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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luciana Mattos Adolescente autor de ato infracional: falência do pai ou falência da pátria? MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Luciana Mattos

Adolescente autor de ato infracional: falência do pai ou falência da pátria?

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2008

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Luciana Mattos

Adolescente autor de ato infracional: falência do pai ou falência da pátria?

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Profª. Doutora Maria Lúcia Rodrigues.

SÃO PAULO

2008

Banca Examinadora

___________________________

___________________________

___________________________

“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.

Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” Bertold Brecht

Aos meus “filhotes” Caio e Ana Gabriela, que com os seus sorrisos me ensinam que viver vale a pena.

À minha querida mãe Leosira, o imenso e incansável apoio,

sem o qual a realização desta pesquisa não teria sido possível.

AGRADECIMENTOS

À Profª. Drª. Maria Lúcia Rodrigues, orientadora deste trabalho, agradeço a dedicação ao

me acompanhar neste percurso acadêmico, mormente no que se refere à confiança e ao

apoio devotados.

À Profª. Drª. Myriam Veras Baptista a participação na banca examinadora e as valiosas

contribuições desde a qualificação.

À Profª. Drª. Maria Liduína de Oliveira e Silva a aceitação do convite para compor a banca

examinadora, trazendo, igualmente, inexcedíveis contribuições.

À Profª. Drª. Maria de Lourdes Trassi os “retornos” dados a partir do primeiro contato com

o material, na banca de qualificação.

À Profª. Drª. Márcia de Lima Farias, parceira desde os primeiros dias do Mestrado, louvo

seu apoio imensurável e o constante estímulo para a realização desta pesquisa. A sua

forma de compreender o universo acadêmico torna as reuniões de pesquisa deveras mais

humanizadas.

Ao Dr. Flávio Frasseto, Defensor Público, que não pode dimensionar o quanto a sua

disponibilidade em me receber, ceder materiais, dialogar e sugerir caminhos e leituras

auxiliou na construção desta pesquisa. Agradeço a apresentação que me foi feita dos

teóricos da criminologia crítica e as suas produções tão relevantes para esta dissertação.

O primeiro diálogo que tivemos foi, realmente, um divisor de águas na confecção deste

texto.

À querida Roseli Albuquerque, sem cujo auxílio eu não teria continuado este percurso,

reverencio o incentivo para que eu chegasse até a seleção do mestrado. A sua

sensibilidade e o seu senso de humor tornaram mais leve a realização do estudo, além das

risadas entre almoços e empadinhas.

O acúmulo de conhecimento na área da infância e da juventude e a sua capacidade de

reflexão e de articulação enriqueceram a construção deste trabalho, não se podendo

olvidar, ainda, o estímulo, principalmente nos últimos dias, essencial para que eu lograsse

êxito.

À querida Kátia, secretária do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, agradeço a

atenção cotidiana e o carinho tão importante nesta árdua jornada de pesquisa.

Aos adolescentes inseridos em medidas sócio-educativas, sobretudo àqueles que em

algum momento cruzaram os meus caminhos, direciono este trabalho, que somente terá

sentido caso lhes produza reflexos. A indignação em relação a todas as violações a que

estão submetidos foi o motor que impulsionou esta pesquisa.

A todos os familiares de adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, em

especial aos que eu conheci na AMAR (Vicente, Conceição, Valdinez, Miriam e tantos

outros), desejo, sinceramente, que algum dia o Serviço Social e a Psicologia possam estar

a serviço de uma transformação eficaz em suas realidades. Aproveito o ensejo para

estender o agradecimento também a José Renato, adolescente que conheci na AMAR e

do qual sempre me lembro: a sua história é um estímulo para que eu continue a atuar

nesta área.

A José Resende Filho e Givanildo Silva, profissionais e militantes da área da infância e da

juventude, com os quais trabalhei durante os meus primeiros meses na FEBEM e que me

mostraram que os adolescentes são sujeitos de direitos e que é possível a realização de

um trabalho pedagógico, destaco que a minha luta pela efetivação desses direitos tem

como uma de suas referências os nossos dias de trabalho.

A todos os pesquisadores do NEMESS – Ensino e Questões Metodológicas em Serviço

Social, em especial à Fátima Fontes, sempre acreditando no valor do afeto, e à Sandra,

que, vindo de Porto Alegre, em uma conversa antes da qualificação, acalmou os meus

dias.

À Matsue, chefe do cartório do DEIJ – Departamento de Execuções da Infância e da

Juventude -, que me orientou quanto aos procedimentos necessários para a solicitação de

autorização para pesquisa e me recebeu para a realização da análise documental, felicito-

lhe e agradeço-lhe a organização do corpus e a atenção dispensada, mesmo diante de

uma pletora de trabalho.

À Francisca (Assistente Social – chefe) e à Maria Costantini (Psicóloga - chefe da Equipe

Técnica Judicial) terem-me recebido atenciosamente e fornecido indicações dos processos

que já haviam passado por avaliações com a Equipe Técnica. Sem esse apoio, não teria

sido possível operacionalizar a realização da pesquisa.

À CNPq o apoio financeiro durante a pesquisa, fundamental para que fosse desenvolvida.

À Profª. Drª. Miriam Debieux Rosa, psicanalista, lacaniana, com a qual, freqüentando sua

disciplina, tive oportunidade de dialogar acerca da “função do pai na psicanálise”.

Agradeço ter-me dado segurança, com sua bagagem acadêmica, para afirmar que alguns

termos utilizados como linguagem psicanalítica não passam de “chavões psicologizantes”.

Com suas aulas e indicações de leitura, aprendi sobre o diálogo entre a psicanálise e a

sociedade.

Aos companheiros do Conselho Regional de Psicologia, em especial Marilene Proença,

Maria Auxiliadora Arantes e Lúcia Toledo, parceiras na vivência de uma Psicologia com

compromisso social e preocupada com a transformação da realidade, devo dizer que, junto

a eles, me sinto estimulada a pensar uma Psicologia para além dos consultórios.

À Áurea Fuziwara, Presidente do CRESS/SP, referencial para a efetivação do projeto

ético-político do Serviço Social, desejo que, neste período à frente do CRESS, o seu

compromisso possa refletir nas ações dos demais profissionais do Serviço Social.

À querida amiga Lilian de Moura, Assistente Social da Fundação CASA, agradeço permitir-

me experimentar, ao seu lado, uma atuação do Serviço Social verdadeiramente

compromissada com os adolescentes e com seus familiares. Revelou-me existirem

excelentes profissionais escondidos nas estruturas institucionais.

A sua demonstração de amizade é a incorporação daquela música que diz ”amigo mais

certo, nas horas incertas”, demonstrada tanto nos momentos de alegria, quanto nos de

tristeza.

À Andrea Rocha, Assistente Social, com a qual compartilhei poucos, todavia

significativos, dias de trabalho na ex-FEBEM e que hoje é Professora da Graduação em

Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Você é a incorporação do projeto

ético político do Serviço Social. Agradeço a diferença que você faz no mundo, através das

diversas batalhas que enfrenta para garantir a efetivação de direitos de crianças e

adolescentes.

Aos meus irmãos Edson e Marcio, às cunhadas Bárbara e Marlene, à afilhada Carol e às

sobrinhas Isabela e Maria Clara, reconheço que a realização desta pesquisa, em muitos

momentos, distanciou-me deles, deixando-me impaciente. Agradeço a torcida!

À minha cunhada Bárbara agradeço a amizade incondicional nos momentos mais difíceis

da minha vida. Sem o seu ombro, eu não teria resistido até o desfecho.

Agradeço, por fim, mas não com menor empatia e importância, a todas as pessoas que,

de alguma forma, fazem parte daquilo que sou e a tantas outras que aqui não foram

citadas, mas que levo comigo.

Resumo

Autora: Luciana Mattos Título: Adolescente autor de ato infracional: falência do pai ou falência da pátria?

O presente trabalho objetiva realizar uma análise por meio de relatórios, laudos e avaliações elaborados por psicólogos e por assistentes sociais do Poder Judiciário, enfatizando-se as considerações acerca da dinâmica familiar, notadamente expressões como “família desorganizada”, “fragilidade do pai” e similares, as quais aparecem nesses documentos, em diálogo com a questão social. A construção desta pesquisa deu-se a partir do trabalho desenvolvido na qualidade de psicóloga na ex-FEBEM/SP – Fundação do Bem-Estar do Menor - e na AMAR – Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco -, ocasião em que se teve contato com diversos laudos de adolescentes e, outrossim, com seus familiares. Observaram-se, então, uma tendência à excessiva culpabilização destes últimos, sobretudo às supostas falhas do pai no exercício de suas funções, e, por outro lado, a pouca relevância dada a outras instâncias de vida do adolescente, o que está consubstanciado na ausência de dados sobre os fatores sócio-econômicos. A amostra obtida, após autorização do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude de São Paulo (DEIJ), açambarca vinte e nove processos referentes a adolescentes autores de ato infracional em cumprimento de medida sócio-educativa, na modalidade de internação. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo, de L. Bardin, definindo-se categorias de análise do material. Em relação aos resultados, na maioria dos estudos sociais, não se observaram referências a questões sociais, silenciando-se a respeito do descompromisso do Estado na formulação e na execução de políticas públicas de atendimento à população. Os “problemas” esgotam-se em questões familiares e de personalidade, com observações despolitizadas e abstraídas de suas violentas condições históricas. Palavras-chave: adolescente autor de ato infracional, função do pai, laudos sociais, Poder Judiciário.

Abstract

Author: Luciana Mattos Title: Adolescents committing transgressions: disintegration of the father or disintegration of the country?

The present research paper aims to carry out an analysis based on reports, accounts and assessments structured by psychologists and Judicial Power social workers, focusing on issues related to family dynamics, markedly expressions such as “disorganized family”, “father frailty” and others alike, present in the aforementioned documents, dialoging with the social issue. This research has emerged from the work I developed, as a psychologist, at the then FEBEM/SP – São Paulo’s State Foundation for The Well-Being of Minors – and at AMAR – Association of Mothers and Friends of Children and Adolescents at Risk –, opportunity in which I had access to various reports by adolescents, as well as the chance to get in contact with their parents. Concerning the latter, a tendency towards excessive blaming has been observed, especially with regard to both the presumed failures by the father in the exercise of his role, and, on the other hand, the low relevance attributed to other life instances of the adolescent, evidenced by the absence of data on socio-economic factors. The sample, obtained with the authorization of DEIJ (São Paulo’s Department of Enforcement of Childhood and Youth), comprised twenty-nine lawsuit cases related to adolescents who had committed transgressions and were serving socio-instructional penalties of the internment type. The methodology applied was that of content analysis, by L. Bardin, and thereby material analysis categories were determined. As for the result, in the majority of social studies, no reference to social issues was observed, highlighting a silence with regard to the State’s lack of commitment to formulating and executing public care policies. The so-called “problems” are reduced to family and personality issues, with depoliticized observations, erased of their violent historical conditions. Keywords: adolescent who committed transgressions, father role, social reports, Judicial Power

Sumário

Introdução 01 Capítulo 1: O Poder Judiciário e o “saber” das equipes interprofissionais 17 1.1 O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário 20 Capítulo 2: Catalogando Famílias: o discurso técnico à serviço do quê? Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante ? 24 2.1 As condições sócio-econômicas 35 Capítulo 3: O Pai na psicanálise: Reflexões críticas 40 Capítulo 4: O Estado Transgressor: Entre limite e transgressão 50 4.1 A fragilidade dos laços sociais 52 Capítulo 5: Metodologia 55 5.1 A amostra 57 Capítulo 6: As Categorias Temáticas 59 6.1 O pai e as configurações familiares 60 6.2 Autocrítica 67 6.3 A Instituição 71 6.4 A questão social 73 Considerações Finais 87 Bibliografia 98

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Introdução

Era julho de 1.997. Estava sendo contratada como psicóloga na FEBEM/SP: o

primeiro trabalho após a conclusão do curso de graduação.

O que se denominava treinamento de funcionários incluía uma visita ao Complexo

Tatuapé. Tão logo todo o grupo que seria contratado reuniu-se, fomos conhecer algumas

unidades consideradas modelos.

Algumas supervisoras da FEBEM/SP acompanhavam-nos e iam-nos apresentando

aquele universo, evidentemente sob a sua ótica, o que, por inevitável, explicitava a lógica da

própria Fundação.

Ao entrarmos no Complexo, fomos logo informados da existência de divisões em

circuitos leve, médio e grave. Lembro quando nos foi apresentado este último circuito: a

primeira cena que presenciei foram aqueles adolescentes, enfileirados e com as mãos para

trás, trajados de moletons iguais, cruzando aquelas telas.

A Unidade Educacional 12, reputada modelo, foi a unidade do circuito grave eleita

para nos ser apresentada naquela ocasião. O referido grupo entrou na Unidade, enquanto

alguns adolescentes passavam por um corredor, cruzavam algumas portas, atravessavam

outras onde não havia ninguém e iam pedindo “licença, licença”, todos de mão para trás,

cabeça baixa, clamando licença. Para quem? Para existir?

Após assistir às cenas descritas, foram nascendo os meus primeiros incômodos,

impactos que me mobilizam até hoje e que me trouxeram para o Programa de Serviço

Social. Foi a partir desses eventos que surgiram minhas primeiras indagações: como tanta

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humilhação poderia ser modelo, como aquelas supervisoras, dentre as quais psicólogas e

assistentes sociais, enxergavam aquilo de forma tão natural, insista-se, como modelo de

gestão?

Licença foi a única palavra que ouvi os adolescentes pronunciarem.

Ao sairmos da Unidade, constatamos que o diretor chegava. Tratava-se de um

homem de estatura baixa e que nos foi apresentado como “fulano, pequeno só no tamanho,

mas é um grande diretor”. Saí de lá com um nó, ou vários - na cabeça, no coração e na

garganta.

Transcorrida uma semana, quando retornei ao Tatuapé para o primeiro dia de

trabalho, é que ficaria sabendo onde trabalharia, em qual circuito. “Você, Luciana, vai ficar

no circuito grave”. Logo pensei: era lá mesmo onde eu queria estar, pois o intuito era

compreender aquela lógica, ouvir outras palavras, que não só licença. A meu juízo, era

patente que os citados adolescentes tinham vida e muito mais para falar. Enfim, era naquele

local em que eu queria estar.

Fui designada para trabalhar na Unidade 13, cuja localização ficava ao lado da

Unidade do “grande diretor”. Recebida pelo Senhor Diretor José Resende, a quem devo

muito em relação à construção de olhar não perverso relativamente aos adolescentes,

principiei a vivenciar a execução de um trabalho sócio-educativo e, a partir dessa

experiência, posso assegurar que esse tipo de trabalho é possível e, mais do que isso,

necessário, como direito e não como utopia.

Logo nesse primeiro contato na sala do diretor, apresentou-se um adolescente muito

exaltado e nervoso, ladeado por um funcionário que afirmava que ele e outro adolescente

haviam se desentendido, tendo inclusive chegado às vias de fato.

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Em vista disso, o Sr. José Resende tratou de conversar um pouco com o

adolescente, que se acalmou e, conforme sugestão do próprio diretor, seguiu para a horta,

que então se cultivava.

O diretor já havia me informado que assumira, havia uma semana, a direção daquela

unidade e que estava implantando várias ações, sendo a horta uma delas. Também disse

que não gostaria de me designar, naquele momento, para ler prontuários, tampouco lhe

agradava a idéia de confinar-me numa sala, como acontece entre os técnicos da

FEBEM/SP.

Após conversarmos, disse que eu poderia ficar à vontade para falar com os

adolescentes, sugerindo que tentasse travar algum contato com aquele adolescente, que

então já se encontrava na horta.

Quando cheguei à pequena plantação, estava o adolescente com a enxada em

punho, junto a um outro jovem, cada qual de um lado do terreno. Fui conversando com

aquele que já tinha visto na sala e, quando um funcionário apareceu na porta e gritou o

nome do outro, percebi que eram os dois que haviam se desentendido, ou seja, estava

diante de dois jovens recém enfurecidos e de uma enxada.

Pareceu-me, então, que a lógica da Unidade seria outra e que falar algo que não

fosse “licença” seria possível e até desejável. Percebi que o diretor quis-me colocar em

outro lugar, que não o da comodidade, para abrir outras possibilidades de intervenção.

Depois, com mais intimidade, eu e o diretor demos muitas risadas: eu numa horta,

em meu primeiro dia de trabalho, com dois meninos que haviam brigado, um dos quais

ostentava uma enxada. Certamente, não havia tido essa aula na graduação.

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Tudo quanto aprendi naquele universo não tivera na Academia. A construção dessa

pesquisa permite-me retomar algumas cenas e histórias que marcaram minha trajetória e

foram-me ajudando a definir meu objeto de pesquisa.

Os primeiros dias de visita de familiares foram significativos; as observações, mais

do que isso. Pode-se dizer que as interações com os familiares marcaram a minha trajetória.

Que expressão era aquela dos familiares, das mães nos dias de visita, que dor tão profunda,

como dimensionar? E os pais? Que homens eram aqueles, que histórias teriam? Sentiam-se

extremamente humilhados com aqueles procedimentos: filas imensas, revista e insultos.

Quantos pareciam querer dizer no olhar: “Eu não sou culpado”? Quanto as pessoas

que lhes atendiam muitas vezes pareciam dizer com gestos, olhares e palavras: “Estamos

aqui com o seu filho que você não conseguiu educar”? De quantas falências eles eram

acusados e quantas falências de outras instâncias até hoje são omitidas, ficando no lugar do

não dito?

Outro cenário importante foi o Forum. Certa vez, na audiência de um adolescente

cuja mãe acompanhava, o juiz, com toda arrogância que é característica de alguns

membros da magistratura, perguntou-lhe: “Tem outros filhos?”. Ao que a mãe respondeu:

“Tenho sim senhor, mais três”. E aí ele emendou: “São todos bandidos?”

Que lugar era aquele? Que perguntas eram essas? Indescritível o olhar da mãe ao

ouvir aquela pergunta. Sempre que me lembro da cena, vem à lembrança uma composição

feita por alguns adolescentes da FEBEM/SP:

Chega perto de mim... Me deixa falar... Você vem de muito longe... Para me condenar...

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Contar a experiência de trabalho na FEBEM/SP, sem mencionar a tortura, não seria

possível. Num dos primeiros dias em que acompanhei a visita de familiares, após o término

da visita, ainda na Unidade, os adolescentes no pátio começaram a chamar-me para ir até lá

ouvir um som que se propagava de uma unidade vizinha: “Encosta aqui para ouvir,

senhora”, dizia um deles.

As unidades eram co-vizinhas e as paredes, geminadas. As janelas altas de uma

davam para o pátio da outra.

Quando comecei a ouvir, vislumbrei serem sons de socos, gritos, pancadas e

gemidos. Adolescentes estavam sendo agredidos por funcionários que gritavam:

“Vagabundo! Ladrão!”

Acionamos, imediatamente, o diretor da nossa unidade, e as denúncias foram feitas,

tendo sido o diretor da unidade vizinha afastado, uma vez que o fato tomara uma proporção

gigantesca e contornos dramáticos. Ganhávamos, assim, um grupo de funcionários rivais.

O que quero ressaltar, porém, é que quase “toquei” as agressões, aqueles gritos

nunca mais esqueci. Desde então, sempre que escuto um relato de agressão a

adolescentes, não fico pensando: “Será que é assim, do jeito que os adolescentes dizem?”

Aquele episódio norteou minhas ações e norteia até hoje, desde o meu pedido de demissão

da FEBEM/SP até a minha atual participação nas Comissões de Direitos Humanos e da

Criança e do Adolescente do Conselho Regional de Psicologia.

Outros episódios tão impactantes vieram em seguida. Novos rostos, sorrisos,

lágrimas, adolescentes abusados sexualmente por outros adolescentes e os “seguros”,

adolescentes duplamente penalizados, além de toda a perversidade institucional. Alguns

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permaneciam isolados para não serem alvos de retaliações e de agressões, o que poderia

resultar, evidentemente, em óbito.

Vale ressaltar que a denominação “seguro” surgiu entre os próprios adolescentes e

poderia ser usada para nomear tanto um adolescente que estivesse cumprindo a medida de

internação por prática de estupro, quanto para nomear um adolescente que houvesse

levantado um pedaço da sua própria camiseta ou deixado uma camisa muito aberta durante

o horário de visita, passando por diversas outras “infrações”: delatar, olhar para a visita de

outro adolescente etc.

Os “seguros” apresentavam também a lógica da reprodução: quando um adolescente

deixava de ser “seguro”, a crueldade que ele impunha aos demais perpetuava-se de outra

forma. Um jogo de reproduções de uma lógica cruel, a lógica da Fundação.

Há uma cena que ilustra bem todo o quadro da supracitada lógica cruel, acima

descrito, que perpassa não só os padrões institucionais, mas que revela um Estado

transgressor: estava no pátio conversando com um grupo de adolescentes, quando,

repentinamente, saiu de um dos quartos um adolescente cambaleante. Pude verificar que,

aparentemente, ele estava com eritemas e feridas mais graves. Fora agredido por um grupo

de adolescentes, e o seu corpo não com marcas, mas praticamente desfigurado, assinala, à

perfeição, a reprodução dessa lógica cruel, que, aliás, principia muito antes da medida de

internação.

Aquele corpo desfigurado suscitou em mim diversas interrogações, como se lá

estivessem condensadas todas as ações e as omissões que explodiram no ato daqueles

adolescentes e que tomavam aquela forma física, mas que nos remete a todos os atores

sociais envolvidos naquelas histórias de vida.

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Nesta Introdução, optei por manter a história de três adolescentes, as quais foram

apresentadas no Memorial para a qualificação. Manter o registro destas histórias significa

dar um rosto para cada processo pesquisado, registrar que se trata de histórias de vida e

não de documentos empilhados nas mesas do Cartório da Vara da Infância e da Juventude.

Luiz Fernando

Este adolescente chegou à Unidade, onde eu atuava como psicóloga, transferido do

circuito grave, após uma sessão de tortura a que ele e outros adolescentes foram

submetidos. As agressões foram devidamente denunciadas ao Poder Judiciário, que

determinou uma intervenção na Unidade, transferindo-o para outra.

Esse episódio havia tomado grandes proporções e todos os funcionários do

Complexo sabiam do ocorrido; a grande parte manifestava ódio em relação aos

adolescentes, considerando que eles haviam “denunciado” alguns funcionários ao Juiz

Corregedor.

Portanto, quando chegaram àquela Unidade, já havia grande expectativa por parte

dos funcionários em saber quem era aquele adolescente tão perigoso (era assim que vinha

sendo nomeado), que cometera graves crimes e tumultuava as unidades da FEBEM. Além

de considerado infrator grave, era tomado como liderança negativa, termo muito utilizado na

lógica funcional para designar aquele a quem se atribui a culpa por rebeliões etc.

Os funcionários acusados das agressões não tiveram punições: foram afastados

temporariamente, com remuneração, e logo retornaram ao trabalho com os processos

arquivados.

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Nesse cenário, tive meu primeiro contato com o adolescente. Lembro-me de que

entrei no quarto onde ele e mais dois outros estavam para conhecê-los. Não estava imbuída

da lógica institucional e apenas buscava conhecer mais do que meros rótulos.

Logo me deparei com rostos marcados. Luiz Fernando havia sido tão agredido que

teve derrame ocular - os olhos estavam absolutamente vermelhos e o rosto, cheio de

hematomas.

Entabulamos um diálogo e, após certo período de permanência na Unidade e

diversos atendimentos, o sobredito adolescente, numa de nossas conversar, perguntou-me:

“Eu não sei o que é ter pai... pai é diferente de mãe?”

Ele me formulou essa pergunta com um olhar ávido por resposta, quiçá por uma

experiência de paternidade, ao mesmo tempo que, por meio dela, me afastava daquele

“perigoso infrator”, pondo-me diante de uma interrogação demasiadamente humana. Essa

pergunta fez eco em toda a construção do meu projeto de pesquisa, sobretudo por falar do

lugar do pai.

Naquela época, em pleno no ano de 1.999, a entrada de celulares e de armas na

FEBEM era incomum, não tinham ocorrido ainda as transferências dos adolescentes para o

sistema prisional, nem a incorporação tão maciça de características do sistema

penitenciário. Dentro desse contexto, a forma como ocorreu a fuga de Luiz Fernando foi

espetacular.

Após subornar uma monitora da Fundação, colimando que ela entrasse na Unidade

portando uma arma de fogo escondida na vagina, o adolescente teve acesso à arma e,

rendendo diversos funcionários, saiu pelo portão lateral do Complexo Tatuapé.

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Pelo curso do adolescente durante o cumprimento da medida sócio-educativa, cabe

a seguinte reflexão, já que, como defendem alguns teóricos, o jovem procurava no ato

infracional o acesso à lei: ainda que o adolescente traga em seu histórico a ausência do pai,

o que remete à história de outros adolescentes com o pai ausente, omisso ou violento, qual

foi a lei que ele encontrou senão uma lei frágil, ausente, omissa ou violenta?

Os representantes da lei - Poder Judiciário e, de forma mais ampliada, os

representantes da Fundação - agiram com uma ética que permite garantir esse lugar da lei?

Construíram junto com o adolescente esse referencial?

Luiz Fernando conheceu um Poder Judiciário desmoralizado, que não combateu o

crime de tortura e não puniu exemplarmente monitores que praticavam, de modo impune,

esse mesmo crime. Demais, uma representante da Fundação que trouxe consigo uma arma

na vagina, burlando toda a segurança e colocando em risco a vida dos adolescentes e dos

funcionários, não foi devidamente responsabilizada, defendendo-se com todas as brechas

legais.

E antes da internação? Se se pensar no histórico dos adolescentes da Fundação,

será que o que ele conheceu também não foi um Estado ausente, omisso e violento? Será

que, no imaginário dos adolescentes de hoje, esse lugar da lei está preservado, com a

ampla divulgação na mídia de escândalos envolvendo autoridades judiciais?

A pergunta permanece ecoando: “Pai é diferente de mãe?”

Douglas

Adolescente cumprindo medida de internação, sob a acusação de tráfico de

entorpecentes, residia Douglas na região do Glicério, centro de São Paulo. Durante o

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período de internação, envolveu-se em “problemas disciplinares”, consoante a denominação

usada na própria Fundação, ou seja, o não-cumprimento de regras relativas a horários, bem

como discussões com funcionários. Era também considerado uma liderança negativa.

Circulava na Unidade como um grande traficante, e esta era a imagem que os

funcionários tinham dele; eram unânimes em afirmar que, na ocasião da desinternação, ele

retornaria ao tráfico, afirmação que também era feita por alguns técnicos da Unidade.

O maior argumento desse grupo na defesa da mencionada avaliação era a postura

de Douglas, muito questionador, sempre resistindo a tomar banho nos horários

determinados, a ir à escola, situada dentro do Complexo, nos horários designados. Era

comum, nas avaliações, esses aspectos de cumprimento de regras na rotina da unidade

serem tomados como determinantes para a avaliação quanto à desinternação. Douglas foi

transferido de Unidade por ser liderança negativa.

Um ou dois anos depois, num dia de sol escaldante, estava eu na calçada,

aguardando o semáforo fechar para atravessar um dos cruzamentos da Avenida Paulista

com uma daquelas alamedas íngremes. Logo vejo um rapaz, sob o sol, subindo essa

mesma alameda e carregando consigo uma carroça. Aquele rosto todo suado... o suor

escorria, pingava, com uma expressão de cansaço que me chamou a atenção. Quando me

fixei naquele rosto, eis que reconheci Douglas!

Ele foi passando ao meu lado com aquela carroça e, assim que o chamei, ele parou.

Conversamos sobre o que havia ocorrido após a desinternação e ficou explícita a frase que

alguns adolescentes usam: “Do mesmo jeito que um dia abriram a porta e me colocaram

para dentro, num outro dia abriram a porta e me colocaram para fora”.

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Durante todo o período de permanência na Fundação, ele foi bombardeado com

preconceitos, numa lógica burocrática, punitiva e controladora que permanece presa às

normas disciplinares. Já não estava mais presente o grande traficante, senão alguém

diferente e, pior do que isso, as suas potencialidades tinham sido anuladas pelo sistema.

Eduardo

Também tido como adolescente extremamente violento (esta conclusão baseava-se

somente na classificação do ato infracional), circulava na Unidade com certo status.

Ao longo do período em que esteve na Fundação, as regras para saídas externas de

adolescentes ainda eram mais flexíveis, podendo efetuar-se sem escolta. Essa proibição

total de saídas externas veio após o episódio do “Batoré” (adolescente que era acusado de

diversas infrações e que fugiu durante uma saída, gerando uma enorme repercussão na

mídia).

Com a possibilidade de sairmos da Unidade e considerando que seria importante

para o adolescente a realização de um atendimento médico externo, agendamos o

atendimento e combinamos levá-lo: iríamos eu, uma monitora e o adolescente. Claro que

muitas pessoas asseveraram que ele fugiria e que, por isso, deveríamos adotar a máxima

cautela. Muitos tinham certeza de que ele não voltaria, devo confessar que essa dúvida

também tomou de assalto meu espírito.

Contudo, considerava a importância do encaminhamento e já havia estabelecido um

vínculo com ele, o que me permitiu dialogar abertamente sobre todas essas questões.

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Era comum que, nessa modalidade de saída, os adolescentes comessem alguma

coisa diferente, um lanche, um almoço, era uma forma de quebrar aquela rotina institucional.

Claro que tudo isso só foi possível porque, naquela Unidade 20, havia essa proposta

pedagógica (sementes plantadas pelo já citado Sr. José Resende).

No dia agendado, saímos do Complexo Tatuapé, fomos caminhando até a estação

Belém do Metropolitano e lá entramos numa lotação para fazermos todo o percurso até a

Vila Maria, local onde Eduardo seria atendido. Tudo transcorreu bem, falamos sobre a

sensação de estar na rua, Eduardo brincou muito, tinha um senso de humor apurado.

Retornamos até as proximidades do Metrô, perto de um local onde havíamos

pensado em almoçar com ele. Cuidava-se de um restaurante “por quilo”, nada sofisticado,

em que fazíamos as refeições cotidianamente. Considerava a comida boa e, do meu ponto

de vista, avaliava que seria um momento agradável, já que tanto eu, como a monitora,

enxergamos em Eduardo uma expectativa muito positiva.

Servimo-nos. Havia grande variedade, diversas opções de pratos quentes e frios.

Quando olhei para o prato do Eduardo, que estava ao meu largo, notei que ele só havia

pego tomate, alimento que dispôs sobre todo o prato!

Indaguei, surpresa, se ele queria outras opções, por achar estranho aquele

comportamento. Sentamos à mesa e ele, que estava com uma expressão tensa, angustiada,

permaneceu mudo. Pegou os talheres e começou a bater na mesa, os olhos marejaram e,

em segundos, começou a chorar, a balançar a cabeça e a bater os talheres. Em questão de

segundos, levantou-se da mesa e saiu correndo, razão pela qual eu e a monitora fomos

atrás. Queríamos entender o que estava acontecendo e, então, tivemos outra surpresa:

Eduardo correra para o portão da FEBEM!

13

Chegou lá chorando, pedindo para entrar. Entramos com ele, que foi correndo para o

quarto, em prantos, só após algumas horas aceitou falar com um educador e disse que, ao

se ver naquele restaurante na frente de tantos talheres, toda aquela comida, entrou em

pânico, não sabia como agir.

Esse episódio foi muito significativo para mim, visto que percebi como estamos

distantes desses adolescentes e o quanto eles têm para nos falar. Percebi, ainda, como os

programas voltados para adolescentes precisam escutá-los antes de montar os conteúdos

programáticos e quanto o exercício, o sair da unidade, estar em outros espaços é

fundamental, ao contrário do confinamento.

Aquele Eduardo, chorando, na frente de um prato de tomate, o quanto aquela saída

tinha mobilizado uma série de outros conteúdos, quanta exclusão, sensação de não

pertencimento Eduardo já tinha vivenciado? Correr para a FEBEM, buscando lá seu porto

seguro, dado que, naquele espaço, ele era temido, respeitado, enfim, ele pertencia. E a

indagação: o quanto nós, profissionais da área social, estamos reforçando essas rotulações

que reafirmam a periculosidade dos adolescentes?

Em 2.003, desliguei-me da FEBEM/SP. Já conhecia a Presidenta da AMAR -

Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (mais conhecida

como “Mães da Febem”) - e mantinha alguns contatos com ela, sobretudo nos últimos dias

no Complexo Tatuapé, no intuito de “denunciar” as práticas de tortura.

A Presidenta da AMAR fez-me um convite, o de integrar a equipe da AMAR, atuando

com as mães dos adolescentes que cumpriam medida sócio-educativa.

Começar um trabalho na AMAR era muito significativo para mim, considerando

aquela Associação como um espaço das mães, em que elas seriam protagonistas, lutariam

14

contra a violação de direitos a que os seus filhos eram submetidos e se constituiriam como

sujeitos de suas próprias histórias, mais do que histórias individuais, histórias coletivas.

Após o período em que permaneci na FEBEM/SP, poder estar em um lugar no qual

as mães teriam voz e que, por conseguinte, os adolescentes teriam voz era, de fato, muito

significativo. Daí a decisão de aceitar o convite.

Foi na AMAR, descolada daquele papel de psicóloga da Fundação, que tive contato

com as mais delicadas histórias. Foi lá que os familiares conseguiram expor as suas dores,

os seus limites. Era o lugar apropriado para conseguirem falar dos segredos familiares.

A expressão de angústia, que presenciei em tantas visitas, aquele choro contido que

a mãe não poderia deixar sobrevir na frente dos monitores na FEBEM, era na AMAR que

elas se permitiam expor a dor.

E essa dor dizia muitas vezes da história de vida; outras vezes, daquele momento de

internação do filho e da sensação de encontrá-lo todo espancado, cheio de hematomas, e

sentir-se impotente. Na AMAR, realizavam-se oficinas de reflexão com o objetivo de

trabalhar essas questões e fortalecer o grupo de familiares.

Durante minha permanência na Fundação, fui delineando o meu projeto de pesquisa.

Deu-se lá o primeiro contato com as avaliações e com os pareceres de adolescentes

autores de ato infracional e, mormente, foi naquele espaço que surgiram as primeiras

indagações sobre a forma como essa questão do pai era tratada nas avaliações.

Na AMAR, por meio do contato com alguns pais, fui observando o quanto as

avaliações causavam um mal-estar e quão grande era a sensação de estarem sendo

culpabilizados. Lembro, por exemplo, que não conseguiam dar nome a essa sensação, mas

15

entravam na sala da AMAR com um olhar distante, uma expressão de quem queria falar

algo... mas como? Como dizer que não era bem aquilo, que tudo não se resumia à “falência

deles”?

Impregnada dessas interrogações, iniciei o curso de Mestrado no Programa de

Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP.

O presente estudo enfoca uma análise de laudos, pareceres e avaliações realizadas

por profissionais da Equipe Técnica do Poder Judiciário (psicólogos e assistentes sociais).

Tomou-se um aspecto como disparador da análise: o surgimento nos documentos da

figura do pai do adolescente autor de ato infracional, haja vista ter construído, durante a

minha experiência na FEBEM e na AMAR, a percepção de que expressões como “falência

do pai”, “fragilidade do pai” e similares apareciam de forma recorrente.

Utilizando a questão do pai como elemento deflagrador da análise, estudou-se como

aparecem, nos documentos, as referências a questões relacionadas à dinâmica familiar dos

adolescentes, aos aspectos de sua personalidade e como articulam essas questões com as

sócio-econômicas.

Dessa forma, um dos eixos da pesquisa é a articulação entre os saberes da

Psicologia e do Serviço Social, sobretudo qual a contribuição do Serviço Social para a

desconstrução de discursos psicologizantes e lineares, a exemplo daquele que estabelece

uma relação determinante e causal entre o que é nomeado “falência da função do pai“ e o

envolvimento em atos infracionais.

16

A pesquisa foi realizada nos processos de adolescentes em cumprimento de medida

sócio-educativa de internação que passaram por avaliação com a Equipe Técnica do

Judiciário.

No primeiro capítulo, intitulado O Poder Judiciário e o “saber” das equipes

interprofissionais, apresenta-se a dinâmica de funcionamento do DEIJ – Departamento de

Execuções da Infância e da Juventude de São Paulo - e sobre o que a legislação vigente,

notadamente o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente -, estabelece acerca do “fazer

técnico”.

Recorreu-se a Frasseto (2005) para encetar um questionamento sobre o lugar que

as produções técnicas ocupam no DEIJ. Ainda nesse capítulo, perquiriu-se acerca do

histórico da Psicologia e do Serviço Social no Judiciário, investigação baseada

principalmente nos estudos de Fávero (2005).

No capítulo seguinte, intitulado Catalogando Famílias: o discurso técnico a serviço do

quê? Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante?, discorreu-se sobre a diversidade

de arranjos familiares e o quanto o reconhecimento dessa diversidade é um diferencial

relevante para nortear o discurso técnico, produzindo discursos estigmatizantes ou não.

Nesse capítulo, mostraram-se, outrossim, autores que discutem os grupos familiares

e o impacto dos fatores econômicos na configuração de um quadro de vulnerabilidade.

No capítulo O pai na psicanálise: Reflexões críticas, utilizaram-se autores que

pensam a psicanálise numa perspectiva crítica, estabelecendo um diálogo com a

criminologia crítica. Enfatizou-se a discussão acerca do pai, pois esse foi o elemento inicial

da pesquisa realizada nos documentos.

17

O quarto capítulo, O Estado Transgressor, transitou pelas contradições sociais

comuns aos diversos grupos familiares, dialogando com as configurações do pacto social.

Quais são os valores sociais predominantes na atualidade? São valores estáveis,

consolidados? Apoiou-se, para tanto, em autores que discutem a fragilidade dos valores

sociais na atualidade.

Na Metodologia, buscou-se Bardin (1977), que, em sua obra clássica, traz uma

definição abrangente acerca da análise de conteúdo, e em Minayo (2007,16), que enfatiza

que “nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um

problema da vida prática”. Nesse capítulo, apresentaram-se a amostra pesquisada e o

percurso de acesso aos documentos.

No sexto capítulo, intitulado Categorias Temáticas, apresentaram-se os resultados

da análise por categorias temáticas, conforme proposto por Bardin (1977). Agrupou-se o

material analisado nas seguintes categorias: O pai e as configurações familiares; Autocrítica;

A instituição; A questão social.

Nas Considerações Finais, discorreu-se acerca do diálogo entre as produções do

Serviço Social e da Psicologia, considerando a natureza plural do presente estudo, que

abarca temas relativos não só à Psicologia e ao Serviço Social, como também ao Direito.

Analisou-se a contribuição (ou não) dessas áreas do saber para a efetivação da

garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, sobretudo neste ano, em que o

Estatuto da Criança e do Adolescente atinge sua maioridade (1990-2008).

18

Capítulo 1. O Poder Judiciário e o “saber” das equipes interprofissionais

O Departamento de Execuções da Infância e da Juventude (DEIJ) é o departamento

do Forum das Varas Especiais da Infância e da Juventude de São Paulo, responsável

exclusivamente pela fase de execução da medida sócio-educativa, isto é, da aplicação

propriamente dita.

Esse acompanhamento inclui tanto o processo sócio-educativo do jovem (relatórios

técnicos enviados pela Fundação Casa, decisão de alteração da medida ou de seu

encerramento), quanto a fiscalização de eventuais irregularidades ou descumprimento de

direitos pela Fundação Casa ou pelo Estado em relação ao adolescente sob sua tutela.

Para uma apresentação sobre a dinâmica de funcionamento das Varas da Infância e

da Juventude da capital paulista, recorreu-se a Frasseto:

No Forum atuam profissionais do Direito cuja missão é definir medidas jurídicas em resposta a infrações praticadas por adolescentes. O Promotor de Justiça representa o interesse público de intervir em face daquele que transgride normas penais. O advogado (defensor) representa o interesse do adolescente em não ter sua liberdade de locomoção suprimida ou restringida por imposição do Estado. Ao juiz incumbe, depois de ouvidas as opiniões de Promotor e defensor, decidir as questões aplicando a lei ao caso concreto (FRASSETO, 2005, p.5).

A legislação vigente – Estatuto da Criança e do Adolescente -, ao dispor sobre a

medida de internação, afirma no artigo 121: “A internação constitui medida privativa de

liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição

peculiar de pessoa em desenvolvimento”.

O § 2 º desse dispositivo legal estabelece que: “A medida não comporta prazo

determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no

19

máximo a cada seis meses”. Sobre o prazo, o § 3º ressalta que: “Em nenhuma hipótese o

período máximo de internação excederá a três anos”.

Para analisar-se o caráter indeterminado da medida de internação, Frasseto

apresenta relevantes considerações sobre o “fazer técnico” nesse cenário:

Indeterminado o tempo de duração do regime, a aferição das condições para que cesse, ou seja, para que o sentenciado seja solto, decorrerá dos informes técnicos prestados por profissionais especializados. (...) De forma geral e especificamente na capital paulista, enquanto não houver sugestão, subscrita por psicólogo e assistente social, expressamente favorável à soltura, a medida de internação vai sendo mantida. De forma geral a adesão judicial a um parecer explícita ou implicitamente desfavorável à liberação é quase absoluta (FRASSETO, 2005, p. 7).

Essas ponderações levam à percepção do significativo lugar ocupado pelas

avaliações realizadas por psicólogos e por assistentes sociais. Ao embasar decisões

judiciais, as produções desses profissionais ocupam um lugar decisivo na história de vida

dos adolescentes e de seus familiares.

O presente estudo analisa, documentalmente, as produções de psicólogos e de

assistentes sociais, uma vez que:

Embora a lei silencie sobre o ponto, os profissionais que produzem o parecer técnico, como já se adiantou, são predominantemente o psicólogo e o assistente social. Parte-se do pressuposto da interprofissionalidade, ou seja, da combinação de saberes como condição indispensável ao alcance de uma cognição mais segura de aspectos relevantes da causa ligados à situação pessoal e social do adolescente (FRASSETO, 2005, p. 7).

O adolescente em cumprimento de medida sócio-educativa de internação será

avaliado pelos técnicos da Unidade de Internação, os quais produzirão relatórios emitidos ao

Poder Judiciário. Em alguns casos, o Juiz determina a realização de avaliação pela Equipe

Técnica do Poder Judiciário, objeto de pesquisa do presente estudo:

20

Os motivos que ensejam nova avaliação não são apontados em lei e variam de acordo com o entendimento de cada magistrado. Usualmente, a providência vem justificada por particularidades do estudo enviado, reputado incompleto ou superficial. Outras vezes, ela se dá em razão da gravidade do ato infracional ou da circunstância de se tratar de jovem reincidente, hipóteses em que haveria, segundo o entendimento do juiz, necessidade de maior cautela para a liberação. Em um menor número de vezes, demanda o juiz o aprofundamento de algumas questões particulares ligadas ao arranjo e à dinâmica familiar e à biografia do adolescente. De forma menos explícita, por detrás da ordenação de novo exame, reside uma desconfiança com relação ao trabalho da FEBEM, tido como suspeito em razão da necessidade de o sistema liberar vagas para suportar a pressão da entrada sempre crescente. (FRASSETO, 2005, p. 7).

Neste estudo, optou-se pela análise dos documentos produzidos pelos técnicos do

Poder Judiciário em virtude do lugar que ocupam na engrenagem do cumprimento da

medida sócio-educativa de internação.

As suas produções embasam decisões judiciais referentes à liberação ou não do

adolescente, sendo que, conforme Frasseto, a adesão judicial a um parecer desfavorável à

liberação é quase absoluta.

Definido esse escopo, antes de se debruçar sobre o fazer desses profissionais, no

contexto do adolescente em medida de internação, recorreu-se a Fávero para apresentar-se

a trajetória do Serviço Social e da Psicologia na Instituição Judiciária.

1.1 O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário

Optou-se pela não-apresentação de extensos dados sobre o contexto e sobre a

estrutura do Judiciário, mormente por conta da relevante produção acadêmica já existente

na área, tendo Fávero como um dos expoentes, notadamente no que se refere ao Serviço

Social no Judiciário.

21

A citada autora dispõe sobre as intervenções dos profissionais (psicólogos e

assistentes sociais):

Trabalhando, na maioria das vezes, com demandas sociais e psicológicas que permeiam o cotidiano das Varas da Infância e da Juventude e Varas da Família e Sucessões, o assistente social e o psicólogo intermediam (SIC) ações judiciais que envolvem crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social, que necessitam de medidas protetivas, jovens autores de delitos, famílias em situações de conflito. Nessa intervenção, realizam orientações, acompanhamentos e encaminhamentos, articulações e, principalmente, oferecem subsídios sociais e psicológicos à autoridade judiciária, mediante relatórios, laudos e pareceres, nos quais se destacam informações sobre a história social de vida e comportamento desses sujeitos (FÁVERO, 2005, p. 36).

O histórico do Serviço Social no Tribunal de Justiça expõe o início de uma atuação

formal no final dos anos 1940:

O Serviço Social começou a atuar formalmente junto ao Juizado de Menores no final dos anos 1940, quando ocorreu a I Semana de Estudos do Problema de Menores, mais especificamente com a criação do Serviço de Colocação Familiar no Estado de São Paulo. O desenvolvimento desse trabalho foi atribuído aos assistentes sociais, no Juizado, abrindo um vasto campo para consolidação de suas atividades nesse contexto (FÁVERO, 2005, p. 48).

Desde o início da atuação do Serviço Social no Judiciário, a função de embasar

decisões judiciais está presente:

Em face do aumento da demanda social e pela competência inerente aos profissionais dessa área, que detinham um saber específico sobre as relações sociais e familiares, os assistentes sociais passaram também a oferecer subsídios para as decisões judiciais. (...) As entrevistas e os relatórios, enquanto instrumentos de trabalho, eram realizados de acordo com a natureza das situações atendidas e encaminhadas (SIC) para as devidas instâncias, via de regra para a decisão judicial. Apesar de terem as mais variadas atribuições, os assistentes sociais, ao serem absorvidos no âmbito da Justiça infanto-juvenil, passaram a atuar prioritariamente como peritos, em situações relacionadas às crianças, aos jovens e à família, com vistas a oferecer subsídios à autoridade judiciária para a tomada de decisão (FÁVERO, 2005, p. 49).

22

Nessa retomada da trajetória do Serviço Social do Judiciário, observaram-se, desde

o início, a prática da entrevista e a elaboração de relatórios, ou seja, a função de perito

como o eixo norteador das intervenções, o que permanece nas práticas analisadas neste

estudo.

A inserção da Psicologia no Poder Judiciário teve sua primeira ocorrência em 1.981,

quando alguns psicólogos, que anteriormente atuavam como voluntários, foram contratados,

tendo como atribuições, de acordo com Fávero (2005, p. 52) “assessorar o magistrado por

meio de estudo de caso, elaborar avaliação psicológica, apresentar propostas de

intervenção e realizar orientações pertinentes à sua área”.

Em estudo realizado sobre relatórios psicológicos judiciais, Bernardi aponta que:

A atuação de psicólogos na Justiça Especial da Criança e do Adolescente em São Paulo teve início na década de 80 a partir da implementação do Código de Menores de 1979, que dispunha sobre a possibilidade do magistrado ser auxiliado por estudo de caso realizado por equipe interdisciplinar sempre que possível (BERNARDI, 2005, p. 66).

Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1.990, a

manutenção de equipe interprofissional no Poder Judiciário passou a ser obrigatória,

competindo-lhe, entre outras atribuições, fornecer subsídios à autoridade judiciária,

conforme rezam os artigos 150 e 151 da Lei Federal nº. 8.069/90, mais conhecida como

ECA.

Seção III - Dos Serviços Auxiliares

Art. 150 - Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe inter-profissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude. Art. 151 - Compete à equipe inter-profissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.

23

Ressaltam-se dos artigos supracitados dois aspectos relevantes para o presente

estudo, a saber: I) a legislação refere-se à competência da equipe interprofissional, ou seja,

está prevista, legalmente, a interlocução entre os saberes; II) “tudo sob a imediata

subordinação à autoridade judiciária”. Esses dois aspectos concernem às relações de

poder/saber que se entrelaçam no universo do Judiciário. Sobre o espaço de trabalho no

Poder Judiciário, ao refletir sobre o estudo social, Fávero ressalta que:

(...) ao pensarmos o estudo social a partir da ocupação, pelo assistente social, de um espaço de trabalho vinculado ao Poder Judiciário – um Poder de Estado, que, enquanto responsável pela aplicação das leis e distribuição da justiça, tem sido visto, tradicionalmente, como se estivesse num patamar superior ou à parte dos demais poderes, o que, via de regra, se reproduz em diversas instâncias de ações no seu interior (FÁVERO, in CFESS 2007, p. 11).

Em publicação do CFESS – Conselho Federal de Serviço Social - sobre o estudo

social1, são apresentados alguns questionamentos e reflexões sobre a prática do assistente

social no Judiciário:

Os assistentes sociais têm consciência do saber que acumulam e do seu uso enquanto saber-poder? Deve-se compreender se se trata de um saber fundamentado histórica e teoricamente ou reduzido ao senso comum; se as ações têm sido direcionadas com base no compromisso com a ampliação e garantia de direitos. Os profissionais da área de Serviço Social devem questionar se o trabalho apenas como perito não leva ao risco maior e mais fácil da fragmentação das suas ações e da terceirização desses serviços, enquanto parte do projeto neoliberal de um Estado mínimo (FÁVERO, in CFESS 2007, p. 13).

A relação entre poder e saber, bem explicitada por Foucault (1979), é evidenciada no

âmbito do Poder Judiciário, sendo que Fávero, em pesquisa sobre Serviço Social, Práticas

Judiciária e Poder, afirma:

1 CFESS. O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareceres Técnicos, p.13

24

O exercício privilegiado de um poder com características disciplinares por parte do serviço social, na construção de seu saber e de sua prática no âmbito do Judiciário, é uma realidade que se evidenciou nessa pesquisa (FÁVERO, 2005, p. 125).

No decorrer desta pesquisa, ao serem analisados os documentos produzidos por

assistentes sociais e por psicólogos, observar-se-á o posicionamento desses profissionais

sobretudo em relação ao olhar que direcionam aos arranjos familiares e ao que tem sido

nomeado como “fragilidade do pai” ou “ausência de referencial paterno”. Estas expressões

dizem sobre o lugar do pai na família e estabelecem correlações entre esse lugar e a prática

do ato infracional.

Verificar-se-á, ademais, como o exercício privilegiado do poder, com características

disciplinares, surge nas conclusões produzidas acerca dos modos de organização das

famílias de adolescentes em cumprimento da medida sócio-educativa de internação.

25

Capítulo 2. Catalogando Famílias: O discurso técnico a serviço do quê?

Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante?

Mais do que analisar a influência da estrutura familiar (pai ou mãe ausente), deve-se perguntar pela afetividade que une a família gerada.

Bader Sawaia

A diversidade de arranjos familiares na sociedade contemporânea é tema recorrente

nos mais variados campos: produções acadêmicas, abordagens da mídia e até mesmo em

conversas informais, rodas de amigos. Todavia, houve-se por bem incluir o aludido tema no

início do trabalho por se considerar que, em contextos avaliativos (como o do Judiciário), o

reconhecimento da diversidade é um diferencial relevante para nortear o discurso técnico.

Esse reconhecimento baliza expectativas sobre o grupo familiar e direciona

intervenções. Buscar enquadrar a diversidade de modos de organização de grupos

familiares em modelos pré-formatados ou construídos historicamente, nos coloca na

arriscada posição de tratar como desvio aquilo que é simplesmente diverso.

Ao tratar determinado modo de composição familiar como desviante, destitui-se a

família do lugar de detentora de potencialidades.

Ao analisar-se o lugar da família na política social e o quanto o contexto social pode

ser potencializador ou esfacelador dessas potencialidades, Carvalho considera que:

A maior expectativa é de que ela (a família) produza cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidades e vínculos relacionais de pertencimento, capazes de promover melhor qualidade de vida a seus membros e efetiva inclusão social na comunidade e sociedade em que vivem. No entanto, estas expectativas são possibilidades e não garantias. A família vive num dado contexto que pode ser fortalecedor ou esfacelador de suas possibilidades e potencialidades (CARVALHO, 2003, p. 15).

26

Citando Afonso e Figueiras, Carvalho acrescenta:

Este movimento de organização-reorganização torna visível a conversão de arranjos familiares entre si, bem como reforça a necessidade de se acabar com qualquer estigma sobre as formas familiares diferenciadas. Evitando a naturalização da família, precisamos compreendê-la como grupo social cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização mantêm estreita relação com o contexto sociocultural. (...) É preciso enxergar na diversidade não apenas os pontos de fragilidade, mas também a riqueza das respostas possíveis encontradas pelos grupos familiares, dentro de sua cultura, para as suas necessidades e projetos (AFONSO; FIGUEIRAS, 1995).

Os modos de organização dos grupos familiares são perpassados por questões

sociais, econômicas e culturais que não permitem uma avaliação linear da forma de atuação

da família e dos desdobramentos possíveis a partir deste ou daquele modo de organização.

Ou seja, o argumento reducionista de que, se “falhou” a família, deve entrar a atuação do

Estado não abarca todas as interferências que o grupo familiar vivencia e coloca sobre a

família um olhar que enfatiza as dificuldades e não o direito à proteção.

Esse modo dicotômico de pensar a constituição do sujeito em camadas, como se

primeiro viessem as construções familiares e, acima, as construções do Estado, sobretudo

preenchendo lacunas geradas por falhas nos sistemas familiares, favorece um discurso

culpabilizador em relação ao grupo familiar. É preciso perceber a família sendo atravessada

o tempo todo pela proteção ou desproteção do Estado.

Avaliando esse contexto, a autora continua:

A reforma do Estado em curso; as compressões políticas e econômicas globais; as novas demandas de uma sociedade complexa; os déficits públicos crônicos; a revolução informacional; a transformação produtiva; o desemprego e a precarização nas relações de trabalho; a expansão da pobreza e o aumento das desigualdades sociais são alguns dos tantos fatores que engendram demandas e limites e pressionam por novos arranjos e modos de gestão da política social (CARVALHO, 2003, p. 16).

27

Carvalho reafirma o lugar da família como espaço de proteção, sublinhando,

entretanto, a responsabilidade do Estado:

Família e sociabilidades sócio-familiares se alteraram. No entanto, esta não perdeu o que lhe é essencial: suas possibilidades de proteção, socialização e criação de vínculos relacionais. (...) Não se trata, porém, de desresponsabilizar o Estado em sua função de garantir e assegurar as atenções básicas de proteção, desenvolvimento e inclusão social de todos os cidadãos (e, particularmente, daqueles mais vulneráveis na sociedade contemporânea). Esta solidariedade familiar, no entanto (SIC), só pode ser reivindicada se se entender que a família, ela própria, carece de proteção para processar proteção. O potencial protetor e relacional aportado pela família, em particular daquela em situação de pobreza e exclusão, só é passível de otimização se ela própria recebe atenções básicas (CARVALHO, 2003, p. 19).

Essa inter-relação entre a proteção processada pela família e a proteção processada

(ou não) pelo Estado é um diferencial importante na definição de intervenções. Isso porque,

se não reconhecida, poderá gerar a não-implicação do Estado e uma sobrecarga de

cobranças depositadas sobre os grupos familiares.

Nesse sentido, para auxiliar a configuração do que seria essa proteção demandada

pela família, Carvalho (2003, p. 19) cita atenções diversificadas que otimizariam o potencial

protetor da família: I) Acolhimento e escuta; II) Rede de serviços de apoio psicossocial,

cultural e jurídico à família; III) Programas de complementação de renda; IV) Programa de

geração de trabalho e renda.

A autora provoca a refleção sobre a relevância da rede de apoio aos grupos

familiares para que estes se constituam em espaços de proteção, de resistência aos apelos,

exemplificativamente, do mundo infracional.

Pensar a família de maneira não isolada do contexto em que está inserida auxilia a

construir uma visão que ultrapasse a ordem dos conflitos intrafamiliares, das formas de

28

organização, se monoparental ou não, além de proporcionar um alcance mais efetivo no

planejamento das intervenções.

Nessa contextualização das múltiplas formas de organização familiar, vale lembrar a

preciosa observação de Sarti, que aponta a família como alvo de interferências externas:

Falar em família neste começo do século XXI, no Brasil, como alhures, implica a referência a mudanças e a padrões difusos de relacionamentos. Com seus laços esgarçados, torna-se cada vez mais difícil definir os contornos que a delimitam. Vivemos uma época como nenhuma outra, em que a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além de sofrer importantes abalos internos tem sido alvo de marcantes interferências externas (SARTI, 2002, p. 21).

A autora discute se, na atualidade, é possível sustentar o discurso de modelo

“adequado” de família:

Embora a família continue sendo objeto de profundas idealizações, a realidade das mudanças em curso abala de tal maneira o modelo idealizado que se torna difícil sustentar a idéia de um modelo “adequado”. Não se sabe mais, de antemão, o que é adequado ou inadequado relativamente à família. No que se refere às relações conjugais, quem são os parceiros? Que família criaram? Como delimitar a família se as relações entre pais e filhos cada vez menos se resumem ao núcleo conjugal? Como se dão as relações entre irmãos, filhos de casamentos, divórcios, recasamentos de casais em situações tão diferenciadas? Enfim, a família contemporânea comporta uma enorme elasticidade (SARTI, 2002, p. 25).

Sarti frisa que, diante da flexibilidade das fronteiras familiares, abordar o tema das

famílias e das políticas sociais exige ir além de um único referencial:

Pretende-se sugerir, assim, uma abordagem de família como algo que se define por uma história que se conta aos indivíduos, ao longo do tempo, desde que nascem, por palavras, gestos, atitudes ou silêncios, e que será por eles reproduzida e resignificada, à sua maneira, dados os seus distintos lugares e momentos na família. Dentro dos referenciais sociais e culturais de nossa época e de nossa sociedade, cada família terá uma versão de sua história, a qual dá significado à experiência vivida. Ou seja, trabalhar com famílias requer a abertura para uma escuta, a fim de localizar os pontos de vulnerabilidade, mas também os recursos disponíveis (SARTI, 2002, p. 26).

29

Reconhecer as implicações de condições de vida e de trabalho desfavoráveis auxilia

a romper com a estigmatização de grupos familiares e possibilita superar um discurso

desqualificador.

A propósito, Gomes, ao refletir sobre as atuais condições de vida e de trabalho das

famílias populares, aponta:

E temos a impressão de que a miséria, a vida precária e deplorável de um grupo familiar e, sobretudo, o abandono de crianças é fruto da irresponsabilidade do casal. Porém, a evidência parece inequívoca: à criança abandonada, objeto da violência alheia, civil ou militar, correspondem famílias abandonadas, objeto primeiro da violência social, institucionalizada (GOMES, 2003, p. 61).

Ainda discorrendo sobre a população que habita bairros populares e sobre as

características da vida cotidiana dessas populações, a autora enfatiza:

O tom impessoal, acadêmico não nos pode impedir de ter em mente o que me parece essencial: a expressão “luta pela sobrevivência” refere-se à luta travada por uma ou mais pessoas, no dia-a-dia, de maneira a garantir o mínimo necessário à subsistência individual ou de um grupo doméstico. É crucial mantermos viva a consciência de estarmos lidando com a concretude da vida humana, e não com alguma coisa abstrata, como o linguajar acadêmico, pode induzir-nos a pensar (GOMES, 2003, p. 65)

Nesse sentido, a referida especialista problematiza as conseqüências perversas de

ações que não incluam uma análise sobre o contexto no qual se insere aquela família, bem

como não reconheçam as condições sócio-econômicas desfavoráveis que atuam sobre

determinados grupos familiares.

Pensar em discursos acadêmicos que podem distanciar-se da concretude de vida

das camadas populares remete aos discursos que as ciências, em especial a ciência

psicológica, têm construído acerca das relações familiares.

30

Szymanski, ao refletir sobre o tratamento que a psicologia tem dado à família, aponta

que:

Desde Freud, família e, em especial, a relação mãe-filho, têm aparecido como referencial explicativo para o desenvolvimento emocional da criança. A descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como o locus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento (SZYMANSKI 2003, p. 24).

A autora continua a reflexão, trazendo as implicações de tomar a família como norma

e não como um modelo historicamente construído:

Não tenho dúvidas de que a família que se está visualizando é composta por pai, mãe e algumas crianças vivendo numa casa. Essa imagem corresponde a um modelo, que é o da família nuclear burguesa. As interpretações das inter-relações passaram a ser feitas no contexto da estrutura proposta por aquele modelo e, quando a família se afastava da estrutura do modelo, era chamada de ‘desestruturada’ ou ‘incompleta’ e consideravam-se os problemas emocionais que poderiam advir da ‘desestrutura’ ou ‘incompletude’. O foco estava na estrutura da família e não na qualidade das inter-relações. (...) Fora desse contexto, as famílias são consideradas ‘incompletas’ e ‘desestruturadas’. Essas são mais responsabilizadas por problemas emocionais, desvios de comportamento do tipo delinqüencial e fracasso escolar (SZYMANSKI, 2003, p. 25).

A autora conclui seu artigo sobre “teorias” de famílias apontando que:

Observou-se que, tanto nas teorias e práticas de atendimento familiar como nas representações nas famílias, aparece, de forma irrefletida, o viés do modelo de família nuclear burguesa com conotação normativa. (...) O mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de soluções para as vicissitudes que a vida vai trazendo. Desconsiderar isso é ter a vã pretensão de colocar essa multiplicidade de manifestações sob a camisa-de-força de uma única forma de emocionar, interpretar, comunicar (SZYMANSKI, 2003, pp. 26, 27).

Sem essa “camisa de força”, colocada sobre os modos de organização dos grupos

familiares, é possível reconhecer o potencial para enfrentar as adversidades e buscar

soluções. O contexto de avaliação em que estão inseridos os familiares de adolescentes em

31

cumprimento de medida de internação, no momento das entrevistas com técnicos

(psicólogos ou assistentes sociais), pode se configurar como essa “camisa de força”, caso o

profissional utilize este modelo familiar - pai, mãe e filhos - como norma e considere desvios

as relações estabelecidas fora do referido modelo.

Bilac, ao discorrer sobre transformações recentes na vida familiar, questiona se, com

tantas modificações e dúvidas, é possível chegar-se a uma teoria da família e ressalta a

importância da interdisciplinariedade:

(...) Não há dúvidas sobre o fato de que boa parte das famílias está mudando. Em que medida estas mudanças significam a renovação do(s) modelo(s) já existentes ou a emergência de novos modelos? (...) Caberia perguntar se, com tantas dúvidas e tantos aspectos a serem examinados, é possível chegar-se a uma teoria da família. É bem possível que sim, embora não pareça que possa ser mais uma tarefa isolada de nenhuma das Ciências Humanas, seja ela a Sociologia, a Psicologia ou a História. Uma abordagem da família que dê conta da complexidade desse objeto, em nossos dias, deveria ser, necessariamente, uma construção interdisciplinar. Talvez seja essa a melhor forma de se sair da encruzilhada a que chegaram os estudos da família (BILAC, 2003, p. 37).

Perceber que uma única ciência não abarca a diversidade das formas de vida implica

reconhecer que uma só teoria psicológica ou sociológica (ou a obra de um determinado

autor) não poderá ser a única referência para rotular a família que se apresenta. Uma

referência única poderá decepar modos de constituição significativos para aquele grupo

familiar, provocando sofrimento, o que, ao invés de favorecer a mobilização do grupo para

enfrentar determinada adversidade, poderá imobilizá-lo.

Mello, ao considerar a questão da organização/desorganização familiar, ressalta que:

Uma afirmação comum, na literatura especializada, é que as populações migrantes e, de um modo amplo, as camadas mais pobres da população urbana, que se concentram nos bairros populares da periferia ou nas favelas e cortiços mais centrais, padecem de uma desorganização familiar acentuada. Segundo esse raciocínio, haveria uma família organizada, padrão de ordem e harmonia e, partindo desse padrão, um continuum ao

32

longo do qual se situariam as formas de desorganização mais ou menos severas (MELLO, 2003, p. 51).

Ainda em referência ao modelo que define organização e desorganização,

acrescenta:

O modelo que preside as atribuições de organização e desorganização é o da família nuclear, monogâmica, composta de mãe, pai e filhos. O pai provê, com seu trabalho, todas as necessidades da família; a mãe, carinhosa e infatigável, toma conta da casa e da educação das crianças. Tanto o pai como a mãe encontram profunda satisfação em seu trabalho e digna recompensa econômica, proporcionando um clima de estabilidade e harmonia para o crescimento das crianças. Estas brincam e estudam, são alegres e despreocupadas. (...) O mundo desta família gira em torno de si mesmo, imutável, como um oásis de estabilidade num mundo perigoso e turbulento (MELLO, 2003, p. 56).

A leitura das características desse modelo provoca um sentimento de utopia, como a

descrição de algo inatingível, donde a perversidade de buscar “esgarçar” o tecido do outro

até alcançar o inatingível. Quantas rupturas podem ser provocadas na constituição daquele

tecido, diverso do modelo idealizado? Será que esse formato de intervenção não diz mais

das nossas buscas, das nossas limitações, do que da “falha” do outro?

Mello enfatiza o quão estigmatizante é tomar esse modelo como padrão:

A existência dos modelos normativos não mereceria maior consideração, se estes não fossem tomados como padrões a partir dos quais são medidos os desvios. Mais ainda, não teriam importância se, como modelos ideais, não fossem veiculados a toda hora pelos meios de comunicação, como o certo, o bonito, o desejável. Também não teriam importância se, como produtos ideológicos, não fossem interiorizados e não se tornassem um dos fundamentos políticos de atribuição de caráter negativo e estigmatizante. É freqüente encontrarmos, mesmo na literatura especializada, a assim chamada “desorganização familiar” como a única responsável pelo fracasso escolar e adaptativo das crianças. Mais ainda, ela aparece também como fonte da violência, do abandono de crianças e da marginalidade dos jovens, ou seja, a família é responsável pelo que aparece como fracasso moral dos seus membros (MELLO, 2003, p. 57).

A frase inicial da citação explica o lugar que este capítulo ocupa no presente

trabalho. A opção por iniciar a dissertação com uma discussão sobre os arranjos familiares

33

considerou o quanto tem se catalogado a diversidade como desviante. Nesse sentido, a

decisão por “catalogar” o diverso como desviante coloca-nos diante do posicionamento

ético-político do profissional envolvido em intervenções com grupos familiares, o que pode

atuar como potencializador ou esfacelador das competências familiares.

Considera-se que essa postura desqualificadora das formas de organização familiar

recaí, sobretudo, em camadas mais populares, como um adereço que se soma ao rol de

adversidades. Não é incomum, nas discussões de caso, nos diversos equipamentos que

atuam com famílias, ouvirem-se frases como “um filho de cada pai”.

Mello, ao discorrer sobre as populações das periferias e das favelas das grandes

cidades, reafirma a importância de reconhecer-se o que nomeia como pluralidade de formas

de organização familiar:

Não é razoável falar de ausência de organização, mas de polimorfismo familiar. Despidos da rigidez das fórmulas e sem olhos preconceituosos, podemos ver as famílias como elas são e não como deveriam ser, segundo modelos que são abstratos, pois são históricos e presos às diferentes perspectivas das classes sociais. (...) é preciso estar muito atento e não confundir a violência dos conflitos que atingem estas famílias com a desorganização, porque estaríamos formulando juízos de valor que têm a nossa experiência pessoal e de classe como base da representação (MELLO, 2003, p. 58).

A autora enfatiza, ainda, as condições em que vivem essas famílias:

É necessário ver as condições em que vivem estas famílias para compreender a inevitabilidade dos conflitos. Basta tomar as habitações como ponto de referência do nosso olhar e da nossa reflexão. Lado a lado com a conquista diária do alimento, sempre escasso, conquista-se, diariamente, um espaço no interior das casas pequeníssimas, um lugar nas camas e colchões compartilhados com muitos irmãos. Não só é impossível a intimidade, como há uma coletivização forçada que constitui o núcleo obrigatório da vida em família. Nas casas, eles estão, literalmente, jogados uns sobre os outros e, o que é importante, jogando seus sentimentos, sejam os fortes sentimentos de afeto ou os, igualmente fortes, de raiva e frustração (MELLO, 2003: 58).

34

Penso que, após um mapeamento, tão completo quanto possível, das diferentes maneiras de viver a família, estaremos em condições de reescrever uma teoria que não seja cega, ou, ainda pior, excludente e discriminadora para tão amplos segmentos da sociedade brasileira (MELLO, 2003:60).

Nesse sentido, o posicionamento do profissional responsável por este “olhar” sobre o

grupo familiar poderá estar carregado de preconceitos, interferindo nas conclusões sobre o

modo de vida daquele grupo familiar. Donzelot, ao tecer crítica sobre as intervenções dos

trabalhadores sociais, mais especificamente no trato com as famílias, refere-se à tecnologia

do inquérito sobre as famílias pobres, relatando as intervenções de controle das famílias.

Nesse trecho, a autor analisa a prática da visita domiciliar:

É sempre preferível que o visitador não convoque seu cliente, mas vá ao domicílio deste último e que tal visita seja feita de surpresa’. Ainda hoje é o ABC da profissão de Assistente Social que escolhe as horas vazias da tarde para fazer a sua primeira visita, pois é quase certo encontrar a mãe sozinha em casa. (...) Falando e tomando algumas anotações, o visitador observa à sua volta, examina o aposento, sua disposição, seu estado, as promiscuidades que ele impõe, as condições de higiene em que vivem os habitantes. Ele estabelecerá o inventário da mobília, dos utensílios, das roupas à vista. Também não é mau levantar a tampa de algumas panelas, examinar as reservas de alimentos, as camas e, se preciso for, tirar algumas fotos expressivas (DONZELOT, 1986, p. 114).

Para não parecer algo distante da realidade brasileira, acrescenta-se citação de

Iamamoto:

Muitas vezes, o profissional move-se pela vontade de estar junto com a população atendida, mas objetivamente não está próximo de seus interesses como coletividade, sendo, de fato, um estranho para os indivíduos com que trabalha. O professor José de Souza Martins, estudando o mundo agrário, tem um livro que chama ‘A chegada do estranho’. O estranho, para os produtores familiares, posseiros e assalariados é o representante do capital e dos grandes proprietários de terra, o técnico das entidades oficiais: mas também, o militar, o jagunço, o cientista social. Enfim, todos aqueles que são alheios ao universo e interesses sociais daquela população e que contribuem para subjugá-la política ou economicamente. O assistente social também pode estar sendo estranho diante dos segmentos das classes subalternas, contribuindo para que cidadãos se metamorfoseiem em vítimas, exercendo uma ação de cunho impositivo (IAMAMOTO, 1998, p. 77).

35

As considerações supracitadas, que dizem respeito ao posicionamento do

profissional, auxiliam a sustentar que não há neutralidade possível. O profissional, seja

assistente social, seja psicólogo, estabelece com os grupos familiares relações que o

colocam em posição que contribui para o desenvolvimento daquele grupo familiar ou reforça

uma condição de subalternidade. Daí a interrogação deste capítulo: o discurso técnico, a

serviço do quê?

Sawaia, ao abordar o tema família, ressalta que:

Família é conceito que aparece e desaparece das teorias sociais e humanas, ora enaltecida, ora demonizada. (...) Ela continua sendo, para o bem ou para o mal, a mediação entre o indivíduo e a sociedade. E mais, assiste-se hoje ao enaltecimento dessa instituição, que é festejada e está em evidência nas políticas públicas, e é desejada pelos jovens (SAWAIA, 2002, p. 42).

A autora continua sua análise propondo situar historicamente esse revival da família:

O contexto em que emerge, como já foi dito e é conhecido por todos, é o do neoliberalismo, caracterizado por Estado mínimo, capital volátil, crise de emprego, aumento da miséria, manipulação comercial e publicitária de corpos e sentimentos. As instituições não mais promovem modelos de identificação e confiabilidade, e o indivíduo está fechado em si mesmo, encastelado e auto-absorto em seu narcisismo. Nesse contexto, o Estado, isentando-se dos deveres de prover o cuidado dos cidadãos, sobrecarrega a família, conclamando-a a ser parceira da escola e das políticas públicas, e a sociedade, atônita, na ausência de “lugares com calor”, elege-a como o lugar da proteção social e psicológica (SAWAIA, 2002, p. 45).

Continuando sua exposição, Sawaia faz preciosa observação sobre o risco desse

revival, no sentido de que existe o risco de culpabilizar, responsabilizar e sobrecarregar a

família como negociadora, provedora, cuidadora, alavancadora, lugar do acolhimento.

36

2.1 As condições sócio–econômicas

(...) a verdadeira destruição da família, não são os homossexuais, as família monoparentais, mas é a miséria.

Elizabeth Roudinesco

Com o objetivo de avançar na compreensão do contexto sócio-econômico em que

está inserida a maioria das famílias a que se refere o presente estudo, recorreu-se a autores

que discutem o impacto dos fatores econômicos para a configuração de um quadro de

vulnerabilidade.

Lavinas e Nicoll, em artigo intitulado Atividade e Vulnerabilidade: Quais os Arranjos

Familiares em Risco?, apontam que:

Muito se fala na imensa vulnerabilidade dos arranjos familiares com filhos, notadamente aqueles cuja chefia é feminina e nos quais o cônjuge masculino é ausente. Sabendo-se que não há políticas permanentes e universais de apoio às famílias no Brasil, e que, portanto, grande parte do que poderia ser desmercantilizado por intermédio de políticas públicas para compensar dignamente o aporte das famílias – leia-se das mulheres – não o é, sendo assumido, na prática, na esfera privada dos lares, nem de longe se pretende contestar evidência tão cristalina. Porém diante de tamanho vácuo no campo das políticas às famílias, será que o maior ônus recai nas famílias monoparentais femininas? Quais são os arranjos familiares mais fragilizados pela ausência de um sistema de proteção social que dê segurança, reduza a vulnerabilidade e promova eqüidade? (LAVINAS, 2006, p. 67).

Os autores citam a diversidade de arranjos familiares. Apoiando-se em Goldani e

Verdugo Lazo, ressalte-se que:

Nos últimos 30 anos, as famílias brasileiras quase triplicaram de número, o tamanho médio delas se reduziu (de 4,9 para 3,5 pessoas) e suas condições de vida melhoraram. No entanto, ‘a diversidade de modelos é sua característica mais notável’. Segundo essas autoras, houve uma diminuição importante no número de famílias biparentais com filhos e um crescimento das famílias monoparentais (chefe sem cônjuge) com filhos; observa-se também uma progressão importante das famílias unipessoais (GOLDANI; LAZO, 2004).

37

Em 2.003, segundo o IBGE2, 10% das famílias brasileiras eram constituídas por

pessoas que moravam sozinhas (unipessoais); quase 15% compunham-se de casais sem

filhos – logo, a quarta parte do total era de família sem presença de prole; 51% eram

famílias nucleares com filhos; 18% eram chefiadas por mulheres sem cônjuges, porém com

filhos; um resíduo de 6% congregava outros arranjos.

O percentual de famílias com pessoas de referência do sexo feminino era de 28,8%,

em 2.003, contra 16%, em 1.981. Desse total de 15,3 milhões de famílias chefiadas por

mulheres, quase dois terços eram monoparentais com filhos.

Lavinas e Nicoll citam que pesquisa realizada por Sorj (2004) revelou que as

mulheres trabalhadoras pobres com crianças pequenas (em idades variando de 0 a 6 anos),

freqüentando creches, auferiam rendimentos de trabalho superiores àquelas igualmente

pobres e ocupadas, cujos filhos da mesma idade não dispunham de opções externas de

guarda.

Os autores deixam claro que:

Os dados do IBGE/PNAD 2003 reiteram aspectos enfatizados por Sorj (idem). Mostram que somente 37% das crianças brasileiras na faixa de 0 a 6 anos freqüentam creches ou a pré-escola. Os dados da PNAD indicam que somente 2% dos trabalhadores de ambos os sexos declaram receber em 2003 algum auxílio financeiro para compensar despesas com creche ou educação. Já na rubrica transporte, são contemplados 37% dos trabalhadores do sexo feminino e 35% dos trabalhadores do sexo masculino. Isso demonstra a pouca atenção também no plano dos auxílios trabalhistas a questões ligadas ao que convencionou chamar de maternagem, de forma a facilitar a conciliação do tempo de trabalho com os cuidados com a família. Na ausência de políticas públicas conseqüentes, a grande maioria das mulheres com filhos pequenos tem de buscar soluções individuais e privadas para a guarda das suas crianças (LAVINAS, 2006, p. 77).

Gomes, a propósito do tema, ao analisar o cotidiano de famílias de classes

populares, refere-se a condições de sobrevivência, asseverando que “o Brasil apresenta,

2 Fonte: PNAD/IBGE (2003)

38

nas últimas décadas, uma das maiores e mais inaceitáveis concentrações de renda, dentre

os países da América Latina, e até mesmo do mundo”.

A autora, ao refletir sobre o cotidiano das mulheres de uma vila da periferia de São

Paulo, mais especificamente em relação ao cuidado com os filhos e à estratégia de deixá-

los sob o cuidado de vizinhos, acrescenta:

(...) a existência dessa estratégia revela a carência absoluta de creches. A criação delas é uma necessidade vital e urgente, de maneira a garantir o trabalho materno nos bairros mais populares. (...) Porém, o recurso a essa estratégia revela, sobretudo, uma outra coisa fundamental: os pais não abandonam seus filhos. A luta pela sobrevivência impõe-lhes trabalhar de qualquer maneira e em qualquer condição. Para garantir isso, torna-se necessário – já que o Estado e a sociedade não lhes asseguram condições mínimas - encontrar alguma saída (GOMES, 2003, p. 70).

Gomes continua sua análise sobre “estratégias de sobrevivência” e chama a atenção

para um aspecto relevante na análise e na compreensão da dinâmica familiar, sobretudo de

adolescentes autores de ato infracional:

(...) se os pais migrantes se sentem bem sucedidos com os níveis de vida e de trabalho derivados de seu estabelecimento na metrópole – porque comparam o ontem com o hoje -, os filhos, produtos dessa cidade, não importa se dos seus setores mais marginalizados, conhecem a riqueza, o estilo e a qualidade de vida que ela proporciona a outros, aos melhor aquinhoados. Assim, resistir às imposições de uma vida tão desumana quanto a que lhes é destinada torna-se algo bem mais difícil, bem mais complicado. E nós não temos a menor possibilidade de avaliar, com algum grau de segurança, quais serão as conseqüências disso a médio e a longo prazo (GOMES, 2003, p. 71).

Lavinas e Nicoll, ao analisarem quais os arranjos familiares mais fragilizados pela

ausência de um sistema de proteção social, indicam, entre outros aspectos, que:

Os investimentos sociais – escola de qualidade, escola em tempo integral, creches, daycare, transportes públicos de qualidade etc. – contribuem para a elevação da renda das mulheres trabalhadoras porque tendem a ampliar sua capacidade contributiva, liberando seu tempo de trabalho e alargando e fortalecendo sua autonomia no âmbito das relações de gênero, o que tem

39

rebatimentos diretos e positivos na redução da pobreza (LAVINAS, 2006, p. 84).

Dando continuidade ao estudo sobre os fatores que contribuem para a

vulnerabilidade familiar, os autores lembram que:

É senso comum que os arranjos familiares em situação de risco e de maior vulnerabilidade são aqueles chefiados por mulheres sozinhas, ou seja, a falência do modelo patriarcal de família, que tem na figura masculina o papel do provedor, estaria levando a um empobrecimento crescente das novas gerações, na medida em que muitas crianças estariam sendo criadas, cuidadas e educadas em famílias monoparentais femininas, logo, exclusivamente por mulheres, cuja posição no mercado de trabalho é, comparativamente à dos homens, inquestionavelmente mais desfavorável (salários em média inferiores, menor jornada semanal de trabalho e maior taxa de desempregos etc.) (LAVINAS, 2006, p. 85).

Todavia, destacam que a análise dos dados sobre arranjos familiares e sobre

diferenciais de gênero por classe de renda traz conclusões surpreendentes:

(...) mesmo nas classes de renda mais baixa, e por isso mais vulneráveis – a vulnerabilidade é aqui expressa exclusivamente com base em um determinado nível de renda -, os arranjos familiares com presença de crianças cuja pessoa de referência é do sexo feminino não estariam sempre e forçosamente na condição mais crítica, (...). Uma primeira constatação – e não das menos relevantes – é a de que o sexo da pessoa de referência na família não é variável de impacto na determinação da vulnerabilidade (...) Da mesma maneira que o sexo do chefe é quase indiferente na probabilidade de uma família ser mais ou menos vulnerável, o perfil da família, se biparental (chefe, geralmente homem, e cônjuge) ou monoparental (entenda-se chefia feminina), tampouco tem peso expressivo na explicação da vulnerabilidade (LAVINAS, 2006, p. 89)

Os autores concluem o estudo apontando que a provisão de serviços públicos é fator

significativo para a redução das vulnerabilidades e das desigualdades sociais.

(...) é indispensável retomar o investimento público na escola de tempo integral, com ensino de qualidade, e ampliar a oferta de creches, por parte das prefeituras, para crianças na faixa pré-escolar, de modo a galvanizar a autonomia das mulheres. Só a universalização do acesso e do padrão de qualidade dos serviços desmercantilizados são capazes de reduzir profunda e rapidamente os diferenciais de gênero e as desigualdades sociais no país. (...) O que falta ao Brasil é desenhar uma política universal de renda voltada para famílias com crianças, para atuar com efetividade na redução das vulnerabiliades e das desigualdades sociais. Estas atingem a todas as

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famílias em situação de insegurança socioeconômica, independente do sexo do chefe e do seu perfil (mono ou biparental) (LAVINAS, 2006, p. 91).

Nessa mesma perspectiva, ao dispor sobre os equipamentos da rede de proteção

social, Sarti enfatiza que:

Nos casos de instabilidade familiar por separações e mortes, aliada à instabilidade econômica estrutural e ao fato de que não existem instituições públicas que substituam de forma eficaz as funções familiares, as crianças passam a não ser uma responsabilidade exclusiva da mãe ou do pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a família está envolvida (SARTI, 2002, p. 31).

41

Capítulo 3. O pai na psicanálise: reflexões críticas.

No tópico anterior, discorreu-se acerca da pluralidade de modelos familiares,

ressaltando o quanto o modelo familiar - pai, mãe e filhos -, construído historicamente,

permanece em alguns momentos como norma a partir da qual se mensuram os desvios

familiares e as conseqüências negativas desses “desvios” para a formação dos indivíduos.

Algumas concepções teóricas dão especial lugar a esse modelo e à função do pai na

dinâmica familiar. Desde já, é imprescindível uma ressalva sobre os limites do presente

trabalho, o qual não tem por objetivo uma discussão das teorias psicanalíticas acerca da

função paterna. Portanto, não abarca uma análise do lugar do pai nos diversos autores de

base psicanalítica, de modo que a inscrição no título falência do Pai ou falência da Pátria

possui um caráter mais provocativo do que conclusivo.

Todavia, configura-se como material de discussão o uso que se tem feito de alguns

jargões da psicanálise, ainda que equivocadamente.

A discussão sobre o pai “concreto/simbólico” ou a função paterna, e não o pai

concretamente, é diferenciação fundamental na linguagem psicanalítica. No entanto,

observa-se que essa diferenciação relevante em contextos acadêmicos ou clínicos não é tão

palpável em contexto como o tratado neste estudo, recaindo as caracterizações de falência,

ausência ou fragilidade sobre aquele pai concreto, sentado na frente do técnico,

reproduzindo relações de poder que aquele pai já conhece, como, por exemplo, entre patrão

e empregado.

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Segundo informações da Fundação Casa3, 51% desses pais, são homens que vivem

realidades concretas muito árduas: ocupam a função de pessoal de serviços, vendedores,

trabalhadores não qualificados e operários, ao passo que apenas 1% ocupa o lugar de

especialistas das profissões intelectuais e científicas.

Quando saem das salas onde são avaliados, muito provavelmente não tiveram

nenhuma explicação sobre função, simbolismo ou algo parecido e serão concretamente

cobrados pelas suas fragilidades, o que poderá acarretar a permanência de seus filhos na

medida de privação de liberdade, sem nenhum simbolismo ou metáfora. É esse uso o limite

do presente estudo.

Para ilustrar o uso, recorreu-se às considerações de Frasseto sobre a leitura de

avaliações psicológicas em adolescentes privados de liberdade, com amostra selecionada

para elucidar a motivação apresentada pelos psicólogos ao sugerirem a medida de

internação. Diz ele que “emerge dos laudos o referencial psicanalítico ou psicodinâmico no

qual as conclusões sobre o ser humano vêm ancoradas” (2005, p 108).

Segundo o autor, tais conclusões ocupam o lugar de âncora nas justificativas para a

indicação ou manutenção da medida de internação:

O progenitor mostra-se bastante limitado e fragilizado pela idade e saúde debilitada, parecendo absolutamente desvitalizado enquanto figura reguladora (...) Parece ter carecido de figura de autoridade efetivamente atuante enquanto referência de ascendência sobre si, sugerindo falência da função normativizadora familiar (...) Este jovem provêm, portanto, de grupo familiar que se mostrou incapaz de oferecer-lhe condições para seu pleno desenvolvimento bio-psico-social (FRASSETO, 2005, p. 113).

Rauter, ao refletir sobre os pressupostos em que se baseiam as avaliações, exames

e procedimentos diagnósticos de indivíduos encarcerados afirma que:

3 Site Oficial Fundação Casa

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A idéia de que as relações estabelecidas na infância, pelo indivíduo, com seus familiares, é de fundamental importância na formação da sua personalidade, é largamente aceita pelos chamados profissionais de saúde mental, de várias tendências. A psicanálise, aqui também suporte para tais idéias, tem sido questionada hoje a respeito de suas teorizações sobre o Complexo de Édipo, espécie de mini-drama familiar comum à maioria dos seres humanos. Até que ponto seria generalizável a ocorrência do drama edipiano? Não será ele peculiar a um certo tipo de família, localizada numa determinada época histórica, num determinado segmento social? (RAUTER, 2003, p. 92). De qualquer modo, mesmo que os psicanalistas afirmem tratar-se de “imagens parentais internalizadas” e não de personagens concretos, o fato é que o modelo edipiano mais difundido é aquele que pressupõe a existência de uma família baseada na autoridade paterna e composta de pai, mãe e filhos (RAUTER, 2003, p. 92).

A autora continua, citando como a difusão do modelo edipiano a que se fez alusão –

pai, mãe e filhos – reflete-se nas avaliações:

É a difusão deste modelo edipiano, talvez em desacordo, dirão alguns, com a teoria “pura”, que permitirá a nossos psicólogos e psiquiatras forenses caracterizarem como potencialmente criminogênicas e patogênicas situações do tipo: famílias onde ocorreu a morte do pai ou o abandono precoce por parte deste; famílias onde o pai bebe, está preso ou doente; famílias onde a mãe cria o filho sem pai, ou onde a mãe tem filhos de homens diferentes; famílias onde a mãe está ausente, mesmo que seja por ter trabalhar (RAUTER, 2003, p. 92).

Nesse sentido, objetivou-se aqui, no decorrer da análise documental, verificar se

esses pressupostos embasaram posicionamentos estigmatizantes e enfatizar o diálogo dos

profissionais do Serviço Social com os supramencionados pressupostos, até porque a

mesma autora evoca a relevância das condições concretas de existência e o quanto trazer à

tona essas condições possibilita uma melhor compreensão das formas de organização

familiar. Veja-se:

E logo nos damos conta de que todos os graves indícios de anormalidade mental ou de tendência a delinqüir encontrados na história familiar dos indivíduos examinados fazem parte da realidade mais comum e cotidiana vivida pela camada da população a que pertencem. Ou seja, as condições de miséria geradoras pela própria exploração capitalista recebem uma leitura estigmatizante, que é utilizada na construção da personalidade criminosa. Entretanto, o que é tomado por nossos peritos como “anormalidade” constitui, na verdade, a regra, o resultado mesmo das condições a que são submetidos imensos setores da população brasileira (RAUTER, 2003, p. 93).

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Em célebre artigo intitulado Psicanálise da criminalidade brasileira: ricos e pobres4, o

psicanalista Hélio Pellegrino apresenta algumas reflexões sobre o diálogo entre a

psicanálise e a crise social, trazendo relevante contribuição ao presente estudo. O autor

inicia o artigo expondo a sua leitura sobre a criminalidade e crise social:

A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou melhor: ela é expressão e conseqüência de uma patologia social suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre os membros de uma comunidade. A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e vivificada por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco de valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de uma cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de promover a integração - e a coesão - do tecido social. Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a injustiça impera e a iniqüidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala; quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante ostentação de pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também perversa. Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.

O renomado psicanalista, ao expor sua visão sobre a criminalidade, considera-a

como expressão de uma patologia social; não faz uso da psicanálise, pois, para atribuir a

questões psíquicas a expressão de patologias sociais. Nesse sentido, já em 1.984,

estabelece um diálogo interdisciplinar, uma vez que, em sua leitura da criminalidade,

considera as questões sociais envolvidas.

No mesmo texto, Pellegrino apresenta um diálogo entre o pacto edípico e o pacto

social, apresentando uma exposição sobre o Complexo de Édipo, a saber::

4 Jornal Folha de São Paulo, Folhetim, 07 de outubro de 1.984

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O Complexo de Édipo é, para o criador da psicanálise, a principal articulação estruturante do psiquismo humano. Ao mesmo tempo, é fonte e origem das relações elementares de parentesco e das instituições sociais, de caráter leigo ou religioso. É na constelação dos conflitos edípicos que a criança se defronta, de maneira crucial e inaugural, com as figuras da Lei, da interdição, da transgressão, da culpa e do temor ao castigo, advindo do poder de polícia e do papel de juiz atribuídos ao Pai. Vamos relatar, de um ponto de vista descritivo, o Complexo de Édipo, segundo o pensamento de Freud. A exposição que faremos se refere exclusivamente ao Édipo masculino, na sua forma direta, ou positiva. Este caminho implica, sem dúvida, uma simplificação. Através dela, entretanto, ganharemos uma simplicidade e uma clareza elucidativa capazes de favorecer a eficácia da tese que iremos expor. Par Freud, entre os três e os cinco anos, o menino se encontra na fase genital infantil - ou fálica - de seu desenvolvimento psicossexual. Nessa idade, tendo já o pênis como seu principal órgão de prazer, apaixona-se pela mãe, desejando-a sexualmente, ao mesmo tempo que odeia o pai e imagina a sua destruição, já que este é, segundos sua fantasia, o rival que lhe barra o caminho do incesto. A vicissitude edípica, cheia de som e fúria, é extraordinariamente penosa, pelas culpas que suscita e pelos temores que desperta. A relação do menino com o pai, nessa época, é marcada por forte ambivalência. O menino odeia o pai e quer matá-lo, mas, ao mesmo tempo, o ama, admira e respeita. Concomitantemente, teme, com todo o seu corpo, a retaliação paterna, por ele imaginada. O Édipo, representando a gramática pela qual o desejo se estrutura, de modo a integrar-se no circuito de intercâmbio social, significa também uma etapa decisiva no processo de separação entre a criança e a mãe. Esta separação é absolutamente indispensável, caso contrário a criança jamais chegará a superar sua dependência infantil. A construção desse afastamento se inicia com o corte do cordão umbilical. Depois, chega a época traumática do desmame. A seguir, são impostas as regras de controle esfincteriano e de higiene, ligadas à excreção. Por fim, vem o Édipo e a interdição do incesto. A partir daí, o menino perde profundamente a mãe, enquanto objeto sexual, e se credencia ao grave preço desta perda, a ganhar os caminhos do mundo e o amor futuro das outras mulheres. (...) A resolução do Édipo é condição indispensável para a boa inserção da criança no circuito de intercâmbio social. O menino, no Édipo, esbarra com a potência de interdição da lei e, nesta medida, tem que renunciar à onipotência do seu desejo, o que corresponde a uma terrível injúria narcísica. Ele tem que abandonar o princípio do prazer e aceitar o princípio da realidade, pelo qual vai inserir-se no circuito de intercâmbio social. Essa grave renúncia, entretanto, não se faz em pura perda. A Lei do Pai, fora de dúvida, exige do menino um sacrifício portentoso. Mas, uma vez integrada, abre para o seu desenvolvimento perspectivas cruciais e fundadoras. A Lei do Pai implica uma ação de troca e de intercâmbio amoroso. Ela pede - mas doa. Constringe, mas liberta. Impõe ao desejo uma gramática mas cria a possibilidade do livre discurso amoroso. Deveres e direitos A lei da Cultura é, em sua essência, um pacto, um toma-lá, dá-cá, um acordo pelo qual a criança é introduzida como aspirante a sócia da sociedade humana. Ela adquire, pelo Édipo, um lugar na estrutura de parentesco, ganha nome e sobrenome, tem acesso à ordem do simbólico e, portanto, à linguagem, liberta-se da excessiva dependência à mãe e se torna capaz de iniciar sua aventura humana, como inventora dos caminhos do seu desejo. O Édipo é um crivo crucial. Através de sua estrutura se

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constitui o modelo básico de intercâmbio entre o ser humano e a sociedade, pela definição de deveres e direitos. A resolução do Édipo hominiza - e humaniza. A renúncia ao incesto implica, também, a renúncia aos impulsos criminais e anti-sociais. Aceito as regras do jogo da sociedade em que vivo. E passo a jogá-lo. A capacidade de trabalhar, em qualquer nível, é uma exigência feita pela sociedade a todos os seus membros. Para atendê-la, a criança, mais uma vez, tem que renunciar ao princípio do prazer, acatando - e praticando - o princípio da realidade. Repete-se aqui, ao nível das tarefas, obrigações e deveres sociais, a mesma exigência feita à criança com relação aos seus impulsos edípicos. Para renunciar ao incesto e ao parricídio, a criança teve que abrir mão da onipotência de seu desejo. Este foi o batismo de fogo que a fez ingressar como aspirante a sócia da sociedade humana. Através do aprendizado escolar, profissional e humano, a criança também tem que abrir mão dessa onipotência. Os dois processos - o Édipo e as subseqüentes tarefas de socialização - representam situações estruturalmente análogas. Se o Édipo é o batismo, o trabalho é a crisma pela qual o ser humano se torna sócio da sociedade humana. Em ambas as situações, as renúncias exigidas são muito graves. Trabalhar é desistir da onipotência do desejo. É adequar-se ao princípio da realidade. É aceitar os princípios de autoridade, hierarquia e disciplina. É poder conviver, cooperativamente, com os outros. É, afinal, cumprir uma exigência imperativa da sociedade, cujo atendimento deve gerar, por justiça, direitos inalienáveis.

Continuando a exposição, o autor apresenta a relevância do cumprimento do pacto

social, sendo que esse trecho merece destacada atenção, pois dialoga com as estruturas de

dominação, com o capitalismo selvagem e com o desemprego, aspectos tão enraizados no

histórico dos adolescentes autores de ato infracional e de seus familiares. Pellegrino

enfatiza ainda os efeitos do apodrecimento dos valores sociais:

A partir do trabalho, exigido pela sociedade, estabelece-se um pacto social que, à semelhança do pacto edípico, tem que ter mão dupla. A competência para o trabalho exige um longo e doloroso aprendizado. Em troca deste sacrifício, quem trabalha adquire o sagrado direito de receber, como paga, o mínimo necessário à preservação de sua subsistência e dignidade - e à de sua família. O pacto social se legitima - e se cumpre - através desse intercâmbio. Sem ele, o pacto se torna viciado e se corrompe, com graves conseqüências. Suponhamos que pacto social não seja cumprido, por parte da sociedade. O trabalhador, de qualquer categoria, não é recompensado pelo longo esforço que fez. Apesar de sua competência, tem as mãos vazias. Não tem emprego ou, se o tem, ganha um salário que não lhe permite viver com dignidade. O aviltamento do seu trabalho é a mais grave ofensa social que possa ser feita a um homem. Ela o atinge na essência mesma de sua condição de pessoa. Ela ofende o seu senso de equidade e de justiça. Ela o frauda na sua esperança - e na sua fé no mundo. Ela semeia em seu coração a descrença e a revolta. O desrespeito da sociedade pelo trabalho - e pelos direitos elementares do trabalhador - pode levá-lo a uma ruptura com o pacto social. Desprezado, aviltado, degradado, o trabalhador se nega ao pacto. Rompe com ele, questiona-lhe a estrutura, repudia a validade e a justiça dos sacrifícios que,

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em seu nome, lhe foram exigidos. O rompimento do pacto social pelo trabalhador, em resposta a uma prévia ruptura da sociedade, pode vir a ter conseqüências catastróficas. Não nos esqueçamos que (SIC) o pacto social - e o pacto edípico - se articulam íntima e indissoluvelmente. O processo civilizatório, em seu conjunto, obedece a uma mesma linha estratégica. Ela exige progressivas e dolorosas renúncias, mas, em troca, fica obrigado, para legitimar-se a criar direitos e vantagens correspondentes. Suponhamos que haja um rompimento grave da relação de mutualidade que sustenta - e legitima - o pacto social. Essa ruptura, fraudadora e conspurcadora da dignidade humana, pode levar ao desespero, à cólera, à revolta. O trabalhador tenderá a repelir o pacto social e os sacrifícios que exige. Tal repulsa, por outro lado, em virtude da solidariedade que existe entre o pacto social e o pacto edípico, pode vir, por retração, a provocar uma ruptura do pacto edípico, ao nível da realidade intrapsíquica. Esse efeito se tornará tanto mais provável quanto mais existir, numa sociedade determinada, além do desrespeito ao trabalho, um clima de apodrecimento dos valores que poderiam cimentar a coesão social. O rompimento com a Lei do Pai - ou Lei da Cultura -, através da rejeição do pacto edípico, produz efeitos catastróficos na mente e na conduta do indivíduo, e corresponde a um ato de parricídio. O Édipo é uma gramática pela qual o desejo e a agressão se tornam metabolizáveis e entram no circuito de intercâmbio social. O Édipo implica, necessariamente, renúncia e recalque de pulsões anti-sociais e criminais, não utilizáveis pelo processo civilizatório. Com a ruptura do pacto edípico, ocorre o retorno do recalcado, para usarmos a expressão freudiana. A barreira do recalque, rompida, liberta o enxurro dos impulsos antes contidos: predação, homicídio, incesto, estupro, roubo e violência de todo tipo passam a ter livre curso na conduta. Estão implantadas as condições extra e intrapsíquicas para uma epidemia de criminalidade, como sintoma de patologia social. O modelo econômico imposto ao país tornou-se conhecido pelo nome de capitalismo selvagem. Tal modelo, excludente e concentrador da renda, criou uma estrutura social em que o desnível entre os que tudo têm e os que nada possuem é dos mais altos do mundo. O capitalismo selvagem brasileiro foi - e é - um regime genocida e infanticida, e o pacto social que impõe ao país clama aos céus por justiça. Dinheiro gera dinheiro, para os que o possuem, ao passo que o trabalho cria a pobreza para os que trabalham - quando conseguem trabalhar. E, para coroar tudo, o poder arbitrário, a impunidade triunfante, a cupidez sem limite, o consumismo sem freio, tudo isto, de um só lado - o dos donos da vida. Do outro lado, o rosto anônimo da miséria: milhões de brasileiros condenados à penúria absoluta. Por outro lado, se a delinqüência e a criminalidade são formas perversas de protesto social, as estruturas de dominação do capitalismo selvagem também são formas criminosas de relacionamento social. ‘Mais grave do que assaltar um banco é fundar um banco’ - costumava dizer Lênin, com o seu evidente exagero bolchevique. A piada do velho revolucionário pode, contudo, induzir-nos a pensar. O assalto a um banco é, obviamente, um ato delinqüente, e quem o pratica se coloca fora da lei, exposto aos seus rigores. Já o dono do banco, quando pratica a usura, cobrando juros escorchantes, capazes de paralisar a produção, também comete ato criminoso, sem contudo pagar o mesmo preço do assaltante. A delinqüência do pobre o coloca fora da lei e o expõe à punição, tantas vezes vingativa e desumana. Com o rico, ocorre quase sempre o contrário. Ele começa por corromper a lei, pondo-a do seu lado. Com isto, compra a impunidade e conquista, com a pecúnia, o poder e a glória. Ao mesmo tempo, usa a lei pervertida para combate o protesto criminoso do pobre. É nesse nível, duplamente perverso, que decorre a repressão policial pura e simples à criminalidade, considerada apenas como sintoma e não como efeito de uma grave patologia social. A serem assim avaliadas as coisas, a

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violência da criminalidade passará a exigir, para seu combate, a violência policial pura e simples. Chegaremos à aprovação da pena capital e à condecoração, por merecimento, do Esquadrão da Morte. É por aí, é por esse leito, é no rumo da luta que se propõe a construir o futuro do povo, é por aí que se poderá enfrentar, radicalmente, o problema da criminalidade, na medida em que suas origens sejam expostas, questionadas e atacadas - de maneira construtiva. A criminalidade é uma forma enlouquecida de protesto. É preciso que a indignação e a inconformidade do povo possam formular-se em termos políticos, de modo a torná-la desnecessária e, portanto, verdadeiramente ultrapassável. Ninguém duvida (SIC) que a criminalidade, no momento, pelo caráter que adquiriu, de guerra civil não declarada, está a exigir um tratamento sintomático, criterioso e enérgico. É preciso mobilizar a máquina da polícia, equipando-a, moralizando-a e humanizando-a. É preciso derrotar o arbítrio, a corrupção, a indignidade, a incompetência. É preciso acabar com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial que matam o povo de fome. É preciso matar a fome do povo. E, por fim, embora não em último lugar, é preciso ter vergonha e amor à Pátria. Quando isto ocorrer, a patologia social e seu efeito - a criminalidade - estarão debelados.

Em seu artigo, Pellegrino já falava sobre o aumento do poder punitivo em relação

aos pobres nos dias que corriam. Mais de vinte anos após a publicação de seu artigo, não

obstante, ainda se está a debater o aumento do poder punitivo como forma de lidar com a

criminalidade, isto é, continua-se a se enfrentar o sintoma como se fosse a causa. Calha

perguntar em que lugar o discurso técnico se coloca nessa máquina: se como mais um

instrumento dentre os procedimentos ideológicos destinados a encobrir a responsabilidade

social na produção dessa mesma criminalidade ou como instrumento de transformação

social.

Recorreu-se a outra autora, cuja contribuição é valiosa para a presente reflexão

acerca do uso do discurso psicanalítico. Neri5, em artigo intitulado Enfraquecimento da lei ou

aumento do poder punitivo? Uma reflexão acerca do discurso psicanalítico sobre a crise do

simbólico na contemporaneidade, desperta, no início do texto, a relevância da interlocução

entre os saberes como modo de enfrentamento do discurso hegemônico:

5 Neri, Regina. Psicanalista. Professora do Mestrado em Direito da UCAM. Doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ.

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Acreditamos ser fundamental a interlocução entre os diversos saberes que trabalham na articulação entre o subjetivo e o social, com o objetivo de formular um pensamento crítico ao discurso hegemônico de recrudescimento do poder punitivo e à disseminação crescente “da cultura do medo” (NERI, 2007, p. 1).

Em seu artigo, Neri conjetura a respeito dos efeitos políticos de determinadas

interpretações psicanalíticas:

No campo dos saberes sobre o psíquico, escutamos com freqüência interpretações psicanalíticas acerca do mal estar na contemporaneidade, que apontam para a crise do simbólico e o enfraquecimento da lei como causas do aumento da violência e da criminalidade. Cabe indagar-se sobre os efeitos políticos de tais discursos, que deixam no ar uma demanda por mais ordem e mais limites, fazendo eco, desse modo, aos discursos conservadores provenientes de outros setores da sociedade, que clamam por leis mais severas (NERI, 2007, p. 2).

A autora traz as contribuições de Foucault para a análise crítica da teoria

psicanalítica no que se refere a uma concepção universal da formação do sujeito:

Em que pesem as contribuições fundamentais da obra freudiana sobre a articulação entre a subjetividade e a cultura, o pensamento de Foucault assinala certos limites da teoria psicanalítica no que diz respeito aos processos de subjetivação e de constituição de laços sociais, que estariam na origem de determinadas leituras do simbólico e de concepções abstratas da lei. Ao formular um sujeito que é fundado a cada momento pela história, Foucault aponta para a presença de coordenadas universais na psicanálise. A psicanálise teria uma teoria do sujeito distinta de formas de subjetivação produzidas historicamente, na qual subsistiria a concepção de um sujeito determinado por uma ordem simbólica a-histórica, referida a mitos universais fundadores do sujeito e da cultura (NERI, 2007, p 4).

Colocando em análise os discursos psicanalíticos, sobretudo no que se refere à

figura do pai, a autora apresenta questionamentos relevantes para a análise de laudos e

pareceres elaborados por assistentes sociais e psicólogos do Poder Judiciário em processos

de adolescentes que cometeram ato infracional, notadamente aqueles documentos que

apresentam discursos acerca da ausência ou da fragilidade da figura paterna, tomando por

referência a teoria psicanalítica:

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Cabe indagar-se sobre o peso de certos discursos psicanalíticos nessa abordagem do jovem infrator, cuja periculosidade estaria associada ao fato de pertencer a uma família não conforme aos padrões da norma edípica, centrada na figura do pai. Nessa perspectiva, deficiências na interiorização do “Nome do Pai” servem como fórmulas explicativas de diagnósticos sempre baseados na negatividade que inviabilizam a compreensão de mudanças no campo da organização familiar e do comportamento dos jovens. Podemos considerar que esse tipo de “solução”, longe de resolver o problema é também parte do sintoma que deveríamos ‘curar’ e tem contribuído para o agravamento da situação no que diz respeito ao aumento da criminalidade e da violência (NERI, 2007, p. 10).

Deve-se incorporar ao presente estudo, por relevante, a leitura de autores da

psicanálise, haja vista que possibilitam a desconstrução de um discurso acerca da função do

pai, que parece objetivar a hegemonia. Nesse sentido, continua-se aqui com a exposição de

Neri, apoiada em outro autor da psicanálise6:

O discurso do declínio do pai é problemático tanto do ponto de vista da história quanto do ponto de vista da teoria psicanalítica. No que concerne à história, esse discurso solene se apresenta mais como uma legenda do que um saber histórico sobre o pai. Para esse discurso, a história como tal não existe, trata-se de fazer aparecer, através de um desenvolvimento aparente, as manobras de um universal metapsicológico. A questão seria a de saber como foi construída historicamente essa legenda e qual seria o papel do discurso psicanalítico nessa construção. Do ponto de vista da teoria e clínica psicanalítica, trata-se de analisar qual é o estatuto da figura paterna como legisladora na operação do Complexo de Édipo e se indagar em que medida essa figura legisladora do pai seria universal (NERI, 2007, p. 14).

Neste capítulo, apresentam-se reflexões sobre a teoria psicanalítica, sobretudo em

relação à figura do pai como universal e o lugar político que os ditos discursos sobre a

função paterna têm ocupado num cenário de apodrecimento dos valores sociais e de

capitalismo selvagem. A questão que permanece é:

Como assinala M. Tort, a ligação é estreita entre a “solução paterna” e a valorização da submissão à lei, na qual o processo de subjetivação é equivalente ao de se submeter à lei do pai. Se pudéssemos, ao contrário, considerar que a solução paterna não é a única relação que os sujeitos podem ter com a lei, mas tão somente um momento particular, então torna-se possível pensar numa outra concepção de subjetividade (NERI, 2007, p. 15).

6 Tort, M. Fin du dogme paternal. Paris, Aubier, 2005, pp. 280-81

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Faz-se mister considerar que, numa intervenção interdisciplinar, o olhar do Serviço

Social poderá oferecer parâmetros importantes para pensar os diferentes modos de

organização familiar e outras relações que o sujeito pode ter com a lei, ao passo que, se

profissionais do Serviço Social meramente se apropriarem de jargões psicanalíticos e

reverberarem tal posição em seus pareceres, estarão na contramão do projeto ético-político

da profissão.

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Capítulo 4. O Estado Transgressor: Entre Limite e Transgressão7

Nos dois capítulos anteriores, foi abordada a relação entre pacto edípico e pacto

social, sendo apresentadas concepções críticas, na psicanálise, acerca do pai, transitando-

se pelo reconhecimento de diferentes configurações familiares.

Neste capítulo, transitar-se-á pelas contradições sociais que atravessam os diversos

grupos familiares, dialogando com as configurações do pacto social. Quais são os valores

sociais predominantes na atualidade? São valores estáveis, consolidados?

Como a questão da transmissão dos valores tem sido caracterizada como um dos

aspectos da função paterna, debruçar-se-á sobre autores que discutem os valores sociais

na atualidade, notadamente a fragilidade desses valores. Conseqüentemente, recolocou-se

a função da transmissão numa dimensão mais ampla, para além da figura do pai

propriamente dita.

Debieux, a propósito do tema, lembra que a eficácia das funções paterna e materna

não é independente dos fatores sociais:

O exercício das funções materna e paterna opera-se a partir dos lugares (materno, paterno, fálicos) atribuídos ou não aos membros de determinada família, classe social e ao momento cultural. A sua eficácia não é independente de tais fatores, uma vez que a família é, ao mesmo tempo, o veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expressão, em sua organização, do funcionamento de uma classe social, grupo étnico e religioso em que está inserida (DEBIEUX, 2003, p. 8).

7 Expressão utilizada em Le goût de L´Avenir por Jean-Claude Guillebaud (2003).

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Nesse sentido, a construção interdisciplinar de laudos e de pareceres favorece a

exposição dessa interdependência entre as funções da família na transmissão de valores e

os valores sociais dominantes.

Koltai8, apoiada em Jean-Claude Guillebaud9, contribui para a contextualização dos

grupos familiares, ressaltando as contradições das nossas sociedades:

Por inúmeras razões nossas sociedades são habitadas por um medo confuso, assombradas pela violência, perdidas numa modernidade que se tornou anômica. Estão quotidianamente à procura de regras, pontos de referência, sentido. Ou seja, tentamos todos e em todos os campos, redefinir os limites, ao mesmo tempo que a cultura dominante é da transgressão, a tal ponto que acabamos identificando-a com a própria modernidade. Nossa liberdade individual é transgressiva por definição, pelo menos é dessa maneira que é percebida. Dia após dia optamos pela transgressão de modo que ela já se transformou num reflexo tão elementar quanto os batimentos cardíacos (...) Poderíamos discutir ad infinitum sobre a maneira pela qual o próprio Estado retoma a prevalência da transgressão sobre a regra. Sociedades esquizofrênicas se pergunta o autor? Talvez, uma vez que nossa sociedade rejeita ostensivamente aquilo que ela afirma estar lhe fazendo falta. Procura de limites por um lado, ardor da transgressão do outro. A situação do homem contemporâneo se assemelha àquilo que os psicanalistas chamam de double mind e que se apresenta da seguinte maneira: de um lado ela exalta a transgressão, mas se queixa da ausência de regras, de outro teme a violência, mas ironiza a civilidade (KOLTAI, 2001).

Um episódio recente auxilia a ilustrar o que se convencionou chamar de sociedades

esquizofrênicas. No leilão de bens do megatraficante colombiano Juan Carlos Ramirez,

ocorrido este ano, no Jockey Clube de São Paulo, milhares de pessoas dirigiram-se ao local

com o objetivo de adquirir bens que haviam pertencido ao megatraficante, sendo que as

justificativas, tais como “Faço questão de contar para os meus amigos que comprei dele”,

“Quero a cadeira em que ele foi preso, pois é uma cadeira peculiar” indicam o lugar da

transgressão na nossa sociedade.

O autor continua sua reflexão:

8 Profª Drª Catherine Koltai, Programas de Pós Graduação em Ciências Sociais. Notas de aula. 9 Guillebaud, Jean-Claude. Le goût de L´Avenir. Éditions Du Seuil, 2003, Paris. Ibid.

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Parece que a secular tricotagem entre limite e transgressão terminou com a exaltação unívoca dessa última. A sociedade contemporânea deixou de mandar para si mesmo um sinal de limite. O farol apagou. A negociação infinita com a transgressão substitui a esplendorosa simplicidade do “tudo é permitido” (GUILLEBAUD, 2003, pp.108-110).

4.1 A fragilidade dos laços sociais

Essas considerações permitem, ao se colocarem em análise o pai citado nos laudos

e as avaliações citadas no presente estudo, definir-se os contornos da sociedade em que se

inserem esse pai e os demais integrantes dos grupos familiares analisados. A exaltação da

transgressão presente nas sociedades contemporâneas indica a fragilidade dos laços

sociais. O autor lembra que:

A repressão vem substituir a civilidade perdida, a prisão vem no lugar do laço social enfraquecido, o código penal no lugar do código cívico, a ordem penal se instala sobre as ruínas da ordem moral. (...) Se tudo isso foi lembrado é porque as sociedades atuais parecem ter sido afetadas pelo problema da desfiliação e fragilização do laço, tanto no que diz respeito à família, quanto à empresa, à escola ou à nação (GUILLEBAUD, 2003, pp. 108-110).

Em relação à fragilidade dos laços sociais, recorreu-se a Lippi, que se apóia em

Bauman10 para apresentar conceitos acerca do funcionamento da sociedade atual:

Para Z. Bauman, o que mudou foi a modernidade sólida que cessa de existir e em seu lugar surge a modernidade líquida. A primeira seria justamente a que tem inicio com as transformações clássicas e o advento de um conjunto estável de valores e modos de vida cultural e político. Na modernidade líquida, tudo é volátil, as relações humanas não são mais tangíveis e a vida em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante, perde a consistência e estabilidade (LIPPI, 2007, p. 40).

10 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 260

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Essas considerações revelam uma sociedade com valores sociais esmaecidos,

fluidos:

Os sólidos que se derreteram na fase líquida da Modernidade são os elos que entrelaçavam os projetos individuais em projetos e ações coletivas. Cada um por si procura ser flexível para se capacitar para as incertezas do futuro; ao mesmo tempo, ninguém se crê capaz de transformar a sociedade como um todo. Conceituando precisamente, a Modernidade Líquida tem uma estrutura sistêmica remota, inalcançável e inquestionável, ao mesmo tempo que o cenário do cotidiano – relações familiares e amorosas, emprego e cidade – é fluido e não-estruturado (LIPPI, 2007, p. 42).

O citado autor traz as valiosas contribuições de Bauman para a compreensão da

dinâmica de funcionamento das sociedades atuais, ampliando o escopo de discussão deste

texto acadêmico: da fragilidade das relações familiares de adolescentes autores de ato

infracional para o reconhecimento da fragilidade das relações no tempo que corre,

estabelecendo-se como prioridade as causas individuais em detrimento das causas

coletivas. Veja-se a respeito:

Como evitar que nossos jornais e TVs sejam ocupados por fofocas sobre personalidades públicas e pela exibição de sofrimentos individuais sem qualquer possibilidade de articulação em causas públicas? Bauman apresenta esses temas através da análise de cinco conceitos decisivos: emancipação, individualidade, espaço/tempo, trabalho e comunidade. Em todos eles, reaparecem diversos traços em que nos reconhecemos: a incerteza da vida cotidiana, a insegurança na cidade, a precariedade dos laços afetivos, o privilégio do consumo em detrimento da produção, a troca do durável pela amplitude do leque de escolhas, o excesso de informações etc (LIPPI, 2007, p. 43).

Ao falar sobre o excesso de informações, o autor conduz a uma reflexão sobre a

transmissão de valores pela mídia e a incorporação desses valores pelos adolescentes, os

quais ele nomeia de adolescentes líquidos, parafraseando Bauman. Considera o quanto

esses ideais (tais como comportamentos, formas de se vestir, formas de agir, a quem

copiar) transmitidos pela mídia estão sendo incorporados pelos adolescentes em detrimento

das referências familiares:

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O que prevalece é a escolha individual, que toma como ‘exemplos’, entre outros, as experiências de ‘celebridades’, transformadas em referências sociais e em uma espécie de ‘especialistas’ que ajudam o indivíduo a tomar suas decisões nos mais diversos setores de sua vida. As referências familiares tiveram sua importância deslocada (BAUMAN, 2001, p. 76)

Lippi apóia-se em autores que discutem mídia e violência, trazendo valiosas

contribuições sobre o lugar da família no processo de socialização e considerando a

interferência da mídia. A propósito do tema, um dos autores citados é Sodré11, que analisa a

transição dos referenciais na adolescência num momento em que os padrões familiares são

ultrapassados pelos da informação:

Pouco a pouco, tem perdido força o exercício da função educativa dentro do grupo familiar. O maior acesso a essas informações forja uma participação social, no lugar da ação real implicada na “ética familiar”, inculcando valores que interessam à “ética do consumo”. Desta forma, há uma dessacralização da família, o que geraria “qualidades mais rápidas”, de satisfação e prazer, substituindo as “qualidades lentas, comprometidas com a socialização tradicional” (SODRÉ, 1992, p. 72).

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Capítulo 5. Metodologia

Na presente pesquisa, optou-se pela análise e pela interpretação de dados num

enfoque qualitativo. Partindo do pressuposto apresentado por Minayo (2007), embora seja

uma prática teórica, a pesquisa vincula pensamento e ação. Ou seja, nada pode ser

intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida

prática.

Sobre a pesquisa qualitativa, Gomes ressalta que:

Esse estudo do material não precisa abranger a totalidade das falas e expressões dos interlocutores porque, em geral, a dimensão sociocultural das opiniões e representações de um grupo que tem as mesmas características costumam ter muitos pontos em comum ao mesmo tempo que apresentam singularidades próprias da biografia de cada interlocutor (GOMES, 2007, p. 79).

Na definição da metodologia, buscou-se apóio, na feitura deste trabalho, em Bardin,

o qual, em sua obra clássica, traz uma definição abrangente acerca da análise de conteúdo:

Conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1979, p. 42).

O enfoque qualitativo do presente estudo responde a questões muito particulares,

conforme aponta Minayo:

Ela (a pesquisa qualitativa) se ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deve ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. (...) O universo da produção humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representações e da

11 SODRÉ, M. O Social Irradiado: Violência Urbana, Neogrotesco e Mídia. São Paulo: Cortez, 1992

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intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos (MINAYO, 2007 p. 21).

A mesma autora busca desconstruir uma visão hierárquica entre a pesquisa

quantitativa e qualitativa:

Por isso não existe um “continuum” entre abordagens quantitativas e qualitativas, como muita gente propõe, colocando uma hierarquia em que as pesquisas quantitativas ocupariam um primeiro lugar, sendo “objetivas e científicas”. E as qualitativas ficariam no final da escala, ocupando um lugar auxiliar e exploratório, sendo “subjetivas e impressionistas”. A diferença entre abordagem quantitativa e qualitativa da realidade social é de natureza e não de escala hierárquica (MINAYO, 2007 p. 21).

Bardin, no prefácio de sua clássica obra, ao discorrer sobre a análise de conteúdo na

atualidade, afirma que:

Enquanto esforço de interpretação, análise de conteúdo oscila entre os dois pólos do rigor da objetividade e da fecundidade da subjetividade. Absolve e cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não-aparente, o potencial de inédito (do não dito), retido por qualquer mensagem (BARDIN, 1977, p. 7).

No que tange à opção pela análise documental, cumpre resgatar reflexão de

Frasseto:

A análise documental permite que as referências algo abstrata aos laudos, como se constroem e operam ganhem concretude. Ela confere crivo externo a hipóteses preordenadas construídas pelo pesquisador ao longo de sua vida profissional, permitindo refutá-las ou confirmá-las (FRASSETO, 2005, p.16)

Conforme proposto por Bardin, optou-se aqui pela categorização do material:

As categorias são rubricas ou classes que reúnem um grupo de elementos (unidades de registro, no caso da análise de conteúdo) sob um título genérico, agrupamento esse (SIC) efetuado em razão dos aspectos comuns destes elementos (BARDIN, 1977, p. 111).

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5.1. A amostra

A amostra consiste em documentos produzidos por psicólogos e por assistentes

sociais da Equipe Técnica do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude de

São Paulo. Constam de 29 processos referentes a adolescentes em cumprimento de

medida de internação na Fundação CASA/SP, dos quais se teve acesso a 18 documentos

produzidos por Assistentes Sociais do Judiciário (Laudo Social ou Relatório Social) e a 19

documentos produzidos por Psicólogos do Judiciário (Laudo Psicológico, Avaliação

Psicológica ou com a inscrição ETJ - Equipe Técnica do Judiciário).

Esse foi o foco da pesquisa. Não obstante, para uma melhor compreensão dos

processos, foram lidos os demais documentos, que totalizavam outras 25 produções

técnicas dos demais atores, assinados por psicólogos, por assistentes sociais da Fundação

Casa, CEDECAS, por psiquiatras e por pedagogos. Além disso, tive-se acesso a registros

de decisões judiciais que citavam dados extraídos de documentos técnicos.

Para a realização da pesquisa aos processos, foi solicitada uma autorização à Juíza

Corregedora Permanente do DEIJ, sendo que um dos critérios foi que o adolescente e seus

familiares deveriam já ter sido avaliados pela equipe técnica do Judiciário, pois as

avaliações estariam presentes no processo e possibilitariam a análise documental.

Outro critério estabelecido dizia respeito ao cumprimento da medida de internação.

Logo, os processos a serem avaliados deveriam dizer respeito a adolescentes internados,

pois um dos aspectos da análise foi exatamente o lugar que as avaliações realizadas pelos

técnicos do Judiciário ocupam na decisão pela manutenção ou não do adolescente na

internação.

60

Dessa forma, optou-se por uma conversa com as chefes do Serviço Social e da

Psicologia, solicitando-se os números de processos que constavam em suas agendas nos

dois últimos meses. Com essa listagem, após a obtenção da autorização judicial, foi-se ao

Cartório para a realização da pesquisa, porém alguns processos não estavam disponíveis

(em trânsito para despacho do Juiz, com vista ao MP etc.), tendo-se acesso, por isso, a

vinte e nove processos.

Em conversa com a Diretora do Cartório, ficou avençado que a listagem lhe seria

entregue e os processos seriam separados dos demais para a realização da pesquisa.

61

Capítulo 6. As categorias temáticas

Agrupou-se o material em consonância com as seguintes categorias temáticas: I) O

pai e as configurações familiares; II) Autocrítica, III) A instituição; IV) A questão social.

Iniciar-se-á a apresentação do material com um quadro que sintetiza as informações

sobre a situação do pai dos adolescentes avaliados, sobretudo em relação ao seu convívio

com o filho, objetivando situar o leitor no universo do material pesquisado. Este quadro

apresenta os dados da amostra analisada: 29 processos.

Quadro 1 – O contato do adolescente com o pai

Pais separados – contato com o pai 2

Pais separados – sem contato com o pai 7

Pais residem juntos 10

Pai falecido 7

Não tem informação 1

Pais separados – adolescente reside

com o pai

2

6.1 O pai e as configurações familiares

Esta categoria está relacionada ao fator que impulsionou a realização desta

pesquisa. Durante quase dez anos atuando em contextos que possibilitavam o contato com

a produção técnica decorrente de entrevistas com adolescentes que cometeram ato

62

infracional e com seus familiares, chamava a atenção o quanto expressões como “falência

do pai” e “fragilidade do pai” surgiam no discurso técnico, identificadas como facilitadoras do

envolvimento do adolescente. E o que era mais intrigante: muitas vezes, esse era o único

aspecto citado, quase como uma relação de causa e efeito.

Ao realizar o presente estudo, foram examinadas pesquisas levadas a cabo por

outros profissionais e que corroboram esta impressão:

Observa-se de forma quase onipresente nos laudos a tendência de identificar a transgressão como expressão atual de uma remota falência no exercício das funções parentais, em especial a função paterna de introduzir no sujeito em construção a dimensão da Lei (FRASSETO, 2005, p. 112).

Nos pareceres que abordaram a história familiar, 64% conferiram peso significativo à paternidade, a maior parte para afirmar sua ausência no grupo familiar. Em poucos pareceres foi dito simplesmente que ele fazia parte do casal, mas nos demais destacou-se a sua presença como influência negativa sobre o adolescente ou o padrasto “falhando” nesse lugar (DINIZ, 2001, p. 70).

Durante a realização da análise documental, deparou-se com diversos trechos dos

documentos que apresentavam considerações sobre a figura do pai:

Em especial a falta de maior proximidade com a figura paterna, parece-nos que foi um dos fatores importantes, se não o mais importante, nas dificuldades emocionais do jovem. Essa dificuldade foi assumida pelo pai, que trouxe em suas falas um certo sentimento de culpa, mas busca justificá-la pelo excesso de trabalho para sustentar a família.

Essa justificativa é usada por um grande número de pais, mas percebemos que ela só esconde suas próprias dificuldades pessoais para exercer a paternagem, e funcionaria como uma defesa contra essas dificuldades (Equipe Técnica do Judiciário – Psicologia).

Resta claro que a justificativa do pai é tomada como uma forma de esconder suas

dificuldades em exercer a paternagem, sendo essa conclusão baseada em uma entrevista

com os pais.

63

Para análise deste material, baseou-se em alguns autores da criminologia crítica que

discutem os quadros técnicos do sistema de atendimento a adolescentes autores de ato

infracional. Batista, em artigo no qual discute o que é “proclamado” e o que é “escondido”

nos discursos técnicos, aponta o quanto a suposta “neutralidade” técnica é violenta:

Esses quadros técnicos, que entram no sistema para “humanizá-lo”, revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as sentenças proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social (BATISTA, 2007, p. 77).

Foi concebido desde um pacto transgressor de conjugalidade (relação extra-conjugal paterna) (...) Exposto a um cenário institucional disfuncional e conturbado, onde sabidamente tem prevalecido um panorama absolutamente “fora da lei” e que tende a operar na contra-mão do laço social (Laudo Psicossocial – assinado por Assistente Social e Psicólogo).

O parecer feito a partir de uma entrevista já caracteriza a história do adolescente

como transgressora desde a concepção, o que seria curioso se não fosse uma violação: o

adolescente permanece internado numa unidade também transgressora, que o próprio

técnico caracteriza como “fora da lei”. Pode-se dizer que a sua medida sócio-educativa vem

sendo concebida desde um pacto transgressor e que o técnico está implicado nesse pacto.

Esse trecho resumiria esta dissertação, a contradição exposta: um adolescente, cuja

história é caracterizada como transgressora desde a concepção, um pai falecido que acaba

sendo enquadrado dentro de um pacto transgressor e a medida de internação cumprida em

instituição que vai na contramão do laço social.

Alguns trechos elencados abaixo apresentam a concepção de família

desestruturada, a exemplo do que se verifica num Laudo Psicossocial, o qual,

explicitamente, garante tratar-se “de adolescente proveniente de família desorganizada com

baixo nível sócio-econômico”:

64

PROVÊM DE FAMÍLIA DESESTRUTURADA pela separação dos genitores, efetivada durante o seu primeiro ano de vida e motivada pela baixa disposição do pai pelo trabalho. O jovem transitava entre as casas da mãe e do pai. Ausência de figuras fixas de referência familiar (ETJ – Psicologia).

A mãe é uma senhora amorosa e encantadora por sua simplicidade e correção não se cansando de ditar sábias sentenças para corrigir o filho. No entanto, tanto F. quanto o irmão (...) tocam suas vidas ao largo das admoestações maternas, voltados à vida delinqüente. Em verdade, FALTOU A FUNÇÃO PATERNA NORMATIZADORA.

Sabemos que quando a mãe não tem o apoio do pai na criação dos filhos, muitas vezes a educação torna-se prejudicada.

Desorganização familiar: a fragilidade dos pais enquanto referências normativas e afetivas, o fato de ter sido criado por outros familiares também reforça este lugar excepcional.

R. observa que SEU PAI SEMPRE TRABALHOU MUITO E MANTINHA UM CONTATO DISTANTE. A exemplo disto uma das formas encontradas, na tentativa de se aproximar, foi trabalhar no restaurante com o pai, que exerce a função de lancheiro. Através da leitura de seu discurso podemos pensar que A DISTÂNCIA DA FIGURA DO PAI, SOMADA a necessidades características da adolescência, tais como independência, autonomia, liberdade, onipotência e auto-suficiência e a preferência por formar novos grupos sociais juntos com seus pares, PARECEM TER SIDO A MOLA PROPULSORA PARA LANÇAR R. NO MEIO DELITIVO.

Todo o discurso pode ser torcido para relacionar a ausência, a fragilidade do pai com

o envolvimento no meio delitivo. Se o pai está desempregado... se o pai está no tráfico... se

o pai trabalha muito etc.

Recorre-se novamente a Batista, a qual realizou uma análise de relatórios baseada

em pressupostos marxistas e da psicanálise, porque afirma que, ao ler os relatórios,

pareceres e diagnósticos desses técnicos, percebeu que:

O convívio familiar funciona sempre como atenuante de penas ou alternativas de recuperação para jovens ‘infratores’. No entanto, a carga ideológica contida na visão das famílias pobres, não incluídas na ‘família padrão’, acaba funcionando como carga negativa que afeta duramente as sentenças e sanções estipuladas para jovens negros e/ou pobres (BATISTA, 2007, p. 78).

65

Quanto à concepção de família desestruturada, a autora acrescenta:

Toda estratégia de estruturação familiar num contexto de miséria e exclusão social é tido como sua antítese, a desestruturação. (...) Aqui a agregação é entendida como desagregação a partir do padrão patriarcal: se não há pai é desagregada. Toda a realidade antropológica de organização da família afro-brasileira sobrevivente da escravidão, aonde (SIC) a mulher tem um papel “agregador”, é desprezada e é entendida pelo seu contrário (Batista, 2007, p. 79).

Outros trechos dos documentos analisados permitem transitar entre o pacto edípico

e o pacto social:

Provêm de família desestruturada pela separação conjugal dos genitores, há 17 anos atrás (SIC), quando o jovem era recém-nascido, motivada pela drogadição, etilismo e agressividade paternas (...) Identificamos graves aspectos de disfuncionalidade na dinâmica destes grupos, sobretudo no tocante ao frágil exercício da autoridade familiar. (...) parece ter carecido e figura de autoridade efetivamente atuante enquanto referência de ascendência sobre si, sugerindo FALÊNCIA DA FUNÇÃO NORMATIZADORA FAMILIAR (...) revelando desinteresse pelos objetivos ressocializantes da medida, bem como descompromisso para com as regras que regem o PACTO SOCIAL (ETJ - LAUDO PSICOLÓGICO).

O mesmo relatório aponta a necessidade de continuidade da internação e, o mais

grave, fala em pacto social quando a própria vivência na instituição revela uma quebra do

pacto social:

O adolescente permaneceu nas lastimáveis dependências da UIXX, onde experimentou toda sorte de brutalizações que se pode imaginar. É patente que este jovem experimenta importantes danos psíquicos decorrentes da perversão dos objetivos de medida extrema, pois ao longo de sua trajetória institucional vivenciou constantes brutalizações e CRUÉIS TORTURAS FÍSICAS E PSICOLÓGICAS.

Será que os agentes do Estado, responsáveis pela prática de tortura, seguem as

regras que regem o pacto social ou vivem entre o limite e a transgressão?

66

Ainda em relação ao pai e a configurações familiares, a análise documental indicou

situações em que o uso equivocado de teorias psicanalíticas leva a conclusões sobre a

dinâmica familiar:

O adolescente é fruto de uma relação anterior (...) O relacionamento de que J. é fruto teria durado nove anos e findado por conta de que o genitor do adolescente agredisse-a constantemente. Podemos hipotetizar que J. ocupe na família e perante si mesmo o lugar daquele que não era desejado e que constitui à mãe lembrança viva de seu agressor. É bem possível, como muito mais comumente do que imaginamos ocorre, que J. tenha sempre exibido condutas de insubordinação às normas domésticas, escolares, sociais, para ocupar a posição que, de modo inconsciente, foi-lhe designado ocupar. (...) uma resposta inconsciente à posição afetiva que lhe foi dada pela família inconscientemente também (ETJ -Laudo Psicológico).

No tocante ao uso da teoria e de técnicas psicanalíticas, acrescente-se que alguns

documentos, no início, apresentam o texto: “Usamos como método de entrevista a

associação livre, que permite a interpretação, assim como uma escuta subjetiva, e estudos

dos autos.” Ressalte-se que foi constatado, pela análise dos processos, que a média de

entrevistas com os adolescentes é de uma entrevista.

Sobre esse uso, Rauter, também se utilizando do referencial da criminologia crítica,

lembra que:

De que forma é colhida a história individual no campo da técnica psicanalítica? Ela vai sendo reconstituída na fala do cliente num tempo que lhe é próprio. O que está em jogo é o livre desejo do cliente de falar, de silenciar, de omitir um fato, de revelar outro. Esta liberdade com relação à própria fala, no entanto, não se deve a razões éticas apenas: ela é condição de possibilidade para que emerja o inconsciente. Ou seja, que o indivíduo possa comunicar livremente o que lhe vem à cabeça: esta é uma condição metodológica indispensável, sem a qual está invalida qualquer utilização da teoria e da técnica psicanalítica (RAUTER, 2003, p. 90).

Por ser relevante para esta categoria temática, apresentar-se-ão trechos dos

documentos analisados que contribuem para a desconstrução desse lugar do pai e da

família como o lugar da falha, como, por exemplo, “vemos também que as orientações

dadas pelo pai e irmã foram introjetadas”, “(...) conta com o apoio do pai e da madrasta,

67

ambos descritos como pessoas presentes”, “de modo geral, o relacionamento familiar é

descrito como harmonioso, sem conflitos inter-relacionais dignos de nota. A despeito de

suas vulnerabilidades, este grupo parece relativamente operativo do ponto de vista

funcional”, “genitores se separaram quando eles ainda eram muito pequenos, no entanto, os

vínculos de amizade entre ambos foram preservados; da mesma forma, se deu com os

vínculos entre a mãe e os familiares paternos, os quais sempre auxiliaram nos cuidados

para com seus filhos”, “os pais, cada um a seu modo, intervieram procurando encontrar

solução (...) a mãe mudou de bairro e escola. O pai procurava aconselhar e impor limites”,

“há cerca de 16 anos, o pai mantém família recomposta com G. (...) A madrasta é

representada como uma sólida figura de apoio neste grupo”, “Sr. A é um homem,

notadamente, empenhado no exercício das funções de pai, marido, funcionário de empresa

(já aposentado em um emprego, inclusive). Ele educou os filhos segundo valores

socialmente adequados”.

E, por derradeiro:

Dos treze anos para cá, A., como todo dependente químico, vem, apesar dos esforços envidados pelo pai no sentido de resgatá-lo disso, envolvendo-se em delitos e dedicando seus dias exclusivamente ao consumo de drogas e/ou meios, sejam eles quais forem, de obtê-las.

Ressalta-se que o posicionamento técnico interfere na decisão judicial quanto à

manutenção da medida de internação ou progressão para o meio aberto, motivo pelo qual,

em relação ao aspecto ético-político do discurso técnico, não há neutralidade técnica

possível.

Utilizaram-se recortes de um Laudo Psicossocial, assinado por psicólogo e por

assistente social, para introduzir a discussão sobre a questão social (categoria temática a

ser trabalhada) e como esta categoria temática aparece (ou não aparece) nos documentos

analisados, como, por exemplo, no trecho em que se enuncia que “em verdade, FALTOU A

68

FUNÇÃO PATERNA NORMATIZADORA, posto (SIC) que o pai era um alcoolista

espancador que cedo foi expulso do lar e logo morto nas ruas, onde vivia como andarilho”.

Nesse sentido, cite-se:

O jovem até denota capacidade de nortear sua vida de outro modo, adaptado ao PACTO SOCIAL, mas não resiste às adversidades (DIFICULDADE DE ENCONTRAR TRABALHO, INFLUÊNCIA DOS AMIGOS.) e termina por atuar TRANSGREDINDO AS NORMAS SOCIAIS.

Tais considerações referem-se ao mesmo caso. A produção técnica apresenta a falta

de função paterna como verdade. Logo após, fala da simplicidade da mãe e, depois, nota-se

que as questões sociais aparecem entre parênteses, sem enfatizar a falência do pacto

social: dificuldade de encontrar trabalho. Vinte anos depois, travou-se um diálogo entre o

texto do Helio Pellegrino e o Laudo Psicossocial, conforme se deixa entrever.

6.2 Autocrítica

No decorrer da análise documental, deparou-se com uma outra questão recorrente e

que implicava a progressão ou não da medida, algo como o reconhecimento do adolescente

quanto ao erro praticado, nomeado nos laudos de “desenvolvimento da criticidade”, o que

será tratado aqui como uma produção da culpa. Se o “campo” da autocrítica não estiver

preenchido, o adolescente não tem chance de progressão.

Observa-se que os laudos sociais trazem, com freqüência, considerações sobre o

desenvolvimento ou não da criticidade do adolescente, o que é mensurado pela

demonstração de arrependimento e do reconhecimento de que “errou”. Essas

considerações recorrentes acerca da autocrítica do adolescente contribuem para um

obscurecimento de uma análise crítica da realidade social.

69

Retomando observação feita em outro tópico sobre os laudos sociais permanecerem

restritos a questões individuais ou intrafamiliares, pode-se dizer que esta ênfase dada ao

reconhecimento ou não do adolescente sobre o seu erro, sem uma ampliação para outras

variáveis importantes, aparece como um fator limitador às contribuições relevantes que o

Serviço Social poderia realizar, empobrecendo o conteúdo dos laudos, que muitas vezes se

restringe a reverberar aspectos da área psicológica.

Esta categoria chamou atenção sobretudo por aparecer nos laudos sociais. Na

maioria das vezes, as conclusões de laudos sociais ancoravam-se nesse aspecto, em

detrimento de outras variáveis relevantes e que não eram tratadas como dados

significativos. Os recortes abaixo auxiliam a ilustrar essa categoria temática: a) “Adolescente

reconheceu a inadequação de sua conduta” (Laudo Social – ETJ); b) “Revela crítica

adequada, mostra-se arrependido” (ETJ – Relatório Social); c) Se mostra (SIC) mais cônscio

e mais responsável por seus atos. M sabe que errou, não minimiza seu ato infracional e

quer agora dar um novo rumo em sua vida” (Considerações Finais do Laudo Social); d)

“Durante a entrevista o adolescente apresentou comportamento adequado demonstrando

criticidade quanto aos seus atos. Reconhece que errou e agora quer arrumar um trabalho,

terminar os estudos e ajudar a genitora” (Considerações Finais do Laudo Social – ETJ); e)

“A entrevista com o jovem nos indicou que ele atingiu a crítica necessária, estando

arrependido e certo do que deseja daqui por diante”; (Laudo Social – ETJ); f) “Não

demonstra consciência crítica, nem percebe as conseqüências dos mesmos, nem para si e

seus familiares, tampouco para as vítimas” (Laudo Social – ETJ); g) “Demonstrar pouca

criticidade revela a necessidade de refletir sobre atos inadequados” (Laudo Social – ETJ); h)

“Este período de internação tem proporcionado ao jovem uma abertura à reflexão e análise

pertinente quanto às suas atitudes infracionais e o conduziu a projetar para si um modo

honesto de vida” (Laudo Social – ETJ); i) “Reconhece que errou. Reconhece que era

imediatista e imaturo” (Laudo Social – ETJ).

70

A seguinte decisão judicial ilustra o quanto o discurso técnico acerca da criticidade e

das relações familiares pode definir a trajetória institucional do adolescente:

O laudo técnico, por fim, não lhe beneficia constatando que o adolescente NÃO MANIFESTA QUALQUER CRITICIDADE sobre sua conduta, verbalizando com naturalidade as vantagens financeiras que já obteve através de práticas delituais, assim como revela manter vínculos de amizade com pessoas do universo infracional. O adolescente, outrossim, prossegue o laudo, mostra-se CARENTE DE REFERENCIAL DE AUTORIDADE e é resistente a regras e limites, necessitando de acompanhamento psicossocial com orientações extensivas aos responsáveis. Verifica-se, assim, NÃO POSSUIR RESPALDO FAMILIAR MÍNIMO, circunstância esta (SIC) essencial para imposição de eventual medida em meio aberto.

Os laudos sociais produzidos, ao enfatizarem o aspecto da criticidade e não

apresentarem as outras dimensões da prática do ato infracional, reforçam um modo de

concepção dos adolescentes que, conforme aponta Vicentin12, os tem como intimizados,

psicologizados e desvinculados de seus contextos sócio-político-histórico-culturais.

Fuziwara, em estudo sobre a contribuição do Assistente Social para a Justiça na

área da Infância e da Adolescência, enfatiza que:

É fundamental recusar a perspectiva de análise psicologizante dos conflitos e contextualizá-los no universo macrossocietário, nas suas dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais, todas construídas no processo histórico. Ou seja, embora as questões subjetivas sejam também determinações, são decorrentes das condições objetivas postas na produção e reprodução social. Aos assistentes sociais e psicólogos cabe articular as dimensões socioeconômicas e subjetivas vivenciadas pelos sujeitos (FUZIWARA, 2006, p. 85).

Nesse sentido, é relevante a inclusão dessa categoria temática no presente estudo,

pois tais colocações evidenciam que, se o Serviço Social pode trazer à tona a questão

social, o ato de não traduzir esse compromisso ético-político nas produções cotidianas pode

deixar questões significativas encobertas.

12 VICENTIN, Maria Cristina. Texto CRP

71

Ao refletir sobre a produção de profissionais do Serviço Social no contexto jurídico,

Fávero ressalta que:

Quanto ao maior investimento no saber operativo, não deve significar a priorização do tecnicismo em detrimento dos fundamentos teórico-metodológicos e ético–políticos da profissão. Ao contrário, a competência técnica supõe a articulação com a dimensão política – permeada pela ética -, de maneira a garantir que a intervenção tenha como base a análise crítica da realidade social e a preocupação com a efetiva ação na direção da conquista e da garantia de direitos fundamentais e sociais (FÁVERO, 2007, p. 199).

Ainda no encalço dessa categoria temática, incluiu-se a conotação negativa que os

documentos técnicos atribuem ao que, comumente, aparece como “dificuldade em

expressar-se, aprofundar-se”. Tal postura do adolescente é compreendida como uma recusa

a colaborar com o trabalho técnico, como se algo precisasse ser escondido. Nota-se essa

tendência em passagens como “evidenciou certa dificuldade em aprofundar aspectos

conflituosos de seu histórico pessoal e familiar”, “demonstrou grande dificuldade em abordar

situações de seu histórico, assim como em refletir sobre as questões de seu envolvimento

com o meio infracional”, “evidencia certa dificuldade em aprofundar questões conflituosas de

seu histórico pessoal e familiar, em geral recorrendo aos mecanismos defensivos da

idealização e racionalização” e, por fim, “observamos que é um adolescente extremamente

angustiado, introvertido quando trata-se de aprofundar-se em qualquer questão pessoal que

diga respeito à sua história de vida familiar”.

Cabe questionar o quanto é possível expressar a si mesmo com “tranqüilidade”,

sobre aspectos “profundos”, em uma entrevista com alguém que nunca se viu antes e em

um momento no qual se definem decisões que podem alterar uma trajetória de vida.

72

Para além da obviedade de se considerar esse momento como produtor de tensões,

consideração de Fávero caminha na busca de outras compreensões para as posturas

assumidas em entrevistas:

Também não se pode considerar todas essas pessoas apenas como seres passivos, vitimados pela inexorabilidade de mecanismos economicistas. Apresentam-se indícios de resistências cotidianas, expressas, por exemplo, na resistência à entrevista, por desconhecimento do papel dos profissionais ou por temor a represálias (...) (FÁVERO, 2007, p. 73).

Parece uma compreensão mais afinada com o compromisso ético-político do Serviço

Social e da Psicologia, que vêm buscando sair do lugar do individual e marcar um

compromisso social com a transformação da realidade.

6.3 A Instituição

Há 02 anos e 04 meses atrás (SIC), “de tanto apanhar”, ele apresentou 03 episódios de desmaio imotivado (os quais sequer foram relatados nos

informes institucionais). (...) Tortura física – cita ter apanhado de extintor de incêndio, ter sido algemado de ponta de cabeça, pelas pernas.

Ao iniciar a configuração desta pesquisa, optou-se, inicialmente, por não tratar dos

aspectos institucionais, a despeito de sua importância, já que outros autores haviam se

debruçado sobre o tema, bastante abrangente. Definiu-se que não seria o foco desta

pesquisa e que a produção bibliográfica já existente sobre o tema dava conta de tratar o

assunto com a profundidade demandada, sobretudo devido às graves violações ocorridas

na instituição, exaustivamente divulgadas e denunciadas a organismos nacionais e

internacionais, haja vista o Estado brasileiro ter sido processado na Corte Interamericana

por episódios de tortura na FEBEM (atual Fundação Casa).

73

Contudo, uma abordagem mais sintetizada da problemática institucional incorria no

risco de minimizar as graves violações e, como alguns dos documentos analisados

apresentaram denúncias a esse respeito, o impacto provocado pela leitura da

documentação coligida tornou inevitável a menção dos trechos mais impactantes, como “no

retorno à FEBEM (...) permanece sujeito a toda forma de degradação e violação de direitos

que se possa imaginar, em face do cotidiano institucional amplamente ‘fora da lei’ ali

vigente” (ETJ – Psicologia), “(...) transitou pelas perversas UI XXX onde predomina um

manejo institucional amplamente ‘fora-da-lei’ refere a episódios de tortura física e

psicológica” (ETJ – Psicologia). Ei-los:

(...) entendo que a progressão realmente poderá ser mais operativa em sua finalidade ressocializadora do que a permanência nas colapsadas unidades do regime fechado, onde prevalece a “subversão” do estatuto legal com a chancela do Estado (ETJ – Psicologia).

Neste contexto institucional amplamente ‘doente’ do ponto de vista psicológico, o recorrente envolvimento deste rapaz em intercorrências desabonadoras se coloca muito mais como uma irrupção de reivindicação simbólica do seu direito de se expressar, caracterizando-se enquanto movimento de resistência frente à genocida estratégia institucional de aniquilamento de subjetividades que atualmente predomina no cenário institucional onde ele se encontra (ETJ – Psicologia).

(...) a sua permanência na FEBEM tem reforçado exatamente o que deveria buscar suprimir, o que imprime à privação de liberdade um caráter absolutamente ‘deseducativo’ e que caminha na direção da cristalização do ‘sintoma’ (delinqüência) (ETJ – Psicologia).

O fato é que, TUTELADO PELO ESTADO, A. ESTÁ EXPOSTO A UMA LÓGICA PERVERSA QUE CONTRARIA TODAS AS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS, neste cenário, ele vem sendo reforçado em suas características mais negativas, mediante a validação de uma ética em si mesmo “fora da lei” (ETJ – Psicologia).

Todas essas considerações foram feitas por profissionais da área da psicologia.

Porém, analisando-se cuidadosamente os processos, foi possível detectar que quase

sempre era o mesmo profissional, o que revela, no mínimo, uma postura individual, de sorte

que não se verifica um compromisso coletivo no tocante à denúncia de violações, com o

74

objetivo de contribuir para a garantia dos direitos dos adolescentes, conforme preconiza o

Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em relação a essa categoria temática, outra questão apresenta-se: diante da

instituição caracterizada como “fora da lei”, o discurso que considera o ato infracional uma

busca inconsciente pela lei para ocupar o lugar da falha da lei paterna poderá ser

sustentado?

6.4 A questão social

Para definir a questão social, cite-se Yasbek:

A questão social, hoje, coloca-se basicamente a partir da produção e distribuição de riquezas. Traduz-se pela erosão dos sistemas de proteção social, pela vulnerabilidade das relações sociais e pelo questionamento da intervenção estatal (YASBEK, 2007, p .7).

Em alguns poucos processos, observou-se referência a situações de privação e de

precariedade material, mas essa não foi a regra.

Daí o questionamento sobre a não-constatação desse aspecto na grande maioria

dos estudos sociais, sendo que, conforme dados das regiões de moradia dos adolescentes,

eles residem amiúde em locais de vulnerabilidade.

Tal constatação vai ao encontro da categoria temática: autocrítica, que se refere a

um caráter mais intimista dos laudos sociais, restringindo-se, em sua maioria, a questões

individuais e/ou intrafamiliares, sem dar visibilidade a aspectos coletivos, o que é essencial

em estudos sociais. Quanto aos aspectos a ser abordados no estudo social, Fuziwara

recorda que:

75

Nesse sentido, é fundamental que se tenha maior clareza de que o estudo social deve conter uma boa descrição, mas não apenas isso. Deve trazer elementos que fundamentem a análise, compreendam os fatos e consigam explicá-los à luz dos conhecimentos. Além disso, deve ter suporte teórico metodológico e, como afirmado em vários momentos, posicionamento ético-político (FUZIWARA, 2006, p. 244).

Para ilustrar a pouca visibilidade dada às questões sociais, apresentar-se-á, a seguir,

como essas questões são relatadas nos documentos analisados, sendo que, dentre os 18

documentos produzidos por Assistentes Sociais, apenas 6 abordam a questão social e,

dentre os 19 documentos produzidos por Psicólogos, apenas 5 abordam a questão social.

O conteúdo dos demais documentos permanece restrito à dinâmica intrafamiliar e à

personalidade do adolescente. Reproduzimos integralmente como os aspectos referentes à

questão social são registrados nos documentos analisados:

A principal fragilidade deste núcleo parece ser de ordem material, pois seus membros experimentam considerável situação de segregação social. Habitam região periférica, onde predomina alto índice de criminalidade e estão expostos às vicissitudes da precariedade das redes informais de controle social – como é típico nos rincões de pobreza (ETJ Psicologia).

Nesse mesmo processo, o Laudo Social permanece restrito à dinâmica intrafamiliar e

à autocrítica, concluindo que "o adolescente demonstra estar arrependido da prática que

culminou com a sua internação".

Em outro processo analisado, o Laudo Psicológico aponta que:

A família experimenta considerável condição de segregação social. Vivem em barraco localizado em região favelar, em situação de ampla penúria sócio-econômica e experimentam privações em suas necessidades vitais de subsistência. No entorno predomina a banalização das ações transgressoras, como é típico nos rincões de pobreza, além da precarização das redes de apoio e promoção social (ETJ Psicologia).

76

Em um dos laudos psicológicos analisados, observa-se que o profissional estabelece

um diálogo entre a caracterização da família e a questão social, mas, na caracterização da

família, atribui um julgamento de valor:

Provém de família desestruturada pela separação dos genitores, motivada pela baixa disposição do pai pelo trabalho. (...) Há quinze anos a mãe mantém família recomposta com o padrasto, com quem gerou outras seis crianças. O padrasto é o principal provedor material e sua exígua renda provém de atividade de reciclagem. Este numeroso grupo reside em habitação coletiva, ‘cortiço’, em condições bastante precárias – ocupam um único banheiro coletivo com outras famílias. Vivendo num limiar da miserabilidade, o adolescente e seus irmãos mendigam pelas ruas desde a mais tenra idade, motivo da recente inclusão familiar no PETI (ETJ – Laudo Psicológico).

Cumpre apresentar a caracterização que o laudo traz sobre a mãe e a relação que

estabelece entre a dinâmica familiar e a situação de rua:

Embora afetiva, a mãe impressiona como uma frágil referência de autoridade doméstica, parecendo muito prejudicada a sua ascendência sobre o adolescente. Ela revela-se pessoa rude e simplória e denota carecer de recursos mais sofisticados de expressão, compreensão e elaboração. (...) A precoce eleição das ruas enquanto espaço de inserção e pertença reflete objetivamente as fragilidades familiares no sentido de proporcionar-lhe respaldo afetivo emocional compatível as suas necessidades. Foi neste contexto de desregramento generalizado que ele aderiu às práticas infracionais (ETJ – Psicologia).

Na conclusão do laudo, o profissional retoma a falência das redes de proteção social

e define encaminhamentos:

Pelo que pudemos perceber, o adolescente desenvolveu acentuado perfil de vulnerabilidade para comportamentos de risco como conseqüência direta da debilidade do sistema familiar e também da falência das redes formais e informais de proteção e controle social. (...) O adolescente deverá ser encaminhado para projetos sociais e família também necessita receber consistente suporte e assistência para que possa desenvolver estratégias mais operativas de manejo das questões postas em cena, podendo-se beneficiar da inserção em grupo de apoio e orientação (ETJ Psicologia).

Destaque-se que, ao analisar o processo, foi possível verificar que, oito meses antes

da data da consulta realizada, já constava uma determinação judicial para inserção da

77

família em grupo de apoio e orientação, sendo que a única intervenção apresentada no

processo em relação à família é a realização de uma visita domiciliar, ocasião em que se lhe

entregou uma cesta básica. Esse caso é emblemático na ilustração da ausência de

estratégias de proteção social.

Um outro laudo psicológico conclui que:

A precária condição social da família e uma particular dificuldade no manejo da transmissão educacional o remeteram para uma desimplicação generalizada, inclusive a si mesmo. O adolescente sempre apresentou dificuldade em se sujeitar a um contexto social normativo. (...) Depreende-se daí uma significativa dificuldade estabelecida na relação que mantém como o Outro Social. Trata-se de questões enquistadas na constituição subjetiva, menos pelas adversidades próprias de sua existência e mais por sua posição frente a (SIC) elas (ETJ Psicologia).

Esse não é o único laudo psicológico que cita a precária condição social da família,

mas enfatiza que a inadequação reside no adolescente, pois apresenta dificuldade em lidar

com sua condição social.

Essa conclusão, em um laudo psicológico, já contradiz os princípios éticos e políticos

da profissão, que tem buscado cada vez mais registrar o compromisso social da psicologia

com a transformação da realidade. O que dizer então sobre conclusão similar em laudo

social? Acerca do tema, mencione-se:

Não demonstra consciência crítica, nem percebe as conseqüências dos seus atos, nem para si e seus familiares, tampouco para as vítimas. A situação financeira da família é precária, mas nunca passaram por necessidades materiais e dentro do possível o adolescente era atendido em todos os seus desejos (ETJ – Laudo Social).

Como pensar uma abordagem desse tipo num laudo social? “Nunca passaram por

necessidades materiais” - como dimensionar e concluir categoricamente algo que invoca um

histórico de vida? É possível que uma entrevista tenha esse alcance?

78

O laudo apresenta considerações sobre o campo individual, negando condições

sócio-econômicas de existência, permanecendo no campo da autocrítica e da culpabilização

do sujeito como aquele que, apesar de “ter todos os seus desejos atendidos”, infringiu.

Fuziwara, em estudo sobre a contribuição do Assistente Social para a Justiça na

área da Infância e da Juventude, aponta que:

Uma entrevista pode recair não na possibilidade de os sujeitos se expressarem, num momento de reflexão, de reconstrução de suas trajetórias, de busca de direitos, de elaboração de estratégias e projetos, mas num momento de aconselhamento policiador e pretensamente normatizador de condutas e comportamentos. Pode ser realizado não a partir do sujeito de direitos, mas do lugar de um profissional que detém o controle e o saber. Neste sentido, mesmo com um discurso emancipatório, o profissional pode revelar em suas ações um posicionamento que não considere as determinações da vida social e, pior, com viés moralizador (FUZIWARA, 2006, p. 55).

Citações acerca de aspectos individualizantes em laudos sociais evidenciam quanto

as colocações técnicas sobre as questões familiares, em detrimentos das questões sociais,

interferem nas decisões judiciais e contribuem para a culpabilização da família. Em relação

a esse aspecto, a mesma autora refere-se à ruptura com o conservadorismo, pautada na

perspectiva hegemônica do Serviço Social:

Nesse sentido, no caso do Serviço Social, a perspectiva hegemônica pauta a ruptura com o conservadorismo. Ela exige a denúncia e a rejeição do retorno às abordagens que eram pautadas na busca da “reintegração social”, da “reestruturação familiar”, pois parte do entendimento de que exclusivamente com a mudança comportamental pode haver alterações e resoluções na vida da população. Além disso, paira sobre a fiscalização e normatização dos comportamentos individuais, ou seja, atribui aos sujeitos total e exclusiva responsabilidade pela situação vivida, sem considerar os outros elementos que provocaram e influenciaram (FUZIWARA, 2006, p.122).

Cite-se, à guisa de ilustração, decisão judicial para melhor ilustrar a dimensão ético-

política dos posicionamentos assumidos pelos psicólogos e pelos assistentes sociais, a qual

entendeu por bem manter a internação do adolescente:

79

X. é originário de família desestruturada, portanto trata-se de manter a medida de internação pelo período de tempo em que o Estado por seu sistema de justiça possa intervir com medidas protetivas no núcleo social em que vive o adolescente – especialmente em sua família.

A par disso, o Laudo Social sugere “a inserção da mãe em grupo de apoio e

orientação familiar, visando, com isso, à reorganização familiar”.

A situação familiar do jovem é realmente difícil, pouco contato teve com os pais. Não recebeu afeto, os vínculos familiares foram sempre frágeis e incertos, marcados pela ausência dos genitores. A área de moradia consiste em um local de altíssima vulnerabilidade social, marcado pela violência (ETJ Laudo Social).

A fim de dimensionar o peso da afirmação “não recebeu afeto”, cumpre salientar que

o adolescente em questão permaneceu, desde um ano de idade, com os avós paternos,

entretendo contatos com o pai e a mãe.

Esta última constituiu nova união e relatou que “este companheiro tinha envolvimento

com o tráfico de entorpecentes e por conta disso ela foi incriminada como traficante, mas

seria inocente”. A mãe compareceu com o adolescente na entrevista realizada pela Equipe

Técnica do Judiciário.

O Laudo Social do Judiciário não apresenta nenhuma análise sobre o lugar do tráfico

na questão social, sobretudo em relação às mulheres encarceradas.

O Parecer Social elaborado pelos técnicos da Fundação Casa apresenta outros

dados sobre a questão social:

Família proveniente de camada social baixa, em linha de exclusão. O adolescente residia com os avós maternos. A renda familiar provém da aposentadoria do avô R$ 350.00 e mais benefícios do Programa Social Renda Cidadã R$ 60.00. A mãe não encontra-se (SIC) mais em situação de reclusão e exerce a função de ajudante geral, com renda de R$ 350.00. Em devolutiva deste quadro sua genitora está inserida no programa de inclusão social – renda cidadã - R$60,00 (Fundação Casa).

80

A análise do processo indica que, em devolutiva, a mãe foi inserida em Programa de

Inclusão Social para receber R$ 60.00 (sessenta reais). De que inclusão se está falando?

Que lugar o tráfico vem ocupando em cenários como esse? A desorganização é familiar? A

fragilidade é somente dos pais? Que Estado é este que, como devolutiva, apresenta essa

possibilidade de inclusão social? O adolescente continuará internado (em uma instituição

fora da lei), aguardando a reorganização familiar... e a reorganização do Estado?

Ainda na esteira de trechos dos documentos que se referem à questão social, segue-

se para outro Laudo Social:

A mãe descreve o filho como o mais pacato e carinhoso dos filhos. Foi com surpresa que tomou conhecimento do primeiro ato infracional do filho. Ela estava desempregada e é certo que passavam dificuldades financeiras importantes e o adolescente parece ter cedido aos apelos consumistas de sua idade. A entrevista com o jovem nos indicou que ele atingiu a crítica necessária, estando arrependido e certo do que deseja daqui por diante (ETJ Laudo Social).

O exame dos autos viabilizou o acesso a dados de relatórios da Fundação Casa, os

quais apontam que “a mãe começou a trabalhar como empregada doméstica, recebendo R$

150.00 (cento e cinqüenta reais) e foi inserida no programa renda cidadã R$ 60.00”

(sessenta reais).

Ela recebe menos que um salário mínimo e novamente a resposta do Estado é a

inserção no programa renda cidadã e a aposta do Laudo Social é na autocrítica do

adolescente.

Outro Laudo Social evidencia um posicionamento técnico recorrente: a ênfase em

questões emocionais. Apresentar-se-á, abaixo, citação do Laudo Social referente a um

adolescente que reside com a irmã e a mãe, ambas desempregadas na ocasião da

apreensão do adolescente por envolvimento com tráfico:

81

A genitora relata vários momentos de privação econômicas devido ao desemprego, atualmente trabalha como diarista. A genitora refere que o adolescente em certos momentos fica desmotivado com a condição sócio-familiar. A situação familiar continua fragilizada. A mãe demonstra dificuldades em lidar com esta situação, principalmente com as demandas que o caso exigem, no sentido de contenção e suporte emocional (ETJ Laudo Social).

O laudo social sugere os seguintes encaminhamentos: Programa de distribuição de

renda, inserção do jovem em mercado de trabalho, encaminhamento para Programa de

habitação popular da Prefeitura de São Paulo.

A mãe demonstra dificuldade em oferecer suporte emocional, o adolescente fica

desmotivado... ou é concretamente uma situação complexa e o Estado demonstra sua

inoperância em atuar, gerando essa sobrecarga à mãe? A primeira medida sócio-educativa

foi aplicada em dezembro de 2.005, quando a mãe já residia em um “galpão”, mas os

encaminhamentos sugeridos aparecem nos autos somente em dezembro de 2.007, ou seja,

dois anos após a aplicação da primeira medida sugere-se a inserção em programas de

transferência de renda e habitação. E sugere, pois não constam dos autos relatos sobre a

efetivação dos encaminhamentos. Portanto, é a mãe que demonstra dificuldade em lidar

com as demandas que o caso exige – conforme o laudo social aponta – ou esse processo

evidencia a ausência de políticas públicas que respondam à demanda da família, conforme

previsto legalmente?

Nesse sentido, não é somente uma questão emocional como o laudo social aponta,

cabendo-lhe apontar a dimensão da questão social em concreto.

Enfatizando a ausência da proteção social, que é dever do Estado e que viabilizaria a

essa mãe processar o cuidado emocional do qual vem sendo cobrada, é preciso dizer que o

relatório da Fundação Casa aponta que o suporte que a mãe recebe consiste em cesta

82

básica e em apoio emocional, o que lhe é oferecido pela Igreja. É a única intervenção citada

nos autos.

Evidentemente, seguindo o raciocínio presente no Laudo Social, o Juiz conclui:

Não tem respaldo familiar sólido, pois os genitores são separados. O genitor é ausente e a genitora, embora interessada em apoiar o filho, demonstra estar fragilizada pelo histórico de carências da família, inclusive econômica (Conclusão do despacho do Juiz).

A mãe frágil, o histórico de carências familiares, tudo no campo individual e

intrafamiliar... enfim, algo que poderia ser superado caso a mãe, além de interessada, fosse

forte. Calha perguntar: o Laudo Social problematizou esse olhar ou ajudou a construí-lo?

Para aprofundamento da análise desta categoria temática, utilizar-se-á o Mapa da

Exclusão/inclusão Social da Cidade de São Paulo/200013. O quadro abaixo identifica os

distritos de moradia dos adolescentes por meio da análise documental e do respectivo

índice de exclusão social.

Mostra-se relevante esse mapeamento, pois ele oferece parâmetros de avaliação

quanto às questões sociais, as quais deveriam ter sido tratadas nos Laudos Sociais

produzidos, haja vista ser evidente a inserção dos adolescentes em contextos de exclusão

social.

13 SPOSATI, Aldaíza. Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo/2000. NEPSAS – PUC/SP. CD – ROM;

83

Distrito IEX Índice de Exclusão/Inclusão -

Final

Sapopemba -0.67

Itaquera -0.67

Jardim Madalena -0.77

São Mateus -0.53

Vila Paulistana - Tremembé -0.44

Vila Mara – São Miguel -0.64

Capelinha – Capão Redondo -0.77

Ponte Pequena - Sé -0.47

Pedreira -0.75

Itaim Paulista -0.92

Guaianazes -0.90

Grajaú -0.95

Perus -0.72

Jaçanã -0.42

Brasilândia -0.82

São Miguel Paulista -0.64

Jd. São Luiz -0.68

Cidade Ademar -0,70

Fonte: Índice Final de Exclusão/Inclusão Social – São Paulo 2000

Sposati, ao apresentar o Mapa de Exclusão/Inclusão Social, consigna que:

Temos nos dito e vivido a condição de um país extremamente desigual. Entendemos que essa condição nos força a encontrar novos métodos e técnicas capazes de, ao estampar essa desigualdade, provocar o desejo real de superá-la junto ao maior número possível de habitantes. O Mapa busca mostrar o quanto São Paulo é ainda discrepante na oferta de qualidade de vida em todos os seus distritos. A luta pela democratização da política e pela justiça social exige a ampliação do conhecimento dos

84

cidadãos sobre as condições de vida de todos os moradores da mesma cidade (SPOSATI, 2000, p. 5).

O Mapa da Exclusão/Inclusão Social é uma metodologia que, usando de linguagens

quantitativas, qualitativas e de geoprocessamento, produz dois índices territoriais que

hierarquizam regiões de uma cidade quanto ao grau de exclusão/inclusão social. Trata-se

do IEX - Índice de Exclusão/Inclusão Social - e do IDI - Índice de Discrepância. Esses

índices vinculam condições de vida das pessoas ao território onde vivem. De certo modo,

produzem uma medida de vizinhança, uma vez que associam dados individuais ao convívio

num mesmo território.

Sposati chama a atenção para a obstrução da dimensão ética da vida social:

O não reconhecimento do outro como sujeito de interesses diferentes, válidos e pertinentes obstrui a dimensão ética da vida social. A ruptura do tecido social, a exclusão, a violência, são faces da incivilidade presente nas relações que deveriam se desenvolver dentro de um patamar de dignidade e redistribuição de riqueza social construída pela sociedade (SPOSATI, 2000, p. 8).

A mesma autora alerta para o fato de não se dever confundir pobreza com exclusão,

embora a pobreza seja uma forma de exclusão:

Os pobres tornam-se mais pobres porque são excluídos dos meios através dos quais suas condições poderiam melhorar, e os ricos porque consolidam suas bases de poder. Mas, quando aqui se afirma que as novas exclusões sociais dizem respeito à forma de distribuição dos acessos, se está tratando do ponto de mutação da situação de excluído para incluído, a este ponto se denomina padrão básico de inclusão. Condição desejável de ser universalizada para todos, conquista básica de civilidade que desencadeia ao mesmo tempo o desejo do alcance de um novo patamar de vida como construção histórica (SPOSATI, 2000, p. 9).

A autora enfatiza o traço distintivo entre adotar como parâmetro a concepção de

padrão básico de inclusão e a linha de pobreza, isto é, a determinação empírica da pobreza:

85

A “armadilha da pobreza” designa variados equívocos presentes em diferentes concepções e propostas para enfrentá-la que, contraditoriamente ao que parecem pretender, estigmatizam o pobre, culpabilizando-o pela sua situação, por seu fracasso no mercado e, geralmente, apresentam como alternativas uma proposta de acesso ao consumo. Ser pobre, ao contrário do ser rico, é não ter. Medir o grau de não ter não é indicativo de alteração da situação, pois isto exigiria o contra-conceito – o de não pobre, como referencial. Na lógica da medição da posse de bens invariavelmente não saímos do patamar do mercado como benefactor. Trata-se no caso de obter algum ganho para que o pobre vire consumidor, ainda que precário, e possa entrar na lógica do ter pela posse (SPOSATI, 2000, p. 9).

Portanto, o padrão básico de inclusão é o ponto de mutação de dada situação de

exclusão ou de inclusão, é o ponto de inflexão para análise de uma variável e não sua

média. A fixação do padrão é também campo de linguagem qualitativa e participativa, pois

ela supõe, em primeiro lugar, uma convenção do que se entende como condição desejável

para todos em uma sociedade.

A seguir, é examinada a distância negativa (a menos) ou positiva (a mais) de cada

variável desse padrão. Os limites dessa escala estão no IDI, isto é, no maior gap detectado

para cada variável em uma cidade.

O segundo suposto da construção do índice de exclusão/inclusão social consiste na

agregação da incidência das variáveis em intervalos de classes percentuais por meio de

quartis negativos e positivos.

O terceiro suposto consiste na conversão das incidências negativas e positivas em

notas na escala de –1 a +1, mediadas pelo 0 (zero), que é o padrão de inclusão.

Nesse sentido, a autora afirma que o Mapa de Exclusão/Inclusão Social/2000 cria

uma linguagem mais acessível para o cálculo do IEX – Índice de Exclusão/Inclusão:

Ao invés de usar uma equação para defini-lo, atribui notas decimais negativas e positivas para simbolizá-las. Através destas notas é construído o ranking dos distritos pelo afastamento negativo ou positivo do padrão de

86

inclusão. A metodologia do Mapa fundamenta-se na construção de uma escala que, ao integrar todas as áreas e setores populacionais da cidade, permite ao mesmo tempo classificá-los pelas condições de afastamento de uma condição básica de inclusão social. Esta medida, operada por contraponto, compara a distância que a cidade constrói entre melhores e piores condições de vida a seus habitantes nos locais onde ele vive (SPOSATI, 2000, p. 12).

Ao serem analisados os Índices de Exclusão/Inclusão dos distritos de moradia dos

adolescentes, cujos processos foram analisados na presente pesquisa, tomando por base a

classificação pelas condições de afastamento de uma condição básica de inclusão social,

observou-se que todos apresentam um afastamento negativo em relação ao padrão básico

de inclusão social. Os afastamentos apresentados são significativos, atingindo, em sua

maioria, índices de -0,70 a -0,95, figurando entre os piores índices de exclusão social.

Os dados do Mapa indicam o Jardim Ângela, com IEX -1,00, como o pior índice de

exclusão social, seguido pelo Grajaú, com -0,95. No outro extremo, Moema apresenta o

melhor índice, qual seja, +1,00.

Em relação a esses índices, Sposati enfatiza:

Os 10 distritos com piores índices de exclusão social são exatamente aqueles que freqüentam as notícias de jornais com a presença da violência. Mostram-se na cidade dois territórios de concentração de maior exclusão social: a sul e a leste, que estão a merecer forte presença da ação pública no sentido de reverter estes índices (SPOSATI, 2000, p. 41).

Dessa forma, a autora põe em relevo a importância de uma forte presença da ação

pública no sentido de reverter esses índices de exclusão social, saindo do campo do

individual e indo para o campo do coletivo.

Entre outros autores que discutem a exclusão social e podem contribuir para a sua

análise, mencione-se Sawaia, que enfatiza a complexidade do processo de exclusão:

87

A exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema (SAWAIA, 2008, p. 9).

Nos documentos analisados, observaram-se aspectos que estão relacionados a

questões sociais tratados como questões individuais. No discurso técnico despolitizado, o

envolvimento infracional do adolescente esgota-se na fragilidade da figura paterna, na sua

capacidade de autocrítica e permanece abstraído de suas violentas condições históricas.

Nesse sentido, visando a desconstruir essa leitura superficial, recorreu-se a

Guareschi, que se apóia na avaliação da dinâmica social do capitalismo apresentada por

Castells (1988:70 -165):

No que respeita às relações de distribuição/consumo, ou à apropriação diferenciada da riqueza, encontramos processos de desigualdade, polarização entre ricos e pobres, pobreza e miséria. Por outro lado, diante das relações de produção, encontramos processos de individualização do trabalho, superexploração dos trabalhadores, exclusão social e uma integração perversa, isto é, o processo de trabalho na economia criminosa com atividades de geração de renda que são declaradas por lei como sendo criminosas, tais como o tráfico de drogas (...). Que sobra de tudo isso? Uma multidão de seres humanos empobrecidos e descartáveis. Como diz Assmann (1994:129), “na atual conjuntura, o fato maior é, sem dúvida, o cruel predomínio de uma férrea lógica da exclusão, o clima de indiferença anti-solidária que a sustenta e, em decorrência, o fato de que uma imensa ‘massa sobrante’ de seres humanos descartáveis tenha passado a viver como lixo da história” (GUARESCHI, 2008, p. 149).

A citação acima contribui para sair-se da lógica da autocrítica, tão fortemente

marcada nos laudos sociais, para considerar-se a férrea lógica da exclusão. O autor enfatiza

a estratégia de culpabilização como uma estratégia psicossocial sutil na tarefa de

legitimação da exclusão14. Considera que é necessário desmistificar e denunciar esse

mecanismo, o que vai ao encontro dos objetivos da pesquisa que ora se desenvolve, haja

88

vista que a estratégia de culpabilização foi exaustivamente constatada nos documentos

analisados.

Guareschi, apoiado em Robert Farr (1991), refere a atribuição do sucesso e do

fracasso exclusivamente a pessoas particulares, ocasiões em que se esquece

completamente de causalidades históricas e sociais:

Há uma “individualização” do social, e um endeusamento do individual. Questiona a moralidade de tais práticas, que são assim legitimadas por determinadas teorias nas ciências sociais. De concepções como essas derivam práticas atuais de culpabilização psicológica, muito bem identificadas e analisadas por Viviane Forrester (1997), quando mostra como o desemprego planejado e sistêmico dos dias de hoje, que leva à exclusão de milhões de pessoas, é legitimado por teorias psicossociais. As pessoas são, individualmente, responsabilizadas, por uma situação econômica adversa e injusta. Para tais teorias o social não existe (GUARESCHI, 2008, p. 150).

Ao inserir no presente estudo a categoria temática questão social, tinha-se por

objetivo a desconstrução da lógica de culpabilização individual, recaindo ora no adolescente,

ora na figura do pai ou mãe do adolescente que infringiu a ordem jurídica. Nesse sentido,

Guareschi refere-se à vítima expiatória:

Na legitimação da exclusão, é necessário encontrar uma vítima expiatória sobre quem descarregar o pecado de marginalização, ou quase genocídio, de milhões. Essa vítima é o próprio excluído. O culpado não é um sistema, baseado em relações excludentes, que faz milhões de pobres. Não existe, dentro da ideologia liberal, espaço para o social. Por isso o ser humano é definido como indivíduo, isto é, alguém que é um, mas não tem nada a ver com os outros. O ser humano, pensado sempre fora da relação, é o único responsável pelo seu êxito ou pelo seu fracasso. Legitima-se quem vence, degrada-se o vencido, o excluído (GUARESCHI, 2008, p. 154).

Ao constatar que dos 18 laudos sociais analisados apenas seis fizeram alusão à

questão social, sendo que os demais permaneceram na ótica do individual, torna-se

necessário repisar o quanto as questões sociais vivenciadas pelos adolescentes e por seus

familiares permanecem no lugar do não-dito, em termos de documentos produzidos por

psicólogos e por assistentes sociais, os quais embasam decisões judiciais e decidem vidas.

89

Finaliza-se a análise dessa categoria temática com a contribuição de Fuziwara:

Quando o assistente social é o falante, ele interage com falas e com a escuta. E, ao fazê-lo, revela parte de sua ideologia, de seus preconceitos, de seus valores. O lugar de falante, ao ser ocupado, pode provocar justiça, opressão, possibilidades, cerceamentos. Ao assistente social cabe sempre se questionar por que, para quem e com que sentido realiza sua interlocução. O seu fazer deve estar impregnado de sentidos ético-políticos (FUZIWARA, 2006, p. 234).

90

Considerações Finais

Uma única área de saber não dá conta, vê uma face, reduz o fenômeno a um fato: fato econômico, fato antropológico, fato histórico, fato político, fato psicológico ou cultural ou jurídico ou...

É necessário transitar por vários saberes, várias especialidades. Profª. Maria de Lourdes Trassi Teixeira

No capítulo Metodologia, citou-se Minayo (2007): “(...) nada pode ser

intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida

prática” e esta citação foi muito significativa para a realização da pesquisa.

É relevante para o pesquisador a proximidade com o seu tema de pesquisa.

Percebeu-se que, no decorrer do Mestrado, a cada capítulo transcorrido, as experiências do

período de trabalho na atual Fundação Casa e na AMAR – Associação de Mães e Amigos

da Criança e Adolescente em Risco - foram revividas.

Se, por um lado, reviver essas experiências estimulou a realização da pesquisa, por

outro, ocorrem experiências geradoras de angústia, como aconteceu ao relembrar aqui as

situações de tortura. Nesse sentido, em muitos momentos, a sensação foi de imobilização

no universo da pesquisa, e foi preciso tomar um fôlego para seguir adiante.

O período de pesquisa no cartório do DEIJ – Departamento de Execuções da

Infância e da Juventude - foi bastante expressivo, a despeito do mal-estar físico causado,

pois foi possível transcrever anotações como esta:

Deixo o Forum com um mal-estar, um grande mal-estar, dói a cabeça, dói a nuca, uma angústia que só no 4º dia consegui nomear. Talvez tenha conseguido nomear, porque, ao descer as escadas do Forum naquele dia, vi um grupo de meninos, cabeça baixa, mão para trás, ‘gente’ naqueles processos.

91

Intrigante que, ao reler a Introdução deste trabalho, foi possível identificar que, ao

serem descritos os primeiros contatos com os adolescentes internados, também se relatou

uma cena semelhante: adolescentes em fila, mão para trás... Dez anos se passaram.

Nestas considerações finais, torna-se necessário enfatizar que, em relação às

violações de direitos humanos, ocorridas dentro da Fundação Casa, entre todos os

documentos elaborados por Assistentes Sociais e por Psicólogos da Equipe Técnica do

Judiciário (ETJ), totalizando trinta e sete documentos, somente três apresentavam

“denúncias” de violações.

Não se pode ser conivente com um discurso que refere práticas de tortura como se

isoladas fossem, haja vista que as citações desses três documentos faziam alusão a um

universo “caótico”, “fora da lei”, que certamente atingiu outros adolescentes.

O Relatório da Inspeção Nacional às Unidades de Internação de adolescentes em

conflito com a lei, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia e pelo Conselho Federal da

Ordem dos Advogados do Brasil em 2.006, apresenta as seguintes constatações acerca das

unidades de internação de São Paulo:

A partir das observações da estrutura física, do contato com os funcionários, dos relatos dos adolescentes e das marcas corporais, a grave constatação é a de que a FEBEM-SP (atual Fundação CASA) é um sistema prisional, pautado pelas práticas de tortura, negligência e humilhação no trato com os adolescentes sob responsabilidade do Estado, em completo desacordo com o instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O ambiente é de intensa violência, que atinge os internos e funcionários, física e psicologicamente. Foi possível observar e entrar em contato com adolescentes que sofreram castigos físicos e estavam aprisionados em celas (CFP/OAB, 2006, p. 25).

Sobre esse aspecto, Diniz, em pesquisa realizada em relatórios psicológicos de

adolescentes em medida sócio-educativa, analisa a omissão e as violações:

92

Posturas como “não ver”, “não saber”, ou “desconhecer” o que se passa refletem a ausência da consciência crítica de muitos profissionais, e não resulta da ingenuidade dos que, em suas salas distanciadas, não tomam parte ou conhecimento das “ocorrências” internas. Trata-se antes de um posicionamento, uma opção. Não há qualquer neutralidade na batalha que se trava ali, embora alguns queiram crer que sim (DINIZ, 2001, p. 111).

Destarte, retomando a categoria temática Instituição, conclui-se que, num Estado em

que a instituição responsável pela execução da medida sócio-educativa de internação é

caracterizada como “fora da lei”, não é possível sustentar o discurso técnico, pseudo-

psicanalítico, de que o adolescente infringe a ordem jurídica em busca da lei paterna,

ausente na dinâmica familiar.

O título do presente trabalho é mais provocativo do que realmente uma busca pela

motivação do ato infracional. Ao contrário, conforme apontado por Trassi, propõe-se, por

ora, uma reflexão sobre a multideterminação do envolvimento de adolescentes com atos

infracionais:

Isto implica superar explicações simplistas, reducionistas, que atribuem a existência do fenômeno a uma única causa: econômica ou à baixa escolaridade ou a aspectos morais ou a culpabilização exclusiva a família ou... (Trassi, 2006, p. 17).

Em relação à categoria Questão Social, sublinhe-se que dos dezenove documentos

assinados por Assistentes Sociais apenas seis, ou seja, menos de 30% dos documentos

produzidos, faziam referência à situação sócio-econômica. Os demais permaneceram

focalizados na descrição da dinâmica intrafamiliar, no posicionamento do adolescente

durante a entrevista – se docilizado ou não - e concluíam a sugestão de progressão de

medida baseados na “criticidade” do adolescente.

O dado supracitado é relevante para a presente pesquisa, pois se defende aqui que

o Serviço Social forneça significativas contribuições para a desconstrução dos discursos

93

psicologizantes, tendo em vista que a leitura acrítica da realidade social que surgiu nos

documentos analisados reforça o caráter intimista das produções.

Diniz, ao avaliar documentos produzidos por psicólogos, chama a atenção para a

ausência da categoria sócio-econômica, havendo de se considerar ainda mais grave a

ausência desse aspecto em laudos sociais. Veja-se o que a autora diz em relação às

produções de psicólogos:

Incluímos a Categoria Situação Sócio-econômica para destacar a sua ausência marcante. A freqüência com que surgiu nos textos foi muito inferior às outras, e nossa hipótese é de que não se trata de uma mera separação de temas entre a Psicologia e o Serviço Social, mas de uma visão parcial que minimiza a influência das condições materiais na formação da subjetividade individual (DINIZ, 2001, p. 107).

O que se pode dizer acerca dos laudos sociais que minimizam a influência das

condições materiais na formação da subjetividade individual? Novamente, recorre-se a

Fávero, que entende a questão social15 como base fundante do Serviço Social.

(...) para o debate a respeito da realidade de vida dos sujeitos, e da intervenção do Serviço Social nesses espaços do Judiciário (...) é necessário ver, claramente, como ponto de partida, que a questão social atravessa o cotidiano dos sujeitos aí atendidos – em todas as suas dimensões. Questão social que se apresenta como “base” fundante do Serviço Social enquanto trabalho especializado (FÀVERO, 2007, p. 17).

Constatar que somente seis laudos sociais referem-se às questões sociais permite

compreender porque as questões intrafamiliares nomeadas como “ausência do pai”,

“desorganização familiar” e similares acabam ganhando mais visibilidade e sendo

identificadas como recorrentes nas produções técnicas, não só nesta pesquisa, como no

trabalho de outros autores. Para ilustrar, retome-se Frasseto (2005):

15 Aqui a autora cita a conceituação de questão social, apresentada por Iamamto (1998, p. 27): “... o conjunto das expressões das desigualdades que aparecem com a sociedade capitalista e que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação do seu produto mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”.

94

Observa-se de forma quase onipresente nos laudos a tendência de identificar a transgressão como expressão atual de uma remota falência no exercício das funções parentais, em especial a função paterna de introduzir no sujeito em construção a dimensão da Lei (FRASSETO, 2005, p.112).

As questões sociais ficam no lugar do não dito, reforçando a culpabilização

individual, “a ausência de criticidade”, “a dificuldade dos pais em impor limites”. Nessa

toada, a maioria dos documentos técnicos reverbera “chavões psicologizantes”, o que não

está nem mesmo de acordo com o compromisso social da Psicologia, o qual deve se nortear

pela apreensão dos fenômenos psicológicos em suas interfaces com os fenômenos

biológicos e sociais.

A Psicologia, em uma perspectiva crítica, vem problematizando a leitura da formação

da personalidade de forma descontextualizada. Sobre esse tópico, Diniz faz uma crítica:

Apenas os conflitos entre o casal parental e outros responsáveis surgiram como fatores determinantes na formação da personalidade. É como se os “aspectos psicológicos” se constituíssem sem os ruídos da escola, da comunidade, da mídia, de outros grupos de convívio e outras instituições (DINIZ, 2001, p. 57).

Na pesquisa realizada em pareceres psicológicos sobre adolescentes em medidas

de internação, a autora afirma:

Mas as referências à situação socioeconômica do adolescente e sua família foram encontradas em apenas 10,8% dos pareceres pesquisados. Inicialmente poder-se-ia argumentar que o assunto seria da abrangência do serviço social. Porém, entendemos que, quanto maior a freqüência dessa tematização, mais consolidada a concepção de que o olhar do psicólogo deve pressupor, na relação com um dado sujeito, a contribuição de sua origem sócio-cultural na formação da sua subjetividade, contribuição esta (SIC) a se levar em conta também nos princípios norteadores dessa relação e na escolha do conteúdo dos pareceres (DINIZ, 2001, p. 81).

Durante a pesquisa, foi-se identificando que a questão da ausência, da fragilidade do

pai ganha força não só por ser recorrente, mas porque as condições materiais de existência

ficam obnubiladas, não são incluídas como parâmetros de análise.

95

A análise da região de moradia dos adolescentes cujos processos foram

pesquisados evidencia que estão inseridos em região de alta vulnerabilidade social, o que,

entretanto, não foi contemplado na maioria dos pareceres analisados. Residindo em áreas

de altos índices de exclusão social, esses adolescentes não tiveram em seus pareceres

uma análise que levasse em conta a realidade em que estão inseridos. Quanto a essa

leitura superficial da realidade, Fávero lembra que:

A acentuada e crescente demanda atendida, sobretudo pela Justiça da Infância e Juventude, a premência em proteger uma criança em situação de risco pessoal e social, o parco investimento em recursos físicos, materiais e humanos por parte do Estado/instituição judiciária, para viabilizar melhores condições de trabalho nessa área, e a miséria vivida por muitos dos usuários – em razão da pouca presença do Estado na implementação de políticas sociais universalizantes, redistributivas e mesmo compensatórias, podem contribuir para que algumas vezes o estudo social e o seu registro documental sejam realizados a partir das primeiras impressões, do imediato, do que é posto aos olhos – sem que os profissionais avaliem as conseqüências do saber-poder presente nas suas ações (FÁVERO, 2007, p. 30).

Os fatores sociais não foram considerados para avaliar o envolvimento do

adolescente com o ato infracional, nem mesmo a reincidência. Não se observaram relatos

de intervenções que garantissem a efetivação dos direitos; poucos laudos sociais

apresentavam sugestões de encaminhamentos, mais exatamente em apenas três deles.

Um laudo sugeria o encaminhamento, quando da inserção do adolescente em meio

aberto, para escolarização, projetos sociais, CAPs AD – Centro de Atenção Psicossocial

Álcool e Drogas - e inserção da família em grupo de apoio e orientação, com vistas à

reorganização do grupo familiar.

Outro documento assinado por Assistente Social sugeriu a inserção do adolescente

em escolarização, profissionalização e renda cidadã.

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Um terceiro recomendou o encaminhamento da família para programa de distribuição

de renda, inserção do jovem no mercado de trabalho e programa de habitação, sendo certo,

porém, que essas sugestões de encaminhamento, neste caso, foram apresentadas dois

anos depois da primeira medida sócio-educativa cumprida pelo adolescente.

Nos laudos sociais elaborados pelos Assistentes Sociais do Judiciário, não havia

nenhum relato sobre a realização de visita domiciliar, importante instrumento do Serviço

Social para a compreensão da realidade dos usuários, como aponta Fuziwara:

Vale ressaltar que a visita domiciliar é um importante instrumento na perspectiva de respeito ao usuário, para que no próprio espaço possa se expressar. Assim, é antes a possibilidade de conhecer melhor este sujeito, seu percurso, suas conquistas, dificuldades, e as respostas que elabora diante das vivências. É mais uma possibilidade de permitir voz e vez. Ainda que não se possam igualar os lugares que cada um ocupa nesta relação criada por um conflito judicial, é uma estratégia para o profissional identificar outros elementos que fogem à artificialidade imposta pelas instituições. Fundamentalmente, pode ser uma ação que permita empatia e alteridade. Por meio da visita é possível verificar as relações sócio-familiares, muito mais a partir da lógica do pertencimento dos usuários em seus territórios e dos seus laços de sociabilidade (FUZIWARA, 2006, p. 55).

Nenhum dos processos relata a efetivação de uma inserção em políticas públicas de

atendimento que respaldasse os grupos familiares. Dois documentos assinalam ter havido

entrega de cesta básica! Uma, pela Equipe da Fundação CASA; outra, pelo apoio de uma

Igreja.

No que tange à efetivação da inserção nos chamados grupos de apoio e orientação,

a única referência encontrada nos processos diz sobre um grupo de ajuda mútua:

Para melhor respaldar a mãe e também acatando determinação judicial para inserção em grupo de apoio e orientação, a mãe foi encaminhada para o grupo AMOR EXIGENTE. Compareceu ao grupo apenas duas vezes, ao abordarmos sobre o fato ela justifica cansaço, porém atualmente ela está desempregada. Pontua justificativas pífias para não participar do grupo (Relatório Técnico Fundação CASA, assinado por Assistente Social e Psicóloga).

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Constataram-se essas sugestões de encaminhamentos a grupos de apoio e

orientação, mas não consta a existência de serviços que atendam, com equipe qualificada, à

demanda dos familiares, sobretudo em relação ao acesso às políticas de atendimento.

No exemplo supracitado, a família foi encaminhada a um grupo de ajuda mútua. A

avaliação já atribui conotação negativa à posição da mãe, não fazendo uma leitura mais

aprofundada da situação: não se questiona a ausência desses espaços de orientação e

apoio e atribui-se à mãe uma posição pífia. Essa leitura exime as demais instâncias do

sistema de garantia de direitos.

Não questionamos o valor dos grupos de ajuda mútua, mas cabe salientar os riscos

de as inserções nestes grupos serem alçadas ao lugar das políticas públicas que deveriam

estar sendo implementadas na defesa dos direitos desses adolescentes e familiares.

No lugar do não dito, também ficou o esgarçamento das relações sociais. Fez-se a

opção de incluir um capítulo sobre o Estado Transgressor, transitando-se pela fragilidade

dos valores sociais, a fim de dar visibilidade aos atravessamentos a que este pai,

adolescente e família estão submetidos.

Ao se questionar por que essa análise crítica da realidade social, conforme previsto

no projeto ético-político do Serviço Social e também no código de ética dos psicólogos não

aparece nos documentos analisados, podemos inferir que estes documentos se mantêm na

lógica de “punir os pobres”, expressão utilizada por Wacquant (2007), que ao referir-se ao

aprisionamento afirma:

A penalização serve aqui como uma técnica para invisibilização dos “problemas” sociais que o Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode ou não se preocupa mais em tratar de forma profunda, e a prisão serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os dejetos humanos da sociedade de mercado (WACQUANT, 2007, p. 21).

98

Desse, a circunstância agravante em relação aos resultados desta pesquisa é que os

laudos sociais configuram-se como instrumentos que produzem concretamente a

invisibilização: em setenta por cento dos laudos sociais, os problemas sociais estavam

“invisíveis”!

Na perspectiva de um trabalho interdisciplinar, o Serviço Social pode contribuir

significativamente para a desconstrução da aludida lógica, desde que os seus princípios

sejam refletidos nas produções técnicas, notadamente nos laudos sociais. Historicamente, o

Serviço Social tem buscado contribuir para a promoção de uma sociedade mais igualitária.

Todavia, nesta pesquisa, notou-se que o posicionamento da maioria dos profissionais tem

sido o de minimizar, ou até mesmo desconsiderar, a influência das condições materiais na

formação da subjetividade.

Publicação do Conselho Federal de Serviço Social e do Conselho Federal de

Psicologia 16, ao discutir a interface entre as duas profissões, ressalta que:

As abordagens das duas profissões podem somar-se com intuito de assegurar uma intervenção interdisciplinar capaz de responder a demandas individuais e coletivas, com vistas a defender a construção de uma sociedade livre de todas as formas de violência e exploração de classe, gênero, etnia e orientação sexual (CFP/CFESS, 2007, p. 38).

O mesmo documento reafirma a perspectiva do trabalho interdisciplinar no

enfrentamento das desigualdades sociais:

16 Parâmetros para atuação de assistentes sociais e psicólogos(as) na Política de Assistência Social, Brasília, 2007.

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(...) isso sem superestimar suas possibilidades e potencialidades no enfrentamento das desigualdades sociais, gestadas e cimentadas nas determinações macroeconômicas que impedem a criação de emprego, redistribuição de renda e ampliação dos direitos. Da mesma maneira, psicólogos(as) e assistentes sociais têm um papel fundamental na compreensão e análise crítica da crise econômica e de sociabilidade que assola o Brasil atualmente. Essa crise é fortemente determinada pela concentração de renda e expressa-se nos altos índices de desemprego, violência, degradação urbana e do meio ambiente, ausência de moradias adequadas, dificuldade de acesso à saúde, educação, lazer e nas diferentes formas de violação dos direitos. (...) nem se pode reforçar a perspectiva de que o enfrentamento das desigualdades estruturais pode se dar pela via da resolução de problemas individualizados e que desconsiderem as determinações objetivas mais gerais da sociabilidade (CFP/CFESS, 2007, p. 38).

Os resultados desta pesquisa mostram que os pressupostos sobre as determinações

macroeconômicas não embasam as práticas dos assistentes sociais que produziram os

laudos analisados. Setenta por cento dos laudos sociais analisados sequer mencionavam

quaisquer dos fatores supracitados: altos índices de desempregos, ausência de moradias,

dificuldade de acesso à saúde, educação e lazer etc.

Evidencia-se, assim, que ainda há um longo caminho a percorrer, com vistas a

reafirmar um projeto ético e sócio-político de uma nova sociedade que não culpe o indivíduo

pela sua condição sócio-econômica, a começar pela Equipe Técnica do Judiciário,

responsável por fundamentar decisões acerca da vida de milhares de adolescentes.

Não poderia finalizar este trabalho sem me incluir nestas reflexões. No decorrer da

pesquisa, revisei também a minha prática na condição de psicóloga que já elaborou

pareceres de adolescentes em medida sócio-educativa. Embora tivesse como pressuposto

uma análise crítica da realidade, reconheço que, inserida nessa engrenagem, eu possa ter

buscado na história de algum adolescente motivações para a prática de atos infracionais,

desconsiderando o que aqui se nomeou de determinações macroeconômicas.

100

Não obstante, posso colocar em análise as minhas práticas. Foi o que fiz com esta

dissertação, que me serviu exatamente como um mecanismo de colocar em análise também

as minhas próprias práticas para não ser capturada pela lógica de “punir os pobres”.

Não é o objetivo desta pesquisa, contudo, inverter a roda e eleger os técnicos do

Judiciário como bodes expiatórios. É bem verdade que assumem um acúmulo de processos

a ser analisados, resultando em produções técnicas elaboradas a partir de uma entrevista. É

fato também que essas práticas envolvem relações de poder, o que não foi trabalhado aqui

devido aos limites do alcance deste trabalho e de seu escopo.

Ainda que sejam consideradas todas essas variáveis, deve-se enfatizar que as

produções de psicólogos e de assistentes sociais no Judiciário, por circularem entre

diversas instâncias, poderiam configurar-se como importante instrumento na busca pela

efetivação de direitos, fazendo ecoar as violações a que estes adolescentes e suas famílias

são submetidos. Enfim, essas produções poderiam fazer circular a voz dos adolescentes,

dos pais chamados de “frágeis, falidos nas suas funções”.

Todavia, o que os laudos sociais analisados evidenciam é que a opção política que

se tem feito até agora é a de silenciar diante do descomprometimento social do Estado, o

que recrudesce, um tanto mais, o já grave quadro social verificado neste país.

101

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