que se pode trabalhar efetivamente os aspectos objetivos e subjetivos relacionados aos direitos de convivência familiar e comunitária e à segurança de acolhida, conforme determina a Política Nacional de Assistência Social (PNAS 2004). A sinergia gerada pela oferta simultânea de renda e de serviços socioassistenciais potencializa a capacidade de recuperação, preservação e desenvolvimento da função protetiva das famílias, contribuindo para sua autonomia e emancipação, assim como para a eliminação ou diminuição dos riscos e vulnerabilidades que sobre elas incidem (BRASIL, 2009b, p. 4).

O Protocolo estabelece procedimentos para a oferta de serviços socioassistenciais às

famílias beneficiárias dos Programas Bolsa-Família, de Erradicação do Trabalho Infantil e do

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Benefício de Prestação Continuada, especialmente, aquelas famílias que não estão cumprindo

com as condicionalidades exigidas, portanto, que estão em situação de maior vulnerabilidade

social. O Protocolo contribui também para a Vigilância Social dessas famílias nos territórios

de abrangência dos CRAS e CREAS e para a responsabilização do poder público na oferta de

serviços de saúde, educação e assistência social. Entende-se que:

A garantia de renda mensal articulada com a inclusão das famílias em atividades de acompanhamento familiar no âmbito do SUAS, bem como em serviços de outras políticas setoriais, é compreendida como a estratégia mais adequada para se trabalhar a superação das vulnerabilidades sociais que impedem ou dificultam que a família cumpra as condicionalidades previstas nos Programas (BRASIL, 2009b, p. 5).

Para a operacionalização desse Protocolo foram disponibilizadas as seguintes

ferramentas eletrônicas: o Sistema de Acompanhamento de Condicionalidades (SICON) e o

Sistema BPC na Escola. Dessa maneira, as/os profissionais que acompanham as famílias em

situação de descumprimento de condicionalidades do Programa Bolsa- Família podem

estabelecer um prazo de seis meses, podendo ser prorrogado pelo mesmo período, para avaliar

os “progressos” das famílias acompanhadas e informá-los ao Governo Federal, caso os

resultados permaneçam negativos, ou seja, as famílias continuem descumprindo as

condicionalidades impostas pelo programa, gradativamente, serão excluídas do benefício.

A função de controle social das famílias pobres quase sempre esteve delegada aos

profissionais de Serviço Social que atuam na assistência social. Desse modo, o que parece se

renovar nessa tarefa é a criação de tecnologias voltadas exclusivamente para isso, o que

garante maior eficiência nesse processo e o emprego de novas metodologias que podem

preencher muitos espaços do nosso trabalho, tirando o foco do trabalho com famílias que tem

se orientado pela garantia de direitos, mobilização social e formação para a transformação

social. Não podemos deixar de ressaltar que esse tipo de controle se constitui em uma técnica

utilizada por órgãos competentes que visa qualificar o acesso às políticas públicas, portanto,

aos direitos básicos dos cidadãos. O que não temos discutido nesse processo é a qualidade

desse acesso e os determinantes que incidem sobre a estrutura dos serviços públicos no país.

Voltemos às noções de “risco e vulnerabilidade social”, que direcionam toda a lógica

da atual política de assistência social. Compreendemos que elas recuperaram, por um lado, o

trabalho com famílias compreendido na sua relação com as necessidades coletivas, na medida

em que incorpora o conceito de território e passa a desenvolver metodologias para a

intervenção com base nessa perspectiva:

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Eu acho que [...] a gente tem que focar no trabalho com famílias, até pra não fragmentar mais, eu acho muito interessante porque é importante na medida em que essas famílias são sujeitos de direitos, compõem o território, o local onde elas moram e pro enfrentamento das questões sociais porque elas passam a perceber um processo de reflexão, de se entenderem enquanto sujeitos de direitos, o que são essas questões sociais, o que é o território onde eu moro, o que é essa vulnerabilidade, como eu posso superar, o que eu tenho de potencialidade, o que eu tenho de bom que de repente eu posso conseguir superar essa situação de vulnerabilidade social (Assistente Social 5, 2013).

A previsão é que até março do ano que vem saia um CRAS lá na zona norte. Eu faço parte do CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente) e a gente fez um diagnóstico pela Votorantim no ano passado [...], com esse diagnóstico da criança e do adolescente ficou mais do que comprovado que a região norte é muito vulnerável com relação a tudo: acesso a serviços, questão da renda, emprego, violência, muitos adolescentes em medidas socioeducativas, muitos pro tamanho [do bairro] e pro número que a gente tinha, em relação ao que a gente tinha há dois, três anos atrás, cresceu muito. Então, identificamos que lá é uma região muito vulnerável e decidiu-se, optou-se por ter um novo CRAS lá (Assistente Social 5, 2013).

Aqui em [...], o povo daqui acaba sendo mais vulnerável porque a gente não tem o trem, por exemplo. No bairro [...] , já tem o trem, a mobilidade aqui é bem mais difícil. Tem ônibus, mas você pensa: uma família que não tem muito recurso financeiro que precisa chegar lá em São Paulo, ela vai pagar o ônibus e o trem. Quem está em [...], vai pagar o trem e chegar até Osasco se quiser. Então, isso já é, a gente vê que é mais vulnerável nesse sentido (Assistente Social 3, 2013).

Por outro lado, tal conceito revigora o grau de importância dos acompanhamentos

sociais individuais, pois se entende que determinadas situações de risco e vulnerabilidade

social, sobretudo, aquelas que se mostram mais emergenciais, podem ser amenizadas ou

superadas por meio de um acompanhamento social sistemático, que ganha maior legitimidade

perante as famílias quando é apresentado como uma exigência dos regulamentos dos

programas de transferência de renda. De acordo com uma das entrevistadas:

Eu acho assim, hoje nós temos um número menor de grupos [socioeducativos dos programas de transferência de renda], então eu acho que a qualidade do atendimento dessas famílias vai melhorar. Por quê? Porque eu tendo um menor número de pessoas, um menor número de grupos, eu vou conseguir fazer uma coisa que nós pecamos ainda, vimos discutindo isso já há algum tempo dentro das reuniões do CRAS que é você pegar efetivamente cada família e fazer um bom acompanhamento, incluindo as visitas sociais. Hoje, eu faço assim, terminou a minha reunião eu digo: “Quem quiser falar comigo agora individualmente fica na sala”. Então, eu abro um espaço, deixo as pessoas esperando na sala mesmo, mas de forma isolada, eu vou para um canto e converso de forma isolada. Então, ali eu consigo acompanhar uma ou outra situação, mas eu não estou satisfeita com isso, eu acho que um acompanhamento uma vez por mês é pouco. [...] eu tenho a intenção de fazer, pelo menos, uma visita por mês sim, mas determinados casos de a gente começar marcar horário pra que elas venham pra que a gente consiga trabalhar melhor. Esse espaço de um mês é muito tempo, é muito tempo, nesse um mês pode acontecer muita coisa. Então, eu fico imaginando assim, fazer um acompanhamento

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pelo menos uma vez por semana nos casos que realmente precisam, de marcar com essa pessoa, de ir na casa. Isso está ainda caminhando, nós estamos ainda rabiscando, eu estou imaginando ainda na minha cabeça, estamos rabiscando isso no dia a dia, mas eu tenho certeza que é por aí. Se a gente pensar em alguns modelos, nos Estados Unidos, por exemplo, uma assistente social ela vai de manhã pra casa de uma pessoa e passa o dia com a pessoa pra poder analisar determinada situação. Não vejo como invasivo, eu vejo como uma contribuição, ela tá observando mais (Assistente Social 2, 2013).

Não queremos aqui negar a importância do atendimento individualizado em algumas

situações, mas entendemos que o trabalho realizado sob esse viés pode reforçar o caráter

focalista do antigo Serviço Social de Casos que busca atingir os problemas imediatos do

cotidiano das famílias por meio da observação e do acompanhamento de sua rotina, de uma

forma até mesmo invasiva. As condições sociais dos sujeitos são analisadas em casos

particulares, isoladamente (como se as/os profissionais pudessem atender todos os “casos”,

um a um), análises que sofrem grande influência da corrente psicossocial e que tendem a

transferir aos indivíduos e às suas famílias responsabilidades para superar a desigualdade

social.

Já o acompanhamento familiar previsto no PAIF é assim definido:

[...] conjunto de intervenções desenvolvidas em serviços continuados, com objetivos estabelecidos, que possibilitam à família acesso a um espaço onde possa refletir sobre sua realidade, construir novos projetos de vida e transformar suas relações- sejam elas familiares ou comunitárias (BRASIL, 2012, p. 62-63).

Esse pode ser realizado em grupo ou de maneira particularizada e, após analisar as

demandas, identificar vulnerabilidades e potencialidades das famílias, as/os profissionais

traçam um Plano de Acompanhamento Familiar (PAF), juntamente com as famílias, no qual

constam objetivos para a superação de situações de vulnerabilidade. Quando as famílias não

conseguem atingir as metas traçadas, elas podem continuar sendo atendidas no serviço. De

acordo com as orientações técnicas do PAIF:

O acompanhamento não é um processo que visa avaliar a (s) família (s), sua organização interna, seus modos de vida, sua dinâmica de funcionamento. Ao contrário, conforme vimos, é uma atuação do serviço socioassistencial, com foco na garantia das seguranças afiançadas pela política de assistência social e na promoção do acesso das famílias aos seus direitos, com vistas ao fortalecimento da capacidade protetiva da família, a partir das respostas do Estado para sua proteção social (BRASIL, 2012, p. 65).

Entre as finalidades desse serviço estão o enfrentamento de

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[...] situações de vulnerabilidade social, prevenir a ocorrência de riscos e/ou violações de direitos, identificar e estimular as potencialidades das famílias e territórios, apoiar a família na sua função protetiva, afiançar as seguranças de assistência social e promover o acesso das famílias e seus membros a direitos sejam civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais (BRASIL, 2012, p. 63).

O PAIF instaura algumas modificações no que se refere ao trabalho com famílias

tradicionalmente executado no campo da assistência social:

Ao se iniciar o processo de acompanhamento familiar, é preciso que os profissionais que realizam o atendimento tenham em mente que as vulnerabilidades apresentadas pelas famílias são expressões de necessidades humanas básicas não satisfeitas, decorrentes da desigualdade social. Assim, é preciso ultrapassar a lógica do atendimento ‘caso a caso’ ou ‘caso de família’, que vincula a satisfação das necessidades sociais à (in) competência individual das famílias. Portanto, é preciso redimensionar a lógica do trabalho com famílias na perspectiva dos direitos, coletivizando as demandas e reafirmando que o caminho para a concretização da cidadania é via políticas públicas de responsabilidade do Estado (BRASIL, 2012, p. 65).

Além disso, as orientações técnicas do serviço determinam que o acompanhamento

das famílias deve ser feito a partir da aceitação das mesmas em participar do processo, diz o

documento que: “O acompanhamento familiar constitui um direito, portanto, sua participação

não deve ser algo imposto pelos profissionais” (BRASIL, 2012, p. 65). Nele, destaca-se ainda

que:

O princípio fundamental que deve nortear o acompanhamento familiar é o reconhecimento de que as famílias são protagonistas de suas histórias, mas que sofrem os impactos da realidade socioeconômica e cultural na qual estão inseridas, em especial as expressões da questão social que se manifestam no território. Tal compreensão é fundamental para negar a postura que individualiza os problemas vivenciados pelas famílias e as estigmatizam (BRASIL, 2012, p. 70).

O acompanhamento familiar em grupo, pelo PAIF, é “indicado para responder

situações de vulnerabilidades vivenciadas pelas famílias com forte incidência nos territórios”

(BRASIL, 2012, p. 70). A partir de um diagnóstico socioterritorial, profissionais podem

formar grupos de famílias e realizar o seu acompanhamento visando compartilhar

experiências, refletir sobre a realidade, acessar informações relativas aos direitos, apoiá-las

em sua função de proteção e construir projetos de vida que envolvam a ampliação de direitos.

A constituição dos grupos requer, por parte das/dos profissionais, identificar formas de

interação social, vínculos, necessidades e interesses comuns. Segundo o Caderno de

Orientações do PAIF (2012, p. 72):

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A experiência do acompanhamento familiar em grupo possibilita, assim, aos participantes colocar-se critica e autonomamente na relação com o meio social, o que faz emergir estratégias com vistas à mudança e transformação bem como fortalece a capacidade de expressão de suas demandas em outros espaços públicos. Nessa direção, iniciativas de participação social e de protagonismo, na defesa e conquista de direitos e a formação de uma rede de auxílios mútuos entre seus membros, neutralizando o isolamento vivenciado por algumas famílias em situação de vulnerabilidade, são seus efeitos mais imediatos. Destaca-se, ainda, que o trabalho em grupo constitui instrumento eficaz em função de seu efeito multiplicador à medida que passa pela construção conjunta de alternativas.

O documento coloca ainda que

[...] o foco do acompanhamento familiar deve ser a abordagem cidadã e emancipatória, centrada no resgate dos saberes, superação de preconceitos, estímulo das potencialidades e enfrentamento dos conflitos familiares, de modo a respeitar as crenças e valores das famílias atendidas, valorizar o exercício da participação democrática, da tolerância, da cooperação, do respeito às diferenças, possibilitando a reflexão crítica sobre suas vulnerabilidades e possibilidades, estimulando projetos coletivos, desenvolvendo princípios e valores relacionados aos direitos, à cidadania e à democracia (BRASIL, 2012, p. 82).

No decorrer desta pesquisa, constatamos que o PAIF, enquanto uma nova

modalidade do trabalho com famílias, está sendo desenvolvido de maneira “experimental” nos

CRAS pesquisados com algumas dificuldades, tendo em vista a prevalência da intervenção

profissional junto às outras demandas dos programas sociais de transferência de renda que não

inclui o acompanhamento familiar inclui-o focando no disciplinamento para o cumprimento

de condicionalidades. De acordo com as profissionais entrevistadas:

A gente consegue desenvolver o PAIF aqui, mas não estamos totalmente voltados para isso (Assistente Social 3, 2013).

[...] tem também as oficinas com famílias, que oficinas com famílias tem gente que acha que é oficina de artesanato, mas no documento no PAIF, ele traz como oficinas com famílias esses grupos socioeducativos. E aí a gente dividiu por território, então, tem dois aqui em [...], um de manhã e um de tarde, um no bairro [...] e um no [...], são oficinas com famílias, a gente fica até bravo quando fala que são oficinas de transferência de renda, são oficinas com famílias e daí qualquer família do território pode participar [...] mas, a maioria das pessoas [que participam das oficinas nos territórios] é de programa de transferência de renda (Assistente Social 4, 2013).

[...] é difícil a gente sentar com uma família e construir um PAF (Plano de Acompanhamento Familiar). Até pra ela [a família] entender isso é um processo, então às vezes a gente faz assim, a gente atende a família algumas vezes e depois constrói o PAF, entendeu? Porque às vezes nem dá pra sentar com a família naquele momento dependendo da situação da família (Assistente Social 3, 2013).

Pra ela [a família] entender que a gente está aqui pra além dos benefícios, que o técnico não está aqui pra avaliar benefício, avaliar entrega de cesta básica, ele está

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aqui pra avaliar a condição daquela família e o que a gente pode contribuir para aquela família, pra ela superar essa dificuldade, que é este o papel do Paif, fortalecer a família, fortalecer a comunidade. Mas, pra ela entender isso e não só pra ela, mas pra todo mundo, pra prefeitura, pra secretaria, pro serviço aqui no CRAS, a equipe técnica, essa é uma briga muito grande aqui no CRAS: a gente não está aqui pra avaliar, fazer a avaliação social pra entregar a cesta básica, quem é a gente pra definir quem come e quem não come, né? (Assistente Social 4, 2013).

Com base nisso, consideramos que o PAIF é mais um avanço no que diz respeito às

práticas históricas do trabalho com famílias na assistência social porque orienta as/os

profissionais na superação da lógica do atendimento individualizado psicossocial, do

acompanhamento voltado para a educação moral dos indivíduos e baseado nos princípios da

autoridade e benemerência, das análises imediatistas da situação social em que vivem as

famílias e da culpabilização das mesmas por sua condição de pobreza. O redimensionamento

da lógica do trabalho com famílias se afirma, cada vez mais, sob a perspectiva da luta e

ampliação dos direitos.

Apreendemos que, de certa forma e em alguns casos, o PAIF se constitui em uma

forma de enfrentar o conservadorismo na intervenção social com famílias no campo da

assistência social. Velhas práticas são combatidas com base nessa nova concepção sobre o

trabalho de assistentes sociais voltado para o acompanhamento familiar como, por exemplo, a

avaliação das famílias com base na sua organização, no seu modo de vida, na sua dinâmica de

funcionamento. O que tem ocorrido é que profissionais, representantes da gestão da política

de assistência social, sentem dificuldades em compreender a orientação do trabalho com

famílias pautada em uma dimensão teórica e prática que foge às práticas convencionais de

disciplinamento, orientação moral e ajustamento dos indivíduos e famílias que são usuários

dos CRAS. Segue abaixo o relato de uma das entrevistadas sobre a importância do trabalho

com famílias, nos moldes do que prevê o PAIF e que, segundo ela, é uma forma de

enfrentamento da questão social:

[...] porque daí, você enfrenta não só o programa da transferência de renda que está ali o dado dinheiro que, às vezes, é irrisório para a pessoa, dos outros serviços e da questão de fortalecê-la enquanto indivíduo mesmo, de fortalecer que eu tenho direitos, de que eu possa falar, de que eu tenho voz, de que eu devo ir até aquele outro equipamento lá. Aí eu acho que ele fica mais visível o trabalho social com famílias quando ele é valorizado e aplicado como ele deve ser. Não posso falar que eu estou fazendo um trabalho social de família se eu não tenho essas coisas, se eu acho que o atendimento é um atendimento pra encaminhar só. Só isso vai dar conta? (Assistente Social 4, 2013).

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Ressaltamos, porém que, o acompanhamento familiar por meio do PAIF abrange

também metodologias voltadas para a autorreflexão das famílias sobre a sua realidade, a

construção de novos projetos de vida e a transformação de suas relações pessoais e sociais

com vistas a superar situações de vulnerabilidade social. Para além das positividades deste

tipo de trabalho, velhas expressões do conservadorismo podem se renovar na prática

profissional, como é o caso da subjetivação das necessidades e condições de vida reais da

população atendida, o que pode resultar no desenvolvimento de um trabalho do tipo

terapêutico voltado, fundamentalmente, para o fortalecimento da autoestima dos indivíduos e

que tende a assumir uma leitura psicologizante do enfrentamento à questão social, conforme

verificamos em alguns depoimentos:

Porque uma coisa é você ler um livro que está lá com um manual de como cuidar do filho, né, o filho drogado, isso é uma coisa. Outra coisa é o que o assistente social, ou o psicólogo, ou o pedagogo, ou outra pessoa fala pra você fazer. Agora, outra coisa e bem mais rico é essa mãe que vivencia 24 horas e dizer pra você: olha, o meu filho era assim, né, e eu fiz desta forma e comigo deu certo. Então, são experiências que ela vai fazer, exatamente, esta troca [é a finalidade dos grupos socioeducativos] (Assistente Social 1, 2013).

Muito de reflexão, de trabalhar com que elas consigam sair desse patamar, identificar o que é o território, o que é a vulnerabilidade, quem sou eu, como é que eu me encontro nesse contexto, quais são as questões sociais que me permeiam, mas de uma forma com que elas entendam (Assistente Social 5, 2013).

[acho fundamental o trabalho com famílias] principalmente, nisso que a gente estava falando agora de ter um espaço de troca, de pensar na sua realidade, porque assim, às vezes, o usuário, a pessoa está atolada naquelas dificuldades e daí a assistência vem, o trabalho social com famílias vem e, de repente, podem propiciar àquelas famílias refletirem, repensarem a sua realidade. E daí acho que tanto o atendimento em grupo socioeducativo, como o individual porque a gente tenta fazer isso no individual também. Porque às vezes a pessoa vem a gente sabe que ela está com dificuldades mas daí ela senta aqui e aí? Por exemplo, no PAIF, mas o que você acha que pode ser feito para superar? Às vezes, a pessoa olha eu não tenho resposta, já aconteceu muito, mas ela vai pra casa no próximo atendimento já é diferente, você já vê um posicionamento diferente, às vezes um trabalho de formiguinha mesmo, às vezes, um caso ou outro que a gente vê avançando e aí muda muito (Assistente Social 3, 2013).

Nós tínhamos uma senhora que teve câncer, ela ficou doente, dependia dos irmãos, ela veio pro trabalho do CRAS, ela veio pras oficinas artesanais, pro trabalho socioeducativo, ela se descobriu. A gente fez encaminhamento pra Secretaria da Indústria e Comércio, ela tirou carteirinha de artesão. Hoje em dia [...] ela paga o aluguel dela, ela tira férias, porque ela saiu agora do Renda, [...] porque ela se reconheceu, ela se reconheceu enquanto sujeito de direitos, soube acessar os mecanismos e ela soube sair dessa situação, ela superou a situação de vulnerabilidade porque ela dependia dos irmãos, os irmãos pagavam as contas, os irmãos davam tudo pra ela [...]. Então, ela conseguiu se reconhecer e conseguiu fazer esse processo de transformação. Então, eu acho que talvez muito dessa questão da reflexão pra que as pessoas entendam quais são as questões sociais pra que a gente possa enfrentar, porque a gente só pode enfrentar aquilo que a gente conhece.

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Então, acho que disseminar muito conhecimento, disseminar muita informação pras famílias é muito importante pro enfrentamento dessas questões. Primeiro, ela tem que reconhecer qual é a situação de vulnerabilidade em que ela está, a situação social que está incidindo sobre ela pra que ela possa acessar os mecanismos pra ela poder superar. Então, acho que dentro dessa visão [o trabalho com famílias] é importante (Assistente Social 5, 2013).

Já o trabalho socioeducativo com famílias, por meio do PAIF, tem ocorrido em

alguns CRAS da seguinte maneira:

Dentro do atendimento, tem as oficinas com famílias. Na verdade, eu acho que todo o trabalho do CRAS é socioeducativo. Desde a acolhida, antes a acolhida aqui era realizada com mais pessoas e daí a assistente social explicava sobre os programas de transferência de renda, como funcionava o CRAS, mas era uma coisa mais ‘palestrona’, ela falava, as pessoas ouviam e iam embora pra casa. Todo o trabalho hoje a gente tentou focar numa coisa: que a pessoa fale, que ela traga também algumas coisas. Então, a acolhida com menor número de pessoas, em círculo, onde elas trazem também qual é a demanda. Então, o primeiro passo é ouvir as pessoas, ouvir nome, qual o seu nome? O bairro de onde você veio, o que você veio buscar no CRAS, etc. Na acolhida, a gente tenta também discutir algumas coisas, então até sobre os programas de transferência de renda, o olhar que as pessoas têm sobre as pessoas que vêm solicitar o programa de transferência de renda: que é um encostado, que não quer trabalhar, ouvir dessas pessoas o que elas acham disso, já começa ali um trabalho socioeducativo. Mas, tem também as oficinas com famílias nos territórios [...] (Assistente Social 4, 2013).

No [...], tem uma característica das pessoas do território trazerem outras pessoas pra participar e aí ele tem os temas e cada tema pode durar duas, três oficinas discutindo aquele tema. Quando a gente está findando aquele tema ou os técnicos, antes tinha psicóloga também, a gente avalia, desse tema já dá pra amarrar outra coisa aqui ou são os próprios participantes que já definem qual vai ser o próximo tema e aí cada território ele segue um rumo por conta do perfil das pessoas. Por exemplo, no [...], as pessoas antes tinham um perfil mais de não falar, estavam mais acostumados com aquela coisa do técnico falar, falar, falar e eu ouvir né. Mas a gente tentou tirar isso, pra tirar do técnico também uma visão de superpoderosa que vai lá e vai solucionar os seus problemas, não é... de trazer eles pra participar também, tentar despertar essa autonomia. Aí cada território segue um tema [...] (Assistente Social 4, 2013).

Porque aqui, quando eu cheguei, o trabalho do PAIF se resumia às reuniões socioeducativas do Renda Cidadã. E a gente começou a mudar um pouquinho o modelo, como a gente recebe muita solicitação do Fórum pra acompanhamento familiar, eles solicitavam, encaminhavam várias solicitações, porque o único lugar que tem pra encaminhar é pra cá. Então, a gente acabou entendendo que o PAIF ia priorizar os transferência de renda pela situação de vulnerabilidade porque quando a gente inclui nesses programas de transferência de renda, a gente considera o todo não só a vulnerabilidade econômica, mas também a todas as outras famílias que acessassem o CRAS e que não tivessem perfil pra transferência de renda [...] porque a vulnerabilidade não é só uma questão econômica. Então, a gente começou a fazer os grupos, hoje em dia, tem o grupo maior que é de caráter mais informativo e preventivo que a gente faz no centro, eu tenho dois grupos que a gente chama grupos de vulnerabilidade aqui no CRAS, são grupos menores. A gente traçou um perfil dessas famílias, consegue trabalhar com elas aqui quinzenalmente, um grupo de manhã que eu uso o trabalho socioeducativo junto com o grupo de artesanato que funciona bem legal também, o artesanato ocorre toda semana e eu faço o socieducativo a cada quinze dias e a gente procura priorizar as famílias que são do serviço de convivência também [...]. Então, [...] a gente faz as reuniões no próprio

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território. Foi um ganho muito grande pra eles, a equipe se desloca, vai até lá (Assistente Social 5, 2013).

Os dados acima nos mostram um novo formato e metodologias empregadas no trato

com as famílias por meio de oficinas socioeducativas, as quais são realizadas também fora do

espaço dos CRAS, em um contato mais direto com a realidade local da população, com menos

restrições de público e temas mais variados. A questão da autonomia já começa a aparecer

aqui, assistentes sociais articulam e mobilizam o diálogo entre a população de um

determinado território com a rede de serviços públicos, orientadas/os pelo princípio da

universalização dos direitos sociais, o que se mostrou como uma forte preocupação de

algumas profissionais entrevistadas:

Às vezes, a família tem renda, mas ela não tem acesso às políticas. Não tem acesso à educação, saúde, moradia, aí não vai adiantar nada ter renda. Ela está longe pra caramba, não tem acesso a nada, a gente tenta ver nesse sentido (Assistente Social 3, 2013).

Eu acho que é fundamental, mas assim, a gente é uma “vírgulazinha” [...] precisa melhorar muito, até porque aquela questão que eu te falei: não adianta a gente estar aqui e tentar melhorar, tentar ultrapassar a vulnerabilidade se fica só a assistência, a política de assistência. Aí, eu não estou falando de mim, eu estou falando da política de assistência porque eu vejo que ela é muito isolada em relação às outras, tudo o que não deu certo lá, vem pra assistência, não é? E daí, muitas vezes, a gente não consegue fazer o que é da assistência por conta dos outros [...]. Não tem mesmo a intersetorialidade, a parceria não tem (Assistente Social 3, 2013).

Eu acho que ele [o trabalho social com famílias na assistência social] é fundamental na medida que ele não precisa se reinventar porque, pelo menos dentro do CRAS, ele já está reinventado nos documentos, já está lá, está desenhado, [...] é isso que a gente quer fazer, mas ser aplicado de fato o trabalho social com famílias: o atendimento, o acompanhamento. Se ele for aplicado, aí ele é fundamental e a articulação entre as outras políticas. Eu acho que se ele existe, se ele for aplicado de fato como está lá no documento e não que o documento é certo, [...] pode ser que ele seja aplicado e, daqui a pouco, a gente veja que precisa avançar ainda mais. Mas, se pelo menos aplicar aquilo que está lá e ter uma articulação entre as outras políticas, aí ele é fundamental na medida em que ele dá aqui um suporte para a família (Assistente Social 4, 2013).

Durante a pesquisa de campo, observamos que as oficinas do PAIF se dividem em

trabalho de prevenção com as famílias e trabalho com famílias em situação de vulnerabilidade

social. Ambos são válidos nos limites da prática profissional no âmbito das políticas públicas,

mas é importante fazermos os seguintes questionamentos: como prevenir situações de risco

em uma sociedade injusta e desigual em sua estrutura? Como fazer isto de forma isolada e por

meio de ações pontuais? Empoderar e fortalecer as famílias para o enfrentamento de situações

de vulnerabilidade social, por meio da assistência social, nas condições objetivas em que essas

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se encontram? De quais armas dispomos para alcançar tal finalidade? Trabalhar com a ideia

dos riscos sociais supõe uma “aceitação”, mesmo que não seja consciente, da atual sociedade

orientada pela lógica financeira e geradora de diversos problemas sociais que bastam ser

administrados, já que sabemos que a sua eliminação não é possível. Desse modo, todos nós

estamos sujeitos a riscos independente da classe social a qual pertencemos. Esta é a nova

teoria propagada entre nós, a qual pode influenciar e tem influenciado também o exercício

profissional na assistência social.

Entre os temas discutidos durante os encontros socioeducativos com famílias,

pudemos apreender que, muitas vezes, persistem as orientações de como proceder em

situações do cotidiano, nas relações familiares e no enfrentamento de novas expressões da

questão social, além de informações referentes a critérios, regras e condicionalidades para

famílias beneficiárias de programas sociais de transferência de renda:

[...] os temas são variados. Por exemplo, a gente sempre trabalha a questão do vínculo entre filhos e mães no sentido de evitar situações de conflito, desentendimento [...], o Conselho Tutelar aqui atua bem em cima mesmo, são bem rígidos, então a gente orienta bastante nesse sentido. Coisas básicas, às vezes, pra cuidado com os próprios documentos, onde solicitar segunda via, coisas básicas que às vezes eles não tem orientação nenhuma, procurar os próprios direitos, INSS, orientação em geral. Além de outras temas que a gente sempre aborda, às vezes, de acordo com o mês, tipo mês da mulher falando um pouco sobre a Lei Maria da Penha, sobre as mulheres. [...] e pros jovens que é o que a gente está trabalhando desde março, [...], temas variados, temas mais específicos pros jovens: drogas, gravidez na adolescência, violência, essas coisas (Assistente Social 1, 2013).

Bom, o grande problema sempre é a questão do uso de drogas, ele sempre volta à tona, o uso de drogas. [...] um tema que eu sugeri pra esse mês que o grupo acatou, gostou da idéia foi em relação à autoridade familiar (Assistente Social 2, 2013).

A gente sempre tem que fazer pelo menos duas ou três reuniões referentes aos benefícios, critérios, aos programas sociais (Assistente Social 1, 2013).

A gente tem dois tipos de grupos, a gente pega o pessoal da advertência e do bloqueio que é o grupo mais geral, e aí tem mais gente, e a gente leva material em Power point, tem um vídeo pra exibir e tem também situações-problemas que a gente coloca pra eles, mas esse grupo é maior. E daí, o grupo de suspensão é menor, a gente tenta colocar mais ou menos oito beneficiários e daí a gente evitar falar mais, a gente não fala mais do benefício, a gente só vai dar uma breve explicação e aí pede pra cada um expor a sua situação, porque acha que está em descumprimento, o que está acontecendo, porque o nosso objetivo com esse trabalho é ver o que está por trás. Se é uma demanda de acompanhamento, se é uma demanda da assistência, se de repente a gente vai ter que encaminhar. Então assim esses grupos que são menores, os maiores também são muito legais porque depois que o pessoal entende, depois que a gente orienta e começa mais a deixar eles falarem e tudo e tem as situações-problemas já fica melhor, mas o grupo de suspensão como ele é menor, ele acaba até tendo mais qualidade porque a gente já começa ele falando: “Olha, o benefício é isso, isso e isso, os descumprimentos são esses, esses e esses. E aí, o que vocês acham que está acontecendo?”. E, daí, a gente pede pra cada um falar (Assistente Social 3, 2013).

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A PNAS-2004 e o PAIF tratam também do trabalho social voltado para a conquista

de autonomia das famílias usuárias da assistência social:

A proteção social deve garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; de convívio ou vivência familiar (BRASIL, 2004, p. 25).

Por segurança da acolhida, entende-se como uma das seguranças primordiais da política de assistência social. Ela opera com a provisão de necessidades humanas que começa com os direitos à alimentação, ao vestuário e ao abrigo, próprios à vida humana em sociedade. A conquista da autonomia na provisão dessas necessidades básicas é a orientação desta segurança da assistência social. É possível, todavia, que alguns indivíduos não conquistem por toda a sua vida, ou por um período dela, a autonomia destas provisões básicas, por exemplo, pela idade- uma criança ou um idoso-, por alguma deficiência ou por uma restrição momentânea ou contínua da saúde física e mental (BRASIL, 2004, p. 25-26).

As ações do PAIF devem ser planejadas e avaliadas com a participação das famílias usuárias, das organizações e movimentos populares do território, visando o aperfeiçoamento do Serviço, a partir de sua melhor adequação às necessidades locais, bem como o fortalecimento do protagonismo destas famílias, dos espaços de participação democrática e de instâncias de controle social (BRASIL, 2012, p. 14).

Promover aquisições materiais e sociais, potencializando o protagonismo e autonomia das famílias e comunidades (BRASIL, 2012, p. 15).

Constatamos que a educação para a autonomia das famílias usuárias da assistência

social se dá nas ações do PAIF e também nas atividades referentes aos programas de

transferência de renda:

No bairro [...], a gente foi tentar trabalhar primeiro mobilização social, por conta de ser um bairro que não tem nada [...]. No bairro [...], a gente já conseguiu falar, por exemplo, sobre família tanto como era a família antigamente, como ela é hoje, sobre educação que é um tema que pega bastante lá, a relação entre a família, a comunidade e a escola. Aqui no bairro [...], a gente começou falando sobre mobilização e daí foi destrinchando vários outros temas, a gente conseguiu recentemente ir na Câmara, umas duas vezes [...] pra saber como é que funciona o trabalho lá da Câmara (Assistente Social 4, 2013).

A gente trabalhou no início do ano a questão do acesso aos direitos: como acessar cada equipamento público. Daí, nós trabalhamos a árvore dos problemas com elas, a questão de território, identificar o território onde eu moro [...]. Então, essa questão do pertencimento, a gente trabalhou pertencimento e também pertencimento social, nós trabalhamos também sobre vínculos familiares a gente costuma trabalhar também todas as temáticas, por exemplo, dia 18 de maio dia do combate ao abuso e exploração sexual, aproveita as datas e faz um trabalho até porque a gente identificou que tinha muita situação de violência sexual muito velada e nos grupos isso saiu muito, saíram várias histórias e daí a gente trabalhou a questão do acesso ao Conselho Tutelar, ao próprio Fórum, à OAB, aos órgãos do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, trabalhamos a questão dos conselhos, o que são os conselhos, a participação cidadã, a conferência, a gente trabalhou isso muito

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forte com elas também. Inclusive, a gente teve uma participação muito boa na conferência [...]. Participaram ativamente, as propostas foram muito boas, elas conseguiram na medida do entendimento, embora algumas tenham uma limitação, mas o grupo conseguiu discutir e trazer uma idéia e foi muito bacana. [...] a gente começou, desde o início do ano, a trabalhar o que eram as políticas, cada equipamento e o que era a política de assistência, o que era vulnerabilidade social, o que era o trabalho do CRAS, o que nós fazíamos, o que elas entendiam pelo Centro de Referência da Assistência Social, então elas conseguiram entender melhor. Então, a gente trabalhou a participação cidadã. Agora, sobre drogas e, no final do ano, a gente vai trabalhar a questão de vínculos novamente. Mas a gente procura outras situações temáticas, 12 de junho, trabalho infantil, violência sexual, mês da mulher. No mês da mulher, a gente fez a semana da mulher, [...] a gente teve palestra da OAB falando sobre direito de família, a gente teve uma palestra da Saúde falando sobre saúde da mulher, prevenção, planejamento familiar, quando a Secretaria da Mulher foi lançada, a gente tem uma Secretaria da Mulher que foi inaugurada neste ano e elas começaram a acessar lá e entender que elas podem acessar lá também (Assistente Social 5, 2013).

As regulamentações de direitos humanos, em todos os países onde elas vigoram,

introduzem a autonomia enquanto uma necessidade humana básica. Portanto, a falta do

exercício da autonomia afeta diretamente o usufruto que os sujeitos podem ter de seus direitos

básicos enquanto humanos e cidadãos, na medida em que estes se sentem incapazes de

expressar posicionamentos ativos e críticos na sociedade (PEREIRA, 2011). Sob essa

perspectiva, as políticas públicas, em geral, incorporaram o conceito de autonomia em seu

conteúdo teórico, de modo que os seus gestores e executores tentam colocá-lo em prática por

meio de várias ações que buscam garantir uma maior participação dos indivíduos nos espaços

fundamentais dessa sociedade, como a família, o trabalho, as instituições públicas e privadas,

o mercado de consumo e vários outros. Na atual política de assistência social brasileira, o

conceito de autonomia tem um significado ainda mais relevante devido ao histórico da

profissão que é marcado por práticas assistencialistas e filantrópicas e a luta dos profissionais

que, inclusive, expressa-se na conquista da PNAS-2004, para extinguir essa velha concepção

de assistência social e cultivar uma nova concepção que a insere no campo das políticas

públicas e dos direitos sociais. Além do estímulo à autonomia por meio da garantia de

seguranças sociais que possibilitam aos indivíduos novas vivências e alternativas, estão

previstas na política de assistência brasileira ações de cunho político e coletivo, em conjunto

com a população usuária.

Durante a pesquisa, identificamos que na prática profissional de assistentes sociais

nos CRAS, a referência ao conceito de autonomia é utilizada para situar práticas de combate

ao assistencialismo e ao paternalismo, típicas da assistência social ao longo do seu

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desenvolvimento, como podemos evidenciar nesse depoimento sobre a importância do

trabalho com famílias para o enfrentamento da questão social:

[...] cortar um pouco com o assistencialismo que tinha antes e que já é histórico no município, era muito forte nas instituições, ir cortando aos poucos isso e fazer eles entenderem que eles têm que ir, buscar e ir atrás de melhorias pra própria vida, que esses benefícios que a gente faz é uma coisa temporária. O socioeducativo acho que trabalha bem isso: de promover a autonomia mesmo dessas famílias (Assistente Social 1, 2013).

Acho que a gente tem que reconhecer, saber quais são os papéis e desmistificar essa questão do favor que é uma coisa que me incomoda muito aqui no caso, de que tudo é favor, tudo é no assistencialismo. “Não, está bom do jeito que está, eu não preciso mais porque o que você está fazendo já é um favor muito grande!” (Assistente Social 5, 2013).

Todavia, também existem discursos relacionados ao trabalho com famílias na

assistência social que visa estimular a busca por autonomia nos sujeitos e suas famílias por

meio de esforços pessoais, da autossuperação e da “conscientização” individual, assim como

do acesso a políticas e serviços públicos:

Acho que (o trabalho socioeducativo com famílias para o enfrentamento da questão social e para a profissão) é importante porque, às vezes, eles não têm um norte, não sabem onde buscar os seus direitos, não sabem lutar por alguma coisa, por algo; ou não sabem solicitar, onde ir. Então, esse trabalho socioeducativo, não só no socioeducativo, mas nos atendimento em geral que a gente leva a informação, leva uma orientação pra eles, eu acho que auxilia no sentido de estimular a independência e a autonomia da família dos usuários (Assistente Social 1, 2013).

As famílias que nos procuravam antes na assistência social [...], tudo pra eles era muita novidade, então você conseguia trabalhar de uma forma de conscientizar que eles tinham direitos, mas também tinham deveres, enfim, mas como se fosse uma esponja, eles realmente absorviam as informações e davam muito valor aos programas (Assistente Social 2, 2013).

O objetivo maior (do trabalho socioeducativo com famílias para o enfrentamento da questão social e para a profissão) é informação, é troca de idéias, né? E fazer com que elas abram o leque de oportunidades delas. Então, muitas delas vêm pra cá achando que é só uma “reuniãozinha”, então muitas vêm assim, já teve caso de pessoa chegar e falar: olha, eu só vim pra assinar! Então, você conscientizar que não é assinar e receber e sim, você vem participa, você colabora com a reunião, a troca de idéias, a sua experiência de vida, você trocando a sua experiência de vida com outras pessoas, você consegue muitas vezes até melhorar a sua situação dentro de casa (Assistente Social 2, 2013).

[...] através da reunião socioeducativa, o profissional ele é capaz de mostrar pra essa pessoa que existe caminho, existe saída, porque muitas vezes a pessoa não vê saída e dentro de uma reunião socioeducativa, através dos temas que são discutidos, ela consegue ver uma saída (Assistente Social 2, 2013).

[...] eu costumo dizer que programa social não é pra desocupado, não é pra desempregado, ela é pra quem tem ocupação, ela é pra quem quer mudar de vida,

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essa é a minha fala sempre pras famílias que vêm procurar programa social, pra mostrar que nós não estamos aqui pra dar cesta básica, pra dar dinheiro [...] (Assistente Social 2, 2013).

Acho que a finalidade do trabalho com famílias, é pra que essas famílias, em primeiro lugar, sejam reconhecidas como sujeitos de direitos que elas têm um espaço em que se reconheçam pertencentes àquele território e a finalidade é, de repente, ao final, não é nós definirmos o que nós achamos melhor pra família, mas que a família entre nesse processo de reflexão, que a família entenda quais são as possibilidades que ela pode acessar e que ela mesma crie essa questão da autonomia, da emancipação (Assistente Social 5, 2013).

[...] eu acho muito interessante (o trabalho com famílias para o enfrentamento da questão social e para o Serviço Social) porque é importante na medida em que essas famílias são sujeitos de direitos, compõem o território, o local onde elas moram e pro enfrentamento das questões sociais porque elas passam a perceber um processo de reflexão, de se entenderem enquanto sujeitos de direitos, o que são essas questões sociais, o que é o território onde eu moro, o que é essa vulnerabilidade, como eu posso superar, o que eu tenho de potencialidade, o que eu tenho de bom que de repente eu posso conseguir superar essa situação de vulnerabilidade social (Assistente Social 5, 2013).

Compreendemos ainda que a priorização dos programas de transferência de renda no

trabalho com famílias, desenvolvido nos CRAS, constitui-se em um fator muito relevante para

que o foco do trabalho com famílias na assistência social hoje esteja na busca de autonomia,

isto é, faz-se necessário que assistentes sociais “preparem” as famílias para o desligamento

dos programas sociais e para a “independência” econômica, passado o “prazo de validade” do

recebimento de subsídio financeiro do governo por parte dessas famílias, conforme podemos

evidenciar no seguinte relato:

Eu sempre começo as reuniões do Renda Mínima, na primeira reunião que eu faço o contrato, contando a minha própria experiência que quando eu saí de [...], que eu fiquei desempregada com filho pequeno também, peguei o dinheirinho e transformei em chocolate, resumindo, o chocolate virou advogada. Então, paguei o curso de direito inteirinho com o dinheiro do chocolate. Então, se eu consegui, elas também vão conseguir trazendo pra vida prática, quando você faz essa troca de experiência ela é realmente muito importante. Isso é o trabalho do CRAS (Assistente Social 2, 2013).

Portanto, o trabalho com famílias na assistência social voltado para a garantia de

autonomia pode se dar de diversas formas, baseado em diferentes interpretações por parte

das/dos assistentes sociais. Compreendemos que uma das positividades que a execução da

PNAS-2004 nos apresenta, neste âmbito, é a aposta no “outro lado da moeda” das políticas

sociais, ou seja, no seu poder de organização política das massas e de conquistas no que se

refere à legislação social, as quais proporcionam melhores condições de vida para a população

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e o fortalecimento da luta dos trabalhadores, como pudemos evidenciar em alguns dos CRAS

pesquisados:

[Uma das finalidades do trabalho socioeducativo com famílias] é de que essas famílias percebam, “descristalizem” uma imagem de que assim: “o problema é seu”. Então, o desemprego é seu, o problema é meu. Quando eles não, viram que o problema está pegando pra todo mundo (Assistente Social 4, 2013).

Sobre isso, Paiva (2006, p. 7) nos coloca que:

No caso da assistência social, significa romper definitivamente com seu aprisionamento numa esfera governamental periférica ou residual, reprodutora de estratégias usuais de mistificação das desigualdades e de ocultamento das suas causas, que reduz suas respostas a programas pontuais, pretensamente reformadores das condutas individuais e grupais, sem qualquer conteúdo ou potência transformadora libertária. Essa tradicional demarcação lhe imprimiu um mistificado caráter de ação meramente adjutória- como forma compensatória e parcial de alívio da pobreza- e revestiu suas ações e medidas de precários aparatos, em termos de recursos financeiros, humanos e materiais. Tal versão conservadora gerou também grave desresponsabilização governamental, não obstante o marco político-legal estabelecido desde 1988 e depois em 1993 com a LOAS, ao secundarizar esta área de ação como não merecedora de sanção pública relevante. Do que se trata, agora, é desencadear, ademais, uma contundente ruptura com esse legado de precarização e focalização dos serviços, tarefa central para o novo Sistema Único da Assistência Social- SUAS.

Ao contrário disso, entendemos que a conquista de autonomia, enquanto diretriz do

trabalho com famílias nos CRAS, pode ganhar um sentido conservador durante a prática

profissional, se atribuir aos usuários e usuárias da assistência social a responsabilidade por

resolver os seus problemas que não são (apenas) “pessoais”, são sociais, portanto, não se

resolvem só com “boa vontade”, trocas de experiências em grupos, autossuficiência. A

conquista da autonomia política, econômica, social pressupõe mudanças estruturais. Ao

trabalhar a questão da autonomia com famílias na assistência social, o nosso norte deve estar

para além dos objetivos de transformação pessoal que podem ser resolvidos a nível individual,

por meio de ações terapêuticas e fortalecimento da autoestima.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crítica arrancou as flores fantásticas do grilhão,

não para que o homem carregue um grilhão sem fantasia,

sem consolo, mas para que ele jogue fora o grilhão

e a flor viva rebente.

MARX

Nessa dissertação buscamos demonstrar que o conservadorismo não abarca ideias

imparciais que valorizam o passado e buscam manter as tradições, como se essas fossem

inatas a todos os seres humanos. Durante a pesquisa bibliográfica sobre este tema,

compreendemos que essa forma de pensamento emergiu num período específico da história

da humanidade, na passagem da sociedade feudal para a sociedade capitalista, permanecendo

viva na sociedade contemporânea e se expressando na cultura, na política, na moral, na

ideologia. É certo que o pensamento conservador sofreu transformações, mas o seu conteúdo

essencial está nas ideias que são produzidas para manter uma dada ordem ou estado de coisas

que são convenientes para aqueles que as defendem. Nesse sentido, as teorias sociais

elaboradas nos vários períodos históricos foram e ainda são peças fundamentais para a difusão

desse tipo de ideologia, por isso buscamos, nesse trabalho, fazer breves referências a algumas

dessas formas de transmitir conhecimentos que reforçam e, em alguns casos, como é o caso da

teoria social marxiana, contestam o conservadorismo.

Constatamos também que o pensamento conservador no Brasil se instituiu sob

características muito peculiares, tendo em vista a realidade sócio-histórica do nosso país. A

ideologia do colonialismo, com traços de racismo e autoritarismo, conforme analisada por

Sodré (1965), foi marcante nas teorias conservadoras elaboradas por pensadores brasileiros. A

questão social foi reconhecida no país muito tardiamente, nos anos 1930, de maneira que o

Estado tomou a frente de sua “gestão”, por vias paternalistas e clientelistas, e seguiu numa

tentativa frequente de excluir o povo de qualquer decisão política nacional, adiando assim o

processo democrático no país.

Foi num cenário de intensas transformações políticas e econômicas no Brasil que

teve início a Ação Social Católica junto às famílias operárias e pobres, para oferecer

assistência a essas pessoas e reforçar a doutrina religiosa em declínio naquele momento.

Desse movimento nasceu o Serviço Social brasileiro, muito ligado ainda à prática assistencial

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junto às famílias de trabalhadores e de pessoas que eram consideradas inválidas, indigentes,

incapazes. A profissão nasceu em um contexto do reformismo conservador, o que lhe atribuiu

características essencialmente conservadoras que se renovam ao longo da evolução do

Serviço Social no Brasil, como explica Iamamoto (2008). Portanto, o trabalho de assistentes

sociais se fundamenta em ideias que sofreram influência da Doutrina Social Católica, de

diferentes linhas de análise das Ciências Sociais, como o positivismo e o estrutural-

funcionalismo, do marxismo e do pensamento pós-moderno, entre outros. É certo que o

pensamento conservador sempre teve uma presença forte no desenrolar das várias tendências

teórico-metodológicas no interior da profissão.

Contudo, é certo lembrarmos também que, desde fins da década de 1950, um

processo de erosão do Serviço Social tradicional, como denominou Netto (1998), iniciou-se

no meio profissional e configurou um movimento dinâmico e contraditório de reforçar e

questionar concepções e práticas conservadoras dos (as) assistentes sociais, como foi o caso

do Movimento de Reconceituação do Serviço Social nos países da América Latina e do

processo de intenção de ruptura com o Serviço Social tradicional (NETTO, 1998).

Entretanto, o conservadorismo é uma forma de pensamento que está ainda muito viva na

prática profissional de assistentes sociais na contemporaneidade por alguns motivos, entre

eles, o fato de que as condições sócio-históricas, na qual emergiu a profissão, favoreceram

essa vinculação entre o pensamento conservador e o Serviço Social e de que, no contexto de

barbárie em que vivemos hoje, velhas tendências do conservadorismo se (re) configuram na

vida social.

Ao longo da trajetória de amadurecimento do Serviço Social, a categoria de

assistentes sociais brasileiros fortaleceu os espaços representativos da profissão e participou

de importantes movimentos históricos da luta por direitos na sociedade brasileira, como a

participação no Congresso da Virada em 1979, a aprovação da Constituição Federal em 1988,

a regulamentação da LOAS em 1993, do Código de Ética Profissional neste mesmo ano, da

Lei de Diretrizes Curriculares para o Curso de Serviço Social, em 1996, da aprovação da

Política Nacional de Assistência Social em 2004, dentre tantos outros. Tal processo continua

em movimento, como pudemos evidenciar, mais recentemente, no XIV Congresso Brasileiro

de Assistentes Sociais, realizado em outubro de 2013, em São Paulo, com o seguinte tema:

“Impactos da crise do capital nas políticas sociais e no trabalho do/a assistente social”, além

de tantas outras campanhas, formações e eventos que vêm sendo realizados pelos Conselhos

Regionais de Serviço Social (CRESS) espalhados pelo Brasil afora, pelo Conselho Federal de

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Serviço Social (CFESS), pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social

(ABEPSS), pela Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social (ENESSO), por

profissionais de Serviço Social e movimentos sociais em todo o país.

Entretanto, fica para nós o seguinte questionamento: não seria necessário um

investimento ainda maior em debates acerca das incidências do conservadorismo na prática

profissional? Poderiam ser nos espaços da categoria profissional, nas universidades, nas

instituições onde as/os assistentes sociais atuam. Afinal, em muitos casos, o modo como a

população e as suas demandas são tratadas por profissionais de Serviço Social,

especificamente – conforme discutido, isso ocorre em outras profissões também –, chega a

assumir um tom criminoso que pode gerar impactos muito negativos na vida das pessoas e

contribui para corroborar uma ideologia contrária a qualquer forma de transformação social e

aos compromissos ético-políticos do nosso projeto profissional.

A especulação financeira no tempo presente atinge a dinâmica dos espaços de

produção e das relações de trabalho. Problemas como o desemprego, o agravamento da

questão social e a transformação de políticas sociais públicas em programas cada vez mais

focalizados expressam os impactos causados pela ofensiva do capital na sociedade

contemporânea, como explica Iamamoto (2013). Mais do que isso, o capital invade todas as

esferas da vida social, as demais políticas públicas como a Saúde, a Educação, a Previdência

Social, entre outras, mercantilizam-se com maior intensidade, as desigualdades sociais

crescem, as relações se desumanizam e o dinheiro assume um papel de destaque cada vez

maior, as crises do capital são mais constantes, os processos de globalização e mundialização

do capital geram novas formas de relações políticas e conflitos entre as nações e os seus

povos. Diante dessa conjuntura, a população em geral tende a aderir a teorias (neo)

conservadoras e opiniões preconceituosas baseadas no senso comum para explicar e lidar com

a realidade social.

Muitos estudiosos da questão social na contemporaneidade afirmam que essa

continua a ser tratada como algo natural ao processo de desenvolvimento econômico dos

países capitalistas, ao que se soma a ideia “plantada em nossas cabeças” de que vivemos

numa era em que não há mais possibilidades de se construir uma nova sociabilidade. Outra

forma de compreender e explicar a realidade contemporânea é por meio da criminalização de

pessoas pobres e manifestações populares e, desse modo, a questão social continua a ser

tratada como “caso de polícia” no Brasil. A fiscalização das condições de vida e dos hábitos

da população trabalhadora e pobre, enquanto uma forma de controle da desigualdade social,

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ainda é um referencial importante para análises sociais baseadas na ideologia conservadora

que não é própria apenas do senso comum, mas também de teorias científicas, conforme

vimos ao longo deste trabalho. Muito relacionada com isso é a postura das pessoas que

moralizam a questão social, ou seja, interpretam a problemática social como problemas

oriundos dos indivíduos que “são acomodados”, “não se esforçam”, são portadores de uma

“personalidade duvidosa” ou da falta de religiosidade.

As políticas sociais na atualidade são formuladas com o foco nas necessidades de

recuperação do capital, por isso, o cumprimento de metas da política econômica dos governos

no combate às crises capitalistas orienta o conteúdo dessas políticas em vários países do

mundo. No caso dos países europeus, que tiveram um sistema de proteção social ativo

viabilizado pelo Welfare State, as políticas sociais têm se (re)configurado resultando em

perdas de direitos para os trabalhadores e pessoas pobres num contexto de grandes tensões

sociais entre o povo e os governos vigentes, conforme estamos acompanhando pela mídia. Já

os países menos desenvolvidos, como é o caso do Brasil, seguem orientações de organismos

multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, por exemplo, para combater a pobreza e atingir

índices sociais aceitáveis para um país considerado “desenvolvido”. O resultado disso é o

avanço da privatização das políticas de proteção social, a transformação de políticas sociais

em medidas cada vez mais residuais, o baixo investimento nas políticas públicas de Saúde,

Educação, Habitação, Previdência Social, etc., a precarização desses serviços. Dessa maneira,

assistentes sociais são, constantemente, chamados para atuarem como meros executores de

políticas de governo, fiscalizadores e gestores da pobreza, agentes responsáveis pela

seletividade do público usuário, avaliadores de condições socioeconômicas da população,

“olheiros” do Poder Judiciário, orientadores, disciplinadores, atores auxiliares na

disseminação de uma ideologia dominante, e todas essas tarefas são exercidas por esses

profissionais em condições cada vez mais precárias de trabalho.

O leitor ou leitora desse trabalho pode estar se perguntando: mas, essas não são

funções inerentes à prática de assistentes sociais, as quais foram sendo construídas ao longo

da sua história? Defendemos que se trata de funções que foram sendo atribuídas

historicamente aos profissionais de Serviço Social, especialmente, àquelas/àqueles que

executam políticas estatais. No entanto, como afirma Barroco (2011), há lutas que buscam

romper com orientações teóricas e práticas (neo) conservadoras, o Serviço Social está

engajado nestas lutas e, mesmo que essas lutas sejam sociais e não apenas profissionais,

como explica Mota (2010), temos um papel importante nesse processo, de reflexão sobre os

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determinantes sócio-históricos que incidem sobre a realidade da população pobre e

trabalhadora, os quais reforçam ideias conservadoras, que refletem no nosso campo

profissional. O nosso agir profissional pode ser crítico e questionador, comprometido com a

transformação social.

Compreendemos que a política de assistência social brasileira hoje é uma política

pública de Seguridade Social, avançada no que diz respeito ao seu conteúdo conceitual, às

novas bases organizacionais que ela instaura nesse campo e ao modo como esta foi

construída, por meio da participação popular e democrática, se considerarmos a sua trajetória

histórica. Consideramos que, mesmo com dificuldades, ela tem conquistado bons resultados

no que se refere à ruptura com práticas clientelistas, assistencialistas e caritativas, as quais

desafiam a consolidação da assistência social enquanto um direito de todos garantido pelo

Estado.

No entanto, a materialização dos serviços socioassistenciais e das demais ações

previstas nessa regulamentação não poderiam deixar de expressar, em sua concretude,

tendências (neo) conservadoras do tratamento dado à questão social nos dias atuais por um

Estado capitalista que responde às demandas sociais nessa sociedade, de maneira a satisfazer

prioritariamente os interesses de poucos grupos detentores do poder. Foi por isso que

decidimos, nessa pesquisa, investigar as expressões do conservadorismo no trabalho com

famílias realizado por assistentes sociais, sabendo que os modos de ser conservador

identificados nessa prática são produto da história e da realidade que vivenciamos hoje. Sendo

assim, o exercício profissional na política de assistência social cumpre o seu papel limitado de

reconhecimento e legalização dos direitos das classes subalternas, “mediações fundamentais

para o trabalho do assistente social” (IAMAMOTO, 2013), mas nos deixa desafios

importantes no que diz respeito à aproximação e comprometimento com as lutas da classe

trabalhadora e dos movimentos sociais.

Ao longo da pesquisa, verificamos que o lugar das famílias na política de assistência

social brasileira é central e isso se deve ao próprio significado da família na sociedade

capitalista, os valores e as funções que estão em torno dela como a ordem, a hierarquia, a

autoridade, a instituição da moral. Para o pensamento conservador, a família é célula central

na sociedade porque contribui para o processo civilizatório dos indivíduos e o funcionamento

harmônico do modelo societário vigente. As políticas públicas incorporam as famílias como

público principal dos serviços oferecidos e como eixo das ações nesse setor com o intuito de

efetivar medidas reformistas e de combate a vários problemas sociais, mas que, muitas vezes,

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pode se configurar na criação de novas responsabilidades para as famílias que são de ordem

macrossocietária, além do reforço de papéis tradicionais na esfera doméstica e no mercado

de trabalho, principalmente, no que se refere às mulheres, como explicam Castilho e Carloto

(2010, p. 20):

[...] a responsabilização da família na proteção social [...] sobrecarrega a mulher, à medida que a mesma além da necessária inserção no mercado de trabalho, deve dar conta das tarefas domésticas e dos cuidados dos membros mais fragilizados, sem o devido suporte público.

No caso da PNAS-2004, por um lado, a “matricialidade sociofamiliar” se traduz em

avanços quando: a) determina que o conhecimento das circunstâncias (o que inclui o

território) em que vivem as famílias é fundamental para o seu atendimento; b) tem por

objetivo fortalecer vínculos familiares e comunitários e não romper com eles, como era feito,

há tempos, para punir as famílias pobres por “negligência”; c) procura possibilitar o acesso

das famílias à rede de serviços socioassistenciais do local onde elas moram; d) estimula a

participação destas na construção de uma política que antes era tuteladora e assistencialista, e

agora se configura como um direito social. Por outro lado, a transformação da diretriz da

centralidade na família em uma lógica do “familismo” nas políticas sociais é uma

preocupação na atualidade já que, ao serem executadas, as ações com as famílias podem focar

mais na capacitação individual dos membros desses grupos para o enfrentamento das

desigualdades sociais e, cada vez menos, na intervenção junto aos seus determinantes.

Durante a pesquisa de campo, identificamos que os programas, projetos, benefícios e

serviços socioassistenciais desenvolvidos nos CRAS estão quase totalmente voltados para as

famílias, as quais residem no território de abrangência da instituição, conforme prescreve a

PNAS-2004 e o SUAS. A atuação das/dos assistentes sociais e as atividades que

desempenham nesses espaços se concentram no trabalho que tem como público prioritário as

famílias em situação de vulnerabilidade social. Com base no conceito de família definido pela

PNAS-2004, assistentes sociais que atuam na política de assistência social buscam conhecer

as famílias dos indivíduos que procuram os CRAS e a realidade social na qual essas vivem,

por meio de entrevistas, visitas domiciliares, atendimentos individuais e grupais, etc. Apesar

dos instrumentos de trabalho para a realização dessas tarefas terem sofrido poucas mudanças,

a apreensão teórica sobre o conceito de família e sobre o público usuário da assistência social

expressa modificações se considerarmos os discursos das profissionais entrevistadas, que são

bastante coerentes com o texto operacional das atuais normativas, segundo as quais a família é

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“um conjunto de pessoas, unidas por laços consangüíneos afetivos e/ou de solidariedade- que

se constitui em um espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias”

(BRASIL, 2012, p. 11) e o público usuário da assistência social se constitui de “cidadãos e

grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos” (BRASIL, 2004, p. 27).

Ao mesmo tempo em que esse discurso “sintonizado” com o conteúdo da nova

política de assistência social foi proferido com ênfase nas entrevistas, também compareceram

estigmas e preconceitos sobre as famílias pobres usuárias da assistência, os quais ainda

orientam a prática profissional de algumas/alguns profissionais, como evidenciamos nas

respostas das entrevistadas que demonstraram considerar que algumas famílias que procuram

os serviços dos CRAS são “acomodadas”.

Isso sinaliza que as ideias realmente se constroem a partir da realidade em que

vivemos, conforme localizamos nas análises de Marx, baseadas no materialismo histórico. No

atual contexto, fazemos uma leitura imediatista do mundo e dos fatos, o que expressa o

processo de alienação que faz parte da nossa realidade. A exploração econômica e social é

produto das ações humanas, da apropriação desigual de riquezas socialmente produzidas. Os

resultados disso, no nosso dia a dia, são muitos, entre eles, o desemprego, as más condições

de trabalho, a falta de qualidade de vida, etc. A análise da realidade com base nessa

concepção ontológica está tão distante de nós e a expressão disso se dá no trabalho alienado,

em que não nos reconhecemos e não reconhecemos os outros enquanto seres humanos, em sua

genericidade e seu potencial transformador. As relações humanas se reduzem a relações

coisificadas, mediadas pelo estranhamento, e, desse modo, passamos a desempenhar

atividades de forma mecânica e superficial. A ideologia conservadora reforça esse processo de

alienação e estranhamento, enquanto as ideologias de caráter mais emancipatório têm como

finalidade desvendá-lo e denunciá-lo.

Na condição de trabalhadores assalariados, ao sofrermos as interferências inerentes

às condições sociais em que vivemos e ao processo de trabalho como, por exemplo, a

alienação e o estranhamento, comumente, exercemos as nossas funções profissionais baseadas

no senso comum e em atitudes preconceituosas, afinal, a alienação e o estranhamento

alcançam múltiplas dimensões da vida. Porém, há também a possibilidade de escolhas no

campo político-ideológico que direcionam a nossa prática profissional para uma análise mais

crítica da realidade e comprometida com a superação da ordem social vigente.

No caso das assistentes sociais, sujeitos de pesquisa da presente investigação, que

proferiram um discurso abrangente do que vem a ser as situações de vulnerabilidade e risco

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social (desde a inserção precária no mundo do trabalho até a vitimização por situações de

preconceito, entre outras) e que, quanto à prática profissional, revelaram aplicar juízos

moralistas sobre a condição social em que as famílias se encontram, avaliamos a presença de

uma incoerência que aponta os efeitos do processo de alienação e estranhamento a que

estamos sujeitos ou a opção por posicionamentos condizentes com uma ideologia

conservadora e dominante.

Novos parâmetros conceituais e jurídicos constituem a assistência social como uma

política de proteção social, ampliando o seu público usuário para pessoas que se encontram

em situações de vulnerabilidade e riscos, o que significa dizer que, além das pessoas

desempregadas e extremamente pobres, a assistência social passou a atender outros indivíduos

e grupos que estão passando por diferentes situações, como perda e fragilidade de vínculos

afetivos, pessoas inseridas precariamente no mercado de trabalho, indivíduos com identidades

estigmatizadas, entre outras.

Para as profissionais que entrevistamos, esta nova definição do público usuário da

política de assistência social foi bem assimilada durante a prática profissional cotidiana e

todas elas concordaram com essa nova concepção. Em alguns casos, contudo, houve uma

estigmatização ainda maior das famílias e dos sujeitos que vivem situações de extrema

vulnerabilidade social. No que tange a essa estigmatização, a análise profissional limitou-se a

uma leitura parcial da problemática social, com base em situações isoladas, o que configura os

velhos atendimentos emergenciais que as/os assistentes sociais são solicitados a fazer. Em

outros casos, a nova definição funcionou como um instrumento de combate à lógica focalista

dos atuais programas de governo, que delimitam a renda para o atendimento na assistência

social. A partir da análise desses dados, verificamos que, dependendo da forma como o

conceito de vulnerabilidade social é apreendido e incorporado no plano de trabalho de

assistentes sociais nos CRAS, pode haver uma despolitização do significado da pobreza em

nossos espaços profissionais, na medida em que ela “é compreendida como mero deslize do

êxito do capital, e não como parte indissociável de sua reprodução ampliada e crise”

(IAMAMOTO, 2013, p. 16), portanto, como passível de resolução ou redução por meio das

transferências de renda, dos encontros socioeducativos, encaminhamentos e atendimentos

individualizados.

As políticas sociais contemporâneas se pautam na lógica dos riscos sociais e “gerir os

riscos” é o mesmo que “administrar o existente” (IAMAMOTO, 2013). Além disso, quando

aceitamos a noção de risco social, trabalhamos para o “empoderamento” das pessoas de modo

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que elas saiam das situações de risco, sendo que um dos objetivos é integrá-las à sociedade

para lidar com os riscos do mercado e outros. Nesse sentido, deparamo-nos com o desafio de

aderir a essa tendência que incide sobre a nossa prática profissional ou buscar desvelá-la.

Identificamos também, durante a pesquisa de campo, que a execução de programas

sociais de transferência de renda é prevalecente se compararmos com a implementação dos

serviços socioassistenciais previstos na PNAS-2004. Constatamos que há uma enorme

procura por tais programas, o que faz com que profissionais dos CRAS sejam pressionadas

por gestores da política de assistência social para desempenhar tarefas relativas à transferência

de renda, o que ocupa grande parte do seu tempo de trabalho. Ao longo da pesquisa

bibliográfica, já vínhamos apontando para os estudos que demonstram que a atual conjuntura

mundial e brasileira caminha para a construção de políticas sociais cada vez mais focalizadas

no combate à extrema pobreza como uma forma de atingir o desenvolvimento econômico e

construir uma “sociedade melhor”.

Ideólogos conservadores têm apoiado essas políticas de governo e setores da classe

média brasileira as têm repudiado, sem qualquer fundamentação teórica que valha a pena ser

considerada. Compreendemos que os resultados positivos desses programas no combate

focalizado e pontual à extrema pobreza devem ser considerados tendo em vista os objetivos e

o alcance limitado das políticas sociais na sociedade capitalista. Todavia, recorremos às ideias

marxianas que nos levam a refletir sobre as medidas estatais de assistência aos pobres e

trabalhadores que não atingem as raízes dos males sociais na sociedade capitalista. A partir

dessas reflexões, concluímos que a efetivação de políticas sociais de qualidade (que podem

incluir também os programas de transferência de renda, no caso da assistência social) é

necessária para o enfrentamento das desigualdades sociais no marco histórico que

vivenciamos, no entanto, deve ser compreendida como um degrau para um longo caminho a

ser traçado em direção à conquista de uma sociabilidade humana verdadeiramente justa. O

trabalho de assistentes sociais com foco na execução de programas sociais de transferência de

renda, em que profissionais de Serviço Social são confundidos com um braço operativo de

políticas de governo, como se refere Iamamoto (2013), está muito longe da possibilidade de

contribuir com a efetivação de políticas sociais de qualidade e, mais ainda, com ações que

visem à construção de caminhos para a transformação da sociedade em que vivemos.

Outra constatação da pesquisa foi uma expressão do conservadorismo no exercício

profissional de assistentes sociais nos CRAS, caracterizado pelo disciplinamento e pela

educação das famílias beneficiárias de programas de transferência de renda para que estas

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tenham um desempenho “satisfatório” durante a sua participação nos mesmos. Isso ocorre,

principalmente, no estabelecimento rigoroso de critérios de inclusão e permanência nos

programas de transferência de renda, assim como nas orientações e acompanhamento das

condicionalidades decretadas por instâncias dos governos municipais, estaduais ou federais e

que são, constantemente, colocadas para as famílias usuárias da assistência social para que

elas incorporem uma “postura regrada” durante o usufruto deste “direito social”.

Resultado disso é a exclusão de famílias dos programas sociais, sua exposição a

julgamentos moralistas e preconceituosos, bem como o resgate e fortalecimento de relações

profissionais baseadas na confiança e na avaliação de méritos pessoais. A análise desses

dados nos fez considerar que, apesar do controle social fazer parte da história do Serviço

Social e da atuação de assistentes sociais, sobretudo no campo da assistência social, essa

tarefa aparece renovada no cenário profissional com a criação de tecnologias que podem se

voltar para esse fim e de novas metodologias que podem burocratizar o trabalho profissional e

desfocá-lo do trabalho com famílias condizente com o nosso projeto profissional. A discussão

junto às famílias sobre as formas de acesso às políticas sociais, a sua qualidade e o seu

significado no contexto atual desaparecem.

Além do trabalho com famílias beneficiárias dos programas sociais de transferência

de renda, a PNAS-2004 prevê o desenvolvimento do trabalho com famílias por meio do PAIF,

o qual tem ocorrido com menor frequência nos CRAS e ainda com muitas dificuldades. Há aí

uma tentativa de redimensionar o trabalho com famílias na assistência social, organizando-o a

partir de propostas metodológicas que visam ao enfrentamento do conservadorismo nesse tipo

de intervenção profissional. Nesse caso, averiguamos que o PAIF é um serviço que orienta

as/os profissionais de Serviço Social a identificar e atender situações de vulnerabilidade

social, assim como potencialidades das famílias, o que vai ao encontro da lógica da proteção

social da atual política de assistência social, ao mesmo tempo, ele propõe combater e repensar

os acompanhamentos sociais que se reduzem às avaliações das famílias, suas formas de

organização, seus modos de vida e sua dinâmica interna. Uma das propostas do PAIF é que o

foco do acompanhamento familiar mude para uma abordagem mais emancipatória com a

valorização da participação democrática, da reflexão crítica sobre as vulnerabilidades e

possibilidades, do estímulo à construção de projetos coletivos. Dentre as profissionais

entrevistadas, há aquelas que buscam nos CRAS espaços para o desenvolvimento de ações do

PAIF, inclusive como uma estratégia para o enfrentamento de práticas conservadoras junto às

famílias, sendo que a atuação nos territórios tem sido muito importante nesse processo. Há

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também a realização de acompanhamentos sociais por meio do PAIF que se concentram nos

atendimentos de cunho mais individualizado e, muitas vezes, terapêutico.

Por fim, verificamos, durante a pesquisa de campo, que o trabalho socioeducativo

com famílias, nos CRAS, que prioriza a questão da autonomia, aponta para reflexões

importantes, como as que seguem: a) trata-se de uma questão presente na atuação das

assistentes sociais e que é necessária para desconstruir práticas ligadas ao assistencialismo,

paternalismo e clientelismo que, historicamente, fizeram parte da política de assistência

social, com destaque para as particularidades do exercício profissional em municípios

pequenos, onde esse tipo de ocorrência é mais frequente; b) a busca por autonomia, quando

interpretada a partir do velho lema da ideologia neoliberal, segundo o qual “devemos ensinar

a pescar e não dar o peixe!”, leva-nos a uma perigosa encruzilhada em que supomos preparar

as famílias para a superação de dificuldades no âmbito individual, o que foge das nossas

atribuições profissionais e do projeto ético-político da nossa profissão; e c) a autonomia por

meio do acesso às políticas e serviços públicos é uma forte expressão do trabalho com

famílias na contemporaneidade, que tem se mostrado positiva na medida em que contribui

para o fortalecimento das causas populares.

Baseadas na afirmação de Trindade (2012)81, reiteramos a compreensão de que não

podemos desconsiderar as conquistas na esfera política que constituem o topo máximo no

qual os homens na sociedade capitalista podem alcançar, mas podemos questionar se já

chegamos a esse limite máximo e se é o momento de conciliarmos a nossa luta por direitos,

juntamente com a luta pela emancipação humana, por um outro modelo de sociedade. O

caminho da conquista de autonomia política, econômica e social, pode nos levar a esse tipo de

questionamento.

Finalizamos esse trabalho compreendendo que as conclusões a que chegamos

instigam novas reflexões, bem como os dados, tendo em vista sua amplitude, podem favorecer

novos questionamentos e outras problematizações. Acreditamos que a presente pesquisa

contribui para o delineamento de traços da ideologia conservadora nos vários espaços da vida

social e, mais especificamente, no campo profissional de assistentes sociais que atuam na

política de assistência social. Consideramos que essa é uma produção científica que se propôs

a demonstrar que o conservadorismo é uma forma de pensamento que está muito presente no

81 Fala de José Damião Lima Trindade, procurador de Justiça do Estado de São Paulo, autor de obras como “História Social dos direitos humanos”, de 2002, entre outras, no Seminário Estadual “DIREITOS HUMANOS, ÉTICA E SERVIÇO SOCIAL: FUNDAMENTOS E DESAFIOS, 2012, São Paulo.

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nosso cotidiano e na profissão, como verificamos nas respostas de algumas profissionais

entrevistadas, mas que é profícuo e possível outro modo de exercício profissional, como

também ficou demonstrado nos dados que coletamos e analisamos.

Podemos nos posicionar contrários à ideologia conservadora e apontarmos, nos

espaços sócio-ocupacionais onde atuamos e com as famílias com que trabalhamos, para uma

ideologia de superação da ordem social vigente. De acordo com Iamamoto (2013), o Serviço

Social brasileiro vivencia ainda um processo de renovação crítica apoiado na teoria social

crítica e comprometido com as classes subalternas, mas aspectos conjunturais nos colocam

enormes desafios. Alguns deles são a necessidade de compreender o mundo, as mudanças

contemporâneas e os seus impactos no trabalho profissional.

Procuramos demonstrar, com essa pesquisa, que o pensamento conservador “vivo”

em nossa atualidade, faz com que algumas/alguns assistentes sociais não captem as

determinações reais da pobreza e da desigualdade e isso se reflete no trabalho direto com as

famílias que, muitas vezes, são julgadas moralmente, entre outras situações. Há aí, também,

um posicionamento ideológico de pessoas que não conseguem entender que a miséria social é

resultado de uma sociabilidade que se constrói a partir da divisão social do trabalho e da

divisão de classes.

O enfrentamento do conservadorismo na relação com as famílias usuárias da

assistência social é um enorme desafio para profissionais de Serviço Social, propomos

reforçar a defesa do nosso projeto profissional nos espaços sociocupacionais onde atuamos;

analisar e interpretar criticamente a realidade sem perder de vista as “entrelinhas” do processo

que, às vezes, passam despercebidas; aliar as nossas lutas, enquanto trabalhadores (as)

assalariados (as), com a luta dos demais trabalhadores; combater a ideologia conservadora

(constantemente), utilizando-se para isso da ideologia emancipatória em cada palavra, em

cada ação, em cada posicionamento diante das coisas e dos fatos. Apesar de ser uma luta

muito desigual e impossível para alguns, faz-se extremamente necessária, em tempos de

barbárie.

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APÊNDICE A

ROTEIRO DE ENTREVISTA

DADOS PESSOAIS DOS (AS) ENTREVISTADOS (AS)

Nome

D. N. ____/_____/_____ Sexo: F ( ) M ( ) Idade

Endereço:

Telefone para contato:

Estado civil:

CRAS em que trabalha:

Bairro onde está localizado o CRAS:

Município onde está localizado o CRAS:

Tempo de trabalho no CRAS:

Possui vínculo empregatício? Sim ( ) Não ( )

Forma de contratação: Carga horária:

Serviço/Programa/Projeto/benefício em que atua no CRAS:

Atividades que desempenha na rotina do CRAS: Ano de graduação em Serviço Social:

Local de graduação em Serviço Social:

Possui pós-graduação?

Por que optou pelo curso de graduação em Serviço Social?

Quais as suas experiências profissionais como assistente social?

Teve outras experiências profissionais na política de Assistência Social? Em que período?

Se trabalhava na área da Assistência Social antes de 2004, percebe alguma diferença no

trabalho que desenvolvia antes e depois da implementação do SUAS?

Sim ( ) Não ( )

Quais?

QUESTÕES PARA ANÁLISE:

1. Quais são os programas, projetos, serviços ou benefícios voltados para as famílias no

CRAS onde você trabalha?

2. Qual o perfil das famílias que procuram o CRAS?

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3. Qual o perfil das famílias que podem ser atendidas pelo CRAS? O que é uma família

em situação de vulnerabilidade social?

4. Como você realiza o trabalho social com famílias nos CRAS?

5. Como funciona o trabalho socioeducativo com as famílias no CRAS? Qual a

finalidade do trabalho socioeducativo com famílias no CRAS? Quais os temas

selecionados para esse trabalho?

6. Qual a importância do trabalho com famílias para o enfrentamento da questão social e

para o Serviço Social?

7. Há uma imagem social das famílias beneficiárias de programas de transferência de

renda de que estas são acomodadas e não se esforçam para trabalhar. O que você acha

disso?

8. Qual o tipo de orientação fornecida a uma família que descumpriu as

condicionalidades de um programa de transferência de renda?

9. Quais os problemas que você encontra nas famílias usuárias do CRAS?

10. No caso de perceber mudanças com a implementação do SUAS, você as considera

positivas ou negativas? Quais delas você destacaria como principais e mais relevantes

no seu cotidiano de trabalho?

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APÊNDICE B

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Esclarecimentos

Este é um convite para você participar da pesquisa “O trabalho com famílias nos

Centros de Referência da Assistência Social (CRAS)”, a qual é conduzida pela mestranda

Amanda Eufrásio e orientada pela Profa. Dra. Maria Carmelita Yazbek, e que segue as

recomendações da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e complementos82.

Essa pesquisa trata do trabalho profissional de assistentes sociais desenvolvido com

famílias na política de assistência social na contemporaneidade. Sua participação se dará a

partir de entrevista com questões cuidadosamente formuladas e pertinentes ao tema. Não estão

previstos desconfortos ou riscos a você durante sua participação, justamente por se tratar de

pesquisa teórica e documental; não de procedimento relacionado à área de saúde. Sua

participação é voluntária e você tem garantido o seu direito de não aceitar participar ou de

retirar sua permissão, a qualquer momento, sem nenhum tipo de prejuízo ou retaliação.

As informações desta pesquisa serão confidenciais, e serão divulgadas apenas em

eventos ou publicações científicas, estando assegurados os pressupostos éticos na condução

deste estudo pela pesquisadora e orientadora, de acordo com os protocolos oficiais de ética em

pesquisa aqui referidos. Você ficará com uma cópia deste TLCE e durante todo o período da

pesquisa tem o direito de tirar qualquer dúvida ou pedir qualquer outro esclarecimento,

bastando para isso entrar em contato diretamente com Amanda Eufrásio ou com Maria

Carmelita Yazbek, através dos endereços:

Amanda Eufrásio

Pesquisadora

Correio eletrônico: [email protected]

Profa. Dra. Maria Carmelita Yazbek

Orientadora

Correio eletrônico: [email protected]

82 A Reitoria da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP aprovou, por meio da Deliberação n° 06/2007, o Regimento dos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade, em sessão ordinária do Conselho Universitário, realizada em 25 de abril de 2007 e a Resolução n° 196/96 da CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e Regimento dos Comitês de Ética em Pesquisa da PUC-SP.

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AUTORIZAÇÃO

Eu, _______________________________________________, após a leitura deste

documento e ter tido a oportunidade de conversar com a pesquisadora responsável para

esclarecer todas as minhas dúvidas, acredito estar suficientemente informada, ficando claro

para mim que minha participação é voluntária e que posso retirar este consentimento a

qualquer momento sem qualquer penalidade. Estou ciente também da relevância, dos

objetivos e dos procedimentos da pesquisa dos quais participarei, da garantia de

confidencialidade e esclarecimentos sempre que desejar. Diante do exposto, expresso minha

concordância e espontânea vontade em participar deste estudo.

___________________________ _______________________

Assinatura do (a) voluntário (a) ou Assinatura de testemunha

representante legal RG:

RG: CPF:

CPF:

____________________________

Assinatura de testemunha

RG:

CPF:

Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido do

(a) _____________________________________________________(ou representante legal)

para a participação neste estudo.

______________________________

Assinatura da pesquisadora

RG:

CPF:

São Paulo, _____ de _______________ de 2013.