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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Eliane Domingues ENTRE A UTOPIA E O MAL-ESTAR : REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE OS MILITANTES DO MST E SEUS DILEMAS DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Eliane Domingues

ENTRE A UTOPIA E O MAL-ESTAR : REFLEXÕES PSICANALÍTICAS

SOBRE OS MILITANTES DO MST E SEUS DILEMAS

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Eliane Domingues

ENTRE A UTOPIA E O MAL-ESTAR : REFLEXÕES PSICANALÍTICAS

SOBRE OS MILITANTES DO MST E SEUS DILEMAS

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Psicologia Social sob orientação da Prof.ª Dr.ª Miriam Debieux

Rosa

SÃO PAULO

2011

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Banca Examinadora

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Aos militantes do MST

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AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa, pelo acolhimento, disponibilidade e

orientação que foram fundamentais para elaboração desta tese.

Aos Profs. Dr. José Moura Gonçalves Filho e Dr. Salvador Meireles Sandoval,

pelas sugestões e questões propostas por ocasião do exame de qualificação. À Dra.

Maria Rita Bicalho Kehl pelos questionamentos feitos no exame de qualificação. Ao

Prof. Dr. Edson André de Sousa pelos textos sugeridos e enviados.

Aos amigos que me apoiaram, compartilharam minhas angústias, leram partes

do texto e deram valiosas sugestões. Especialmente a: Sandra Luzia Alencar, Glaucia

Valéria de Brida, Viviane do Carmo Catroli, Maria Therezinha Loddi Liboni e Max

Rogério Vicentin.

À todos estudantes que participaram desta pesquisa e à coordenação da escola de

agroecologia do MST que tornaram a realização desta pesquisa possível.

Aos meus pais Adilson e Maria Dirce e irmãs Analígia e Analéia pelo apoio e

compreensão.

Ao Prof. Dr. Patrick Guyomard que me recebeu na Université Paris 7 para o

estágio de doutorado.

À Universidade Estadual de Maringá e ao Departamento de Psicologia pelo

afastamento concedido para realização do doutorado.

Ao CNPq e à CAPES pelas bolsas concedidas, no Brasil e na França.

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DOMINGUES, Eliane

Entre a utopia e o mal-estar:

reflexões psicanalíticas sobre os militantes do MST e seus dilemas

RESUMO

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi fundado oficialmente em

1984 e atualmente está presente em 23 estados e no Distrito Federal. Envolve cerca de

1,5 milhão de pessoas, das quais aproximadamente 400 mil estão em acampamentos.

Seus principais objetivos, desde sua fundação, são: “lutar pela terra, lutar pela reforma

agrária e lutar por uma sociedade mais justa e fraterna”. (MST, 2009). Passados mais de

25 anos de existência do MST, muitos conquistaram a terra, mas a reforma agrária e as

almejadas transformações sociais, ideais que movem os militantes, ainda estão longe da

concretização. Diante deste contexto, nesta pesquisa indagou-se: como os militantes

vivenciam a distância entre a sociedade atual e a sociedade pela qual eles lutam, uma

sociedade justa e fraterna para todos? Como os militantes vivenciam a tensão existente

entre viver em uma sociedade capitalista sustentando valores e ideais socialistas? Como

se faz presente no cotidiano dos militantes a tensão existente entre as exigências e

cobranças do coletivo (MST) e do próprio sujeito (supereu) e os ideais (sociais e

instância psíquica)? Estas questões foram formuladas a partir do que os próprios

militantes do MST apresentaram como sendo os dilemas que eles enfrentam em seu

cotidiano e constituem o objeto de investigação dessa tese. Os referenciais teóricos

adotados foram a psicanálise e a metodologia de pesquisa pesquisa-intervenção

psicanalítica. Partiu-se da ideia de Freud (1927) de que algumas classes, grupos e

sujeitos pagam um “a mais” de sacrifício para viver na cultura e desenvolveu-se a

hipótese de que o militante, ao não aceitar o “a mais” de sacrifício imposto para sua

classe, acaba pagando um “a mais” por sua condição de militante, o que não significa

apenas trocar um “a mais” de sacrifício por outro, pois os novos sacrifícios são pagos

com um lugar social dentro do MST e com a possibilidade de uma revitalização

narcísica dos sujeitos, ou seja, são pagos com um “a mais” de satisfação possibilitada

pela adesão a ideais. Para que os ideais continuem movendo os sujeitos, é necessário

que entre eles e o estado atual − seja do sujeito seja da sociedade – sempre deve existir

uma distância. Algo sempre deve faltar para que o desejo siga seu curso, mas o que falta

para os sujeitos não serem lançados na angústia deve-se ancorar em um projeto de

futuro, em uma esperança. É isto que faz o MST: oferece aos sujeitos, um projeto de

futuro, uma esperança. Seus militantes pagam o preço pelo desejo que os move, mas

nem por isto deixam de apostar no desejo, mesmo que lhes custe “uma libra de carne”.

Palavras-chave: militante; MST; psicanálise; narcisismo; sacrifício.

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DOMINGUES, Eliane

Between utopia and discontents:

Psychoanalytical reflexions on MST1 militant and their dilemmas

ABSTRACT

MST was officially founded in 1984 and is nowadays present at 23 states and the

federal district. It involves nearly 1.5 million people and about 400 thousand are at

camps. Its main aims, since the foundation, are: “fighting for land, fighting for land

reform, and fighting for a more fraternal and fair society” (MST, 2009). Having passed

more than 25 years of existence, many conquered their land, but land reform and the

desired social transformations, ideals that move militants, are still far from achievement.

Before this context, this research has asked: how do militants experience the distance

between current society and the society they fight for, which is equal and fraternal to

all? How do they experience the tension between living in a capitalist society supporting

socialist values and ideals? How is tension between demanding and charges from

collective (MST) and the ideals (social and psychic ambits) present at militants‟

everyday life? These questions were formulated from what the MST militants

themselves present as being the dilemmas they face and they constitute as object of

research of this thesis. The theoretical reference adopted was psychoanalysis and

research methodology psychoanalytical intervention research. It was built on Freud‟s

idea (2007/1927) that some classes, groups, and subjects pay „more‟ sacrifice to live in

the culture and developed the hypothesis that the militant, for not accepting this „more‟

of sacrifice imposed by his class, ends up paying „more‟ for his militant condition, what

does not simply mean exchange this „more‟ sacrifice for other, as new sacrifices are

paid with a social place inside MST and with the possibility of a subject narcissistic

revitalization, that is, they are paid with „more‟ satisfaction enabled by ideals adhesion.

In order to the ideals keep moving the subjects, it is necessary that between them and

the current state – of the subject or society – always exist some distance. Something

should always be missing so that the desire keeps flowing, but what misses to the

subjects not be woeful, is to be based on a future project, some hope. This is what MST

does: offer to subjects a future Project, a hope. Its militants afford the desire that moves

them, but always bet on it, even if it costs them “a pound of flesh”.

Keywords: militant; MST; psychoanalysis, narcissism; sacrifice.

1 MST in Portuguese stands for Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, which is a movement of

rural workers who claim for their rights of having their own land to work and live.

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DOMINGUES, Eliane

Entre la utopía y el malestar:

reflexiones psicoanalíticas sobre los militantes de MST y sus dilemas

RESUMEN

El Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST) fue fundado oficialmente

en 1984 y actualmente está presente en 23 estados y en el Distrito Federal. Tiene cerca

de 1,5 millones de personas, de las cuales aproximadamente 400 mil están en

campamentos. Sus principales objetivos, desde su fundación, son: “luchar por la tierra,

luchar por la reforma agraria y luchar por una sociedad más justa y fraterna”. (MST,

2009). Pasados más de 25 años de existencia de MST, muchos conquistaron la tierra,

pero la reforma agraria y las anheladas transformaciones sociales, ideales que mueven a

los militantes, aún están lejos de la concretización. Delante de este contexto, en esta

investigación se indagó: ¿cómo los militantes viven la distancia entre la sociedad actual

y la sociedad por la cual ellos luchan, una sociedad justa y fraterna para todos? ¿Cómo

los militantes viven la tensión existente entre vivir en una sociedad capitalista

sosteniendo valores e ideales socialistas? ¿Cómo se hace presente en el cotidiano de los

militantes la tensión existente entre las exigencias y cobro del colectivo (MST) y del

propio sujeto (superyo) y los ideales (sociales e instancia psíquica)? Estas cuestiones

fueron formuladas a partir de lo que los propios militantes de MST presentaron como

siendo los dilemas que ellos enfrentan en su cotidiano y constituyen el objeto de

investigación de esta tesis. El referencial teórico adoptado fue el psicoanálisis y la

metodología de investigación la investigación-intervención psicoanalítica. Se partió de

la idea de Freud (2007/1927) de que algunas clases, grupos y sujetos pagan un “a más”

de sacrificio para vivir en la cultura y se desarrolló la hipótesis de que el militante, al no

aceptar el “a más” de sacrificio impuesto para su clase, acaba pagando un “a más” por

su condición de militante, lo que no significa apenas cambiar un “a más” de sacrificio

por otro, pues los nuevos sacrificios son pagados con un lugar social dentro de MST y

con la posibilidad de una revitalización narcísica de los sujetos, o sea, son pagados con

un “a más” de satisfacción posibilitada por la adhesión a ideales. Para que los ideales

continúen moviendo a los sujetos, es necesario que entre ellos y el estado actual − sea

del sujeto sea de la sociedad – siempre debe existir una distancia. Algo siempre debe

faltar para que el deseo siga su curso, pero lo que falta para que los sujetos no sean

tirados a la angustia se debe basar en un proyecto de futuro, en una esperanza. Es esto

que hace MST: ofrece a los sujetos, un proyecto de futuro, una esperanza. Sus militantes

pagan el precio por el deseo que los mueve, pero ni por esto dejan de apostar en el

deseo, mismo que les coste “una libra de carne”.

Palabras clave: militante; MST; psicoanálisis; narcisismo; sacrificio.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................9

PARTE I: APRESENTAÇÃO DO MST E DA METODOLOGIA DA PESQUISA.......14

CAPÍTULO 1 : ORIGEM E MODERNIDADE DO MST............................................15

1.1.A luta pela terra no Brasil e o surgimento do MST: violência e

criminalização......................................................................................................15

1.2. A influência da Igreja e construção dos objetivos do MST..........................22

1.3. Educação e emancipação: a modernidade do MST......................................26

CAPÍTULO 2 : O CAMPO E A METODOLOGIA DA PESQUISA ........................30

2.1. As escolas de agroecologia do MST no Paraná............................................31

2.2. O contato inicial com a escola......................................................................35

2.3. A pesquisa-intervenção................................................................................37

2.4.Por que pesquisa-intervenção psicanalítica?..................................................43

PARTE II: UTOPIA E MILITÂNCIA...................................................................................48

CAPÍTULO 1: UTOPIAS E/OU IDEAIS SOCIAIS......................................................49

1.1.Utopias ..........................................................................................................49

1.2.Utopia, sonho e desejo...................................................................................58

1.3.Utopia e ideais sociais....................................................................................62

CAPÍTULO 2: MILITÂNCIA E MST............................................................................70

2.1.Militância hoje...............................................................................................70

2.2.Militantes do MST.........................................................................................77

2.3.Militância e psicanálise .................................................................................81

PARTE III: OS “DILEMAS” DO MILITANTE DO MST PENSADOS A PARTIR DA

PSICANÁLISE ................................................................................................................91

CAPÍTULO 1 : SACRIFÍCIO, MAL-ESTAR E MILITÂNCIA .................................92

1.1 O sacrifício de si............................................................................................92

1.2 O sacrifício pulsional.....................................................................................97

1.3 O sacrifício na “pós-modernidade”.............................................................101

CAPÍTULO 2 : IDEAIS, EXIGÊNCIAS E IDENTIDADE SEM TERRA..................106

2.1 O narcisismo e a constituição do eu ideal...................................................107

2.2 Eu ideal e ideal do eu: algumas considerações pós-freudianas...................110

2.3 A articulação aos ideais...............................................................................112

2.4 As exigências internas e externas: o supereu entra em cena.......................114

2.5 Identidade e identificações..........................................................................119

CAPÍTULO 3: A HUMILHAÇÃO SOCIAL E A LUTA POR

RECONHECIMENTO..................................................................................................126

3.1. A humilhação social e a luta por reconhecimento......................................126

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................142

ANEXO....................................................................................................................................153

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INTRODUÇÃO

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi fundado

oficialmente em 1984 e atualmente está presente em 23 estados e no Distrito Federal.

Envolve cerca de 1,5 milhão de pessoas, das quais aproximadamente 400 mil estão em

acampamentos. Seus principais objetivos, desde sua fundação, são: “lutar pela terra,

lutar pela reforma agrária e lutar por uma sociedade mais justa e fraterna”. (MST,

2009).

A conquista da terra, a reforma agrária e uma sociedade mais justa e fraterna

para todos são os ideais que unem os integrantes no MST e os mobilizam a participar do

movimento; porém nem todos os integrantes aderem da mesma forma a estes ideais.

Enquanto os militantes lutam pela terra, pela reforma agrária e pela construção de uma

nova sociedade, os integrantes que compõem a base lutam pela terra e não

necessariamente aderem à luta pela reforma agrária e por uma sociedade mais

igualitária. São diferentes ideais articulados que unem e mobilizam os integrantes do

MST1.

Passados mais de 25 anos de existência do MST, muitos conquistaram a terra.

Cerca de 350 mil famílias estão assentadas, distribuídas em áreas que, se somadas,

chegam a 14 milhões de hectares (STÉDILE, 2008); mas a reforma agrária e as

almejadas transformações sociais, ideais que movem os militantes, ainda estão longe da

concretização.

Mesmo para aqueles que têm como ideal a conquista da terra e estão assentados,

este fato não significa que eles tenham chegado ao “paraíso”, pois novos problemas

surgem e muitas das antigas dificuldades continuam, como o acesso à saúde, à educação

e à moradia. A conquista da terra é importante, mas há sempre algo que falta e em

muitos casos este algo é sempre muito. No que diz respeito aos militantes, a conquista

da terra representa apenas um passo rumo a transformações mais amplas e estruturais:

como eles vivenciam a distância entre a sociedade atual e a sociedade pela qual eles

lutam, uma sociedade justa e fraterna para todos; como os militantes vivenciam a tensão

existente entre viver em uma sociedade capitalista sustentando valores e ideais

socialistas; como eles são afetados pelos “ideais particularistas de consumo” vigentes na

sociedade na qual vivemos; e como se faz presente no cotidiano dos militantes a tensão

1 Esta foi uma das conclusões da dissertação de mestrado da autora: A luta pela terra e o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra: contribuições da psicanálise.

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existente entre as exigências e cobranças do coletivo (MST) e do próprio sujeito

(supereu) e os ideais (sociais e instância psíquica). Estas questões constituem o objetivo

principal dessa pesquisa, que também buscou investigar como os militantes do MST

vivenciam situações de violência e o dilema militância x família.

O interesse em investigar estas questões surgiu a partir da participação da autora

no seminário Subjetividade e a questão da terra2, evento em que os militantes do MST

expuseram quais são as tensões, desafios e conflitos que eles enfrentam na luta pela

terra. Certamente a palavra “dilema” não dá conta de expressar tudo isto, mas foi

adotada nesta pesquisa porque era esta a palavra que os militantes muitas vezes

empregavam para expressar o conjunto das tensões, dos desafios e dos conflitos que

eles vivem em seu cotidiano.

Acreditando na fecundidade de uma leitura psicanalítica destas questões, essa

pesquisa também visa trazer contribuições para o estudo da articulação entre o psíquico

e o social, tendo como base a análise de um movimento social genuinamente brasileiro e

focando especificamente seus militantes com seus dilemas. Não se trata, porém, de uma

pesquisa de psicanálise aplicada, mas sim, de uma pesquisa de psicanálise implicada.

Isto quer dizer que se busca evitar o modo de fazer pesquisa que ficou conhecido

como psicanálise aplicada3, no sentido que esta última adquiriu depois de Freud, de ser

uma mera extensão dos conceitos psicanalíticos a outros campos supostamente

estranhos à sua origem. Em Freud, segundo Plon (1999), temos a teoria psicanalítica e

as aplicações da psicanálise − que incluem a prática clínica e os estudos referentes a

fenômenos sociais, à cultura e à arte −, que constituíram a base para construção da

teoria psicanalítica. Depois de Freud, a teoria psicanalítica e a clínica passaram a ser

entendidas como a psicanálise “pura”, sem adjetivos, enquanto a psicanálise aplicada,

que diz respeito a estudos referentes a fenômenos sociais, à cultura e à arte, passou a ser

entendida como lugar de mera demonstração do que supostamente a psicanálise já sabia.

Por não se pretender fazer a demonstração dos conceitos psicanalíticos e para evitar

toda a controvérsia que acompanha a denominação psicanálise aplicada, optou-se pela

denominação psicanálise implicada; implicada tanto por levar em conta os modos

singulares de formular a militância quanto por enfatizar o posicionamento ético-político

2 O seminário “Subjetividade e a questão da terra” foi realizado em 2004, fruto de uma parceria entre o

Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o MST. Dele participaram pouco mais de 20 pessoas, entre

psicólogos e militantes do MST e seu objetivo foi a aproximação dos psicólogos das demandas e

propostas dos trabalhadores do campo, no caso daqueles que integravam o MST 3 Discutimos esta ideia em ROSA; DOMINGUES, 2010.

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do pesquisador, que não é um observador externo ao objeto observado, mas é implicado

e comprometido com os participantes da pesquisa, com a escolha do tema e da

metodologia e com o recorte do objeto. Feitas estas considerações, apresentar-se-á na

sequência a estrutura geral da pesquisa, que foi organizada em três partes.

A primeira parte tem como objetivo fazer uma breve apresentação do MST e da

metodologia da pesquisa. No primeiro capítulo resgatam-se episódios das lutas

camponesas no Brasil até chegar ao surgimento e constituição do MST. Destaca-se a

criminalização e a violência de que foram vítimas aqueles camponeses que ousaram se

mobilizar contra a exploração, a expropriação e expulsão do campo, assim como a

modernidade do MST, suas conquistas e sua contribuição para a emancipação de

milhares de camponeses. No segundo capítulo são descritos o campo da pesquisa e a

metodologia adotada: a pesquisa-intervenção psicanalítica, uma das alternativas

possíveis dentro do que se entende como psicanálise implicada. O campo foi uma escola

de agroecologia do MST, e os participantes, militantes em formação que estudavam

nesta escola. A proposta foi realizar um trabalho de pesquisa-intervenção/escuta que,

além do levantamento e discussão dos dilemas do militante, também proporcionasse um

espaço de palavra e reflexão, em que os sujeitos pudessem expressar suas

singularidades, falar de si próprios e de sua percepção de mundo. A demanda de um

trabalho deste tipo foi levantada no Seminário Subjetividade e a questão da terra e

também se fez presente no grupo participante desta pesquisa. Assim, a pesquisa-

intervenção psicanalítica teve como objetivo atender a uma demanda levantada pelos

próprios militantes do MST, a da criação de um espaço de escuta para seus dilemas e ao

mesmo tempo de um espaço que produzisse relatos que pudessem ser tematizados como

objetos de pesquisa. Neste capítulo também se descreve como foi organizado este

espaço, com encontros temáticos em pequenos grupos, e ao final do capítulo são

apresentados os pressupostos orientadores da pesquisa-intervenção psicanalítica.

A segunda parte, composta de dois capítulos, é dedicada ao tema da utopia e a da

militância. No primeiro capítulo se discorre sobre utopia, tema que surgiu no decorrer

do percurso da pesquisa. Na pesquisa de mestrado da autora, uma das conclusões foi

que os militantes do MST são movidos pelo ideais revolucionários sustentados pelo

movimento, porém aquilo que era chamado por mim de ideais, outras pesquisas

chamavam de utopia. Daí surgiu o questionamento: utopia e ideais podem ser tomados

como sinônimos? A partir deste questionamento adentrou-se no campo da utopia, ou

melhor, das utopias. Inicia-se o capítulo com a conceituação da utopia no campo

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filosófico até chegar ao campo da psicanálise, buscando-se a articulação entre o que é

da ordem do social (utopias/ideais sociais) e que é da ordem do psíquico (sonho, desejo,

ideal do eu e narcisismo). No final do primeiro capítulo buscou-se responder à questão

que motivou a sua escrita. O segundo capítulo teve como objetivo apresentar uma

caracterização do que é ser militante na atualidade, do que é ser militante do MST e

trazer as contribuições da psicanálise para pensar a temática da militância. Em um

contexto de declínio das grandes narrativas, em que os movimentos sociais privilegiam

o agir no aqui e agora em detrimento do debate doutrinário e em que a militância é

associada à ideia de “livre serviço”, o MST parece “nadar contra a corrente” e mostra

que os ideais revolucionários ainda estão vivos, que é possível agir no aqui e agora sem

deixar de lado o debate doutrinário, e que ainda existem militantes que se engajam de

“corpo e alma”. Tal engajamento não é sem consequências para ao militante do MST e

está profundamente relacionado à constituição dos dilemas que ele vivencia em seu

cotidiano, tema abordado na terceira e última parte do trabalho.

O dilema traz a ideia de uma escolha que é sempre insatisfatória e difícil e que

traz sempre sofrimento para aquele que deve escolher. Sempre há um preço a pagar pela

escolha feita. Antes da possibilidade de qualquer escolha, no entanto, o sujeito humano

paga um preço por viver na cultura, preço que, como diz Freud (1927), não é igual para

todos, pois determinadas classes, grupos e sujeitos pagam um preço mais alto que outros

e têm menos acesso aos benefícios. A partir desta ideia de Freud, entende-se nessa

pesquisa que, para abordar os dilemas do militante do MST, deve-se considerar este

contexto anterior no qual se constituem as possibilidades de escolha do militante, e que

uma vez feita a escolha, tem-se uma nova conta a pagar, riscos e contradições a

enfrentar. Vejamos como estas questões foram abordadas nos três capítulos que compõe

a última parte da tese.

O primeiro capítulo da última parte, Sacrifício, mal-estar e militância, tem como

objetivo apresentar este contexto em que se constituem os dilemas do militante do MST

e também discutir a ideia de que o “militante é aquele que se sacrifica por uma causa”.

Neste sentido, foi proposta a questão: “O que o militante do MST sacrifica?”. Dois

autores foram utilizados para discutir a noção de sacrifício: Rosolato (2004a , 2004b) e

a noção de sacrifício de si (da razão, dos bens e da própria vida) e Freud (1927, 1930) e

a noção de sacrifício pulsional como o preço que se paga para viver na cultura. O

dilema militância x família e o risco de morte que o militante enfrenta são pensados a

partir das ideias dos autores citados. A hipótese desenvolvida neste capítulo é de que o

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militante, ao não aceitar o “a mais” de sacrifício imposto para sua classe, acaba pagando

um “a mais” por sua condição de militante, porém isto não significa trocar um “a mais”

de sacrifício por outro, pois os novos sacrifícios são pagos com um lugar social dentro

do movimento e com a possibilidade de uma revitalização narcísica dos sujeitos.

O segundo capítulo da última parte, Ideais, exigências e identidade, parte do

conceito de narcisismo para pensar a militância do MST. A hipótese desenvolvida é

que a militância no MST pode possibilitar certa revitalização narcísica ao militante, pela

adesão aos ideais sociais sustentados pelo movimento; porém, se por um lado a adesão a

ideiais sociais traz certa satisfação narcísica para o sujeito, por outro esses ideais vêm

acompanhados de exigências, e no caso da adesão ao MST, da identidade de sem-terra.

Os ideais, como diz Bloch (2005), agem de “modo exigente”, sendo difícil separá-los

das exigências que os acompanham. Este lado exigente dos ideais Freud chamou de

supereu. Esta tensão entre ideais e exigências e as implicações que a identidade de sem-

terra traz para o sujeito são as questões abordadas nesse capítulo.

O terceiro capítulo da última parte, A humilhação social e a luta por

reconhecimento, não é propriamente um dilema enfrentado pelos militantes do MST,

pelo menos não depois que eles aderiram ao MST que luta também por reconhecimento.

Isto quer dizer que os militantes já escolheram a luta por reconhecimento, embora não

deixem de ser marcados e afetados e sofram com a humilhação social. A humilhação

social continua gerando dor que precisa ser cotidianamente transformada em luta. Esta

questão é abordada nesse capítulo, que parte do sentido etimológico da humilhação,

mostra como esta pode ser pensada pela psicanálise, apresenta relatos de humilhação e

chega no contraponto da humilhação social: a revolta e a luta por reconhecimento

jurídico e social.

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PARTE I: APRESENTAÇÃO DO MST E DA METODOLOGIA DA PESQUISA

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CAPÍTULO 1 : ORIGEM E MODERNIDADE DO MST

A luta pela terra em um país como nosso - de dimensões continentais e fartura de

terras agricultáveis - é um paradoxo bastante anterior ao surgimento do MST, assim

como a criminalização daqueles que são vítimas. Resgatar, ainda que brevemente, um

pouco desta história é o ponto de partida deste trabalho. Inicia-se o texto com a citação

das guerras de Canudos e do Contestado, episódios que não são de luta pela terra ou

reforma agrária, mas já mostram a insatisfação e revolta no campo daqueles que não

têm direitos. Em seguida trata-se da “Guerra de Porecatu” e da revolta dos posseiros, em

que a posse da terra passa a ser uma questão central, e das Ligas Camponesas, em que a

reforma agrária se constitui como uma reivindicação dos camponeses, até chegar à

constituição e às reivindicações do MST.

1.1- A luta pela terra no Brasil e o surgimento do MST: violência e

criminalização

Não existem nações felizes.

E não existem ilhas onde o sangue humano já não volte a ser derramado.

Mas é verdade que coisas novas e melhores são construídas.

Ainda que tenham de nascer em dor como os homens.

(JASTRUN, 1954 citado por SZACHI, 1972)

No final do século XIX e início do século XX as guerras de Canudos (1896-

1897), na Bahia, e do Contestado (1912-1916), nos limites dos estados do Paraná e de

Santa Catarina, representaram, de certa forma, movimentos de reação à República,

embora não propriamente ao regime político republicano, mas ao significado que lhe foi

atribuído pelo sertanejo: de uma nova ordem que favoreceu os poderosos e só instaurou

mais opressão. Em contraposição à República, estes movimentos defendiam a ideia de

Monarquia, que significava uma nova ordem sem opressão.

Tanto Canudos como o Contestado foram organizados ao redor de figuras

míticas centrais:os profetas - Antônio Conselheiro em Canudos e José Maria e João

Maria no Contestado - e podem ser entendidos como movimentos milenarista-

messiânicos. O milenarismo, segundo Hobsbawm (1970), tem caráter revolucionário em

sua essência, ao apontar para a ideia da transformação completa e radical do mundo que

recairá no milênio e livrará o mundo de todos os males. Apresenta as seguintes

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características: 1) rejeição do mundo presente e uma nostalgia de um outro melhor; 2)

uma ideologia padronizada do tipo quiliasta (tal como o messianismo judaico-cristão); e

3) uma incerteza fundamental no que diz respeito a como a nova sociedade será

moldada. Segundo Ianni (1972, p.191), movimentos deste tipo são “a primeira

manifestação desesperada frente a uma situação de carência extrema” e expressam o

descontentamento com a situação vivida.

O fim destes movimentos, se eles se mantêm isolados, é a derrota

(HOBSBAWAM, 1970). Foi assim que terminaram Canudos e o Contestado, com a

derrota e o massacre dos sertanejos. Em Canudos, quatro expedições militares foram

necessárias para destruí-los: 5.200 casas foram queimadas e os habitantes encontrados

foram degolados (CUNHA, 1902). O Contestado, que chegou a contar 20.000

habitantes no auge do movimento, também teve como fim casas queimadas e

prisioneiros degolados (QUEIROZ, 1977).

Nas décadas de 1940 e 1950 o Paraná foi palco de dois grandes conflitos: a

Guerra de Porecatu (1947-1953), no Norte do Estado, e a Revolta dos Posseiros (1950-

1957), no Sudoeste, ambos iniciados por causa de despejos violentos de posseiros por

jagunços e pelas tropas do Estado.

O conflito de Porecatu teve início quando o então governador do Estado Moysés

Lupion4 repassou terras a seus “apadrinhados”. Estas terras eram ocupadas por

posseiros, que foram expulsos de forma violenta, ação que ficou conhecida como

“limpeza de área”. Diante da violência sofrida, os posseiros procuraram apoio do

Partido Comunista Brasileiro (PCB) e denunciaram a situação; porém, como nada foi

feito, partiram para a luta armada. Foi somente quando Bento Munhoz da Rocha

assumiu o governo do Estado, em 1951, que a situação foi resolvida e os posseiros que

resistiram foram contemplados com lotes (RODRIGUES, 2006).

Na Revolta dos Posseiros, novamente em cena o governador Moiysés Lupion.

Desta vez, a concessão foi para mineradoras de carvão, serrarias e fábricas de papel. A

transação ilícita feita pelo governador em 1950 foi anulada pela União em 1953, porém

quando já estava instalado um clima de terror entre os posseiros da região. Da mesma

forma que na “Guerra de Porecatu”, as autoridades nada fizeram, e em 1957 os

posseiros partiram para a luta armada, decididos a expulsar as companhias

colonizadoras. Diante de tal situação de levante popular, o Governo Federal ordenou o

fechamento das colonizadoras, sob ameaça de intervenção no Estado. As colonizadoras 4 Moysés Lupion foi governador do Estado do Paraná de 1947 a 1951 e 1956 a 1961.

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foram fechadas, mas a situação só se resolveu em 1962, quando os camponeses e

posseiros, finalmente, conseguiram do Estado e da União a propriedade da terra

(RODRIGUES, 2006).

Nas décadas de 1950 e 1960 começou em Pernambuco o movimento das Ligas

Camponesas, que depois se expandiu para os demais estados brasileiros. Foi a partir

dele que a luta camponesa atingiu dimensão nacional, segundo Oliveira (1999).

Inicialmente, as Ligas Camponesas eram compostas por foreiros – camponeses que

trabalhavam em uma terra que não era sua, devendo pagar o foro ao proprietário.

Diferente do posseiro, que se apossa de uma terra e lá trabalha sem dever nada para

ninguém até ser expulso, o foreiro pagava valores exorbitantes para utilizar a terra.

Assim, nem sempre o foreiro conseguia com seu trabalho o necessário para sobreviver

com sua família e pagar o foro. Diante da expulsão iminente por não pagar o foro, um

foreiro procura um membro do Partido Comunista, que, constatando a situação dos

foreiros de uma forma geral, propõe a formação de uma sociedade para aquisição de um

engenho. Percebendo nesta sociedade um foco de subversão, o dono das terras do

engenho Galileia (alugadas aos foreiros que formavam a sociedade) tentou interditar a

sociedade e expulsá-los. Os foreiros, então, procuram um advogado – Francisco Julião ,

que já havia defendido causas de camponeses e aceitou a causa do grupo. Iniciada em

1954, a luta judicial foi até 1959, quando o engenho Galileia foi desapropriado. No

início da década de 1960 as Ligas passam a lutar por reforma agrária e agregar ao redor

de si outros camponeses além dos foreiros. Com o golpe de 1964 elas foram extintas e

tiveram muitos de seus dirigentes presos, torturados ou mortos (BASTOS, 1984)

No final da década de 1970 surge o MST, fruto da expulsão do campo e

expropriação de inúmeros trabalhadores rurais. Segundo Stédile e Fernandes (1999), o

aspecto socioeconômico foi o principal fator que contribuiu para o surgimento do

movimento. Neste contexto, a década de 1970 pode ser apontada como um momento

particularmente significativo, pela intensa mecanização da agricultura brasileira e a

consequente expulsão do campo de milhões de trabalhadores rurais. Segundo Tarelho

(1988),

A modernização da agricultura potencializou a produtividade do

trabalho e liberou um imenso contingente de mão de obra. Só na

década de 70, cerca de 15 milhões de pessoas migraram para as

cidades, a maioria para as grandes metrópoles. Para se ter uma ideia mais concreta desta migração é preciso levar em conta que em duas

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décadas [de 1950 a 1970] a distribuição da população, que era de 70%

na zona rural e 30% na zona urbana, inverteu-se. (p.22)

No Estado do Paraná, estima-se que, em dez anos, 100 mil pequenos

proprietários foram expulsos do campo, somando-se a eles parceiros, posseiros e

arrendatários, que também já vinham sofrendo com a expulsão. Somente a construção

da Hidrelétrica Binacional de Itaipu, entre 1975 e 1977, deixou aproximadamente

12.000 famílias sem terra e sem teto. As famílias desalojadas para a construção da

hidrelétrica que possuíam o título de propriedade da terra deveriam receber

indenizações, porém, após três anos da desapropriação, apenas algumas poucas famílias

as haviam recebido, e ainda assim, em valores muito inferiores aos que de fato tinham

as terras. Parte dos posseiros foi transferida para um projeto de colonização no Acre e lá

foi abandonada. Apoiados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e por alguns

sindicatos rurais, os camponeses que permaneceram na região se organizaram no

Movimento Justiça e Terra para reivindicar aumento do valor das indenizações e

assentamento para os sem terra. Acamparam no trevo da hidrelétrica e após dois meses

conseguiram assentamentos na região. (MORISSAWA, 2001)

Em 1981 a CPT passou a cadastrar outras pessoas interessadas em assentamento

e criou o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (MASTRO). Nos

anos seguintes outros movimentos foram criados: Movimento dos Agricultores Sem

Terra do Sudoeste do Paraná (MASTES), Movimento dos Agricultores Sem Terra do

Norte do Paraná (MASTEN), Movimento dos Agricultores Sem Terra do Centro-Oeste

do Paraná (MASTRECO) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra do Litoral do

Paraná (MASTEL). (MORISSAWA, 2001).

Enquanto tudo isso acontecia no Paraná, no Rio Grande do Sul, agricultores

expulsos de uma reserva indígena no município de Nanoai recusaram-se a ser

transferidos para projetos de colonização do Mato Grosso, acamparam próximo à

reserva e conseguiram assentamento na região. Em 1979, outro grupo de agricultores

sem terra ocupa a fazenda Macali, no município de Ronda Alta, ato considerado um dos

marcos históricos do nascimento do MST. Em 1980, cerca de três mil pessoas

acamparam na Encruzilhada Natalino5. No ano seguinte D. Pedro Casaldália rezou uma

missa em solidariedade aos agricultores sem terra e o fato foi divulgado para todo o

5 Entroncamento das estradas dos municípios de Ronda Alta, Sarandi e Passo Fundo, no Rio Grande do

Sul.

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Brasil. Na mesma época, em Santa Catarina, no Mato Grosso do Sul e em São Paulo, os

camponeses sem terra também se mobilizavam (MORISSAWA, 2001).

Da unificação de todas as lutas dos agricultores sem terra do Centro-Sul que

recusaram a proletarização e a migração e reivindicavam terras em suas regiões de

origem surgiu o MST. Cumpre observar que estes agricultores fundadores do MST

correspondem a apenas uma parte dos expropriados e expulsos da terra, pois outra

grande parte migrou para as cidades ou se deslocou em busca de novas terras em regiões

de colonização em Rondônia, no Pará e no Mato Grosso (STÉDILE; FERNANDES,

1999). Muitos também foram para o Paraguai em busca de terras baratas e férteis, mas

voltaram quando a modernização da agricultura de lá novamente os expulsou, sendo

acolhidos pelo MST. (RODRIGUES, 2006)

Somando-se à violência da expulsão e da expropriação, o MST, tal como os

movimentos que o antecederam, também enfrentou e enfrenta os assassinatos e a

criminalização de seus integrantes. Em 1995 e 1996 os assassinatos de trabalhadores

sem terra de Corumbiara - MT e de Eldorado dos Carajás - PA deixaram trinta mortos.

Nos últimos dez anos, de 2001 a 2010, a CPT (2011a) registrou o assassinato de 360

pessoas relacionado a conflitos pela terra.

Rodrigues (2006), em sua dissertação de mestrado A violência institucional

como método para lidar com a miséria social, relata a intensa violência que sofreu o

MST no Paraná. Entre seus relatos está o do assassinato de “Teixeirinha”, em 1993, pela

polícia. Líder local do MST, Diniz Bento Teixeira da Silva foi preso e espancado,

depois foi executado pela polícia com cinco tiros, durante o mandato do governador

Roberto Requião. No entanto, foi durante os dois mandatos seguintes do governador

Jaime Lerner que a violência no campo tornou-se sistemática, aproximando milícias

armadas e o aparelho repressivo do Estado em ações violentas de despejo, com

incêndios de barracos e agressões físicas aos camponeses. Vejamos um dos trechos dos

relatos de violência apresentados na dissertação de Rodrigues (2006):

No dia 08 de novembro de 1995, no município de Santa Isabel do Ivaí,

norte do Estado, conforme dados da CPT e MST, ocorreu o “projeto piloto” a partir do qual se desenvolveriam as “táticas de guerra” para

as desocupações das fazendas ocupadas por sem terras. A Fazenda

Saudade era uma área desapropriada para a reforma agrária, com

1.022 hectares. No entanto, sem mandado judicial, 90 policiais invadiram a área e despejaram aproximadamente 30 famílias,

queimando os barracos, utilizando bombas de gás lacrimogêneo e tiros

nas pernas e pés dos trabalhadores, o que levou Pedro Lopes dos

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Santos, de 54 anos, a amputar a perna esquerda em virtude de

ferimentos à bala e espancamento.

O governo do Estado prometeu uma solução para aquelas famílias. Passados dois anos sem a prometida solução, 46 famílias reocuparam

essa fazenda, em fevereiro de 1997. Em setembro do mesmo ano,

cerca de 80 homens encapuzados e armados com fuzis, escopetas, metralhadoras e coletes à prova de bala, invadiram a fazenda, dizendo

que estavam procurando as lideranças do MST. Queimaram todos os

barracos, inclusive um carro que estava no local, espancaram as

lideranças e atiraram aleatoriamente contra todo o acampamento. Posteriormente, os sem terra foram à delegacia para registrar a

ocorrência. Entretanto, o delegado se recusou a registrá-la. Esta

atitude revelava os primeiros indícios de uma posição política de intensificação do vínculo entre governo estadual e latifundiários,

grande parte deles organizado na UDR. (p.105-106)

Estes fatos mostram que a violência no campo não é algo somente do passado,

mas acompanha toda a nossa história e convive com o mito da não violência da

sociedade brasileira. Diante desta contradição, Chauí (1998) questiona: como é possível

que o mito da não violência ainda se sustente, mesmo com a grande divulgação da

violência real pelos meios de comunicação? E esclarece:

Pois bem, é justamente na maneira de interpretar a violência que o

mito encontra os mecanismos de conservação: graças a ele se pode

admitir a existência empírica da violência e, de maneira simultânea,

podem se fabricar explicações para negá-la no instante em que se produz. (p.36)

6

Assim, “a violência aparece como um fato esporádico e superficial” (CHAUÍ,

1998, p.1). Fala-se em massacre em referência ao assassinato em massa de pessoas

indefesas, não se distinguindo crime e ação policial. As vítimas da violência são postas

no lugar de agentes da violência, invertendo-se o real.

Esta inversão do real, em que vítimas são postas no lugar de agentes de

violência, é o que vem sendo feito pela mídia com o MST. Os sujeitos que compõem

este movimento são postos na condição de criminosos e não são reconhecidos como

vítimas de uma sociedade que exclui e expropria.

Das inúmeras reportagens sobre o MST divulgadas na mídia escolhi uma para

ilustrar este ponto: a da revista Veja (10/05/2000). Nesta reportagem aparece a seguinte

manchete: SEM TERRA E SEM LEI. Em seguida, a revista descreve uma ação do MST

em que, com o objetivo de reivindicar mais recursos para reforma agrária, cerca de

6 Tradução nossa.

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5.000 sem-terra ocuparam prédios públicos em catorze capitais. Entre as diversas fotos

ilustrativas da reportagem há uma montagem da imagem de João Pedro Stédile, um dos

líderes do movimento, sobre a imagem de James Bond segurando um revólver, e ao

lado da montagem há a descrição de uma lista de crimes que, segundo a revista, o MST

haveria cometido. O objetivo era destacar o caráter criminoso das ações do MST, como

podemos ver no trecho abaixo:

Tal era o empenho do MST em enfatizar suas reivindicações que seus

integrantes não hesitaram em violar o Código Penal em vários artigos. Invadiram repartições públicas, impedindo-as de funcionar,

mantiveram funcionários do Estado em cárcere privado. Danificaram

bens públicos e propriedades particulares. E tudo isso sem a menor sensação de que cometiam crimes. (p.45)

Sobre esta reportagem, Romão (2002) destaca que “o efeito de sentido

produzido naturaliza o Movimento como criminoso” (p.195), as ações positivas

realizadas pelo MST são desconsideradas e um único sentido é eleito: o de que o

movimento é violador das leis e perigoso.

Ao revelar os crimes cometidos pelos militantes, o discurso silencia os

crimes de que eles são vítimas. Colocando-os na posição de agentes criminosos, causas do mal, donos da agressão, apaga-se a violência

que eles sofrem, encobre o sofrimento que lhes é imposto no cotidiano

da miséria e da exclusão. (ROMÃO, 2002, p.196)

Assim, além de lidar com a violência da expropriação e com a exclusão, os

camponeses sem terra que aderem ao MST ainda se deparam com a responsabilização

pessoal por sua condição, ao serem chamados de criminosos e vagabundos. Suas

manifestações e reivindicações são constantemente deslegitimadas pela mídia e eles são

vistos como representantes de um passado arcaico7 do qual parte da sociedade brasileira

quer se livrar.

7 Em certa ocasião, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso afirmou que o MST

representava o arcaico em oposição ao moderno. (MARTINS, 1997)

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1.2- A influência da Igreja e construção dos objetivos do MST

Se, em certos casos (eu penso na Teologia da Libertação, na América do Sul), a religião pode levar os grupos sociais a se darem conta da

situação de dominação na qual eles vivem, ela lhes permite tomar

iniciativas, ter uma outra visão do mundo e conceber ações coletivas.

Ela assume então o papel de desalienação, habitualmente reservado à Sociologia e à Filosofia. (ENRIQUEZ, 1994, p.82)

A expulsão do campo e a expropriação de inúmeros trabalhadores rurais vindas

com a “modernização” da agricultura brasileira foram o principal fator que contribuiu

para o surgimento do MST. Um segundo fator8 destacado por Stédile e Fernandes

(1999) como fundamental para o surgimento do MST foi o trabalho realizado,

principalmente, pelas igrejas Católica e Luterana, orientado pela Teologia da

Libertação.

A Teologia da Libertação é um conjunto de escritos9 inspirados no marxismo

que teve como base um vasto movimento social da Igreja que envolveu padres, bispos,

ordens religiosas e movimentos laicos, a partir do início da década de 1960, na América

Latina. Os teóricos da Teologia da Libertação tomaram do marxismo suas opções ético-

políticas e a antecipação de uma utopia futura, mas também inovaram, a partir da sua

cultura religiosa e experiência social. Eles não usam, por exemplo, o termo “proletário”,

clássico do marxismo, usam em seu lugar o termo pobre. O cuidar dos pobres é uma

tradição milenar da Igreja, mas na Teologia da Libertação os pobres devem ser senhores

de sua própria emancipação, e não objeto de caridade. Assim como o marxismo,

também criticam o capitalismo, mas de uma forma ainda mais radical: sua crítica é uma

crítica moral10

(LÖWY, 2002).

Seguindo esta orientação, a partir da década de 1970 se multiplicaram no Brasil

as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs eram formadas por pequenos

grupos de pessoas da periferia ou da zona rural, organizados por padres e leigos, em

torno de uma paróquia (urbana) ou capela (rural). De acordo com Frei Beto (1981),

8 Um terceiro fator que também contribui para o surgimento do MST, apresentado por Stédile e Fernandes

(1999), que não será discutido aqui, foi o processo de redemocratização pelo qual o país estava passando,

no qual os movimentos sociais tiveram um papel fundamental 9 Os principais autores da Teologia da Libertação, no Brasil, de acordo com Löwy (2002) são: Rubem

Alves, Hugo Assmann, Carlos Mesters, Leonardo e Claudio Boff. 10 Segundo Martins (1989), a crítica moral que a Teologia da Libertação faz do capitalismo é de que este

“brutaliza, marginaliza e empobrece o ser humano”.

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dois fatores correlatos marcam os membros das comunidades rurais e

urbanas: a expropriação da terra e a exploração do trabalho. Migrantes

e oprimidos, os membros das comunidades, se outrora buscavam na religião um sedativo para os sofrimentos, encontram agora um espaço

de discernimento crítico frente à ideologia dominante e de

organização popular capaz de resistir à opressão. (p.20)

Num momento em que a esquerda tinha sido desmobilizada pelo golpe de 64 e

sofria com a repressão, as CEBs foram um espaço importante de escuta dos

expropriados da terra e explorados do trabalho. Nela os camponeses encontraram um

lugar para discutir seus problemas comuns e refletir sobre a ação que seria tomada para

solucioná-los, tendo como base uma leitura político-religiosa da Bíblia. A leitura da

Bíblia realizada nas CEBs consistia em relacionar o cotidiano dos camponeses aos

textos bíblicos, enfatizando principalmente a relação entre a história de Moisés, dos

hebreus e da terra prometida e as histórias pessoais daqueles indivíduos, o que os ajudou

a reconhecer a comum situação de opressão e a se identificar como grupo

(TARELHO,1988).

Além das CEBs, a Igreja passou a contar, a partir do ano de 1975, também com a

Comissão Pastoral da Terra (CPT) – criada com “(...) o objetivo de interligar ,

assessorar e dinamizar os que trabalhavam na pastoral popular junto aos camponeses”

(MOREIRA, 1994, p.21), sem intenção de substituir sindicatos, partidos políticos ou

organizações camponesas. A CPT tornou-se importante espaço de denúncia e registro

dos conflitos no campo: numa época em que as informações eram controladas, era ela

que fornecia à imprensa dados sobre a violência no meio rural.

Para Stédile e Fernandes (1999), a prática da Teologia da Libertação (nos

espaços das CEBs e na orientação da CPT) propiciou a mudança da perspectiva da

espera da terra nos céus para a organização da luta pela terra e conscientização dos

camponeses. Ao propor a terra como bem natural concedido a todos os homens, e não

apenas a alguns, as CEBs e a CPT desempenharam um papel fundamental no

questionamento da propriedade privada da terra e reivindicação do acesso a ela para

aqueles que dela eram excluídos (TARELHO,1988).

No interior das CEBs e da CPT formaram-se muitos dos líderes e militantes do

MST. João Pedro Stédile, por exemplo, afirmou, em entrevista à revista Caros Amigos

(1997), ter-se vinculado à CPT no momento em que esta Comissão estava apenas

iniciando suas atividades. No processo de expansão para o Nordeste, os primeiros

militantes do MST que se deslocaram para lá tinham alguma vinculação com a Igreja

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(Pastoral da Juventude ou CEBs), e alguns até mesmo deixaram a ordem religiosa para

militar no movimento (LERRER, 2008).

Antes do nascimento do MST a CPT já estava presente em quase todas as lutas

no campo e possuía uma organização nacional. Foi a CPT a principal articuladora da

transformação das experiências localizadas de luta pela terra em um movimento

nacional. No ano de 1982 a CPT realizou dois importantes encontros - um em

Medianeira - PR e o outro em Goiânia – GO. Este último foi um encontro nacional. A

partir desses encontros, as lideranças camponesas do Sul do País começaram a se reunir

e a discutir a possibilidade da organização de um movimento mais amplo. Foi então

proposta a realização do primeiro encontro nacional de sem-terras. (DOMINGUES,

2001)

O “I Encontro Nacional dos Sem Terra” foi realizado na cidade de Cascavel -

PR, em 1984. Nele foi fundado o MST e foram elaborados seus objetivos gerais:

1- Que a terra só esteja nas mãos de quem nela trabalha; 2- Lutar por uma sociedade sem exploradores e sem explorados; 3- Ser um

movimento de massa autônomo dentro do movimento sindical para a

conquista da reforma agrária; 4- Organizar os trabalhadores rurais na base; 5- Estimular a participação dos trabalhadores rurais no sindicato

e no partido político; 6- Dedicar-se à formação de lideranças e

construir uma direção política dos trabalhadores; 7- Articular-se com

os trabalhadores da cidade e da América Latina. (MST, 2001, online)

Os objetivos elaborados neste encontro mostram que o MST, desde o início,

insere sua bandeira de luta – a reforma agrária – num campo de reivindicações mais

amplo, que é a luta por uma sociedade sem exploradores e sem explorados, envolvendo

trabalhadores do campo e da cidade, para além das fronteiras do país. Embora ao longo

do tempo tenham sido incorporadas novas bandeiras de luta (por exemplo, a

agroecologia), a reforma agrária inserida no contexto da luta por uma sociedade

igualitária permanecerá como centro de suas reivindicações.

Segundo Stédile e Fernandes (1999), este primeiro encontro foi fundamental,

porque definiu como seria o MST: um movimento de massa, autônomo e independente

– não deveria ser do sindicato ou da Igreja. Aproximadamente 100 pessoas participaram

deste encontro. No ano seguinte, o MST realizou-se o seu “I Congresso Nacional” em

Curitiba - PR, desta vez com aproximadamente 1.500 participantes e a com a palavra de

ordem “Sem reforma agrária, não há democracia”.

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As palavras de ordem empregadas pelo MST sintetizam o momento histórico

que o movimento vivia e vive e sua relação com o contexto no qual ele está inserido.

Oliveira (2007) as analisa e diz que este é um caminho para entender o MST. Vejamos

o que ele diz:

Quando ocorreu a formação do MST, na década de 80, o lema era

“Terra para quem nela trabalha”(1979/1983). Depois, quando

começou a enfrentar resistência ao acesso à terra, o novo lema foi: “

Terra não se ganha, terra se conquista (1984). Quando o MST se fortaleceu e avançou, sobretudo no Governo Sarney, e quando

percebeu que o Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária não

estava sendo implementado, os lemas passaram a ser: “Sem Reforma Agrária não há democracia”(1985) e “Reforma Agrária já” (1985-6).

Como a violência aumentou, violência que não atingiu apenas os

trabalhadores, mas lideranças, advogados, políticos, religiosos, etc., o MST mudou suas palavras de ordem: “Ocupação é a única solução”

(1986), “ Enquanto o latifúndio quer guerra, nós queremos terra”

(1986-7) e por ocasião da Constituinte, “ Reforma Agrária: na lei ou

na marra” (1988) e “ Ocupar, resistir e produzir” (1989), depois que os assentamentos começaram a ser conquistados. (OLIVEIRA, 2007,

p.140)

“Ocupar, resistir e produzir” também foi a palavra de ordem empregada no II

Congresso Nacional do MST, realizado em 1990. Em 1995, a palavra de ordem do III

Congresso Nacional foi “Reforma agrária: uma luta de todos”. A qual reflete, segundo

Oliveira (2007), um momento político importante de tomada de consciência de que a

reforma agrária só será possível com o envolvimento de toda sociedade. Nesse

congresso também, o movimento reelaborou seus objetivos gerais, que passaram a ser:

1-Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho

tem supremacia sobre o capital; 2- A terra é um bem de todos. E

deve estar a serviço de toda sociedade; 3-Garantir trabalho a

todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas; 4-

Buscar permanentemente a justiça social e a igualdade de

direitos econômicos, políticos, sociais e culturais; 5-Difundir os

valores humanistas socialistas nas relações sociais; 6- Combater

todas as formas de discriminação social e buscar a participação

igualitária da mulher. (MST, 2001, online)

Com esta nova formulação, o MST reafirmou os objetivos e reivindicações

anteriores e a luta pela construção de uma nova sociedade foi enfatizada, passando a ser

o primeiro dos seus objetivos (“Construir uma sociedade sem exploradores e onde o

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trabalho tem supremacia sobre o capital”), enquanto anteriormente era a conquista da

terra (“Que a terra só esteja nas mãos de quem nela trabalha”).

Nos seus congressos nacionais realizados em 2000 e 2007 os objetivos definidos

em 1995 foram reafirmados e ampliados. As palavras de ordem destes congressos

foram, respectivamente, “Reforma agrária: por um Brasil sem latifúndios” e “Reforma

agrária: por justiça social e soberania popular”. Ao final de seu último congresso

nacional, realizado em 2007, foi elaborada uma carta em que os envolvidos assumiram

18 compromissos de luta, entre os quais destaco a luta contra o neoliberalismo e contra

a supremacia dos interesses do capital. Cito alguns trechos deste documento com os

compromissos assumidos:

1- Articular com todos os setores sociais e sua formas de organização

para construir um projeto popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo

brasileiro. (...) 3- Lutar contra as privatizações do patrimônio público

(...). 4- Lutar para que todos os latifúndios sejam desapropriados e prioritariamente as propriedades do capital estrangeiro e dos bancos.

(...) 6- Combater as empresas que querem controlar as sementes, a

produção e o comércio agrícola brasileiro (...). (MST, 2009, online)

A carta termina convocando o povo brasileiro a se organizar e lutar por uma

sociedade mais justa e igualitária, luta que acompanha o MST desde seus primórdios. O

desejo da construção de uma sociedade igualitária e a adesão aos ideais de

transformação social são o que move seus líderes e militantes e impulsiona suas lutas;

no entanto, nem todos aqueles que aderem ao MST são movidos pelos mesmos ideais,

pois existem aqueles que almejam apenas um pedaço de terra e a possibilidade de

manter-se dignamente enquanto camponeses. Não obstante, de alguma maneira, a

adesão ao MST transforma a vida de todos.

1.3- Educação e emancipação: a modernidade do MST

“A frente de batalha da educação é tão importante

quanto a da ocupação de um latifúndio ou a de massas.

A nossa luta é para derrubar três cercas:

a do latifúndio, a da ignorância e a do capital”. (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p.74)

A formação e a escolarização de seus integrantes é uma preocupação que

acompanha o MST desde sua origem. Inicialmente foram as mães e professoras que

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reivindicaram o direito ao acesso à escola para as crianças que iam para os

acampamentos juntamente com suas famílias. Essas mães e professoras também foram

as primeiras a realizar atividades educacionais com as crianças e a explicar a elas o que

estavam fazendo ali e qual o sentido da luta pela terra. (CALDART, 2004)

Como reivindicar o acesso à escola, geralmente, não resolvia o problema, o MST

logo passou à ação e começou a criar suas próprias escolas e em seguida lutar pela

legalização delas (CALDART, 2004). A mesma metodologia que o MST emprega para

reivindicar a terra passou a ser usada também em relação à educação: agir aqui e agora.

Por isto, Caldart afirma que o MST ocupou também a escola não somente no sentido

figurado, mas muitas vezes no sentido literal - por exemplo, quando seus integrantes

acampam em frente a uma secretaria de educação para fazer alguma reivindicação.

A demanda das famílias pelo acesso à escola o MST assumiu para si como uma

tarefa, e não sem reivindicar dos poderes públicos este direito, criou, em 1987, um setor

específico para lidar com esta questão, o Setor de Educação, e realizou o I Encontro

Nacional de Professoras de Assentamento. A escola foi incorporada em sua dinâmica e

qualquer acampamento ou assentamento do MST deveria ter uma escola, que não

poderia ser uma escola qualquer. A escola para o MST “(...) deve ser vista não apenas

como um lugar de aprender a ler, a escrever e a contar, mas também de formação dos

sem-terra como trabalhadores, como militantes, como cidadãos, como sujeitos”.

(CALDART, 2004, p.272)

Mesmo quando conquistada uma escola pública dentro de um assentamento, os

problemas não terminavam, pois muitas vezes a professora enviada à escola pelo

município não estava de acordo com a visão de escola do MST, nem com o movimento

como um todo. O MST, por sua vez, reivindicava que os professores fossem do

movimento, mas muitas vezes não tinham pessoas com a formação e titulação

necessárias para realizar tal tarefa. Diante deste impasse, inicia-se no movimento uma

discussão sobre a necessidade de formar os próprios professores e também de

sistematizar sua proposta pedagógica para ser entendida por todos. (CALDART, 2004)

Em resposta à necessidade de formar seus professores, o MST, em parceria com

a Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Religião Celeiro

(FUNDEP)11

, iniciou uma primeira turma de Magistério no Rio Grande do Sul, em

1990, no município de Braga. No ano seguinte lançou um primeiro texto sobre sua

11 O FUNDEP posteriormente deu origem ao Instituto de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

(ITERRA)

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proposta pedagógica, o Caderno de Formação n.º 18: “O que queremos com as escolas

dos assentamentos”, para servir de orientação àqueles que viriam trabalhar em suas

escolas. (CALDART, 2004)

Por outro lado, não eram somente as crianças em idade escolar que necessitavam

de escolas e dos professores de formação. Muitos jovens e adultos eram analfabetos ou

precisavam de condições que tornassem possíveis sua escolarização e formação para

lidar com novos problemas que surgiam, relacionados à produção, gerenciamento de

cooperativas, etc. As crianças menores (0 a 6 anos) precisavam de educação infantil. Os

líderes e militantes necessitavam de uma formação adequada para exercerem suas

funções. O MST buscou desenvolver iniciativas que atendessem a todas estas

demandas.

Em 1995-96 o MST deu início ao Movimento Nacional de Educação de Jovens e

Adultos. Antes disso, já existiam iniciativas de alfabetização de jovens e adultos nos

estados. No caso da educação infantil, também desde o início do movimento existiam

iniciativas como o “rodízio de mães” e “creches improvisadas”; mas foi mais ou menos

na mesma época que começou o Movimento Nacional de Educação de Jovens e

Adultos, que teve início com as cirandas infantis. Inspiradas nos círculos infantis

existentes em Cuba, as cirandas são espaços educativos em que os pais podem deixar os

filhos quando trabalham ou estudam. Elas podem ser permanentes (por exemplo: em um

assentamento ou cooperativa) ou provisórias12

(por exemplo, em curso ou encontro de

curta duração). (CALDART, 2004)

Segundo Lerrer (2008), a preocupação em formar seus líderes e militantes

acompanha o MST desde seu início. Já em 1986, o Jornal Sem Terra anunciou a

realização de diversos cursos, tais como: I Curso de Capacitação da Coordenação

Nacional do MST e o Curso de Jovens Monitores do Movimento Sem Terra. Em 1993,

segundo Caldart (2004), tiveram início também propostas de escolarização, combinadas

com a formação de militantes, como o curso de Técnico de Administração de

Cooperativas (curso de nível médio), através da FUNDEP, no Rio Grande do Sul.

Em 1998 o Governo Federal criou o Programa Nacional de Educação na

Reforma Agrária (PRONERA) para atender a reivindicação do MST e de outros

12 Em 2007 a autora foi convidada para ministrar um seminário em um curso de especialização em

Educação do Campo (fruto de uma parceira entre MST e UFPR). Durante o curso, geralmente realizado

em períodos de férias e finais de semana, as mães que tinham filhos pequenos contavam com o apoio de

uma ciranda infantil , duas jovens cuidavam das crianças enquanto as mães estavam em aula ou

estudavam.

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movimentos sociais do campo pelo acesso a uma educação de qualidade em todos os

níveis. Atualmente o MST, com recursos do PRONERA, investe em educação infantil,

alfabetização de jovens e adultos, cursos técnicos e profissionalizantes, cursos de

graduação e pós-graduação, realizados em parceria com diversas instituições de ensino.

Segundo o Jornal Sem Terra (2009), o PRONERA:

De 1998 a 2002, foi responsável pela formação de 122.915 assentados. De 2003 a 2008, cerca de 400 mil jovens e adultos

assentados já foram escolarizados através do programa, e atualmente

17.478 mil estão em processo de educação formal, pública e de

qualidade, em 76 cursos pelo Brasil. (online)

Cerca de 300 mil pessoas estão atualmente estudando no MST, da educação

infantil à universidade. São aproximadamente duas mil escolas públicas em

assentamentos e acampamentos, nas quais trabalham dez mil professores, além de 250

cirandas infantis e 45 escolas itinerantes13

. Mais de 50 mil pessoas já aprenderam a ler e

escrever no MST. (JORNAL SEM TERRA, 2009)

O investimento que o MST vem fazendo na educação e na formação do ser

humano e as consequências disso na emancipação de milhares de pessoas são a

principal característica de sua modernidade14

. Em discurso de comemoração dos 25

anos do MST, Stédile (2008) diz que ao longo de sua existência o MST “conquistou 14

milhões de hectares de terra do latifúndio (área maior que o Uruguai), porém sua maior

conquista foi que o pobre deixou de andar com a cabeça baixa”. A emancipação das

pessoas é o mais importante e isso se faz, para o MST, não somente com acesso à terra e

com as condições par tirar dela o sustento, mas também com educação.

Outros autores, como José de Souza Martins, Ariovaldo Umbelino de Oliveira e

Débora Franco Lerrer, também defendem a ideia de que o MST representa o moderno

no campo brasileiro, ideia que se contrapõe ao que aparece na mídia e ao que certa vez

foi dito pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso: que o MST

representa o arcaico em oposição ao moderno.

Para Martins (2008), a modernidade do MST está na “ressocialização

modernizadora” que ele produz. Nos acampamentos, o convívio e a luta coletiva

13 Escolas que acompanham os acampamentos. 14

O projeto da modernidade que se consolida a partir do século XVIII, tem como centro a razão e vê na

acumulação dos conhecimentos um meio de alcançar seus objetivos: a emancipação humana e o

enriquecimento da vida (HARVEY, 2005).

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promovem uma ressocialização que alarga os horizontes. Nos assentamentos, este

alargamento dos horizontes leva à reinvenção de antigas formais de sociabilidade,

próprias do camponês, as quais são revigoradas e enriquecidas. A modernidade do MST

também está na “reinvenção da sociedade”, na criatividade, na modernização

tecnológica e econômica que leva aos camponeses sem terra e na sua reação “(...) aos

efeitos perversos do desenvolvimento excludente da modernidade”. (p.38) Para Martins,

o MST cumpre na sociedade brasileira o mesmo papel modernizador que as condutas

corporativas e a tradição tiveram na Inglaterra no século XVIII, na conquista de direitos

sociais e na tentativa de impor limites à prevalência do lucro em detrimento da pessoa

humana.

Já para Oliveira (2007), é o agronegócio (monocultura de exportação) que

representa o passado, e não o MST. Dizer que o agronegócio não representa a

modernidade pode parecer absurdo se não consideramos, como diz Martins (2008), que

a modernidade só pode ser reconhecida enquanto tal se acompanhada da “consciência

crítica do moderno” 15

. Neste sentido, são as ações políticas do MST que representam a

modernidade num sentido pleno, e não o agronegócio:

Ao contrário desse grupo, hoje associado ao termo “agronegócio”, o

MST propõe uma modernidade emancipadora, calcada no

investimento na instrução formal, na formação política e advoga um modelo agrícola desconcentrador de riqueza e ambientalmente

responsável. (LERRER, 2008, p.12)

Lerrer (2008), por sua vez, considera que a formação e a educação constituem “o

aspecto emancipatório mais sólido” do MST. A luta do movimento poderia se restringir

ao acesso à terra, mas não o faz ao reivindicar o acesso de todos às conquistas da

modernidade e ao lutar por uma sociedade igualitária.

CAPÍTULO 2 : O CAMPO E A METODOLOGIA DA PESQUISA

O presente capítulo tem como objetivo apresentar o campo e a metodologia da

pesquisa. O campo é o local onde se realizou o encontro entre a pesquisadora e os

participantes da pesquisa: uma escola de agroecologia16

do MST localizada no Estado

15 Para Martins (2008), no Brasil a “consciência crítica do moderno” se expressa muito mais no deboche,

na resistência ao novo do que em ações políticas organizadas. 16 Por razões éticas será omitido o nome da escola.

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do Paraná. Descreve-se brevemente como funcionam estas escolas e quais são os

princípios e os fundamentos da sua proposta pedagógica. O campo também é o

encontro, o contato inicial, a relação transferencial em que os dados foram construídos.

A metodologia foi a pesquisa-intervenção psicanalítica, que, além do levantamento e

discussão dos dilemas do militante, também teve como objetivo proporcionar aos

participantes um espaço de palavra e reflexão.

2.1- As escolas de agroecologia do MST no Paraná: formando o técnico militante

Inicialmente o MST lutava para que todos os agricultores tivessem acesso a toda

a tecnologia disponível para a produção agrícola, como, por exemplo, maquinário e

agrotóxicos; com o passar do tempo foi percebendo que esta não era a melhor forma de

produzir nos assentamentos. Foi somente no seu IV Congresso Nacional, em 2000, que

o movimento fez a opção pela agroecologia17

. Como os técnicos já formados não eram,

em sua maioria, capacitados para trabalhar com esta proposta, o MST e a Via

Campesina assumiram para si o desafio de formar novos técnicos (TARDIN18

, 2007).

No Paraná, o MST e a Via Campesina, em parceria com a UFPR, criaram

quatro escolas técnicas de agroecologia. O primeiro centro de formação/escola criado no

Paraná foi o Centro de Desenvolvimento Sustentável Agropecuário de Educação e

Capacitação em Agroecologia e Meio Ambiente (CEAGRO), que começou a funcionar

em 1993 na região central do Estado, inicialmente em barracos de lona. Em 2000, na

região do Oeste do Paraná, o Instituto Técnico de Educação e Pesquisa da Reforma

Agrária (ITEPA) iniciou suas atividades transformando a antiga sede de uma fazenda

desapropriada em um centro de formação e na Escola Agrotécnica José Gomes da Silva.

Em 2002, no Norte do Paraná, tiveram início as atividades da Escola Milton Santos. Em

2005 começou a funcionar, na Região Metropolitana de Curitiba, a Escola Latino-

Americana de Agroecologia (ELAA). O CEAGRO, a Escola Agrotécnica José Gomes

da Silva e a Escola Milton Santos, a partir do convênio estabelecido com a UFPR, em

2002, passaram a oferecer o curso Técnico em Agropecuária com Ênfase em

17 Borges (2007) analisa esta questão em sua dissertação de mestrado A transição do MST para a

agroecologia. 18 Anotações pessoais da Reunião do projeto de ensino: “Políticas públicas e gestão: a educação do e no

campo”, em 30/08/2007.

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Agroecologia, em nível pós-médio e médio19

, e a ELAA, o curso de graduação

Tecnologia em Agroecologia, em 2005. (MST, s/d)

As escolas de agroecologia do MST visam à formação do técnico militante,

combinando a escolarização com a formação política. O técnico militante é aquele que,

além do domínio da técnica necessária para o exercício de sua função (no caso, a

produção agroecológica), tem clareza de que o domínio da técnica não é suficiente para

resolver os problemas e dificuldades com os quais ele irá se deparar em sua prática

profissional e que para tanto é necessário o “comprometimento com as lutas sociais e

vínculo organizativo com os movimentos” . (MST, s/d)

Para formar este técnico em agroecologia o MST utiliza como metodologia o

sistema de alternância. A pedagogia da alternância foi uma proposta pedagógica que

surgiu na França, em 1935, com a Maison Familiale Rurale. Seu objetivo é integrar

escola, trabalho e família e permitir que a família possa contar com o trabalho do

estudante em determinados períodos, já que há alternância de períodos na escola e na

família. Esta proposta rapidamente se expandiu para outros países, chegando ao Brasil

em 1968. Atualmente, existem cerca de 200 escolas Famílias Agrícolas no Brasil. Nelas

os estudantes têm a educação formal aliada à formação específica para o trabalho no

campo. (UNEFAB, 2009)

As escolas de agroecologia do MST não estão vinculadas às Escolas Famílias

Agrícolas e adotam o sistema de alternância à sua maneira. Segundo Guhur (2010), os

estudantes passam, em média, cerca de 45 a 70 dias na escola (tempo-escola) e 60 a 90

dias na comunidade (tempo-comunidade); a duração dos períodos varia de acordo com o

andamento da turma, os períodos de safra, o calendário de lutas sociais e mesmo os

atrasos no recebimento de recursos do Pronera.

No sistema de alternância das escolas de agroecologia do MST, o tempo escolar

é organizado em tempos educativos: tempo-formatura (tempo diário destinado à

motivação das atividades do dia, da mística20

, do cultivo da identidade, conferência das

presenças e informes), tempo-aula, tempo-trabalho, tempo-oficina, tempo-cultura,

tempo-reflexão escrita (tempo pessoal para registro das reflexões do dia em caderno

19 O curso pós-médio é destinado aos alunos que já concluíram o ensino médio e tem duração

aproximada de dois anos. O curso de nível médio, também chamado de integrado, oferece

simultaneamente a formação de ensino médio e a formação técnica, com duração aproximada de três anos

e meio. 20 A mística é um ritual inspirado na liturgia que o MST utiliza para celebrar seus ideais e manter a

unidade do grupo. (FERNANDES; STÉDILE, 1999)

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próprio), tempo-esporte e lazer, tempo-núcleo de base21

, tempo-estudo, tempo-leitura e

tempo-seminário. Estes tempos podem mudar ou ser extintos e não são os mesmos

todos os dias22

. (GUHUR, 2010)

No tempo-comunidade, de acordo com relatos dos próprios estudantes, eles se

integram aos acampamentos e assentamentos de origem e trabalham junto às suas

famílias e comunidades; alguns deles fazem estágio em cooperativas do MST ou

trabalham “por dia” para conseguir o dinheiro necessário para ir para a escola. Todos

levam tarefas da escola para realizar no tempo-comunidade, tais como leituras,

pesquisas de campo, registros, experimentações e o “Diálogo de Saberes”.

Segundo Guhur (2010), os cursos técnicos de agroecologia do MST no Paraná,

assim como os demais cursos formais do MST, visam construir uma “escola diferente”;

têm como modelo a experiência acumulada pela primeira escola formal do MST, a

Escola Josué de Castro, do ITERRA23

(Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da

Reforma Agrária) e seguem os seguintes princípios filosóficos e pedagógicos:

Princípios filosóficos: 1) educação para a transformação social; 2)

educação para o trabalho e a cooperação; 3) educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; 4) educação com/para valores

humanistas e socialistas; e 5) educação como um processo permanente

de formação/transformação humana. Princípios pedagógicos: 1) relação entre prática e teoria; 2) combinação metodológica entre

processos de ensino e de capacitação; 3) a realidade como base da

produção do conhecimento; 4) conteúdos formativos socialmente úteis; 5) educação para o trabalho e pelo trabalho; 6) vínculo orgânico

entre processos educativos e processos políticos; 7) vínculo orgânico

entre processos educativos e processos econômicos; 8) vínculo

orgânico entre educação e cultura; 9) gestão democrática; 10) auto-organização dos/das educandos; 11) criação de coletivos pedagógicos

e formação permanente dos educadores/das educadoras; 12) atitude e

habilidades de pesquisa; e 13) combinação entre processos

21 Os núcleos de base (NBs) são pequenos grupos nos quais os estudantes se organizam para realizar as

tarefas diárias. Além das atividades relacionadas ao estudo, os estudantes também são responsáveis pela

manutenção e funcionamento da escola, tais como: fazer a limpeza e cozinhar. 22 Guhur (2010) dá um exemplo de organização cronológica dos tempos educativos: “7:15 – 8:00 h Tempo Leitura Quatro vezes por semana

Tempo Notícias Duas vezes por semana 8:00 – 8:20 h Tempo Formatura Diariamente

8:20 – 12:00 h Tempo Aula De segunda a sábado

Tempo Trabalho 14:00 – 17:00 h Duas vezes por semana

Tempo Aula Três vezes por semana

17:00 – 18:00 h Tempo Educação Física Duas vezes por semana

20: 00 – 21:40 h Tempo Oficina Três vezes por semana

Tempo Núcleo de Base Uma vez por semana

21:40 – 22:00 h Tempo Reflexão Escrita De segunda a sábado”(p.158-159) 23 Localizada no município de Veranópolis-RS.

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pedagógicos coletivos e individuais (MST, 1997, citado por GUHUR,

2010, p.89).

Estes princípios são contemplados na grade curricular do curso de técnico em

agroecologia, que oferece, além das disciplinas técnicas, também disciplinas que visam

à formação humana e política; porém, mais do que na grade curricular, estes princípios

são contemplados na metodologia da alternância, na valorização do trabalho e na

organização e diversificação das atividades desenvolvidas, entre elas o “Diálogo de

Saberes”.

O “Diálogo de Saberes” é base para a elaboração do trabalho de conclusão de

curso que os alunos dos cursos médio e pós-médio de agroecologia têm que apresentar e

obter a aprovação de uma banca no final do curso. O “Diálogo de Saberes” implica que

os estudantes acompanhem algumas famílias assentadas que se disponham a participar

do trabalho ao longo de todo o curso, com o objetivo, segundo Tardin (2007), de

conhecer a história de vida, captar a visão de mundo, os valores, os sonhos e as

frustrações, e auxiliar as famílias na reconstrução de sua prática agrícola.

Os fundamentos teóricos do “Diálogo de Saberes” são: a pedagogia freireana, a

agroecologia e o materialismo histórico-dialético. O método busca a interlocução entre

conhecimentos populares e científicos e tem como base experiências de educação

popular desenvolvidas na América Latina, principalmente o método Campesino a

Campesino24

. Sua utilização exige conhecimento da pedagogia freireana, agroecologia,

história da agricultura e do mundo camponês (TARDIN, 2006, citado por GUHUR,

2010).

Para realizar o trabalho seguindo a proposta do “Diálogo de Saberes”, os

estudantes seguem alguns passos. Primeiro, eles devem partir da história de vida

daqueles junto aos quais realizam sua intervenção. A pergunta inicial proposta ao

interlocutor é: “Do que você se lembra desde que se conhece por gente?”. A partir desta

virão outras, e a ideia é que o estudante possa estabelecer relações entre a história do

seu interlocutor e da agricultura, da luta pela terra, etc. O segundo passo é “o

reconhecimento conjunto do ambiente/espaço”, através do levantamento de dados como

infraestrutura, paisagem, biodiversidade, produção, organização e trabalho; o terceiro é

24 “Esse método se funda na experiência da Unión Nacional de Agricultores y Ganaderos-UNAG, da

Nicarágua, criada em 1981, aglutinando camponeses e produtores de médio porte que colaboravam com

as guerrilhas sandinistas”. (TARDIN, 2006, citado por GUHUR, 2010, p.177)

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a sistematização e análise dos dados; e o quarto passo é a intervenção a partir da

“síntese cultural” (TARDIN, 2006, citado por GUHUR, 2010).

A “síntese cultural” é um conceito de Paulo Freire que se opõe à noção de

“invasão cultural”. Para Freire (1979), o técnico que faz sua intervenção

desconsiderando o saber do camponês e tentando persuadi-lo a usar novas técnicas,

impondo seus valores e sua visão de mundo, age como um invasor cultural. Em

oposição a este tipo de atuação, Freire propõe que o técnico seja também um educador

que problematize com os camponeses sua realidade, ajudando-os a entendê-la

criticamente e a atuar sobre ela. O saber do camponês não é desconsiderado, ele é

também sujeito e a intervenção será construída a partir do saber de ambos – o camponês

e o técnico. Para tanto, é fundamental o diálogo, que deve ter como objeto a vida diária

do camponês, e não as técnicas.

2.2- O contato inicial com a escola

O primeiro contato entre a pesquisadora e a escola de agroecologia do MST deu-

se no início de 2007. Alguns professores da universidade prestavam assessoria à escola

e buscavam uma professora da área da Psicologia para se juntar ao grupo, atendendo a

uma solicitação da própria escola. Como a pesquisadora é professora de Psicologia e fez

o mestrado sobre o MST, recebeu o convite.

Na primeira visita à escola, um de seus coordenadores mostrou à pesquisadora

as dependências do estabelecimento, ainda em construção. Como é comum nas escolas

do MST, as aulas começam antes de as escolas estarem completamente construídas e

estas vão sendo edificadas juntamente com os cursos. Neste primeiro encontro, uma das

coordenadoras da escola falou sobre as dificuldades enfrentadas, entre elas a dificuldade

de alguns alunos em aprender e realizar as tarefas do tempo-comunidade. Em resposta a

esta demanda, a pesquisadora esclareceu que dificuldades de aprendizagem não eram de

sua área de trabalho, mas que gostaria de conhecer os alunos e fazer uma proposta de

trabalho. A proposta feita foi realizar uma oficina de autoconhecimento e relações

interpessoais, com o intuito de conhecer os alunos e já realizar alguma intervenção.

Esta proposta de trabalho foi aceita pela escola e incluída em um dos tempos

educativos da escola, o tempo-oficina. Foram realizados cinco encontros de 1h30min

de duração, sempre no período noturno. Os objetivos propostos para a oficina foram:

possibilitar discussões e reflexões sobre temas referentes ao relacionamento

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interpessoal, aumentar o autoconhecimento e o conhecimento interpessoal e conhecer o

grupo para elaborar novas propostas de atividades.

O primeiro encontro foi destinado às apresentações e ao levantamento dos temas

de interesse; o segundo teve como tema os problemas de comunicação; o terceiro

encontro versou sobre o preconceito e a discriminação; o quarto, sobre os ideais

individuais e coletivos; o quinto encontro teve como tema a autoestima, e nele também

fizemos uma avaliação das oficinas e já programamos mais dois encontros, um para

levantar as dificuldades encontradas no tempo-comunidade − já que estavam encerrando

aquele tempo-escola e eles estavam se preparando para mais um tempo-comunidade − e

outro para discutir como lidar com as dificuldades encontradas.

Os dois encontros sobre o levantamento das dificuldades do trabalho no tempo-

comunidade e das possíveis estratégias de lidar com elas foram realizados no final de

2007. Trabalhar com esta questão foi uma demanda apresentada pela escola e também

uma necessidade sentida pelos estudantes. Entre as dificuldades encontradas os

estudantes relataram: a dificuldade em levantar as informações relacionadas ao

“Diálogo de Saberes”; a dificuldade de trabalhar com a mudança da visão tradicional da

agricultura para a agroecologia, pois as famílias viam o técnico como aquele que

prescreve o que fazer (modelo criticado por Paulo Freire); o fato de os técnicos não

serem vistos pelas famílias como estudantes, mas como técnicos profissionais e,

consequentemente, serem cobrados como técnicos, e não como estudantes em formação;

e falta de confiança, por não saberem se iam terminar o curso. Além de relatar suas

dificuldades, eles mesmos também apresentavam as possíveis estratégias de como lidar

com elas. A contribuição da pesquisadora com a discussão foi elaborar um pequeno

texto sobre a entrevista como técnica de pesquisa, o qual foi discutido entre eles.

Destes primeiros encontros não foram feitos relatos sistemáticos. Apenas o

quarto encontro sobre ideais individuais e coletivos teve como resultado uma produção

escrita, que é analisada no último capítulo. Embora estas atividades não tivessem o

caráter de pesquisa quando foram realizadas, nem tenha sido feito um relato

sistematizado delas, elas foram importantes para o estabelecimento do vínculo inicial

entre a pesquisadora e o grupo, o que possibilitou, posteriormente, a realização da

pesquisa-intervenção psicanalítica. Convém ainda destacar que a aproximação da

pesquisadora com o grupo se deu a partir de uma demanda de intervenção da

coordenação da escola e do lugar de professora universitária que ela ocupa.

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O MST, como foi dito no primeiro capítulo, estabelece relações de parceria com

universidades no intuito de tornar acessível a educação àqueles que durante muito

tempo tiveram este direito negado − daí, talvez, a pressa em começar os cursos ainda

que não existam prédios para escolas ou que estes ainda se encontrem inacabados. Os

professores que vêm das universidades para contribuir com o MST são chamados por

eles de educadores, terminologia proposta por Paulo Freire, para quem “(...) o educador

já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o

educando que, ao ser educado, também educa” (FREIRE, 2005, p.79). Foi a partir deste

lugar de educadora que a pesquisadora passou a ser vista por eles e que em seguida

realizou a pesquisa-intervenção psicanalítica.

2.3- A pesquisa-intervenção psicanalítica

Em 2008 a coordenação da escola solicitou à pesquisadora que desse

continuidade, com os estudantes, ao trabalho com as oficinas. Nesse momento a

pesquisadora já manifestou a intenção de realizar um trabalho de pesquisa-intervenção

vinculado a uma tese de doutorado. O projeto de pesquisa foi enviado à coordenação da

escola, assim como lhe foi esclarecido qual seria a proposta de trabalho. A coordenação

da escola concordou com a realização da pesquisa, que também foi aprovada pelo

comitê de ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

No primeiro encontro com os estudantes lhes foi apresentada a proposta de

pesquisa-intervenção e lhes foi esclarecido que esta seria a base para a elaboração de

uma tese de doutorado, que versaria sobre os dilemas do militante no MST. Todos

concordaram em participar da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e

esclarecido25

. Nesse mesmo encontro foram apresentados alguns temas que poderiam

ser trabalhados: gênero, preconceito, exigências internas e externas, relação familiar,

projetos para o futuro, ideais e imagem, violência e luto, identidade, deslocamento e

migrações; eles puderam escolher entre os temas apresentados e também sugerir outros

temas de interesse, relacionados aos dilemas do militante no MST. Eles sugeriram os

temas Autoestima e Tensão individual/coletivo e escolheram os temas: Gênero,

exigências internas e externas; Relação familiar; Ideais/imagem/identidade; Violência e

luto. O grupo foi dividido aleatoriamente em dois subgrupos (grupo 1 e grupo 2) e foi

25 Modelo em anexo.

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combinado um encontro semanal com duração aproximada de duas horas para cada

subgrupo.

Os estudantes participantes da pesquisa foram, ao todo, 23, e os mesmos que

haviam estado presentes nas oficinas no ano anterior, a grande maioria do sexo

masculino, com idades que variavam entre 17 e 31 anos, no início da pesquisa-

intervenção. Eram filhos de assentados/acampados do MST, alguns deles eram filhos de

dirigentes e militantes e haviam recebido o convite para fazer o curso técnico em

agroecologia.

Os sete primeiros encontros foram realizados no primeiro semestre de 2008, no

período da manhã. Após esse período os alunos foram para suas comunidades (tempo-

comunidade), e quando retornaram à escola foram realizados mais três encontros, no

período da noite. Nestes últimos encontros foram trabalhados dois temas que não

haviam sido previamente selecionados, mas eram de interesse dos estudantes:

deslocamentos da escola para a comunidade e projetos para o futuro. No mesmo período

da realização dos últimos encontros a pesquisadora também ministrou quinze horas-aula

da disciplina de Psicologia, para o mesmo grupo, atendendo uma solicitação da escola.

Todas as atividades realizadas integraram a carga horária do curso.

Diferentemente das oficinas realizadas no ano anterior, nas quais a ideia era que

eles vivenciassem algumas situações e as quais tiveram um caráter mais lúdico, na

pesquisa-intervenção psicanalítica a intenção foi criar um espaço de palavra e reflexão

em que os estudantes pudessem expressar sua singularidade, falar de si próprios e de

suas vivências. A demanda de um trabalho deste tipo foi levantada em vários momentos

no Seminário Subjetividade e a Questão da Terra, e também se fez presente no grupo

participante desta pesquisa. Vejamos alguns trechos do seminário em que esta demanda

apareceu.

Na mesa de abertura do seminário a psicóloga Giseli Siqueira, do setor de saúde

do MST26

, trouxe uma preocupação com a saúde do militante e se questionou sobre:

“Como se faz o equilíbrio entre luta, família, exigências e sobrevivência?” (p.22), e

destacou: “É importante criar espaços onde as escolhas e os conflitos individuais

possam ser compartilhados” (p.23). No debate que se seguiu a esta exposição foi

26 O MST é organizado em diversos setores e durante o seminário a dinâmica de trabalho adotada foi a

apresentação de alguns setores do MST (saúde, direitos humanos, formação, gênero e educação)

enfocando os desafios enfrentados pelo setor, seguido de debate.

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lembrada a dimensão terapêutica que já existe no próprio movimento, “sua disposição

para renovação e para mudança” e a “ mística”(p.25).

Após a exposição do setor de gênero, o debate encerrou-se da seguinte forma:

Queria lançar uma ideia para irmos pensando nela. A necessidade de

ter um espaço no cotidiano dos assentamentos e acampamentos para

as pessoas conversarem sobre os temas. Não no sentido de resolvê-los. O MST é muito pragmático. Tem um problema, tem que ter uma ação

para resolvê-lo.(...) Não precisa ser uma ação específica. É somente

uma conversa, sem ser burocratizada ou pragmática. As angústias podem ser compartilhadas e as pessoas podem se sentir mais

amparadas. Seria uma instância de uma conversa mais solta. E isto

pode ser realizado em qualquer tema.” (SEMINÁRIO

SUBJETIVIDADE E A QUESTÃO DA TERRA, 2004, p.48)

Na exposição do setor de direitos humanos, foi lembrado que os militantes têm

que fazer a luta e não encontram “tempo para ficar conversando sobre sentimentos”;

mas que é importante a criação de um espaço em que eles possam expressar seus

sentimentos, seus sofrimentos, e falar de suas próprias histórias e “das marcas” que a

luta deixa. Na exposição do setor de saúde foi apresentada como desafio a discussão

sobre a afetividade e a sexualidade no MST:

Como trabalhar as relações, a afetividade e a sexualidade dentro do

Movimento é um grande desafio. Temos muito presentes que o

militante é militante, não pode se dar o direito de ser afetivo, sensual, se mulher não pode se pintar, usar um colar, porque é olhada de

forma estranha. (...) É preciso fortalecer a ideia de que ser militante

não significa estar em uma caixa quadrada onde não há sentimento e afetividade.” (SEMINÁRIO SUBJETIVIDADE E A QUESTÃO DA

TERRA, 2004, p.65-66)

Todas estas questões apresentadas no seminário serviram de base para a

elaboração da pesquisa-intervenção, que não abordou a totalidade das questões, apenas

tocou alguns pontos. Adotou-se a ideia de trabalhar com temas, e a divisão em dois

grupos (um grupo com 11 e um com 12 integrantes) foi pensada para que os militantes

tivessem mais tempo para falar sobre suas vivências. Cada encontro teve um tema e

foram utilizadas estratégias variadas para que emergisse a fala de cada um. Estas

estratégias foram planejadas e definidas, após a definição dos temas dos encontros. Na

sequência apresenta-se como foram organizados os encontros, algumas impressões

pessoais da pesquisadora e alguns recortes do contexto em que aconteceram os

encontros.

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O primeiro encontro, com o tema Relação familiar, iniciou-se com a questão: “O

que é uma família pra você?”. Depois que todos falaram, a proposta foi que eles

falassem sobre suas famílias e relatassem uma cena familiar. Após este encontro, duas

observações foram anotadas no diário de campo da pesquisadora: uma sobre a imagem

de Che Guevara, que estava por toda a parte - nas roupas, boinas e bolsas dos estudantes

e sobre a mesa do professor, na bandeira vermelha que servia como “toalha de mesa”; a

segunda, sobre os relatos, não especificamente sobre o conteúdo, mas sobre a forma

como eram feitos, sempre acompanhado de crítica e reflexão sobre as próprias ações.

O segundo encontro, com o tema Exigências internas e externas, a proposta foi

que eles escrevessem quais eram as exigências internas e externas a que estavam

submetidos, primeiro individualmente e depois em grupo. A escrita foi acompanhada da

discussão e ao final do encontro com um dos grupos, um dos estudantes disse que

“deveriam ter conversas como esta sempre”.

No terceiro encontro, que teve como tema Gênero, os participantes, divididos

em dois subgrupos, encenaram o tema e em seguida discutimos as encenações. A

observação feita no diário de campo da pesquisadora sobre este encontro foi que alguns

deles também utilizavam o espaço dos encontros para convencer os outros da adesão

aos ideais do MST.

O quarto encontro, sobre o tema Tensão individual e coletivo, a questão

proposta foi falar sobre o que é individual e o que é coletivo e sobre os maiores pontos

de tensão individual e coletiva. O tema deste encontro foi sugerido pelos próprios

estudantes, mas diante das indagações iniciais, um dos grupos respondeu com silêncio.

Diante da indagação sobre o motivo do silêncio, Ana27

respondeu: “É difícil falar sobre

uma coisa que a gente vive na prática”. Após o silêncio inicial e a fala de Ana, a

discussão emergiu no grupo. As impressões pessoais da pesquisadora relatadas no diário

de campo sobre este encontro foram: A tensão entre o individual e o coletivo é maior

para quem vem de um vivência que não era coletiva, quando tudo é sempre de todos,

não existe ou pouco existe o “meu”. Apesar das diferenças entre eles, existe uma grande

solidariedade em meio à escassez28

. O falar e o ouvir os ajudam a compreender o outro

e a se conhecerem melhor.

27 Este, como todos os outros nomes dos participantes da pesquisa são fictícios. 28 Eles relataram que compartilham as roupas (um empresta do outro), pasta de dente e sabão se alguém

está sem.

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Outro encontro foi sugerido pelos estudantes, o quinto, foi sobre a autoestima,

tema já trabalhado no ano anterior. No dia deste encontro a escola estava movimentada,

com muitos jovens que lá estavam para um encontro da juventude, e em consequência

disto, a sala de aula que sempre utilizávamos para a realização dos encontros estava

ocupada com o alojamento destes jovens. Juliana sugeriu a realização do encontro ao

sol, já que estava um pouco frio, e todos foram para o meio do campo de futebol. Neste

encontro a proposta foi que eles falassem sobre o que aumenta e diminui a autoestima.

O sexto encontro teve como tema: Ideal, imagem e identidade. Neste encontro,

em vez de falar, a sugestão foi que cada um deles desenhasse seu ideal, imagem e

identidade; aqueles que o quiseram, mostraram seus desenhos e em seguida discutiu-se

o tema.

No sétimo encontro, sobre deslocamentos escola-comunidade, a proposta foi que

eles contassem suas idas e vindas. O encontro realizou-se em um momento propício, já

que eles tinham acabado de chegar de suas comunidades para mais uma etapa do curso.

Entre as diversas falas do encontro destaca-se a de Márcio sobre o “destempero”

existente entre os dois tempos: o tempo-comunidade e o tempo-escola. Enquanto no

tempo-escola as tarefas eram cumpridas, no tempo-comunidade era bem mais difícil,

para maioria deles, dar conta do estudo, das tarefas escolares e políticas e das demandas

da família. Nas palavras de Márcio sobre o tempo-comunidade, “Eu faço um

planejamento e a realidade faz outro”.

O oitavo encontro deveria ser sobre violência e luto, mas a pesquisadora nem

chegou a abordar o luto e foi-lhe difícil abordar esta temática. As questões previstas

para esse encontro foram: “O que te deixa triste?” e “O que é violento?”. Além disso,

eles deveriam contar em quais situações haviam sentido violência contra si. No primeiro

grupo, à primeira pergunta seguiu-se o silêncio. O clima tenso ficou tenso e a

pesquisadora nem conseguiu chegar a fazer a última pergunta. No encontro com o

segundo grupo, realizado logo na sequência do primeiro, foram feitas todas as

perguntas. Um relato quase completo dos encontros é analisado no último capítulo.

O último encontro teve como tema “Projetos para o futuro”. No dia do encontro

com o primeiro grupo, alguns estudantes avisaram à pesquisadora que eles não iriam

participar do encontro porque estavam em uma reunião sobre a gravação de um CD do

qual eles iriam participar. A pesquisadora os convidou a participar do encontro com o

outro grupo, que aconteceria três dias depois, e todos aceitaram. O encontro sobre os

projetos para o futuro foi conduzido da seguinte forma: eles foram orientados a fechar

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os olhos e buscar lembranças de como foram os primeiros dias na escola (com quem

conversaram, como se sentiram, quais foram as primeiras impressões que tiveram); em

seguida deveriam lembrar-se das aulas, dos professores, do que viveram durante todo o

tempo que estão na escola; e finalmente, que se imaginassem três anos depois de

terminado o curso (onde estariam, o que estariam fazendo). Depois de lembrar-se do

que já passou e de se imaginar no futuro, deveriam abrir os olhos e relatar do que

haviam se lembrado e o que imaginaram para o futuro.

No último encontro da pesquisa-intervenção, assim como na oficina realizada no

ano anterior, realizou-se uma avaliação dos encontros. Cada estudante deveria responder

por escrito a algumas perguntas sobre os encontros, sem necessidade de se identificar.

Entre as perguntas estavam: “De qual encontro mais gostou, e por quê?” Qual encontro

de que menos gostou, e por quê?” O encontro de que eles mais gostaram foi aquele

sobre gênero (citado por 7 estudantes), e alguns falaram que a causa foi o teatro, outros

justificaram sua afirmação por terem podido discutir sobre o machismo. O segundo

encontro de que eles mais gostaram foi o encontro sobre a família (citado por 5

estudantes), porque puderam conhecer um pouco mais os colegas ao conhecer um pouco

mais sua história familiar e porque é uma das questões mais difíceis conciliar família,

escola e tarefas do MST. A maioria não respondeu qual o encontro de que menos

gostou, e os que o fizeram, citaram principalmente o encontro sobre a família (citado

por 5 estudantes). Os argumentos citados foram que não se sentiam à vontade para se

expor e falar da sua família, e um deles disse que, conhecendo seus pontos fracos,

alguém poderia aproveitar para “detoná-lo”. A avaliação do trabalho, na visão da

pesquisadora/professora, marcava o final de uma etapa do trabalho. Os estudantes,

porém, tinham uma compreensão diferente sobre o que era uma etapa de trabalho e de

como marcar um encerramento. Para eles, uma etapa estava terminada quando estavam

encerrando um tempo-escola e partiam para o tempo-comunidade, e este encerramento

era marcado com uma mística. Como exemplo, segue o relato de uma delas.

A mística começou com a leitura de um texto de Ademar Bogo sobre o

educador; na sequência, todos em círculo e abraçados, cantaram uma música do MST.

No final eles agradeceram à pesquisadora e a presentearam com um CD de músicas de

educação do campo e um colar feito por um dos estudantes. Nas místicas que eles

preparavam sempre havia uma música e um presente para a pesquisadora no final: um

livro, um CD, algo feito por eles.

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Cada um destes encontros foi realizado com os dois subgrupos, com exceção dos

encontros sobre autoestima e ideal e imagem e identidade, que foram realizados cada

um com um subgrupo. Durante e após os encontros foram tomadas notas, em um diário

de campo, das falas e discussões, assim como das minhas impressões pessoais enquanto

pesquisadora. Alguns encontros também tiveram como resultado a produção escrita e de

desenhos. Em muitos momentos não se anotou o autor da fala e grande parte das

anotações foi feita sob a forma de discurso indireto, porém a pesquisadora buscou ser o

mais fiel possível ao que foi dito. Os encontros foram a base para escrita da última parte

dessa pesquisa.

2.4- Por que pesquisa- intervenção psicanalítica?

De acordo com Castro (2008), existe uma confusão conceitual envolvendo os

termos pesquisa-ação, pesquisa participante e pesquisa-intervenção. Sem me aprofundar

nesta discussão, apresento uma breve caracterização destes três tipos de pesquisa, com o

intuito de apresentar suas características comuns e suas especificidades, dando especial

destaque à proposta metodológica aqui adotada: a pesquisa-intervenção psicanalítica.

A pesquisa-ação, segundo Thiollent (2007), supõe participação e a elaboração de

uma “ação planejada” para a resolução de problemas por meio do trabalho cooperativo

entre o pesquisador e os participantes da pesquisa; já na pesquisa participativa a ação

planejada para resolução de problemas não necessariamente ocorre, e a participação

pode ser restrita à observação participante. Assim, toda pesquisa-ação envolve

participação, mas nem toda pesquisa participativa implica em ação.

A pesquisa-intervenção também implica em participação e ação. Como a

pesquisa-ação, também pressupõe a implicação, o comprometimento do pesquisador

com a transformação da realidade. Segundo Moreira (2008), são características da

pesquisa-intervenção: a realização em situações cotidianas, o desencadeamento pela

demanda, a existência de interação entre pesquisador e pesquisado e a concepção de que

conhecer e intervir não constituem momentos distintos.

A especificidade da pesquisa-intervenção psicanalítica é sua dimensão clínica,

que vem se somar às características gerais da pesquisa-intervenção apresentadas por

Moreira (2008). Para Elia (2000), toda pesquisa em psicanálise é clínica,

independentemente do lugar em que seja realizada a pesquisa, pois clínica é a “forma de

acesso ao sujeito do inconsciente”(p.23). Por sua vez, o inconsciente é o campo de

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pesquisa da psicanálise e o determinante das mais variadas manifestações humanas,

como ensinou Freud:

O inconsciente está presente como determinante nas mais variadas

manifestações humanas, culturais e sociais. O sujeito do inconsciente está presente em todo enunciado, recortando qualquer discurso pela

enunciação que o transcende. (...) Freud já disse isto desde o início de

sua obra, quando para distanciar-se do estritamente patológico, vai do estudo do sintoma ao do sonho, e escreve uma Psicopatologia da vida

cotidiana, mostrando o inconsciente presente nos acontecimentos da

vida diária, nos esquecimentos e nos chistes, presente, portanto no

diálogo comum. (ROSA, 2004, p.342)

Para Freud, como nos lembra Rosa (2004), a psicanálise, além de uma teoria e

técnica de tratamento, é também um método de investigação do inconsciente. Na

psicanálise, pesquisa e intervenção não estão situadas em campos distintos, ambas as

situações demandam o mesmo método de acesso e/ou investigação do sujeito do

inconsciente: a escuta e a transferência. Por esta razão, Elia (2000) afirma que toda

pesquisa em psicanálise é clínica. Por sua vez, a escuta e a transferência são os

postulados básicos de toda prática psicanalítica, seja ela a pesquisa ou o tratamento.

Não obstante, convém esclarecer que a denominação de psicanalítica para esta

pesquisa-intervenção não significa que a pesquisa também tenha se configurado como

uma psicanálise de grupo. O objetivo da intervenção, nessa pesquisa, não foi oferecer

um espaço de tratamento, e sim, acolher a fala dos sujeitos sem preenchê-la de sentido,

abrindo espaço para a reflexão de cada sujeito e do grupo. Afirmam Besset, Coutinho e

Cohen (2008):

O trabalho com a palavra e, mais especificamente com uma fala

endereçada, abre uma nova via de intervenção e de investigação, onde a contribuição da psicanálise pode ser relevante, à condição de que ela

se mantenha fiel às suas bases, distanciando-se, ao mesmo tempo, de

seu dispositivo individual e privado. Falar a um outro se apresenta, então, no contexto da transferência, um convite para refletir e uma

ocasião de mudança subjetiva. Especialmente se quem escuta não se

autoriza em saber, previamente, sobre aquele que fala.” (p.105)

Os encontros temáticos com os grupos, diferentemente também de uma situação

de entrevista individual, possibilitaram múltiplas transferências e escutas: a palavra de

um mobilizou a palavra dos outros, as associações de um mobilizaram as associações

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dos outros, e assim foram construídos novos sentidos e associações. A partir de um

tema predefinido emergiram outros e a singularidade de cada um se expressou,

contribuindo para a construção da reflexão de cada sujeito e também para a reflexão

coletiva.

Embora seja descoberta na relação analítica, a transferência não é um fenômeno

exclusivo dessa relação e aparece em maior ou menor grau em todas as relações

interpessoais (ROSA; DOMINGUES, 2010). Assim, para a Psicanálise, toda relação

humana é sempre transferencial, e a relação que se estabeleceu na situação de pesquisa

não foge a esta regra; logo, o lugar que a pesquisadora ocupa, o modo como foi vista e

também como vê o MST e os jovens militantes participantes da pesquisa fazem parte

desse campo transferencial, que, por sua vez, é o terreno onde os dados da pesquisa

foram construídos. Como diz Bleger (1971), “O dado psicanalítico é uma relação

interpessoal em que o psicanalista se vê incluído e que por sua vez configura em certa

proporção o caráter dos „dados‟” (p.125). O pesquisador “(...) é parte do campo, quer

dizer, que em certa medida condiciona os fenômenos que ele mesmo vai registrar”

(BLEGER, 1980, p.18).

Assim, na pesquisa psicanalítica, ao contrário do que se pode pensar, não existe

um dado a ser buscado e revelado; o dado psicanalítico se constrói na relação, a qual é

sempre transferencial (ROSA; DOMINGUES, 2010). Nesta mesma direção afirmam

Costa e Poli (2006)

Operar com o inconsciente implica, pois, a suposição de um saber que

„não se sabe‟ mas que é suposto. As condições de produção de

conhecimentos sobre este “insabido” são internas ao campo relacional que o constitui. A isso denominamos em psicanálise „transferência‟.

Não é, pois, um saber prévio que já estava ali, no „entrevistado‟, como

um dado a ser colhido pelo „entrevistador‟. É algo que se situa num

espaço transferencial em que o „insabido‟ se expressa como formações do inconsciente. Logo, ele inclui o pesquisador na própria formação.

(COSTA; POLI, 2006, p.17)

A escuta, segundo Rosa (2006), ocorre na transferência que envolve tanto o

sujeito como o psicanalista; porém, nem sempre o sujeito fala e nem sempre o analista

escuta. Freud chamou de resistência os obstáculos que o analisando opõe ao tratamento

analítico. Lacan, por sua vez, diz que a resistência é sempre do analista, e que esta

resistência se configura como uma resistência à escuta. Esta ideia de Lacan “converge

com os testemunhos de pessoas que voltam de conflitos relacionadas à guerra e outras

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situações dramáticas, as quais afirmaram não poderem falar, pois não há quem se

disponha a escutar”(ROSA; GAGLIATO, 2010, p.171).

A partir da ideia de Lacan sobre a resistência do analista à escuta, Rosa (2004,

2006) e Rosa e Gagliato (2010) desenvolvem a ideia de uma resistência do analista à

escuta do que é da ordem do traumático e da exclusão social. Essas ideias podem ser

tomadas como orientadoras para pensar também os entraves que podem ocorrer na

escuta do pesquisador aos relatos dos participantes da pesquisa. Sobre a resistência do

analista e a escuta clínica de jovens da periferia, Rosa (2006) diz:

A escuta do discurso desses sujeitos fica insuportável, não só pela

situação em si ou pelos atos que cometeram, mas porque tomar esse

outro como sujeito do desejo, atravessado pelo inconsciente e

confrontado com situações de extremo desamparo, dor e humilhação, situações geradas pela ordem social da qual o psicanalista usufrui – é

levantar o recalque que promove a distância social e permite-nos

conviver, alegres, surdos, indiferentes ou paranóicos, com o outro miserável. (p.189)

Nestes casos, geralmente, psicanalista e jovens de periferia ocupam lugares

diferentes na estrutura social: o primeiro desfruta os bens da cultura e os últimos

recebem “o mais” de privação, e da escuta destes últimos o primeiro não “sai ileso – um

posicionamento ético e político é necessário” (ROSA, 2006). As formas pelas quais o

psicanalista pode evitar este “confronto” e resistir à escuta podem ser variadas. Algumas

delas são: ficar demasiadamente preso à teoria, às suas hipóteses, e não atentar para a

especificidade da fala do sujeito; deter-se exclusivamente sobre o peso da situação

social ou desconsiderá-la, o que implica a responsabilização do sujeito por sua

condição; ver o sujeito somente como vítima, negando sua condição de sujeito

desejante. (ROSA, 2006)

Em algumas situações da intervenção a pesquisadora vivenciou momentos de

resistência. O primeiro deles ocorreu no primeiro encontro com o grupo em 2007. Ao

entrar à noite no prédio inacabado e escuro da escola, a pesquisadora encontrou uma

única sala pouco iluminada, pedaços de carteiras (destruídas pelo vandalismos de

outros) doadas e os estudantes. A pesquisadora sentiu muita pena dos estudantes pela

situação precária em que estudavam e os viu como vítimas, mas na ocasião nada foi

dito, nem pela pesquisadora nem pelos estudantes. No entanto, no último encontro

realizado em 2007 a resposta à atitude da pesquisadora veio por escrito. Em meio às

respostas à pergunta sobre de que menos gostou dos encontros, um dos estudantes

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respondeu: “A educadora não deveria ter tanta dó deles, pois eles estavam em um

espaço que eles queriam estar, buscando mais conhecimento”. Esse estudante não

aceitou o lugar de vítima que lhe foi atribuído e mostrou à pesquisadora o lugar eles

ocupam: de sujeitos desejantes.

O outro momento que mais claramente se constituiu como de entrave à escuta

ocorreu em um dos encontros sobre violência e luto, em que a pesquisadora não

suportou escutar as situações em que eles sofreram violência, nem chegou a abordar

todas as questões previstas para o encontro; ela foi até o questionamento do que é

violento e desapareceram os nomes dos sujeitos nos relatos nas suas anotações pessoais.

Nesta situação os estudantes não falaram porque não encontraram na pesquisadora

quem os escutasse.

Os momentos de resistência são aqui incluídos como objetos de reflexão. A

resistência também é uma das faces da transferência e condição da análise. Finaliza-se

este capítulo com uma citação de Freud sobre a resistência do analisante ao tratamento

analítico, resistência que pode ser tomada também como objeto de reflexão para

resistência do analista e do pesquisador:

O conteúdo analisável é justamente aquele que está sob os efeitos da

resistência. Se o analisante, ao invés de recordar e elaborar repete, ele

o faz sob as condições da resistência e é sobre essas mesmas condições que incidirá a interpretação como „ferramenta‟ do

dispositivo analítico, para que então haja psicanálise. É algo

paradoxal, porque a resistência é condição da análise, mas também é o

que deve ser superado para que o tratamento psicanalítico avance. (FREUD, 1912, citado por ROSA ; GAGLIATO, 2010, p.171)

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PARTE II: UTOPIA E MILITÂNCIA

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CAPÍTULO 1: UTOPIAS E/OU IDEAIS SOCIAIS?

A construção de uma sociedade socialista é a utopia do MST (LERRER, 2008).

Esta intenção está expressa desde a primeira formulação dos seus objetivos, em 1984,

como vimos no primeiro capítulo. Mas será que se trata mesmo de uma utopia ou de

ideais sociais? Utopia e ideais sociais podem ser tomados como sinônimos? São estas as

questões orientadoras deste capítulo, que parte de uma conceituação da utopia no campo

filosófico até chegar ao campo da psicanálise. Tal articulação entre o que é da ordem do

social (utopias/ideais sociais) e que é da ordem do psíquico (desejo, ideais do eu e

narcisismo) é o desafio e fio articulador deste capítulo.

1.1- Utopias

“ Soyons réalistes, demandons l’ impossible.”

“Sejamos realistas, exijamos o impossível” foi um dos slogans do Maio de 68, e

expressou o espírito utópico revolucionário da época. Utopia e revolução, no entanto,

nem sempre foram termos associados, eles foram até mesmo postos como incompatíveis

por Marx, que não aceitava a designação de utópico para seu programa e criticava os

socialistas utópicos29

por não reconhecerem a necessidade da ação revolucionária para a

transformação da sociedade. Embora os textos utópicos acompanhem a história da

humanidade, é somente no século XVIII, com a Revolução Francesa, que a ideia de

utopia e de revolução passaram a ser associadas; antes disso os textos utópicos eram

vistos como literatura ou mera discussão filosófica. (COELHO, 1980)

A palavra utopia foi criada por Thomas More, em 1516, em seu livro Utopia. A

palavra é uma síntese das palavras gregas eu-topos e ou-topos, nas quais o substantivo

grego topos significa lugar, o prefixo eu expressa a “boa qualidade” e o prefixo ou a

negação. Assim, utopia designa ao mesmo tempo um lugar de felicidade e um lugar que

não existe; um lugar bom para se viver e ao mesmo tempo um lugar que não tem uma

existência real, um lugar inacessível. (PAQUOT, 1996)

A Utopia de More inspirada na República de Platão, é um livro composto de

duas partes, construídas na forma de diálogo. Na primeira parte o viajante Rafael narra a

29 São chamados de socialistas utópicos autores como Charles Fourier, Saint Simon e Robert Owen, que

preconizavam a construção de uma sociedade ideal a partir de pequenos experimentos comunitários que

seriam realizados de forma pacífica, com a participação de todos, sem luta de classes e revolução.

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More sua passagem por terras onde os governantes eram corruptos e a população

camponesa vivia na miséria, situação semelhante à do regime feudal inglês da época. Na

segunda parte do livro, Rafael narra sua viagem à ilha de Utopia, onde os homens

viviam em harmonia, submetidos a um regime político ideal. Na ilha de Utopia não

existia propriedade privada e todas as riquezas pertenciam ao Estado. Dinheiro também

não existia, o comércio era feito à base da troca de mercadorias; as refeições eram feitas

em comum, o trabalho era obrigatório e a jornada de 6 horas permitia um tempo livre

para o cultivo do espírito; as leis eram poucas e simples e a paz era cultivada. A

sociedade ideal da ilha de Utopia e a sociedade desigual descrita na primeira parte do

livro opõem-se drasticamente, e tal oposição funciona como crítica social. (CUGNO,

2002)

A Utopia de More, que num primeiro momento pode parecer uma “invenção

agradável” de um mundo ideal, é também uma dura acusação ao regime feudal inglês e

uma crítica às instituições existentes. More tinha plena consciência dos problemas

político-econômicos de sua época, que incluíam a expulsão e expropriação dos

camponeses pelo desenvolvimento da pecuária extensiva na Grã-Bretanha, situação

contra a qual ele se insurge na primeira parte do livro. (CUGNO, 2002)

Descrições de sociedades ideais, como a Utopia de More, acompanham a

história da humanidade. Não obstante, existem períodos em que estes relatos são mais

abundantes, tais como o do Renascimento e o do Iluminismo. Para Paquot (1996), “A

era das utopias coincide com as grandes descobertas e a afirmação do sujeito – o

indivíduo – como ator da história e mestre de seu destino (p.3)30

.” Para Baczko (2008),

existem períodos “quentes” – em que são produzidas muitas descrições, representações,

obras utópicas – e períodos “frios” da utopia. O Iluminismo foi um dos períodos

“quentes” da utopia e as utopias geradas nesta época contribuíram para a eclosão da

Revolução Francesa.

Qual a função da utopia? Toda descrição de uma sociedade ideal pode ser

considerada utopia? Qual a relação das descrições de sociedades ideais com as

mudanças concretas na sociedade?

A função da utopia, segundo Dadoun (2000), é ir contra a realidade, e não ir em

direção a ela. A utopia deve ser adversária da realidade, e não buscar a concretização do

seu projeto. “A vocação da utopia é de dizer não de fazer (…)” (p.31)31

. No mesmo

30 Tradução nossa, desta e todas citações de Paquot (1996). 31 Tradução nossa, desta e todas citações de Dadoun (2000).

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sentido de Dadoun, Sousa propõe que a utopia pode ser pensada como uma “espécie de

furo no plano dos conceitos e imagens instituídas” que abre a possibilidade de novos

conceitos e imagens, da esperança, da invenção. A utopia propõe um não lugar, não é

prescritiva; “tem muito mais uma dimensão de subtração de um excesso de imagens e

de sentido, exatamente como na interpretação psicanalítica, suspendendo as certezas do

sujeito, do que prescrevendo novos códigos de conduta e projetos de felicidade”

(SOUSA, 2006, p.52). Sua função vital “(...) não é a forma última do paraíso, mas a

necessidade de buscar um outro mundo a partir de uma crítica do presente” (SOUSA,

2007, p.26).

As sociedades ideais descritas nos textos utópicos não devem ser tomadas como

dogmas a serem seguidos para a conquista da felicidade. A força da utopia não está nos

“modelos” que ela descreve, mas na possibilidade que ela abre de imaginação, criação e

crítica, na “fissura” que ela faz na realidade (SOUSA, 2006 e 2010); ou seja, a força da

utopia não é a conquista de um mundo perfeito, que por definição é impossível, mas

sim, o efeito que as descrições deste mundo provocam em nós, que é ver mais

claramente as imperfeições do mundo real e nos mover em busca de um mundo melhor.

A utopia nos faz caminhar, como nos diz Eduardo Galeano:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta

dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?

Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar.

Já para Mannheim (1976), as descrições de sociedades ideais só podem ser

chamadas de utopia se tendem a transformar a realidade total ou parcialmente, caso

contrário não passam de meras ideologias. Por exemplo, a ideia de paraíso na Idade

Média estava de acordo com a visão de mundo do período e não oferecia

“possibilidades revolucionárias”; situando o paraíso fora da sociedade, não incitava à

luta por melhores condições de vida. “Somente depois que certos grupos incorporam

imagens desiderativas à sua conduta efetiva foi que estas ideologias se tornaram

utópicas” (MANNHEIM, 1976, p.217). Assim, para Mannheim, diferente de Dadoun

(2000) a utopia tem sim que ir em direção à realidade, buscando transformá-la, caso

contrário é mera ideologia.

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Utopia e ideologia32

têm em comum o fato de serem ideias que são

incongruentes e transcendentes em relação à realidade na qual estão inseridas, mas suas

semelhanças param por aí; a grande diferença entre ambas, na concepção de Mannheim

(1976), está na possibilidade de transformar a realidade que está presente na utopia e

ausente na ideologia que leva ao afastamento da realidade e não à sua transformação.

(MANNHEIM, 1976)

As ideologias são as ideias situacionalmente transcendentes que

jamais conseguem de facto a realização de seus conteúdos pretendidos. Embora se tornem com frequência motivos bem

intencionados para a conduta subjetiva do indivíduo, seus

significados, quando incorporados efetivamente à prática, são, na maior parte dos casos, deformados. (MANNHEIM, 1976, p.218)

Um exemplo de ideologia (citado por Mannheim, 1976) é a existência da ideia

de amor fraterno cristão em meio à sociedade escravocrata. Embora o autor estabeleça a

diferença entre utopia e ideologia, ele reconhece que não é tarefa fácil determinar

quando estamos lidando com utopias ou ideologias ou até que ponto uma ideia é utópica

ou ideológica. Além disso, existem diferentes utopias33

, ou, para empregar as palavras

de Mannheim, existem diferentes “mentalidades utópicas” que evoluíram ao longo da

história. Estas mentalidades utópicas são a quiliasta, a liberal-humanitária, a

conservadora e a socialista-comunista. Vejamos, quais são suas características.

A primeira delas, a mentalidade quiliasta, é a mais primitiva e antiga entre as

mentalidades utópicas. Ela situa a sociedade ideal não em outro espaço, como a Utopia

de More, mas em outro tempo. Este outro tempo seria uma era de justiça e felicidade

com a duração de mil anos, que viria após um período de catástrofes.

O quiliasmo – também chamado de milenarismo – contém um potencial

revolucionário quando unido às demandas de populações oprimidas. Segundo

Mannheim (1976), “ a ideia da aurora de um reino milenar sôbre a terra sempre conteve

uma tendência revolucionarizante (...)” (p.235). Assim como Mannheim, Hobsbawn

(1970), citado no primeiro capítulo, também compartilha a ideia de que movimentos

milenários são revolucionários, pois sua essência é a esperança de uma completa

32 A concepção de ideologia aqui apresentada é de Mannheim (1976). Existem outras que não serão aqui

abordadas, pois tal discussão foge ao objetivo do presente texto. 33 Daí também minha opção de colocar como título do capítulo Utopias ao invés de Utopia, pois existem

diferentes utopias, além das diferentes concepções do que é utopia.

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transformação do mundo, característica que compartilha com outros movimentos

revolucionários modernos.

A revolução para o quiliasmo é uma reação a uma situação de carência extrema,

não é um meio para se chegar a um fim estabelecido racionalmente, ela tem valor em

sim mesma; é “(...) o único princípio criador do presente imediato, como a esperada

realização de suas aspirações neste mundo”(MANNHEIM, 1976, p.241). O sonho de

um milênio igualitário não se constitui como um adiamento para um futuro que está por

vir, mas como orientação das ações no aqui e agora, momento em que começa a ser

construída a utopia na terra.

Canudos e Contestado podem ser citados como exemplos deste tipo de

mentalidade. Em ambos, os escritos bíblicos do Apocalipse34

de São João fizeram parte

da literatura inspiradora dos líderes destes movimentos. Nestes escritos destacam-se a

temática da luta do bem contra o mal, do tempo de catástrofes que antecederia a vitória

do bem e a conquista do paraíso na terra para os justos e humildes.

Embora as ideias tenham sido fonte de inspiração para estes movimentos, não

foram elas que impeliram às guerras camponesas, “esta irrupção tinha suas raízes em

níveis bem mais elementares e mais profundamente vitais da psique”(MANNHEIM,

1976, p.237); ou seja, não foram as ideias o que deu origem a estes movimentos, eles

tiveram origem na insatisfação dos oprimidos com suas reais e precárias condições de

existência, e as ideias milenárias serviram como orientadoras desta insatisfação, dando-

lhe uma representação e direção.

Diferentemente do papel desempenhado na mentalidade quiliasta, as ideias, na

mentalidade liberal-humanitária, a segunda mentalidade utópica descrita por Mannheim

(1976), exercem a função de crítica da sociedade existente. Um exemplo desta

mentalidade, encontramos na Utopia de More. Tal como a mentalidade também

concebe a realidade como má, só que ao contrário desta que tende a entrar em

hostilidade com o mundo, a mentalidade liberal-humanitária não se opõe radicalmente à

sociedade existente, apenas a analisa criticamente.

Em sua forma característica estabelece igualmente uma concepção

„racional‟ correta a ser utilizada contra a realidade maligna.

Entretanto, não se utiliza esta contracepção como um plano de acordo com o qual se venha, em qualquer ponto do tempo, a reconstruir o

34 O número mil aparece no Apocalipse, segundo Gallo (1999) “como significante de eternidade e

felicidades perfeitas”( p. 49).

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mundo. Antes, serve meramente como „unidade de aferição‟, por meio

da qual o curso dos acontecimentos concretos pode ser teoricamente

avaliado. A utopia da mentalidade liberal-humanitária é a „ideia‟. Esta não consiste, entretanto, na ideia platônica estática da tradição grega,

que era um arquétipo concreto, um modelo primeiro das coisas; aqui

se concebe a ideia como um objetivo formal projetado no futuro infinito, cuja função consiste em proceder como um mero dispositivo

regulador dos negócios mundanos”. (MANNHEIM, 1976, p.243)

Enquanto para a mentalidade quiliasta a utopia começa a ser construída no aqui e

agora, para mentalidade liberal-humanitária ela poderá ser construída, pelo menos em

parte, em algum lugar indefinido do futuro. Enquanto a primeira representou a

mentalidade do final da Idade Média35

da Europa e o pensamento de camponeses e

oprimidos que viviam em um mundo em dissolução, a mentalidade liberal-humanitária

corresponde à Idade Moderna: representou os estratos médios da população contrários à

nobreza e ao poder da Igreja, e culminou com a Revolução Francesa. (MANNHEIM,

1976)

A mentalidade liberal-humanitária pode ser incluída no campo mais amplo

constituído pelo projeto iluminista, o qual, segundo Zizek (1991), apresenta uma cisão:

ao mesmo tempo em que o Iluminismo preconiza um sujeito autônomo e racional que

pode criticar as autoridades, este sujeito também é uma engrenagem de um grupo social

e deve submeter-se a estas mesmas autoridades que critica. Ao predomínio da adaptação

à sociedade ao invés da crítica, corresponde a terceira mentalidade utópica descrita por

Mannheim (1976): a mentalidade conservadora.

Para a mentalidade conservadora, a utopia coincide com a realidade, logo esta

não é vista como má, como nas duas mentalidades descritas anteriormente, mas como

“(...) a corporificação dos mais elevados valores e significados”(MANNHEIM, 1976,

p.256). Ao contrário do liberalismo, que despreza o passado e valoriza o futuro como

sendo o tempo em que o projeto utópico possa vir a ser realizado pelo menos em parte,

o conservadorismo resgata o valor do passado e vê no presente a consequência de uma

ordem natural.

A qualificação de utópica para esta mentalidade proposta por Mannheim (1976)

causa certa estranheza, pois ela não condiz com o que ele mesmo define como utopia.

Ela é, na realidade, o contrário de utopia, ela é uma topia. Se utopia, em seu sentido

etimológico é lugar bom, mas inexistente; a topia é o seu contrário, “ o lugar concreto e 35 Em seu livro “Rebeldes primitivos: estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos

XIX e XX”, Hobsbawn (1970) mostra que estes movimentos também estiveram presentes na Europa,

nos séculos XIX e XX.

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existente no aqui e agora”(COELHO,1980, p.45). Se este lugar existente é imaginado

como natural e como não sendo passível de mudança, não há utopia. A utopia implica a

possibilidade de pensar que a realidade pode ser radicalmente diferente do que é. Szachi

(1972) afirma:

O utopista não aceita o mundo que encontra, não se satisfaz com as possibilidades atualmente existentes: sonha, antecipa, projeta,

experimenta. É justamente este ato de desacordo que dá vida à utopia.

Ela nasce quando na consciência surge uma ruptura entre o que é, e o que deveria ser; entre o mundo que é, e o mundo que pode ser

pensado. (p.13)

Para a mentalidade conservadora não há ruptura entre o que é e o que deveria

ser, há coincidência, o que não significa a ausência total de tensão entre a realidade e a

ideia. A existência de problemas na sociedade não é totalmente negada, porém estes são

vistos como um desvio do curso natural da própria sociedade, cabendo uma correção do

desvio resultante do progresso que cria novos problemas que serão também por ele

dominados. Aqui a ideia de revolução, de grandes e reais transformações na sociedade,

é descartada e substituída pela ideia de que apenas alguns ajustes são aceitáveis para

manter a sociedade no seu rumo natural.

A partir da síntese destas três mentalidade utópicas – a conservadora, a liberal-

humanitária e a quiliasta − é construída a quarta: a mentalidade socialista-comunista,

que é uma nova criação baseada nas três mentalidades que a antecederam. Segundo

Coelho (1980), para a mentalidade comunista, utopia e revolução se aproximam e o

projeto marxista de sociedade é o melhor exemplo desta mentalidade, embora Marx

tenha recusado a designação de utópicos para seus escritos.

Em comum com a mentalidade liberal-humanitária, a mentalidade socialista-

comunista compartilha a crença de que a liberdade e a igualdade só serão possíveis no

futuro. A diferença está em que, enquanto para a utopia liberal o futuro é um tempo

indefinido, para utopia socialista-comunista o futuro que trará a realização da utopia é o

fim do capitalismo. Enquanto no liberalismo as ideias têm caráter formal e abstrato, no

socialismo-comunismo elas “(...) possuem uma vida concreta própria e uma função

definida no processo total. Arrefecem quando se tornam antiquadas e podem ser

realizadas quando o processo social atingem uma dada situação estrutural.”

(MANNHEIM, 1976, p. 264)

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A estrutura social é, para esta mentalidade, a força que determina todo

desenvolvimento, enquanto para o conservadorismo era o passado que o determinava.

Na mentalidade socialista-comunista o determinismo impulsiona para o futuro, porém

este é visto como socialmente determinado. Este determinismo da mentalidade

socialista-comunista também se opõe ao indeterminismo da “ideia” na mentalidade

liberal-humanitária e ao indeterminismo do quiliasmo, para o qual o que importa é o

presente imediato. (MANNHEIM, 1976)

Em comum com a mentalidade quiliasta, a socialista-comunista apresenta traços

milenaristas expressos na crença de que fim do capitalismo possibilitará a realização

plena da utopia (COELHO, 1980). Outra característica comum entre ambas é a

associação da utopia com a revolução, embora no quiliasmo a ideia de revolução ainda

não apareça em seu sentido moderno, que é o de reação contra toda ordem opressiva

existente36

.

A utopia sustentada pelo MST, como foi dito logo no início do capítulo, é a

socialista-comunista, mas à sua maneira. Como é uma síntese das anteriores, esta

mentalidade apresenta traços das mentalidades que a antecederam, o mesmo se podendo

dizer também em relação à utopia do MST. Em comum com o mentalidade quiliasta, o

MST busca a concretização da utopia que começa a ser construída no aqui e agora 37

. O

MST não foi e não é um movimento milenarista, mas a influência do messianismo

judaico-cristão através da atuação da Igreja na sua constituição não pode ser negada. Tal

como os movimentos milenaristas, o MST surgiu entre os camponeses pobres que

enfrentavam situações de opressão e expropriação, e não a partir de ideais. Embora as

ideias, a utopia da construção de uma sociedade justa e igualitária, estivessem presente

desde o início da constituição do movimento e tenham ajudado a organizar uma

demanda, elas não são anteriores ao MST, no sentido de que seus integrantes tivessem

se reunido em torno delas e a partir daí formado o movimento. O processo foi outro:

primeiro veio a expulsão e a expropriação do camponês, e depois, a partir do desejo e da

reação daqueles que queriam permanecer na terra, constituiu-se o MST e sua utopia

como resposta a uma situação vivida.

A utopia, que na mentalidade liberal é o ideal ao qual se compara a crítica à

realidade, no MST orienta diretamente suas ações para a construção de uma sociedade

Sentido proposto por Stahl citado por Mannheim (1976). 37 Na entrada da Escola Florestan Fernandes, que é uma escola do MST localizada no município de

Guararema-SP, está escrito “ Um sonho em construção”.

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mais justa e igualitária, sem deixar de fazer a crítica da sociedade concreta. Sem

menosprezar o passado como no liberalismo, mas também sem considerar que o

presente é uma consequência natural do passado; a utopia no MST valoriza o passado e

orienta para o futuro, um futuro que começa a ser construído no aqui e agora.

A utopia do MST é sonho, projeto, antecipação e experimento. Seus integrantes

ousam experimentar e viver de outra forma dentro do capitalismo, mesmo com todas as

dificuldades que esta escolha traz, mas a revolução e o fim do capitalismo continuam

como orientadores de suas ações e são cantados por seus integrantes, como podemos ver

nos seguintes trechos de suas músicas:

Contra esse capitalismo Vamos firmes decididos

Não deixar pra outra hora

É a classe organizada passo a passo na estrada Construindo a sua história

(Descobrimos lá na base, Zé Pinto)

Quando chegar na terra É preciso fazer produção

Este é o primeiro passo que

Damos na revolução Com certeza alguns chegando com chapéu na mão

Esplanada do Planalto bandeiras bem alto

Cantando bem alto a canção (Quando chegar na terra, Ademar Bogo)

38

Embora vivamos em uma época na qual o que parece predominar é a crença

conservadora de que o presente é consequência natural do passado e de que a utopia

coincide com a realidade, o MST vai em uma direção oposta, ao sustentar uma utopia

socialista-comunista. Na nossa época, segundo Zizek (2005), é mais fácil imaginar o

fim do planeta do que uma mudança radical no capitalismo. Diante desta situação é

necessário reinventar a utopia. A utopia que precisamos não é a utopia da sociedade

ideal e da imaginação livre, que nunca poderá ser realizada, nem a utopia capitalista,

que não só permite, mas solicita que novos desejos perversos sejam realizados. A utopia

que precisamos é aquela que nasce em situações em que as coordenadas do possível não

dão conta de resolvê-las, em que é necessário inventar um novo espaço, em resposta a

um puro instinto de sobrevivência (ZIZEK, 2005). A utopia do MST é assim: nasce

38 MST. Arte em movimento. Fita cassete

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como resposta a uma situação de exclusão e expulsão e constrói um outro caminho

possível; produz “fissuras” na realidade e segue a trilha da criatividade, da imaginação e

da esperança.

1.2- Utopia, sonho e desejo

A associação da utopia com o sonho é frequente. Bloch (2005), por exemplo,

concebe a utopia como antecipação, como “sonho para frente”, voltado para a

transformação do mundo. Antes de adentrar no “sonho para frente” de Bloch, recupero

o sentido do sonho para psicanálise e a relação deste com o desejo.

Para a psicanálise, o sonho é uma atividade individual ligada ao sono, por isso

nele a racionalidade, as normas sociais e a coerência da linguagem não têm lugar. O

sonho representa a realidade psíquica individual, direciona-se ao particular e interno

(DADOUN, 2000). Segundo Freud (1900), o sonho

Não é um desatino, nem absurdo, nem pressupõe que uma parte de

nosso acervo de representações dorme, enquanto outra começa a despertar. É um acabado fenômeno psíquico, e precisamente uma

realização de desejos; deve ser incluído no conjunto de atos

compreensíveis da nossa vida desperta e constitui o resultado de uma atividade intelectual altamente complicada. (p.422)

39

São os desejos insatisfeitos que buscam sua realização nos sonhos, não os

desejos que não encontraram satisfação na véspera, mas outros mais antigos, os desejos

infantis reprimidos. Estes últimos podem ter sido mobilizados por acontecimentos,

desejos, impulsos, impressões (restos diurnos), e são eles que dão origem aos sonhos.

Sua realização aparece de forma obscura e aparentemente incompreensível (disfarçada),

devido à atuação de mecanismos de defesa como a condensação e o deslocamento, que

tornam o sonho aparentemente incompreensível. (FREUD, 1900)

Para Dadoun (2000), a concepção de Freud de que o sonho é a realização do

desejo pode ser compreendida de duas formas A primeira é a de que no sonho

encontramos uma espécie de satisfação substitutiva para nossos desejos não realizados

quando estamos despertos, uma satisfação parcial e imaginária para nossas frustrações

cotidianas. Tal afirmação não se sustenta, pois, segundo Freud (1900), o sonho pode ter

relação com frustrações cotidianas, mas estas só mobilizariam desejos mais arcaicos e

39 Tradução nossa, desta e todas citações de Freud, com exceção de Freud (1914)

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reprimidos. A segunda é uma compreensão muito mais ampla do sonho, em que, além

de satisfações imaginárias, o sonho representa “a poderosa recarga energética do desejo

que ele realiza” (p. 30).

A “satisfação do desejo” significaria então, bem além das pequenas

gratificações noturnamente beliscadas, que é o desejo como tal, como

estrutura de base, que se realiza, que reencontra sua força vital, que se refunda, se recria, se regenera para, tal como uma fênix, enfrentar

revigorado a odiosa e pesada realidade. (DADOUN, 2000, p.31)

Esta é uma função vital para o sujeito: diante do fardo da realidade poder se

distanciar dela, colocar o real “entre parêntesis” e opor a ele um irreal – ideal – que

permite tomar um novo fôlego para voltar à realidade revigorado. (DADOUN, 2000)

Se pensarmos a utopia a partir do modelo do sonho descrito pela psicanálise, é

possível afirmar que sonho e utopia têm em comum sua ligação com o desejo; porém a

utopia - ao contrário do sonho individual, que está voltado para a realidade psíquica -,

está voltada para a realidade social. A linguagem utópica, embora feita de imaginação e

fantasia, também é feita de percepções objetivas e de elaboração racional, necessárias à

construção do texto utópico. (DADOUN, 2000)

Quando Bloch (2005) diz que a utopia é um “sonho para frente”, não está se

referindo ao sonho noturno, e sim, ao sonho acordado, aquele que temos de olhos

abertos. Uma primeira diferença entre eles, além do fato de no primeiro estarmos

dormindo e no segundo não, é que “o conteúdo do sonho noturno está oculto e

dissimulado, enquanto o conteúdo da fantasia diurna é aberto, fabulante, antecipador, e

seu aspecto latente se situa adiante”(p.100). Assim, enquanto o sonho noturno demanda

interpretação, o sonho acordado pode demandar elaboração.

São características do sonho acordado, segundo Bloch (2005): livre curso, o eu

preservado, melhoria do mundo e ir até o fim. O livre curso e o eu preservado

significam que o sonho flui, livre de censura e sem ser dominado pelas imagens, e que o

eu, embora relaxado, controla e direciona o sonho. O eu no sonho diurno pode reportar-

se aos demais, daí sua amplitude humana, ao imaginar um mundo ideal não só para si

mas também para os outros. Mundo melhor que não é mera digressão, e sim, um fim,

um ponto de chegada.

O sonho desperto, ou seja, aberto para o mundo, sabe não se abster.

Ele se recusa a se saciar ficticiamente ou ainda espiritualizar desejos.

A fantasia diurna, assim como o sonho noturno, tem os desejos como

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ponto de partida, mas vai com eles até o fim, quer chegar ao lugar da

realização. (BLOCH, 2005, p.97)

Para Bloch, ter o desejo como ponto de partida é um traço comum ao sonho

noturno e ao sonho desperto, Uma vez que “o desejo de ver as coisas melhorarem não

adormece” (BLOCH, 2005, p. 79). Aqueles que sofrem privação sonham que seus

desejos de uma vida melhor serão realizados não só à noite, mas também de dia, quando

as privações são mais claramente sentidas.

Cumpre considerar que, se a privação e a dureza da realidade nos fazem sonhar

com um mundo melhor e ideal, isto não significa que a sociedade perfeita de fato existiu

num passado longínquo; porém, mesmo que ela nunca tenha existido, buscamos a

perfeição e imaginamos que, em algum momento, já a tivemos ao alcance de nossas

mãos. Este sonho nos move, mas o encontro do sonho com a realidade mostra que

sempre falta algo para que a encontremos; o impossível escapa às nossas mãos, mas

continuamos a buscá-lo, mesmo com as inevitáveis decepções (SOUSA, 2009). É a falta

que nos move. A falta está na base do funcionamento do desejo, portanto, se não há

falta não há desejo e se há desejo, há movimento e esperança.

Neste ponto, convém explicar como se constituem a falta e o desejo para a

psicanálise. Primeiramente, a ideia de que a falta está na base do funcionamento do

desejo é de Lacan. É ele que traz a noção de desejo para o centro da teoria psicanalítica.

Segundo Guyomard (2010)40

, para Lacan existem objetos que são desejados, e é a falta

do objeto a causa do desejo. A falta se constitui a partir do modelo do objeto perdido,

daquilo que é imaginado como perdido, pois não podemos nos imaginar desejando se

não nos imaginamos como tendo perdido alguma coisa. Jamais podemos reencontrar a

satisfação plena imaginada, mas sua busca nos move em direção a outros objetos que

acreditamos poderem restituir este estado primitivo de satisfação. É o objeto perdido

que instaura a falta que “põe em marcha a metonímia do desejo” (COLOMBO, 1982, p.

30)41

.

Em Freud encontramos a ideia de que “o desejo inconsciente tende a realizar-se

restabelecendo, segundo as leis do processo primário, os sinais ligados às primeiras

vivências de satisfação”(LAPLANCHE; PONTALIS, 1992, p.113). Segundo Assoun

(1999), o termo desejo foi pouco conceituado por Freud. O termo original alemão

Wunsch, empregado por Freud e traduzido como desejo, traz a ideia de algo que a gente

40 Anotações pessoais da aula do Prof. Patrick Guyomard, na Université Paris 7, 01-02-2010. 41 Tradução nossa, desta e todas citações de Colombo (1982).

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quer que se realize e aparece sempre em composição com a noção de realização, ou

mais precisamente, de preenchimento. Para Freud, as principais características do desejo

são que o desejo é uma moção e que sua essência é a repetição que tem como base uma

“memória em ato”. “Esta „memória‟ é perceptiva – e de alguma maneira „visual‟: para

„desejar‟– neste sentido – é preciso ter a impressão de „rever‟ alguma coisa (ASSOUN,

1999, p.71)42

.” O que é revisto, ou reencontrado, é uma satisfação uma vez

experimentada, é uma „ressatisfação‟ que é diferente da satisfação imediata da

necessidade, pois o desejo se inscreve no après-coup da necessidade.

Aqui cabe diferenciar necessidade, demanda e desejo, que são, segundo Lacan,

os três registros da relação com o outro/Outro43

. A necessidade não se direciona a

ninguém e visa a um objeto real para se satisfazer; é o leite que satisfaz a fome do bebê.

A mãe que dá o leite ao bebê que chora, não dá somente o leite, dá também amor; é a

mãe que interpreta a necessidade que a transforma em demanda. A demanda, ao

contrário da necessidade que não se direciona a ninguém, direciona-se ao Outro e busca

atenção e amor. A demanda, por sua vez, transforma-se em desejo através das palavras

da mãe que introduzem o bebê no campo do simbólico. “O desejo, para Lacan44

, se

deduz, então, do assujeitamento às regras do Outro” (ZAFIROPOULOS, 1999, p. 96)45

;

logo, o desejo tem como ponto de partida a necessidade, porém é o outro que satisfaz a

necessidade que a transforma em desejo. “Impossível desejar alguma coisa sem esperar

de alguém: (...) o desejo é endereçado ao outro como parceiro da satisfação”.

(ASSOUN, 1999, p.75)

Ser desejante é ser orientado segundo a lógica do “futuro anterior” (ASSOUN,

1999); ou seja, desejar implica buscar no futuro algo que ficou perdido – ou foi

imaginado como perdido – no passado. Esta espécie de nostalgia é própria ao desejo que

tem uma essência narcísica ao buscar a satisfação de si pelo objeto e que é “(...) uma

busca errática dos „signos‟ da percepção-de-sastifação” (p.79).

42 Tradução nossa, desta e todas citações de Assoun (1999). 43 “ O outro em Lacan está ligado à imagem. Refere-se à relação dual e especular com o semelhante, com o qual se confunde e identifica. O Outro diz respeito a uma representação geral da alteridade, é o lugar do

saber sobre o sujeito, lugar onde sua demanda pode ser significada. O sujeito se constitui a partir do

Outro. Quem inscreve a criança no referente simbólico torna-se Outro privilegiado, capaz de significar a

demanda do sujeito, pela referencia simbólica ao código.” (ROSA,1998, p.128) 44 Segundo Zafiropoulos (1999) é necessário periodizar a teoria do desejo em Lacan. O primeiro período

corresponde a 1953 a 1962, período em que Lacan destaca a relação imaginário e simbólico. A partir de

1962, Lacan destaca o real e o objeto a. Zafiropoulos aborda o primeiro período da teoria do desejo em

Lacan. 45 Tradução nossa.

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Se, por um lado, a utopia funciona segundo o modelo do desejo, “busca do

paraíso perdido”, por outro, seu conteúdo é retirado das situações sociais reais vividas

pelos homens. Diante do sofrimento, miséria e desigualdade, os homens sonham com

dias melhores, de felicidade, fartura e igualdade. Este sonho pode se transformar em

projeto e modelo a realizar, e neste sentido a utopia funcionaria como uma antecipação

do futuro, como nos diz Bloch (2005).

Para Colombo (1982), a utopia é o produto da tensão constante entre a nostalgia

do paraíso perdido para sempre e “(...) da busca incessante de um objeto substitutivo

(imagem consciente da antecipação)” (p.34). Entre a nostalgia do passado e a

antecipação do futuro, a utopia “(...) testemunha sobre o plano histórico e coletivo, a

presença inesgotável do desejo.” (COLOMBO, 1982, p.34)

Crítica da realidade, sonho de transformação da sociedade, desejo de um mundo

melhor para todos - tudo isto constitui a face positiva da utopia. Por outro lado, não

podemos nos esquecer de que o horror também foi instaurado em nome da construção

de uma “sociedade ideal”; nem podemos negar o risco de que o sonho possa se

transformar em pesadelo, pois quando a utopia deixa de ser abertura para o novo e

crítica da realidade e se fecha em um projeto único, mostra sua face negativa, que nutre

governos totalitários que instauram o horror.

1.3- Utopias e ideais sociais

Será possível afirmar que quando a utopia se cristaliza em um projeto único, em

um modelo a seguir, saímos do campo da utopia e entramos no campo do ideal? Qual a

relação da utopia com o que é da ordem do ideal? Será a utopia uma forma de ideal?

Antes de responder a estas questões, convém conceituar o que é o ideal, ou

melhor, apresentar algumas definições que permitam continuar a discussão. Apresenta-

se, inicialmente, a definição de ideal de Bloch (2005), que, ao escrever sobre a utopia,

também abordou a relação entre utopia e ideal. Sua primeira definição de ideal é como

meta, mas não qualquer meta, e sim, aquela que visa à perfeição.

Se a meta parece conter não só o desejável ou o almejável mas

também o puro e simplesmente perfeito, ela recebe o nome de ideal.

Toda meta, atingível ou não atingível, delirante ou objetivamente

sensata, precisa nascer primeiro no espírito. Porém, a meta imaginária ideal se distingue da meta habitual justamente no acento na perfeição.

(BLOCH, 2005, p.164)

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A meta funciona como tarefa a cumprir, como direção. O ideal, além deste

sentido e do “acento na perfeição”, age de “modo exigente, aparentemente possuindo

um querer próprio que é dirigido ao ser humano como um dever” (BLOCH, 2005,

p.164). O ideal como dever, como “imperativo categórico da lei moral” que se opõe às

pulsões naturais do ser humano, é um dos sentidos do ideal em Kant. Para a Psicanálise,

esta face exigente do ideal, no sentido proposto por Bloch e concebido por Kant,

aproxima-se mais do supereu, embora o próprio Freud também tenha empregado ideal

neste sentido, antes de formular seu conceito de supereu.

Outro sentido de ideal apresentado por Bloch (2005) o associa à abstração, ao

imobilismo, às palavras em oposição à ação, à perfeição que só existe no pensamento.

Neste sentido, Bloch entende que é função da utopia corrigir o ideal. A perfeição deve

ser concebida como antecipação e não como algo pronto e acabado que existe no

pensamento ou no mundo. Quando o ideal é posto tão distante do mundo que não

produz efeitos sobre ele, ou quando o mundo é concebido como já sendo a

concretização do ideal, a consequência é o imobilismo, cabendo à utopia corrigi-lo,

colocando-o no caminho do possível, e não do acabado.

Já Rosolato (1999) entende que o ideal, ou melhor, os ideais (o autor utiliza o

plural) têm grande força como orientadores do desejo. Para o autor, são cinco os campos

de ideais que atuam como orientadores do desejo: a religião, a política, a filosofia, a arte

e a pesquisa científica, sendo que os dois primeiros são os mais poderosos. Os ideais

possibilitam a ilusão de um saber e são uma forma de lidar com o desconhecido,

presente em todo desejo. A Psicanálise não pode ignorar sua função como orientadores

do desejo, assim como a relação do desejo com a Lei46

. Para Rosolato (1999), a Lei não

é só interdito, ela é também prescrição, e orienta o desejo no caminho da realização. “O

desconhecido que circula através dos ideais, em cada uma das suas cinco orientações

abertas e traçadas pela Lei, relança o alcance do desejo” (ROSOLATO, 1999, p.173).

Os ideais podem conduzir à construção de coisas novas e melhores, desde que

não apaguem o desconhecido, que é, ao mesmo tempo, fonte de angústia, de prazer e da

curiosidade que alimenta as descobertas; mas nem sempre os ideais levam à construção

46 A Lei (com L maiúsculo e no singular) refere-se à humanidade, “um interesse superior, que apela para

uma dimensão ética, que pode ser religiosa, moral, filosófica e humana”(Guyomard, 2006, p.5) e

diferencia-se das leis (no plural e com l minúsculo) criadas por um determinado Estado.

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de um mundo melhor, e a história nos mostra isto. O risco de que eles conduzam o

desejo para um absoluto é sempre uma ameaça.

Mesmo um ideal nobre pode conduzir à destruição e ao mal se ele se torna

absoluto. A tirania de um ideal único cega e bloqueia o funcionamento do supereu, que

passa a agir mecanicamente a seu serviço. Ao contrário, a existência de vários ideais

exige do sujeito que pense sobre eles, para escolher a qual deve aderir. Em cada

situação o sujeito deve avaliar a melhor maneira de agir, o que não significa que todos

os ideais devam ter o mesmo valor. Os ideais (no plural) devem ser hierarquizados e

submetidos ao universal47

. Existem vários princípios universais que devem ser

consultados para a tomada de uma decisão, os quais devem ser pensados em relação à

situação vivida, e não impostos. (LAVAL, 2010)

Para Laval (2010), o universal não é, em si, totalitário, desde que seja pensado

pelo sujeito e não tomado como verdade absoluta. O que é totalitário é o que tem a

aparência de universal sem o ser, é o universal menos 1.

É o antiuniversal que é totalitário: tudo será perfeito no nosso mundo

si eliminarmos os judeus, árabes, obstáculos ao objetivo supremo... Destaco a aparência de universal do signo menos 1 que representa os

eliminados e seu signo particular de estigmatizados pela propaganda.

O universal menos 1 procede de uma dessubjetivação regulada por um sentimento de perseguição: si eu não consigo, é sua falta; delimita-se

um grupo persecutor tipificado depois atribui-se a este grupo um

sentido abstrato; enfim externaliza-se a noção de que, isto funciona em um sentido universal. (LAVAL, 2010, p.186)

48

Se mesmo um ideal nobre pode conduzir à destruição, se ele se absolutiza, o que

dizer de um ideal fundado sobre um falso universal, sobre o universal menos 1? Nestas

situações o ideal mostra sua face “maligna” e - por que não o dizer? - sua face de

morte. Mesmo que o ideal pretenda o bem, ele guarda em seu interior “(...) a serpente do

mal quando ele inspira violentamente os terroristas religiosos que sacrificam suas

vidas... e as vidas de tantos outros” (LAVAL, 2010, p.192).

Os ideais constituem a grande invenção humana que funda o „viver

junto‟. Mas eles têm duas faces: elementos de vida, elementos de

morte. Eles ajudaram a sociedade a edificar as barreiras contra sua própria autodestruição, que intervém mesmo que a face de morte

47 O universal “(...) indica a possibilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro e falso, ao belo e

ao feio, ao bem e ao mal, etc) ser válido para todos os seres racionais”. (Dicionário de Filosofia, 2000,

p.987) 48 Tradução nossa, desta e todas citações de Laval (2010).

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ameace, mas eles são também investidos de paixão, instrumentos para

o torturador. (LAVAL, 2010, p. 201)

Também para Freud os ideais têm estas duas faces, eles podem se ligar tanto à

pulsão de vida quanto à pulsão de morte. Quando enlaçados a aspirações destrutivas, os

ideais podem ser transformados em pretextos para a destruição ou passar para primeiro

plano na consciência, enquanto as aspirações destrutivas o reforçam inconscientemente

(FREUD, 1932). Quando enlaçados à pulsão de vida eles se constituem em fator de

ligação e união entre os sujeitos.

Em seu texto Por que a guerra?, Freud (1932) diz: “Quando os homens são

persuadidos à guerra, é possível que eles respondam afirmativamente a este chamado

com toda uma série de motivos, nobres e vulgares, alguns que se dizem em voz alta e

outros que se calam”(p.193). Entre estes motivos nobres podemos dizer que estão os

ideais; o que se cala é que eles podem ser pretextos para destruição, esconder a pulsão

de morte que os alimenta. Para tentar combater a guerra cabe, segundo Freud, apelar à

pulsão de vida.

Se o consentimento à guerra é um transbordamento da pulsão de destruição, o natural será apelar ao seu contrário, Eros. Tudo quanto

estabeleça ligações de sentimento entre os homens não poderá menos

que exercer um efeito contrário à guerra. Tais ligações podem ser de duas classes. Em primeiro lugar, vínculos como aqueles que se tem

com um objeto de amor, mesmo que sem metas sexuais.(...) A outra

classe de ligação de sentimento é aquela que se produz por identificação. Tudo o que estabeleça substantivas relações de

comunidade entre os homens provocará estes sentimentos comuns,

estas identificações. Sobre elas descansa em boa parte o edifício da

sociedade humana. (p.195)

A concepção de que os ideais são fator de ligação e união entre os sujeitos é

desenvolvida por Freud em Psicologia de massas e análise do eu. Neste texto, Freud

(1921) propõe que os vínculos que unem os sujeitos em um grupo49

se dão entre os

membros entre si (vínculo horizontal) e entre cada membro e o líder (vínculo vertical),

sendo que a figura do líder pode ser substituída por uma ideia condutora (ideal).

Possuir um mesmo líder é a base para a identificação entre os membros de um grupo, é

o suporte para o estabelecimento de um vínculo horizontal entre todos os que se

identificam pelo que eles têm em comum: o mesmo líder ou ideal

49 Freud utiliza o termo alemão Masse tanto pra se referir ao grupo quanto à multidão (FREUD, 1921,

nota de rodapé de Strachey).

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Os grupos estudados por Freud (1921) que foram a base para elaboração desta

concepção foram a Igreja e o exército. Ambos são grupos altamente organizados,

duradouros, artificiais,50

e possuem um líder: Cristo na Igreja Católica e o general no

exército. Ao redor da figura de Cristo é que se estabelece o vínculo vertical entre os

fiéis, que, por sua vez, identificam-se por possuírem um mesmo líder. No exército o

general exerce função semelhante à de Cristo na Igreja. Estes vínculos (vertical e

horizontal) são de natureza afetiva, implicam em investimentos libidinais51

, no caso dos

grupos citados, nas figuras Cristo/General (líder) e nos semelhantes (identificação).

Sobre a identificação, Freud (1921) diz que ela pode ser de três tipos. O primeiro

deles é a identificação primária, que antecede e prepara o Complexo de Édipo; “é a

forma mais primitiva de enlace afetivo a um objeto” (p.101) e busca configurar o eu do

sujeito segundo os pais tomados como modelos. A segunda é a identificação como

substituição regressiva do enlace afetivo a um objeto, em que o objeto ou um traço dele

é introjetado no eu. A terceira é a identificação que prescinde de toda relação de objeto

com a pessoa copiada e que tem como base algo comum. Destas três, a última é a que

caracteriza o enlace dos indivíduos entre si no grupo. Sobre esta última modalidade de

identificação Freud diz:

Pode surgir sempre que um sujeito descubra em si um traço comum com outra pessoa que não é objeto de pulsões sexuais

52. Quanto mais

significativa seja essa comunidade, mais poderosa poderá ser a

identificação parcial e, assim, corresponder ao começo de uma nova ligação afetiva. Já descobrimos que a ligação recíproca entre os

indivíduos em uma massa tem a natureza de uma identificação dessa

classe (mediante uma importante comunidade afetiva), e podemos

conjeturar que essa comunidade reside no modo de ligação com o líder. (p.101)

Assim, para Freud (1921), o vínculo que une todos ao líder é mais decisivo do

que aquele que une os participantes do grupo entre si, uma vez que é o primeiro que

possibilita o último. Enquanto o vínculo entre os participantes está pautado na

50 De acordo com Freud (1921), são grupos artificiais aqueles sobre as quais uma coerção externa impede

sua dissolução. 51 Para Freud (1921) a libido é “ a energia, considerada como magnitude quantitativa – ainda que por hora

não mensurável – das pulsões relacionadas com tudo que podemos sintetizar como „amor‟(p.86)”. O

conceito de amor compreende, além do amor sexual cujo fim é a cópula, o amor do indivíduo a si próprio,

o amor paterno e filial, a amizade, o amor à humanidade, a objetos concretos ou ideias abstratas. Ou seja,

existem muitas possibilidades de investimento libidinal e os vínculos que unem os indivíduos no grupo

são uma delas. 52 Para tradução foi consultada também a edição das obras completas da Biblioteca Nueva.

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identificação, o vínculo de todos com o líder está pautado na idealização e na

substituição do ideal do eu de cada um dos sujeitos pela figura do líder. Vejamos o que

Freud diz sobre isto.

A idealização é o processo psíquico pelo qual as características do objeto são

superestimadas; o objeto, então, é visto como perfeito e não passível de crítica. Ela é

comum a situações de fascinação amorosa e hipnose. Na fascinação amorosa, o objeto é

tratado como o próprio eu e recebe um grande investimento de libido narcísica,

empobrecendo o eu do apaixonado, que pode, em certos casos, colocar o objeto no lugar

do seu ideal de eu, amando, então, a perfeição desejada para si e encontrada no objeto.

Na situação de hipnose também a figura do hipnotizador vem substituir o ideal do eu do

hipnotizado, que obedece e se submete ao hipnotizador, sem críticas. O que diferencia

as duas situações é a ausência da finalidade sexual na situação de hipnose, que é

comparada por Freud (1921) à relação dos sujeitos na massa com o líder. O líder

exerceria em relação à massa a mesma função que o hipnotizador em relação ao

hipnotizado.

O sujeito que mais facilmente tenderia a substituir o seu ideal do eu pela figura

do líder da massa é aquele cuja distância entre seu eu e seu ideal do eu é pequena

(FREUD, 1921). É um sujeito - poderíamos dizer - mais facilmente dominável. Por sua

vez, os vínculos pautados na dominação, por mais que produzam ligação e união entre

as pessoas, podem conduzi-las a caminhos nem sempre construtivos. A pulsão de vida e

a pulsão de morte trabalham juntas, “das ações conjugadas e contrárias de ambas

surgem os fenômenos da vida” (FREUD, 1932, p.193) e também da destruição.

Se a substituição do ideal do eu dos integrantes de um grupo pela figura do líder

é uma possibilidade sobre a qual se pauta a formação do próprio grupo, uma segunda

possibilidade, no caso da ausência de um líder, é que uma ideia abstrata, um desejo

compartilhado possa ocupar o seu lugar como suporte para a identificação dos sujeitos

em um grupo. A ideia abstrata pode se encarnar na figura de um líder secundário e o

vínculo entre ideia e líder pode assumir diferentes configurações. O líder e a ideia

também podem ser negativos, ou seja, o ódio a determinada pessoa ou instituição

também pode produzir ligações afetivas. (FREUD, 1921)

Um líder também pode ser associado à figura de outro líder que lhe antecedeu e

à ligação entre eles estabelecida por meio da ideia que sustentam53

. Por sua vez, uma

53 O Exército de Libertação Nacional (EZLN) no México pode ser citado aqui como exemplo,:seu líder, o

subcomandante Marcos, representa os ideais revolucionários de Emiliano Zapata.

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ideia sempre tem um autor e, neste sentido, sempre remete à figura de alguém. Mesmo

que os autores sejam esquecidos, ideias de igualdade e liberdade remetem à existência

de lutas, esperanças, de homens revolucionários, de grandes homens – profetas, heróis

ou mártires; e quem assume estas ideias como guia de vida e de ação se coloca neste

lugar de líder ou de profeta. (ENRIQUEZ, 1999, p.74)

No MST são os ideais de transformação social que movem seus militantes e

impulsionam suas lutas. Não existe a figura de um líder sem-terra que ocupe este lugar

de ideal do eu de cada um, os militantes se vinculam pelos mesmos ideais sociais que

sustentam. Estes ideais podem ser enriquecedores quando os sujeitos se identificam a

eles, mas também podem ser opressivos se substituem o ideal do eu de cada um, se são

absolutos, e não objetos de reflexão.

Por outro lado, se não existe um líder sem-terra que ocupa este lugar de Um, os

militantes mortos não são esquecidos e são transformados em mártires da luta pela terra

e são lembrados juntamente com outros grandes homens e mulheres que lutaram em

nome de ideais de igualdade e liberdade. Entre os mártires reverenciados pelo MST, um

se destaca, principalmente entre os jovens: Che Guevara. Ele se tornou símbolo da luta

dos povos oprimidos, estampando bonés e camisetas de jovens pelo mundo afora e

também no MST.

Segundo Löwy (2001), o MST é o movimento social inspirado no pensamento

de Che Guevara mais importante da América Latina. Ao contrário da tradição da

esquerda latino-americana, que privilegiava o papel dos setores urbanos na revolução,

Che destaca a importância dos camponeses. Ele acredita que são os próprios

trabalhadores (da cidade e do campo) que conquistarão sua emancipação; que a

revolução, além de transformar as estruturas sociais, deve transformar os homens e as

mulheres, deve criar “um novo homem e uma nova mulher”. Tais ideias vão ao encontro

dos anseios do MST, mas também são inseparáveis do homem Che, militante coerente

na sua teoria e na sua prática, modelo a seguir.

O Che que é modelo para o MST é um Che revisitado, adaptado aos ideais do

movimento. Um Che afetivo e humano. Um Che não violento. Um “santo laico”,

imortal no seu exemplo de vida. (BLEIL, 2009)

O Che que é modelo para o MST não é o da guerrilha ou da luta armada. São

apropriados pelo movimento sobretudo os valores e o exemplo de vida de alguém que

morreu em combate, lutando por um mundo melhor.

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O que ele [o MST] herdou de Che não é, obviamente, o modelo do

foco guerrilheiro, mas sim a importância central das lutas rurais, a

aspiração socialista e revolucionária, os valores da ética social, da „mística‟ do compromisso pela causa da libertação dos povos.

(LÖWY, 2001, p. 15-16)

O exemplo de vida e o ideário de Che, juntamente com a Teologia da Libertação,

foram fundamentais para a construção do ideário político do MST: um ideário em que

“a fé e a revolução; a Internacional Comunista e os cantos religiosos; o samba e os

processos religiosos podem se conjugar, declinar juntos sem exclusividade”

(CERTEAU, citado por BLEIL, 2009, p.323)54

. Tal ideário aponta e antecipa o futuro

que começa a ser construído no aqui e agora.

Neste ponto, volto às questões colocadas anteriormente. Será possível afirmar

que quando a utopia se cristaliza em um projeto único, em um modelo a seguir, saímos

do campo da utopia e entramos no campo do ideal? Qual a relação da utopia com o que

é da ordem do ideal? Será a utopia uma forma de ideal? Utopia e ideais sociais podem

ser tomados como sinônimos? A transformação social almejada pelo MST é uma utopia

ou são ideais sociais? Estas questões, à medida que este capítulo foi sendo escrito,

deixaram de ser importantes, pois se esperava ser possível encontrar uma relação de

oposição entre utopia e ideal, tipo “abertura” e “fechamento”; e diante não da utopia e

do ideal, mas de utopias e ideais, diante da complexidade do campo, percebe-se que esta

oposição não existia, que utopias e ideais contêm esta possibilidade da “abertura” e do

“fechamento”, de conduzir à construção ou à destruição. Vejamos, então, quais as

“respostas” possíveis às questões apresentadas.

A partir do que foi exposto, não é possível afirmar que quando a utopia se absolutiza

saímos do seu campo e entramos no campo do ideal, pois a utopia também traz consigo

o risco do absoluto. A diferença entre ideal e utopia é que o campo do ideal é bem mais

amplo que o da utopia e de certa forma a inclui. Embora no senso comum qualquer

projeto que pareça irrealizável seja chamado de utopia, a utopia diz respeito à ideia de

uma sociedade ideal, é um tipo ideal, uma versão possível do que é da ordem do ideal.

Na prática, a diferenciação entre utopia e ideal pouco importa, o que importa é atentar

para o risco da cristalização de um projeto único, da construção de um absoluto que não

dê espaço para o desejo. O desejo produz mudança e movimento, é o ponto de partida

da construção das utopias/ideais ao mesmo tempo em que é também orientado por eles;

54 Tradução nossa, desta e todas citações de Bleil (2009).

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logo, utopias/ideais orientam e são orientadas pelo desejo que não pode morrer, sob o

risco de que as utopia/ideais mostrem sua face destrutiva.

Assim, entendo que o projeto de transformação social do MST é feito de utopias

e de ideais; de utopia em sua dimensão crítica do mundo atual, que vai além da crítica,

pois é também antecipação, invenção, imaginação, construção do novo no aqui e agora;

de utopia que se inclui no campo mais amplo dos ideais que remetem ao que é da ordem

do universal e, no sentido freudiano, daquilo que faz laço entre os sujeitos.

CAPÍTULO 2: MILITÂNCIA E MST

A militância parece um tema do passado, pelo menos em sua concepção

tradicional, do militante vinculado às grande causas, a momentos históricos em que a

política e os movimentos sociais vinham cercados de uma aura de heroísmo. Na

atualidade, as causas diretamente políticas têm sido substituídas pelas relativas ao meio

ambiente, ao gênero, ao feminismo, etc. A figura do militante devotado a uma causa

política é posta em segundo plano e mesmo desdenhada como algo próprio de fanáticos.

A ideia do que é ser militante está mudando, fala-se do militantismo “livre-serviço” e

post-it, sem grande envolvimento com uma causa e voltado à resolução de questões

pontuais. Diante deste contexto, o presente capítulo tem como objetivo caracterizar o

que é ser militante do MST, partindo de uma caracterização do que é ser militante na

atualidade. O segundo objetivo do capítulo, desenvolvido na última parte, é trazer as

contribuições da psicanálise para pensar a militância política e a especificamente a

militância no MST, não como práticas alienantes, como encontramos em certas análises

psicanalíticas, mas como práticas que podem ser enriquecedoras para o sujeito.

2.1- Militância hoje

Segundo o Dicionário Novo Aurélio (1999), militância é o nome dado à ação, à

prática do militante. O militante é aquele que combate, que atua, que participa; é o

soldado, o guerreiro, o apóstolo. Já no Dicionário Houaiss (2004), o militante é definido

como “aquele que defende ativamente uma causa”(p.1923). No Dicionário Etimológico

Nova Fronteira da Língua Portuguesa (1986), encontramos que militar é “seguir a

carreira das armas, ser membro de um partido, fazer guerra, combater”(p.521). Da

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participação ao combate, do apóstolo ao soldado, encontramos no substantivo militante

e no verbo militar múltiplos sentidos. Não é sem razão que Offerlé (2005) refere-se a

este tema como gigantesco e cheio de problemas. Entre estes problemas estão a própria

denominação (quem é militante?) e a definição (o que é ser militante?).

Sobre a denominação militante, Offerlé (2005) diz que o termo é confundido

com o que, na França, é chamado de bénévole − que podemos traduzir como trabalhador

voluntário −, porém, nem todo trabalhador voluntário é militante, embora o militante

seja um trabalhador voluntário. Offerlé destaca as mudanças na utilização da

denominação militante na França, que durante muito tempo foi associada à esquerda e

que hoje em dia já é associada também à direita e começa a ser empregada também para

designar algum participante de uma associação patronal. Lembra o desaparecimento do

termo ativista político, que foi muito empregado na França na década de 1960 e depois

de 40 anos está voltado a ser empregado para designar os “très militants”.

Sobre a definição do que é ser militante, Offerlé (2005) apresenta a existência de

uma relação de oposição entre o que se entendia que era militante nas décadas de 1960 e

1970 e o que se entende por ser militante hoje. Num passado não tão distante o militante

era aquele vinculado a uma organização que defendia uma causa entendida como justa,

que se sacrificava em nome do coletivo, que participava de reuniões e debates

doutrinários e dedicava grande parte do seu tempo à organização. Hoje, fala-se do

militante post-it55

, que é aquele que se engaja em uma causa pontualmente e que nem

chega a estabelecer um vínculo duradouro com alguma organização. Passemos, então, à

caracterização do que é militar na atualidade, na visão de Ion, Franguiadakis e Viot

(2005), que têm um livro intitulado justamente Militar hoje:

Militar é fazer coletivo; se associar, se reunir, em um mesmo lugar ou

a distância, para defender uma causa. Mas é também comunicar e tornar visível o conjunto assim constituído, através das representações,

no duplo sentido do termo. Representar é, portanto, manifestar uma

existência pública, mas é igualmente fazer funcionar e dar uma

qualidade à uma entidade coletiva. (p.48)56

Militar é defender uma causa e, por meio da ação coletiva, dar-lhe visibilidade.

A ação no aqui e agora é privilegiada em relação ao debate doutrinário; é ela a principal

característica do que é militar na atualidade, segundo Ion, Franguiadakis e Viot (2005).

55 Termo concebido por Jacques Ion. Post-it é aquele papelzinho que podemos colar e descolar em

diversas superfícies sem ficar marca. 56 Tradução nossa, desta e todas citações de Ion, Franguiadakis e Viot (2005).

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Para eles, os diversos movimentos sociais atuais preferem a ação ao debate doutrinário.

O engajamento pragmático, mais do que ideológico, é uma reposta rápida a problemas

que não podem esperar uma solução por muito tempo, e se insere num contexto

específico do “fim” das grandes narrativas.

O objetivo é menos lutar por um amanhã melhor que combater

perigos eminentes. O que muda é uma representação do tempo. Não

mais: amanhã será melhor que hoje, mas amanhã corre o risco de ser

pior que hoje. É a ideia do risco que torna-se central e ela compreende os lugares e as formas de se mobilizar. (ION; FRANGUIADAKIS;

VIOT, 2005, p.12-3)

O agir no aqui e agora não significa que os ideais desapareceram, que não existe

mais utopia, mas sim, que eles são tematizados de um modo diferente. Os ideais, a

utopia, não ocupam mais lugar privilegiado na origem da ação, são as necessidades

imediatas que o ocupam; porém eles continuam no horizonte e os militantes continuam

sendo movidos pelo desejo de “mudar a ordem das coisas”. (ION; FRANGUIADAKIS;

VIOT, 2005)

Juntamente com o agir no aqui e agora e o “declínio” dos ideais, a imagem do

militante e seu envolvimento com uma causa também não são mais os mesmos. Militar,

hoje, aproxima-se mais da ideia de livre serviço – em que cada um escolhe livremente

seu grau de envolvimento –, do que da ideia clássica do militante totalmente devotado a

uma causa. (ION; FRANGUIADAKIS ;VIOT, 2005)

A diversidade de formas de coletivos é um indício muito forte de que

é possível a participação de formas muito diferentes no apoio de uma causa. A adesão deixou de ser uma obrigação e a maior parte dos

agrupamentos militantes oferecem hoje o que podemos chamar de

uma participação com graus variados. Certamente, já era sabido que aderir não significa uma igual contribuição à vida do agrupamento, a

distinção entre „aderentes de base‟ e „aderentes ativos‟ ou „militantes‟

há muito tempo serve para descrever uma tal hierarquia implícita, ligada seja ao grau de politização conquistada pela formação interna,

seja aos recursos pessoais específicos. O que aparece como novo, é

um tipo de divisão funcional das tarefas, autorizando todos e cada um,

qualquer que seja seu nível de implicação, independente de todo julgamento de valor sobre sua relação à vida do coletivo; assim, a

ideia de uma entrada progressiva na militância, foi sucedida pela de

livre serviço. (ION; FRANGUIADAKIS;VIOT, 2005, p.58)

Ion, Franguiadakis e Viot (2005) desenvolveram estas ideias a partir do estudo

de alguns movimentos sociais na França atual, entre eles os Sem-Emprego, os Sem-

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Alojamento, os Sem-Domicílio Fixo e os Sans-Papiers57

. Estes movimentos franceses,

designados como “grupos com fracos recursos” e nomeados por aquilo que lhes falta e

que parecia condená-los à inexistência social, tomaram a palavra e se fizeram ouvir no

espaço público. Sujeitos e objetos de ação, eles impuseram sua presença no espaço

público. Assim como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, são

designados por aquilo que lhes falta, são marcados pela preposição SEM, que compõe

seus nomes. São os “sem-direitos” em luta por reconhecimento jurídico e social58

. É

um destes movimentos franceses, os Sans-Papiers, que é apresentado na sequência,

como um exemplo do que é militar hoje, de acordo com os autores citados e, como

contraponto para pensar o que é militar no MST.

As primeiras manifestações de imigrantes em situação irregular na França datam

da década de 1970, quando aquele país endureceu sua política de imigração. Após a

Segunda Guerra Mundial, diante da necessidade de mão de obra, a França abriu suas

fronteiras para Portugal, Espanha e os países do Noroeste da África59

. Neste período, a

permissão para morar na França era obtida quando o imigrante apresentava uma

comprovação de que estava empregado. Na década de 1970, quando a mão de obra

externa foi se tornando progressivamente desnecessária, esta situação inverteu-se e

passou a ser necessário ter a permissão para morar na França (carte de séjour) para

conseguir um trabalho. Além disso, quem perdesse o trabalho perderia também sua

permissão para morar em território francês. Após a década de 1970, a política

imigratória francesa oscilou entre um maior endurecimento e uma pequena

possibilidade de regularização para aqueles imigrantes que já viviam em território

francês até 1993 e a elaboração da segunda Lei Pasqua60

. Esta lei restringiu

rigorosamente a entrada e permanência de estrangeiros no território francês, e depois

dela muitos imigrantes que viviam regularmente na França tiveram negada a renovação

de suas cartes de séjour e se tornaram Sans-Papiers. (GOUSSOLAUT, 1999)

Goussalaut (1999) destaca que a maioria daqueles que se tornam imigrantes

irregulares na França se constitui dos que entraram regularmente no país e se tornaram

irregulares após a negação da renovação da carte de séjour ou após a expiração de um

57 São os estrangeiros que vivem na França em situação irregular, sem o documento (carte ou titre de

séjour) que os autorizam a morar em território francês. 58 Terminologia proposta por Honneth (2009) que será abordada no último capítulo. 59 Também conhecido como Magreb. O Magreb central inclui o Marrocos, a Tunísia, a Argélia e o Sahara

Ocidental. O grande Magreb inclui também a Mauritânia e a Líbia. 60 As leis Pasqua- Debré versam sobre a imigração na França. A primeira delas é de 1986, a segunda de

1993 e a terceira de 1997.

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visto de curta duração. Atualmente61

, em sua maioria, os estrangeiros em situação

irregular trabalham, porém são explorados e excluídos de todos o direitos:

(...) salários miseráveis, pesadas jornadas de trabalho, ausência de toda

proteção legal ou social, „incidentes de pagamento62

constantes, contra os quais os sans-papiers estão sem defesa, uma vez que estão

submetidos em permanência, da parte dos empregadores, a

chantagem, a deleção e a expulsão. (TERRAY, 1999, p.9)63

Ao contrário do que se pode pensar, a miséria imperante no país de origem não é

o único ou o principal motivo que levou muitos a migrar para a França, mas sim, as

guerras e a opressão (política, étnica, de gênero). Aqueles que migram, buscam não

somente fugir de alguma coisa, mas também conquistar alguma coisa. Não são os mais

desprovidos que partem, mas sim aqueles cujo grupo e cuja família acreditam ter mais

chances de obter sucesso. Eles são atraídos pela ideia de que a França é um “país livre,

acolhedor e generoso, pátria dos direitos dos homens”, mas se decepcionam logo que

chegam. (TERRAY, 1999)

Como os imigrantes irregulares na França se transformaram em Sans-Papiers e

passaram a empreender ações coletivas, o que reivindicam e como se organizam?

Um marco das ações coletivas dos imigrantes em situação irregular foi a

ocupação da igreja Saint-Ambroise em Paris, em 18 de março de 1996, por cerca de 300

estrangeiros de origem africana. No mesmo dia da ocupação o padre local solicitou

providências da força pública para assegurar “o direito de culto”64

, e quatro dias depois

eles foram expulsos. A mobilização continuou, outros imigrantes irregulares se

reuniram ao grupo e militantes de outras organizações se aproximaram para prestar seu

apoio. Em 28 de junho do mesmo ano o grupo ocupou a igreja Saint-Bernard. Em 23 de

agosto as forças policiais os expulsaram da igreja. Durante estes meses, alguns

membros do grupo fizeram greve de fome como forma de protesto, muitas

manifestações de apoio foram realizadas e eles se transformaram em “um fenômeno

político” que passou a ocupar as manchetes dos jornais. De imigrantes irregulares ou

61 Não se sabe ao certo quantos Sans-Papiers existem na França, estima-se que eles sejam entre 200.000 a

400.000, e cerca de 25.000 são expulsos todos os anos. Estima-se que cerca de 60% dos trabalhadores da

construção civil, limpeza, hotelaria-restaurante da região de Île-de-France seja composto de sans-

papiers.( DÉSOBÉIR AVEC LES SANS-PAPIERS, 2009) 62 Um exemplo destes “incidentes de pagamento” foi relatado à autora por uma faxineira brasileira em

situação irregular na França. Após trabalhar durante vários finais de semana na limpeza de um hotel, não

recebeu pagamento, ao contrário das faxineiras em situação regular. 63 Tradução nossa. 64 Se fosse no Brasil, talvez seria reintegração de posse.

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clandestinos passaram a ser conhecidos como os Sans-Papiers de Saint-Bernard.

(BLIN, 2005)

A própria mudança de denominação de irregulares e clandestinos para Sans-

Papiers já denota uma conquista e importante mudança simbólica: de responsáveis por

sua situação e de pessoas fora da lei, eles se impuseram como vítimas das leis

repressivas de um país. Saíram da “invisibilidade que caracteriza a condição de

clandestinos”, fizeram-se ver e ouvir através de ações que testemunham a

impossibilidade de agir pelas vias convencionais. (ION; FRANGUIADAKIS; VIOT,

2005).

Os Sans-Papiers de Saint-Bernard tinham uma única reivindicação: a

regularização de todos do grupo65

, todos eles imigrantes irregulares. O slogan utilizado

por eles era: “des papiers, pas de politique” (regularização, não política). O resultado

final desta mobilização foi a regularização de 109 dos Sans-Papiers de Saint-Bernard

(101 deles eram pais de crianças francesas ou crianças nascidas na França e 8 receberam

o direito de asilo), enquanto 13 foram expulsos da França. (BLIN, 2005)

Depois de Saint-Bernard, as manifestações dos Sans-Papiers continuaram com

greves de fome, ocupação de outras igrejas, de órgãos públicos, universidades e outros

locais. Em maio de 2010 os Sans-Papiers fizeram uma marcha de Paris a Nice

(aproximadamente 1.000 km) pela regularização de todos. Eles vestiam camisetas com

os seguintes dizeres: “Hier colonisés, aujourd’hui exploités, demain

regularisés”(ontem colonizados, hoje explorados, amanhã regularizados). Outra frase

que também estampava suas camisetas e cartazes era: “On bosse ici! On vit ici! On

reste ici!” (trabalhamos aqui, vivemos aqui, ficamos aqui).

Atualmente os Sans-Papiers se organizam em coletivos que lutam pela

regularização de todos. Há cerca de um coletivo por cidade ou departamento, todos

ligados entre si por uma coordenação nacional. Os coletivos contam com suporte de

“comitês de apoio” formados por militantes de direitos humanos e de outras

organizações. (GOUSSOLAUT, 1999)

Os Sans-Papiers têm em comum com o MST algumas formas de ação, como as

marchas e ocupações. Os dois movimentos agem no aqui e agora, porém no MST a ação

não é privilegiada em relação ao debate ideológico, prática e teoria seguem juntas e são

inseparáveis. No MST, os ideais continuam a ocupar um lugar privilegiado como

65 Grande partes deles se encontrava em uma situação paradoxal, pais de crianças francesas ou nascidas

na França não podiam ser expulsos e nem regularizados segundo as leis francesas vigentes.

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orientadores das ações, mas eles são conjugados com ações práticas que visam

solucionar necessidades imediatas, como também com ações que visam à construção de

uma sociedade melhor, do “novo homem e nova mulher”.

Por exemplo, quando o MST reúne um grupo de famílias sem terra e ocupa um

latifúndio, está procurando suprir uma necessidade imediata, de restituir àquelas

famílias o direito de trabalhar e tirar da terra o seu sustento. Quando o MST destrói uma

plantação de alimentos transgênicos de alguma multinacional, mostra qual modelo de

sociedade e agricultura ele defende, sua luta contra o capitalismo e sua proposta

agroecológica. A ocupação de terras e a destruição de plantações de alimentos

transgênicos mostram diferentes níveis de ação que são articulados: luta pela terra, luta

pela reforma agrária, luta contra o modelo capitalista. Estas ações também são

entendidas como espaço de formação de seus militantes, juntamente com os cursos em

que é enfatizado o debate doutrinário.

A urgência da causa dos Sans-Papiers que vivem no cotidiano o medo de serem

presos ou expulsos a qualquer momento (“amanhã pode ser pior que hoje” e não

“amanhã será melhor que hoje”), mostra uma nova relação com o tempo, diferente da

que vemos no MST. Esta diferença na relação com o tempo foi e é construída a partir de

diferentes contextos, países e situações/reivindicações, e certamente a questão do

urbano e rural também exerce influência na forma como os sujeitos constroem sua

relação com o tempo. O tempo no campo não é o mesmo das grandes metrópoles e

cidades, é um tempo “mais lento”, ligado aos ritmos e ciclos da natureza, da hora de

plantar e de colher que o homem do campo conhece, sabendo que ele pode perder uma

colheita, mas que virá uma próxima.

Tanto os Sans-Papiers quando o MST contam com apoio de militantes de outras

organizações66

que definem, eles próprios, seu grau de envolvimento com estes

movimentos. Entre os militantes do MST que também são sem-terras ou tornam-se sem-

terras (como o padre que larga a batina para militar no movimento) a ideia da militância

como livre serviço não se aplica. Assim, propõe-se nesta tese uma diferenciação entre

militar no MST e ser militante do MST. Aqueles que militam no MST podem ou não

militar também em outros movimentos e podem ter graus variados de participação. Os

66 No Seminário Subjetividade e Questão da Terra (2004), um dos psicólogos participantes perguntou a

um militante do MST como deveria ser o envolvimento dos psicólogos com o MST, e este militante

respondeu que ia tomar como exemplo o envolvimento dos padres para responder à questão. Disse que

havia um padre que tinha pintado um quadro sobre a luta pela terra, um outro que os ajudava sempre que

precisaram e aquele padre que largou a batina e tornou-se um sem-terra. Disse que cada um deve definir

qual será o nível de envolvimento e todos são bem-vindos no MST.

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militantes do MST vivem sua militância vinte e quatro horas por dia e nos sete dias da

semana. Esses militantes que são ou tornaram-se sem-terras são o foco desta pesquisa.

2.2- Militantes do MST

O militante do MST é devotado à causa da transformação social e sua militância

está muito longe da ideia de livre serviço. O título da tese de Bleil (2009) Engagement

corps et âmes: vies et luttes des sans terres dans le sud du Brésil, mostra bem como é o

engajamento do sem-terra: é um engajamento de corpo e alma. Lerrer (2008), que

também fez sua tese sobre militantes do MST no Sul do Brasil, pensa da mesma forma:

A entrada no MST como militante pressupõe um “engajamento total”,

fundamento do engajamento “revolucionário”, o que por sua vez,

modela as disposições dos agentes, sua representação do mundo, seus repertórios de ação e acabam por marcar fortemente a vida de seus

militantes. (LERRER, 2008, p.95)

Quantos no MST são militantes que têm este tipo de engajamento é difícil saber.

Nessa pesquisa parte-se da ideia de que nem todos os integrantes do MST são

militantes, ao contrário de Bleil (2009), que entende que os participantes do MST são

todos militantes, embora com diferentes níveis de engajamento. Bleil (2009) diferencia

a “base”, militantes menos engajados, dos “quadros”, militantes mais engajados. A

definição de quadro que ela utiliza é do próprio MST:

É [do quadro] a pessoa que adquiriu um nível elevado de desenvolvimento político, alguém que chegou a se dar uma orientação

para agir, de maneira autônoma, na aplicação das linhas políticas de

sua organização e que é capaz de transmitir à base. Além disso, o quadro executa de maneira consciente e disciplinada todas as tarefas,

ele se consagra a aplicação de todos os princípios revolucionários e

ele se dispõe a colocar a vida em perigo pela causa: a transformação.

(MST, citado por BLEIL, 2009, p.327)

Ao invés de falar em militantes mais ou menos engajados, adota-se nesta

pesquisa a ideia de que o MST é formado de integrantes que compõem a “base” do

movimento e daqueles que são “militantes”. Os líderes e dirigentes são incluídos entre

os militantes, pois, embora ocupem um posto mais elevado na hierarquia do movimento,

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eles também são movidos pelos mesmos ideais de transformação social e não deixam

também de ser militantes.

Os integrantes que compõem a base do MST podem se transformar em

militantes a partir da participação nas atividades do movimento. Geralmente a

participação começa com o desempenho de alguma tarefa no acampamento e pode se

transformar em ação política fora dos limites deste. Segundo Narita (2000), existem

aqueles integrantes que começam a participar por interesses próprios, seja porque a

participação pode ser um critério para conseguir a terra seja pelos supostos benefícios

que o militante teria, como mais poder ou status dentro do movimento; mas mesmo que

alguém comece a participar movido por “interesses próprios”, o ato de participar é em si

formativo e transforma os sujeitos, que podem vir a aderir aos ideias do MST e a se

tornar um de seus militantes.

Há também aqueles que ingressam no movimento já como militantes, como é o

caso de muitos jovens. Estes, não necessariamente vêm do campo, e se vinculam ao

movimento pelo desejo de lutar por uma sociedade mais justa, e também, como diz

Caldart (citada por LEITE, 2008) porque “(…) estão em busca de um sentido para sua

vida, um espaço social que lhes tire a angústia da desorientação e da falta de

pressentimentos do futuro” (p.130).

A ação política, ao contrário das atividades cotidianas de um acampamento ou

assentamento, é a tarefa preferida pelos militantes, que encontram nela a possibilidade

de realização e reconhecimento pessoal no coletivo. Ela traz para o militante a sensação

de ser mais potente, aumenta sua autoestima e bem-estar, além de proporcionar mais

poder ou status dentro do movimento e a possibilidade de o sujeito se deslocar e ocupar

outros espaços sociais. Em consequência disto, a militância pode ser vivenciada muito

mais como “uma afirmação de si no espaço coletivo” do que como um ato de sacrifício

pessoal em nome de todos. (NARITA, 2000)

A adesão aos ideais do MST é o primeiro critério para designar quem é ou não

militante do MST. Esta adesão implica não somente lutar pela terra, mas também pela

reforma agrária e por uma sociedade mais justa e fraterna. A não adesão à totalidade

destes ideais leva a diferentes sentimentos de pertença ao MST. Assim, é comum entre

aqueles que compõem a base do movimento referir-se aos militantes e dirigentes do

movimento como “eles do MST” ou afirmar que saiu do MST quando deixou de ser

militante, mesmo que continue vivendo e trabalhando em um de seus assentamentos.

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São “eles do MST”, os militantes, os encarregados de transmitir os ideais do

movimento e de mobilizar a base. Eles “são personagens estratégicos”, fundamentais

para a consecução do projeto político do MST (LEITE, 2008). Quando o MST estava se

constituindo a nível nacional, coube a alguns militantes do sul do país a tarefa de se

deslocar para o Nordeste com o objetivo de formar outros militantes e assim também

nacionalizar e integrar lutas isoladas, como refere Lerrer (2008).

Estes primeiros militantes do Sul que partiram rumo ao Nordestes, na década de

1980, tinham em comum a pouca idade, a origem camponesa (filhos de pequenos

proprietários rurais), formação educacional média, alguma militância na Igreja Católica

(CEBs, Pastoral da Juventude), e serviram de modelo para aqueles que depois deles

vieram a exercer a mesma tarefa. Lerrer (2008) chamou a geração destes militantes de

“militância por devoção” e destaca que esta geração ajudou a construir o habitus

militante do MST. Todos os entrevistados por ela tornaram-se dirigentes importantes no

movimento e exemplos para aqueles que vieram depois deles a militar no movimento.

Este habitus militante do MST, este “estilo” de militar do MST, segundo Lerrer

(2008), pressupõe “um engajamento total”, colocar a vida e os projetos pessoais a

serviço de uma missão e de projetos coletivos. A influência dos valores católicos do

missionarismo e da devoção ao habitus militante são marcantes. Para Chaves (2000),

É como se, levado às últimas consequências o seu propósito de

„transformar a sociedade‟, o MST como Organização recobrisse não uma esfera da vida, mas a vida em várias de suas esferas, permitindo

aos sujeitos que nele se integram a dedicação completa que supõe o

conceito de vocação – o que equivale a dizer que a „luta‟ torna-se um sentido de vida. (p.52)

A dedicação ao movimento é uma exigência que se impõe cotidianamente aos

militantes do MST. Sua dedicação total à luta distancia-se da ideia de “livre serviço”

proposta por Ion, Franguiadakis e Viot (2005) e se aproxima da imagem clássica do

militante totalmente devotado a uma causa. A devoção à causa da reforma agrária e da

transformação social implica sacrifício pessoal, e sua luta é entendida como de caráter

“sagrado”. Os projetos pessoais passam para segundo plano ou são articulados aos

projetos coletivos.

O militante é quem adere aos ideais de reforma agrária e transformação social do

MST, adesão que implica dedicação ao movimento. Juntamente com a adesão aos ideais

e a dedicação ao MST, o desempenho de alguma tarefa e a participação nos cursos do

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movimento vêm compor este quadro que caracteriza o militante do MST. Segundo

Lerrer (2008), são militantes

(…) aqueles que ocupam um cargo ou uma função específica na

hierarquia do MST e dentro de seus setores e que, para tanto, passaram por vários cursos de formação onde foram construindo laços

de sociabilidade e incorporando não só os discursos, as bandeiras de

luta, como o habitus militante da organização.” ( p.178)

No MST, o militante é, por definição, alguém que está em constante formação,

em cursos e congressos do movimento, em encontros, manifestações, ocupações, etc.

Receber o convite de uma liderança para fazer um dos cursos do MST é visto como um

sinal de reconhecimento, ascensão, prêmio, e os cursos são para o MST também uma

ocasião para que novos militantes sejam revelados (LERRER, 2008).

Segundo os próprios militantes entrevistados por Tarini (2007), as características

que identificam um militante do MST são:

O sentimento de pertença; a convicção para assumir a tarefa que o Movimento determinar, a defesa do Movimento; capacidade de

intervenção na realidade; desejo de uma sociedade diferente da

capitalista; entendimento dos princípios do Movimento como um todo. (p.138)

A definição que os próprios militantes dão de si mesmos começa pelo

“sentimento de pertença”. Fazer parte deste grupo implica estar disponível para

desempenhar as tarefas atribuídas e pronto para defendê-lo quando necessário. Implica

adesão a seus ideais, o “desejo de uma sociedade diferente da capitalista” e estudo para

“entender o movimento como um todo”. Esta definição que eles dão de si mesmos vai

no mesmo sentido das descritas acima: adesão aos ideais, desempenho de alguma tarefa,

estar em constante formação e participar dos cursos do movimento.

Para finalizar esta caracterização do que é ser militante do MST, é importante

acrescentar que isto é também uma escolha: uma escolha, como diz Lerrer (2008), de

como viver a juventude, já que é uma escolha geralmente feita nesta fase da vida:

A militância é uma escolha de como viver a juventude e decorre no

período que geralmente transcorre entre os 18 e os 27 anos. Neste período, os jovens geralmente estão em busca de seu lugar no mundo

o que implica também escolhas matrimoniais. Já não “cabem” na casa

dos pais e possuem um leque de possibilidades abertas, que estão de

acordo com a estrutura e origem familiar, mas também são

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determinadas por escolhas e atitudes individualmente tomadas neste

contexto familiar, cultural e social. (p.128)

Escolher, como diz Mijolla-Mellor (2009), implica o reconhecimento do próprio

desejo e o investimento em um caminho que não se sabe ao certo aonde levará. Escolher

militar no MST, viver a juventude engajada em um projeto de sociedade em tudo

contraditório ao que vivemos atualmente é uma aposta no desejo. Quem faz esta aposta

corre riscos e aceita viver na contradição entre a sociedade na qual vivemos e a

sociedade sonhada.

2.3- Militância e psicanálise

A militância, pensada a partir da Psicanálise, é ainda um tema a ser explorado.

Encontramos na pesquisa de Arantes (1999) Pacto-revelado: psicanálise e

clandestinidade política e no livro de Muldworf (2000), Figures de la croyance:

amour, foi religieuse, engagement militant, um ponto de partida para nossas reflexões

sobre a militância no MST e seus dilemas.

Maria Auxiliadora Arantes, psicanalista e militante política nos anos de ditadura

no Brasil, viveu onze anos na clandestinidade e colheu, para sua dissertação de

mestrado, depoimentos daqueles que, como ela, viveram dez ou mais anos de

clandestinidade política no Brasil, no período compreendido entre 1964 e 1979. Foram

quatro depoimentos de militantes que fizeram parte da Ação Popular67

e viveram a

experiência de integração na produção68

. A questão proposta pela autora a todos os

entrevistados foi que falassem sobre sua experiência de clandestinidade. A partir destes

depoimentos construiu uma “interpretação possível” da clandestinidade política.

Nesse período recente da história brasileira todas as organizações políticas foram

proibidas e seus militantes perseguidos, torturados e mortos. Muitos foram os

desaparecidos, os exilados e os que abandonaram a luta. Muitos também foram os que

“escolheram” ficar no Brasil, combatendo a ditadura no seu interior, e se tornaram

clandestinos em seu próprio país. Para estes últimos, a liberdade de ir e vir e de

67 “ A Ação Popular nasceu em 1961/62. Seus fundadores eram militantes da Ação Católica Brasileira,

principalmente da Juventude Universitária Católica, a JUC”. (ARANTES,1999, p.21) 68 A ideia que sustenta esta proposta é a de que os militantes de origem pequeno-burguesa deveriam viver

com e como os camponeses e operários, transformando sua organização pequeno-burguesa.

(ARANTES,1999)

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conviver em seu meio social foi substituída pela possibilidade de continuar defendendo

e vivendo de acordo com suas ideias. (ARANTES, 1999)

Para Arantes (1999), tornar-se clandestino no próprio país foi mais do que uma

alternativa de sobrevivência para aqueles militantes que tiveram suas organizações

postas na ilegalidade e queriam continuar lutando contra a ditadura: foi uma escolha,

embora não totalmente livre, pois foi realizada em meio a uma catástrofe política. Não

foi uma decisão simples, pois implicou na escolha de um destino - destino que trouxe

consigo a necessidade de assumir outra identidade, outro nome, um disfarce, como

condição para preservar a vida.

O que constitui do ponto de vista psíquico, a escolha, é o investimento que será feito sobre ela. O que caracteriza a escolha é a condição de

sujeito de sua escolha, mesmo que haja a lucidez para reconhecê-la

relativa e limitada, é a capacidade de interpretar a situação que é dada e a capacidade de recorrer a reservas psíquicas para dar conta da

situação de clandestinidade. (ARANTES, 1999, p.69)

Uma vez realizada a escolha, o que leva o sujeito a manter-se nela por um longo

tempo é a existência de um prazer necessário ou suficiente69

ou de ambos. O prazer

necessário é aquele em que pelo menos as condições mínimas de vivência do eu estão

presentes; já o prazer suficiente depende do necessário e está diretamente relacionado à

escolha; é o prazer possibilitado pelos investimentos libidinais. Na clandestinidade, de

acordo com Arantes (1999), as condições mínimas para a autoconservação e o

funcionamento psíquico estavam presentes, o que inclui a presença do outro,

fundamental enquanto ponto de apoio e suporte de investimento.

O prazer possível (suficiente) que está ao alcance do militante é o do

investimento nos ideais revolucionários, o de continuar lutando e defendendo suas

ideias, o da vida de riscos e desafios cotidianos. Tudo isto constitui um “a mais” de

prazer (para além do prazer necessário) que tornou possível a vida na clandestinidade.

O prazer máximo seria a derrota do inimigo, provavelmente também o

aniquilamento. Este prazer máximo é substituído pelo prazer possível,

que é o prazer de aniquilar o inimigo internamente e também externamente, através do disfarce, do escondido, da surpresa do

ataque. O desejo de aniquilamento do inimigo é exercido através de

uma formação substitutiva que seria a substituição da satisfação pretendida, da resolutividade externa do conflito, por uma satisfação

possível, por um prazer suficiente. O prazer suficiente pode então ser

69 As noções de prazer necessário e prazer suficiente utilizadas por Arantes (1999) são de Piera Aulagnier.

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compreendido como um ersatz de prazer, onde o prazer com gosto de

realidade e a realidade com gosto de prazer se entrelaçam em uma

forma de satisfação possível e passível de investimentos intensos e continuados. Tão intensos e tão continuados, que exigiram de seus

protagonistas o sumo de suas energias psíquicas. Exigiram meses, dias

e muitos anos de investimento. (ARANTES, 1999, p.141)

Quanto mais desafiadora a escolha, maior deverá ser o investimento psíquico

sobre ela. O clandestino só se mantinha na situação de clandestinidade - correndo risco

de vida e vivendo uma vida de disfarce - à custa de um intenso investimento afetivo.

O recurso ao narcisismo é apresentado por Arantes (1999) como responsável

pela manutenção de uma identidade (mesmo que camuflada) e como algo que

possibilitasse a resistência em situações-limite. Ela compara o clandestino e seu refluxo

libidinal sobre si mesmo a um cacto que armazena dentro de si a água que necessita para

viver em solo árido, metáfora que possibilita pensar o retorno da libido sobre si, como

uma reserva de energia que “alimentaria” o clandestino quando ele mais precisasse.

O narcisismo, entendido como o refluxo libidinal sobre si mesmo, caminha junto

com a idealização. A idealização, segundo Rosolato citado por Arantes (1999), pode

recair sobre o ego, “sobre o objeto ou sobre a finalidade pulsional, que é a satisfação

esperada.”.(p.157) No primeiro caso, toma a forma de eu ideal e sua falência estaria na

essência da ferida narcísica; no segundo, o objeto que é idealizado; finalmente, no

terceiro, há duas vias de satisfação narcísica: o êxtase e a exaltação. O êxtase é um

sentimento de plenitude, de afastamento do mundo exterior, que é utilizado com

maestria por correntes religiosas e pode ser experienciado na militância política radical.

A exaltação “constitui o aspecto projetivo do narcisismo, e, “(...) contrariamente ao

refluxo libidinal, há um transbordamento, uma invasão do objeto e do mundo”.

(ARANTES, 1999, p.158)

Após muitos anos na clandestinidade, o que inicialmente era motivo de orgulho

pessoal torna-se uma ferida narcísica, fazendo emergir o sentimento de que foi

escolhido, e não de que escolheu: “O objeto de sua escolha passa a ser superinvestido a

tal ponto que maiores poderes que o próprio eu, passará a ter este objeto” (ARANTES,

1999, p.148). As certezas dão lugar às dúvidas e os militantes passam a se questionar:

− Vale a pena continuar clandestino, correndo tantos riscos de prisão

e de vida? − Não seria melhor sair logo do país? − Talvez fosse melhor abandonar a militância organizada e tentar viver na legalidade

possível. − Estou disposto a continuar na luta? Será vitoriosa? Quanto

tempo vai durar? (ARANTES, 1994, p.5).

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84

As respostas a estas questões os clandestinos encontravam nos ideais políticos

sustentados por suas organizações, pois a militância política não é apenas uma decisão

de caráter individual, ela pressupõe a adesão a um coletivo (ARANTES, 1994). É no

coletivo unido pelos ideais que o militante encontrava força para continuar lutando e

continuar em um estado de “espera”. É o desejo que coloca o sujeito em um lugar de

espera,“ a espera é a expressão limite da antecipação e da tentativa da apreensão do

objeto perdido” (ARANTES, 1999, p.154) que não pode jamais ser encontrado, mas que

move o sujeito e o faz suportar situações difíceis, pois acredita que o amanhã será

melhor.

Uma vez apresentada brevemente a pesquisa de Arantes (1999) sobre a

clandestinidade política no Brasil, passo em seguida a apresentar a pesquisa de

Muldworf (2000) sobre os militantes do Partido Comunista Francês (PCF), ele, como

Maria Auxiliadora Arantes, também psicanalista e militante.

Bernard Muldworf inicia seu livro Figures de la croyance: amour, foi religieuse,

engagement militant dizendo que quando era militante ia dormir tarde, por causa das

reuniões de trabalho e dos debates políticos, e que às vezes nem dormia, mas, apesar do

cansaço, estava “feliz e sereno”. Conforme o tempo foi passando, começou a se

questionar sobre suas crenças e as questões tornaram-se dolorosas. A reflexão iniciada

com este questionamento e o sofrimento que o acompanhou deram origem ao livro.

Muldworf (2000) escutou inúmeros militantes do Partido Comunista Francês

(PCF70

) em seu trabalho como psicanalista e nos debates políticos dos quais participou.

Da sua experiência pessoal e de tudo que ele escutou de outros militantes, conclui que a

militância implica um intenso investimento afetivo. É o investimento afetivo a força que

move a militância, e é a partir dela que o autor se questiona sobre a crença, sua natureza

e necessidade.

Para Muldworf (2000), o militantismo comunista, apesar de ter sua base racional

na obra de Marx e Engels, funciona como um tipo de credo (“as provas virão depois”),

uma história de amor, uma paixão:

Não é possível se lançar no projeto de “mudar o mundo”, ou de

“mudar a vida”, sem um grande fervor de esperança, mobilizando o

ser como um todo. Trata-se de um fervor afetivo que vem das

70 O PCF foi fundado em 1920 como uma Seção da Internacional Comunista, seguia o modelo do partido

bolchevique russo. Muldworf filiou-se ao PCF em 1945.

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profundezes do ser, e o qual somente a palavra crença pode

representar. Não se trata de desqualificar a crença, de qualquer modo,

ela está lá. Trata-se de compreendê-la, em suas necessidades psicológicas, seus mecanismos de ação, e as diferentes figuras que a

expressam. (MULDWORF, 2000, p.26)71

Assim como Arantes (1994, 1999), Muldworf (2000) encontra no narcisismo um

caminho para a compreensão do militantismo comunista. Segundo o autor, “a

fragilidade narcísica produz militantes ávidos por reconhecimento pessoal e estes

encontram na atividade militante a revitalização narcísica que é para eles uma

necessidade vital” (p.99). O sistema de pensamento que fundamenta as ações do

militante e o próprio agir lhe dão o sentimento de que estão fazendo história, de que

podem mudar o curso dos acontecimentos e de que fazem parte de algo que é maior que

eles. Tal sentimento possibilita ao militante uma revitalização narcísica, é altamente

mobilizador, dá força para enfrentar situações adversas e até mesmo colocar a vida em

risco.

O militante acredita que está fazendo o que é certo, que age em nome de uma

verdade, acredita que porta a “boa palavra”. Sua ação é ao mesmo tempo individual e

coletiva: individual por envolver o sujeito e sua história pessoal; e coletiva por envolver

uma instituição, um partido, um sindicato, uma associação. Dentro dos grupos dos quais

o militante faz parte, além do grupo familiar e socioeconômico-cultural, o coletivo no

qual ele milita ocupa um importante lugar em sua vida e lhe oferece uma visão de

mundo, uma ética, regras de como viver. Quando mais ambicioso é o projeto político

defendido pelo coletivo, maior será o lugar que a militância ocupará na vida do

militante, podendo até mesmo englobar todos os aspectos de sua vida. (MULDWORF,

2000)

A estrutura piramidal e hierárquica dos partidos72

impõe verdades e certezas aos

militantes e age como uma espécie de supereu (MULDWORF, 2000). Impõem modelos

a serem seguidos, cobram, controlam, exigem determinados padrões éticos e morais, e

ao mesmo tempo oferecem ideais aos quais os sujeitos se enlaçam e que possibilitam

uma satisfação narcísica. É o ideal, segundo Muldworf, “a coluna vertebral da

identidade militante”.

71 Tradução nossa, desta e todas citações de Muldworf (2000). 72 Muldworf (2000) toma como modelo o Partido Comunista Francês, da época em que ele era um de seus

militantes.

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O ideal do eu, é a estrutura que acolhe as manifestações da idealidade.

Seu papel é duplo: de uma parte, ele participa do sistema de regulação

pulsional, de outra parte, ele proporciona ao indivíduo uma imagem de si que lhe dá satisfação. E é em relação a esta imagem de si que o

ideal do eu mede a estima a qual o indivíduo tem direito, em função

da eficácia de sua atividade militante, de certa forma, é possível dizer que o militante se encontra na situação do apaixonado, que se

beneficia da imagem positiva da pessoa amada como se partilhasse

uma parte de seu charme. (MULDWORF, 2000, p.140)

A idealização é um sentimento constitutivo das relações amorosas, nelas

incluídas as relações fraternas e de amizade. Para Muldworf (2000), devemos ser

indulgentes com este sentimento, pois “o amor deixa cego” e não é condizente com a

paixão a representação do objeto amado com suas falhas e defeitos. O militantismo é,

para o autor, uma paixão no estrito senso e na amplitude do termo, incluído aí o sentido

da paixão no cristianismo.

Na “entrega sublimada a uma ideia abstrata,” tal como no estado de paixão,

Falham por inteiro as funções que recaem sobre o ideal do eu. Cala-se a crítica que é exercida por esta instância; tudo o que o objeto faz e

pede é justo e irrepreensível. A consciência moral não se aplica a nada

do que acontece em favor do objeto; na cegueira do amor, o indivíduo

se converte em criminoso sem remorsos.” (FREUD, 1921, p.107)

A “entrega sublimada a uma ideia abstrata” de que fala Freud (1921) pode ser

entendida como a crença a que se refere Muldworf (2000). A crença é uma espécie de

paixão, em que o apaixonado tem o sentimento de compartilhar, de certa forma, a

perfeição atribuída ao objeto. Se perdemos o objeto amado ou este nos rejeita, se a

crença é abalada, a ilusão se desfaz e a consequência é o sentimento de fracasso e

sofrimento. É este o sentimento que Muldworf (2000) identificou em si e em outros

militantes, quando, mais cedo ou mais tarde, começaram a questionar suas crenças no

PCF.

O posicionamento hostil do PCF em relação ao movimento dos estudantes no

Maio de 68 e sua não condenação à ocupação soviética na Primavera de Praga foram

fatos apontados por Muldworf (2000) que levaram muitos militantes ao questionamento

e descrença no partido. Se, quando de sua fundação, o PCF foi beneficiado por uma

imagem positiva da União Soviética, seu posicionamento em relação aos

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acontecimentos de 1968 abalou esta imagem positiva junto aos militantes, levou muitos

ao questionamento e ao abandono do partido, vivenciando uma espécie de luto73

.

O processo de luto implica que o objeto perdido − no caso, a crença no partido e

nos ideais que ele sustenta − seja progressivamente desinvestido, o que demanda

energia e trabalho psíquico. Muldworf (2000) destaca que o luto do militante que

abandona o partido não dizia respeito somente à crença perdida, mas era também à

perda dos benefícios narcísicos que acompanhavam a adesão ao partido, e que tais

perdas abalaram a própria imagem que militante tinha de si, uma imagem construída em

articulação com ideais sustentados pelo partido. Sobre um suposto narcisismo ou

fragilidade narcísica do militante, Muldworf (2000) ainda diz:

De uma forma geral, „a política‟, o engajamento em uma atividade

política, com um plano de carreira, não é feito de Santos tomados de um brusco acesso de amor universal por seus próximos. Quaisquer

que sejam as situações, o „metier‟ do homem político procede de uma

aspiração narcísica, de uma dinâmica ilimitada, porque este „metier‟ é mais propício a este gênero de satisfação. Ainda mais que o show-biz,

e bem entendido, mais que as atividades literárias e científicas. Não se

pode compreender de outra forma a veia narcísica que atualiza as

rivalidades, os golpes baixos, as manobras diversas e variadas que são frutos de uma estratégia de tomada de poder. (p.99)

Neste ponto, convém destacar as diferentes utilizações que Muldworf (2000) e

Arantes (1994, 1999) fazem do narcisismo. Ambos estariam de acordo com a ideia de

que a adesão a ideais possibilita certa satisfação narcísica àqueles que aderem a eles

(ideia que já está em Freud), no entanto seguem diferentes caminhos no enfoque que

dão ao narcisismo.

Arantes (1999) propõe a ideia do refluxo libidinal sobre si mesmo para dar conta

de explicar a resistência do militante clandestino em situações-limite.Para isto usa como

figura o cacto que armazena dentro de si a água de que necessita para viver em solo

árido: assim também seria o clandestino, que faria retornar a si mesmo a libido investida

nos ideais, no momento em que estes parecem cada vez mais distantes em meio à cruel

realidade da clandestinidade. Esta flexibilidade de deslocamento da libido, de ir de um

objeto a outro, e a concepção de que o eu é uma espécie de reservatório de libido são

73 Outra possibilidade, diante da crença perdida, é a melancolia. Na melancolia o sujeito desvaloriza-se e

acusa a si mesmo, podendo chegar até o extremo do suicídio. O acusador, neste estado, é próprio supereu

do sujeito que julga o eu de forma “ negativa e mortífera”, voltando contra ele toda a agressividade cujo

destinatário deveria ser o partido. (MULDWORF, 2000)

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apresentadas por Freud (1914) em Introdução ao narcisismo. A figura utilizada por

Freud neste texto para ilustrar esta ideia não é a do cacto, mas a da ameba e de seus

pseudópodos que podem ser recolhidos ou projetados para fora, tal como a libido.

Muldworf (2000) é bem incisivo em atribuir certo caráter narcísico ao militante

que busca poder e fazer carreira no partido. Em oposição a este tipo de engajamento,

ele propõe a ideia de um engajamento místico ou religioso, daqueles que vivem sua

“paixão na dor” (como Cristo). Narra sua adesão ao PCF, dizendo que ele era: pobre,

estrangeiro e judeu e que a adesão ao partido o ajudou a assumir-se como judeu (mesmo

que ateu), deu-lhe direito à existência e à palavra, “palavra de revolta investida em um

projeto revolucionário” (p.124). Destaca que, tal como ele, muitos outros militantes

encontraram em sua adesão ao PCF um “sentido para sua vida” e a possibilidade de

“melhor suportar suas misérias materiais e morais”(p.140). Nos dois casos, o sujeito

encontraria na militância a possibilidade de uma revitalização narcísica.

As análises de Muldworf (2000) têm forte conotação afetiva de alguém que foi

militante do PCF e viveu na própria carne todos os conflitos e contradições que enfrenta

um militante em seu cotidiano. Suas análises também refletem uma tendência,

constatada por Péchu (2001) nas análises francesas, de atribuir ao sentimento de

desvalorização valor determinante para o engajamento militante. Tais análises propõem

que diante das frustrações sociais o sujeito encontraria na militância um caminho para

sua valorização.

Ao contrário de Muldworf (2000), Offerlé (2005) considera mecanicista a

divisão entre militantes que militam por uma causa e militantes que militam por

interesses pessoais. Para ele, é importante investigar como os interesses e a causa devem

ser conjugados para se poderem explicar as diferentes formas do militantismo. As

satisfações, retribuições e gratificações pessoais que o militante obtém com a militância

não devem ser negligenciadas nesta investigação.

No que se refere aos militantes do MST, as pesquisas de Narita (2000), Lerrer

(2008) e Rosa (2009) também abordam este sentimento de valorização de si − que

Muldworf (2000) chama de revitalização narcísica − , proporcionado pela militância no

movimento, mesmo que utilizem para isto diferentes denominações. Os autores citados

não contrapõem a valorização de si proporcionada pela militância a uma suposta

fragilidade ou caráter narcísico dos militantes, o que certamente não dá conta de

explicar a complexidade da adesão do militante a um partido, um movimento social

e/ou uma causa. A hipótese defendida nessa tese é a de que esta “necessidade” de

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revitalização narcísica se constitui a partir de situações sociais que produziriam o efeito

inverso de “desvitalização” narcísica − tais como as situações de humilhação social

abordadas no último capítulo −, e a militância representa uma forma de enfrentamento

desta situação e possibilidade de obter reconhecimento pessoal e social.

Rosa (2009) entrevistou todos os principais militantes que atuavam em

movimentos sociais da Zona da Mata Pernambucana, entre eles os do MST. Em sua

pesquisa ele desenvolve a hipótese de que “os movimentos se configuram em uma

alternativa de significação social (...), o pertencimento ao movimento em algo tão ou

mais importante que a aquisição da terra”(p.158). Ele observou que os militantes do

MST que deixaram este para fundar seus próprios movimentos (no caso, o MTRUB-

Movimentos de Trabalhadores Rurais e Urbanos do Brasil e do MTBST- Movimento

dos trabalhadores Brasileiros Sem-Terra) assim procederam por considerarem que não

obtinham o merecido reconhecimento pessoal no MST. No mesmo sentido que Rosa,

para Lerrer (2008):

a estima, a admiração e o prestígio, sobretudo, dentro do MST, onde

ocupam postos na direção do Movimento, constituem uma gratificação importante, uma retribuição nada negligenciável, e,

talvez, fundamental, que dá pleno sentido a esse devotamento

militante, a quem engajou sua vida na construção de um movimento social. Além disso, como sublinha Gaxie (1977), a ligação com uma

causa e a satisfação de defender suas ideias são mecanismos de

„remuneração simbólica‟ da atividade política. Elas promovem grande satisfação emocional e, em si mesmas, são mecanismos-chaves do

funcionamento das organizações de massa.(p. 127)

Lerrer (2008) destaca o aumento da “notoriedade individual e da rede de

relações” (p.126) que o sujeito obtém ao se tornar militante do MST, o que, juntamente

com a gratificação de estar defendendo uma causa, seria uma importante fonte de

gratificação para o militante. No mesmo sentido que Lerrer (2008), Narita (2000) diz:

“participando o sujeito sente-se mais inteligente, mais „viril‟, mais forte, „superior‟,

especial, com um valor a mais por estar lutando por uma causa „nobre‟, „superior‟”

(p.845).

Para concluir esta parte, é possível afirmar que os psicanalistas citados

encontraram no narcisismo (mesmo que o empreguem de formas diferentes) um

conceito importante para pensar a militância. Em se tratando dos militantes do MST,

Rosa (2009), Lerrer (2008) e Narita (2000) também observaram a valorização de si que

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o militante do MST obtém por ocupar um lugar de prestígio no movimento e por aderir

a ideais sociais; e mesmo que não empreguem o conceito de narcisismo, estão falando

de uma gratificação ou revitalização narcísica que a militância proporciona, questão que

será abordada no penúltimo capítulo.

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PARTE III: OS DILEMAS DO MILITANTE DO MST

PENSADOS A PARTIR DA PSICANÁLISE

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CAPITULO 1: SACRIFÍCIO, MAL-ESTAR E MILITÂNCIA

“Uma cultura que deixa insatisfeita a um tão grande número

de seus membros e os empurra a revolta não tem perspectivas

de se conservar de maneira duradoura, nem o merece”.

(FREUD, 1927)

Este capítulo tem como objetivo apresentar o contexto em que se constituem os

dilemas do militante do MST e também discutir a ideia de que o “militante é aquele que

se sacrifica por uma causa”. Neste sentido, propõe-se a questão: o que o militante do

MST sacrifica? Dois autores são utilizados para discutir a noção de sacrifício: Rosolato

(2004a , 2004b) paras discutir a noção de sacrifício de si (da razão, dos bens e da

própria vida) e Freud (1927 e 1930), para discutir a noção de sacrifício pulsional como

o preço que se paga para viver na cultura. O dilema militância x família e o risco de

morte que o militante enfrenta são pensados a partir das ideias dos autores citados. A

hipótese desenvolvida neste capítulo é a de que o militante, ao não aceitar o “a mais” de

sacrifício imposto para sua classe, acaba pagando um “ a mais” por sua condição de

militante; porém isto não significa trocar um “ a mais” de sacrifício por outro, pois os

novos sacrifícios são pagos com um lugar social dentro do movimento e com

possibilidade de uma revitalização narcísica dos sujeitos.

1.1- O sacrifício de si

No capítulo anterior foi apresentada a ideia de Muldworf (2000) de que o

militantismo é uma paixão na amplitude do termo, incluindo-se aí o sentido cristão de

viver a paixão na dor, como Cristo. No cristianismo, “a paixão de Cristo” é o nome

dado ao martírio de Cristo que precedeu sua crucificação, seu sacrifício para a redenção

dos pecadores em obediência à vontade de Deus, seu pai. O sacrifício do filho pelo pai

é o mito fundador do cristianismo e também do judaísmo e do islamismo. Nestes dois

últimos, o sacrifício é do filho de Abrão, ordenado por Deus, sacrifício que não cumpre,

pois uma vez que Abraão aceita a ordem de Deus, ele é dispensado de tal ato; no lugar

do sacrifício humano instaura-se a circuncisão como memória de uma ameaça e sinal de

fé. No cristianismo a ameaça do sacrifício sangrento se cumpre, só que Cristo (filho,

homem e Deus) tem sua morte abolida com a ressurreição. Segundo Rosolato (2004a):

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O mito do sacrifício é fundado durante o monoteísmo. Sem ele e sem

suas implicações, não se pode conceber as três religiões com suas

Revelações e Aliança em suas origens.(...) Se trata sempre da

execução do filho pelo pai; no mito fundador, que pode ser descrito como intenção ou como realização, virtual ou real, em todo caso, com

a aceitação absoluta do sacrifício tanto pelo pai como pelo filho. A

partir desta cena exemplar nasce o conjunto de crenças, a aliança dos fieis com Deus e entre eles. (ROSOLATO, 2004a, p.6)

74

A figura do sacrifício não está presente apenas nas religiões, ela se faz presente

também na política, com algumas modificações. No lugar da divindade temos o líder e

os ideais sociais. Na falta da divindade recai sobre o líder todo o peso da idealização.

Este peso pode ser compartilhado pela associação do líder a uma doutrina superior (por

exemplo, o marxismo). O poder do líder aumenta à medida que ele representa os ideais

encarnados. Na política, o sacrifício não é o do filho pelo pai, mas do próprio sujeito,

da sua razão, dos seus bens, e até mesmo da sua própria vida, e pode assumir a força de

uma virtude sagrada. Na política, como na religião, a ideia do sacrifício de si pelo

benefício coletivo continua sendo “uma eleição vital”. O mito do sacrifício tira sua força

da lei segundo a qual a comunidade só pode realizar seu projeto com sacrifícios

compartilhados e com proibições aceitas em relação ao desejo. (ROSOLATO, 2004a,

2004b)

A ideia de sacrifício de si na política, tal como apresentada por Rosolato (2004a,

2004b), vem acompanhada da ideia de que o sujeito consente ou até mesmo se oferece

em sacrifício em nome de uma crença, de uma causa. Esta ideia parece fazer sentido na

atualidade somente em casos como os de extremistas islâmicos que de fato sacrificam

sua vida em nome de uma crença. Não condiz com a ideia de militância “livre serviço”,

mas certamente tem ressonâncias quando falamos do militante que atua de “corpo e

alma” para defender uma causa, tal como os militantes do MST. Vejamos então como

aparece a questão do sacrifício na vida do militante do MST.

Algumas pesquisas sobre o MST, especificamente as de Bleil (2009), Lerrer

(2008) e Chaves (2000), referem-se à dimensão de sacrifício que acompanha a

militância no MST. Segundo Bleil (2009), os militantes do MST, quanto mais creem

nos ideais do movimento, mais estão dispostos a sacrificar a vida em nome de ideais. A

ideia de que é sacrifício e não dedicação é da autora e não dos próprios militantes,

74 Tradução nossa.

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colocando uma questão interessante: não é o que se faz, mas o sentido atribuído à ação

pelo sujeito implicado nela que irá dar, ou não, o tom de sacrifício às suas ações. Outra

autora, Lerrer (2008), também chama de “sacrifício” a dedicação e o empenho dos

militantes em cumprir as tarefas do MST. Finalmente, Chaves (2000) lembra a herança

religiosa que é apropriada pelo MST e transformada em ação política, como “o sentido

da militância como serviço, a valorização do „espírito de sacrifício‟(p.16)”. Os

militantes participantes desta pesquisa, por sua vez, também disseram que o militante

tem que ter “espírito de sacrifício”; mas pergunta-se: o que significa ter “espírito de

sacrifício”? O que é sacrificado pelo militante do MST? A razão? Os bens? A vida?

Certamente as autoras das pesquisas citadas não estão falando do sacrifício da

razão, embora este tipo de sacrifício seja um risco em qualquer forma de paixão,

inclusive quando falamos da paixão por uma causa. Sacrifício dos bens? O militante do

MST não tem muitos bens a sacrificar, mas sua “adesão total” à militância o impede de

empregar seu tempo e energia em outras atividades ou em projetos pessoais. Ricardo,

por exemplo, quando pergunto sobre seus projetos para o futuro, diz: “Não dá para viver

sem dinheiro, quero continuar na luta, mas também quero casar e ter filhos”. Já Paulo,

diante da mesma questão, diz: “Estão para demarcar meu lote, mas não sei se terei

tempo de trabalhar lá” - diferentemente de Jeferson, que diz: “Quero contribuir com a

luta, mas não quero estudar em escola do movimento, quero pagar minha faculdade e

morar sozinho”.

A adesão ao MST como militante implica a articulação dos projetos pessoais

com os coletivos. Se em alguns casos eles podem ser facilmente articulados, em outros

esta articulação pode ser fonte de conflitos e ser percebida como sacrifício. Os desejos

de estudar, conhecer outras pessoas e lugares encontram sintonia com o que é esperado

de um militante do MST que deve estar sempre estudando e se desloca constantemente

de um lugar a outro. Já o desejo de constituir uma família e os laços com a família

podem entrar em conflito com a militância.

Com relação aos laços familiares, muitas vezes ficam estremecidos

quando o militante tem que se distanciar por dias ou meses, cortando as relações e trazendo culpa a quem se desliga. Essa necessidade

individual de permanecer próximo à família bate de frente com a

necessidade coletiva de organizar a luta. Também há a dificuldade de

conciliar a conjuntura política com os aspectos coletivos e as necessidades individuais. (SEMINÁRIO SUBJETIVIDADE E A

QUESTÃO DA TERRA, 2004, p.21)

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Bleil (2009), em sua pesquisa sobre o MST, deparou-se com este conflito entre

família e militância. Segundo a autora, o engajamento militante no MST é

frequentemente acompanhado de conflitos familiares, de modo que muitos militantes do

movimento se divorciaram ou vivem sozinhos. Os conflitos familiares estão

relacionados à dificuldade do militante de se dividir entre a vida pública e a vida

privada e ao sentimento que a família tem de que o membro militante dá mais atenção

ao movimento do que às necessidades do grupo familiar.

Silva (2002) também se deparou com os mesmos dilemas encontrados por Beil

(2009) em sua pesquisa sobre o MST: a dificuldade de conciliar projetos pessoais

(incluída aqui família) e a vida de militante. Um de seus entrevistados diz: “Hoje eu

estou me dedicando ao trabalho como militante, mas eu também quero ter o meu lote e

ser um dia assentado para poder casar. (...) Às vezes a gente cansa desta vida... (uma

pausa longa) mas não podemos desanimar, não podemos deixar de militar.” (p.186-

187).

Entre os militantes que participaram desta pesquisa, o dilema militância x

família também se fez presente, de diferentes formas. Primeiramente, convém destacar

que a militância também é transmitida, passa de geração a geração. Muitos militantes

têm alguém na família também militante do MST, pais e/ou irmãos. Ana, por exemplo,

relata que o bisavô já era chamado de comunista, que o avô e o pai sempre foram

envolvidos com movimentos sociais e que suas irmãs mais velhas são militantes do

MST. Outra situação bem diferente é a de Cláudio e Márcio, que dizem que seus pais

são contra o MST e que, mesmo tendo “entrado” para o movimento em algum

momento, seus pais não se reconhecem como participantes do MST. O dilema

militância x família aparece nos relatos sobre a falta que sentem da família e sobre a

dificuldade em estar longe, principalmente quando alguém está doente na família.

Cláudio, por exemplo, que se casou muito cedo e está separado, diz sentir a distância da

filha. Parece que o distanciamento da família é a sina do militante do MST. Casar-se

com alguém que também seja militante do MST é a solução imaginada por Paulo para

conciliar militância e família, já que, segundo ele, existem muitos militantes que quando

se casam deixam a militância.

Há dois aspectos que devem ser considerados nesta questão. O primeiro é um

dilema/escolha comum a todos (que independe da adesão a um movimento social), ou

seja, a escolha entre o investimento narcísico ou o amor objetal, entre a liberdade ou a

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estabilidade e segurança/pertinência, que permeiam e são avaliados e reavaliados por

todos na contabilização das escolhas. Neste, como em todos, os militantes oscilam,

refletem, aspiram a uma situação sem conflito, de pura harmonia e satisfação. O

segundo aspecto é mais específico e nos remete à historia do movimento MST no

Brasil, à sua luta e às consequências de estar em oposição a um grupo dominante e mais

forte, em que não se pode dispersar-se sem perder posições. O fato de estar em uma

guerra social não declarada, não explicitada e sem um final no horizonte, pode criar

concepções imaginárias como a de que o distanciamento da família é a sina do militante

do MST. Nesta pesquisa se considera que a forma aguda com que estas questões

aparecem ao militante do MST não é sina, mas sim, reflexo da situação social precária

em que ele se encontra e do empenho necessário à transformação social que almeja para

si e seus filhos. A herança que ele pode oferecer fica clara quando a transmissão

familiar é de uma posição de inconformismo com a submissão e de luta permanente por

um lugar digno na sociedade.

Um exemplo extremo deste conflito entre militância e família encontramos na

notícia abaixo:

Uma das mais combatentes e aguerridas dirigentes do MST, integrante

da direção estadual de Pernambuco e coordenadora da regional Mata

Norte, Luiza Ferreira, 52 anos, mãe de cinco filhos e avó de sete netos, foi assassinada em 11/3/2010 quando realizava uma assembleia

no assentamento Margarida Alves, no Município de Aliança, onde era

assentada.

O assassino foi seu ex-companheiro, conhecido como Pelé. Depois de cometer o crime, ele se suicidou no mesmo local. O crime, chamado

de “passional”, ocorreu depois que ele impôs à militante que optasse

entre a tarefa política da direção do MST ou o casamento. No início deste ano, ela foi convocada pelas bases e pelos militantes da região

para que assumisse a coordenação da regional do MST. Ela escolheu a

tarefa política, o que infelizmente custou-lhe a vida. Companheira Luíza entrou no MST como acampada, na ocupação do

Engenho Bonito, em Condado, em abril de 1996. O acampamento

Bonito vai completar 14 anos no próximo 21 de abril sem que até hoje

o Incra tenha conseguido a desapropriação do Engenho. Luíza, que foi durante seis anos membro da direção estadual do MST,

nos últimos 4 anos vivia no assentamento – atuando como presidente

da cooperativa, cuidando do marido, dos filhos e dos netos. Em fevereiro deste ano, ela perdeu um filho, Dinho, que também era

militante do MST.

Durante a sua vida de lutadora do povo, a companheira enfrentou os

dois grupos de usineiros mais violentos do estado: o grupo Pessoa de Melo, da Usina Aliança, e o Grupo João Santos. Depois de muitas

tentativas de assassinato e ameaças constantes dos usineiros, acabou

sendo vítima da arrogância machista.

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Lutemos para que Luíza, que durante a sua vida foi uma verdadeira

guerreira, continue inspirando e motivando a nova geração de

militantes com sua garra, energia e paixão pela Luta. (MST, 2010a)

Esta notícia não se resume ao relato do conflito existente entre família e

militância e muitas outras questões certamente estariam em jogo, mas o que se faz

importante destacar é o desfecho da história desta militante: a morte. Ela, que enfrentou

poderosos, foi ameaçada de morte, vítima de tentativas de assassinato e também mãe de

um militante assassinado, acabou sendo assassinada pelo ex-companheiro, o que é uma

situação paradoxal. Não seria um paradoxo se ela tivesse sido assassinada a mando de

um dos poderosos que ela enfrentou.

Somente no ano de 2010, 125 pessoas integrantes de movimentos sociais no

campo foram ameaçadas de morte75

(CPT, 2011b). No período em que foi realizado o

trabalho de campo na escola de agroecologia do MST, dois de seus militantes foram

assassinados no Estado do Paraná: Valmir Motta de Oliveira e Eli Dallemole. O

primeiro deles foi assassinado na fazenda da Syngenta, no município de Santa Tereza do

Oeste, em 21-10-2007. A fazenda da Syngenta realizava experimentos com sementes

transgênicas próximo ao Parque Nacional do Iguaçu, já havia sido multada pelo Ibama e

fora ocupada oito vezes pela Via Campesina, até ser finalmente desapropriada pelo

Governo do Estado e transformada, em 05-12-2009, no Centro de Ensino e Pesquisa

em Agroecologia Valmir Motta de Oliveira, em homenagem ao militante assassinado

(STÉDILE, 2008; MST, 2010b; 2010c). Já Eli Dallemole foi assassinado dentro de sua

casa, diante de sua família, por dois homens encapuzados, no assentamento em que

morava com a família. Em sua homenagem, seu nome foi dado a um assentamento

localizado em Lerroville, distrito de Londrina (MST, 2008). Eli morava na mesma

cidade em que moravam alguns estudantes da escola.

Assim, o sacrifício de si dos militantes do MST está também no risco de morte

que o militante assume para defender uma causa; mas ressaltamos uma diferença em

relação ao modo religioso indicado por Rosolato (2004a e 2004b): o militante não se

oferece como vítima sacrifical, apenas aceita o risco intrínseco à luta.

1.2- O sacrifício pulsional

75 Estes são os números registrados pela CPT, estima-se que ele sejam bem maiores.

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Outra abordagem do tema do sacrifício pode nos ajudar a avançar na questão: a

do sacrifício pulsional como o preço que se paga por viver na cultura, tal como

concebido por Freud (1927,1930). Vejamos o que sobre isto diz o autor antes de

votarmos à questão.

No texto O futuro de uma ilusão, Freud (1927) diz que é a existência da cultura

que torna possível a vida em comum, porém à custa de sacrifícios pulsionais dos seus

integrantes. É a cultura que distingue o ser humano dos outros animais. Ela é composta,

por um lado, pelo saber-fazer que tornou possível a humanidade dominá-la e tirar dela o

necessário para sua sobrevivência e, por outro, pelas leis e normas que regulam as

relações entre os homens e a distribuição dos bens. Estes dois aspectos da cultura são

interdependentes:

Em primeiro lugar, porque os vínculos recíprocos entre os seres

humanos são profundamente influenciados pela medida da satisfação

pulsional que os bens existentes tornam possíveis; e em segundo lugar, porque o ser humano individual pode relacionar-se com outro

como se ele fosse um bem, explorar sua força de trabalho ou tomá-lo

como objeto sexual; além disso, em terceiro lugar, porque todo indivíduo é virtualmente um inimigo da cultura, que, todavia, está

destinada a ser um interesse humano universal. (FREUD, 1927, p.6)

Os sacrifícios impostos pela cultura atingem todos os seus integrantes, daí a

natural hostilidade do homem em relação a ela. As normas da cultura servem, então, não

somente para regular a relação entre os homens e a distribuição de bens, mas também

para proteger a cultura contra a hostilidade humana. Se os sacrifícios são impostos a

todos, convém destacar que uns se sacrificam mais que os outros e o acesso aos

benefícios não é igual para todos: enquanto uns têm acesso a muito, outros, a muito

pouco. Não somente a natureza é dominada, homens também são dominados por outros

homens; mas se todos pagam o preço de viver na cultura, esse preço é mais alto para

aqueles que têm acesso a menos benefícios. Nesse contexto, convém distinguir entre as

privações que atingem a todos daquelas que atingem somente determinadas classes,

grupos ou indivíduos (FREUD, 1927).

Sobre as privações que atingem somente determinadas classes da sociedade,

Freud (1927) diz que estas são muito visíveis e conhecidas de todos. Os sujeitos que

compõem estas classes tendem a ser ainda mais hostis à cultura e a fazer de tudo para se

libertar deste “a mais” de privação. Quando esta libertação não é possível, o

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descontentamento pode gerar rebeliões ou a não interiorização e não aceitação das

normas que regulam a vida em comum.

Se a cultura não pode evitar que a satisfação de um certo número de

seus membros tenha por premissa a opressão de outros, talvez a maioria (e isto acontece com todas as culturas do presente), é

compreensível que os oprimidos desenvolvam uma intensa hostilidade

contra a cultura que eles tornam possível mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam em medida extremamente escassa. Por isto

não cabe esperar deles uma interiorização das proibições culturais; ao

contrário: não estão dispostos a reconhecê-las, tenderão a destruir a

cultura mesma e eventualmente a suprimir suas premissas. (FREUD, 1927, p.12)

Sobre as privações que atingem a todos, Freud (1927) diz que estas são as mais

antigas e que elas são os fundamentos que originaram a cultura. Estas privações

originárias implicam na repressão e coerção dos desejos pulsionais (incesto,

canibalismo e homicídio) que renascem com cada criança e têm que ser novamente

reprimidos.

Por outro lado, a cultura não pode ser só coerção, os bens construídos através do

trabalho dos homens devem lhes assegurar a sobrevivência e trazer-lhes alguma

retribuição. A cultura deve oferecer algo em troca das renúncias que impõe a todos, ela

deve funcionar como um pacto que inclui deveres e direitos. Este é o pensamento de

Pellegrino (1987) desenvolvido a partir de uma leitura de Freud. Vejamos o que ele diz:

A autêntica aceitação do interdito do incesto, de modo a torná-la o

nódulo crucial capaz de estruturar uma identificação com os ideais da cultura, só é possível na medida em que a criança seja amada e

respeitada como pessoa, na sua peculiaridade, pelo pai e, antes dele

pela mãe. É o amor materno que funda a possibilidade, para a criança, de vencer a angústia de separação, tornando-se um ser-outro com

respeito à mãe. O amor da mãe, já modelado pela cultura, prepara para

o advento do terceiro, do pai, cuja entrada em cena, através da

estrutura triádica, ajuda a criança a construir sua própria liberdade e autonomia. (p.198)

É o complexo de Édipo a “pedra angular, segundo Freud, da estrutura psíquica e

do processo civilizatório” (PELLEGRINO, 1987, p.200). O Édipo é uma forma de pacto

em que a criança renuncia às suas pulsões parricidas e incestuosas em troca de amor e

respeito, de um lugar na família e do necessário para assegurar sua sobrevivência e

constituir-se enquanto sujeito humano. Este pacto deverá ser reafirmado, na idade

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adulta, pelo estabelecimento de um novo pacto, o pacto social. Enquanto o primeiro

(pacto edípico) é estruturado ao redor das renúncias pulsionais, o segundo (pacto social)

é estruturado ao redor do trabalho; é pelo trabalho que o sujeito confirma suas

renúncias.

O trabalho é o elemento mediador fundamental, por cujo intermédio,

como adultos, nos inserimos no circuito e intercâmbio social, e nos

tornamos – de fato e de direito – sócios plenos da sociedade humana.

O pacto social sucede – e se articula – ao pacto social. Ele confirma – e amplia – a aliança com a Lei primordial. (PELLEGRINO, 1987,

p.200)

O trabalho é uma forma de inserção na comunidade, e sua “imposição

coercitiva” vem se somar à coerção das pulsões como fundamento da cultura. Os

sujeitos deslocam para o trabalho componentes agressivos e eróticos, e quando os

sujeitos podem escolher um trabalho de acordo com suas aptidões, esse trabalho pode

ser uma via de sublimação e satisfação (FREUD, 1927, 1930). Quando o trabalho é só

imposição e coerção e não assegura aos sujeitos o acesso a um lugar social e aos direitos

básicos, podemos dizer que a cultura impõe um “a mais” de sacrifício e que ela não

cumpre o que lhe cabia no pacto.

Assim como o pacto edípico deveria assegurar à criança o necessário para

assegurar sua sobrevivência e um lugar na família, o pacto social deve assegurar ao

trabalhador o necessário para sua sobrevivência e um lugar social. Se isto não acontece,

o pacto social pode ser rompido e aquele que é desrespeitado em seus direitos pode

romper também com a Lei da cultura. Segundo Pellegrino (1987),

A sociedade só pode ser preservada – e respeitada – pelo trabalhador

na medida em que o respeite e o preserve. Se o trabalhador for

desrespeitado e agredido pela sociedade, tenderá a desprezá-la e agredi-la, até um ponto de ruptura. Na melhor das hipóteses, essa

ruptura poderá levar o trabalhador a tornar-se um revolucionário. Ele

rompe com a sociedade, não para atacá-la cegamente, mas para transformá-la revolucionariamente, através da ação de massas. Em tal

caso, a ruptura com o pacto social não chega a provocar a ruptura

com a Lei da Cultura – ou Lei do Pai. Apesar da injustiça social, ou melhor, por causa dela, o revolucionário se apoia nas melhores e mais

altas tradições e virtudes libertárias do seu povo. (p.202)

Quando o sujeito é desrespeitado em seus direitos sociais, duas saídas são

possíveis, segundo Pellegrino (1987). A pior delas implica que o sujeito desrespeitado

em seus direitos rompa com o pacto social e também com o pacto edípico, o que resulta

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em que as pulsões parricidas, homicidas e incestuosas venham à tona.

Consequentemente, o sujeito deixará de respeitar a lei da cultura porque antes foi

desrespeitado por ela e poderá cometer todo o tipo de crime. A melhor das hipóteses é a

via revolucionária, em que o sujeito desrespeitado em seus direitos não rompe com a lei

da cultura e busca a transformação da sociedade.

Vemos aí a importância dos ideais que atuam como elemento de ligação entre

os sujeitos e também proporcionam certa satisfação narcísica àqueles que aderem a eles.

Por isto, como já foi dito anteriormente, os ideais exercem importante função na

preservação da cultura, proporcionando mais uma via de satisfação ao sujeito quando

outras lhe são negadas pela própria cultura. Segundo Freud (1927), a satisfação

narcísica possibilitada pelos ideais é “um dos poderes que enfrentam com êxito a

hostilidade contra a cultura (...)” (p.13).

Não obstante, se Freud (1927) é claro no que diz respeito aos sacrifícios

pulsionais (da sexualidade e da agressividade) que fundam a cultura, trazem mal-estar e

atingem a todos, ele não diz quais são os sacrifícios que atingem apenas determinadas

classes, grupos ou indivíduos. Freud diz apenas que os sacrifícios impostos apenas a

uma parcela da população são conhecidos de todos e devem ser diferenciados daqueles

necessários para a manutenção da cultura.

Os militantes do MST, como todos que vivemos no mundo atual, também pagam

o preço por viverem na cultura e pagam um “ a mais” por sua condição de classe

(pertencer às camadas mais pobres da população que têm mais privações e acesso a

menos benefícios) e de grupo (pertencer a um movimento social que reage contra esta

situação) e por serem militantes (tomarem a frente na luta contra a desigualdade). A

hipótese defendida nesta tese é que o risco de morte e o dilema família x militância

podem ser entendidos como este “a mais” de sacrifício que os militantes pagam por

serem militantes do MST.

1.3- O sacrifício na “pós-modernidade”

Autores atuais, entre eles Bauman (1998), propõem uma revisão das concepções

freudianas sobre o mal-estar na cultura, argumentando que Freud, mesmo ao utilizar o

termo cultura, está se referindo à modernidade, e não vivemos mais na modernidade,

nossa época é a pós-modernidade. Enquanto a modernidade, tal como descrita por

Freud, implicou um excesso de ordem e uma escassez de liberdade, a pós-modernidade

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é o reino da liberdade individual. Ambas funcionam como uma espécie de troca −“você

ganha alguma coisa, mas em troca perde alguma coisa”− só que na modernidade se

renuncia ao prazer e à liberdade em troca de segurança, enquanto na pós-modernidade

ocorre o inverso: troca-se a segurança pela liberdade e pelo prazer individual. Isto não

significa ausência de ordem na pós-modernidade, mas a tentativa impossível de

combinar ordem com sempre mais liberdade individual.(BAUMAN, 1998)

Um dos significados da ordem é que tudo está em seu devido lugar. A pureza,

por exemplo, é uma visão de ordem, mas as coisas não são em si mesmas puras ou

sujas, isto se define de acordo com os lugares que elas ocupam. Uma mesma coisa em

um lugar “certo” pode ser limpa e em um lugar “errado”, suja, embora existam coisas e

até mesmo pessoas para as quais não existem lugares “certos”. (BAUMAN, 1998)

Na pós-modernidade “o critério de pureza é a aptidão para participar do jogo

consumista” (BAUMAN, 1998, p.24). Aqueles que não conseguem se enquadrar neste

critério são “consumidores falhos”, são a sujeira da qual a sociedade quer se livrar, estão

fora de lugar. A metáfora encontrada por Bauman, para falar da sociedade pós-moderna

é a “cooperativa de consumidores”. Neste modelo de cooperativa se recebe a riqueza

não de acordo com o que se produz, mas de acordo com o que se consome. A

“cooperativa de consumidores” se estrutura em torno da “distribuição e apropriação”, e

não da “produção”, e tem como meta o constante aumento do consumo. Para aumentar o

consumo sempre mais e mais, a estratégia usada é uma sedução que se dirige a todos:

Quanto mais elevada a “procura do consumidor” (isto é, quanto mais

eficaz a sedução do mercado), mais a sociedade de consumidores é

segura e próspera. Todavia, simultaneamente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer os

seus desejos, ou entre os que foram seduzidos e passam a agir do

modo como essa condição os leva a agir e os que foram seduzidos mas

se mostram impossibilitados de agir do modo como se espera agirem os seduzidos. A sedução do mercado é, simultaneamente, a grande

igualadora e a grande divisora. Os impulsos sedutores, para serem

eficazes, devem ser transmitidos em todas as direções e dirigidos indiscriminadamente a todos aqueles que os ouvirão. No entanto,

existem mais daqueles que podem ouvi-los do que daqueles que

podem reagir do modo como a mensagem sedutora tinha em mira fazer aparecer. Os que não podem agir em conformidade com os

desejos induzidos dessa forma são diariamente relegados com o

deslumbrante espetáculo dos que podem fazê-lo. O consumo

abundante, é-lhes mostrado, é marca do sucesso e a estrada que conduz diretamente ao aplauso público e à fama. Eles também

aprendem que possuir e consumir determinados objetos, e adotar

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certos estilos de vida, é condição necessária para felicidade, talvez até

para dignidade humana. (BAUMAN, 1998, p.55-6)

O que fazer, então, com os “consumidores falhos”? Como eles ficam diante

desta situação: deslumbrados e seduzidos pelo o consumo a que não têm acesso? Para

lidar com eles o Estado elaborou uma estratégia, o chamado Estado de Bem-Estar

Social, uma espécie de “seguro coletivo” para manter a sociedade em segurança. O

Estado de Bem-Estar Social trazia uma espécie de compensação àqueles deixados para

trás, sem acesso ao consumo. O Estado pagava os custos da corrida pelo capital. Sua

manutenção foi possível até que estes “marginais” não fossem numerosos demais, a

partir daí eles passaram a ser cada vez mais responsabilizados por sua situação. A

sociedade que os produziu se eximiu de toda a responsabilidade por sua produção e

passou a se recusar a pagar os custos do capital. (BAUMAN, 1998)

A estratégia do “seguro coletivo” para lidar com os “consumidores falhos” foi

sendo substituída pela da “desregulamentação e privatização”, que veio acompanhada

de duas exigências políticas contraditórias dirigidas ao Estado:

Uma é a exigência, por parte dos livres consumidores, de aumentar

mais as liberdades do consumidor: privatizando-se o uso de recursos, reduzindo toda intervenção coletiva nos negócios privados,

desmantelando as coações politicamente impostas, cortando tributos e

despesas públicas. Outra exigência é a de negociar mais

energicamente com as consequências da primeira exigência: ao vir à tona no discurso público, com nome de „lei e ordem‟, essa segunda

exigência é sobre a prevenção do protesto igualmente

desregulamentado e privatizado das vítimas da desregulamentação e da privatização. Aqueles que a expansão da liberdade do consumidor

privou das habilidades e dos poderes do consumidor precisam ser

detidos e mantidos em xeque.(BAUMAN, 1998, p.24)

Aqueles que são “livres” para consumir querem cada vez mais liberdade de

escolha e a redução nos gastos públicos destinados à coletividade e ao mesmo tempo

querem que os que não têm acesso ao consumo fiquem sob controle e não atrapalhem a

sua liberdade de consumir. Os que não têm acesso ao consumo, além de serem

responsabilizados por sua condição, são também criminalizados e fonte de mal-estar.

Eles devem ser detidos e mantidos distantes dos olhos dos consumidores.

O que diz Bauman (1998) sobre o modelo da “cooperativa de consumidores” e o

desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social em parte se aplica ao Brasil, pois

também nós vivemos sob a lógica da “cooperativa de consumidores”, embora em parte

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não, pois nem chegamos ao Estado de Bem-Estar-Social para ver seu desmantelamento.

Por exemplo, enquanto em um país como a França, Castel (2010)76

diz que os auxílios

do governo aos trabalhadores representam um sinal de retrocesso, pois significa que o

salário não está mais sendo suficiente para custear as necessidades do trabalhador, no

Brasil, auxílios como o bolsa-família representam um avanço, já que aqui o salário

mínimo nunca foi suficiente para garantir as necessidades do trabalhador e muitos nem

mesmo chegam a receber um salário mínimo como pagamento por seu trabalho. Apesar

disso, nos dois países os consumidores questionam os gastos com os “consumidores

falhos”, com os “vagabundos que vivem à custa do governo”, os quais são

responsabilizados, criminalizados e sofrem com sua condição. Será que somos pós-

modernos sem nunca ter sido modernos?

O sofrimento de ser um “consumidor falho” aparece na fala de Anderson77

,

quando este relata que após certo tempo distante da casa dos pais volta para visitar a

família. Ele volta com as mesmas roupas que levou quando partiu, mas os amigos que

ficaram estavam com roupas da moda, carro e moto. Anderson sai com os amigos e eles

encontram duas meninas que o humilham, porque ele voltou da mesma forma que saiu,

portando com as mesmas roupas. Ele chora escondido. Sente-se humilhado e, movido

por este sentimento e de posse da moto do amigo, incumbe-se de levar as meninas para

casa, mas em uma atitude vingativa, deixa-as perto do cemitério.

O relato de Anderson traz a recusa de reconhecimento social por membros da

sua própria classe. Ele não é valorizado pelo que é, não tem prestígio social junto às

meninas de sua classe porque não porta as insígnias de um homem bem-sucedido. Na

sociedade de consumo o ser e o ter passam a ser indistintos: mostrar o que se tem é

mostrar o que se é (HAROCHE,2005). Se Anderson não tem nada, é nada diante do

outro sexo, não tem os atrativos que aquelas meninas buscam em um possível parceiro;

mas Anderson reage, embora de uma forma reconhecida por ele mesmo como não

apropriada.

Em outros tempos falaríamos que Anderson foi ferido em sua honra. Nas

sociedades organizadas em estamentos, a honra de um sujeito estava atrelada ao

cumprimento das expectativas ligadas ao seu status social. O “valor” de um sujeito não

estava atrelado à sua biografia e às suas características particulares, e sim, ao estamento

76 Anotações pessoais da conferência de Robert Castel, no Colloque Les 40 ans du Laboratoire de

Changement Social, em 11-06-2010. 77 Militante do MST participante desta pesquisa. Seu relato foi a sua resposta à questão: “Em quais

situações sentiram violência contra vocês?”, do encontro que teve como tema “Violência e Luto”.

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ao qual ele pertencia e no qual deveria obedecer a um determinado padrão de conduta

para ter reputação social. No interior de um estamento as relações eram simétricas,

enquanto entre estamentos eram assimétricas. Com a modernidade a reputação social do

sujeito passou a cada vez mais depender de sua biografia e de suas características

particulares, enquanto o conceito de honra, que era ligado ao espaço público, passa a ser

substituído pelo conceito de prestígio social, que diz respeito à vida privada. A

reputação do sujeito passa a ser definida em função de suas realizações individuais.

(HONNETH, 2009)

Se as realizações do sujeito dependem dele próprio e se é o olhar dos outros que

diz se o sujeito tem prestígio ou não, o sujeito precisa se expor para ser visto. A

constante exposição de si, praticamente como se o próprio sujeito estivesse à venda,

assume uma maior dimensão na pós-modernidade e na “sociedade de consumidores”. A

alienação acompanha a “obrigação de se vender”, como nos mostrou Marx, porém agora

o que está à venda não é somente a força de trabalho, mas o próprio sujeito. A alienação

atual tem uma de suas dimensões na visibilidade, que é reforçada pelas novas

tecnologias: o sujeito precisa mostra-se para ser visto e para existir. (HAROCHE,2005)

Mesmo fazendo parte de um movimento social que se contrapõe aos ideais de

consumo, Anderson é afetado por eles, como membro de uma classe social que é

atingida por estes ideais e não tem acesso ao consumo. O sofrimento relatado por ele

está incluído no “a mais” que paga sua classe social: mais privação e menos acesso aos

bens da cultura. O MST representa uma reação a este “a mais”, que, sem romper com a

Lei, busca a transformação da sociedade; mas, ao recusar este “a mais” de sacrifício

imposto às classes desfavorecidas, faz enfurecer e endurecer o discurso78

e as ações

contra seus integrantes.

Assim os militantes do MST, ao recusarem o “a mais” de sacrifício destinado à

sua classe, acaba pagando um “a mais” por pertencer ao movimento. Só que isto não

significa trocar um “a mais” de sacrifício por outro, pois o militante segue na luta por

acesso igualitário a todos aos bens da sociedade, segue na luta para que todos tenham

acesso às conquistas da modernidade: educação, saúde, cultura, lazer, etc. No interior do

MST o “pacto” é mantido, os sacrifícios são pagos com um lugar social dentro do

movimento e com possibilidade de uma revitalização narcísica dos sujeitos.

Neste sentido, a entrada e militância em um movimento como o MST é o

contrário do consentimento ou oferecimento de si em sacrifício, é uma reação contra um 78 Sobre o endurecimento do discurso contra o MST ver: ROSA; CARIGNATO; BERTA, 2006.

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“a mais” de sacrifício que lhe foi imposto. Se há reação contra o “a mais” de sacrifício,

isto não significa que pela reação os militantes se tenham libertado deste “a mais”, pois

a luta é constante. Além disso, existe um “a mais” que eles pagam por sua condição de

militante. Eles não se oferecem como vítima sacrifical, mas estão mais sujeitos ao risco

de morte; mas este risco não deve ser visto como uma posição sacrifical dos militantes,

e sim, como uma resposta violenta de determinados grupos da sociedade, quando os

sujeitados saem de sua posição de submissão.

O militante, por seus deslocamentos e por sua dedicação à luta, pode afetar sua

relação com a família, mas amplia seu universo de relações. Os projetos individuais

podem ser articulados aos coletivos, porém esta articulação nem sempre é fácil ou

possível. Para pertencer ao MST o sujeito paga um preço, mas recebe algo em troca: sua

inclusão em um grupo que não aceita calado a desigualdade, o “a mais” de sacrifício

que a sociedade impõe a determinadas classes, um grupo que dá ao sujeito a

possibilidade de realização e reconhecimento de sua participação e valor.

CAPÍTULO 2: IDEAIS, EXIGÊNCIAS E IDENTIDADE DE SEM-TERRA

“Um homem acontece decisivamente a partir do olhar de outro homem.

Somente assim é que ele pode – realmente – assumir sua própria existência.

O homem nasce – e morre – pelos olhos do outro: a qualidade do olhar que nos é dirigido constitui-se como espelho,

verdadeiro ou deformador. ” (COSTA, 2004, p.216)

Partir do conceito de narcisismo para pensar a militância do MST é uma tarefa

que impõe alguns esclarecimentos. Primeiramente, esta ideia tem como base a pesquisa

de Arantes (1991, 1994) e o livro de Mulworf (2000), brevemente apresentados no

segundo capítulo da segunda parte; porém não são utilizadas nem a ideia do narcisismo

enquanto refluxo libidinal sobre si mesmo da primeira, nem a ideia de um suposta

fragilidade narcísica do militante, do segundo. A ideia que é desenvolvida é a de que a

militância no MST pode, sim, possibilitar certa revitalização narcísica ao militante,

proporcionada pela adesão aos ideais sociais sustentados pelo MST e - por que não? -

também pelo lugar que este passa a ocupar junto ao movimento e à sociedade. Se por

um lado a adesão a ideais sociais traz ao sujeito certa satisfação narcísica, por outro

esses ideais vêm acompanhados de exigências e, no caso da adesão ao MST, da

identidade de sem-terra. Os ideais, como diz Bloch (2005), agem de “modo exigente”,

sendo difícil separá-los das exigências que os acompanham. A este lado exigente dos

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ideais Freud chamou de supereu. Esta tensão entre ideias e exigências e as implicações

que a identidade de sem-terra traz para o sujeito são as questões abordadas neste

capítulo, que se inicia com o conceito de narcisismo em Freud.

2.1- O narcisismo e a constituição do eu ideal

Em Introdução ao narcisismo, Freud (1914) define o narcisismo como “o

complemento libidinal do egoísmo do instinto de conservação, do qual justificadamente

atribuímos uma porção a cada ser vivo” (p.15). Com esta definição Freud mostra que o

narcisismo não está somente do lado da patologia, mas também ao lado da vida, da

preservação de si mesmo, desde que o investimento em si esteja em equilíbrio com

investimentos em outros objetos.

Em um texto um pouco anterior, Caso Schreber, Freud (1911) apresenta o

narcisismo também como um estágio intermediário do desenvolvimento sexual,

localizado entre o autoerotismo e o amor objetal, concepção que se mantém até a

elaboração da segunda tópica79

. Afirma Freud (1911):

Este estágio foi designado como nome de narcisismo, e consiste em

que o indivíduo em evolução, vá sintetizando em uma unidade suas

pulsões sexuais a uma atividade auto-erótica, para depois chegar a um objeto amoroso, toma-se em princípio a si mesmo, isto é, toma seu

próprio corpo como objeto amoroso, antes de passar à eleição de

objeto, o que é talvez normalmente indispensável. (p.1517)

Nesta primeira concepção Freud diferencia autoerotismo e narcisismo. No

autoerotismo as pulsões indiferenciadas se satisfazem por si sós, enquanto o narcisismo

implica certa unificação das pulsões e um objeto que é o próprio eu do sujeito; porém,

como unidade, o eu não existe desde o início. Freud (1914) atribui a “um novo ato

psíquico” papel fundamental na unificação das pulsões, na constituição do eu e na

passagem do autoerotismo ao narcisismo. Esta concepção de Freud nos leva a entender

que o eu e o narcisismo se formam concomitantemente (LAPLANCHE; PONTALIS,

1992), ou mesmo que o “Eu se estrutura em um processo do qual o narcisismo faz

parte” (FILHO, 2007, p.130).

79 Após a elaboração da segunda tópica desaparecerá a diferenciação entre autoerotismo e narcisismo, e

este passa a ser concebido como um “estado primeiro da vida”, que precede a formação do eu.

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O que é este “novo ato psíquico” tão importante para constituição do eu e do

narcisismo, Freud não explica; mas encontramos no estágio do espelho, concebido por

Lacan, um caminho para compreender o que não ficou claro em Freud.

Lacan, seguindo Freud, propôs com a noção de estágio do espelho um

momento constitutivo, no qual se produz a partir da identificação à

imagem do outro – matriz identificante – , uma imagem unificada de si, correspondente aos primeiros esboços do Eu. Ao reconhecer sua

„imagem‟, a criança inicia uma relação com a mãe, cujo olhar é tal

qual o próprio espelho em que se vê. Tal condição nos permite ainda pensar a questão do narcisismo sob o vértice do „outro‟ que, implicado

em seu próprio narcisismo, também se vê refletido na própria imagem

que projeta. (FILHO, 2007, p.130)

Assim, um estágio que a princípio parece dizer respeito ao sujeito e a si mesmo

(narcisismo), implica a presença de um outro em sua constituição. São os olhos do

Outro, no caso da mãe, que enviam para criança uma imagem unificada de si, com a

qual esta se identifica e a qual lhe possibilita certa apreensão do seu corpo como

totalidade e a constituição dos primórdios do eu. A mãe, que reflete a imagem da

criança como um espelho, também se vê refletida nos olhos da criança, e esta, por sua

vez, representa para a mãe um prolongamento de seu narcisismo. Assim, não é só

Narciso que vê sua beleza refletida no lago: o lago também se vê refletido nos olhos de

Narciso, tal como no poema de Oscar Wilde80

(citado por FILHO, 2007).

Não só para a mãe, mas também para o pai, a criança representa um

prolongamento do seu narcisismo. Segundo Freud (1914), os pais superestimam as

qualidades dos filhos, revivem neles seu próprio narcisismo abandonado e projetam

neles a possibilidade de concretização de seus sonhos não realizados. A relação dos pais

com a criança, além de ser marcada pelo narcisismo destes, também leva a marca da

relação dos pais com a sociedade e com o grupo no qual a família se insere e com o

qual partilha os ideais (AULAGNIER,1979).

Voltemos à criança e seu narcisismo. As exigências externas e o próprio

desenvolvimento do eu fazem com que o narcisismo, tal como em seu estágio inicial,

seja abandonado. Seu abandono cria o desejo de reconstituição deste estado de

80 “− Não nos admiramos de que pranteeis Narciso dessa maneira. Ele era tão belo! − Narciso era belo? –

indagou o lago.− Quem sabe melhor do que vós? – responderam as Oréadas. –Ele nos desprezava ao vos

cotejar debruçado às vossas margens, mirando-vos, e contemplando a própria beleza, no espelho de

vossas águas. E o lago retrucou: − Eu amava Narciso porque, quando ele se debruçava sobre as minhas

margens para contemplar-me, eu via sempre se refletir, no espelho de seus olhos, a minha própria beleza.”

(Oscar Wilde, citado por Filho, 2007, p.131)

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satisfação em que o sujeito bastava a si mesmo, e deste desejo e da influência externa se

forma o ideal do eu. (FREUD, 1914)

A esse ideal do Eu dirige-se então o amor a si mesmo, que o Eu real

desfrutou na infância. O narcisismo aparece deslocado para esse novo Eu ideal, que como o infantil se acha de posse de toda preciosa

perfeição. Aqui, como no âmbito da libido, o indivíduo se revelou

incapaz de renunciar à satisfação que uma vez foi desfrutada. (...) O que ele projeta diante de si como seu ideal é o substituto para o

narcisismo perdido da infância, na qual ele era seu próprio ideal.

(FREUD, 1914, p.40)

Com a constituição do ideal do eu, parte do investimento libidinal do sujeito será

direcionada a ele, e a satisfação, uma vez obtida com o investimento no eu, passará a

também ser obtida quando o ideal é atingido. Os investimentos em objetos externos, que

começam juntamente com a formação do ideal do eu, passaram a ser também fonte de

satisfação, desde que a libido que vai para o objeto, empobrecendo o sujeito, também

retorne a ele, enriquecendo-o. A partir da formação do ideal do eu, o amor-próprio do

sujeito dependerá destas três fontes de satisfação: do que sobrou do narcisismo infantil,

da “onipotência confirmada pela experiência (do cumprimento do ideal do Eu)” e da

satisfação da libido objetal. (FREUD, 1914, p.48)

O amor-próprio, segundo Freud (1914), é “expressão da grandeza do Eu” (p.45).

O cumprimento do ideal aumenta o amor-próprio ao confirmar o primitivo sentimento

de onipotência infantil, enquanto o distanciamento em relação ao ideal pode ocasionar o

sentimento de frustração e fracasso. Amar alguém, por sua vez, não aumenta o amor-

próprio, muito pelo contrário, o indivíduo que ama perde uma parte da sua libido, que

somente volta para esse indivíduo quando ele é amado. “O amar em si, enquanto ansiar,

carecer, rebaixa o amor-próprio, e ser amado, achar amor em troca, possuir o objeto

amado, eleva-o novamente”.(p.47)

Ainda em Introdução ao narcisismo, Freud (1914) diz que a influência crítica

dos pais, à qual vem se agregar a crítica de outros membros da sociedade, é a influência

externa, o estímulo para formação do ideal do eu. Esse estímulo faz do ideal do eu uma

instância narcísica e social marcada pelo narcisismo infantil abandonado e pela

influência crítica da sociedade representada, em um primeiro momento, pelo voz dos

pais. Freud termina seu texto sobre o narcisismo enfatizando esta dimensão social do

ideal do eu: “Do ideal do Eu sai um importante caminho para o entendimento da

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psicologia de massa. Além do seu lado individual, ele é também o ideal comum de uma

família, uma classe, uma nação.” (p.50)

Esta dimensão social do ideal do eu é retomada e ampliada por Freud (1921) em

Psicologia de massas e análise do eu:

Cada indivíduo é membro de muitas massas, tem muitas ligações de

identificação e edificou seu ideal do eu segundo os mais diversos

modelos. Cada indivíduo participa, assim, da alma de muitas massas:

sua raça, seu estamento, sua comunidade de crença, sua comunidade estatal, etc., e ainda pode elevar-se acima disto até conseguir uma

partícula de autonomia e originalidade.(p.122)

Em Psicologia de massas e análise do eu, as funções de observação de si e

consciência moral são atribuídas ao ideal do eu. Com a elaboração da segunda tópica e a

proposição do conceito de supereu, Freud (1923) passa a atribuir estas funções ao

supereu. Em O eu e o isso Freud emprega os termos ideal do eu e supereu como

sinônimos e passa a enfatizar o caráter proibitivo desta instância. Segundo os

comentários de Strachey, após este texto o termo ideal do eu quase desparece da obra de

Freud, sendo retomado nas Novas conferências introdutórias à psicanálise como uma

das funções do supereu.

2.2- Eu ideal e ideal do eu: algumas considerações pós-freudianas

A diferenciação entre eu ideal e ideal do eu é posterior a Freud. Segundo

Diatkine (2010), a maioria dos psicanalistas franceses concordam que o eu ideal é uma

formação mais arcaica, enquanto o ideal do eu é uma instância mais evoluída, porém o

“consenso” para por aí, há diferentes formulações sobre a diferenciação existente entre

eu ideal e ideal do eu, na psicanálise francesa. Lacan, por exemplo, propõe que o eu

ideal é uma modalidade de identificação imaginária (identificação com a imagem

especular), enquanto o ideal do eu é uma modalidade de identificação simbólica

(identificação com o traço unário) (ZIZEK, 1992); já para os psicanalistas ingleses, a

diferenciação entre eu ideal e ideal do eu não é uma questão a ser discutida, já que eles

adotam em sua maioria apenas o conceito de supereu (DIATKINE, 2010). Ciente deste

contexto, para não desviar do tema deste trabalho, considerando que esta diferenciação

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entre eu ideal e ideal do eu é relevante para este estudo, esta discussão é deixada de lado

e simplesmente adota-se as definições propostas por Costa (1988):

Ego ideal é o outro especular do Ego narcísico. É aquilo que fornece a

matriz imaginária do Ego e aquilo que o Ego aceita tendencialmente sem conflitos, como parceiro na redistribuição da libido. Ou, visto de

outro ângulo, é aquilo que o Ego aceita como um outro que também

pode representar a totalidade do sujeito e sem criar brechas em sua síntese imaginária. O ego ideal é a imagem idealizada dos traços

constitutivos da forma egoica.(...)

O Ideal [ do ego] ocupa outra função no aparelho psíquico. Embora igualmente herdeiro do narcisismo infantil dos adultos, o Ideal aponta

para o futuro, em vez de deixar-se amarrar pelo passado/presente.

Também disputa com o Ego a representatividade do sujeito. Mas enquanto a matéria prima da formação egoica é o suposto ser do

sujeito, a do Ideal é o vir a ser deste mesmo sujeito. Como o Ego, o

Ideal também visa sintetizar as representações que unificam e totalizam a imagem do sujeito ou do que imaginariamente se pensa

que é sua „essência‟. Mas este sujeito é um sujeito do futuro, um

sujeito que ainda não é e que só existe enquanto promessa, enquanto

sombra falada, para usar a expressão de Piera Aulagnier. (p.160)

A definição proposta por Costa (1988) para o eu ideal como uma representação

idealizada do eu sem falhas e como imagem especular do eu narcísico, aproxima-se da

definição de Lacan de um eu ideal como identificação especular, regido pelo registro

do imaginário. O eu ideal é uma formação arcaica ligada à onipotência infantil e remete

ao passado e ao presente, enquanto o ideal do eu aponta para o futuro, para o vir-a-ser

do eu, a perfeição a conquistar. O ideal do eu é marcado pela falta e a perfeição é um

estado a alcançar, e para isso devem-se seguir determinadas regras e modelos e adiar o

prazer imediato em troca de um prazer ideal que virá no futuro. (COSTA, 1988).

O “narcisismo normal” do sujeito adulto implica que o eu ideal (imaginário)

esteja subordinado ao ideal do eu (simbólico), enquanto no “narcisismo patológico” não

há esta subordinação do imaginário ao simbólico e este último, longe de ser uma

exceção, torna-se cada vez mais a norma na sociedade atual. (ZIZEK, 1992)

“Abnegação”, “submissão a um compromisso mais elevado”, etc., são

apenas nomes um tanto patéticos para o compromisso simbólico, para

a autoridade simbólica do ideal do eu. Em lugar de uma integração de uma lei propriamente dita, temos uma multiplicidade de regras a

serem seguidas: regras para ter sucesso, regras de adaptação – o

sujeito narcísico só conhece „regras do jogo social‟ que lhe permitam

manipular os outros, ao mesmo tempo em que se mantém distante de um compromisso sério. (ZIZEK, 1992, p.71)

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A sociedade atual, que promove o chamado “narcisismo patológico”, foi

chamada por Lasch de “cultura do narcisismo”. Para Severiano (2007), a “cultura do

narcisismo” oferece aos sujeitos “ ideais particularistas de consumo” como “fonte

privilegiada de identidade e realização pessoal”. Estes “ideais particularistas de

consumo” são divulgados para todos por meio da linguagem publicitária, que a autora

compara e diferencia da linguagem utópica. Enquanto a linguagem utópica reconhece as

falhas e critica o presente projetando a felicidade de todos para um futuro, a linguagem

publicitária oferece a satisfação imediata, satisfação que é articulada à idealização dos

produtos a serem consumidos e do próprio consumo. Retomando Zizek (1992), é

possível dizer que a linguagem publicitária age diretamente sobre o imaginário do

sujeito, apelando à insubordinação do eu ideal ao ideal do eu.

Na contramão da “cultura do narcisismo” da sociedade atual, o MST continua

defendendo os antigos ideais coletivos e utopias da modernidade, em um momento em

que parece não existirem mais ideais coletivos e utopias, em que o único ideal vigente

parece ser o do consumo. Os ideais que o MST sustenta visam ao coletivo e ao

compromisso simbólico e ético do sujeito para o bem de todos, ligam os sujeitos entre si

e alcançam diretamente o ideal do eu dos seus militantes. Neste ponto, chega-se à

questão central desta pesquisa: como é viver na sociedade atual, sustentando ideais que

são contrários aos vigentes?; como os militantes do MST são afetados pelos ideais do

movimento e os ideais que predominam na sociedade atual.Vejamos na sequência,

algumas pistas para se pensar esta questão.

2.3- A articulação aos ideais

Em 2007 foi realizado um encontro com os militantes do MST que tocou

exatamente na questão da articulação do sujeito aos ideais. Neste encontro, que teve

como tema “Ideais individuais coletivos”, foi utilizada uma técnica chamada Alguns

minutos de fama, que consiste em que cada um responda por escrito em um papel à

seguinte questão: “Se você pudesse ser qualquer um, quem você seria? Escreva três

coisas que você faria se fosse esta pessoa”. A questão proposta estimulou a fantasia e as

respostas dadas trouxeram alguns indícios de como estes jovens se articulam aos ideais

sustentados pelo MST e como são afetados pelos ideais predominantes na sociedade

atual. As respostas foram agrupadas de acordo com suas semelhanças e são

apresentadas na sequência de forma resumida.

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Um primeiro grupo disse que queria ser um dos seguintes revolucionários: Che

Guevara, “para fazer a revolução”; Fidel Castro, “faria a transformação social”; Stalin,

“mais compreensivo e menos totalitário”; Lenin, “não deixaria Stalin no poder” e Olga

Benário, “viajaria mais, curtiria mais a vida”. Che Guevara foi mencionado por três

jovens e os demais nomes foram citados uma vez.

Um segundo grupo disse que queria ser presidente ou prefeito: três responderam

que queriam ser Bush, presidente dos Estados Unidos, mas um “Bush socialista e

preocupado com a preservação do meio ambiente”. Dois responderam que queriam ser o

Lula, presidente no Brasil, “para fazer a reforma agrária”; e um falou que queria ser

prefeito da cidade onde está localizada a escola de agroecologia, para “fazer aliança

com o MST”.

O terceiro grupo compreendeu aqueles que responderam que queriam ser cantor

ou jogador de futebol. O cantor sertanejo Zezé di Camargo foi mencionado duas vezes,

um jovem disse que queria “cantar, gravar cds e ajudar as entidades assistenciais”; e o

outro, que “passaria uma semana no cruzeiro, duas semanas fazendo shows, uma

semana de festa, mulher e cachaça”. O cantor Bob Marley foi citado uma vez: “Queria

ser conhecido mundialmente e fazer músicas revolucionárias”. Os jogadores citados

foram Ronaldinho Gaúcho e Edimundo; “Queria ser Ronaldinho Gaúcho para doar 50%

do dinheiro que ganhasse para os movimentos sociais, usar os meios de comunicação

para discutir em favor dos pobres e necessitados, intimando o povo para lutar por

melhores condições de vida”; “gostaria de ser Edimundo para jogar no Palmeiras, fazer

gol, ser campeão do mundo”.

Já as resposta do quarto grupo foram bastante variadas, como: “Gostaria de ser

Bill Gates, para fazer a reforma agrária”; “o Papa Bento XVI para “repartir os bens da

Igreja e lutar para que a religião contribuísse na humanização da sociedade e não na

alienação”; “Santos Dumond, para fazer avião”; “Um índio que “vive de caça e pesca”;

“Voltaria “a ser criança e começaria tudo de novo”.

Deste encontro destacam-se alguns pontos. Primeiramente, a referência à figura

masculina de revolucionários e lideranças - apenas uma das meninas mencionou o

nome de uma mulher (Olga Benário). Por mais que o MST trabalhe a questão da

igualdade de gênero, a referência, para o militante, continua pertencendo ao universo

masculino. Um segundo ponto a ser destacado são ações que eles fariam se fossem os

personagens citados (um Bush socialista, um Bill Gates fazendo a reforma agrária, um

jogador de futebol convocando o povo para lutar por melhores condições de vida), ações

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que vão ao encontro dos ideais do MST, mesmo que os personagens citados não façam

parte do universo do movimento. Um terceiro ponto é que eles não deixam de ser

afetados pelos modelos que circulam na sociedade - da fama, do sucesso, do dinheiro -

mas que podem ser ressignificados, embora nem sempre isto aconteça, por exemplo:

“Ser cantor para fazer músicas revolucionárias” ou para “fazer festa com mulher e

cachaça”; “ser jogador para ganhar dinheiro e doar a metade para os movimentos

sociais” ou para “jogar no Palmeiras, fazer gol e ser campeão do mundo”.

A questão da articulação dos sujeitos aos ideais e da diferenciação entre os ideais

sustentados pelo MST e os predominantes na sociedade atual apareceu espontaneamente

na fala de Márcio, no encontro que teve como tema “Tensões entre o individual e o

coletivo”, realizado em 2008. Márcio disse: “O militante é exemplo, logo não pode se

vestir ou se portar de qualquer jeito”. Para exemplificar sua afirmação, ele contou a

história de um militante que fumava. As crianças passaram a imitá-lo, pegando bitucas

de cigarro e brincando de fumar; ao ver isto este militante parou de fumar na frente das

crianças. Márcio concluiu sua fala dizendo que ele “pode até gostar de bonés de marca,

mas que não deve usá-los”. Seu relato de como NÃO deve se portar e de como NÃO

deve se vestir o militante do MST mostra as pequenas renúncias ao prazer imediato que

o militante faz (ou, segundo ele, deve fazer) em nome de um “compromisso mais

elevado” com ideais coletivos.

2.4- As exigências internas e externas: o supereu entra em cena

O militante é também um modelo, ocupa um lugar de transmissão e não é sem

consequências a maneira como ele se porta e se veste diante dos outros. Por isto, em

suas falas são comuns as referências às inúmeras cobranças e exigências a que estão

submetidos. Um exemplo disto é o trecho abaixo do texto de abertura do seminário

“Subjetividade e questão da terra”, elaborado por Paulo Maldos e PauloUeti:

O ideário do movimento, seus valores éticos e morais, suas personalidades

de referência - Che Guevara, Florestan Fernandes, Madre Cristina, Rosa

Luxemburgo, para citar algumas - produzem um conjunto de exigências ao

“modo de ser militante” que, certamente, tensionam de forma permanente

as mulheres e os homens no sentido da auto-crítica e da auto-superação. (...)

Como já foi dito, um alto padrão ético é exigido e incorporado pela

militância: honestidade, dedicação ao povo, empenho nas lutas, risco em

liderar ações de massa, busca de perfeição em cumprir tarefas, realizar

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gestos exemplares como trabalho voluntário ou doar sangue. Tais gestos

encontram sintonia em momentos revolucionários de uma determinada

sociedade, são gestos heróicos, são gestos exemplares da nova sociedade

que se almeja. (SEMINÁRIO SUBJETIVIDADE E A QUESTÃO DA

TERRA, 2004, p.133)

O militante, além de ser ele próprio um modelo, também tem seus modelos que

representam a corporificação dos ideais aos quais adere. É difícil separar os modelos das

exigências que os acompanham. Quanto mais perfeito o modelo, maiores também serão

as exigências que ele impõe. Um dos principais modelos - se não o principal - que

circula entre os jovens militantes do MST é Che Guevarra. Encontramos no site do

MST uma conferência de Che pronunciada na União de Jovens Comunistas, em 1962,

que reforça esta ideia das indissociáveis exigências que acompanham o modelo, o ideal.

Cito na sequência um pequeno trecho desta conferência:

O jovem comunista deve tentar ser sempre o primeiro em tudo, lutar para

ser o primeiro, e sentir-se incomodado quando em algo ocupa outro lugar.

Lutar sempre para melhorar, para ser o primeiro. Claro que nem todos

podem ser o primeiro, mas sim estar entre os primeiros, no grupo de

vanguarda. Ser um exemplo vivo, ser o espelho onde possam olhar-se os

homens e mulheres de idade mais avançada que perderam certo entusiasmo

juvenil, que perderam a fé na vida e que ante o estímulo do exemplo reagem

sempre bem. Eis outra tarefa dos jovens comunistas.(GUEVARA, 1962,

online)

Se Márcio falava em ser exemplo para as crianças, que representam a

continuidade do MST, aqui Che Guevara fala em ser exemplo para as pessoas de idade

mais avançada que perderam o “entusiasmo juvenil”. A cobrança de “entusiasmo

juvenil” também aparece na fala de Fábio, quando ele diz que “é cobrado da juventude

(do MST) a própria animação”.

As cobranças e exigências que os ideais impõem ao sujeito podem ser pensadas

em duas dimensões: uma interna ao sujeito e uma externa. Para abordar ambas as

dimensões das exigências e cobranças, podemos recorrer a Freud e ao seu conceito de

supereu e supereu da cultura. O supereu representa no interior do sujeito a interiorização

da crítica dos pais e da sociedade; é a instância psíquica encarregada de cobrar, exigir e

comparar o eu aos ideais e é assim definido em Mal-estar na civilização:

O supereu é uma instância por nós descoberta; a consciência moral, uma função que lhe atribuímos junto a outras: a de vigiar e julgar as

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ações e propósitos do eu; exerce uma atividade censora. O sentimento

de culpa, a dureza do supereu, é então o mesmo que severidade da

consciência moral; é a percepção, proporcionada ao eu, de ser vigiado dessa maneira, a apreciação da tensão entre suas aspirações e as

exigências do supereu. (FREUD, 1930, p.132)

Neste mesmo texto, Mal-estar na civilização, Freud (1930) propõe a hipótese da

existência de um supereu da cultura, equivalente ao supereu individual. Assim como o

supereu individual é formado a partir da influência dos pais, o supereu da cultura é

formado a partir da influência deixada pelos grandes homens, e assim como o supereu

individual, também impõe ao sujeito elevadas exigências, que, quando não atendidas,

trazem como consequência a “angústia da consciência moral”. A diferença do supereu

da cultura em relação ao individual está na imposição da ética na relação entre os

sujeitos, e neste sentido não atingiria os sujeitos apenas como indivíduos isolados, mas

como coletividade. Afirma Freud:

O supereu da cultura estabeleceu seus ideais e propõe suas exigências.

Entre elas, as que dizem respeito aos vínculos recíprocos entre os

seres humanos que se resumem sob o nome de ética. Em todos os tempos se atribuiu o máximo valor a esta ética, como si se esperasse

justamente dela sucessos de particular importância.

Consequentemente, a ética se dirige aquele ponto que facilmente se reconhece como a ferida de toda cultura. A ética tem então que ser

concebida como um ensaio terapêutico, como um empenho por

alcançar por mandamento do supereu o que até o momento o restante

do trabalho cultural não havia conseguido. (FREUD, 1930, p. 137-138)

A partir desta ideia de Freud sobre um supereu da cultura, Muldworf (2000)

propõe que, para os militantes do PCF, o partido funcionaria como uma espécie de

supereu que impõe modelos a serem seguidos, cobra, controla e exige determinados

padrões éticos e morais. É possível pensar que o MST também pode exercer semelhante

função junto a seus militantes. A fala de uma militante do MST, no seminário

Subjetividade e questão da terra (2004), mostra quanto seus militantes podem ser

conscientes dessa função e do desafio que ela representa:

Temos refletido que essa nova militância do Movimento é um outro

desafio. A própria referência ética dessa militância é o Movimento.Não é mais a igreja, não é mais o partido político. Os

novos militantes são pessoas cuja única referência é o Movimento. E

isso significa, para nós, mais trabalho porque aquela base existente anteriormente não mais existe. A questão dos valores é um desafio

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pedagógico muito grande, especialmente para quem está na condução

dos cursos. Exige muito. É uma estratégia de formação humana. Mas,

também, política. Queremos formar pessoas coerentes com a luta, com a causa, com o Movimento. E isso não acontece por decreto. (p.93-94)

Não é tarefa fácil separar as exigências que vêm do supereu das que vêm do

supereu da cultura, separar as exigências que são internas das externas. Um encontro da

pesquisa-intervenção foi dedicado a esta temática. A dinâmica utilizada neste encontro

foi solicitar aos jovens que escrevessem quais eram as exigências internas e externas a

que estavam submetidos, primeiro individualmente e depois em grupo. Sobre as

exigências internas a que estão submetidos, o primeiro grupo escreveu:

Compromisso com o estudo.

Exercitar a comunicação e a expressão. Aprender a lidar com a distância familiar.

Convivência coletiva.

Manter a pertença ao movimento. Compartilhar os conhecimentos teóricos e práticos na base e na

sociedade.

Aprender a conviver com as diferenças.

Superar os limites individuais e coletivos.

Espírito de sacrifício.

O primeiro grupo utilizou todo o tempo do encontro para discutir as exigências

internas, e, como não teve tempo para discutir as exigências externas, concluiu a

atividade dizendo que as exigências externas coincidem com as internas. Já o segundo

grupo separou as exigências internas e externas, embora coincidam em vários pontos.

Exigências internas:

A responsabilidade da expressão oral.

Leitura. Criar dentro de si a disciplina consciente.

Compreensão de como vamos interagir com o povo.

Saber conciliar a família com o MST e a escola.

Exigências externas:

A responsabilidade da expressão oral.

Leitura. O exercício de ser criativo com conteúdo.

Ser pontual nas atividades a partir dos acordos que se têm.

Ser disciplinado com o próximo. Ter um comportamento respeitoso com as pessoas.

Saber conciliar a família com o MST e a escola.

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A coincidência das exigências internas e externas, manifestada de formas

diferentes pelos dois grupos, mostra a dificuldade em discriminar o que é interno do que

é externo. Geralmente, as exigências e cobranças a que eles estão submetidos se referem

ao estudo, à escola e ao que é esperado de um militante do MST. Uma dessas exigências

apareceu como a segunda exigência no primeiro grupo e a primeira exigência no

segundo: “a responsabilidade da comunicação oral” e “exercitar a comunicação e a

expressão”, mais do que uma exigência, constituem um desafio a superar.

Segundo Muldworf (2000), “o militantismo tradicional consiste em buscar

convencer pelas ideias, pelas trocas, pelo diálogo, pelo discurso, pela pertinência de um

argumento ou de uma causa.” ( p.120) Por isto, o militante deve saber se comunicar

bem, para passar suas ideais e convencer os demais. No caso dos militantes do MST,

“saber se comunicar” é não somente uma exigência ou uma característica do bom

militante, mas também mais um dos desafios que ele deve enfrentar, pois, como diz

Narita (2000):

A inteligência do homem no campo envolve um sistema de operações

diferenciado do padrão lógico-formal próprio do homem da cidade, com escolaridade. A inteligência é uma inteligência empírica,

concreta, e não uma inteligência abstrata, formal. É uma inteligência

que atende às necessidades solicitadas no seu dia-a-dia, nos trabalhos que realiza. No entanto, encontra limitações quando confrontado com

uma inteligência técnico-institucional. Há um limite na comunicação,

devido à desigualdade de condições. E assim, pode-se perceber formas de domínio pelo poder, através de um saber que o homem não

escolarizado e institucionalizado não detém. É dominado pela falta de

domínio: da linguagem, das informações, dos comportamentos

padrões; é dominado através de um conhecimento científico que seu habitus de classe não lhe dá acesso.(p.886)

Convém lembrar que os jovens que participaram desta pesquisa, em algum

momento, não tiveram acesso à escola, pois, com idades que variavam de 17 a 31 anos

no início da pesquisa, estavam cursando o Ensino Médio juntamente com a formação

técnica em agroecologia. O curso que estavam fazendo representa também o resgate do

direito de estudar. O que deveria ser visto como direito é visto por eles como um

“privilégio” conquistado com muita luta, e eles não podem decepcionar a esperança que

neles foi depositada. Por isto, o “compromisso com o estudo” é uma exigência interna e

externa.

Em uma sociedade em o que predomina é a “cultura do narcisismo” e dos

“ideais particularistas de consumo” que atuam diretamente sobre o eu ideal dos sujeitos,

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provocando no sujeito a ilusão de que se possuir determinados produtos nada lhe faltará

− até o lançamento de um novo produto, que virá antes que esse sujeito descubra que

nada preenche a falta – o MST oferece outra possibilidade de articulação do sujeito à

cultura, constituída por ideais coletivos e um referencial ético que atua diretamente no

ideal do eu dos sujeitos e que exige o compromisso do sujeito com o coletivo. Uma

coisa é estudar para ter um emprego, dinheiro e sucesso, e outra é o compromisso ético

de estudar para aprender e poder “compartilhar os conhecimentos teóricos e práticos na

base e na sociedade”.

2.5- Identidade e identificações

“ A partir do momento em que entra para o movimento

já está batizado de sem-terra”.

( Militante do curso de agroecologia)

A adesão ao MST como militante ou integrante do movimento vem

acompanhada de uma nova identidade, a identidade de sem-terra. Existem inúmeros

trabalhos sobre a identidade de sem-terra, mas a intenção aqui não é resgatá-los, nem

aprofundar-nos na discussão teórica sobre o tema; o objetivo é pensar a identidade de

sem-terra a partir do ponto de vista da Psicanálise. Neste sentido, a questão orientadora

será: “Quais as possíveis implicações e dilemas que a identidade de sem-terra traz pode

trazer para o sujeito que adere ao MST?”.

Quando um militante diz: “Quando você entra para o movimento, já está

batizado de sem-terra, o que ele quer dizer com esta afirmação? Sem entrar no sentido

religioso do termo, ser batizado é ser nomeado. Quando um sujeito entra para o MST,

mesmo que ele não aceite a identidade de sem-terra, a sociedade, de uma forma geral,

passará a lhe atribuir esta identidade. São os olhos dos outros que dizem quem somos

nós, embora também seja possível não aceitar a identidade que os outros nos atribuem.

Com o MST não foi diferente, a denominação sem-terra, segundo Fernandes e

Stédile (1999), surgiu primeiro na impressa. Antes de o MST se constituir como

movimento nacional, quando germinavam as primeiras lutas no Sul do País, foi a mídia

que passou a designar como sem-terra aqueles camponeses que perderam a terra ou o

trabalho no campo e passaram a lutar pelo direito à terra. Esta denominação logo foi

adotada pelo MST, que certamente viu nela a possibilidade de unificar as diferentes

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identidades (agricultor, arrendatário, posseiro, boia-fria, etc.) daqueles que vieram a

constituir o movimento.

Embora, como já foi dito no primeiro capítulo, a imagem divulgada na mídia

sobre o MST tenha quase sempre conotação negativa, pois associa o movimento ao

atraso, ao crime, ao vandalismo, ela tornou o MST conhecido e deu visibilidade a seus

integrantes. Como diz Lerrer (2008),

Mesmo abordando conflitos, dando versões muitas vezes negativas

para as ações do MST, “aparecer na TV” conferia importância a esses pobres do campo que empunhavam uma bandeira vermelha,

estimulando outros, que se viam nas mesmas condições, a integrar

suas fileiras. (p.82)

A visibilidade possibilitada pela televisão às ações do MST tornou o movimento

conhecido e fez com que muitos se reconhecessem naqueles sem-terra que apareciam na

TV, pois, como diz Bucci (citado por CHAUÍ, 2004), “o Brasil se conhece e se

reconhece pela televisão”(p.12). Mesmo que em um primeiro momento a imagem

negativa veiculada pela televisão tenha sido aceita sem crítica, ao aproximar-se do

movimento esta imagem pode ser mudada e aqueles que tinham uma imagem negativa

do movimento podem “tornar-se” também sem-terra.

Não obstante, o fato de ser integrante do MST e ser visto como um sem-terra

não faz que, necessariamente, o sujeito se perceba como parte do movimento.

Geralmente, os líderes, dirigentes e militantes do MST se identificam assim, porém os

demais integrantes do movimento nem sempre o fazem, como mostraram as pesquisas

de Narita (2000), Silva (2002), e como também pude observar em uma pesquisa anterior

(DOMINGUES, 2001). Não é raro que líderes, dirigentes e militantes do MST sejam

vistos pelos integrantes que compõem a base do movimento como “eles, os sem-terra”,

ou que um ex-militante diga que saiu do MST quando deixou de militar, mesmo que

continue vivendo e trabalhando em algum assentamento ligado ao movimento. Também

existem aqueles que passam a levar a denominação de sem-terra quase como um

sobrenome, como Milton (citado por RODRIGUES, 2006), que diz: “Faço questão de

ser conhecido como Milton Sem-Terra” (p.72).

O nome singulariza o sujeito, enquanto o sobrenome marca a pertença a um

grupo familiar. Milton é sujeito singular, diferente de qualquer outro, e ao mesmo

tempo faz parte de movimento social e quer ser identificado também por esta pertença,

que marca sua condição comum com a de outros sujeitos. Semelhantemente a Milton,

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Mateus, no primeiro encontro da pesquisa-intervenção, apresentou-se como: “Mateus,

21 anos, 5 de MST”. Ao acrescentar à sua apresentação pessoal o tempo em que está no

movimento, Mateus marca sua identidade e o sentimento de pertença ao MST. Embora

Mateus tenha sido o único a se apresentar desta forma, no decorrer do encontro a

discussão sobre o que é pertença emergiu no grupo.

Segundo Tarini (2007), “no MST usam-se camisetas, bonés, bandeiras e botons,

todos vermelhos, com um desenho do mapa do Brasil em verde, uma mulher e um

homem empunhando um facão, significando a luta da qual os Sem Terras sentem-se

pertencentes;” (...) (p.42). No entanto, os jovens militantes que participaram de sua

pesquisa81

não usavam o boné e a camiseta do MST fora do assentamento e quando

estavam sozinhos, embora eles tivessem dito que o sentimento de pertença é a primeira

característica que define o militante do MST.

Usar a camiseta e o boné do MST é ou não sinal de pertença? Em quais

situações os jovens militantes usam ou não usam estes símbolos do movimento? Estas

questões emergiram na pesquisa-intervenção quando os militantes discutiam quais as

exigências a que estavam submetidos e um deles levantou a questão da pertença como

uma destas exigências; a partir daí as exigências foram postas de lado e iniciou-se uma

discussão sobre o que é pertença ao MST e sobre o uso da camiseta do movimento.

Edmilson disse que logo que entrou no movimento fazia questão de usar a camiseta do

MST, para dizer para os outros: “sou do MST mesmo”; porém agora diz não sentir mais

esta necessidade. Giseli fala que muitas vezes é difícil usar a camiseta do MST,

principalmente se não estão em grupo, porque são alvos fáceis; e relata uma situação em

foi para uma manifestação e ela e uma outra pessoa tiraram o boné e a camiseta do MST

para ir a uma venda, temendo que a polícia os prendesse. Giseli diz que é mais fácil

usar a imagem do Che, pela qual eles se identificam, porque os de fora podem pensar

que é “uma banda de rock” e não identificam o MST. Adilson narra um episódio em que

disse que não era do MST porque “tem amor à vida”. Todos os participantes do grupo

parecem concordar que usar os símbolos do MST não é o que dá o sentimento de

pertença, nem dizer que é do MST a qualquer custo.

Apesar disso, “a identidade é marcada por meio de símbolos (...). Existe uma

associação entre a identidade da pessoa e as coisas que ela usa” (WOODWARD, 2007,

p.9-10). O MST constantemente aparece na mídia associado ao crime, à violência, ao

vandalismo. Assim, não é fácil usar seus símbolos em toda e qualquer situação e ser 81 As condições de produção de discursos de identidade: um estudo sobre jovens militantes do MST.

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associado a esta imagem negativa; Mas mesmo não sendo fácil usar os símbolos do

movimento, ostentar uma identidade é uma forma de fazer-se visível. Segundo Hassoum

(1996),

A identidade remete a um conjunto de imagens externas ou internas

que fazem, por exemplo, que um indivíduo possa dar a ver e a escutar,

sem descontinuidade, a aparência de seu particularismo. A identificação é muito mais singular. O sujeito se identifica com

algumas referencias que faz suas, sem necessidade de nenhuma

ostentação. Este processo é o que chamamos simbolização. (Neste sentido a dimensão imaginária da identidade não lhe é alheia.) É

chamativo como quando se diz a alguém: „Não sois nada, a cultura

que herdaste não é nada e estás reduzido (ou eu te reduzo) a nada‟, o

sujeito se sente condenado imediatamente a exibir seus emblemas imaginários. (nota, p.92-3)

82

Hassoum (1996) marca a diferença existente entre identidade e identificação.

Enquanto a identidade é uma representação imaginária de si mesmo como unidade, a

identificação diz respeito à internalização de referenciais externos que modificam o

sujeito e se tornam uma parte dele. A atitude inicial de Edmilson de usar a camiseta do

MST para dizer “Sou do MST mesmo” pode ser interpretada como uma necessidade de

fazer-se visível, de ostentar sua identidade; com o passar do tempo e a internalização de

referenciais, já não sente a necessidade de exibir sua identidade. Neste caso, é possível

entender que os referenciais em jogo são os ideais do MST e que há uma interação

dinâmica entre identidade e identificações. Segundo Lago (citada por RODRIGUES,

2006),

A identidade como representação ficcional do eu, elaboração do

registro imaginário, procura justamente dar conta das contradições do sujeito, organizando-as numa história coerente, unitária, através da

qual ele se referencia, como portador de um passado, relacionado ao

presente e as expectativas de futuro. Identidade não é algo acabado, com peso constituinte, mas, enfatizamos, uma construção imaginária,

em permanente processo de significação, de reelaboração, de

investimento em novas identificações e novas significações. (p.67)

A identidade não é algo fixo e acabado, mas algo que está em movimento, sendo

constantemente alimentado pelas novas identificações. Quando se trata de uma

identidade coletiva − como é a identidade de sem-terra – concorda-se com Souza (1994)

quando ele diz que a identidade coletiva significa mais o “traço constitutivo de um ideal

82 Tradução nossa.

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do eu” do que uma ilusão de unidade de si mesmo. No mesmo sentido que o de Souza,

Muldworf (2000), já citado no segundo capítulo da segunda parte, diz que o ideal é a

coluna vertebral da identidade militante. No que diz respeito à identidade de sem-terra,

segundo os autores citados, é possível dizer que são os ideais sustentados pelo MST a

sua coluna vertebral.

O ideal do eu é a instância psíquica do sujeito que acolhe e interage com os

ideais sociais, instância formada também a partir da identificação com os pais e demais

modelos que vêm se agregar a eles. No capítulo sobre a Utopia e os ideais coletivos

foram apresentados três tipos de identificação, segundo Freud (1921). O primeiro tipo é

a identificação que é mais primitiva e que, segundo Souza (1994), foi pouco teorizada

por Freud; o segundo é o daquela em que o objeto ou um traço dele é introjetado no eu;

e o terceiro tem como base algo comum. A modalidade de identificação que está na

origem do ideal do eu é a segunda, que, assim como a terceira − que faz com que os

sujeitos façam laços entre si−, continua atuando ao longo da vida do sujeito. Neste

sentido, a diferenciação que Enriquez (1999) propõe entre identificação e substituição é

bastante esclarecedora:

Existe uma (ou muitas) identificação quando o objeto (desaparecido

ou se mantendo) se torna parte integrante do ego; por outro lado,

trata-se de uma substituição quando o objeto é posto no lugar do que constitui o ideal do ego. Assim, através da introjeção, a identificação

com os pais permite ao sujeito assimilar propriedades e atributos dos

mesmos e se transformar conforme o modelo que eles propõem,

independentemente de suas presenças ou ausências na realidade. O ego se torna, então, o produto do conjunto de identificações passadas.

A situação de substituição, ao contrário, é percebida quando aquilo

que era para nós um ideal se localiza num objeto presente que vem, no interior de nós mesmos, representar completamente e sem crítica esse

ideal. (p.68)

Na substituição, o objeto, que pode ser ideais sociais, outro sujeito que sirva

como modelo, etc., vem ocupar o lugar do ideal do eu do sujeito, enquanto na

identificação o sujeito se enriquece com os atributos do objeto que são internalizados e

passam a constituir uma parte de si. Não obstante, como nos lembra Zizek (1992), o

sujeito nem sempre se identifica com um atributo positivo, ele também pode se

identificar com um atributo oculto e/ou negativo. A identificação contribui para a

construção de uma imagem positiva ou negativa de si que faz parte da identidade.

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Até agora enfatizou-se a dimensão negativa da identidade de sem-terra, a qual

foi construída principalmente pela mídia; mas cabe abordar também sua dimensão

positiva. Convém esclarecer que as dimensões negativa e positiva da identidade de sem-

terra dizem respeito, principalmente, ao modo como o integrante do MST é visto pelos

outros, o que é diferente da identificação do sujeito com atributos positivos ou

negativos. As dimensões negativa e positiva da identidade de sem-terra afetam o sujeito

que integra o MST, pois, como diz Narita (2000), “a condição sem-terra traz consigo

uma identidade que ao mesmo tempo que fortalece o indivíduo em determinado meio, o

enfraquece em outro”(p.861); e mesmo que o integrante do MST não se veja como sem-

terra, a sociedade de uma forma geral lhe atribuirá esta identidade. As situações vividas

e relatadas por Márcio no penúltimo encontro da pesquisa-intervenção são bastante

representativas de como a identidade de sem-terra pode ser negativa e enfraquecer o

sujeito em um contexto e ser positiva e fortalecê-lo em outro.

A primeira situação vivida e relatada por Márcio foi a de ter sido proibido de

entrar em um festival de cultura com a camiseta do MST: “... o porteiro me disse que lá

havia fazendeiros e eles poderiam não gostar”. Para Márcio, as pessoas que

participavam daquele festival não iriam se importar com sua camiseta, mas ele acabou

tirando a camiseta do MST e colocando uma camiseta do festival, para poder entrar. A

segunda situação foi um show de rap, em que o rapper lhe ofereceu 50 reais por sua

camiseta, oferta que Márcio não aceitou, pois segundo ele “aquela era sua única

camiseta do MST”. A terceira e última situação foi uma festa à fantasia, em que Márcio

foi com a camiseta do MST e alguém lhe disse que era “legal sua fantasia”, comentário

ao qual ele respondeu que “não era fantasia, que ele era sem-terra mesmo”.

Estas três situações relatadas por Márcio mostram as dimensões negativa e

positiva da identidade de sem-terra: na primeira situação, a dimensão negativa e/ou de

afronta; nas demais situações, a dimensão positiva relacionada ao MST e ao ser sem-

terra, pois, se só existissem aspectos negativos, dificilmente os sujeitos iriam aderir a

ela. Aparentemente, Márcio lida bem com todas estas situações e até brinca de

“fantasiar-se de si mesmo”, mas para outros sujeitos, principalmente para as crianças

que fazem parte do MST, a identidade de sem-terra também pode ser motivo de

discriminação e humilhação83

.

Márcio e Giseli relatam situações em que tiraram a camiseta do MST – ele, por

ter sido solicitado a fazê-lo, ela, por medo, e ambos, para entrar em algum lugar onde 83 Esta questão é abordada no último capítulo.

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supostamente os sem-terra não seriam bem-vindos. Tal ato não afeta seus sentimentos

de pertença, apenas mostra situações em que não puderam ou não quiseram ostentar sua

identidade de sem-terra. Situações diferentes são as marchas, manifestações e encontros

em que os sujeitos estão em grupos e em que um dos objetivos é justamente dar

visibilidade à identidade de sem-terra, à causa e às reivindicações do MST. Nestas

situações entram em cena outros símbolos do MST, além do boné e da camiseta

vermelha: as músicas, as palavras de ordem, a bandeira e o hino.

O MST tem uma bandeira e um hino, como um país, e, tal como um país,

emprega tais símbolos para construir certa identidade nacional de sem-terra em meio às

diferenças, e tal como um país, também está sujeito aos movimentos separatistas em

seu interior. Destes movimentos separatistas já surgiram muitos outros movimentos,

embora o MST venha mantendo sua unidade; porém, como nos diz Bauman (2005), a

identidade nacional é uma espécie de ficção, e para que ela se transforme em realidade é

necessário haver “muita coerção e convencimento”.

Para Bauman (2005), a investigação de qualquer identidade no campo social

demanda a consideração de dois aspectos que lhe são inerentes: a opressão e a

libertação. Uma identidade é opressiva quando ela é imposta, estigmatiza, humilha e

desumaniza o sujeito; também quando ela, mesmo que “escolhida”, cristaliza-se em um

pensamento único que nega ou submete a ela todas as outras pertenças do sujeito, tal

como acontece nos fundamentalismos religiosos. Uma identidade é libertadora quando

representa “um grito de guerra usado em uma luta defensiva” de um grupo mais fraco

que se vê ameaçado por outro mais forte, quando “é uma luta simultânea contra a

dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa

em ser devorado”(BAUMAN, 2005, p. 83-4). Estes dois aspectos, embora

contraditórios, podem vir juntos; a “libertação” de uma opressão pode levar a uma

opressão diferente.

A identidade de sem-terra, como qualquer outra identidade coletiva, traz em si

estas duas possibilidades: a da libertação e a da opressão. Se pensarmos na sua

construção em meio à luta dos expulsos e expropriados da terra por nela permanecer e

para ter uma identidade, pois a que tinham estava sendo perdida (agricultor,

arrendatário, posseiro, boia-fria, etc.), a identidade de sem-terra representou libertação,

uma nova possibilidade para o sujeito ser e estar no mundo, de fazer laço com outros

sujeitos e de se reconhecer e ser reconhecido no seu semelhante; mas não se pode

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esquecer que a identidade de sem-terra também pode ser opressiva e alienante se ela

cristaliza-se e se impõe como a única identidade possível ao sujeito que integra o MST.

CAPÍTULO 3: A HUMILHAÇÃO SOCIAL E A LUTA POR RECONHECIMENTO84

“A revolta nasce do espetáculo da desrazão, diante de uma

condição injusta e incompreensível”. (CAMUS, 1951, p.23)85

Humilhação social x luta por reconhecimento não é propriamente um dilema

enfrentado pelos militantes do MST, pelo menos não depois que eles aderiram ao MST

que luta também por reconhecimento. Isto quer dizer que os militantes já fizeram a

“escolha” pela luta por reconhecimento, embora não deixem de ser marcados, afetados,

e sofram com a humilhação social. A humilhação social continua gerando dor que

precisa ser cotidianamente transformada em luta. É isto que é abordado na sequência,

partindo-se do sentido etimológico da humilhação, passando-se pela psicanálise,

apresentando-se relatos de humilhação e chegando-se ao contraponto da humilhação

social: a revolta e a luta por reconhecimento jurídico e social.

3.1- A humilhação social e a luta por reconhecimento

Sobre a etimologia da palavra humilhação, uma referência encontrada traz a

origem latina do termo e outra a grega. Cancelli (2005) apresenta a origem latina,

explorando o sentido da palavra humilde que possui o mesmo radical que humilhação.

Ser humilde implica o reconhecimento das próprias limitações e fraquezas; já ser

humilhado significa rebaixar-se, sujeitar-se, deixar-se submeter a alguém. O radical é

comum, mas enquanto a humildade representa uma virtude, a humilhação tem uma

conotação pejorativa, e tanto uma como a outra se definem em relação ao outro. O

aspecto relacional da humilhação também compõe o sentido grego do termo,

apresentado por Azevedo (2005):

Pela via do grego, a ação de humilhar, a humilh-ação se bifurca entre

práxis (prática) e páthos (sofrer). Essa bifurcação é iluminadora. Se por um lado, a humilhação é uma conjugação entre práxis e páthos,

84 A luta por reconhecimento é um termo proposto por Honneth (2009). 85 Tradução nossa, desta e todas citações de Camus (1951).

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por outro vemos que o foco semântico recai sobre a instância do que

sofre, sobre o páthos e o patológico. Com o termo humilhação temos

em mente aquele que sofre, temos a dimensão do páthos.(p.50)

Ainda seguindo a etimologia da palavra, Azevedo (2005) diz que humilhação

também significa “rebaixamento” e “queda”, sentidos que também podemos atribuir à

humilhação pensada a partir da Psicanálise. Tendo-se como referência o pensamento

lacaniano, é possível dizer que “na humilhação (...) um outro se reveste de Outro e

anuncia um saber absoluto sobre o humilhado” (AZEVEDO, 2005, p.51), de que ele não

é nada, rebaixa o sujeito à condição de “objeto-dejeto”.

A humilhação social acontece sempre em uma situação de desigualdade, em que

um primeiro rebaixa, deprecia, desrespeita, fere a autoestima do segundo e o trata como

subalterno, sem que haja reciprocidade. Segundo Ansart (2005), a ausência de

reciprocidade é fundamental para caracterizar a situação de humilhação social, assim

como o sofrimento daquele que é vítima - um sofrimento que atinge o íntimo do

sujeito, afeta o seu autoconceito, a sua autoestima e a sua dignidade humana e que não

é digerido nem compreendido pelo humilhado.

Ser humilhado é ser atacado em sua interioridade, ferido em seu amor

próprio, desvalorizado em sua auto-imagem, é não ser respeitado. O

humilhado se vê e se sente diminuído, espoliado em sua autonomia, na impossibilidade de elaborar uma resposta, atingido em orgulho e

identidade, dilacerado entre a imagem que faz de si e a imagem

desvalorizada ou difamante que os outros lhe infligem. (ANSART, 2005, p.15)

Freud (1930) diz que o sofrimento nos ameaça em três direções: do nosso

próprio corpo, do mundo exterior e das relações humanas, sendo o último o mais

implacável e doloroso. O sofrimento gerado pela humilhação social pode ser entendido

como um sofrimento deste tipo, porém, para caracterizar-se a situação de humilhação,

deve-se ainda considerar que a relação que a produz é sempre uma relação de

desigualdade, em que um sujeito “revestido de Outro” agride alguém sem que haja

reciprocidade. Para quem vivencia a humilhação, esta situação pode ser considerada

traumática.

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Segundo Rouanet (2006), Freud afirma, em seus Estudos sobre a histeria, que a

humilhação (Kräkung, em alemão) é uma variante do trauma86

psíquico. Um mesmo

acontecimento pode ser traumático para um sujeito e não o ser para outro, o que

significa que o trauma está relacionado ao estado de impotência de determinado sujeito

em lidar com uma situação; porém existem catástrofes e acontecimentos sociais - como,

por exemplo, as guerras - que, devido à sua intensidade, afetam a todos. Todos que

vivem uma guerra se sentem, em alguma medida, impotentes para lidar com ela, pois as

repercussões de uma situação traumática de tal intensidade podem até mesmo atingir as

futuras gerações. (KAUFMANN, 1996)

Para Gonçalves Filho (2004), a humilhação social atinge de tal forma

determinados grupos e classes que pode ser considerada como traumática. O autor

resgata a história do Brasil e lembra a humilhação sofrida pelos escravos. Juntamente

com o golpe físico, o escravo recebia o golpe moral, uma mensagem de rebaixamento,

de negação da sua dignidade humana. Se a libertação dos escravos pode ter posto fim ao

golpe físico, o mesmo não pode ser dito sobre o golpe moral, que passou a ter como

alvo os descendentes dos escravos e também aqueles que executavam e/ou executam

trabalhos subalternos em geral, antes atribuídos aos escravos.

A humilhação social não marca apenas este ou aquele sujeito mais susceptível,

mas atinge, de alguma forma, todos os integrantes de determinados grupos ou classes

que vivem a realidade da dominação e recebem cotidianamente uma mensagem

enigmática de rebaixamento moral que eles não conseguem traduzir. Tal mensagem

pode vir a qualquer tempo e de qualquer um, por isto o sujeito que sofre humilhação

fica em um estado de expectativa, na angústia de esperar pelo “golpe”, mesmo em

situações que supostamente não deveriam produzir tal afeto.

Rebaixamento, situação traumática que gera sofrimento e angústia, negação da

própria condição de sujeito - assim é que o sujeito humilhado vivencia a situação de

humilhação social, que também pode ser entendida como violência. Se pensarmos que

a violência é “(...) toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa,

que viola interna ou externamente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de

profunda desigualdade econômica, social e cultural,” (CHAUÍ, 1998, p.38)87

, a

humilhação pode ser entendida como uma de suas formas.

86 Trauma é um acontecimento que, por sua intensidade e pela incapacidade do sujeito de reagir

adequadamente a ele, provoca efeitos patogênicos na organização psíquica (LAPLANCHE;

PONTALIS,1992). 87 Tradução nossa.

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A ideia de pensar a humilhação social como uma forma de violência (que não

implica a negação dos sentidos apresentados anteriormente, ao contrário, vem se somar

a eles) surgiu nos encontros com os grupos de jovens militantes, especificamente nos

encontros que tiveram como tema violência e luto. Foram os próprios militantes que

disseram que a humilhação social é uma forma de violência. Na sequência são

transcritos trechos destes encontros, permeados com comentários e análises.

A proposta para o encontro sobre violência e luto era o trabalho, com três

questões: “O que te deixa triste?”; “O que é violento?”; “Em quais situações sentiu

violência contra você?”. Como relatado no capítulo sobre a metodologia da pesquisa, o

trabalho com um dos grupos (grupo 1) foi até a segunda questão. Vejamos como

transcorreu o encontro com o grupo 1. As respostas88

à questão “O que te deixa triste?”

foram: “Me dedicar a algo e não conseguir”; “Passar datas importantes longe da

família”; “Levar „coice‟ logo de manhã”; “Planejar alguma coisa e não dar certo”; “Não

conseguir pedir desculpas a um amigo”; “Ser interrompido, não ser ouvido”; “ Por mais

que me esforce, por mais que faço, não tenho valor”; “ Falta de sinceridade”; “Doença

dos pais e não estar lá para ajudar”; “ Ver o pai com câncer e não ter o que fazer. Fico

triste quando não posso fazer nada” ;“Ligar a TV e assistir o jornal, o sequestro das

meninas (sequestro que ficou conhecido como caso Eloá). O jornal mostra só o que

acontece de ruim”; “Me esforçar para fazer uma atividade e as pessoas não me darem

valor”; “Família, é o que mais apavora”; Diante de respostas variadas à pergunta “O que

te deixa triste?”, foi possível identificar alguns pontos em comum: a tristeza que é fruto

das relações humanas, a doença de um ente querido, o sentimento de impotência e o não

reconhecimento; mas ainda nenhuma referência à humilhação social, ela começa a

aparecer quando pergunto: “O que é violento?”.

As primeiras respostas à pergunta “O que é violento?” foram: “Roubar e matar”;

“Esquartejar”; “Casos violentos vêm da crise social”; “Violência existe em todos os

meios”; “Caso Isabela” (menina que foi atirada pela janela do apartamento do pai em

2009, em São Paulo, em que os condenados pelo crime foram o pai e a madrasta)”;

“Violência pode ser verbal”; “Não dá para saber se um caso é mais violento que

outro.“Violência contra os trabalhadores”. “Índio Galdino” (índio Pataxó que foi

queimado por jovens enquanto dormia em um ponto de ônibus, em 1997, em Brasília);

“Massacre de Eldorado dos Carajás” (19 sem-terra foram assassinados pelo polícia

88 As respostas foram anotadas durante o encontro, sem os nomes dos seus autores, e são relatadas na

ordem em que foram ditas.

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militar, em 1996, em Carajás - PA). As primeiras respostas que aparecerem são

referentes à violência física que termina em morte, mas logo no início do encontro

alguém lembrou que “a violência vem da crise social” e que ela pode ser “verbal”, pois

as palavras também ferem. Em seguida são lembrados o assassinato do índio Galdino,

que foi morto no Dia do Índio, e o Massacre de Eldorado dos Carajás, este referente a

trabalhadores sem terra. A violência da humilhação social vem na sequência do

encontro, quando alguém diz que o que é violento é “a desigualdade, a humilhação pela

classe social”. A partir daí, a desigualdade e a humilhação vêm à tona em dizeres que

remetem a uma diversidade de cenas: “Governo e a força policial que matam as pessoas

na favela”; “Catadores de lixo”; “A agressão mais grave é a moral”; “a agressão moral é

a humilhação, discriminação, a pessoa não ser ninguém”; “Violência do olhar”; “Povo

pobre contra povo pobre, boias-frias que apontam os sem-terra na rua dizendo:„olha lá

os sem-terra‟”.

O que nos dizem estas cenas de humilhação social e por que elas foram

lembradas em resposta à questão “O que é violento?”. Primeiramente, que estes jovens

sentiram e sentem na pele a violência da humilhação social que pode atingi-los a

qualquer momento e em qualquer lugar e deixa marcas profundas; depois, que este

sentimento não vem sozinho, vem acompanhado da percepção da existência de uma

relação de desigualdade: “a humilhação pela classe social”; “governo e a força policial

que matam as pessoas na favela”. A polícia não vai para os bairros dos ricos matar seus

habitantes, ela vai para as favelas, onde habitam aqueles que, por serem pobres, são

vistos como criminosos, e aos quais são destinados os trabalhos subalternos, como o

trabalho dos catadores de lixo. Os garis, ao se ocuparem do lixo, dos dejetos da

sociedade humana, são vistos também como subalternos e têm rebaixada a sua condição

humana. Os militantes do MST são sensíveis a esta situação e veem aqueles que para

muitos são invisíveis se reconhecerem nos que são também humilhados.

A invisibilidade pública como forma de humilhação social foi o tema do livro

de Costa (2004), que acompanhou durante 9 anos um grupo de garis, enquanto estes

trabalhavam na Cidade Universitária de São Paulo. Costa não só acompanhou, mas

também executou as tarefas dos garis e pôde sentir na pele também um pouco do que

eles sentem: a invisibilidade pública, ou seja, não ser visto enquanto sujeito no

desempenho de seu trabalho, ser ignorado, tornar-se invisível para outros humanos. Ao

vestir o uniforme de gari, Costa não foi reconhecido no bloco de Psicologia onde

estudava e era conhecido por todos. Os que o conheciam sem o uniforme de gari não

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foram capazes de reconhecê-lo usando o uniforme. Ele sentiu angústia diante desta

situação e se tornou, por um momento, igual àqueles que não são vistos. O uso do

uniforme iguala todos os garis e contribui para o desparecimento de cada um enquanto

sujeito diante dos olhos daqueles que não portam o mesmo uniforme e pertencem a

outra classe social. Segundo Costa,

A cegueira de gente que não vê gente é traumática, causa angústia. A cegueira de gente que não vê gente dispara humilhação. A humilhação

pode ser determinada como cegueira pública, pode ser determinada

segundo a experiência de não aparecer como gente estando no meio de gente. ( p.132)

A situação dos catadores de lixo pode ser vista como uma situação emblemática

da humilhação social, pois aqueles que ocupam dos dejetos são também vistos como

dejetos. Se eles são lembrados pelos jovens militantes do MST como sujeitos que

sofrem com a violência, é porque estes militantes são sensíveis não somente à violência

que diz respeito ao seu grupo, mas também à que atinge outros grupos oprimidos: a

violência da humilhação social, da desigualdade, da exclusão, do olhar, que não aparece

na televisão e nas manchetes dos jornais, embora estas também não sejam esquecidas.

Eles se reconhecem nos outros oprimidos, os quais nem sempre se reconhecem neles,

como os boias-frias, que apontam os sem-terra na rua, e entendem este não

reconhecimento como uma forma de violência: “povo pobre contra povo pobre”.

Passemos agora ao encontro sobre violência e luto realizado com o grupo 2. As

mesmas questões foram propostas: “O que te deixa triste?”; “O que é violento?”; e uma

terceira: “Em quais situações vocês sentiram violência contra vocês?”. Tal como no

primeiro grupo, as respostas à primeira questão foram variadas: “Muito esforço e pouco

resultado”; “Ver a morte de um companheiro”; “Inimizade, brigas”; “Doença em

pessoas da família”; “Brigas”; “Perda de um companheiro, dá a vida e tem pouco

retorno”; “Doença na família”; “Não conseguir fazer um trabalho”; “Coisas negativas”;

“Abandono, falta de compreensão”; “Companheiro com medo”. “Brigada isolada, MST

não tem pernas para chegar lá”. “Quando não é valorizado em estudo, trabalho”.

“Doença ao redor, tristeza maior é a morte, no movimento marca muito a gente”;

“Pobreza, ver alguém passando fome, criança”. “ Burocracia, tem que passar por

instâncias para fazer alguma coisa no MST”. “Problemas na família, saúde.” “Não ser

reconhecido”. “O que o me deixa triste é que o pai não me deu um pedacinho de terra

para fazer um experimento do curso.” Tal como no grupo 1, foi possível identificar os

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mesmos pontos em comum: a tristeza que é fruto das relações humanas, a doença de um

ente querido, o sentimento de impotência e o não reconhecimento. Neste grupo,

diferente do primeiro, a morte de um dirigente local do MST89

, assassinado pouco mais

6 meses antes do encontro, apareceu nas seguintes falas: Me deixa triste “ ver a morte

de um companheiro”. “Perda de um companheiro, dá a vida e tem pouco retorno”.

“Companheiro com medo.” “Tristeza maior é a morte, no movimento marca muito a

gente”.

As respostas à segunda questão, “O que é violento?”, foram: “ Uma palavra, ser

agredida verbalmente. O que é agressão para um não é para outro”; “É violento quanto o

próprio MST retira uma família de um acampamento ou assentamento”; “Forma que se

expressa, que só pensa em si, não pensa no outro”; “Experiências transgênicas, é uma

violência contra a humanidade”; “Violência física e verbal”; “Violência sexual e

doméstica.”; “Prostituição”; “Machismo”; “Violência verbal”; “ Crescer em cima do

erro do outro”; “Acesso negado à saúde”; “Violência física vem a partir da verbal”.

Entre as diferentes formas de violência, a mais citada foi a violência verbal. Será que

esta foi o tipo de violência que eles mais de perto sentiram? As respostas à terceira

questão – “Em quais situações vocês sentiram violência contra vocês? − indicam que

sim. Transcrevo-as na sequência.

“Ronaldo relata uma situação em que andava sem camisa pela praia e um

homem o chamou de macaco”; “Você entra no mercado, já entra aquele peso. Ficam

vigiando”; “Fábio fala sobre entrar em certos lugares com a camiseta o boné do MST.

Relata uma situação em que entrou no banco e todo mundo ficou olhando, estava sujo e

de chapéu de palha, porque estava trabalhando.”; “Jeferson traz relatos da infância, na

escola. Conta que os colegas tiravam saro dele e da prima, que eram os únicos sem-terra

na naquela escola. Um colega ficava falando para os outros que se eles tivessem três

palmos de terra que ele e a prima iriam invadir, e todos riam”; “Ana fala da biblioteca

que não emprestava livros para eles (sem-terra) porque eles sujavam. Na praça, não se

sentia à vontade.”; “Mercado que sempre vigia quando eles entram.”; “Ana conta que

em Arapongas os filhos de sem-terra ficavam em salas separadas. Relata lembranças de

sua infância, da separação das salas de aula por nota: quem tinha as melhores notas

89Um dos integrantes deste grupo morava no mesmo acampamento que dirigente assassinado. Após o

assassinato do dirigente, os acampados continuaram sofrendo com a violência. Pouco antes do encontro,

eles foram expulsos, em uma ação que eles denominam “despejo clandestino” que é a expulsão que não é

feita pela polícia e sim por jagunços contratados pelo fazendeiro. Nas palavras de Ana, o “despejo

clandestino” é que é violento, o despejo feito pela polícia, eles já estão acostumados.

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ficavam na sala „A‟, eram os ricos.” “Fábio conta que precisou abrir uma conta para

receber uma bolsa de estudos do curso de agroecologia e que teve de responder a muitas

questões no banco. Questões estas sem nenhuma relação com as informações

necessárias para abrir uma conta bancária”.

Nos relatos, a violência verbal, às palavras que ferem vem se somar a violência

do olhar. O pobre é visto como “potencialmente” criminoso, por isto é vigiado. Se está

desempenhando uma função subalterna, como os garis, quando identificado com a

função passa por invisível; mas não é invisível quando entra no mercado, no banco,

quando passeia na praia ou na praça. O pobre não se sente à vontade nestes ambientes,

pois, como diz Gonçalves Filho (1998), estes ambientes têm o poder de segregar e

sempre atualizar a desigualdade de classe.

Ambiente que é segregador e também atualiza a desigualdade de classe é a

escola. Na escola, a humilhação social começa bem cedo, na infância. O sentimento da

desigualdade também. A escola emprestava livros para uns, mas para outros, não, para

os sem-terra, não: “eles sujam”. Classes separadas também são destinadas a eles. Uma

escola que segrega serve de “exemplo” de conduta para aqueles que está formando e

não deve ver como problema o fato de crianças humilharem outras crianças por sua

condição de sem-terra. Não é sem razão que o MST sempre buscou intervir diretamente

na educação em todos os níveis, a começar pelas crianças. Segundo Gonçalves Filho

(2004),

A humilhação marca a personalidade por imagens e palavras ligadas a

mensagens de rebaixamento. São mensagens arremessadas em cena pública: a escola, o trabalho, a cidade. São gestos ou frases dos outros

que penetram e não abandonam o corpo e a alma do rebaixado: o

adulto e o idoso, já antes o jovem ou a criança, vão que diminuir, vão

guardar a estranha e perturbadora lembrança de quem a eles se dirigiu como quem se tenha dirigido ao inferior. (p.26-27)

O corpo marcado pela humilhação é um corpo encolhido, silenciado. A

experiência da humilhação finca-se na carne do sujeito “(...) como uma espécie de

queimadura: arde, marca-lhe o corpo como cicatriz, rouba-lhe sensibilidade” (COSTA,

2004, p.211). A mensagem enigmática de rebaixamento fere a autoestima, a percepção

de si; o sujeito não se reconhece nos olhos dos outros que o humilham, nem consegue

entender porque ele é destinatário desta mensagem. Tal mensagem “desarruma” e

“interpela” o sujeito em sua percepção e fantasia, em sua memória e linguagem, em seu

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sono e sonho; demanda elaboração psíquica e também social e política (GONÇALVES

FILHO, 2004).

Sofrimentos políticos não são enfrentados apenas psicologicamente,

uma vez que são políticos. Mas não é bastante que sofrimentos políticos sejam politicamente enfrentados, uma vez que são

sofrimentos. Digamos melhor: enfrentá-los politicamente inclui

também enfrentá-los psicologicamente. A cura da humilhação social pede remédio por dois lados. Exige a participação no governo do

trabalho e da cidade. Exige um trabalho interior, uma espécie de

digestão, um trabalho que não é apenas pensar e não é solitário; é

pensar sentindo-se em companhia de alguém que aceite pensarmos juntos”. (GONÇALVES FILHO, 2004, p.27).

Neste contexto, pergunta-se: qual será o caminho para o enfrentamento

psicológico e político da humilhação? Por onde começar? Segundo Honneth (2009),

“(...) a tensão afetiva em que o sofrimento de humilhações força o indivíduo a entrar só

pode ser dissolvida por ele na medida em que reencontra a possibilidade de ação

ativa”(p.224). Se a humilhação é social e política demanda uma ação coletiva. Por sua

vez, a ação coletiva implica o reconhecimento no e pelo outro que também sofre com a

humilhação, por aqueles com os quais podemos agir e pensar juntos, abrindo o caminho

para a elaboração psíquica.

A recusa da humilhação é fundamental neste processo de enfrentamento. O

sujeito precisa dizer “não” à humilhação, como nos diz Camus (1951) em seu livro O

homem revoltado: “O escravo, no instante em que ele diz não, ele rejeita a ordem

humilhante de seu superior e rejeita ao mesmo tempo o próprio estado de escravidão”

(p.29). Ao rejeitar a humilhação, ao revoltar-se contra uma ordem intolerável, o sujeito

impõe um limite a uma ordem opressiva e se impõe como um sujeito de direitos.

A revolta é própria do homem informado, consciente dos seus direitos.

Ela permite que o revoltado tome consciência do seu próprio valor e do quanto dizer não contribui para a afirmação de si mesmo. Mas,

apesar da revolta ser oriunda de uma decisão individual, ela

transcende o indivíduo e revela a existência de outras pessoas. Dignidade e fraternidade aparecem como valores nascidos na ação e

na experiência do homem revoltado. Na acepção de Camus, o homem

revoltado busca conservar sua dignidade e recusa a humilhação sem exigi-la para os outros. (LOPREATO, 2005, p.251)

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A revolta implica a recusa da humilhação, mas não a negação da dor que ela

causa (CAMUS, 1951). A dor continua lá, mas pela revolta, o sofrimento de alguma

forma se transforma. Segundo Narita (2000), “transformar o sofrimento em luta é

transformar aquilo que faz mal – o transtorno, a dor – em algo produtivo, construtivo,

em resistência. É uma elaboração psíquica, transformando o problema em solução, o

drama em criação.” (p.862) A transformação do sofrimento da humilhação social em

revolta, em resistência política, depende do “entorno político e cultural dos sujeitos

atingidos,” somente por meio da articulação de um movimento social que o sofrimento

pode ser transformado em resistência política (HONNETH, 2009).

Segundo Decca (2005), as revoltas, desde a Revolução Francesa, sempre tiveram

em sua origem o sentimento de humilhação. Ansart-Dourlen (2005) destaca o potencial

combativo gerado pelas reações contra a humilhação, mas adverte que é um erro

acreditar que toda humilhação pode gerar uma reação, pois há situações em que a

humilhação destrói completamente o sujeito. Situações em que, juntamente com a

humilhação moral, o sujeito também é vítima de maus-tratos físicos, tortura, violações

do seu corpo, são destruidoras - não somente pela dor e pelos danos físicos que elas

causam, mas também pelo sentimento de estar totalmente à mercê do outro, que, por seu

autoritarismo, arroga para si a posição de Outro, impondo um discurso sem abertura

para a posição do outro fora da sua determinação.

O sentimento de estar totalmente à mercê do outro que viola seu corpo sem

consentimento abala profundamente a confiança do sujeito em si e no mundo, confiança

que foi estabelecida a partir das primeiras relações afetivas e que é para o sujeito uma

primeira forma de reconhecimento. A integridade de todo ser humano depende que ele

seja reconhecido. A recusa de reconhecimento é nociva ao sujeito não somente porque é

injusta e lhe causa danos, mas também porque interfere na compreensão positiva que o

sujeito tem de si mesmo e que precisa ser constantemente confirmada na relação com os

outros. (HONNETH, 2009)

Segundo Honneth (2009), são três os padrões de reconhecimento: o

reconhecimento pelo amor, o reconhecimento jurídico e o reconhecimento social. A

cada padrão de reconhecimento corresponde um padrão de desrespeito, que ocorre

quando o sujeito tem seu reconhecimento recusado. Os maus-tratos físicos são um

padrão de desrespeito que corresponde a uma recusa do reconhecimento pelo amor. O

não acesso aos direitos de participação política e de bem-estar corresponde a uma recusa

do reconhecimento jurídico. O reconhecimento jurídico significa para o sujeito que ele

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tem o mesmo valor que os outros na sociedade. Por outro lado, se o sujeito precisa ser

“igual” aos outros, ele também precisa ser reconhecido em sua particularidade, o que

em outros tempos se chamava honra e hoje pode ser chamado de reputação, prestígio

social. A negação do reconhecimento do indivíduo por seu valor individual corresponde

à recusa do reconhecimento social. Estas duas últimas formas de reconhecimento e sua

denegação estão profundamente interligadas.

Convém lembrar que os direitos de participação política e bem-estar foram e são

conquistados a partir da luta dos que não tinham e não têm acesso a eles. Sem acesso a

direitos o sujeito não pode construir o autorrespeito, que é “(...) a possibilidade de se

referir positivamente a si mesmo (...)”(HONNETH, 2009, p.197). Os direitos só se

tornam uma questão para o sujeito de maneira negativa quando estes faltam. Por sua

vez, a relação entre a ausência de direitos e a constituição do autorrespeito não é

evidente, pois uma coisa é sentir a privação de que se é vítima, outra é perceber e

compreender sua amplitude e suas consequências psíquicas; no entanto, a percepção

desta relação pode ser facilitada quando os grupos atingidos pela privação de direitos

discutem esta questão.

No que diz respeito à estima social − o reconhecimento do sujeito por seu valor

individual, por suas características particulares −, é importante destacar que o que é

valorizado em uma determinada época e lugar é definido pela sociedade e está

indiretamente relacionado à distribuição de renda, por isto “ (...) os confrontos

econômicos pertencem constitutivamente a esta forma de luta por reconhecimento”.

(HONNETH, 2009, p. 208). A este padrão de reconhecimento e à sua recusa está ligado

o sentimento de ter mais ou menos valor na sociedade enquanto sujeito particular;ou

seja, a desvalorização ou valorização social traz consequências para a diminuição ou o

aumento da autoestima.

Para Honneth (2009), a luta social é o caminho para o restabelecimento dos

padrões de reconhecimento negados. Para Camus (1951), quando o sujeito revolta-se e

diz “não” à humilhação, está dizendo “sim” a si mesmo, e ao recusar a humilhação,

recusa o lugar de humilhado. Ambos estão plenamente de acordo em que a revolta e a

luta social se faz com homens informados, cientes de seus direitos. Enquanto Honneth

destaca a dimensão coletiva da luta por reconhecimento, Camus destaca a decisão

aparentemente individual de revoltar-se, que no ato da revolta se faz social. Afirma

Camus:

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A revolta, contrariamente a opinião atual, e mesmo que ela nasça no

homem no que ele tem de mais estritamente individual, coloca em

questão a noção de indivíduo. Se o indivíduo aceita morrer, e morre na ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isto que ele se

sacrifica em benefício de um bem que ele estima que está além de seu

próprio destino. Se ele prefere a possibilidade da morte à negação do direito que ele defende, é porque ele coloca o último em um lugar

acima dele mesmo. Ele age em nome de um valor, mesmo que

confuso, mas o qual ele sente, ao menos, como comum com todos os

homens. (p.30)

A luta social, o engajamento em ações coletivas, tira os sujeitos “da situação

paralisante do rebaixamento passivamente tolerado” e possibilita “uma autocorrelação

nova e positiva” (HONNETH, 2009, p. 259). Em meio aos semelhantes que também

sofreram e sofrem com a humilhação social, mas que também disseram “não” e partiram

para a ação, é possível ver o reflexo de uma nova e positiva imagem de si, que vem

corrigir a imagem negativa cruelmente imposta. A nova imagem refletida não pode ser

de um sujeito perfeito, sem falhas, o que levaria para outro extremo igualmente nocivo,

mas de um sujeito “humilde”− no sentido daquele que reconhece suas fraquezas e a

necessidade do outro − com valores e qualidades.

O MST, ao engajar os sujeitos na ação coletiva, constitui-se como um entorno

político e cultural favorável que possibilita que a dor seja transformada em luta. A luta

cura, como nos mostra o artigo de Fernandes (2011), que, a partir do seu trabalho como

militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), nos diz: “Acima de

tudo, uma ação massiva de protesto proporciona a elevação da nossa autoestima, pois

nos sentimos parte de um coletivo poderoso, que se mostra capaz de desafiar a polícia e

os governos para fazer valer nossos direitos”(p.11).

Quando Fernandes (2011) diz que a luta cura, está se referindo diretamente aos

efeitos terapêuticos da luta. Ele traz relatos de sujeitos que melhoraram de suas

depressões e deixaram de tomar antidepressivos quando participavam de acampamentos

e de ações coletivas; porém ele lembra que a experiência de viver na precariedade de

um acampamento tem que ser provisória, se não produz o efeito contrário, e as

conquistas são necessárias para que movimento continue. Necessária também é a

existência de um projeto de futuro, pois “sem projeto de futuro, nós simplesmente

adoecemos.” (FERNANDES, 2011, p.17).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta tese foi construída a partir de questões propostas pelos próprios militantes

do MST, as quais se fizeram presentes em seus relatos sobre as dificuldades enfrentadas

no cotidiano da luta pela terra, nas tensões e desafios que acompanhavam suas

trajetórias no MST e que muitas vezes eram chamadas de dilemas. O dilema pode trazer

a ideia de uma escolha que sempre tem aspectos insatisfatórios, que é difícil e traz

sempre sofrimento para aquele que deve escolher; é uma escolha da qual não se pode

fugir, e uma vez feita, paga-se um alto preço.

Quando Arantes (1999) abordou em sua pesquisa a escolha da clandestinidade

política dos militantes que vivenciaram a ditadura no Brasil, referia-se a uma escolha

deste tipo: uma escolha que se deu em meio a uma situação em que não havia muito a

escolher, em que as alternativas possíveis eram sempre insatisfatórias. Assim são

também as escolhas que os militantes do MST devem fazer, e é possível afirmar que

qualquer escolha sempre traz alguma insatisfação, que escolher sempre implica a perda

de alguma coisa, sempre tem um preço, e que é necessário atentar para o contexto em

que as escolhas são feitas.

Nessa tese, em vários momentos foram apresentados alguns aspectos deste

contexto em que se constitui o MST, seus militantes e dilemas/escolhas, a começar pelo

primeiro capítulo e o resgate da história do surgimento do MST, das lutas camponesas

que o antecederam, da expulsão e expropriação do camponês que deu origem ao

movimento. Destacou-se ao longo da tese o contexto da violência em suas múltiplas

faces: a expropriação e a expulsão da terra; as chacinas, os assassinatos, as torturas, as

ameaças de morte que sofreram e sofrem os trabalhadores sem terra; a criminalização e

a violência da mídia, que coloca como autores da violência suas vítimas e a violência

invisível da humilhação social.

Procurou-se lançar o olhar da psicanálise sobre este contexto, resgatando em

Freud (1927) uma ideia quase esquecida, não sobre o sacrifício pulsional ou o preço que

se paga para viver na cultura, mas sobre o “a mais” que pagam algumas classes, grupos

e sujeitos e sobre a necessidade de diferenciar os sacrifícios necessários para a vida na

cultura deste “a mais” que paga uma parte dos sujeitos. A partir desta ideia

desenvolveu-se a hipótese de que o militante, ao não aceitar o “a mais” de sacrifício

imposto para sua classe, acaba pagando um “a mais” por sua condição de militante, o

que não significa apenas trocar um “a mais” de sacrifício por outro, pois os novos

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sacrifícios são pagos com um lugar social dentro do MST e com a possibilidade de uma

revitalização narcísica dos sujeitos.

Os militantes do MST, embora sofram com a violência em seus múltiplos

aspectos, não aceitaram e não aceitam o lugar de vítimas passivas, mas buscam sua

afirmação como sujeitos desejantes, como mostrou a resposta do militante ao olhar da

pesquisadora, resposta que veio escrita e dizia: “Você não deve ter tanta pena da gente,

pois nós estamos no lugar que queremos estar, buscando mais conhecimento”. Ocupar o

lugar de sujeito desejante, no entanto, tem um preço. Lacan diz que o desejo se paga

com uma “libra de carne”( ROSA, CARIGNATO & BERTA, 2006).

No decorrer da escrita desta tese, o desejo, que ocupou lugar de destaque no

capítulo sobre a utopia, como ponto de partida do sonho e do “sonho acordado”

(BLOCH, 2005), pareceu desaparecer em meio aos ideais. Destacaram-se os ideais e

com os eles vieram as exigências e a identidade; mas o desejo sempre esteve presente,

mesmo que aparentemente encoberto, pois é o desejo que orienta os ideais, ao mesmo

tempo que também é orientado por eles.

Os ideais foram abordados em vários aspectos: como orientadores e orientados

pelo desejo; como fator de ligação entre os sujeitos; como fonte de satisfação; como

instância psíquica herdeira do narcisismo (eu ideal); como representante da crítica dos

pais e da sociedade internalizada (ideal do eu/supereu) ; e ainda como “ideais

revolucionários” e “ideais sustentados pelo MST” que se opõem aos “ideais

particularistas de consumo” e aos “ideais vigentes”, oposição esta que foi apontada

pelos militantes como fonte de tensão.

Buscou-se apresentar algumas pistas de como os militantes podem se articular a

estes ideais, que são opostos e diferentes e demandam escolhas dos sujeitos. Neste

sentido o MST, ao sustentar ideais contrários aos vigentes, vai no sentido contrário da

tirania do ideal único, pois oferece ao sujeito uma nova possibilidade de se articular a

ideais que não sejam os dominantes na sociedade. No interior do movimento convivem

ideais contraditórios, uma vez que o MST não tem como fechar as portas aos ideais

vigentes na sociedade da qual ele faz parte. A tensão causada ao militante por viverem

em uma sociedade sustentando ideais contrários aos vigentes, mesmo que seja fonte de

sofrimento, é positiva, pois exige constantemente que o sujeito reflita e tome posição,

exige trabalho psíquico. Esta tensão pode ser entendida como sendo intríseca a qualquer

escolha, como fonte de mal-estar que, no entanto, possibilita que os conflitos possam

ser reconhecidos e elaborados.

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Considerar que é positivo circularem diferentes ideais na sociedade não significa

que eles devam ser valorados de uma mesma forma ou que eles produzam os mesmos

efeitos no sujeito. Enquanto os ideais de consumo veiculados pela linguagem

publicitária incidem diretamente sobre o imaginário (eu ideal) e oferecem uma

satisfação imediata ao sujeito narcísico voltado para si mesmo, os ideais que o MST

sustenta visam ao coletivo e exigem o compromisso ético do sujeito para o bem de

todos.

Esta face exigente dos ideais sustentados pelo MST pode parecer ainda mais

exigente em uma sociedade em que, como diz Zizek (1992), o compromisso sério é

visto como patético e é substituído pelas regras do jogo social para ter sucesso. Assim

como a existência de ideais opostos (os sustentados pelo MST e os vigentes na

sociedade) tensiona os militantes do MST, as exigências opostas (sucesso pessoal e o

compromisso ético em benefício do coletivo) também são fonte de tensão e da mesma

forma demandam que o sujeito reflita e tome posição e exigem trabalho psíquico.

Um caminho possível é que o militante sirva-se da militância para obter sucesso

pessoal. Para Mulworf (2000), existem os militantes que militam por interesses pessoais

e aqueles que militam em nome de uma causa. Os primeiros seriam os narcisistas, e os

segundos, aqueles que se sacrificam pelo bem comum. Sem negar que possam existir

militantes assim, convém destacar, como faz Offerlé (2005), que este tipo de raciocínio

é mecanicista e que o que interessa investigar é como as causas e os interesses pessoais

devem ser conjugados para explicar as diferentes formas de militantismo. As

satisfações, as retribuições pessoais que o militante obtém, não devem ser

negligenciadas nesta investigação. Por isto se questionou nessa tese o que o militante

sacrifica e o que o militante ganha com a militância.

Se por um lado o raciocínio de Muldworf (2000) pode ser mecanicista, por outro

sua ideia da revitalização narcísica que obtém o militante com sua prática −

independentemente de motivações egoístas ou altruístas −, é muito pertinente e foi aqui

adotada. No caso dos militantes do MST, a necessidade de revitalização narcísica se

constituiria a partir de situações sociais que produziriam o efeito inverso de

“desvitalização” narcísica - como, por exemplo, as situações de humilhação social -, e a

militância representaria a possibilidade de enfrentar estas situações e obter

reconhecimento jurídico (acesso aos direitos de participação política e bem-estar) e

social (ser reconhecido por seu valor individual).

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Neste sentido, seria possível dizer que o militante paga um “a mais” por ser

militante, mas também recebe um “a mais” de satisfação, possibilitado pela adesão a

ideais que permitem aos sujeitos a restauração de uma imagem engrandecida de si

mesmos.

Os ideais sociais, que se expressam no plano simbólico, proporcionam

uma grande satisfação narcisista e por isto são tão fortemente

investidos. De onde vem esta satisfação? Entre outras coisas de uma

promessa de reparação que lhes é inerente. Frente às privações infringidas pela natureza ou pela sociedade, frente ao sofrimento

infligido pelos outros homens, oferece-se a imagem de um eu

reparado, restaurado com suas capacidades plenamente desenvolvidas, com seus direitos restabelecidos. (BERTRAND, 1989, p.27)

Os ideais sociais oferecem aos sujeitos uma antecipação do gozo no plano

imaginário daquilo que é esperado como realidade futura. Se isto não fosse oferecido,

nenhum partido político (pelo menos aqueles guiados por ideais) teria militantes

(BERTRAND, 1989).

Sempre deve existir a distância entre o eu e o ideal do eu, entre o que o sujeito é

agora e o que almeja torna-se, assim como a distância entre a sociedade atual e a

sociedade ideal. É isto que move os sujeitos. Algo sempre deve faltar para que o desejo

siga seu curso, mas o que falta para que os sujeitos sejam lançados na angústia deve

ancorar-se em um projeto de futuro, em uma esperança. É isto que faz o MST: oferece

aos sujeitos um projeto de futuro, uma esperança. Seus militantes pagam o preço pelo

desejo que os move, mas nem por isto deixam de apostar no desejo, mesmo que lhes

custe “uma libra de carne”.

.

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ANEXO

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MODELO DE TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, Eliane Domingues, aluna do programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia

Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, venho solicitar o seu

consentimento e colaboração no sentido de participar da pesquisa intitulada Os dilemas

do militante no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): um olhar

psicanalítico que será realizada por mim realizada. Essa pesquisa constitui parte de

minha tese de doutorado, sob a orientação da Profa. Dra. Miriam Debieux Rosa e tem

como objetivo geral investigar os dilemas e dificuldades do militante no MST a partir

de suas vivências.

É assegurado o anonimato sobre a identidade dos participantes, assim como é garantido

ao participante a liberdade de recusar ou retirar o consentimento sem nenhuma

penalização. Os dados serão trabalhados e analisados de forma que se mantenha o sigilo

e a privacidade dos participantes.

É também assegurado aos participantes o direito de ter acesso aos resultados da presente

pesquisa. Torna-se importante destacar ainda, que as pesquisadoras têm a pretensão de

apresentar ou publicar os resultados obtidos por meio deste estudo.

Eu,

_____________________________________________________________________,

RG nº _________________ após ter lido e entendido as informações e esclarecido todas

as minhas dúvidas referentes a este estudo com a aluna Eliane Domingues,

CONCORDO VOLUNTARIAMENTE em participar do mesmo.

Data: ___ / ___ / 2008. _______________________________

Assinatura

Eu, Eliane Domingues declaro que foram fornecidas todas as informações pertinentes

ao participante sobre à pesquisa por ocasião da assinatura deste termo de consentimento.

Data:___ / ___ / 2008. _______________________________

Assinatura

Obs: Qualquer dúvida ou maiores esclarecimentos, entrar em contato com Eliane

Domingues nos telefones (44) 30293590 ou (44) 99653590 ou na PONTIFÍCIA

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO, PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-

GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL End.: Rua Monte Alegre, 984. Perdizes.

05014-901 - São Paulo-SP – Brasil.Fone/fax: (011) 3670 8520 E-mail:

[email protected]