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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP Maurício Nascimento dos Santos A sociedade da informação no século XXI: o cotidiano na cultura digital e a leitura como prática cultural Mestrado em Ciências Sociais São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC – SP

Maurício Nascimento dos Santos

A sociedade da informação no século XXI: o cotidiano na cultura digital e a leitura como prática cultural

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo

2016

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Maurício Nascimento dos Santos

A sociedade da informação no século XXI: o cotidiano na cultura digital e a leitura como prática cultural

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais na área de

Sociologia, sob orientação da Prof.a. Dra. Marisa do Espírito Santo Borin.

São Paulo

2016

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Banca Examinadora

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Aos que lutaram e continuam a lutar pelos seus

sonhos, acreditando no potencial transformador do conhecimento, na construção de um mundo e de uma sociedade mais justa e igualitária.

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Agradeço a Fundação CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior do Ministério da Educação do Brasil, pela bolsa de Mestrado concedida no período de janeiro de 2014 a dezembro 2015.

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AGRADECIMENTOS

No Tratado de Gratidão de São Tomás de Aquino, Lauand (2015) diz

existirem três níveis de gratidão: um superficial, outro intermediário e por fim

um mais profundo. O primeiro se compreende como aquele do reconhecimento

intelectual, cerebral, cognitivo; o segundo é do agradecimento, de dar graças a

alguém por algo que tenha feito por nós; e o terceiro nível de maior

profundidade, é o do vínculo, que nos torna vinculado e comprometido a

alguém. Antônio Nóvoa (2015), fez esta analogia e relatou que nos idiomas

inglês ou alemão, se agradece, no nível mais superficial da gratidão, num plano

intelectual, quando se diz: “thank you” ou “zu danken”. Nas outras línguas

européias, se agradece, no nível intermediário da gratidão, como por exemplo,

“merci” em francês ou “gracias” em espanhol. Quer dizer dar uma graça, estar

grato por aquilo ou algo que tenha recebido. Porém somente em português,

pelo que se conhece, é que se agradece no terceiro nível, o mais profundo, do

Tratado da gratidão. Dizemos “obrigado”, que significa ficar obrigado,

vinculado, perante o outro, comprometido a um diálogo e revela como a

linguagem, com a qual nos comunicamos diariamente, é um território vasto de

acumulação de significados, muitas vezes enigmáticos, em nossa vida

cotidiana. Nesta arte de viver, pelas diferentes estações da vida, em que as

recompensas foram, são e serão as grandes e as pequenas felicidades.

Agradeço com o que temos de mais profundo, em nossa língua portuguesa , o

meu muito obrigado: a minha família, aos meus amigos e amigas, pelas ideias,

conversas, contribuições e apoio, neste caminho que se fez ao caminhar.

A pesquisa científica proporciona descobertas, novos saberes e fazeres,

por isso obrigado: a PUC-SP pelo incentivo a pesquisa; a CAPES pela bolsa de

pesquisa; a equipe da Comunidade Educativa CEDAC pelos conhecimentos

construídos compartilhadamente; a minha orientadora Prof.a. Marisa Borin que

me incentivou neste percurso científico, desde, a graduação em Ciências

Sociais. Obrigado também a Prof.a. Leila Maria da Silva Blass e ao Prof. Silvio

César Silva pelas valiosas contribuições no exame de qualificação e aos

demais professores das Ciências Sociais, na PUC-SP, com que tive a

satisfação de ser um aprendente, ao longo desta trajetória. Muito obrigado a

todos e a cada um. Bem-haja.

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RESUMO

A cultura digital - forjada pela revolução informacional dos anos 60 pelo

advento das novas tecnologias da informação e comunicação, principalmente

do computador e da internet - vem se constituindo neste século num processo

social de longa duração não planejado, inaugurando um novo espaço social e

cultural: o ciberespaço. O mundo se tornou cultura, uma cultura-mundo, em

que poder dos fluxos é mais importante que os fluxos de poder, numa

sociedade informacional e global. Nesta sociedade em transformação, o

processo de tecnização, cuja técnica é uma constante antropológica, as noções

de indivíduo, espécie, sociedade e cultura, precisam ser (re)conectadas para

se compreender as novas maneiras de pensar, agir e sentir nes te novo

contexto social. Dentre as diversas práticas culturais cotidianas a leitura, é

umas das mais importantes e se constitui como uma realidade com significados

compartilhados intersubjetivamente e expressos na linguagem, elementos

constitutivos da realidade social. Por isso, buscou-se, entender as

consequências da cultura digital no mundo contemporâneo, no cotidiano e na

leitura como prática cultural, conhecendo-se os contextos das relações sociais

no real social. O cotidiano foi considerado como uma alavanca do

conhecimento e um percurso teórico-metodológico. Realizou-se um estudo de

caso, em um projeto desenvolvido no ciberespaço, em uma plataforma de

ensino a distância: os “Itinerários Literários Virtuais: Guimarães Rosa”. Por

meio de uma etnografia virtual e de uma abordagem fenomenológica,

analisaram-se as interações sociais dos participantes, compreendidas como

significados subjetivos da ação social e um referencial relevante da Sociologia

da vida cotidiana. Como uma manifestação universal de todos os homens, a

literatura se aproxima muito mais do fazer sociológico e o experimento

analisado se constituiu numa fonte potente de ampliação de repertório cultural.

Revelou-se um importante encontro das tecnologias de informação e

comunicação, no ciberespaço, com as mudanças da leitura, como prática

cultural, e da literatura, possibilitando uma compreensão do contexto social da

cultura digital e um inovar no fazer sociológico, como artesanato intelectual.

Palavras chaves: cultura digital; cotidiano; leitura como prática cultural; práticas

culturais; sociedade informacional.

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ABSTRACT

Digital culture - forged by the information revolution of the 60s by the advent of

new information technologies and communication, especially the computer and

the Internet - has constituted this century a social process of long unplanned

duration, inaugurating a new social and cultural space: cyberspace. The world

has become culture, a culture-world, where power flows is more important than

the power flows in an informational and global society. In this society in

transformation, tecnichian process, whose technique is an anthropological

constant, the notions of individual, species, society and culture, need to be (re)

connected to understand the new ways of thinking, acting and feeling this new

social context. Among the diverse cultural practices daily reading, it is one of

the most important and is constituted as a reality shared meanings

intersubjectively and expressed in language, constituent elements of social

reality. Therefore, we sought to understand the impact of digital culture in the

contemporary world, in everyday life and reading as a cultural practice, by

knowing the contexts of social relations in social reality. The daily was

considered as leverage the knowledge and theoretical and methodological

route. We conducted a case study on a project developed in cyberspace, in a

distance learning platform: the "Literary Virtual Itineraries: Guimarães Rosa".

Through a virtual ethnography and a phenomenological approach, analyzed the

social interactions of the participants understood as subjective meanings of

social action and a relevant reference of the sociology of everyday life. As a

universal manifestation of all men, literature is much closer to the sociological

and analyzed experiment constituted a powerful source of cultural repertoi re

expansion. It proved to be an important gathering of information and

communication technologies, in cyberspace, with the changes of reading as a

cultural practice, and literature, enabling an understanding of the social context

of digital culture and innovate in sociological do, as an intellectual craft.

Key words: digital culture; everyday; reading as a cultural practice; cultural

practices; informational society.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Espaço de interação permanente com vídeo de apresentação.

Figura 2 - Linha do tempo construída sobre o autor com o Prezi.

Figura 3 - Mural construído sobre o autor com a ferramenta Scoop-it.

Figura 4 - Linha do tempo sobre o autor construída pelos participantes com

Dipity.

Figura 5 – Glossário de termos e expressões de Guimarães Rosa construído

de forma colaborativa por Wiki.

Figura 6 - Wiki construído em colaboração pelos participantes sobre o conto

“Sequência”.

Figura 7 - 1o Hangout realizado virtualmente com os participantes.

Figura 8 - Wiki produzido em colaboração pelos participantes com uma frase

sobre o autor.

Figura 9 - 2o Hangout - encontro virtual com os participantes.

Figura 10 - Álbum de fotografias de Guimarães Rosa produzido com Prezi.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11

CAPÍTULO I. O caráter humano da técnica e as transformações da vida, da

sociedade e do planeta. ........................................................................................... 26

1.1 O homem e o mundo moderno, técnico-científico ................................... 43

CAPÍTULO II. O processo social de inovação tecnológica e a metamorfose

humano-mundial ........................................................................................................ 55

2.1 Da globalização à sociedade-mundo: uma nova via é possível ................ 60

CAPITULO III. A artesania das inovações de nosso tempo: o computador e

a internet ...................................................................................................................... 75

3.1 A cibercultura e o ciberespaço: novas dimensões humanas no século XXI

.................................................................................................................................... 89

CAPÍTULO IV. O cotidiano, a cultura digital e a leitura como prática

cultural ........................................................................................................................110

4.1 A cultura digital e as tecnologias de informação e comunicação ............113

4.2 As mudanças na leitura como prática cultural ............................................120

CAPÍTULO V. Um percurso para novas aprendizagens: os “Itinerários

Literários Virtuais” ..................................................................................................137

5.1 Caminhando pelo experimento dos Itinerários Literá rios Virtuais sobre

Guimarães Rosa ....................................................................................................142

CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................184

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................193

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INTRODUÇÃO

O homo sapiens é um ser vivo fruto do processo de hominização.

Portador de uma consciência individualizada, construiu e permanece

construindo modelos de existência sempre em constante transformação. A

hominização pode ser resumida, na perspectiva de Morin (1979), como um

conjunto de fatores evolutivos tecnosocioculturais, tendo como epicentro deste

processo o desenvolvimento cerebral, a cerebralização. Estimulado pela

complexidade social e pelas mudanças climáticas e ambientais na luta pela sua

sobrevivência, o sapiens desenvolveu novas habilidade técnicas e motoras, e,

como ser inacabado, com sua plasticidade cerebral continua a se adaptar às

mudanças socioculturais e também ambientais. Neste processo evolutivo, a

juvenilização da espécie fez do sapiens um ser altamente dependente da mãe,

nos seus primeiros anos de vida, e ainda mais, extremamente dependente da

cultura ao mesmo tempo em que a cultura depende dele, como diz Morin

(1979), para o seu contínuo aperfeiçoamento, numa relação dialógica, ou seja,

um processo de evolução sociocultural contínuo, em constante transformação,

inacabado. A complexificação sociocultural é fruto desse processo de

hominização, cerebralização e juvenilização.

Nas savanas, como caçador-caçado, desenvolveu um cérebro capaz de

absorver as múltiplas funções cognitivas e também simbólicas. Assim, foi

possível criar estratégias e táticas na sua vida cotidiana para a sua

sobrevivência, um stimuli às aptidões de todos os tipos, que desencadeou a

dialética (fenomenal e genética) pé-mão-cérebro, afirma Morin (1979). Dialética

esta que é mãe da técnica e de todos os desenvolvimentos, favorecendo o

aumento das qualidades e aptidões do caçador-caçado. A mão é sem dúvida

um dos maiores legados desta jornada hominizante que possibilitou a

transformação da matéria e a criação de todo tipo de artefatos e instrumentos

para caça, coleta, moradia, dentre tantas outras inovações tecnológicas no

decorrer da história até as mais recentes que nos cercam atualmente.

Desde os primórdios, o desenvolvimento humano está envolto pelo

processo de tecnização que nos levou, segundo Elias (2006), à exploração de

objetos inanimados cada vez mais a favor da humanidade, na expectativa de

uma vida melhor. Se considerarmos a transformação como as diversas formas

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de aprendizagens sintonizadas com os novos tempos, como diz Carvalho

(2015), a revolução industrial no século XIX nos levou à era da máquina e ao

homem moderno técnico-científico, segundo Marcuse (1999), e à constituição

de uma racionalidade tecnológica por um aparato. Nos anos 60 do século XX,

com a revolução informacional, afirma Lojkine (1996), as novas tecnologias de

informação e comunicação passaram a fazer parte de novas aplicações e usos

transformando os modos de ser e de estar. Na sociedade da informação, como

chamou Castells (2005), constituída a partir desses adventos e por meio das

redes globais de instrumentalidade, o poder dos fluxos se tornou mais

importante que os fluxos do poder e novas estruturas funcionais e novos

processos de dominação surgiram. Estas revoluções transformadoras

envolveram toda a espécie humana por meio dos processos sociais de longa

duração, marcados por experimentações tecnológicas que caminharam lado a

lado com as experiências relacionadas à organização social, diz Elias (2006).

Com a intensificação dos fluxos de interação de informação e de pessoas,

viveu-se um momento de ruptura de interação transfronteiriça, segundo

Boaventura Santos (2002), e a globalização surge como um fenômeno social

de amplitude e profundidade. O mundo-rede que se formou a partir da

revolução informacional, em meados do século XX, afirma Tapias (2006),

possui fronteiras indefinidas e se estabeleceu a partir das novas tecnologias de

informação e comunicação. Uma nova via será apontada, por Morin (2013), em

que a metamorfose do atual estado da sociedade e do planeta poderá conduzir

a humanidade a uma sociedade-mundo de um tipo completamente diferente,

uma Terra-Pátria, através da infratextura criada pela globalização.

A inovação na era digital, segundo Isaacson (2014), teve em cena várias

forças pessoais, culturais e históricas. O computador – originado ainda no

século XIX, por inspiração da ciência-poética de Ada Lovelace, artífice de seu

tempo, criadora do primeiro programa de computação – e a internet, que

possibilitou a conexão do mundo em redes globais de instrumentalidade, foram

as grandes inovações de nosso tempo, dentre tantas outras que nos cercam

atualmente. A comunicação mediada por computador nos conduziu, por meio

da migração digital, diz Lorenzo Vilches (2001), a um novo espaço social

formado por sujeitos interconectados, o ciberespaço, um novo meio de

comunicação que surge da interconexão dos computadores com a cibercultura,

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compreendida por Levy (2012) como um fino enredamento de todos os

horizontes em um único e imenso tecido aberto e interativo, em uma situação

inédita na qual o transbordamento caótico de informações não tem um fundo

sólido sob este oceano de informações. São novos espaços sociais virtuais:

das plataformas e das redes sociais, da conectividade e interatividade, da

mobilidade. Novos artefatos culturais passaram a fazer parte da vida cotidiana

de grande parte da população mundial, resultando numa cultura-mundo, como

denominou Lipovetsky (2011), que mudou as relações estabelecidas entre o

produtor-consumidor, em que esse mesmo binômico pode ser estendido

também à escritura-leitura, como aponta Certeau (2013), criando novas

dimensões humanas e modificando os modos de ser e de estar na sociedade

contemporânea.

Na busca de soluções para desbravar novos territórios como um bom

artífice, seguindo o que diz Richard Senett (2013), o cotidiano surgiu como uma

alavanca do conhecimento e um percurso teórico-metodológico, assumindo um

lugar de decifração de enigmas sociais. Ou seja, para Pais (2003), o desafio do

pesquisador da sociologia da vida cotidiana é ter um olhar social informado e

uma postura de decifrador social. Entramos por um caminho do

desvendamento dos tempos que nos regem, nas sutilezas desse campo de

mistérios e ocultações da realidade social, diz Martins (2014), em que a

imaginação sociológica encontra seus grandes desafios teóricos e

investigativos.

Como artesão intelectual, nesta pesquisa, olhamos para a realidade

social, compondo com esse cenário de transformações socioculturais de

grande magnitude - em que os efeitos sísmicos ainda passam despercebidos -

e analisamos os fragmentos desse real social a partir do estudo de caso sobre

o experimento “Itinerários Literários Virtuais: Guimarães Rosa”. Esse é um

projeto que visa ampliar as experiências estéticas literárias de seus

participantes, por meio de leitura e análises de obras literárias e do uso,

contextualizada, de ferramentas tecnológicas, buscando a construção de

sentido dos textos e a troca com outros leitores visando o aperfeiçoamento das

capacidades e habilidades de leitura e escrita em novos modos de interatuar

com o conhecimento.

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Além disso, neste experimento buscou-se também avaliar a incorporação

das tecnologias na formação do leitor literário, analisar os limites e

potencialidades de uma ação a distância, assim como, a eficácia das

estratégias formativas presenciais e virtuais, a partir da exploração de

diferentes ferramentas tecnológicas que pudessem estender o acesso a

conteúdos e ampliar a experiência leitora. A partir da investigação e avaliação

deste experimento inicial os “Itinerários” serão propostos, diz Medrano (2014),

para professores do ensino fundamental, outros profissionais da educação e

demais interessados de outras áreas. Também poderá ocorrer sobre outros

autores, com o intuito de ampliar a formação literária relacionando o universo

do livro impresso com o universo do livro digital em uma comunidade de

leitores. O primeiro experimento ocorreu nos meses de agosto e setembro de

2014, organizado pela Comunidade Educativa CEDAC, uma organização não

governamental, que elabora e executa projetos de formação de profissionais da

educação e mobilização social pela educação, produz publicações para

subsidiar a pratica de formação e para sistematizar e socializar o conhecimento

construído. Oferece também, assessoria a gestores públicos e avalia projetos

sociais. Atua nos segmentos da Educação Infantil e Básica, nas áreas de

língua portuguesa, matemática, educação ambiental, artes visuais, gestão

escolar e educacional com projetos locais e regionais, envolvendo ações

presenciais e a distância.

A investigação dessa experiência ocorreu na plataforma de ensino a

distância em que o projeto foi desenvolvido, por meio de uma etnografia virtual

e de uma abordagem fenomenológica das interações sociais, que são

compreendidas, diz Pais (2003), como significados subjetivos da ação social,

constituindo-se em pontos de referência básicos da sociologia da vida

cotidiana.

[...]os fenômenos sociais objectivos devem ser vistos à luz da subjetividade dos actores sociais: quer no que se refere às atitudes, aos desejos, ou às definições de situação. Sem a consideração dos componentes subjectivos, as correlações objectivas são, para os fenomenólogos, descrições artificiais da realidade. (PAIS, 2003, p. 98)

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Nesta aproximação se queremos falar de fatos sociais deve-se provocar

onde o subjetivo e o objetivo se cruzam no que acontece na percepção

imediata,

[...]antes que os inputs dos sentidos seja conceptualmente racionalizados. A percepção não transformada em conceitos é a forma das coisas. Assim, os significados dos fenómenos sociais estariam contidos nas suas formas, do mesmo modo que a concha de um molusco é a cristalização de polígono de forçar que actua sobre as moléculas fluidas quando a concha se forma. (PAIS, 2003, p.98)

Para complementar as informações observadas e os contornos do estudo

de caso foram realizadas entrevistas em profundidade com a equipe criadora e

gestora da instituição que elaborou e participou da iniciativa analisada.

A escolha de uma abordagem de análise qualitativa com inspiração

etnográfica, levou em conta, como afirma Fragoso (2013), que esta é uma das

metodologias mais apropriadas para o estudo empírico na internet. No qual o

contexto e as culturas se desenvolvem e se inscrevem conversações, práticas

e negociações simbólicas. A observação sistemática, a investigação e a

interpretação nos ajudam a decompor e desvendar padrões de comportamento

sociais e culturais neste novo espaço social. A percepção de que as técnicas

etnográficas poderiam ser utilizadas para o estudo das culturas e das

comunidades agregadas via internet migraram/transitaram dos grupos

contituídos off-line para os espaços ou formações sociais compostas apenas

por relações on-line. Com o redisionamento das dimensões de espaço e tempo

pelas tecnologias de informação e comunicação, as transformações diretas no

fazer etnográfico introduziram uma nova terminologia, a etnografia virtual, em

que, a construção do campo se dá a partir da reflexividade e da subjetividade

em vez de serem constitutivos da realidade social. O ciberespaço, torna-se um

novo campo de pesquisa para o cientista social. Dessa forma, a etnografia

virtual contribui para a compreensão do papel e da complexidade da

comunicação mediada por computador e das tecnologias de informação.

Segundo Christine Hine apud Fragoso (2013) a etnografia virtual se da no/de e

através do on-line e nunca desvinculada do off-line acontecendo através da

imersão e do engajamento intermintente do pesquisador com o próprio meio. A

narrativa acontecerá a posteriori dos fatos, proporcionando densas descrições.

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A observação e a narração dos detalhes constituem o que apontou,

Cliford Geertz (2011), como descrição densa e o relato etnográfico como

resultante de múltiplas textualidades. Os limites desta abordagem estão na

reflexão sobre o papel do pesquisador, tanto sobre os níveis de engajamento,

quanto de interação com os grupos sociais, em termos éticos, em que o recorte

da análise no campo redimensiona o papel subjetivo do mesmo. Algumas

opções éticas são colocadas ao pesquisador, optante desta técnica, como é o

nosso caso, podendo ter um papel “silencioso” ou “lurker” no qual o seu nível

de inserção varia, segundo Kozinets apud Fragoso (2013), de um espectro que

vai desde as intensamente participativas até as não obstrusivas e meramente

observacionais. A decisão da permanência ou não em silêncio, por meio das

práticas de lurking1 precisa ser refletida, diz Fragoso (2013), porque

influenciará as escolhas e o direcionamento ético que acontecerão ao longo da

pesquisa podendo influenciar inclusive os resultados. Alguns pesquisadores,

optam pela observação “silenciosa” nas culturas devido a questões de ordem

ética e de privacidade em relação aos informantes, tais como: faixa etárias,

pré-julgamentos ou conteúdo sensível.

Essas “interferências” acabam também influenciando as estruturas e processos de pesquisa qualitativa, gerando questões / problemáticas / complicações a partir das quais podem emergir inclusive distintas noções de gênero, sexualidade, ética e poder que podem até mesmo fragilizar o pesquisador quanto os informantes, conforme nos alerta Kendall (2009). (FRAGOSO, 2013, p. 193)

O pesquisador insider seria outro papel que também pode ser assumido,

[...] assim como o pesquisador-observador silecioso ou lurker implica limitações e benefícios para os resultados da pesquisa, o chamado insider (Hodkinson, 2005) também compromete a narrativa etnográfica, com a inseração de elementos autobiográficos e seu pré-conhecimento e/ou participação da cultura observada.(FRAGOSO, 2013, p. 194)

1 “Ato de entrar em listas de discussão, fóruns, comunidades on-line etc. apesas como obervador sem participação ativa” (FRAGOSO, p. 192,

2013)

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Esta perspectiva de insider dentro de uma determinada cultura pode

proporcionar um elemento subjetivo importante, afirma Fragoso (2013),

principalmente pelo elo narrativo e pelas facilidades e/ou dificuldades em

coletar e analisar os dados obtidos de modo informal ou através de entrevistas.

Idependentemente do papel que o pesquisador assuma, aspectos negativos e

positivos, poderão vir a tona dependendo do papel a ser escolhido. Sendo que

o que se perde em proximidade, pode-se, perder em tempo e andamento do

projeto; e o que se ganha em não participação, pode-se, perder em termos de

uma visão mais holística.

Uma outra questão metodológica importante de ser apontada se refere a

divulgação dos resultados da pesquisa etnográfica e diz respeito ao anonimato

ou à divulgação das identidades dos informantes, segundo Fragoso (2013),

[...] essa opção deve ser tomada pelo pesquisador de acordo com critérios que garantam a privacidade dos informantes, ora de acordo com os consentimentos ou não dos mesmos, ora definidos pelas normas do Conselho de Ética das instituições há que estão vinculados, sem desconsiderar pontos polêmicos que possam ter emerigos a partir das categorias obervadas em campo. (FRAGOSO, 2013, p.196)

Nesta investigação, o papel assumido pelo pesquisador foi silencioso,

resguardou-se esta posição de observador no sentido de não interferir no

ambiente virtual de aprendizagem, deixando os participantes a vontade durante

as atividades para que pudessem se expressar da maneira mais natural

possível. O intuito era favorecer a observação das objetivações das

subjetividades dos participantes por meio da escrita nos fóruns e em outras

ferramentas no percurso realizado. Neste caso especifico, o pesquisador,

sendo um insider, poderia causar um desconforto com relação a sua

participação ou mesmo inibir o grupo inscrito se distanciando do foco

inicialmente proposto.

Neste sentido, também se resguardou a privacidade dos nomes dos

participantes que não foram citados nas análises, por questões éticas. Outro

limite importante de ser pontuado, se refere ao formato da pesquisa científica

acadêmica atual que se restringe ao formato impresso per se, limitando as

possibilidades da experiência proporcionada pelas tecnologias. O formato

audiovisual, traz uma riqueza de detalhes e uma interatividade dos sentidos

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muito maior, principalmente dos encontros virtuais no ciberespaço que foram

realizados e serão apresentados no estudo de caso. Uma transcrição destes

momentos, pensando numa possível utilização da técnica de entrevista, por

exemplo, não seria suficiente para trazer a experiência em si e criar uma

aproximação com as atividades realizadas. Por isso, foram trazidas algumas

imagens dos recursos tecnológicos utilizados na plataforma de ensino a

distância para a etnografia virtual realizada.

A metodologia de estudo de caso foi escolhida, como estratégia para esta

pesquisa por sua contribuição, segundo Yin (2003), para se compreender

fenômenos sociais complexos, permitindo uma investigação que se preserve as

características holísticas e significativas dos eventos da vida real como os

ciclos de vida individuais, processos organizacionais e administrativos,

mudanças ocorridas em regiões urbanas, relações internacionais e a

maturação de alguns setores. Seguindo Yin (2013), as questões centrais desta

investigação se situam sobre um conjunto contemporâneo de acontecimentos

sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle. Um estudo de

caso, segundo o autor, compreende uma investigação empírica que investiga

um fenômeno contemporâneo, dentro do seu contexto de vida real,

especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão

claramente definidos.

Nesta direção, avaliou-se que seria a escolha mais apropriada por ser

uma metodologia que abrange tudo, com uma lógica de planejamento capaz de

incorporar abordagens específicas à coleta e à analise de dados. A técnica

básica considera, segundo Yin (2003), todas as estratégias de maneira

plurarística. Por isso, afirma o autor, o estudo de caso não é nem um tática

para a coleta de dados, nem meramente uma característica do planejamento

em si mas, sim, uma estratégia de pesquisa abrangente.

Neste esforço de conhecer os contextos das relações sociais no real

social, buscou-se ir tecendo uma relação micro e macroestrutural, na

perspectiva de uma Sociologia da vida cotidiana, para entender as

consequências, mais do que os impactos, da cultura digital no mundo

contemporâneo, no cotidiano e na leitura como prática cultural.

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A constituição da cultura digital neste século, ocorreu por um

engendramento de acontecimentos num processo social de longa duração não-

planejado nessa teia relações e interações sociais que é a sociedade. Novas

maneiras de pensar, agir e sentir coletivamente exteriores aos indivíd uos

encontram-se em curso neste momento, são os fatos sociais, como afirmou

Durkheim (2014), objeto de estudo de sociologia.

A leitura, enquanto uma prática cultural tão comum em nosso cotidiano, é

pouca questionada, segundo Roger Chartier (2009). A linguagem oral e o

conhecimento estão na vida cotidiana e a primeira é considerada, segundo

Pais (2003), enquanto atribuições de significações particulares a

comportamentos habituais. A expressividade humana é capaz de objetivações,

afirma Berger (1974), e pode se manifestar em produtos da atividade humana,

que estão ao dispor tanto dos produtores quanto dos outros homens, são

elementos constituintes de um mundo comum. Estas objetivações dos

processos subjetivos de seus produtores permitem que se estendam, além da

situação face a face, podendo ser diretamente apreendidas. Assim, a leitura e

consequentemente a escrita surgem como práticas culturais centrais da

sociedade humana. A importância da leitura, e consequentemente da

linguagem oral, enquanto uma prática cultural na vida diária se entende, como

diz Miguel Beltran apud Pais (2003), como uma realidade com significados

compartilhados intersubjetivamente e expressos na linguagem, entretanto não

são simplesmente crenças ou valores subjetivos, mas elementos constitutivos

da realidade social.

A literatura surge então como uma manifestação universal de todos os

homens, em todos os tempos, comenta Cândido (2011), numa relação tão

próxima à linguagem oral e à escrita. Já a leitura, enquanto prática cultural, ao

longo da história passou por algumas rupturas, como, por exemplo, a mudança

tecnológica que levou a passagem da leitura horizontal do pergaminho na

Idade Média, para o códex ou códice – isto é, livros com páginas que são

viradas em oposição aos rolos de papiro que são desenrolados – como afirma

Chartier (1999), que inspirou o livro moderno. Transformou a experiência da

leitura, em que a página surge como unidade de percepção, diz Darton (2010)

e os leitores tornaram-se capazes de folhear um texto claramente articulado. O

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texto eletrônico, veio com o advento das tecnologias de informação e

comunicação, foi uma outra ruptura, mantendo as características do códex mas

sem o objeto impresso, e com a leitura somente através da tela, algo inédito na

história humana. Com a leitura aprende-se e aparecem interrogações para se

descobrir formas e processos de acesso ao escrito. Descobertas, estás que

surgem de um conjunto de contrastes discernido tanto no material histórico

quanto na observação contemporânea, afirma Chartier (2009). Como uma arte

de fazer que se herda mais do que se aprende, diz Hébrarb (2009), a leitura

pode ser mais facilmente pensada como um processo de confirmação cultural;

será sempre apropriação, invenção e produção de significados, para Chartier

(1999), sendo que o leitor segundo Certeau (2014) é um caçador que percorre

terras alheias.

Foram essas e outras descobertas nesse caminho que se fez ao

caminhar que levaram a uma sociologia no âmbito da arte e não da coisa e da

produção. A literatura, segundo Martins (2014), se aproxima muito mais do

fazer sociológico e o experimento dos “Itinerários Literários Virtuais” possibilitou

este prazeroso encontro entre as tecnologias de informação e comunicação, a

leitura como prática cultural e a literatura, possibilitando um inovar no fazer

sociológico deste pesquisador e se constituindo numa fonte potente de

ampliação de repertório cultural de seus participantes. Com o aparecimento na

esfera cultural e social do novo meio de expressão e relacionamento social que

a Internet e o digital representam, diz Bertolo (2014), alguns dos pressupostos

anteriores do texto – como a literatura pública, a edição como sistema de

legitimação e a usurpação do memorável pelas elites – estão sendo

questionados e alterados nesse novo contexto social, por isso a significância

de novas experiências, com a dos “Itinerários”, que possibilitem novos acessos

e usos.

A inspiração para esta pesquisa surgiu das inquietações deste sociólogo

de compreender o espírito de seu tempo, com o intuito de espreitar o futuro

incerto que nos aguarda neste século, diante de tantas transformações

tecnosocioculturais, da escassez dos recursos naturais e da degradação da

biosfera planetária. Como chegamos até este estágio do desenvolvimento

humano, quais são as alternativas de saídas e as possibilidades de superação

foram as questões que motivaram esta investigação. Para isso, olhou-se para a

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vida cotidiana, em que as tecnologias de informação e comunicação – através

das inovações da segunda década do século XXI – estão proporcionando, na

relação simbiótica entre o homem-máquina, novas práticas culturais e

mudanças significativas no real social, nos indivíduos, na sociedade e no

planeta. Outras fontes de inspiração foram a pesquisa de Iniciação Científica

realizada durante a graduação em Ciências Sociais na PUC-SP, nos anos de

2009/10, que recebeu o prêmio de melhor trabalho de sociologia em 2010, e

também o Trabalho de Conclusão de Curso, realizado no mesmo ano, sobre a

migração digital do meio urbano. Na pesquisa de Iniciação Científica, realizada

sobre a sociedade informacional, enquanto um novo paradigma sociocultural

buscou-se entender as novas formas de sociabilidade e de identidade neste

novo cenário informacional, conhecendo o cotidiano de crianças de sete a

catorze anos, nascidas no século XXI, permeadas pelas novas tecnologias de

informação e comunicação, principalmente o computador e a internet. Toda

esta trajetória acadêmica-científica contou com o sempre presente e respeitoso

apoio da Profa. Marisa do Espírito Santo Borin, que sempre estimulou e

motivou o gosto pela pesquisa científica, desde as aulas da disciplina de

Métodos e Técnicas de Pesquisa, na graduação em Ciências Sociais, quando

tudo isso começou.

Nesta caminhada na pesquisa realizada nesta dissertação, além do ponto

de partida comentado, levou-se em conta uma visão hologramática, em que

não apenas a parte esta num todo, mas o todo, também esta inscrito de certa

maneira na parte. Considerando a nossa espécie, o indivíduo, a cultura e a

sociedade buscou-se construir uma narrativa do caráter humano da técnica e

das transformações do planeta, da vida e da sociedade, nesta metamorfose

humano-mundial que se vive contemporaneamente, pelo processo social de

inovação tecnológica de longa duração não-planejado, com o intuito de se

reconstituir o estado de saber anterior para compreender o contemporâneo.

Tentou-se criar um holograma das transformações dos sujeitos, da sociedade e

do planeta, neste novo contexto da cultura digital, com o intuito de mostrar os

circuitos dialógicos que nos envolvem. Houve também um esforço de articular

dialogicamente diversos saberes multidisciplinares para ler o contexto atual das

relações sociais de forma holística, passando pela Sociologia, Antropologia,

Comunicação, Educação, Literatura, História, dentre outros, numa tentativa de

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dar conta da complexidade dos fenômenos sociais, tendo em vista que o nosso

mundo real não é compartimentado, mas interligado. Por isso, pode-se afirmar

em alguma medida a intenção de dar um caráter transdisciplinar à presente

pesquisa.

Com um olhar para esses saberes e para os fragmentos sociais, teceu-se

um patchwork para compreender a temporalidade do real social e o espírito do

nosso tempo. Os desafios colocados a esta empresa foram imensos neste

sentido, levando-se também em conta que a temática tratada nessa pesquisa é

extremamente recente, assim como o fato de que o estudo de caso foi

realizado com um experimento bem contemporâneo. Exigiu-se, assim, um

desenho metodológico que pudesse de alguma maneira contemplar as

diferentes nuances sem perder o respectivo contexto e que lidasse com os

limites de formato que o trabalho acadêmico-científico ainda impõe – e que

precisam ser repensados para uma ciência que se deseja, para o século XXI e

quiçá para o XXII, capaz de fornecer novas possibilidades de fazer ao

pesquisador que sejam mais interativas e dinâmicas, dialogando com a

realidade social atual, imersa no uso das tecnologias.

Como os saberes estão compartimentados pelo paradigma cartesiano, o

artesão intelectual se depara com idas e vindas em seu fazer sociológico, nesta

costura dos fragmentos, às vezes precisando virar do avesso, na tentativa de ir

alinhavando, criando um tecido e construindo um sentido que seja possível de

ser lido, compreendido esteticamente e literalmente. Foi esse o esforço

realizado que resultou no conjunto de capítulos que compõe esta dissertação

partindo do primeiro capítulo que resgata a relação da nossa espécie com o

avanço da técnica, o desevolvimento humano e a cultura, desde, os nossos

antepassados habitantes das savanas, passando pela modernidade técnica-

científica oriunda da revolução indústrial até chegarmos aos “polegarzinhos”

como chamou, Serres (2013) na sociedade da informação no século XXI. Para

compreender esta sociedade em formação no segundo capítulo analisou-se a

revolução informacional orientada pelo desenvolvimento cientifíco-técnico-

mundial, advindo da modernização e do processo de tecnização. A

globalização decorrente deste desenvolvimento, os avanços da disseminação

das novas tecnologias de informação e comunicação pelo mundo e as

modificações nas identidades culturais na modernidade líquida, como

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denominou Bauman (2005). Duas grandes inovações do nosso tempo serão

analisadas, no terceiro capítulo, o computador e internet, se constituíram,

desde o século XIX, por meio, de uma trama de acontecimentos colaborativos

e cooperativos na teia social do cotidiano. A comunicação mediada pelo

computador, por meio da internet, propiciou a cibercultura e o ciberespaço,

como novas dimensões humanas nos levando a cultura digital atual. Depois de

olharmos para este cenário macroestrutural no quarto capítulo inicia-se uma

abordagem microestrutural esclarecendo algumas categorias analíticas

utilizadas na pesquisa como: a cultura digital, as tecnologias de informação e

comunicação, o cotidiano e as mudanças nas práticas de leitura como uma

prática cultural. No quinto capítulo chega-se ao estudo de caso sobre as novas

aprendizagens a partir dos “Itinerários Literários Virtuais” e caminha-se pelo

experimento dos “Itinerários” sobre a obra de Guimarães Rosa.

Como se viu, um conjunto de desafios são colocados ao sociólogo da vida

cotidiana e mais ainda ao da cultura digital, enquanto desbravador dos enigmas

sociais nas práticas culturais neste novo contexto social em que as tecnologias

de informação e comunicação estão presentes em nosso cotidiano.

A expressão contexto aparece, num sentido literário e linguístico,

associada ao encadeamento das ideias de um escrito ou discurso, um

argumento, uma composição, uma contextura, segundo Pais (2003). No

sentido sociológico, um contexto aparece associado a argumentos,

composições, contexturas, encadeamentos. Assim como, se diferenciam estilos

e maneiras de escrever na literatura, do mesmo modo, na sociedade também

podemos distinguir diferentes maneiras de fazer: de andar, de ler, de produzir,

de falar, de sociologizar, de contextualizar. A leitura de um texto escrito ou de

um texto de relações sociais, como ocorre na hermenêutica linguística,

somente com um grande esforço é possível extrair uma porção mais ou menos

significativa, afirma Pais (2003), daquilo que um dado texto pretende

comunicar. Porém, o interessante é quando fazemos este esforço e acabamos,

por entender, coisas que o autor do texto não quis dizer e que indireta ou

involuntariamente nos disse contra sua vontade.

O mesmo se passa na observação de determinadas situações sociais, ou por exemplo, na análise de conteúdo de entrevistas a partir das quais é possível

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extrair imagens da realidade que, de facto, não passam de imagens, leituras transviadas. (PAIS, 2003, p.121)

A leitura de um texto não pode consistir na sua recepção passiva é

preciso sair dele, abandonar a posição de receptividade passiva e construir

laboriosamente toda a realidade mental não dita diretamente no texto mas que

é imprescindível para o entender satisfatoriamente. Esse mesmo processo de

construção laboriosa ocorre, para Pais (2003), em contextos analíticos

[...] esta tarefa é complicada e penosa; pressupõe diversas técnicas e teorias, a conjugação de esforços difíceis de precisar – técnicos uns, de espontânea perspicácia outros. A esse conjunto de esforços é o que se chama interpretar e à arte de interpretar hermenêutica. Ler é, portanto, a um certo nível, interpretar e o recurso aos contextos de análise é um recurso hermenêutico. (PAIS, 2003, p.121)

Isto posto, da trajetória até aqui traçada percebe-se que a presente

pesquisa encontra-se nesta tarefa complicada e penosa, dita por Pais (2003),

envolvendo diferentes técnicas, teorias e esforços nesta arte da hermenêutica

de ler os textos das relações sociais.

Nesse processo de elaboração, na oficina do artífice, em meio às

ferramentas disponíveis na atualidade – textos, hipertextos, textos eletrônicos,

livros, computador, internet, redes sociais – e imerso no desafiante fazer de

construir conhecimento, fiz uma analogia com uma cena de infância nos anos

noventa. Lembro-me de ver minha avó paterna costurando em sua máquina de

costura Singer, manual, analógica – ou seja, não era elétrica nem eletrônica –

comprada no início dos anos sessenta. Para coser, ela precisava movimentar o

pedal com o pé, para acionar o movimento da agulha e ir fazendo a costura,

coordenando a velocidade do movimento da agulha pelo pedal e do tecido a

sua frente ao mesmo tempo, lembrando muito à dialética mão-cérebro-

instrumento, comentada por Morin (1979) no processo de hominização do

sapiens. Nesse fazer artesanal, de fato eu estava diante de uma artesã. Como

artesão intelectual em pleno século XXI, percebi que estava fazendo algo

semelhante, o mesmo movimento de coser numa máquina de costura manual.

Embora agora diante de outros instrumentos (teclado, computador, internet,

pesquisas, livros e textos), eu enfrentava os mesmos desafios do fazer. Ao

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invés de coser uma roupa, estava costurando os fragmentos da realidade,

enfrentando os desafios de construir conhecimento, lendo os contextos e

buscando os tecidos sociais e as cores das linhas que faziam mais sentido

neste fazer sociológico da vida cotidiana e da cultura digital.

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CAPÍTULO I. O caráter humano da técnica e as transformações da vida, da

sociedade e do planeta.

O desenvolvimento humano desde seu primórdio está envolto pelo

processo de tecnização, que permitiu a exploração de objetos inanimados,

cada vez mais extensamente a favor da humanidade na expectativa de uma

vida melhor. Toda a humanidade está envolvida pela tecnização, como apontou

Nobert Elias (2006), e para se compreender como se chegou a tais níveis de

conhecimento é sempre necessário reconstruir o estado de saber anterior; este

é um processo de longa duração não-planejado, movendo-se numa direção

discernível – com impulsos e contra-impulsos alternados, sem qualquer

propósito na longa duração, embora surjam do entrelaçamento, da conjunção,

da cooperação e do confronto de várias atividades planejadas.

Assim, o domínio da técnica de se fazer o fogo, por exemplo, revela a

importância de uma grande invenção no curso do processo de tecnização,

contribuindo em direção a uma vida mais proveitosa para a espécie humana.

Podemos considerar as semelhanças deste processo com a arte de produzir

automóveis, aviões, navios, satélites, aparelhos de rádio e televisão,

computadores, celulares, a internet e outras tantas invenções humanas.

Pensando especificamente sobre a técnica do fogo, a sua utilização foi

iniciada pela nossa espécie cerca de 700 a 800 mil anos antes da nossa era.

Apesar de ter sido uma inovação que aumentou o conhecimento prático geral

do homo sapiens, tornando possível a utilização técnica do material lenhoso,

segundo Edgar Morin (1979), trata-se de uma aquisição de alcance

multidimensional, pois aliviou o trabalho do aparelho digestivo, pela pré-

digestão do assado; o homínida tornou-se senhor do fogo, pôde estar em forma

e alerta depois de ter comido, libertando a vigília. O fogo também libertou o

sono e favoreceu o desenvolvimento e a liberdade dos sonhos. O assado por

sua vez facilitou as novas mutações hominizantes que reduziram os maxilares

e a dentição, libertando a caixa craniana de uma parte de suas sujeições

mecânicas, permitindo o aumento do volume do cérebro. Completará e

ampliará, assim, a dialética mão-instrumento, que contribuiu para o

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desenvolvimento cerebral, tanto no plano filogenético quanto no da práxis

fenomenal.

Surgirá, então, o vale fértil da hominização, onde antes se olhava para um

vazio, um abismo entre o nada, o homem e o primata, diz Edgar Morin no

Enigma do Homem (1979). O homo sapiens se destacava com um salto

majestoso da natureza e produzia com sua bela inteligência, a técnica, a

linguagem, a sociedade, a cultura, e vê-se neste momento, o contrário: a

natureza, a sociedade, a inteligência, a técnica, a linguagem e a cultura

coproduzirem o homo sapiens ao longo de um processo hominizante que durou

milhares de anos. Se houvesse uma carteira de identidade do homem,

segundo Morin (1979), ela se confundiria entre o faber, socius e mais

recentemente poder-se-ia acrescentar economicus, digitalis.

A linguagem e a cultura de suma importância na sociedade humana

precedem cronologicamente o sapiens e condicionaram sua evolução biológica

final que resultou no seu cérebro de 1500 cm³, que não explica o homem em

sua totalidade, mas é um resultado de um longo processo de hominização. O

homínida se diferenciará do chimpanzé sobretudo pela locomoção bípede e a

posição vertical. Com a posição em pé que libertaria as mãos da obrigação

locomotriz, afirma Morin (1979), a mão se tornará um instrumento polivalente,

pela oposição entre o polegar e o indicador, que aumentaria a força e precisão

da preensão. O bipedismo abriu caminho para a evolução que conduziu o

sapiens à posição em pé, libertou as mãos, que por sua vez libertou os

maxilares. E a verticalização libertou os maxilares que libertaram a caixa

craniana das sujeições mecânicas que pesavam sobre ela, tornando-se apta a

aumentar em benefício de um “locatário” mais amplo.

Todavia, tal esquema (ereção anatômica -> desenvolvimento tecnológico -> libertação craniana) não poderia ser nem casual, nem linear. Só poderia ser o resultado da intervenção de participantes de todos os tipos que entraram em interação. Supõe, na verdade, mutações genéticas, que realizam as transformações anatômicas e o aumento da dimensão do cérebro; uma seleção do bipedismo por meio natural adequado, a savana e já não a floresta; um novo gênero de vida, que, fazendo desse animal, ao mesmo tempo, presa e predador, desenvolve uma dialética pé-mão-cérebro, aptidões cerebrais até então não exploradas sistematicamente pelos chimpanzés, causa a utilização

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de armas defensivas e ofensivas, bem como a construção de abrigos, inicia, então, o desenvolvimento técnico no seio de uma nova práxis; supõe, enfim, um desenvolvimento da complexidade social, ele mesmo desenvolvido por e desenvolvendo o novo gênero de vida, a nova práxis, a atualização das virtualidades cerebrais. E então, são as múltiplas relações, interações, interferências entre os fatores genéticos, ecológicos, praxicos (a caça), cerebrais, sociais e, depois, culturais que vão permitir conceber o processo multidimensional da hominização, o qual vai provocar, finalmente, o aparecimento do homo sapiens. (MORIN, 1979, p. 60-61)

A hominização não poderia ser concebida somente como uma evolução

biológica, espiritual ou sociológica, mas seria, segundo Morin (1979), uma

morfogênese complexa multidimensional resultante das interferências

genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais. O processo de

cerebralização foi central neste sentido, ligando entre si todos os

desenvolvimentos organizadores. No entanto, com o acaso dos encontros, das

relações mútuas e das inovações, a hominização não pode ser reduzida

somente ao desenvolvimento cerebral. Este desenvolvimento está ligado a

todos os outros, tanto aqueles provocados por ele quanto os que o provocam.

Salientamos: o cérebro, aqui, não é considerado um “órgão”, mas sim o epicentro daquilo que é, para nós, o essencial da hominização: um processo de complexificação multidimensional, em função de um princípio de auto-organização ou autoprodução. (MORIN, 1979, p. 62)

A intervenção de acontecimentos aleatórios, de acidentes e de interações

está presente na sua evolução, é um princípio guia que tem a vantagem de

procurar a inteligibilidade sem impor uma racionalidade ou finalidade a priori,

permitindo entender a hominização como uma história real , segundo Morin

(1979), e não como uma força mística que obriga o homem a evoluir segundo

algum princípio ortogenético. A hominização será considerada, por Washburn

apud Morin (1979), como um conjunto de interferências que supõe

acontecimentos, eliminações, seleções, integrações, migrações, fracassos,

sucessos, desastres, inovações, desorganizações, reorganizações.

O produto deste processo de interações e interferências culminou na

morfogênese hominizante e aquilo que chamamos de homem precisa ser visto

como um sistema genético-cérebro-sociocultural, cujos constituintes são

conhecidos há algum tempo, mas se tornaram difícil de serem conectados num

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mundo herdeiro da razão técnica e científica: a espécie, a sociedade, o

indivíduo. No geral, se observa uma tendência de escomotizar dois deles em

detrimento de um, mas cada um deles é inerente ao outro e nenhum deles

pode ser pensado ou concebido como fim do outro. Para Morin (1979), existe

um circuito sem começo e sem fim entre espaço, sociedade, indivíduo, pois

tudo o que se refere à complexidade, alude à complexidade do outro e os

desenvolvimentos da espécie, da sociedade, do indivíduo estão inter-

relacionados entre si.

Aprofundemo-nos um pouco mais sobre o processo hominizante para

compreensão da tecnização e na reconstituição deste estado do saber anterior

em que se insere a origem da técnica. Na transformação dos ecossistemas

vivida no nosso planeta no final da terceira era terciária, a seca fez a floresta

recuar, e a savana estendeu-se por vastas áreas e eis que o primeiro destino

da hominização ocorreu neste momento. Em princípio, entre a floresta e a

savana, onde as pressões ecológicas e demográficas e os antagonismos

estruturais próprios à sociedade complexa dos antropoides favoreceram um

exílio definitivo de um grupo mutante, no qual o bipedismo permitiria vencer os

problemas fundamentais de sobrevivência na savana de um modo original em

comparação aos babuínos, diz Morin (1979). Neste cenário, a savana propiciou

a criação das condições para que todas as aptidões bípedes, bímanas e

cerebrais fossem empregadas partindo dos perigos e das necessidades que

este novo ecossistema significa com suas sujeições, perigos e orientações.

Constituíram-se assim, segundo Morin (1979), num stimuli ao desenvolvimento

das aptidões de todos os tipos, que existiam até então, no antepassado da

floresta, que, parente do chimpanzé, dotado de um cérebro ágil, de olhar

incisivo e apetite onívoro, estava apto a transformar um ramo em maca e uma

pedra em projétil para caçar coletivamente pequenos mamíferos. Com o

desaparecimento das árvores, o sapiens estava entregue aos perigos da

savana. Para um ser cujo sexo e abdômen estão ao alcance das garras do

predador, a busca por alimentos torna-se perigosa e difícil. A vigilância, a

atenção e a astúcia se tornam vitais, pois era necessário interpretar em sinais,

os movimentos mais ínfimos, em indícios, os vestígios mais sutis, estando

sempre alerta, individual e coletivamente, para a defesa, e se fosse preciso

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para caçar e atacar. Dessa forma, espalharam-se pelas savanas em pequenos

grupos, coexistindo e praticando o mesmo modo de vida pedestre, manual

inteligente, incluindo a utilização de macas e de pedras para a defesa ou o

ataque e a construção de abrigos rudimentares. E, após mutações genéticas,

passaram a dispor das mais amplas aptidões, como a oposição do polegar e

indicador, ereção total do corpo, aumento do volume e da complexidade do

cérebro, que desenvolverão as consequências cinegéticas desta aventura

hominizante.

A monopolização de alimentos vegetais por pesados “austra-lopítecos

robustos” obrigou os mutantes gráceis e onívoros a orientarem-se para o

alimento animal, principalmente para a caça de pequenas presas. Sobre estes

seres gráceis, afirma Morin (1979), agiram as pressões seletivas em benefício

de tudo aquilo que desenvolve a agilidade, a habilidade, a técnica,

características cada vez mais hominídeas, no pequeno caçador-caçado.

Porém, é no plano social que o desenvolvimento da caça e suas

consequências representaram um papel transformador, pois acompanhou uma

sociogênese que dissociou o modelo social hominídeo do modelo das

sociedades primatas mais avançadas constituindo um novo tipo de sociedade,

chamada por Morin (1979) de paleossociedade.

A oposição entre o polegar e indicador se acentuam no homo habilis e Man 1470, permitindo a força e precisão na preensão dos objetos apanhados ou manejados, e sobretudo, força e precisão na sua transformação. Assim, a mão encontra-se continuamente em ação das mais diversas formas e a técnica, que só surgia por momentos entre os chimpanzés hippies das florestas, que correspondia principalmente a necessidades de defesa entre os pesados vegetarianos, veio a ser um traço permanente do homínida grácil; a partir de então essa característica poderá desenvolver-se ao mesmo tempo que a práxis cinegética. Desse modo os mais fracos na sua origem, os pequenos homínidas, e especialmente um deles, tornam-se mais ágeis, mais hábeis, mais inteligentes, ao mesmo tempo, genética, anatômica, técnica e praticamente, ultrapassando, por fim, os mais robustos. (MORIN, 1979, p. 65)

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Este novo ecossistema, a savana, desencadeou a dialética (fenomenal e

genética) pé-mão-cérebro, mãe da técnica e de todos os desenvolvimentos,

favorecendo o aumento das qualidades e aptidões do caçador-caçado. A mão

é sem dúvida um dos maiores legados desta jornada hominizante, pois é

através dela e da sua dialética com o cérebro, que será possível transformar a

matéria e criar toda a espécie de artefatos, equipamentos para caça e coleta,

abrigos, armas e todas as invenções que serão possíveis através da práxis ao

longo do desenvolvimento não-planejado de nossa espécie. Desde os tempos

mais remotos, nossa espécie vem se movendo através da inovação, entendida

em seu sentido mais amplo, neste processo social de longa-duração não

planejado.

A impressão das palmas de um indivíduo pré-histórico estão estampadas

em cor vermelha nas paredes da caverna de Chauvet no sul da França, assim

como tantas outras pinturas rupestres de cavalos, bisões, leões, panteras,

ursos foram encontradas de forma intacta e reveladas ao mundo pelo filme de

Werner Herzog (2011) “A Caverna dos Sonhos Esquecidos”. Um lugar

inspirador e revelador com mais de 32.000 anos de idade onde estava o

pequeno caçador-caçado em seu pleno processo de hominização,

cerebralização e culturalização, com os resquícios do fogo utilizado talvez para

iluminar o caminho até o fundo da caverna, ou para se aquecer e alimentar-se,

afinal ali também foram encontrados esqueletos de diferentes tipos de animais.

Imagens poderosas e profundas da realidade vivida por este homem pré-

histórico; sonho e realidade se misturam, não se sabe ao certo onde um

termina e o outro começa. Sua inventividade, habilidades psicomotoras e o

domínio sobre a técnica possibilitaram a sua sobrevivência naquele espaço-

temporal em que as condições climáticas eram outras; os indícios de sua vida

cotidiana ficaram ali guardados na caverna para posterioridade. Assim, desde

os tempos remotos, a sociedade humana precisou adaptar-se à paisagem, aos

outros seres do mundo animal e grupos humanos. Buscou-se isso acima de

tudo através de formas de se comunicar e se fez isso pela invenção da

representação figurativa de homens, animais e objetos, uma forma de

comunicação entre os seres humanos, evocando o passado e transmitindo a

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informação para o futuro, uma linguagem talvez melhor do que a verbal e um

traço inventivo que continua idêntico ainda nos dias de hoje.

Um dos principais mecanismos de aperfeiçoamento da técnica se

encontra no processo dialético da mão com o cérebro, que fez do pequeno

caçador-caçado, um artesão, um artista, um inventor, um músico, se

aproximando das artes, profundamente conectado a nossa herança milenar de

quando as primeiras representações imagéticas, míticas e sonoras foram

inventadas por nossos antepassados pré-históricos. No decorrer deste longo

processo dialético entre a mão e o cérebro, é importante recuperar o papel

fundamental da mão e do movimento de preensão, e o aperfeiçoamento

contínuo da técnica: desde as pinturas rupestres de Chauvet na pré-história,

passando pela invenção da escrita na Idade Antiga (como por exemplo, a

escrita cuneiforme dos sumérios ou os hieróglifos dos egípcios), pela

confecção dos altares e dos mosaicos das catedrais medievais da Idade Média

(como se vê na catedral francesa de Chartres), e especialmente pelas pinturas

realizadas pelos grandes artistas do Renascentismo - como Michelangelo,

Rafael e Da Vinci, no início da idade moderna, até Van Gogh, Kandinsky,

Matisse, Mondrian e outros tantos artistas. Este longo processo social de

aprimoramento tecnosociocultural notado mais facilmente através da arte, da

escrita ou da linguagem, é profundamente humano e se constitui no acervo

social de conhecimento de toda a nossa espécie.

De todos os membros do corpo humano, a mão é dotada da maior

variedade de movimentos, que podem ser controlados como bem queremos,

diz Senett (2013). E a ciência vem tentando demonstrar como esses

movimentos, somados ao tato e às diferentes formas de segurar com as mãos,

afetam nossa maneira de pensar. O vínculo entre a mão e o cérebro será

revelado nos artífices que adquirem alto grau de capacitação com as mãos,

como se revela no caso dos músicos, cozinheiros e insufladores de vidro,

exemplos utilizados por Senett (2013) para demonstrar como o

desenvolvimento de técnicas manuais avançadas constitui uma condição

humana especializada e com implicações na experiência comum. Com uma

posição privilegiada da mão na criação, Charles Bell, que publicou a “A mão”

em 1833 uma geração antes de Darwin, afirma Senett (2013) realizou várias

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experiências para mostrar que o cérebro recebe do toque da mão informações

mais confiáveis que as imagens do olho, que cede muitas vezes a aparências

falsas e enganosas. Numa outra perspectiva de que a forma e função das

mãos seriam atemporais, Darwin já conjecturava que o cérebro do macaco

tornou-se maior à medida que os braços e mãos passaram a ser usados para

outras finalidades além de firmar o próprio corpo. Com uma maior capacidade

cerebral, os antepassados humanos, diz Senett (2013), aprenderam a segurar

as coisas nas mãos. Pensavam sobre o que estavam segurando e aprenderam

a dar forma às coisas; os homens macacos eram capazes de fabricar

ferramentas, os serem humanos produzem cultura.

Os usos da mão foram considerados de suma importância pelos

evolucionistas e não as alterações em sua estrutura que acompanharam o

aumento do tamanho do cérebro, aponta Senett (2013).

Assim, há meio século, Frederick Wood Janes escrevia que “não é a mão que é perfeita, mas todo o mecanismo neurológico através do qual os movimentos da mão são inspirados, coordenadores e controlados” o que permitiu o desenvolvimento do Homo sapiens. (SENETT, 2013, p.170)

Por outro lado, como mencionado anteriormente por Morin (1979), a

própria estrutura física da mão evoluiu e, segundo Senett (2013), pesquisas

realizadas por John Napier apontaram como na evolução do Sapiens a

oposição entre o polegar e os dedos tornou-se com o tempo cada vez mais

articulada, associando-se a outras mudanças ocorridas também nos ossos que

apoiam e fortalecem o dedo indicador. Tais mudanças estruturais facultaram a

nossa espécie, uma experiência absolutamente própria do ato de pegar,

tornando-se um ato voluntário, uma decisão, em contraste com movimentos

involuntários como piscar. Quando um animal como nós, é capaz de segurar

bem as coisas e com segurança, Senett (2015) diz que se dá a evolução

cultural e se situa aí também o aparecimento do homo faber, como considera a

etnóloga Mary Marzke apud Senett (2015): “A maioria das características

singulares da mão humana na era moderna, inclusive o polegar, tem relação

com (...) o esforço que teria ocorrido na utilização dessas pegadas para

manipular ferramentas de pedra”.

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Atualmente, a ciência nos mostra que uma rede neural envolvendo os

olhos, o cérebro e as mãos permite que a visão, o tato e o ato de pegar

funcionem em harmonia, diferente dos tempos de Charles Bell, que acreditava

que os diferentes membros ou órgãos de sentido eram ligados ao cérebro por

canais neurais separados e os sentidos poderiam ser isolados um do outro,

afirma Senett (2015). Quando o importante movimento de preensão surge

quando dizemos que queremos pegar algo e se faz um movimento físico em

direção a um copo, por exemplo, os movimentos do corpo antecipam e agem

na frente dos dados sensoriais. Este movimento foi descrito da forma mais

completa, por Raymond Tallis apud Senett (2015):

Ele organiza o fenômeno em quatro dimensões: antecipação, como a que determina a forma assumida pela mão ao tentar pegar o copo; contato, quando o cérebro recebe dados sensoriais através do tato; cognição linguística, no ato de dar nome àquilo que seguramos; e por fim reflexão sobre o que fizemos. (SENETT, 2013, p.175)

E Senett (2015), acrescentará ainda um quinto elemento: os valores

desenvolvidos por mãos altamente capacitadas.

Há uma conexão profunda de âmbito filogenético, no desenvolvimento

desta trajetória inventiva do sapiens em que, segundo Morin (1979), a savana

criou as condições concorrenciais entre as espécies que coexistiram naquele

tempo, levando a vitória solitária do homínida dotado do cérebro mais evoluído.

Uma relação cada vez mais complexa e intensa vai-se estabelecendo entre o ecossistema e o homínida. O ecossistema, para o caçador-caçado alerta, é um emissor de informações múltiplas, que ele saberá decifrar cada vez mais sutilmente; neste aspecto, o ecossistema é co-produtor e co-organizador da caça, práxis produtora e organizadora que vai sobreestimular os desenvolvimentos físicos, cerebrais, técnicos, cooperativos, sociais. (MORIN, 1979, p. 66)

A caça pode ser compreendida como um aperfeiçoamento técnico criado

e desenvolvido para realização da mesma, capaz de influenciar a maior parte

do destino da humanidade. Um grande continum numa evolução que viu as

espécies sucederem umas às outras, desde o homínida de cabeça pequena

até o sapiens de grande cérebro, pode ser considerado um fenômeno humano

total, que atualizou e exaltou aptidões pouco uti lizadas e suscitou novas

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aptidões, transformou a relação do homem com o ambiente, de homem para

homem, de homem para mulher, de adulto para jovem, afirmou Morin (1979).

Estes desenvolvimentos e as transformações operadas transformaram também

o indivíduo, a sociedade e a espécie. A prática da caça torna-se cada vez mais

central, cada vez mais organizada e organizadora, da tática improvisada à

estratégia treinada, das preocupações e dos ardis à engenhosidade da

armadilha e da emboscada, das armas rudimentares e polivalentes às armas

bem acabadas e especializadas. Assim, ela intensifica e complexifica a

dialética pé-mão-cérebro-instrumento, que por sua vez, intensifica e

complexifica a caça. Para Morin (1979), esta dialética traz consigo o

desenvolvimento técnico que afina e diversifica a arma e o instrumento,

melhorando a construção dos abrigos.

Do mesmo modo que os nossos antepassados humanos lidaram com a

prática da caça e que as táticas e estratégias empenhadas diariamente para

sua sobrevivência revelam uma vida cotidiana, atualmente nosso cotidiano está

repleto de algumas práticas significativas (ler, falar, caminhar, habitar, cozinhar

e etc.). Segundo Michel de Certeau (2013), são elas que desenham as astúcias

de interesses outros e de desejos que não são nem determinados nem

captados pelos sistemas onde se desenvolvem. As trajetórias se compõem

pelo “fraseado” devido à bricolagem, à inventidade “artesanal”, à discursividade

que combinam estes elementos, todos recebidos e de cor indefinida remetem-

se, diz Certeau (2013) à proliferação de histórias e operações heterogêneas

que compõem os patchworks do cotidiano. Os produtores são desconhecidos,

mas são os consumidores que produzem suas práticas significantes numa

relação dicotômica com os dispositivos de produção atuais. Assim, a trajetória,

para Certeau (2013), evoca um movimento, mas resulta de uma projeção sobre

um plano, de uma redução, uma operação, uma linha reversível que tem lugar

em uma série temporalmente irreversível, um traço. A estratégia por sua vez

será compreendida como o

[...] cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta. A nacionalidade política,

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econômica, ou cientifica foi construída segundo esse modelo estratégico. (CERTEAU, 2013, p; 45)

Entretanto, a tática por sua vez será denominada como contrário:

[...] um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar seus proveitos, preparar sua expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O “próprio” é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não lugar a tática depende do tempo, vigiando para “captar no voo” possibilidades de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para transformar em “ocasiões”. (CERTEAU, 2013, p. 46)

Combinando elementos heterogêneos em momentos oportunos, a síntese

intelectual da tática tem por forma não um discurso, mas a decisão em si, o ato

e a maneira de aproveitar a ocasião. Muitas das práticas cotidianas comuns

(falar, ler, circular, fazer compras ou preparar refeições etc.) são consideradas

do tipo tática e de modo geral uma grande parte delas fazem parte das

“maneiras de fazer”, diz Certeau (2013),

[...] são as vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem e etc.), pequenos sucessos, as artes de dar golpes, astúcias de “caçadores”, mobilidades de mão de obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos. (CERTEAU, 2013, p.46)

São estes saberes antigos inerentes a nossa espécie, em que as

performances operacionais são dependentes, que os gregos designavam pela

métis, afirma Certeau (2013), e “remontam a tempos mais recuados, a

imemoriais inteligências com astúcias e simulações de plantas e peixes. Do

fundo dos oceanos até as ruas das megalópoles, as táticas apresentam

continuidades e permanências.”

Os tipos de táticas podem ser diferenciados, de um lado descrevendo os

“rodeios” que um idioma falado, uma linguagem, pode ser simultaneamente o

lugar e o objeto, e de outro, essas manipulações são relativas às ocasiões e às

maneiras de mudar (seduzir, persuadir, utilizar) o querer do outro (destinatário).

São as “maneiras de falar”, como aponta Certeau (2015), que oferecem um

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[...] aparelho de figuras típicas para a análise das maneiras cotidianas de fazer ao passo que ela, em princípio, se acha excluída do discurso científico. Duas lógicas da ação (uma tática e outra estratégica) se depreendem dessas duas maneiras de praticar a linguagem. No espaço da língua (como no dos jogos) uma sociedade explicita mais as regras formais do agir e os funcionamentos que as diferenciam. (CERTEAU, 2013, p.47)

Portanto, as maneiras de fazer e de falar estiveram e estão desde sempre

presentes nas práticas cotidianas que cooperaram com o desenvolvimento da

complexidade social, exigindo do cérebro individual um conhecimento mais

preciso do mundo exterior (meio ambiente) e do mundo interior (sociedade),

uma memória mais ampla, possibilidades associativas múltiplas, aptidões para

se tomar decisões e encontrar soluções diversas e imprevistas. Esta pressão

para uma complexidade maior vai favorecer toda e qualquer mutação que

aumente as potencialidades do cérebro. E se houver um ambiente ecológico, e

cada vez mais, sociocultural, apto a acolher o novo desenvolvimento da

complexidade cerebral, um aumento cerebral pode ser benéfico e conferir ao

grupo mutante beneficiário uma primazia de superiorização técnica, social,

cultural, e, naturalmente ecológica, afirma Morin (1979). Assim, os progressos

socioculturais hominídeos favoreceram a cerebralização e a juvenilização, dado

que estes dois fatores favoreceram a complexificação sociocultural e a

existência de um circuito seletivo inter-relacionado em benefício do

desenvolvimento de todos os níveis, o da espécie, do indivíduo, da cultura e da

sociedade. Pode-se então ver a ligação recíproca entre os processos de

juvenilização, cerebralização e culturalização.

O progresso da juvenilização significa a regressão dos comportamentos estereotipados (instintuais) que eram programados de modo inato, a abertura extrema ao meio ambiente (natural e social), a aquisição de uma plasticidade e disponibilidade muito amplas. O progresso da cerebralização corresponde ao desenvolvimento das possibilidades associativas do cérebro, à constituição de estruturas organizacionais ou competências, não só linguísticas (Chomsky), mas também operacionalmente lógicas, heurísticas e inventivas. O progresso da culturalização corresponde à multiplicação das informações, dos conhecimentos, do saber social e, também, à multiplicação das regras de organização e dos modelos de comportamento até mesmo, portanto, a uma programação propriamente sociocultural. Por outras

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palavras, a cultura insere-se complementarmente na regressão dos instintos (programas genéticos) e na progressão das competências organizacionais, reforçada simultaneamente por essa regressão (juvenilizante) e por esta progressão (cerebralizante), necessária a esta e àquela. Ela constitui um “tape-recorder”, um capital organizacional, uma matriz informacional, apta a alimentar as competências cerebrais, a orientar as estratégias heurísticas, a programar os comportamentos sociais. E assim, aparece o rosto biosociocultural da hominização: as estruturas de organização cognitivas, linguísticas, práticas, que emergem com os novos desenvolvimentos do cérebro, são estruturas inatas que substituem os programas estereotipados ou instintos, as quais são a partir de então inscritas na herança genética, enquanto desta, é subtraído ou recalcado um grande numero de comportamentos estereotipados. Mas elas só podem operacionalizar a partir da educação sociocultural e num meio social complexificado pela cultura.” (MORIN, 1979, p. 91-92)

A complexidade do processo de hominização vivido pela nossa espécie

explicará, segundo Morin (1979), um dos principais paradoxos da ciência

moderna, entre a natureza e a cultura. No período de hominização, a aptidão

inata para se adquirir o que é um dispositivo cultural de integração do

adquirido, torna-se uma aptidão natural para a cultura e aptidão cultural para

desenvolver a natureza humana; há uma complementariedade original entre a

aquisição dessas aptidões naturais (as competências organizacionais inatas) e

a existência da cultura. A complexidade cerebral e a sociocultural são

complementares, e os desenvolvimentos últimos das forças generativas do

cérebro só podem exprimir-se com base numa complexidade fenomenal

sociocultural. Somos incapazes de direcionar nosso comportamento ou de

organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por um sistema de

símbolos significantes, dirá Geertz apud Morin (1979). Sem a cultura, o sapiens

não sobreviveria, a não ser como um primata do mais baixo nível. A oposição

entre natureza e cultura desmoronou-se, para Morin (1979), e

[...] a evolução biológica e a cultural são dois aspectos, dois polos de desenvolvimento inter-relacionados e interferentes do fenômeno total da hominização: a evolução biológica, partindo de um primata inteligente e de sua sociedade já complexa, continua-se numa morfogênese tecnosociocultural, a qual revigora e estimula uma evolução biológica juvenilizante e cerebralizante. Enquanto no decorrer da primeira fase pré-histórica, as potencialidades, até então francamente

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exploradas na floresta, de um pequeno cérebro permitiam, sob o impulso da vida na savana, o desenvolvimento de uma práxis que devia trazer a constituição de uma tecnologia, de um novo tipo de sociedade e de um embrião de cultura, é, no decorrer de uma segunda fase, o desenvolvimento da juvenilização e da cerebralização, as quais exercem pressão recíproca no sentido do desenvolvimento da complexidade sociocultural. (MORIN, 1974, p. 94)

A sociedade passa, então, a se comportar como um ecossistema social

organizador e organizado, exercendo uma pressão seletiva e integrativa sobre

os desenvolvimentos ontogenéticos, e as mutações genéticas vão no sentido

de uma complexidade crescente. O desenvolvimento da complexidade social

estabelece relações cada vez mais amplas, profundas e complexas com o

ecossistema natural. A economia social depende cada vez mais da ecologia

social e toda mudança ecológica repercutirá sobre a economia fazendo com

que a modificação econômica também repercuta sobre toda a sociedade,

considera Morin (1979).

O avanço da tecnização reduziu as distâncias, a humanidade tornou-se

uma unidade, e uma realidade social, com a crescente integração e

progressiva interdependência de todos os subconjuntos humanos até então

independentes. Porém, segundo Norbert Elias (2006), o desenvolvimento do

habitus humano não segue o mesmo ritmo.

A tecnização tem um momentum imanente, a receber continuamente novos impulsos derivados da rivalidade entre indivíduos e grupos de indivíduos. Mas sobre muitos outros processos que contribuíram para o desenvolvimento também atuaram novos estímulos, resultantes da composição global predominante da humanidade, bem como da dinâmica do desenvolvimento do conjunto de todos os seres humanos e das várias unidades de subsistência – tribos e Estados – observadas ao longo do tempo. O momentum imanente de processos parciais como cientifização, a tecnização, o desenvolvimento econômico ou a formação de Estados sempre tem uma autonomia apenas limitada dentro da estrutura do desenvolvimento total da humanidade. O processo global pode ser conduzido em uma ou outra direção, ou pode mesmo parar ou se inverter, por meio das rivalidades e das lutas de poder entre grupos de pessoas e entre seus representantes individuais. (ELIAS, 2006, p. 63-64)

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Ao longo do desenvolvimento social não planejado da humanidade, junto

ao entrelaçamento de impulsos, contra-impulsos e estímulos desenvolveram-se

as revoluções agrícola, mercantil, industrial e, mais recentemente, a revolução

informacional, a partir do advento das novas tecnologias de informação e

comunicação – NTIC2, entre os anos sessenta e setenta do século XX. Foram

processos sociais de longa duração que envolveram toda a espécie humana e

que foram marcados por experimentações tecnológicas que caminharam lado a

lado com as experiências relacionadas à organização social. Ao longo da

nossa história, é possível constatarmos alguns surtos tecnizadores, com

grande capacidade de modificar de forma substancial os padrões sociais, o

habitus humano, e de criar novas instituições sociais para dar conta destas

transformações sociais nas diversas esferas da sociedade. As revoluções

apontadas, por exemplo, transformaram profundamente o modus operanti,

lançando-nos em novas direções e como o sapiens é um ser inacabado,

continuamos nesta plena aventura hominizante.

Atualmente, a caminho da segunda década do século XXI, as crianças se

tornaram, assim como parte dos adultos, habitantes de um mundo virtual,

constituindo, segundo Serres (2013), um novo habitus no mundo

contemporâneo, cada vez mais envolvido pelo uso das tecnologias de

informação e comunicação. As ciências cognitivas, afirma Serres (2013),

mostraram que o uso da internet, para a consulta à Wikipédia ou ao Facebook,

não ativam os mesmos neurônios e zonas corticais que o uso de outrora do

livro, do quadro-negro ou do caderno. As crianças do século XXI podem

manipular várias informações ao mesmo tempo; não conhecem, não

integralizam, nem sintetizam como os seus antepassados; não têm mais a

mesma cabeça; seus cérebros continuam em pleno processo de cerebralização

a partir dos novos tipos de stimuli advindos da cibercultura, da sociedade, do

nosso habitat e, consequentemente, do meio ambiente em que nos inserimos.

Uma das grandes inovações do nosso tempo, o celular ou telefone móvel,

possibilitou o acesso de todas as pessoas a qualquer lugar (pelo GPS – Global

Positioning System) e a todo o saber (pela internet). Os pequenos caçadores-

2 As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação articulam várias formas eletrônicas de

armazenamento, tratamento e difusão da informação. Com a união da informática, telecomunicações e audiovisual, geraram uma gama de produtos (celulares, computadores, softwares, internet e etc.) caracterizados pela possibilidade interação comunicativa e a pela linguagem digital.

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caçados do século XXI circulam por um espaço topológico de aproximações,

enquanto seus antepassados não tão distantes, mas do século passado, viviam

em um espaço métrico, referido por distâncias. Dessa maneira, não habitam

mais o mesmo espaço, não se comunicam da mesma forma, não percebem o

mundo do mesmo jeito e não vivem na mesma natureza. No curto espaço de

tempo que nos separa dos anos setenta do século XX, Serres (2013) afirma,

que não nos demos conta de que um novo ser humano nasceu. A escrita

também já não é mais como outrora, agora é de outra forma. Envia-se SMS –

Short Message Service – com os polegares, mais rápido do que os seus

antepassados conseguiriam com todos os seus dedos entorpecidos, diz Serres

(2013), que os batizou, com a ternura de um avô, de Polegarzinhas e

Polergazinhos.

Os polegarzinhos não têm o mesmo corpo nem o mesmo comportamento,

não falam mais a mesma língua. Estão com suas habilidades psicomotoras em

interação constante com novos equipamentos tecno lógicos, novos aplicativos e

com isso novas habilidades técnicas e de pensamento estão em curso. Assim

como aconteceu com os nossos antepassados pré-históricos, que na caverna

de Chauvet deixaram suas representações figurativas milhares de anos atrás.

As novas dinâmicas sociais vivenciadas neste momento único da humanidade

fazem com que a dialética mão-cérebro-instrumento, apontada por Edgar Morin

(1979), continue a evoluir de uma maneira tal que os movimentos de pinça e

preensão iniciados com a caça nas savanas estão em plena transformação

atualmente, assim como, nossos corpos e mentes. Tais inovações advindas do

processo de tecnização vivido mais recentemente no século XX estão a nos

levar por mares nunca dantes navegados, como escreveu Camões (1997), nos

Lusíadas.

No preciso momento em que passamos a aceitar melhor a afinidade entre

os computadores e a mente humana, começamos também a formular um novo

conjunto de questões acerca dos limites entre pessoas e coisas, afirma Sherry

Turkle (1997). Depois de várias décadas em que nos perguntávamos “O que

significa pensar?”, a pergunta chave no final do século XX foi “O que significa

estar vivo?”. Os efeitos psicológicos e filosóficos da presença do computador,

diz a autora, não se confinam, de forma alguma, aos adultos. As crianças do

início da década de 1980 começaram a pensar nos computadores e nos

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brinquedos computadorizados como objetos psicológicos, uma vez que essas

máquinas combinavam atividades mentais (falar, cantar, soletrar, jogar e

resolver problemas matemáticos); um estilo interativo numa superfície opaca.

Nas últimas décadas, as mudanças na identidade intelectual e o impacto

cultural do computador tiveram lugar numa cultura ainda profundamente

empenhada na busca de uma compreensão modernista dos mecanismos da

vida. As crianças dos anos noventa, para Turkle (1997), ainda se referem aos

computadores de sua casa ou escola, como “apenas máquinas”, mas certas

qualidades antes atribuídas somente às pessoas passaram a ser atribuídas aos

computadores. Nos anos 90, assistiu-se entre as crianças, um movimento que,

partindo da definição das pessoas como aquilo que as máquinas não são, diz

Turkle (1997), chegou-se à crença de que os objetos computacionais da nossa

vida quotidiana, ainda que pensem e detenham conhecimentos, permanecem

“apenas máquinas”.

Diante destas grandes transformações, é necessário, segundo Serres

(2013), inventar novidades imagináveis, além do âmbito habitual, que ainda

molda nossos comportamentos, nossa mídia, nossos projetos originados na

sociedade do espetáculo. Tudo precisará ser refeito e inventado, o pequeno

caçador-caçado tem se deparado com algo diferente de tudo o que viveu até

então e se depara com novas “maneiras de fazer e de falar” no ciberespaço e

na cibercultura de hoje, que são as savanas de outrora. O processo de

cerebralização continua em seu pleno andamento, com o desenvolvimento de

novas sinapses criadas a todo instante a partir dos usos dos diversos tipos de

tecnologias cada vez mais presentes nas sociedades. A juvenilização é outra,

assim como, a culturalização. São processos que se modificaram, movidos

pelos avanços iniciados a milhares de anos, através da técnica da caça, para

aportarem-se na modernidade, na era máquina, como designou Herbert

Marcuse (1999), um dos momentos imanentes da tecnização na história

humana, com o aparecimento de uma racionalidade tecnológica. O novo

homem citado, por Serres (2013), ainda se encontra em seu processo

embrionário, mas, como ser tecnosociocultural e inacabado, continuará seu

desenvolvimento rumo ao futuro incerto.

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1.1 O homem e o mundo moderno, técnico-científico

A modernidade, enquanto um processo social de longa duração não

planejado construiu um paradigma de conhecimento e de explicação do

mundo, transformando radicalmente os modos de produção empregados até

então na Idade Média. Um novo projeto de sociedade iniciou-se, com base na

ideia de progresso, de onde o controle e exploração da natureza trariam ao ser

humano os meios para constituir uma melhor qualidade de vida, numa

sociedade livre e antropocêntrica. Um novo modelo de desenvolvimento social,

econômico e político, estava sendo desenhado por uma nova classe

dominante. Nascia a sociedade moderna, industrial, técnica e científica,

oscilando entre a ideia de liberdade e de dominação.

Este mundo-moderno-técnico-científico-positivo está em crise, pois não foi

capaz de harmonizar os modos de vida criados por ele mesmo, como diz

Novaes (2004), “com os modos de pensamento que a difusão universal e o

desenvolvimento de certo espírito científico impõe pouco a pouco a todos os

homens”. O pensamento de Descartes estará no centro do debate, pois o que

nasceu de uma transformação o levaria a sua própria crise. A lógica cartesiana

se apresentará como algo vivo e fecundo opondo-se à ordem estática dos

gêneros e espécies da lógica escolástica. A razão cartesiana transformou-se

em mecânica do pensamento e “passa a ser uma linguagem abstrata” trazendo

consigo “todo um enigma de um pensamento que passa necessariamente pelo

corpo e pelas paixões”.

Portanto, a razão deveria ser pensada como uma relação experiência-

corpo-natureza-pensamento, lembrando o que nos diz o poeta Fernando

Pessoa apud Novaes (2004): “O que em mim sente está pensando”. Então, a

razão única deixa de ter sentido, pois existem relações do visível e invisível,

“do logos do mundo visível e do logos da idealidade”, e abre-se espaço para a

relação entre o sensível e a razão, criando novas razões. Somos colocados

diante de um novo tipo de racionalismo que não se contenta mais com uma

explicação monológica, universal e abstrata, mas também apresenta uma

razão sensível que busca “uma verdadeira razão que tenha apenas por objeto

o Ser”. A tríade indivíduo-sociedade-espaço precisa ser religada num circuito,

segundo Morin (1979), em que cada um deles faz parte do outro, afinal somos

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seres biopsicosocioculturais e as dissociações feitas anteriormente perdem o

sentido para a compreensão da complexidade do ser humano, do mundo

contemporâneo, da vida e do cosmos.

Como mencionado, o homem enquanto um ser inacabado continua em

pleno processo de desenvolvimento de suas capacidades cerebrais e

cognitivas. Da mesma forma ocorreu durante a hominização: processo de

interações e interferências em que as variações, ora de um constituinte, ora de

outro, fazem cada uma, por sua vez variar diversamente das outras. A

evolução do homo sapiens, não é um continuum, mas sim uma soma de

modificações esporádicas, com longas épocas chamadas de estagnação sob a

ótica evolutiva, mas que na verdade são de estabilidade, diz Morin (1979). E

com este olhar surge uma lógica, não com um caráter finalista, mas

neguentrópica, isto é, da disposição própria para o sistema auto-organizado-

complexo para a vida no seu sentido mais amplo, englobando o homem e o

espírito. A utilização das forças de desorganização, segundo Morin (1979),

serão fundamentais para manter e desenvolver sua própria organização,

utilizando as variações aleatórias, os acontecimentos perturbadores, visando

aumentar a diversidade e a complexidade.

Na era moderna, marcada profundamente pelo processo de

industrialização, o conhecimento científico se desenvolveu com base na razão

instrumental, e nesse contexto a tecnologia propiciaria o progresso, permitindo

ao homem conhecer todos os campos, visando o controle , a dominação da

natureza e a previsibilidade do futuro, separando a razão da emoção. A

tecnologia será vista, segundo Marcuse (1999), como um processo social no

qual a técnica propriamente dita, enquanto aparato técnico da indústria,

transporte e comunicação, é um fator parcial neste grande processo social. A

tecnologia como modo de produção, totalidade de instrumentos, dispositivos e

invenções que caracterizam a era da máquina, é, ao mesmo tempo, uma forma

de organizar e perpetuar ou modificar as relações sociais, uma manifestação

do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, e um

instrumento de controle e dominação. A técnica por sua vez poderá promover

tanto o autoritarismo quanto a liberdade, assim como, a escassez e a

abundância, ou a abolição do trabalho.

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A racionalidade do sapiens e a técnica do faber, segundo Morin (2002),

são reconhecidas como as características próprias do humano (ser ao mesmo

tempo individual, social e biológico), com um formidável potencial de

racionalidade e de desenvolvimento técnico que se atualizará ao longo da

história, se acelerando e amplificando nestes últimos séculos. A técnica

procurou remediar as carências humanas; um ser humano que dispõe de mãos

hábeis, mas fracas em pressão e batida, e que corre a baixa velocidade, não

voa, por isso, é também a técnica que realizará artificialmente suas ambições e

sonhos.

A técnica experimenta um primeiro desenvolvimento explosivo no neolítico; depois, desenvolve-se de maneira plural, conforme as civilizações, para dominar a matéria, controlar energias, domesticar o mundo vegetal e o mundo animal, até o salto repentino e extraordinário, a partir do século XVIII, primeiro na Europa ocidental, depois em todo o planeta, das técnicas controladoras de energias cada vez mais potentes (vapor, petróleo, eletricidade, energia nuclear) de máquinas cada vez mais automatizadas e, enfim, de uma rede nervosa artificial disseminada pelo globo. (MORIN, 2002, p. 41)

Deste entrelaçamento de diversos fatos sociais, entre o desenvolvimento

social humano não planejado e o aperfeiçoamento da técnica e da tecnologia

ao longo do tempo, emerge uma constelação de fragmentos, desencontrados,

que se conectam através das relações sociais constituídas na vida cotidiana e

ao longo do processo social inerente às invenções humanas, que foram

transformando os modos de ser e de estar do homo sapiens no decorrer do

tempo. Como caçador-caçado das savanas se tornou num artífice e como tal,

segundo Sennett (2013), explorará as dimensões de habilidade e avaliação de

uma forma específica, com foco numa relação íntima entre a mão e a cabeça.

Um bom artífice sustentará um diálogo entre práticas concretas e ideias,

evoluindo para o estabelecimento de hábitos prolongados, que criam um ritmo

entre a solução de problemas e a detecção dos mesmos.

A análise da designada era da máquina contribui para uma compreensão

da realidade e do homem do mundo contemporâneo, na qual, para Marcuse

(1999), uma nova racionalidade e novos padrões de individualidade, no

decorrer do processo tecnológico, se disseminaram pela sociedade. E estas

mudanças foram determinantes no desenvolvimento da maquinaria e da

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produção em massa, dissolvendo os padrões de individualidade e a

racionalidade tradicional, afetando sensivelmente a relação entre o indivíduo, a

sociedade e o espaço. A ideia de indivíduo nos séculos XVI e XVII definia-o

como o sujeito de certos padrões e valores fundamentais, entendidos como o

respeito às formas de vida, tanto social como pessoal, que eram mais

adequadas ao desenvolvimento total das faculdades e habilidades do homem,

e que por sua vez, não deveriam ser desrespeitadas por nenhuma autoridade

externa.

Eram a “verdade” de sua existência individual e social, diz Marcuse

(1999), e o indivíduo era um ser racional, capaz de encontrar estas formas

através de seu próprio raciocínio e que com a liberdade de pensamento seria

capaz de efetuar uma ação transformadora da realidade. E a sociedade tinha o

dever de conceder ao indivíduo tal liberdade e eliminava todas as restrições

para a sua linha de ação racional. O princípio do individualismo era a busca do

interesse próprio e condicionado pela afirmação deste interesse racional, ou

seja, resultava e era constantemente guiado e controlado pelo pensamento

autônomo.

O interesse próprio racional não coincidia com o interesse próprio imediato do indivíduo, pois este último dependia dos padrões e demandas da ordem social dominante, instituída não pelo pensamento autônomo ou a consciência, mas por autoridades externas. Assim, no contexto do puritanismo radical, o principio do individualismo põe o indivíduo contra a sociedade. (MARCUSE, 1999, p. 75).

O homem, então, era obrigado a superar todo o sistema de ideias e

valores imposto a ele, para encontrar e se apossar das ideias e valores que se

ajustassem aos seus interesses racionais. Vivia, então, num estado de

vigilância constante, apreensivo e crítico, rejeitando tudo que não fosse

verdadeiro nem justificado pela livre razão, constituindo um permanente estado

de inquietação e oposição, numa sociedade que ainda não era racional. Falsos

padrões ainda governavam a vida dos homens e o indivíduo livre era o que

criticava esses padrões e buscava padrões verdadeiros, promovendo sua

realização, afirmará Marcuse (1999).

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A sociedade liberal era considerada o ambiente adequado à racionalidade

individualista, que pressupunha um ambiente social e econômico adequado,

que atraísse indivíduos cuja conduta social fosse em grande medida o seu

trabalho. Porém, no decorrer do tempo, a produção de mercadorias solapou a

base econômica sobre a qual a racionalidade individualista se constituiu e a

mecanização e a racionalização forçaram os competidores mais fracos a se

submeterem ao domínio de grandes indústrias mecanizadas, na esfera da livre

concorrência. Neste momento se estabelece o domínio da sociedade sobre a

natureza, abolindo o sujeito econômico livre. O poder tecnológico tende à

concentração de poder econômico; as grandes empresas passam a produzir

em grandes quantidades e uma impressionante variedade de mercadorias.

A tecnologia paulatinamente expande o poder à disposição das empresas gigantes criando novas ferramentas, novos processos e produtos. A eficiência aqui pedia uma unificação e uma simplificação integrais, a eliminação de todo o desperdício, para que se evitassem todos os desvios, pedia uma coordenação radical. (MARCUSE, 1999, p. 77)

A utilização lucrativa e em larga escala deste aparato 3, através de seu

modo de produção e distribuição, e o poder tecnológico do mesmo, segundo

Marcuse (1999), afetaram toda a racionalidade daqueles a quem serviam.

Nesta perspectiva, o impacto deste aparato transformou a racionalidade

individualista em racionalidade tecnológica, que estabelece padrões de

julgamento e fomenta atitudes que predispõem os homens a aceitarem e

introjetarem os ditames do aparato. Mumford apud Marcuse (1999)

caracterizou o homem da era da máquina como uma “personalidade objetiva”;

alguém que aprendeu a transferir sua espontaneidade subjetiva à maquinaria

que serve a subordinar sua vida à “factualidade” de um mundo em que a

máquina é o fator e ele o instrumento. Assim, as distinções individuais de

aptidão, percepção e conhecimento serão transformadas em diferentes graus

de perícia e treinamento, para serem utilizados a qualquer momento dentro da

estrutura comum dos desempenhos padronizados. O stimuli advindo das

savanas, que impulsionou a sobrevivência do homo sapiens com a criação de

3 O termo “aparato” designa as instituições, dispositivos e organizações da indústria em sua situação

social dominante.

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táticas e estratégias advindas da caça, como diz Morin (1979), e as

potencialidades de criar e inovar, inerentes ao indivíduo e à espécie, neste

estágio da era da máquina foram condensados e limitados pelo aparato. O

processo de industrialização da produção limitou a possibilidade de se

continuar a produzir tecnicamente, autonomamente e de acordo com as

necessidades; solapou aquilo que era mais importante para o nosso ser

enquanto espécie: deter o conhecimento sobre o processo integral de produção

dos bens dos quais usufruíamos. No século XXI, algo semelhante está em

curso com a informatização sociocultural vivida e, diferentemente do contexto

da produção industrial de outrora, se tornará cada vez mais necessário

compreender e dominar os códigos de programação que estão por trás dos

softwares e aplicativos presentes em nossa vida cotidiana e que se constituem

em nosso futuro incerto.

O sujeito econômico livre tornou-se objeto de organização e coordenação

em larga escala, afirma Marcuse (1999), e o avanço individual se transformou

em eficiência padronizada. O indivíduo eficiente será aquele cujo desempenho

consiste numa ação somente enquanto se tenha uma reação adequada às

demandas objetivas do aparato, e a liberdade do indivíduo está confinada à

seleção dos meios mais adequados para alcançar uma meta não determinada

por ele; a eficiência será um desempenho recompensado e consumado apenas

em seu valor para o aparato.

Para a grande maioria da população, a liberdade anterior do sujeito

econômico livre foi sendo gradualmente submersa por esta eficiência, na qual,

segundo Marcuse (1999), os indivíduos desempenhavam os serviços atribuídos

a ele. O mundo se racionalizou a tal ponto que esta racionalidade tecnológica

se tornou um poder social e o indivíduo não teria a escolha, a não ser se

adaptar ao seu funcionamento sem reservas. O Terceiro Reich, na Alemanha,

foi uma tecnocracia, dirá Marcuse (1999), na qual as considerações técnicas da

eficiência e da racionalidade imperialistas superam os padrões tradicionais do

lucro e do bem-estar geral. Atualmente, vive-se um novo momento de

racionalização através dos usos de aplicativos criados com o intuito de ajudar

os indivíduos a “gerenciarem” a vida e a saúde, transferindo as suas decisões

ao aparato cada vez mais eficiente e limitador das liberdades.

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Todas as formas de produção social do ser humano têm escolhido e

justificado seus motivos e objetivos a partir dos fatos que compunham sua

realidade e desta forma chegou-se às mais diversas filosofias. Porém, a nova

atitude, diz Marcuse (1999), se diferencia das demais pela submissão

altamente racional que a caracteriza.

Os fatos que dirigem o pensamento e a ação do homem não são os da natureza, que devem ser aceitos para que possam ser controlados, ou aqueles da sociedade, que devem ser modificados porque já não correspondem as necessidades e potencialidades humanas. São antes os fatos do processo da máquina, que por si só aparecem como a personificação da racionalidade e da eficiência. (MARCUSE, 1999, p. 79).

Nesta perspectiva, o comércio, a técnica, as necessidades humanas e a

natureza se unem num mecanismo racional e conveniente, no qual aquele que

seguir as instruções será mais bem-sucedido, subordinando sua

espontaneidade à sabedoria anônima que ordenou tudo para ele, afirma

Marcuse (1999). Atualmente, pode-se considerar que o uso de aplicativos de

trânsito e de navegação em comunidade, limita, ou praticamente elimina, a

liberdade de escolha dos indivíduos, na medida em que a rota é traçada pela

máquina (aplicativo) através do GPS, sem dar oportunidade ao indivíduo de

usar os seus instintos ou até mesmo de se perder e descobrir novos caminhos

possíveis para chegar ao seu destino.

Os protestos serão insensatos e o indivíduo que persiste será

considerado excêntrico; não há saída pessoal do aparato racional que

mecanizou e padronizou o mundo, diz Marcuse (1999), que combinou a

máxima eficiência, com a máxima conveniência, economizando tempo e

energia, eliminando o desperdício, adaptando todos os meios a um fim,

antecipando consequências, sustentando a calculabilidade e a segurança.

Através da manipulação da máquina, o homem aprenderá que a obediência às

instruções será o único meio de se obter os resultados desejados. Não há lugar

para autonomia; a racionalidade individualista se transformou numa eficiente

submissão à sequência predeterminada de meios e fins.

A necessidade - mãe das invenções, desde os primeiros desafios

colocados ao caçador-caçado nas savanas, onde o sapiens sobreviveu

enquanto espécie e ser tecnosociocultural - tem se tornado em grande parte, a

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necessidade de se manter e expandir o aparato. Para Marcuse (1999), tudo

contribui para transformar os instintos, os desejos e os pensamentos humanos

em canais que alimentem o aparato, e as relações entre os homens são cada

vez mais mediadas pelo processo da máquina.

Mas os equipamentos mecânicos que facilitam o contato entre os indivíduos também interceptam e absorvem sua libido, desta forma distanciando-a do reino por demais perigoso no qual o indivíduo se encontra livre na sociedade. A máquina adorada não é mais matéria morta, mas se torna algo semelhante a um ser humano. E devolve ao homem o que ela possui: a vida do aparato social ao qual pertence. O comportamento humano se reveste da racionalidade do processo da máquina, e esta racionalidade tem um conteúdo social definido. O processo da máquina opera de acordo com as leis da física, mas da mesma forma opera com as leis da produção de massa. A eficácia em termos de razão tecnológica é, ao mesmo tempo, padronização e concentração monopolistas. Quanto mais racionalmente o indivíduo se comporta e quanto mais devotamente se ocupa de seu trabalho racionalizado, tanto mais sucumbe aos aspectos frustrantes desta racionalidade. Ele esta perdendo sua habilidade de abstrair da forma especial em que a racionalização é levada a efeito e esta perdendo a fé em suas potencialidades não realizadas. (MARCUSE, 1999, p. 81-82)

Os indivíduos são despidos de sua individualidade, pela própria

racionalidade sob a qual vivem. O homem não percebe que está perdendo sua

liberdade com o trabalho de alguma força hosti l e externa; ele renuncia à sua

liberdade, sob os ditames da própria razão. A grande questão, apontada por

Marcuse (1999), remete-se ao aparato ao qual o indivíduo deve se ajustar e

adaptar-se, aparato este tão racional que o protesto e a libertação individual

parecem ser inúteis, absolutamente irracionais E o sistema de vida criado pela

indústria moderna é da mais alta eficiência, conveniência e eficácia, dirá o

autor.

Nesta conjuntura, a impotência social do pensamento crítico se explica,

em certa medida, pelo crescimento do aparato industrial e do seu controle, que

passou a abranger todas as esferas da vida. A racionalidade tecnológica

inculcada naqueles que mantém o aparato transformou vários métodos de

compulsão externa e autoridade em métodos de autodisciplina e de

autocontrole. E os homens, seguindo sua própria razão, seguem aqueles que

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fazem o uso lucrativo da razão. Ademais, outros setores importantes da

oposição também foram, a muito tempo, incorporados pelo aparato, sem perder

o título de oposição.

A concepção instrumental da racionalidade tecnológica se infiltrou por

quase todo o reino do pensamento e das atividades intelectuais, aponta

Marcuse (1999). Criou-se um denominador comum para as atividades

intelectuais, que se tornaram uma espécie de técnica, uma questão de treino e

não de individualidade; contexto no qual se pede um especialista em vez de

uma personalidade humana completa.

Ao final do século XIX, a ideia de indivíduo tornou-se cada vez mais ambígua: combinava a insistência no desempenho social livre e na eficiência competitiva com a glorificação de pequeno, da privacidade e autolimitação. Os direitos e liberdades do indivíduo na sociedade eram interpretados como direitos e liberdades da privacidade e afastamento da sociedade. A contraposição entre indivíduo e sociedade, que originalmente deveria fornecer bases para uma reforma militante da sociedade no interesse do indivíduo, vem para preparar e justificar o afastamento do indivíduo da sociedade. A “alma” livre e autoconfiante, que originalmente nutria a critica do indivíduo à autoridade externa. (MARCUSE, 1999, p. 98)

Neste sentido, a autonomia do indivíduo passou a ser vista como um

assunto privado em vez de público. Os homens passam a viver sua sociedade

como uma personificação objetiva da coletividade. O coletivismo, na

perspectiva de Marcuse (1999), abole a livre busca dos interesses competitivos

individuais, mas mantém a ideia do interesse comum como uma entidade

distinta. Assim, os interesses individuais serão antagônicos e por isso se lutará

uns com os outros na busca por um pedaço da riqueza social. A sociedade

será vista por esses indivíduos como uma entidade objetiva, que consiste em

vários objetos, instituições e órgãos como: fábricas e lojas, polícia e lei,

governo, escolas, igrejas, prisões, hospitais, teatros, etc. Uma visão que não

condiz com tudo aquilo que o indivíduo é, que determina seus hábitos, padrões

de pensamento e comportamentos, algo que o afeta de “fora” e que também

pode ser percebida como poder de repressão e de controle, integrando os

objetivos, faculdades e aspirações dos homens.

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É este poder que o coletivismo retém em sua imagem da sociedade, perpetuando assim o domínio das coisas e dos homens sobre os homens. O processo tecnológico em si não fornece justificativa para tal coletivismo. A técnica impede o desenvolvimento individual apenas quando esta presa a um aparato social que perpetua a escassez, e este mesmo aparato liberou forças que podem aniquilar a forma histórica particular em que a técnica é utilizada. Por este motivo, todos os programas de caráter antitecnológico, toda propaganda a favor de uma revolução antiindustrial servem apenas àqueles que veem as necessidades humanas como um subproduto da utilização da técnica. Os inimigos da técnica prontamente se aliam à tecnocracia terrorista. (MARCUSE, 1999, p. 101)

Antevendo uma saída aos homens - através da democratização das

funções e do desenvolvimento humano total em todos os ramos de trabalho e

da administração, que a técnica poderia promover - a mecanização e a

padronização, para Marcuse (1999), poderiam contribuir para mudar o centro

de gravidade das necessidades da produção material para a arena da livre

realização humana. Quanto menos necessária a afirmação da individualidade

nos desempenhos sociais padronizados, mas ela poderia ir para um terreno

“natural” livre, podendo levar a novas formas de individualização.

Neste campo, o homem é um indivíduo em virtude da singularidade de seu corpo e de sua posição privilegiada no continum espaço-temporal. É um indivíduo uma vez que esta singularidade natural molda seus pensamentos, instintos e emoções, paixões e desejos. Este é o principium individuationis “natural”. Num sistema de escassez, o homem desenvolveu seus sentidos e órgãos principalmente como implementos do trabalho e da orientação competitiva: habilidade, gosto, competência, tato, refinamento e resistência eram qualidades moldadas e perpetuadas pela árdua vida, negócios e poder. Consequentemente, os pensamentos do homem, seus apetites e seus modos de satisfação não eram “dele”, mostravam as características opressivas e inibidoras que esta luta lhe impunha. Seus sentidos, órgãos e apetites tornaram-se cobiçosos, exclusivistas e antagônicos. O processo tecnológico reduziu a variedade das qualidades individuais à sua base natural de individualização, mas esta mesma base pode se tornar a fundação para uma nova forma de desenvolvimento humano. (MARCUSE, 1999, p. 102)

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Nesta perspectiva, o aparecimento da cultura operou uma mudança de

órbita na evolução, e a espécie humana evoluirá muito pouco anatômica e

fisiologicamente. Mas, por sua vez, para Morin (2012), as culturas se tornaram

evolutivas, por inovações, absorção do aprendido, reorganizações. As técnicas

se desenvolvem, as crenças e os mitos mudam. Foram as sociedades que, a

partir de comunidades arcaicas, se metamorfosearam em cidades, nações,

impérios gigantes. “No seio das culturas e das sociedades, os indivíduos

evoluirão mental, psicologicamente, afetivamente.” A linguagem que surgiu ao

longo da hominização é o nó de toda cultura e de toda a sociedade humana, e,

neste sentido, para Morin (2012)

[...] a cultura é constituída pelo conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, gera e regenera a complexidade social. A cultura acumula o que é conservado, transmitido, aprendido e comporta vários princípios de aquisição e programas de ação. (MORIN, p. 35, 2012)

Por este ponto de vista, a linguagem e o conhecimento estão na vida

cotidiana e a expressividade humana é capaz de objetivações que, como diz

Peter Berger (1974), podem se manifestar em produtos da atividade humana,

que estão ao dispor tanto dos produtores quanto dos outros homens, ou seja,

são elementos de um mundo comum. Estas objetivações dos processos

subjetivos de seus produtores permitem que se estendam além da situação

face a face e possam ser diretamente apreendidas, sendo que a realidade da

vida cotidiana só é possível por conta das objetivações.

O ser humano se definirá, antes de tudo, pela trindade

indivíduo/sociedade/espécie. Cada um destes termos contém os outros; não só

indivíduos estão na espécie, como também a espécie está nos indivíduos; não

só os indivíduos estão na sociedade, como também a sociedade está nos

indivíduos, incutindo-lhes, como dirá Morin (2012), desde o nascimento, a sua

cultura.

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Os indivíduos são os produtos do processo reprodutor da espécie humana, mas esse processo deve ele mesmo ser reproduzido pelos indivíduos. As interações entre indivíduos produzem a sociedade e esta, retroagindo sobre a cultura e sobre os indivíduos, tornando-os propriamente humanos. (MORIN, 2012, p.52)

A cultura e a sociedade realizam os indivíduos, e as interações entre os

indivíduos permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da

sociedade. A relação entre estes três termos é dialógica, ou seja, o

complementar pode se tornar antagônico, sendo que eles são também meios e

fins uns dos outros.

O epicentro deste sistema auto-organizacional total será o cérebro

biúnico, triúnico e polifônico; ponto crucial de todas estas relações mútuas,

centro de ligação entre o sistema genético, o indivíduo, o sistema cultural, a

sociedade. Nesta dialética construtiva, a cerebralização surge como chave de

auto-organização humana e eixo de desenvolvimento que remete tanto à

evolução biológica quanto à morfogênese tecnosociocultural. O cérebro é a

placa giratória biocultural, para Morin (1979), e se torna efetivamente o nó

górdio da antropologia. O enorme cérebro do sapiens aparece como ponto de

convergência, de chegada, de partida e de divergência de uma formidável

aventura; o término da hominização é, ao mesmo tempo, um começo.

O homem que se realiza em homo sapiens é uma espécie juvenil e infantil; seu cérebro genial é débil sem o aparelho cultural; suas aptidões tem todas as necessidades de ser alimentadas com a mamadeira. É aqui que se completa a hominização, no inacabamento definitivo, radical e criador do homem. (MORIN, 1979, p. 96)

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CAPÍTULO II. O processo social de inovação tecnológica e a metamorfose humano-mundial

No processo de tecnização e das inovações tecnológicas advindas desde

a revolução industrial e na era da máquina, Marcuse (1999), antevê uma saída

aos homens com o processo de mecanização e padronização com base na

racionalidade tecnológica que poderia contribuir para mudar o centro de

gravidade das necessidades da produção material para a arena da livre

realização humana. Ou seja, quanto menos for necessária a afirmação da

individualidade nos desempenhos sociais padronizados, mas ela poderá ir para

um terreno “natural” livre, possibilitando novas formas de individualização.

Pode-se considerar, nesta direção, que a tecnologia não é neutra, mas o seu

sentido e sua potencialidade estarão nos usos que se faz dela.

Em meados do século XX se viverá uma nova revolução, também

alicerçada num componente de inovação, mas agora com base nas novas

tecnologias de informação e comunicação – NTIC. A revolução informacional,

como apontou Lojkine (1995), não se limitou somente a sua dimensão

tecnológica, mas se estendeu a todos os campos estratégicos das informações

presentes em nossa vida cotidiana, ou seja, o econômico, o político e, também,

a arte, a ética, a ideologia etc. A divisão antes colocada entre a produção e os

serviços, entre o espaço da fábrica e o da cidade, deixam de fazer sentido, pois

inicia-se uma estreita interconexão entre produção e serviços, espaço

profissional e espaço residencial, empresas, laboratórios e coletividades

territoriais. A comunicação entre homens deixará de ser privi légio dos gestores

da informação, expandindo-se amplamente, em especial, nos espaços da

produção.

A revolução informacional orientada pelo desenvolvimento tecnocientífico

levou as novas tecnologias de informação e comunicação ao seu centro e,

segundo Tapias (2006), este pode ser considerado um processo de profunda

transformação de nossa vida, de nossa sociedade e de nós mesmos. Motivo

pelo qual foi uma etapa decisiva de nossa civi lização tecnológica. Imersos

nesse processo de mudança, se percebe que todas as culturas desenvolveram

diferentes técnicas, compreendidas aqui como uma constante antropológica,

que com sua diversidade de manifestações gerou a “tecnosfera” como âmbito

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estruturado da ação instrumental humana e que vem promovendo uma

civilização propriamente tecnológica.

Nela, é a lógica da técnica, mobilizada a partir do interesse pelo domínio da natureza – por sua vez impulsionado em nosso contexto capitalista pelo interesse econômico do incremento dos benefícios na dinâmica do mercado – que impregna os outros âmbitos da cultura com a instrumentalidade do tipo de razão nela exercido. (TAPIAS, 2006, p. 22)

Convivemos na atualidade com inovações tecnológicas que se situam na

continuidade de uma longa trajetória de desenvolvimento técnico e científico.

Para Tapias (2006),

[...] estamos no que agora é a última fase de um processo cujas raízes estão muito distantes; em última análise, tão distantes quanto a origem evolutiva da humanidade, visto que a técnica, como constante antropológica, acompanha o homem desde o princípio. Sem dúvida, a história humana está marcada em ampla medida pelas mudanças tecnológicas. (TAPIAS, 2006, p.26)

A comunicação linguística, por exemplo, que acompanha como condição

o nascimento e o desenvolvimento da tecnologia, é também, para Tapias

(2006), a comunicação mediante a linguagem humana, ou seja, exclusivamente

do homem enquanto linguagem simbólica que se desenvolveu como uma das

“primeiras tecnologias”. Ortega apud Tapias (2006) afirma que “o homem

começa quando começa a técnica” ou que “um homem sem técnica não é um

homem”. Assim, pode-se afirmar que houve uma coevolução dos seres

humanos e de suas máquinas. Parafraseando Nietzsche, diz Tapias (2006), as

“máquinas são humanas, demasiadamente humanas”, reconhecendo ao

mesmo tempo que a conformação evolutiva da humanidade se deve muito à

técnica, desde os instrumentos líticos, o fogo, a roda, e que ela continuará

incidindo no modo como se apresenta a humanidade no futuro, a humanidade

dos computadores, dos meios de comunicação, da biotecnologia. Por isso, a

técnica – como se viu no processo de hominização, cerebralização e

culturalização – é indispensável à cultura humana em todos os tempos e

lugares, marcando a experiência profunda do que é sermos humanos.

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Algo mais do que a reprodução dessa constante acompanhou a

humanidade e sua evolução, diz Tapias (2006): a técnica como fabricação e o

uso de instrumentos como “prolongamento” do próprio corpo, visando a uma

eficácia maior no ambiente externo imediato. O que se vê atualmente

transcende a presença dinâmica da constante da “fabricação de instrumentos”,

pois, em geral, a tecnologia implica em técnicas, mas não se reduz somente a

elas. Assim, a tecnologia pode ser definida, segundo Tapias (2006), como

[...] uma atividade ou sistema de ações socialmente estruturado, no qual, depois da longa etapa da fabricação e uso de ferramentas, e sobrepujando inclusive o que depois foi utilização de um instrumental que, por suas dimensões e complexidade, entendemos como maquinaria, o próprio e definitório do tecnológico é sua integração em processos produtivos industriais e sua estreita vinculação com o conhecimento cientifíco – de tudo o que, obviamente, já não podemos dizer que seja mera constante antropológica. (TAPIAS, 2006, p.27-28)

As tecnologias atuais alcançaram uma potência inusitada de sua

capacidade de construção de mundo e se encontram em um nível inédito na

história da humanidade. Viabilizadas, sobretudo, pela industrialização da

ciência e da técnica, que multiplicou sua incidência na configuração da

realidade. Segundo Tapias (2006), essas tecnologias implicam mais do que o

uso de técnicas por si só, mas resultam do racionalismo cultural do Ocidente,

como revelaram as análises de Max Weber a esse respeito e também como

apontado por Hebert Marcuse no capítulo anterior. As tecnologias ocidentais

possuem uma ânsia de controle da natureza, diz Joan-Carles Mèlich apud

Tapias (2006), se tornando, de fato, um incontrolado poder sobre a sociedade,

isto é, a tecnocracia:

A tecnologia é um instrumento que se transforma num fim. Toda cultura teve e tem técnicas, mas a tecnologia é um invento ocidental. À medida que o ser humano penetra no universo tecnológico, em sua ideologia e axiologia, mais lhe custa libertar-se dele. A tecnologia, como jogo de linguagem e, por isso mesmo, como forma de vida, cria dependência. O homem ocidental perdeu a relação com o espaço e o tempo sagrados e se transformo em prisioneiro de um tempo e uma espaço destituídos de símbolos e desmistificados. O ser humano ocidental ficou fechado nas grades do “conceito” cientifico. (TAPIAS, p. 29, 2006)

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As novas tecnologias da informação e comunicação passaram a fazer

parte de diversas aplicações e usos, diz Castells (2005), produzindo inovações

tecnológicas, ampliando as transformações e acelerando a velocidade e sua

interação com a sociedade. A sociedade informacional apresenta-se como um

novo modelo em construção no século XXI. Nela, as inovações de uma nova

cultura que vinha sendo gestada, segundo Tapias (2006), irá dos modos e das

relações de produção às experiências e valores em torno dos quais grupos e

indivíduos constroem suas identidades. As novidades são tantas e com tal

profundidade que alguns entusiastas falam de um novo mundo: o mundo

digital. Um perspicaz observador da cultura, Ignácio Ramonet apud Tapias

(2006) diz que,

[...] o desenvolvimento espetacular das tecnologias da informação e comunicação desencadeia em escala planetária um fenômeno de transformação civilizacional: a era industrial e a “sociedade de consumo” abandonam pouco a pouco seu lugar em favor do que se denomina “sociedade da informação” (TAPIAS, 2006, p. 21).

A expressão “novas tecnologias”, que se discutirá no decorrer deste

trabalho, segundo Tapias (2006), pode ser compreendida como um:

[...] conjunto de tecnologias que abrangem diversos campos: computadores, sistemas de interação de computador e usuário, digitalização da informação, comunicações via satélite, telefonia (na atualidade, especialmente telefonia móvel) e redes de comunicação, além do desenvolvimento de tudo o que se refere a fibra ótica[...] Deve-se acrescentar a isso o que tange aos meios audiovisuais, com o quais os computadores e meios telemáticos interagem. (TAPIAS, 2006, p.14)

O desenvolvimento tecnológico se expandiu a partir do mundo ocidental

para outros países e culturas distintas, contribuindo para a formação do que

atualmente é uma civi lização planetária. Sua viabilização se efetivou pelo

entrelaçamento, como afirma Tapias (2006), de condições econômicas, sociais,

políticas e culturais que configuraram um contexto propício para gestação e

difusão destas novas tecnologias, com uma profundidade e a escala que ainda

se verifica hoje, prosseguindo com uma intensidade ainda maior, como se

verifica com o passar dos primeiros anos do século XXI. Para Karl Marx apud

Tapias (2006), “a tecnologia nos desvela a atitude do homem diante da

natureza, o processo direto de produção de sua vida e, portanto, das condições

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de sua vida social e das ideias e representações espirituais que delas derivam.”

(TAPIAS, 2006, p. 22-23)

Desse modo, o papel da técnica como fator configurador de nossa

realidade civilizatória se insere numa longa sequência de desenvolvimento

tecnológico da atual revolução informacional. Segundo Lewis Mumford apud

Tapias (2006), o desenvolvimento da técnica se trata de uma relação que pode,

com acerto, ser chamada de “dialética”, na qual

[...] as aquisições da técnica nunca são registradas automaticamente na sociedade; pelo contrário, requerem igualmente valiosas invenções e adaptações no âmbito político, pois, caso não seja assim, a mais refinada técnica não é proveitosa a nossa sociedade do mesmo modo que uma lâmpada de nada serve a um macaco em meio à selva. (TAPIAS, 2006, p. 23)

Numa ampla e multidimensional trajetória de desenvolvimento cultural, a

revolução informacional substituiu a segunda revolução industrial, que ocorreu

a partir da eletricidade, que foi sua energia central. Em seguida, foi

complementada pelos derivados de petróleo e da energia nuclear, de forma

análoga, a primeira revolução industrial, que esteve centrada na máquina a

vapor e no carvão como fontes de energética principal. Contudo, para Tapias

(2006), esta última revolução mais recente pressupõe uma mudança de sinal

com relação às anteriores, ao deslocar, no nível da produção, a importância

dos insumos de energia dos quais dependia de forma decisiva, para os

insumos de informação dos quais a produção e sua estruturação passam a

depender para uma maior eficiência.

Esta mudança coloca a informação - e com ela o conhecimento,

enquanto informação ordenada e sistematizada - no cerne e passam a

constituir uma força produtiva central valorizada. Na medida em que a

produtividade ao menor custo e com uma margem maior de benefício aumenta,

também cresce, em proporção direta, a informação que tecnologicamente pode

ser incorporada ao processo de produção de bens e serviços. “Trata-se da

globalização de uma economia transnacional, induzida pela revolução

informacional que se estende pelo mundo sob a máscara do capitalismo

financeiro que ela própria propiciou”, afirma Tapias (2006). A globalização vem

modificando irreversivelmente nosso mundo e não se pode esquecer que no

interior desta dinâmica ampla e complexa há um forte componente de um

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projeto político nos fazendo reparar mais em sua questionabilidade. Neste

sentido, Jonh Grey (apud Tapias, 2006) formulará:

Um único mercado global é um projeto político muito característico do final do século XX. É bom recordar isso e estabelecer uma importante distinção. Esse projeto político tem uma duração muito menor do que a globalização da vida econômica e cultural que começou na Europa no principio da Era Moderna – a partir do século XV – e está programado para avançar durante séculos. Para a humanidade do final da Era Moderna, a globalização é um destino histórico. Seu mecanismo básico é a veloz e inexorável expansão das novas tecnologias em todo o mundo. Essa modernização guiada pela tecnologia da vida econômica mundial seguirá em frente independente do destino de um mercado global. A crescente interconexão mundial não depende da ortodoxia do FMI. Só uma catástrofe ecológica pode freá-la ou adiá-la. (TAPIAS, 2006, p.24-25)

2.1 Da globalização à sociedade-mundo: uma nova via é possível

Com os avanços referidos advindos da disseminação do uso das novas

tecnologias de informação e comunicação pelo mundo, sobretudo a partir da

década de setenta, observou-se, segundo Santos (2002), que as interações

transnacionais tiveram uma intensificação dramática - a partir da globalização

dos sistemas de produção; das transferências financeiras; da disseminação em

escala mundial de informação e imagens através dos meios de comunicação; e

também pelas deslocações em massa de pessoas, quer seja como turistas, ou

como trabalhadores migrantes ou refugiados. Este fenômeno social de

amplitude e profundidade levaram alguns autores, segundo Santos (2002), a

pensar este momento como uma ruptura de formas de interação

transfronteiriças frente aos momentos anteriores, designado com diversas

novas nomenclaturas como “globalização”, “formação global”, “cultura global”,

“sistema global”, “modernidades globais”, dentre outras.

Anthony Giddens apud Santos (2002) definirá a globalização como “a

intensificação de relações mundiais que unem localidades distantes de tal

modo que os acontecimentos locais são condicionados por eventos que

acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa”. Por sua vez,

Featherstone apud Santos (2002) desafiará a sociologia a

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[...] teorizar e encontrar formas de investigação sistemática que ajudem a clarificar estes processos globalizantes e estas formas destrutivas de vida social que tornam problemático o que por muito tempo foi visto como objeto mais básico da sociologia: a sociedade concebida quase exclusivamente como o Estado-nação bem delimitado. (SANTOS, 2002, p.26)

Neste sentido, a globalização anuncia o fim do sistema nacional enquanto

núcleo central das atividades e estratégias humanas organizadas e, para o

Grupo de Lisboa, afirma Santos (2002), será considerada como uma fase

posterior à internacionalização e à multinacionalização.

Os processos de globalização nos mostram, como aponta Santos (2002),

que estamos frente a um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas,

sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas que se interligam de um modo

complexo, no qual as explicações monolíticas ou monocausais parecem pouco

adequadas. O processo de globalização - ao invés de combinar

homogeneização e uniformização, como algumas teorias da modernização e

do desenvolvimento sustentavam - traz consigo a universalização e a

eliminação das fronteiras nacionais, por um lado, e o particularismo, a

diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro.

Além disso, interage de modo muito diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são concomitantes, tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a falência e ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como uma condição política para a assistência internacional, etc. (SANTOS, 2002, p.26)

Nesta perspectiva, a globalização, apesar de uma forte tendência para

reduzi-la às suas dimensões econômicas, afirma Boaventura (2002), possui

também uma dimensão social, política e cultural. Longe de ser consensual,

apresenta-se como um campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e

interesses hegemônicos, e grupos sociais e Estados e interesses subalternos,

no qual o campo hegemônico atua na base de um consenso entre os seus

mais influentes membros.

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Como aconteceu com os conceitos que a precederam - como

modernização e desenvolvimento - para Santos (2002), o conceito de

globalização tem um componente descritivo e outro prescritivo. A prescrição foi

um conjunto de prescrições ancoradas no consenso hegemônico - conhecido

como “Consenso de Washington” ou “consenso neoliberal” – que, a partir da

década de oitenta, passou a ser subscrito pelos países centrais do sistema

mundial, para o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e,

mais especificamente, sobre o papel do Estado na economia. Porém, nem

todas as dimensões da globalização estavam prescritas nesse consenso.

Apesar deste conceito se encontrar fragilizado atualmente - por conta dos

conflitos dentro do campo hegemônico e também da resistência que vem

surgindo, protagonizada pelo campo subalterno ou contra hegemônico - foi

através dele que se chegou até os dias de hoje, e suas características de

paternidade são dominantes na globalização e, com a grande crise econômica

de 2008, esse modelo fragilizou-se ainda mais.

A globalização pode ser considerada um processo, segundo Castells

(1998), no qual as atividades decisivas em um âmbito de ação determinado (a

economia, os meios de comunicação, a tecnologia, a gestão do meio ambiente,

crime organizado) funcionam como unidade de tempo real em todo o planeta.

Para o autor, estamos diante de um processo historicamente novo - distinto da

internacionalização e da existência de uma economia mundial - porque

somente nas décadas de oitenta e noventa se constituiu um sistema

tecnológico (telecomunicações, sistemas de informação interativos, transporte

em alta velocidade para pessoas e mercadorias em escala mundial) que

viabilizou a dita globalização.

A informatização da sociedade, a partir da revolução tecnológica que se

constituiu como um novo paradigma operativo nos anos setenta, foi a base da

globalização da economia, que se constituiu como sistema econômico

articulado, globalmente funcionando com regras cada vez mais homogêneas

entre as empresas e os territórios que a constituem. E, pela primeira vez na

história, toda a economia do planeta é capitalista.

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Mas nem tudo é global, segundo Castells (2002), pois a realidade da

maioria das pessoas, da atividade econômica, do emprego, da experiência

humana e de comunicação simbólica é local e regional. As instituições

nacionais continuam sendo dominantes do ponto de vista político e continuarão

a ser num futuro próximo. Contudo, os processos estruturantes da economia,

da tecnologia e da comunicação estão se tornando cada vez mais globalizados,

como se vê no caso dos mercados financeiros, das redes de produção e

comércio das principais indústrias, dos serviços estratégicos das empresas e

dos grandes meios de comunicação e da ciência e da tecnologia.

O sistema global constituído atualmente possui uma estrutura de rede

que, se valendo da flexibilidade proporcionada pelas tecnologias de

informação, conecta tudo aquilo de valor e desconecta daquilo sem valor e

desvalorizado, ou seja, pessoas, empresas, territórios e organizações.

Consequentemente, a globalização pode ser entendida como um processo de

segmentação e diferenciação, diz Castells (1998). Ao mesmo tempo em que se

verifica a conexão das empresas multinacionais e suas redes auxiliares que se

inter-relacionam com os mercados financeiros, se observa a marginalização de

grupos sociais, de pessoas, de atividades e às vezes de países e regiões

inteiras do planeta. A globalização possui sua faceta de dinamismo produtivo,

com inclusão dos criadores de valor, e também de marginalização social, com

a exclusão daqueles que não podem ser produtores ou consumidores, na

perspectiva da produtividade, competitividade e ganho, que se constituem

como critérios fundamentais para os mercados desregulamentados e

economias privatizadas.

Um dos efeitos mais importante e amplamente reconhecido da

globalização multidimensional sobre a capacidade de intervenção do Estado

nacional é a globalização do capital e a interdependência dos mercados

financeiros. O imperativo dos mercados globais sobre as políticas econômicas

nacionais significará a perda definitiva da soberania da economia nacional,

mas, apesar disso, a capacidade de intervenção ainda continua. Neste novo

cenário, os Estados, precisarão navegar no sistema financeiro global e adaptar

suas políticas às exigências e conjecturas do sistema.

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A globalização econômica foi, para Santos (2002), sustentada pelo

consenso econômico neoliberal, baseado em três principais inovações

institucionais: restrição drástica à regulação estatal da economia; novos direitos

de propriedade internacional para investidores, inventores e criadores de

inovações; e subordinação dos Estados nacionais às agências multilaterais,

como Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio. Saskia Sassen

apud Santos (2002) dirá que estamos diante de um novo regime internacional,

baseado na ascendência dos bancos e dos serviços internacionais, no qual as

empresas multinacionais se tornaram um importante elemento na estrutura

institucional, juntamente com os mercados financeiros globais e os blocos

comerciais transnacionais. Todas estas mudanças contribuíram para o

aparecimento de novos locais estratégicos na economia global, zonas de

processamento para exportação, centros financeiros e cidades globais. A

concentração de riqueza produzida pela globalização neoliberal, como chamou

Santos (2002), atingiu proporções escandalosas no país que liderou a

aplicação deste novo modelo econômico, os EUA.

Já no final da década de oitenta, segundo dados do Federal Reserve Bank, 1% das famílias norte-americanas detinham 40% da riqueza do país e as 20% mais ricas detinham 80% da riqueza do país. Segundo o banco esta concentração não tinha precedentes na história do EUA, nem comparação com outros países industrializados. (SANTOS, 2002, p. 34).

Na globalização social, o consenso neoliberal de crescimento e

estabilidade econômicos se assenta na redução dos custos salariais, para

liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos liberais, proibindo

indexação dos salários aos ganhos de produtividade e eliminando a prazo a

legislação dos aumentos salariais. A economia é dessocializada e o conceito

de consumidor substitui o de cidadão. O critério de inclusão deixa de ser o

direito, para passar a ser solvência; os pobres são os insolventes e, para isso,

o Estado deve adotar medidas de luta contra a pobreza - de preferência,

medidas compensatórias que diminuam, mas não eliminem a exclusão, um

dado inevitável do desenvolvimento assente no crescimento econômico e na

competitividade global. Este consenso neoliberal entre os países centrais do

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sistema mundial é imposto aos países periféricos e semiperiféricos, através do

controle da dívida externa efetuado pelo FMI e pelo Banco Mundial, instituições

estas, consideradas responsáveis pela “globalização da pobreza”, afirma

Santos (2002).

A globalização pode ser designada para Santos (2002) como

[...] conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. (SANTOS, 2002, p. 55)

Segundo o autor, existe uma falácia do determinismo quando se fala em

globalização, considerando-se que este é um processo espontâneo,

automático, inelutável e irreversível, que se intensifica e avança segundo uma

lógica e uma dinâmica próprias, suficientemente fortes para se imporem a

qualquer interferência externa.

A convergência entre os países na economia global é tão significativa

quanto a divergência, segundo Santos (2002), o que é particularmente notório

entre os países centrais. Esta falácia tem perdido a credibilidade à medida que

a globalização se transforma num campo de contestação social e política.

Se para alguns ela continua a ser considerada como grande triunfo da racionalidade, da inovação e da liberdade capaz de produzir progresso infinito e abundância ilimitada, para outros ela é anátema já que no seu bojo transporta a miséria, a marginalização e a exclusão da grande maioria da população mundial, enquanto retórica do progresso e da abundância se torna realizada apenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados. (SANTOS, 2002, p. 53)

Como um conjunto de relações sociais, as globalizações envolvem

conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente o discurso da

globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios, na qual a

vitória é tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer da cena.

A “globalização” e seu impacto sobre a identidade é um dos principais

aspectos neste processo de mudança vivido recentemente e pode ser

compreendida como um complexo de processos e forças de mudança,

sintetizado por Anthony McGrew apud Hall (2006):

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[...] “a globalização” se refere àqueles processos atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado. A globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço. (HALL, 2006, p.68)

Um dos aspectos mais importantes da globalização são as novas

características do tempo e espaço, resultantes da compreensão de distâncias e

de escalas temporais, com efeitos sobre as identidades culturais.

A identidade, para Hall (2006), está profundamente envolvida no processo

de representação. A moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no

interior de diferentes sistemas de representação possuem efeitos profundos

sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas. Em suma,

todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos.

Segundo Anthony Giddens apud Hall (2006):

Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas pela presença - por uma atividade localizada. [...] A modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão “ausentes”, distantes (em termos de local), de qualquer interação face-a-face. Nas condições da modernidade...., os locais são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distante deles. O que estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza. (HALL, 2006, p.72).

Para compreender a essência deste período, Marx apud Hall (2006)

caracteriza este momento como o permanente revolucionar da produção, o

abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento

eternos. Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas

representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações recém-

formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo o que é sólido se

desmancha no ar. As sociedades modernas podem ser consideradas como

sociedades em mudança constante, rápida e permanente.

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Segundo Giddens apud Hall (2006), a medida em que áreas diferentes do

globo são postas em interconexão umas com as outras, ondas de

transformação social atingem virtualmente toda a superfície da terra. As

transformações do tempo e do espaço são denominadas pelo autor de

“desalojamento do sistema social”, ou seja, a “extração” das relações sociais

dos contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de escalas

indefinidas de espaço-tempo.

Um ponto central na questão do entendimento da identidade cultural na

modernidade tardia é entendido por Giddens apud Hall (2006), como “as

descontinuidades”, ou seja,

[...] os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais intimas e pessoais de nossa existência cotidiana. (HALL, 2006, p.16)

Assim, a identidade cultural surgirá, segundo Hall (2006), através de

aspectos como nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, linguísticas,

religiosas e, acima de tudo, nacionais. Para o autor, nos defrontamos com um

tipo diferente de mudança estrutural transformadora das sociedades modernas

no final do século XX. As identidades modernas estão sendo “descentradas”,

deslocadas ou fragmentadas, ou seja, as paisagens culturais de classe,

gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado nos tinham

fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais, estão a ser

fragmentadas na modernidade tardia.

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Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, 2006, p.9)

Todos estes processos representam uma transformação fundamental e

abrangente sobre a qual deveríamos nos indagar se não é a própria

modernidade que está a se transformar. As concepções de sujeito passaram

ao longo do tempo por variações em suas definições de identidade. Segundo

Hall (2006), o sujeito moderno - como aquele relacionado ao iluminismo, no

qual o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa humana, tida

como indivíduo, centrado, unificado, dotado das capacidades de razão,

consciência e ação - surgia quando o sujeito nascia e se desenvolvia,

permanecendo essencialmente o mesmo ao longo de sua existência.

Atualmente, nota-se uma transformação neste processo:

[...] o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (HALL, 2006, p.12).

As mudanças estruturais e institucionais são parte de um processo a

partir do qual se produz o sujeito pós-moderno como aquele sem identidade

fixa, essencial ou permanente. Segundo Hall (2006), a identidade torna-se uma

celebração “móvel”; o sujeito assume identidades diferentes, em momentos

diferentes, e que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. “Dentro de

nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal

modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. A

identidade unificada, para Hall (2006), é uma fantasia, pois os sistemas de

significação e representação cultural são múltiplos e somos confrontados com

uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com

as quais poderíamos nos identificar mesmo que temporariamente.

Os impactos da globalização sobre a identidade cultural, para Bauman

(2005), passam pela relação estado-nação; isto significa que o Estado não tem

mais o poder ou o desejo de manter uma união sólida e inabalável com a

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nação. Segundo o autor, tendo transferido a maior parte de suas tarefas

intensivas em mão-de-obra e capital aos mercados globais, os Estados têm

muito menos necessidade de suprimentos de fervor patriótico. Até mesmo o

patriotismo, o ativo mais zelosamente preservado pelos Estados-nações

modernos, foi transferido às forças do mercado e foi por elas remodelado para

aumentar os lucros dos promotores do esporte, do show business, de

festividades comemorativas e da indústria da memorabilia. No outro extremo,

as pessoas em busca de identidade encontram pouca segurança, para não

falar em plenas garantias, dos poderes do Estado, que reteve apenas

minguados remanescentes de uma soberania territorial que um dia já foi

indomável e indivisível.

Pierre Bourdieu batizou de pensée unique do livre mercado neoliberal plenamente desregulado, enquanto os direitos sociais são substituídos um a um pelo dever individual do cuidado consigo mesmo e de garantir a si mesmo vantagem sobre os demais. ...As identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, captura-las em pleno voo, usando os seus próprios recursos e ferramentas. (BAUMAN, 2005, p.34 e 35).

Um perspicaz observador da cena cultural contemporânea, segundo

Bauman (2005), é Andy Hargreaves, um atento observador da realidade atual,

que diz:

Em aeroportos e outros espaços públicos, pessoas com telefones celulares equipados com fones de ouvido ficam andando para lá e para cá, falando sozinhas e em voz alta, como esquizofrênicos paranoicos, cegas ao ambiente ao seu redor. A introspecção é uma atitude em extinção. Defrontadas com momentos de solidão em seus carros, na rua ou nos caixas de supermercado, mais e mais pessoas deixam de se entregar a seus pensamentos para, em vez disso, verificarem as mensagens deixadas no celular em busca de algum fiapo de evidência de que alguém, em algum lugar, possa deseja-las ou precisar delas. (BAUMAN, 2005, p.32)

Para Baumaun (2005), quando a identidade perde suas âncoras sociais,

aparentemente naturais, predeterminadas e inegociáveis, a “identificação”

torna-se o caminho mais importante aos indivíduos em busca de um “nós”.

Como cita Lars Dencik apud Bauman (2005):

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As afiliações sociais – mais ou menos herdadas – que são tradicionalmente atribuídas aos indivíduos como definição de identidade: raça... gênero, país ou local de nascimento, família e classe social agora estão... se tornando menos importantes, diluídas e alteradas nos países mais avançados do ponto de vista tecnológico e econômico. Ao mesmo tempo, há a ânsia e as tentativas de encontrar ou criar novos grupos com os quais se vivencie o pertencimento e que possam facilitar a construção da identidade. Segue-se a isso um crescente sentimento de insegurança[...] (BAUMAN, 2005, p. 30)

Atualmente, segundo Bauman (2005), os “grupos” que os indivíduos

destituídos pelas estruturas de referência ortodoxas tentam encontrar ou

estabelecer tendem a ser eletronicamente mediados, frágeis “totalidades

virtuais”, nas quais é fácil entrar e ser abandonado. Dificilmente poderiam ser

um substituto válido das formas sólidas de convívio capazes de prometer um

reconfortante “sentimento de nós”, não oferecido quando se está “surfando na

rede”. Estamos perdendo a capacidade de estabelecer interações com as

pessoas reais, diz Clifford Stoll apud Bauman (2005), e, concordando com

Charles Handy apud Bauman (2005), afirma que as comunidades virtuais

podem até ser engraçadas, mas elas criam apenas uma ilusão de intimidade e

um simulacro de comunidade, não podendo ser um substituto válido de uma

conversa real. Tampouco estas “comunidades virtuais” poderiam dar

substância à identidade pessoal, pois a fragilidade desta é a razão básica para

procurá-las.

Na era líquido-moderna, para Bauman (2005), o mundo à nossa volta está

repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto nossas existências

individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. A

principal força motora por trás deste processo, para o autor, tem sido, desde o

princípio, a acelerada “liquefação” das estruturas e instituições sociais. Ou seja,

estamos em transição da fase “sólida” da modernidade para a fase “fluída”. São

denominados “fluídos” pois conseguem manter a forma por pouco tempo e

porque, mesmo que sejam derramados num recipiente, continuam sendo

influenciados até mesmo pelas menores forças. Neste ambiente , o futuro é

incerto, as estruturas disponíveis podem não durar muito tempo e estão em

constante transição numa velocidade cada vez maior. Como comenta Bauman

(2005), é como habitar um universo desenhado por Escher, onde ninguém, em

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lugar algum, pode apontar a diferença entre um caminho ascendente e um

declive.

A dificuldade de se pensar o presente é apontada por Morin (2013). Para

o autor, o presente se encontra imperceptível a não ser pela superfície e

quando trabalhado em profundidade em galerias subterrâneas, por correntes

invisíveis, sob um solo aparentemente sólido e firme. O conhecimento se

encontra desorientado pela rapidez da evolução e das mudanças atuais e

também pela própria complexidade da globalização, com inumeráveis inter-

retroações entre processos diversos nos âmbitos econômico, social,

demográfico, político, ideológico, religioso etc. O fenômeno da mundialização,

diz Morin (2013), teve seu início no século XV, com a conquista das Américas e

a circum-navegação de Vasco da Gama. A globalização por sua vez veio se

constituindo com o atual estado da mundialização, tendo início, segundo Morin

(2013), sobretudo em 1989, após a queda das economias ditas socialistas,

quando se aprofundou aquilo que “a partir dos anos 1960-1970, os indivíduos

passaram a trazer em si, sem ter consciência disso, a presença do todo

planetário.”. Compreendendo a globalização enquanto o resultado da

conjunção e o circuito retroativo do desenvolvimento desenfreado do

capitalismo regido pelo neoliberalismo, para Morin (2013), este fenômeno

propagou-se pelos cinco continentes graças ao desenvolvimento de uma rede

de telecomunicações instantâneas (fax, telefone celular, internet). Conjunção

essa que efetuou a unificação tecnoeconômica do planeta. Com o término da

União Soviética, a globalização produziu uma onda democratizante em

diversas nações, com a valorização dos direitos humanos e da mulher, mas os

resultados ainda permanecem incertos, limitados e até mesmo combatidos.

Englobou, na perspectiva de Morin (2013), alguns processos simultaneamente

concorrentes e antagônicos de homogeneização e padronização, segundo os

modelos norte-americanos, e um contra-processo de resistências e

reflorescimento de culturas autóctones e de mestiçagens culturais.

Enfim, a globalização produziu a infratextura de uma sociedade-mundo

que requer um território que comporte intercomunicações permanentes e

inumeráveis, com uma economia mundializada. Porém, ao mesmo tempo, essa

sociedade, que deveria controlar sua própria economia, exibe agora falhas e

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revela a ausência de autoridades legítimas com poder de decisão, o que,

segundo Edgar Morin (2013), fragiliza ainda mais a formação da consciência de

uma comunidade de destino, indispensável para que essa sociedade se

transforme em Terra-Pátria. A ONU – Organização das Nações Unidas, FAO –

Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, OMC –

Organização Mundial do Comércio e a Unesco – Organização das Nações

Unidas para Ciência, Educação e Cultura são embriões de instituições que a

sociedade-mundo poderia ter a sua disposição; as noções de crime contra

humanidade, que conjugariam esta consciência, aparecem isoladamente com

um Tribunal Internacional com competências limitadas; e uma corrente

altermundialista ainda está a elaborar o seu pensamento. A formação de tal

sociedade acaba sendo impedida pelas soberanias absolutas dos Estados-

nação e também pelo movimento tecnoeconômico da globalização que, ao criar

sua infratextura, provocou resistências – étnicas, nacionais, culturais, religiosas

– à homogeneização mundializante. Todos estes fatores contribuíram para que

a globalização desenvolva uma crise planetária de múltiplas facetas.

A unificação tecnoeconômica do globo, para Morin (2013), está em crise e

seu dinamismo suscita crises múltiplas e variadas em escala planetária,

provocadas por uma mundialização simultaneamente una e tripla: globalização,

ocidentalização e desenvolvimento:

[...] são, assim, os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, justapostas, entre elas a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais que, por si, sós, produzem as crises da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue atingir o estado de humanidade. Encontramo-nos no momento crucial de uma louca aventura, iniciada há 8 mil anos, repleta de crueldade e grandiosidade, de apogeus e desastres, de servidões e emancipações que hoje envolve 7 bilhões de seres humanos. (MORIN, 2013, p. 33)

A globalização constituiu a pior coisa que poderia ter acontecido à

humanidade, segundo Morin (2013). Mas, ao mesmo tempo, foi a melhor coisa,

permitindo pela primeira vez na história humana reunir as condições de se

ultrapassar a história de guerras e de poderes de morte até o ponto de

permitirem um suicídio global da humanidade. O mais interessante neste

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momento é que, graças a infratextura atual, no planeta Terra existe uma

interdependência cada vez maior entre todos e cada um, de nações,

comunidades, indivíduos.

O melhor é que a globalização tenha produzido a infratextura de uma sociedade-mundo; que, nessas condições de uma comunidade de destino e de uma possível sociedade-mundo, possamos visualizar a Terra como pátria sem que ela negue as pátrias existentes, mas ao contrário, as englobe e proteja. (MORIN, 2013, p.36)

Neste horizonte, para Morin (2013), “quando um sistema é incapaz de

tratar de seus problemas vitais, ele se degrada, desintegra ou se revela capaz

de suscitar um meta-sistema apto a tratar de seus problemas: ele se

metamorfoseia.” Com a incapacidade do sistema Terra de se organizar e tratar

de seus problemas vitais, como os riscos nucleares oriundos da disseminação

e talvez privatização da arma atômica; da degradação da biosfera; da

economia mundial desregulamentada ou descontrolada; do retorno das fomes

e conflitos étnico-religiosos que podem degenerar em guerras de civilizações;

a amplificação e aceleração destes processos surgem como um extraordinário

feedback, e são resultados irremediáveis da desintegração dos sistemas

físicos, mas que poderão levar à transformação dos sistemas humanos.

Segundo MORIN (2013), o provável é a desintegração e o improvável, mas

possível, é a metamorfose. Com esta perspectiva de regeneração das

capacidades criadoras, Morin (2013) nos apresenta a noção de metamorfose,

porque considerada mais rica do que a de evolução. Essa noção conserva sua

radicalidade inovadora e conecta-se à conservação da vida, das culturas, da

herança de pensamentos e sabedorias da humanidade.

Não se podem prever as modalidades nem as formas: toda mudança de escala provoca um surgimento criador. Da mesma forma que a sociedade histórica criadora da cidade, do Estado, das classes sociais, da escrita, das divindades cósmicas, dos monumentos grandiosos, das grandes artes, era inconcebível para os humanos das sociedades arcaicas de caçadores-coletores, assim também não podemos conceber ainda a face de uma sociedade-mundo que resultasse da metamorfose. (MORIN, 2013, p. 39)

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Mas para se chegar à metamorfose, Morin (2013) propõe uma mudança

de via, desviando de certos caminhos e corrigindo certos males. Mas, no atual

momento, o que parece ser mais impossível, seria frear a supremacia técnica-

científica-econômica-civilizacional que tem conduzido o planeta ao desastre.

“Tudo sempre começa com uma iniciativa, uma inovação, uma nova

mensagem de caráter desviante, marginal, com frequência invisível aos

contemporâneos. Foi assim que começaram as grandes religiões.” Em todos os

continentes, afirma Morin (2013), já existem efervescências criativas, iniciativas

locais de regeneração econômica, social, política, cognitiva, educacional, ética

e existencial. Mas, encontram-se dispersas, separadas, compartimentadas e

desconhecem a existência uma das outras e deveriam estar ligadas e

conectadas para se constituírem num viveiro do futuro. É deste conjunto de

múltiplas vias que, ao se desenvolverem conjuntamente, poderão se conjugar

para formar a nova Via, que desarticulará a via que seguimos atualmente, nos

levando rumo à invisível e inconcebível metamorfose. Ou seja, para Morin

(2013), a nossa salvação se iniciou pela base. Para que a nova Via seja

possível, é preciso que nos libertemos das alternativas dicotômicas como:

mundialização/desmundialização; crescimento/descrescimento;

desenvolvimento/envolvimento; conservação/transformação.

Será necessário, simultaneamente, afirma Morin (2013), mundializar e

desmundializar; crescer e descrescer; desenvolver e reduzir; conservar e

transformar.

A orientação mundialização/desmundialização significa que, se é preciso multiplicar os processos de comunicação e de planetarização culturais, se é necessário que se constitua uma consciência de Terra-Pátria, uma consciência de comunidade de destino, é preciso promover também, o desenvolvimento local no global. A desmundialização daria uma nova viabilidade à economia local e regional. Ela renovaria a alimentação de proximidade, os artesanatos e os comércios de proximidade, a cultura de vegetais periurbana, as comunidades locais e regionais. (MORIN, 2013, p.42)

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CAPITULO III. A artesania das inovações de nosso tempo: o computador e

a internet

Como se verificou nesta caminhada de transformações socioculturais

traçada até o momento, as novas tecnologias estão mudando o nosso mundo

e, em seu âmbito, a nós mesmos, nossos modos de ser, estar, falar. E nós,

seres humanos, segundo Tapias (2006), o fizemos com particular intensidade

nas últimas décadas, a partir da utilização dos computadores nas mais diversas

dimensões de nossa vida. Para o autor, é com razão que os computadores

tiveram uma surpreendente evolução desde os grandes e lentos aparelhos da

década de 1940 até os leves e velocíssimos computadores de hoje, que

inclusive podem ser portáteis e são capazes de se conectar em rede, se

tornando “máquina por excelência da nova sociedade”:

[...] o computador pessoal é essa “máquina da modernidade” que afeta nossa vida tanto ou mais como em sua época o fizeram o automóvel ou o telefone. Essa incidência é a que se amplia a limites hoje ainda insuspeitados, dada a tendência tecnológica atual à síntese entre computadores e instrumentos de telecomunicação, da qual a internet já é um bom expoente. (TAPIAS, p. 14, 2006)

Diferente da revolução industrial ocorrida na Inglaterra, a revolução

informacional foi organizada, sobretudo, nos Estados Unidos da América –

EUA, em meados da década de 1970, difundindo uma cultura que, oriunda dos

campis norte-americanos, pregava um espírito libertário. Os computadores,

como aponta Pierre Lévy (apud Carvalho, 2000), surgiram destes movimentos

micropolíticos, alimentados pela onda cultural transformadora que caracterizou

a segunda metade da década de 1960 e chegou à primeira metade dos anos

70. Segundo o autor, o computador pessoal foi inventado por “uma pitoresca

comunidade de jovens californianos à margem do sistema”, cujo projeto visava

a colocar a informática em novas bases, mas também, de certa forma,

revolucionar a sociedade.

Nos EUA, os computadores transformaram-se em objetos de consumo de

massa desde os primeiros anos da década de 1980 Nesta corrida da

informatização em empresas, escolas e lares, a venda de computadores

pessoais ultrapassou em cinco milhões unidades a venda de aparelhos de

televisão. Carvalho (2000), para fundamentar a ideia de que os computadores

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inauguram uma novidade na relação homem-técnica, buscará a contribuição de

Jean-Gabriel Ganascia, que, ao descrever sinteticamente a evolução e as

características desse dispositivo técnico, parece nos sugerir que a sua

capacidade de simulação de processos mentais e a crescente invisibilidade

(aparentando imaterialidade) de seus mecanismos podem ser elementos

importantes na sua diferenciação em relação aos objetos técnicos anteriores.

Os computadores passaram a uma posição de destaque na reflexão sobre a

interação entre humanos e a técnica. O uso de mecanismos informáticos

disseminou-se rapidamente por toda a sociedade, desde os controles remotos

de TV, som e vídeo, até a utilização de caixas eletrônicos nas agências

bancárias, substituindo a mão de obra humana.

Outra inovação de destaque deste mesmo momento foi a Internet,

originada na década de 1960, na Agência de Projetos de Pesquisa Avançada

do Departamento de Defesa dos EUA (DARPA), para impedir a tomada ou

destruição do sistema americano pelos soviéticos. O resultado foi uma

arquitetura de rede que, como queriam seus inventores, não poderia ser

controlada a partir de nenhum centro e que é composta por milhares de redes

de computadores autônomos, com inúmeras maneiras de conexão,

contornando barreiras eletrônicas. Segundo Castells (2005), a ARPANET, rede

estabelecida pelo Departamento de Defesa dos EUA, tornou-se a base de uma

rede de comunicação horizontal global composta de milhares de redes de

computadores. Com isso, as novas tecnologias de informação e comunicação,

no decorrer dos anos 80, passaram a integrar o mundo em redes globais de

instrumentalidade, nas quais a comunicação mediada por computadores gerou

uma gama enorme de comunidades virtuais.

É importante considerarmos no constructo do sistema informacional atual

- no qual a Internet se constituiu - além da grande rede das redes, as

comunicações telefônicas, os sistemas audiovisuais (rádio e televisão) e as

novas modalidades de dinheiro eletrônico. Para Pedro Gómez apud Tapias,

(2006),

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A internet é materialmente uma rede física de comunicações que interconecta milhares de nodos, com maior ou menor potência, integrados por grandes computadores capazes de encaminhar mensagens entre escritórios, bibliotecas, centros docentes, casas... entre milhões e milhões de usuários. As modalidades dessas frenéticas trocas de informações são várias, como, por exemplo, a transferência de arquivos (FTP), o diálogo por escrito nos canais IRC, a videoconferência, o correio eletrônico, o instantâneo intercambio de mensagens. Apesar disso, costuma-se chamar a Web quase por antonomásia, de “Internet”. A World Wide Web (WWW), inventada em 1989, consiste num tecido mundial de páginas digitais, regidas por um protocolo que permite localizá-las e estabelecer uma infinidade de hiperenlances entre elas. O conteúdo consiste sempre em informação, mas este pode adotar forma de textos, multimídia, programas, contatos interativos, operações comerciais ou de muitos outros tipos. (TAPIAS, 2006, p. 17)

O computador e a internet estão entre as invenções mais importantes do

nosso tempo. Contudo, Isaacson (2014) comenta que pouco se sabe sobre

seus criadores e pensa-se que estas inovações foram inventadas num sótão ou

numa garagem por inventores solitários, mas, em vez disso, a maior parte

destas inovações da era digital foi criada de maneira colaborativa e

cooperativa. A produção do telefone celular, diz Senett (2015), revela uma

história sobre a superioridade da cooperação em relação à competição na

realização de um bom trabalho. Esta invenção resultou da metamorfose de

duas tecnologias, o rádio e o telefone, e os seus sinais eram transmitidos

anteriormente pelo ar e fios, respectivamente. Porém, em 1970, os militares já

utilizavam equipamentos comparáveis aos telefones celulares, mas eram

grandes e pesados, com faixas específicas de comunicação.

O defeito do telefone com fio era sua imobilidade, sua virtude, a clareza e segurança da transmissão. No cerne dessa virtude está a tecnologia de comutação do telefone fixo, elaborada, testada e refinada ao longo de gerações. Essa tecnologia é que teve de ser mudada para amalgamar o rádio e o telefone. O problema e sua solução eram perfeitamente claros. O que ainda dava muita margem a dúvida, contudo, era a maneira de ligar os dois. (SENETT, 2013, p. 43)

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Estudos nas empresas que tentaram criar a tecnologia de comutação,

realizados pelos economistas Richard Lester e Michael Piore, diz Senett

(2015), constataram que em algumas delas, a cooperação e a colaboração

permitiram abrir caminho na questão da tecnologia de comutação, enquanto

em outras corporações, a competição interna comprometia o empenho dos

engenheiros em melhorar a qualidade dos computadores. A característica

experimental da habilidade artesanal tecnológica com a íntima e fluida conexão

entre a solução de problemas e a detecção dos mesmos fizeram o êxito destas

organizações graças à cooperação, afirma Senett (2015). Uma boa música de

câmara e um bom trabalho orquestral só podem melhorar dessa maneira, por

meio da cooperação, neste sentido, qualquer músico achará perfeitamente

compreensível como surgiu o advento do celular.

Por este prisma, em suas tentativas de definir o caráter do artífice no

século passado, C. Wright Mills apud Senett (2015) diz:

O trabalhador imbuído do ofício artesanal se envolve no trabalho em si e por si mesmo; as satisfações do trabalho são de per se uma recompensa; os detalhes do trabalho cotidiano são ligados no espírito do trabalhador, ao produto final; o trabalhador pode controlar seus atos no trabalho; a habilidade se desenvolve no processo do trabalho; o trabalho está ligado à liberdade de experimentar; finalmente a família, a comunidade e a política são avaliadas pelos padrões de satisfação interior, coerência e experimentação do trabalho artesanal. (SENETT, 2013, p. 38)

O artífice representa uma condição humana especial, a do engajamento,

segundo Senett (2015), como se pode verificar, por exemplo, no sistema Linux,

que é um artesanato público em que o código está disponível a todos e pode

ser utilizado e adaptado por qualquer um. As pessoas se oferecem

voluntariamente e doam seu tempo para aperfeiçoá-lo, em contraste ao código

utilizado na Microsoft, cujos segredos estão entesourados como propriedade

intelectual de uma só empresa. A perspectiva trazida por Senett (2015)

contribui para compreender a cultura de inovação presente no desenvolvimento

das tecnologias de informação e comunicação - em que o espírito de

cooperação destes inventores, empreendedores, pioneiros e hackers que

colaboraram entre si e a habilidade de se trabalhar em equipe foram

fundamentais para torná-los mais criativos e para impulsionar um conjunto de

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inovações capazes de transformar substancialmente a vida, a sociedade e as

pessoas. Nas teias de relações e interações, de trajetórias e ideias que se

deram na vida cotidiana de forma muitas vezes anárquica, sem qualquer

intencionalidade, é que se constituiu em diferentes espaços-temporais um

denso tecido tecnocientífico-sociocultural inovador, no qual o trabalho em

equipe foi central para as inovações de nosso tempo. A atual revolução

tecnológica se desenvolveu com base na criatividade coletiva favorecida por

forças sociais e culturais que propiciaram uma atmosfera de inovação. O

nascimento do que vem se nomeando atualmente de era digital, para Isaacson

(2014), inclui um ecossistema de pesquisa que foi alimentado por gastos

governamentais e gerido por uma colaboração militar-industrial e acadêmica,

indo em direção ao que foi apontado por Pierre Lévy (2000), Manuel Castells

(2005) e Antonio Perez Tapias (2006).

A inovação na era digital, segundo Isaacson (2014), teve em cena várias

forças pessoais, culturais e históricas. A internet, por exemplo, originalmente foi

construída para facilitar a colaboração, e os computadores pessoais, em

especial os de uso doméstico, foram pensados como ferramenta para

criatividade individual. O desenvolvimento das redes e dos computadores

domésticos andou separadamente, desde o início dos anos setenta e por mais

de uma década, e se uniram somente mais tarde, nos anos oitenta .

Eles enfim começaram a andar juntos no final dos 1980 com a chegada dos modens, dos serviços on-line e da web. Assim como a combinação de motores a vapor e de processos mecânicos ajudou a fomentar a Revolução Industrial, a combinação do computador com as redes de distribuição levou à revolução digital que permitiu a qualquer um criar, disseminar e acessar qualquer informação a partir de qualquer lugar. (ISAACSON, 2014, p. 15)

De modo geral, se percebe atualmente que a grande maioria das pessoas

compartilha a sensação de que os avanços digitais dos últimos cinquenta anos

estão transformando, ou até revolucionando o modo como vivemos. O sistema

de redes abertas conectadas a computadores controlados individualmente,

afirma Isaacson (2014) - que tendia, assim como foi com a imprensa, a eliminar

a possibilidade de que algum tipo de controle sobre a distribuição de

informação fosse exercido por intermediários, autoridades centrais e

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instituições - proporcionou um acesso mais fácil para pessoas comuns

poderem criar e compartilhar conteúdos. Os usos são uma chave importante

para se compreender o atual momento de transformações processuais na

esfera social, tanto em âmbito comportamental quanto comunicacional. A

colaboração que gestou a era digital não ocorreu somente entre

contemporâneos, mas também entre gerações; ideias foram repassadas de um

grupo de inovadores para o próximo e a criatividade colaborativa incluiu a

colaboração entre humanos e máquinas. Essa criatividade veio, sobretudo,

daqueles que conseguiram unir as artes e as ciências; esta intersecção entre

as humanidades e a tecnologia contribuiu para criar a simbiose homem-

máquina, o centro dessa história. A ideia de inovação nesta intersecção entre a

arte e a ciência não é uma novidade. Para Isaacson (2014), Leonardo da Vinci

seria um modelo, e seu desenho do Homem Vitruviano se tornou um símbolo

da criatividade que floresceu nesta interação das ciências e humanidades.

Ada Bryon, a condessa de Lovelace, chamou esta combinação entre a

arte e as ciências, de ciência poética, unindo sua imaginação rebelde ao

encanto que sentia pelos números. Sua visão proporcionou que visse a beleza

em uma máquina de computação criada por Charle Babbage, celebridade da

matemática e da ciência que havia se estabelecido no circuito social de

Londres, por volta de 1830 do século XIX. A sua Máquina Diferencial era uma

engenhoca mecânica gigantesca que conseguia resolver equações de

polinômios e causava diferentes impressões nas pessoas da época, sendo

chamada por alguns como “a máquina que pensava”. Com base nesta sua

primeira invenção, ele concebeu uma nova ideia, em 1834, de um computador

com um propósito geral que podia desempenhar uma variedade de operações

diferentes, com base em instruções de programação que lhe fossem

fornecidas. Desempenharia uma tarefa, depois poderia ser instruída para

desempenhar outra, podendo até mudar eventualmente de tarefa. Esta

máquina foi batizada por Babbage, como afirmou Isaacson (2014), de Máquina

Analítica.

Estava cem anos à frente de seu tempo; sua concepção revelou-se

consequência de uma combinação de inovações que haviam sido emprestadas

de outros campos, um truque de grandes inventores. Babbage se inspirou em

seus estudos sobre o tear automático, segundo Isaacson (2014), inventado em

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1801 pelo francês Joseph-Marie Jacquard, que havia transformado a indústria

de tecelagem da seda, e inventou um método que consistia em usar cartões

com perfurações para controlar os padrões que os teares criavam, ao usar

ganchos para erguer fios selecionados da trama e uma haste para empurrar o

fio de tecido para baixo. Esses cartões com buracos criados por Jacquard

determinavam quais ganchos e hastes seriam ativados em cada passo da

trama, automatizando a criação de padrões intrincados. Para Babbage, a

tapeçaria seria uma grande ajuda para explicar a natureza de sua máquina de

calcular, a Máquina Analítica.

Contribuindo para o nascimento da era do computador, o digital venceu o

analógico e sua máquina era digital,

[...] o que significa que elas calculavam usando dígitos: números inteiros e distintos como 0,1, 2,3. Em suas máquinas números inteiros eram somados e subtraídos usando rodas dentadas e discos que clicavam um dígito por vez, como contadores. Outra abordagem em relação à computação era construir equipamentos que pudessem imitar ou reconstruir um modelo de um fenômeno físico e então fazer medições no modelo análogo para calcular os resultados. Esses eram conhecidos como computadores analógicos, porque operavam por analogia. Computadores analógicos não se baseavam em números inteiros discreto para fazer seus cálculos; em vez disso, eles usavam funções contínuas. [...] Uma régua de cálculo é analógica; um ábaco é digital. Relógios com ponteiros são analógicos, e aqueles que exibem numerais são digitais.” (ISAACSON, 2014, p.48-49)

Como conta Isaacson (2014), Ada Lovelace foi uma entusiasta deste

conceito de máquina de propósito geral idealizada por Babbage e realizou um

estudo sobre esta invenção. Mais tarde, escreveu um artigo científico que

visualizou um atributo que poderia torná-la impressionante: “a máquina tinha

potencial para processar não só números como quaisquer notações simbólicas,

incluindo notações musicais e artísticas. Ada viu a poesia dessa ideia e passou

a incentivar os outros a ver a mesma coisa”. Os seus apontamentos de 1843

contribuíram para a composição deste artigo que veio a se tornar um marco na

área da computação. Foram explorados conceitos inéditos que teriam

ressonância um século mais tarde com o nascimento do computador. O

primeiro conceito era de uma máquina de propósito geral que pudesse ser

programada e reprogramada para desempenhar uma gama ilimitada e mutável

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de tarefas; ela cita diz Isaacson (2014): “a máquina analítica tece padrões

algébricos assim como o tear de Jacquard tece flores e folhas”. Também

poderia armazenar processar e agir sobre qualquer coisa que pudesse ser

expressa em símbolos: palavras, lógica, música e, em teoria, poderia até

desempenhar operações sobre notações musicais.

“Esse insight se tornaria o conceito fundamental da era digital: qualquer peça de conteúdo, de dados ou de informação – música, imagens, números, símbolos, sons, vídeo – podia ser expressa em formato digital e manipulada por máquinas”. (ISAACSON, 2014, p.39)

A terceira contribuição foi ter descrito, em detalhes, o passo-a-passo do

funcionamento dos chamados programas de computador ou algoritmo. E, por

fim, este conceito levantava aquele que continua sendo o tópico metafísico

mais fascinante que envolve os computadores, aquele que segundo Isaacson

(2014) se refere à “inteligência artificial: as máquinas podem pensar?”. Para

Ada, essa não era uma preocupação e, segundo seus apontamentos, a

“Máquina Analítica não tem nenhuma pretensão de originar algo”. Para muitos

entusiastas de Ada Lovelace, ela é considerada como a “primeira

programadora de computador do mundo”. Isso se deve, sobretudo, por “essa

capacidade de aplicar imaginação à ciência que caracterizou a Revolução

Industrial e também a revolução dos computadores, da qual Ada se tornaria

uma santa padroeira”. Para ela, diz Isaacson (2014), imaginação era “a

faculdade de fazer combinações. Ela reúne coisas, fatos, ideias em

combinações novas, originais, infinitas e sempre em mutação [...]. É ela que

penetra os mundos invisíveis da ciência a nossa volta.” Sua contribuição foi um

tanto profunda quanto inspiradora e ela tem sido celebrada como ícone

feminista e pioneira da computação. Como comenta Isaacson (2014), ela foi

capaz de vislumbrar que as “máquinas se tornariam parceiras da imaginação

humana, tecendo conosco tapeçarias tão belas como aquelas feitas pelo tear

de Jacquard.”

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Em resumo, era uma época semelhante à nossa. Os avanços da Revolução Industrial, entre os quais o motor a vapor, o tear mecânico e o telégrafo, transformaram o século XIX mais ou menos do mesmo modo que os avanços da Revolução Digital – o computador, o microchip e a internet – transformaram o nosso século. No coração de ambas as revoluções estavam inovadores que combinavam imaginação e paixão com tecnologia assombrosa, uma mistura que produziu a ciência poética de Ada e que o poeta Richard Brautigan, no século XX, chamaria de “máquinas de graça amorosa. (ISAACSON, p.21, 2014)

O desenvolvimento social envolvido na criação da internet e do

computador - duas das principais invenções de nosso tempo, a partir das quais,

segundo Nobert Elias (2006), a experimentação não-organizada e difusa, feita

por diversas pessoas, levou aos poucos o conhecimento humano

suficientemente longe - permitiu que se alcançasse uma solução prática para

um problema da sociedade. Após se encontrar a estrutura básica da novidade

tecnológica, segue-se um período de progressos destinado a aprimorá-la.

A implementação destas invenções tecnológicas de grande magnitude

criou novas estruturas organizacionais a partir das quais se operacionalizaram

as inovações desenvolvidas. Como exemplo i lustrativo, as autoestradas, a

legislação de trânsito e as ruas pavimentadas surgiram da necessidade e dos

efeitos de se locomover com os veículos terrestres autopropulsionados

inventados no início do século XX, assim como aconteceu, mais recentemente,

com a criação das novas infraestruturas para a comunicação global que

conectou o mundo via satélites e cabos submarinos4.

Deste desenvolvimento social não-planejado de longa duração, com a

ciência e as artes, surgiu uma gama de inventores - com trajetórias que se

entrelaçaram na teia social - que constituíram suas inovações e se dedicaram a

continuar os avanços de Babbage e Ada Lovelace neste processo de

tecnização. Destacamos alguns deles, citados por Isaacson (2014): Vannevar

Bush, em 1931, inventa o analisador diferencial, um computador analógico

eletromecânico; Alain Turing escreveu, em 1937, um artigo intitulado “Sobre

números computáveis”, descrevendo um computador universal; Howard Aiken

propôs a construção de um grande computador digital, também no mesmo ano;

4 http://www.submarinecablemap.com/#/landing-point/longyearbyen-svalbard-norway

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em 1960, J. C. R. publica um artigo chamado “Simbiose homem computador”;

Doug Engelbart escreverá o artigo “Aumentando o intelecto humano” e

inventará o mouse, em 1963; Ted Nelson publica o primeiro artigo sobre

“hipertexto”, em 1964; Bob Taylor articula rá a fundação da ARPANET, em

1966; Ray Tomlinson inventa o e-mail, em 1971, ano em que foi revelado o

primeiro microprocessador da Intel, o 4004; Vint Cerf e Bob Kahn completam

os protocolos TCP/IP para a internet; o primeiro computador pessoal, chamado

Altair, surge em 1975, Bill Gates e Paul Allen escrevem o programa Basic para

ser usado nele e fundam a Microsoft; ainda no mesmo ano, Steve Jobs e Steve

Wozniac lançam o Apple I; o primeiro Bulletin Board System para internet surge

em 1978; Richard Stallman começa a desenvolver o GNU, sistema operacional

livre, em 1983; a primeira versão do Linux é lançado em 1991, por Linus

Torvald e a World Wide Web é apresentada por Tim Berners-Lee; Larry Page e

Sergey Brin lançam o Google, em 1998, e Ev Willians, o Blogger; a Wikipédia

aparece em 2001, criada por Jimmy Wales e Larry Sanger. Destas inovações,

tantas outras surgiram até os dias de hoje, com base em todo o conhecimento

adquirido pela humanidade em mais de dois séculos. Esta trama de

acontecimentos em diferentes espaço-temporais teceu um conjunto de

inovações capazes de modificar profundamente a vida cotidiana de um mundo

pós-segunda grande guerra mundial, que assistia a profundas mudanças no

cenário político-econômico-sociocultural como, por exemplo, o lançamento do

satélite Sputnik, pela Rússia, em 1957, e a proposta de enviar o Homem à lua,

pelo presidente americano John Kennedy, em 1961, em pleno contexto da

guerra fria.

O lançamento para o universo de um objeto terrestre - feito pelos homens

e que gira em torno da Terra segundo as mesmas leis gravitacionais que

mantêm em movimento os corpos celestes - segundo Hannah Arendt (2010),

ultrapassa em importância todos os outros eventos, inclusive o de fissão do

átomo, e até seria saudado com alegria se não fossem as circunstâncias

políticas e militares de tal iniciativa. Para a autora, não foi motivo de orgulho e

nem de assombro perante a enormidade do poder e dos domínios humanos.

O desenvolvimento gerado em torno das tecnologias - com tudo o que

oferecem de positivo, com a aparência de “tecnologia branda e amigável” -

também possui outro aspecto, que se observa da perspectiva da

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vulnerabilidade que acompanha sua complexidade, como cita Tapias (2006), e

a partir das consequências sociais desencadeadas pelos processos

econômicos e das repercussões culturais das mudanças profundas

introduzidas nos modos de vida das sociedades e dos indivíduos. As

tecnologias nos libertaram da natureza, mas, na mesma medida, criaram novas

dependências, inclusive em relação à própria natureza. Tendemos a esquecer

e perder de vista o interessadamente modo de produção e o sistema

econômico que estão condicionados por possibilidades energéticas e matérias-

primas, no interior dos quais ocorre o atual desenvolvimento tecnológico. O

ensaísta, Theodore Roszak apud Tapias (2006), fez um prognóstico irônico dos

ingênuos visionários das consequências benéficas das “ondas tecnológicas”:

Quase poderíamos crer, a julgar por sua maneira simplista de formular a economia da informação, que breve viveremos graças a uma dieta de disquetes e caminharemos por ruas pavimentadas por microchips. Ao que parece, já não há campos arados, nem minerais que devam ser extraídos, não sendo mesmo necessário fabricar produtos industriais pesados; no máximo, essas necessidades contínuas da vida são mencionadas de passagem e não tardam a perder-se em meio ao crepitar da energia eletrônica pura, que de um modo ou de outro atenderá a todas as necessidades humanas de forma indolor e instantânea. (TAPIAS, 2006, p. 19)

As inovações tecnológicas atuais levantam questões, especialmente

sobre a Internet, que, segundo Tapias (2006), passam pelos abusos de poder

de grandes empresas de informática; pelas mudanças introduzidas em nossa

vida cotidiana, que avançam rapidamente; pela proteção de nossa intimidade; e

pela duvidosa segurança dos intercâmbios realizados através da rede, com as

ameaças costumeiras por contaminação por vírus, que causam estragos às

informações acumuladas nos computadores. Vinton Cerf apud Tapias (2006)

acredita que os problemas que surgem serão resolvidos, pois muito deles

deixaram de ser técnicos e recaíram para o âmbito político ou jurídico, e diz

que,

[...] o mais espantoso é percebermos que dependeremos cada vez mais da confiabilidade da Internet. Fazer esse sistema de milhões de redes suficientemente sólido e resistente – prossegue ele como um surpreende realismo – é um desafio para a geração atual de engenheiros da Internet. O fracasso poderia significar um futuro cada vez mais frágil. (TAPIAS, 2006, p.19)

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Neste mundo tecnoeconômico, mundializado, ocidentalizado e

globalizado, como afirmou Morin (2013), vivemos num intervalo de tempo cuja

característica, para Castells (2005), é a transformação da nossa “cultura

material” pelos mecanismos deste paradigma tecnológico, que se organiza em

torno das tecnologias da informação e comunicação, e que se concretiza

através do conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica,

computação (software e hardware), telecomunicações/radiodifusão e

optoeletrônica. Este conjunto de inovações tecnológicas induziu a um padrão

de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura,

segundo Castells (2005). O registro histórico das revoluções tecnológicas,

conforme foi compilado por Melvin Karanzerb e Carrol Pursell apud Castells,

(2005), mostra que todas são caracterizadas por sua penetrabilidade, ou seja,

por sua penetração em todos os domínios da atividade humana, não como

fonte exógena de impacto, mas como o tecido em que essa atividade é

exercida; em outras palavras, são voltadas para o processo, além de induzir

novos produtos.

A essência da transformação tecnológica atual nos coloca diante de uma

nova morfologia sociocultural caracterizada por este paradigma, a partir do qual

Castells (2005) reúne um conjunto de aspectos representantes da base

material da sociedade da informação.

A primeira característica apontada pelo autor do novo paradigma é a

informação como matéria-prima: são tecnologias para agir sobre a informação

e não apenas informação para agir sobre a tecnologia, como ocorreu nas

revoluções tecnológicas anteriores. A segunda característica seria a

penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias, ou seja, a informação é

parte integral de toda atividade humana e de todos os processos de nossa

existência individual e coletiva - embora, com certeza, não determinados pelo

novo meio tecnológico, como cita Castells (2005). O terceiro aspecto refere-se

à lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações a partir da

utilização das novas tecnologias de informação. Outro aspecto relativo ao

sistema de redes, mas com características próprias ao paradigma da

tecnologia de informação é baseado na flexibilidade, a partir da qual os

processos passam a ser reversíveis e as organizações e instituições podem se

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modificar e até mesmo serem fundamenta lmente alteradas pela reorganização

de seus componentes.

A configuração do novo paradigma pode ser distinguida pela sua

capacidade de reconfiguração, um aspecto relevante em uma sociedade

caracterizada por constante mudança e fluidez organizacional. A flexibilidade

poderá ser uma força libertadora - ou repressiva, se os redefinidores das regras

sempre forem os poderes constituídos. Para o autor, é

[...] essencial manter uma distância entre a avaliação do surgimento de novas formas e processos sociais, induzidos e facilitados por novas tecnologias, e a extrapolação das consequências potenciais desses avanços para a sociedade e as pessoas: só analises especificas e observação empírica conseguirão determinar as consequências da interação entre as novas tecnologias e as formas sociais emergentes. Mas também é essencial identificar a lógica embutida no novo paradigma tecnológico. (CASTELLS, 2005, p.109).

A quinta característica apontada por Castells (2005) sobre a revolução

tecnológica é a convergência de tecnologias específicas para um sistema

altamente integrado, a partir do qual trajetórias tecnológicas distintas se

confluem tornando-se impossíveis de serem distinguidas. Como, por exemplo,

a microeletrônica, as telecomunicações, a optoeletrônica e os computadores

são todos integrados nos sistemas de informação, assim como, as

telecomunicações eram apenas uma forma de processamento da informação e

hoje as tecnologias de transmissão e conexão estão, simultaneamente, cada

vez mais diversificadas e integradas na mesma rede operada por

computadores.

Em suma, o paradigma da tecnologia da informação caminha para um

sistema aberto como uma rede de acessos múltiplos, composto de atributos

como abrangência, complexidade e disposição em forma de rede.

A dimensão social da revolução da tecnologia de informação parece destinada a cumprir a lei sobre a relação entre a tecnologia e a sociedade proposta algum tempo atrás por Melvin Kranzberg: “A primeira lei de Kranzberg diz: A tecnologia não é nem boa, nem ruim e também não é neutra”. É uma força que provavelmente está, mais do que nunca, sob o atual paradigma tecnológico que penetra no âmago da vida e da mente. Mas seu verdadeiro uso na esfera da ação social consciente e a complexa matriz de interação entre as

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formas tecnológicas liberadas por nossa espécie e a espécie em si são questões mais de investigação que de destino. (CASTELLS, 2005, p. 113)

Num ensaio de Raymond Barglow apud Castells (2004), sob a

perspectiva da psicanálise social, o autor aponta o fato paradoxal de que,

embora aumente a capacidade humana de organização e integração, os

sistemas de informação e a formação de redes, ao mesmo tempo, subvertem o

conceito ocidental tradicional de um sujeito separado, independente. A

mudança histórica das tecnologias mecânicas para as tecnologias de

informação ajuda a subverter as noções de soberania e autossuficiência que

serviam de âncora ideológica à identidade individual, desde que os filósofos

gregos elaboraram o conceito, há mais de dois milênios. Assim, as tecnologias

de informação e comunicação, passaram a ajudar a desfazer a visão de mundo

por ela promovida no passado recente na era da máquina.

A reformulação da identidade do homem e da máquina não tem lugar

apenas entre filósofos, comenta Turkle (1997), mas também, na prática,

através duma filosofia da vida cotidiana que, em certa medida, é provocada e

implementada pela presença do computador. Os computadores nos fazem

coisas, incluindo as nossas formas de pensar acerca de nós próprios e das

outras pessoas, sendo que em tempos atrás, estes efeitos subjetivos da

presença do computador eram secundários, pois não eram procurados pelas

pessoas. Atualmente, ocorre de forma inversa. As pessoas recorrem

explicitamente aos computadores em busca de experiências que possam

alterar suas maneiras de pensar ou afetar sua vida social e emocional. Para a

autora “é nos ecrãs dos computadores que projectamos as nossas próprias

ficções, ficções essas de que somos simultaneamente produtores, realizadores

e vedetas.”

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3.1 A cibercultura e o ciberespaço: novas dimensões humanas no

século XXI

Aportou-se na era da cultura-mundo, que se desenhou atualmente sob os

traços de um universal concreto e social - e não mais sob o ideal do “cidadão

do mundo”, que se identificava com um humanismo universal - mas sim, com o

mundo sem fronteiras dos capitais e das multinacionais, do ciberespaço e do

consumismo. Esse mundo não se limita à esfera do ideal, para Gilles

Lipovetsky (2011), mas está imbricado na realidade planetária hipermoderna

atual, na qual a economia mundial se ordena pela primeira vez segundo um

modelo único de normas, valores e objetivos, o éthos e o sistema

tecnocapitalista, em que a cultura se impõe como um mundo econômico de

pleno direito.

Cultura-mundo significa o fim da heterogeneidade tradicional da esfera cultural e a universalização da cultura mercantil, apoderando-se das esferas da vida social, dos modos de existência, da quase totalidade das

atividades humanas. (LIPOVETSKY, 2011, p.9)

Por todo o mundo dissemina-se a cultura da tecnociência, do mercado, do

indivíduo, das mídias, do consumo e, segundo o autor, com ela,

[...] uma infinidade de novos problemas que põem em jogo questões não só globais (ecologia, imigração, crise econômica, miséria do terceiro mundo, terrorismo) mas também existenciais (identidade, crenças, crise dos sentidos, distúrbios das personalidades...). A cultura globalitária não é apenas um fato; é, ao mesmo tempo, um questionamento tão intenso quanto inquieto de si mesmo. Mundo que se tona cultura, cultura que se torna mundo: uma cultura-mundo. (LIPOVETSKY, 2011, p. 9)

A sociedade de mercado, ou hipercapitalismo de consumo, que

concretiza a cultura-mundo, é um capitalismo cultural em crescente ascensão,

o das mídias, do áudio visual, do webmundo, diz Lipovetsky (2011). Essa

cultura-mundo se relaciona com a era da formidável ampliação do universo da

comunicação, da informação e da midiatização.

O desenvolvimento de novas tecnologias e das indústrias culturais e de comunicação tornou possível um consumo abundante de imagens, ao mesmo tempo, a multiplicação dos canais, das informações e das trocas ao infinito. Eis a era do mundo hipermidiático, do cibermundo, da comunicação-mundo, estágio supremo, mercantilizado da cultura. (LIPOVETSKY, 2011, p. 10)

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Esta mercantilização integral da cultura é, ao mesmo tempo, uma

culturalização das mercadorias, processo no qual as antigas oposições da

economia e da cotidianidade, do mercado e da criação, do dinheiro e da arte se

dissolveram, perdendo o essencial de seu fundamento e de sua realidade

social.

Produziu-se uma revolução: enquanto a arte, daí em diante, se alinha com as regras do mundo mercantil e midiático, as tecnologias de informação, as indústrias culturais, as marcas e o próprio capitalismo constroem, por sua vez, uma cultura, isto é um sistema de valores, objetivos e mitos. (LIPOVETSKY, 2011, p. 10)

Para Lipovetsky (2011), “nos tempos hipermodernos, a cultura tornou-se

um mundo cuja circunferência está em toda parte e o centro em parte alguma.”

O novo ciclo de modernidade que recompôs o mundo se constituiu num regime

inédito da cultura. A era hipermoderna, segundo o autor, transformou

profundamente o relevo, o sentido da superfície social e econômica da cultura,

que não pode ser considerada mais como uma superestrutura de signos como

decoração do mundo real; ela se tornou mundo, uma cultura-mundo, do

tecnocapitalismo planetário, das indústrias culturais, do consumismo total, das

mídias e das redes digitais.

Através da excrescência dos produtos, das imagens e da informação, nasceu uma espécie de hipercultura universal que, transcendendo as fronteiras e confundindo antigas dicotomias (economia/imaginário, real/virtual, produção/representação, marca/arte, cultura comercial/alta cultura) reconfigura o mundo em que vivemos e a civilização que esta por vir. (LIPOVETSKY, 2011, p. 7)

Nesta nova morfologia social do cenário contemporâneo, permeadas pela

cultura-mundo, para Castells (2005), as relações socioculturais encontram-se

organizadas em rede e a difusão da lógica de redes modifica de forma

substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de

experiência de poder e cultura. Na sociedade em rede há uma determinação

social em nível mais alto que a dos interesses sociais específicos expressos

por meio das redes: o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do

poder; estamos diante de novas estruturas funcionais e de novos processos de

dominação.

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Assim, as tecnologias de informação e comunicação, possuem um

grande potencial de possibilidades ainda inéditas. Tendo em vista que a

informática e as telecomunicações estão em processo de integração e

convergência, cujos efeitos, segundo Tapias (2003), continuam a incrementar-

se graças à digitalização que envolve um “fator multiplicador de uma

tecnologia” de um em um milhão, diferentemente da era industrial, que era de

um para mil. Esta potência tecnológica inaugura um novo mundo que ainda

está em seu começo.

Com base na tecnologia digital5, por meio de bits e bytes, por meio da

qual se processam, acumulam e se transmitem as informações, a nova

sociedade e sua cultura incipiente formam um novo mundo digital. O

digitalismo, para Tapias (2006), é o documento de identidade mais

característico deste novo mundo, que, assim como as impressões digitais,

deixa sua marca em todos os âmbitos da nossa realidade social. Nossa cultura

contemporânea pode ser referida com a expressão cultura digital, conscientes

de que ela não terminará ou absorverá a anterior até anulá-la, mas sabendo

que a tecnologia digital, além de sua novidade constante, modifica tudo o que

existe, até qualificar a cultura em todo seu conjunto. Para Tapias (2006), o

resultado disso é o que também se chamou de cibercultura, que pode ser

entendida como a complexa realidade que progressivamente vai substituindo

as transformações tecnológicas atuais e cujos efeitos se ampliam

reticularmente por todos os âmbitos de nossa vida. Assim, para o autor, a

cultura digital pode ser entendida como sinônimo do conceito ampliado de

cibercultura.

O termo cibercultura, segundo Andoni Alonso e Iñaki Arzoz apud Tapias,

(2006), se refere à cultura gerada em torno das novas tecnologias da

informação.

5 Por tecnologias digitais entendemos sempre um leque muito alargado de coisas "quase tudo", diria

Henry Jenkins (2003) apud Ribeiro (2015), desde o papel dos efeitos especiais CGI (Computer Generated Imagery) dos blockbusters de Hollywood, até os novos sistemas de comunicação (Internet, chat e e-mail), os novos gêneros de entretenimento (os jogos de computador), os novos estilos de música (o techno) ou os novos sistemas de representação (a fotografia digital, o vídeo e cinema digital ou a realidade virtual). O computador é um meio de armazenamento de informação e cálculo numérico, mas também um meio de comunicação, educação e entretenimento.

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É certo que a cibercultura inclui a subcultura hacker de alguns internautas, mas essa representa tão somente uma mínima parcela do conjunto da cibercultura [...] Cibercultura são também, sem dúvida, todos os artefatos e produtos, comportamentos individuais e coletivos, conceitos e ideologias que surgiram diretamente da implantação dessas novas tecnologias da informação; porém, mesmo sendo este o núcleo da cibercultura surgido diretamente das novas tecnologias, representa só uma parte [...]. O “núcleo” cibercultural surgido de maneira direta das novas tecnologias abrange cada vez mais parcelas maiores dessa cultura geral, em parte substituindo-as e, em parte – e esse é o aspecto decisivo – condicionando-as por sua medição tecnológica. Do interior da cibercultura, que não é um fantasmático território virtual, mas uma percepção (auto) consciente da cultura humana segundo os padrões ciberculturais, cibercultura é praticamente toda a cultura humana. (TAPIAS, 2006, p. 16)

Assim, as tecnologias digitais geram uma densa retícula de relações

pelas quais reconstruímos a realidade sociocultural em que nos inserimos: a

rede das redes, tão onipresente quanto proteica, como diz Tapias (2006). A

informática e a telemática nos permitem tecer essas redes, tornando-se a

armação de uma realidade na qual as estruturas estão se transformando

radicalmente, a partir da modificação de dois pilares interconectados da

realidade cultural humana: a comunicação e a produção.

Atingiu-se uma fronteira cultural e as máquinas são semelhantes aos

seres vivos. Castells (2005) aponta que existe uma integração crescente entre

mentes e máquinas, sendo que o momento atual não é caracterizado pela

centralidade do conhecimento e da informação, mas pela aplicação desses

conhecimentos e dessa informação na geração de conhecimentos e de

dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de

realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso.

As tecnologias digitais não são simplesmente ferramentas a serem

aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usuários e criadores podem

tornar-se a mesma coisa, havendo, por conseguinte, uma relação muito

próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a

cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços

(as forças produtivas). Castells (2005) afirmará que, pela primeira vez na

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história, a mente humana é uma força direta na produção, não apenas um

elemento decisivo no sistema produtivo.

O ciberespaço, por sua vez, diz Paul Virilio (1996), será o resultado de

um trabalho cooperativo entre o motor de realidade informática do laboratório e

o motor de realidade do cérebro. Com a revolução das transmissões, estamos

preparados para motorizar a realidade do espaço graças à imagética de

síntese do motor do computador. Pierre Levy (1999) considera o

[..] ciberespaço como o novo meio de comunicação que surge da interconexão dos computadores e a cibercultura como o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. (LEVY, 1999, p. 17)

E, a partir de seus estudos deste novo universo, a cibercultura poderá

ser definida como um fino enredamento de todos os horizontes em um único e

imenso tecido aberto e interativo. Em uma situação absolutamente inédita, os

contatos transversais entre os indivíduos se proliferam de forma anárquica,

num transbordamento caótico de informações e inundação de dados. Segundo

Levy (1999), não temos um fundo sólido sob o oceano das informações, temos

de aceitá-lo como nossa nova condição e aprendermos a nadar, flutuar e talvez

navegar.

A cibercultura sempre evoca, segundo André Lemos (2010), um

pensamento sobre o futuro e é compreendida como um

[...] conjunto tecnocultural emergente no final do século XX impulsionado pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a microinformática e o surgimento das redes telemáticas mundiais; uma forma sociocultural que modifica hábitos, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de sociabilidade de comunicação social. Esse conjunto de tecnologias e processos sociais ditam hoje o ritmo das transformações sociais, culturais e políticas neste início do século XXI. As mudanças são enormes e aconteceram muito pouco tempo. (LEMOS, 2010, p. 23)

Com a cibercultura e o ciberespaço, um processo social de migração

digital ocorreu de forma massiva, em consequência do exponencial uso das

tecnologias digitais, que, na perspectiva de Lorenzo Vilches (2001), trouxeram

um novo sentido, mudando a divisão constituída até então, do mundo: de um

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lado os informados e do outro aqueles que ficarão de fora da era das

conexões. Entendemos os fluxos migratórios enquanto mecanismos de grande

importância para a mobilidade social, entre populações autóctone e imigrada,

por exemplo.

Neste caso, a nova sociedade digital, segundo o autor, é,

simultaneamente, território de desenvolvimento econômico e centro de uma

grande rede integrada das principais tecnologias de comunicação. Fazer parte

do ciberespaço é condição indispensável para desenvolver a capacidade de

viver numa sociedade democrática; o acesso às redes globais converte-se em

questão que concerne à nova Roma do império digital, como comenta Vilches

(2001).

O ciberespaço tornou-se o novo campo da economia, da cultura e do

diálogo humano. Em pleno processo de emigração para os mundos eletrônicos,

esses são os meios que operaram ou experimentaram um processo de

migrações tecnológicas. Segundo Castells (2005), este translado foi

compreendido como uma convergência telemática, tendo como um dos seus

pressupostos, o movimento massivo de tecnologias e conteúdos analógicos e

industriais, para os digitais e virtuais.

A migração digital, para Vilches (2001), se alimenta de diversas

concepções científicas, tecnológicas e culturais para construir um mundo

narrativo e um discurso retórico frequentemente fascinantes. Porém, não se

trata somente das tecnologias da computação, mas de um novo espaço social

da comunicação e das narrações, que parte da literatura ensaística chamou de

ciberespaço.

É o espaço social formado por sujeitos interconectados que constituem uma nova fronteira da comunicação e do real, e que se expressam por meio de figuras e imagens retóricas provenientes da literatura pós-moderna e das ciências da vida. Estas fontes literárias, linguísticas e tecnocientíficas estabelecem pontes entre o mundo dos signos da cultura atual e os mundos de simulações da Inteligência Artificial. Estamos falando de todo esse discurso tecido em torno da cibercomunicação e de seus efeitos sobre o sujeito social. (VILCHES, 200, p.133-134)

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Por isso, segundo Vilches:

No século XXI, terminar-se-á o que foi iniciado no século XX, as novas fronteiras da comunicação serão as do mundo das empresas e dos consumidores, como são até agora. Mas o capital do conhecimento, isto é, os conceitos, as ideias, os sons e as imagens serão os novos valores. As comunicações – que tiveram início, na Antiguidade, com a mercantilização dos barcos para o transporte de produtos e do fluxo migratório, e que foram continuadas, na época industrial, com os meios de transporte terrestre – são agora espaço-virtuais e estão prestes a chegar ao centro da pessoa e converter em mercado a própria identidade do Eu. A vasta migração para os bens intangíveis poderia ter aqui seu definitivo porto de chegada. (VILCHES, 2001, p.33,35)

Na era da comunicação global, nasce uma nova raça de transumantes da

comunicação, como denomina Vilches (2001), considerados os emigrantes da

rede, viajantes do ciberespaço, mas também um novo contingente de

habitantes da rede. As identidades são construídas como nós integrados numa

grande rede de sobrevivência. Numa economia comumente submersa, são os

novos emigrantes do espaço que reivindicam o direito de viver no território da

nova civilização conectada. Neste caso, não se trata do espectador passivo

dos meios tradicionais, nem dos usuários dos meios interativos, mas de um

novo humanismo da comunicação; e emigrar para a rede será uma nova forma

de vida. “Muito mais do que a e-comercialização de sua força de trabalho,

importa pertencer à rede romana. Novos cidadãos da rede, que entregam sua

liberdade em troca da integração nas redes.” (VILCHES, 2001, p. 37).

Assim como aconteceu na era da televisão e do rádio - meios de

comunicação que geraram diversas hipóteses sobre os seus efeitos - hoje

passamos, também, a questionar a nova sociedade conectada. Neste mundo

globalizado, segundo Vilches (2001), há duas sociedades: as conectadas na

rede das tecnologias e da sociedade da informação e da comunicação e as

desconectadas. A migração digital iniciou um processo de transformação da

dinâmica social de modo tão massivo, como as migrações do campo para a

cidade, no alvorecer da era industrial.

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Com a comunicação mediada por computador, através da internet, o

mundo passou a estar integrado em redes globais de instrumentalidade, das

quais surgiu uma gama enorme de comunidades virtuais, localizadas num novo

espaço social virtual, segundo Pierre Levy (2010), se tornaram onipresentes no

meio da computação social6. O que chamávamos de comunidades virtuais se

tornaram as redes sociais, que tiveram um desenvolvimento fulminante nos

últimos anos.

Este novo mundo virtual se impõe e suprime as categorias de espaço e

tempo, através da simultaneidade do on-line. Os indivíduos, antes receptores

da informação, passam a ser produtores e criadores desta nova realidade

virtual, formada pelo ciberespaço e cibercultura. A cultura da virtualidade real,

ou cultura digital, fala cada vez mais uma língua universal digital, promovendo

a integração global da produção e distribuição das palavras, sons e imagens de

nossa cultura, personalizando-os ao gosto das identidades e humores dos

indivíduos. Segundo Castells (2005), as redes interativas de computadores

estão crescendo exponencialmente, criando novas formas e canais de

comunicação, moldando a vida, e ao mesmo tempo, sendo moldadas por ela.

As mudanças sociais são tão drásticas quanto os processos de transformação

tecnológica e econômica, que, segundo o autor, houve uma redefinição

fundamental de relações entre mulheres, homens, crianças e,

consequentemente, da família, da sexualidade e da personalidade; a busca da

identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte

básica de significação social. Nossas sociedades estão cada vez mais

estruturadas em uma oposição bipolar entre a rede e o ser.

A humanidade viveu um processo de aceleração e imediatismo nas

relações socioculturais por conta dos fluxos de informação. A difusão das

tecnologias de comunicação e informação por todas as esferas da sociedade é

marcada ao mesmo tempo por uma ausência da percepção de seus efeitos

sobre o pensamento, os indivíduos, a sociedade e a cultura.

6 Por computação social entende-se a criação e organização de conteúdos pelos próprios utilizadores .

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Neste processo de migração digital, vivido mais intensamente e em maior

grau no final da década de 90 do século XX, para Vilches (2001), estamos

tratando de sujeitos interconectados que chegam à nova fronteira da

comunicação e do real. “Essa nova fronteira, chamada por alguns de

ciberespaço, é o novo espaço de pensamento e de experiências humanas,

formado pela coabitação de antigos meios e novas formas de hiper-realidade.”

(VILCHES, 2001, p.17)

A universalização desta nova cultura baseada nas tecnologias digitais, na

era do dilúvio informacional, como caracteriza Lévy (1999), propagou a

copresença e a interação de quaisquer pontos do espaço físico, social ou

informacional, sendo que, o ciberespaço:

[...] encoraja um estilo de relacionamento quase independente dos lugares geográficos (telecomunicação, telepresença) e da coincidência dos tempos (comunicação assíncrona)... Contudo, apenas as particularidades técnicas do ciberespaço permitem que os membros de um grupo humano (que podem ser tantos quantos se quiser) se coordenem, cooperem, alimentem e consultem uma memória comum, e isto quase em tempo real, apesar da distribuição geográfica e da diferença de horários. (LEVY, 1999, p.49)

A virtualização das organizações, a partir da ajuda de ferramentas da

cultura digital, tornou-as cada vez menos dependentes de determinados

lugares. O virtual é considerado, por Lévy (1999), como toda entidade

“desterritorializada”, com capacidade de gerar manifestações concretas

diversas em diferentes momentos e em locais determinados, sem estar presa a

um lugar ou tempo particular.

Com a grande mutação estética das técnicas de informação, Paul Virilio

(1996), anteviu que o desafio seria aprender a pilotar o ciberespaço como se

pilota um veículo automóvel. A brutal superioridade da imagem de síntese em

relação ao olho nu e a busca de uma alta resolução audiovisual só se explica

pela vontade incessante e repetida de alterar definitivamente a relação entre o

virtual e o real e Virilio (1996) cita a confirmação tardia e desperada no

imediato pós de guera de Antonin Artaud que diz “o que define a vida imunda

em que vivemos é que nos distilaram totalmente nossas percepções, nossas

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impressões e que só vivemos através do conta-gotas, respirando o ar das

paisagens por cima e pelas bordas.”

O globo ocular de um olho que engloba totalmente o corpo do homem foi

dilatado. “As dimensões fracionárias do espaço cibernético permitem transferir

para um impalpável duplo o conteúdo de nossas sensações, suprimindo a

distinção de dentro/de fora, o hic e nunc da ação imediata” (VIRILIO, 1996,

p.128).

O avanço móvel do ser não é mais feito do recuo imóvel das coisas sob

seus olhos; segundo o autor, vivemos o inverso, o avanço móvel das coisas é

feito do recuo imóvel de um ser subjugado.

Vítima do cenário o cibernauta se tornou a presa de uma ilusão sintética menos visual do que virtual, em que o pensamento visual caro a Rudolph Arnheim cede diante dos malefícios de um pensamento virtual, fruto de uma imagética que deve tudo ao assujeitamento de um indivíduo submetido aos milagres de uma ideografia cibernética; o novo imperialismo do pensamento instrumental descobrindo bruscamente, com seu “território”, seu imperium psicogeográfico. (VIRILIO,1996, p. 131)

Considerando a cultura enquanto um processo de comunicação - que, por

sua vez, é baseado na produção e consumo de sinais - para Castells (2005),

em todas as sociedades, a humanidade tem existido num ambiente simbólico e

atuado por meio dele. Sendo assim, o que é historicamente espec ífico do novo

sistema de comunicação - mediado pelo computador e pela internet que forma

a rede - não é a indução à realidade virtual, mas sua construção. O novo

sistema de comunicação, baseado na integração da rede digitalizada de

múltiplos modos de comunicação, é caracterizado pela sua capacidade de

inclusão e abrangência de todas as expressões culturais.

No entanto, não quer dizer que haja uma homogeneização das

expressões culturais e o domínio completo de seus códigos. Apesar da

diversificação, multimodalidade e versatilidade do novo sistema de

comunicação - capaz de abarcar e integrar todas as formas de expressão, bem

como a diversidade de interesses, valores e imaginações - o preço a ser pago

pela inclusão no sistema é a adaptação a sua lógica, a sua linguagem, a seus

pontos de entrada, a sua codificação e decodificação, afirmará Castells (2005).

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Este novo sistema de comunicação transforma radicalmente o espaço e o

tempo, as dimensões fundamentais da vida humana, permeadas pela cultura

da virtualidade real.

Consequentemente, segundo Castells (2005), torna-se importante

identificar os códigos culturais presentes neste processo de migração digital na

era da reprodutibilidade tecnológica. A ação interativa decorrente da interface

do computador com o usuário demonstra o modo humano de aproximar-se da

máquina, permitindo uma experiência de gestão, por meio de objetos

visualizáveis, preparados para interagir. Segundo Vilches (2001), “a interface

não é um complemento do ato de ver, como o controle remoto; é o centro de

interação, a verdadeira zona de produção das novas relações sociais que

regerão o uso da comunicação digital.” A criação e a gestão de imagens por

meio das tecnologias criarão uma nova realidade, que deixam de ser um objeto

submetido ao mundo físico, expressando uma mudança absoluta no contexto

da cultura digital. No centro das imagens sintetizadas está a linguagem, uma

vez que são construídas por meio de programas, nos aproximando cada vez

mais de uma cultura imagética.

Como aponta Michael Fischer (2011), uma infraestrutura soft foi criada,

que não é constitutiva da esfera pública, mas de uma

[...] esfera futura ao se tornarem cascatas de informação rapidamente circulantes e amplamente disseminadas que podem pautar as agendas da mídia e fornecer espaço para vozes emergentes, de modo que as mais confiáveis dessas vozes possam emergir como lideranças quando emergirem movimentos sociais. As infraestruturas soft aqui são normas culturais cambiantes que contribuem

para formas emergentes de vida. (FISCHER, 2011, p. 61)

Nesta direção, Fischer (2011) dirá que numa útil proposta heurística, o

advogado constitucionalista especializado em internet, Lawrence Lessig apud

Fischer (2011), pensando na construção da nossa infraestrutura cultural e

informacional na internet, sugerirá quatro instrumentos principais: o direito, o

mercado, o código ou a arquitetura (ou a engenharia) e as normas culturais.

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Assim, o resultado das batalhas a respeito das normas futuras e das

formas da vida cultural não se encontra, de forma alguma, predeterminado.

Será crucial continuar os debates na esfera pública sobre os valores culturais

que se articulam nos códigos, no mercado e no direito de software, para evitar

deslocamentos indesejados da propriedade da informação, barreiras de acesso

e outras decisões relativas à infraestrutura – e ainda acompanhar as normas

culturais em transformação.

Diante do exposto até aqui, tendo como referência a teoria do processo

social, o interessante é reparar neste entrelaçamento, segundo Nobert Elias

(2006), entre um processo não-planejado e o planejamento dos seres

humanos. Todas estas inovações tecnológicas culminaram numa nova

dinâmica social, criando novos padrões sociais e consequentemente um novo

habitus humano. Mas, como todo processo social - e como o próprio ser

humano - é inacabado; este processo social continua em seu pleno

desenvolvimento.

Com o surgimento da cibercultura, a vida cotidiana de uma grande parte

dos indivíduos foi permeada pelas transformações culturais geradas pelas

tecnologias de informação e comunicação e novas condutas da vida diária se

impuseram. Nesse contexto, uma nova realidade do senso comum dos

membros ordinários da sociedade emerge, segundo Berger (1974): “a vida

cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e

subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um

mundo coerente”.

O mundo da vida cotidiana se origina no pensamento e na ação dos

homens comuns, considerado como real por eles. A consciência é sempre

intencional, sempre “tende para” ou é dirigida para objetos, e os diferentes

objetos que se apresentam à consciência serão constituintes de diferentes

realidades. Esta consciência possibilita, por sua vez, a movimentação através

destas diferentes esferas de realidade, ou seja, temos a consciência de que o

mundo é formado em múltiplas realidades e que, ao passar de uma para outra,

experimenta-se a transição como uma espécie de choque.

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Dentre as múltiplas realidades, na realidade da vida cotidiana, a tensão

da consciência, segundo Berger (1974), chega ao máximo, impondo-se a

consciência de maneira mais urgente, maciça e intensa, e um estado total de

vigília, normal e evidente, constitui-se como uma atitude natural.

Apreendo a realidade da vida diária como uma realidade ordenada. Seus fenômenos acham-se previamente dispostos em padrões que parecem ser independentes da apreensão que deles tenho e que se impõem à minha apreensão. A realidade da vida quotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada na cena. A linguagem usada na vida quotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim. Vivo num lugar que é geograficamente determinado; uso instrumentos, desde os abridores de latas até os automóveis de esporte, que tem sua designação no vocabulário técnico da minha sociedade; vivo dentro de uma teia de relações humanas, de meu clube de xadrez até os Estados Unidos da América, que são também ordenadas por meio do vocabulário. Desta maneira a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação. (BERGER, 1974, p. 38-39)

Nas redes sociais e nas plataformas, segundo Levy (2010), como

Facebook, MySpace, Orkut, Linkedin, Xing, Pulse ou nas milhares de

comunidades criadas através de softwares livres,

[...] indivíduos constroem redes de contatos, de amigos, de relações, participam de clubes, instauram grupos de trabalho, trocam mensagens, compartilham suas paixões, tagarelam, negociam coletivamente suas reputações, gerenciam conhecimentos, realizando encontros amorosos ou profissionais, desenvolvem operações de marketing e entregam-se a todas as espécies de jogos coletivos. Com aplicações como Twitter (microblog contínuo) a relação social pelo ciberespaço torna-se quase permanente: pessoas da mesma rede compartilham o dia a dia, ou mesmo sobre uma base horária, suas atividades cotidianas. (LEVY, 2010, p. 12)

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A interatividade cada vez maior dos usuários na construção do

ciberespaço e da cibercultura ganhou um novo espaço frente aos meios de

comunicação industriais, como a televisão, rádio e os jornais, por exemplo, cuja

versão impressa tem perdido cada vez mais espaço para a versão digital.

Existe uma percepção de se viver um novo momento sociocultural da

cibercultura, no qual as mídias pós e pré-industriais, na perspectiva de Lorenzo

Vilches (2001), convergem e passam para uma relação mais dialógica entre o

real e o virtual, e novas realidades sociais passam a surgir. A partir daí, a

realidade da vida diária, permeada pela realidade do ciberespaço, sua

objetivação, a linguagem, o conjunto de objetos técnicos uti lizados e a teia de

relações humanas que se forma será repleta de novos significados e

significantes.

Estas duas faces da realidade na sociedade em que vivemos, segundo

Henri Lefebvre (1991), não podem ser entendidas como um significante e um

significado, já que se significam reciprocamente e que cada uma delas é

significante e significado. Até se chegar a esta análise, só nos entendemos

como significantes flutuantes e significados destacados e, assim,

[...] se sente meio perdido nesse mundo. Você é tapeado por múltiplas miragens ao trazer os seus significados aos significantes evanescentes, imagens, objetos, palavras – e os seus significantes aos significados, declamações declarações, propagandas pelas quais lhe indicam aquilo em que você deve acreditar e o que deve ser. Assim, se você deixa passar sobre si as nuvens de signos, pela televisão, pelo rádio, no cinema, na imprensa, e se ratifica os comentários pelos quais outros fixam pra você o sentido destes signos, então você será a vitima passiva da situação. (LEFEBVRE, 1991, p. 31)

Assim, a criação de novas tecnologias e de equipamentos touch-screen e

smarts, somados à conectividade móvel pela internet sem fio através das redes

wireless e aos padrões da terceira e quarta geração de tecnologias (3G e 4G)

de telefonia móvel estão modificando de forma substancial nossos padrões

sociais, nosso habitus e, principalmente, a nossa vida cotidiana. Dados de

2014 do InternetWordStats7 revelam que, em 2014, mais de 3 bilhões de

pessoas eram usuárias da Internet em todo o mundo, ou seja, 42% da

população mundial. O crescimento do acesso mundial tem sido exponencial,

7 http://www.internetworldstats.com/stats.htm

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para Lemos (2010), e, no Brasil, por exemplo, 54% da população possuía

acesso à Internet em 2013, e o uso das redes da terceira geração (3G) para o

acesso móvel por smartphones e computadores estão entre os mais altos do

mundo. Os brasileiros são ativos produtores de informação e participantes nas

redes sociais; são aqueles que ficam mais tempo on-line por mês; e usam

muito ferramentas de computação social, afirma o autor. As interações através

destes novos equipamentos inteligentes e sensíveis ao toque humano estão

trazendo uma nova sensibilidade na relação homem-máquina, novos sentidos e

novas linguagens à espécie humana, principalmente no que tange à interação

face a face. As novas tecnologias nômades permitem aos indivíduos novas

dinâmicas de acesso, novas formas de interação e o movimento entre espaço

físico da realidade social e o ciberespaço, entre o espaço público e o privado.

Chegamos à era da cultura da mobilidade, segundo Lemos (2009), na qual os

dispositivos móveis, como celulares, smartphones, netbooks e tablets, exigem

que se amplie o debate sobre os usos das tecnologias digitais na

contemporaneidade. Será preciso pensar como potencializar a mobilidade

física, segundo Lemos (2009), a partir da mobilidade informacional e vice-

versa. Estamos frente a uma nova era pós-PC e, nesta primeira década do

século XXI, para Lemos (2008), entramos na era da computação ubíqua,

móvel, hiperlocal, na era das mídias locativas e da internet das coisas.8

Os acessos móveis e sem fios à Internet, para Levy (2010), espalharam-

se rapidamente e a informática ubíqua verá os acessos ao ciberespaço

totalmente integrados aos dispositivos portáteis, aos ambientes urbanos e às

infraestruturas de transportes. As interfaces de comunicação, assim como os

captores, órgãos de controle eletrônico das máquinas e dos objetos, são

interconectadas sem fios em tempo real. Assim, novos tipos de aplicações e de

usos podem ser designados como computação social (famosa web 2.0 dos

especialistas de marketing).

8 http://www.theinternetofthings.eu/

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A computação social constrói e compartilha de maneira colaborativa as memórias numéricas em escala mundial, que se trata de fotografias (Flickr), de vídeos (YouTube, DailyMotion), de música (Bit Torrent) de “favoritos” da web (Delicious, Furl, Diigo) ou então de conhecimentos enciclopédicos (Wikipédia, Freebase). Em todos os casos as distinções de status entre produtores, consumidores, críticos, editores e gestores da midiateca se apagam em proveito de uma série contínua de intervenções onde cada um pode desempenhar o papel que desejar. (LEVY, 2010, p.10-11)

A plataforma “facebook”, por exemplo - fundada em 2004 nos Estados

Unidos da América, com a missão de dar às pessoas o poder de compartilhar e

de tornar o mundo mais aberto e conectado - atingiu o número recorde de 1.15

bilhões de usuários ativos em junho de 2013. Isto revela, na perspectiva

Fischer (2011), como:

[...] a passagem das ferramentas interativas da “web 1.0 para web 2.0” serve como metáfora dos esforços recorrentes para passar da Enciclopédia de Diderot à Wikipédia, a partir da fronteira eletrônica não comercial da web de meados de 1990, ou seja, de um conhecimento autorizado produzido lentamente, formatado de maneira rígida e controlado de forma burocrática, para plataformas de competência descentralizada e fluxos intensos de informação rapidamente produzidos, formatados de modo flexível e facilmente reconfiguráveis. (FISCHER, 2011, p. 59)

As novas tecnologias da informação e os ambientes de comunicação

poderiam ser chamados, segundo Fischer (2011), de novas conectividades

cultivantes, seguindo o modo pelo qual os biólogos aprendem a cultivar tecidos.

A internet, as bases de dados interconectadas eletronicamente, os ícones visuais, os clipes de vídeos, o cinema, a animação o fluxo em tempo real e a repetição do curso da informação estão reposicionando e encapsulando os meios culturais mais antigos como a oralidade e a escrita, estão reconfigurando a esfera pública pela mudança das relações de poder, como nas relações entre médico, paciente e seguradora, estão mobilizando dinheiro e atenção nas campanhas eleitorais e estão chamando atenção para narrativas geopolíticas alternativas, como na transformação da esfera pública árabe, produzida pela Al-Jazira, e estão produzindo novas linguagens dinâmicas que referenciam continuamente a transformação dos meios de comunicação e das novas infraestruturas de vida da qual emergem, em interessantes efeitos de retorno. (FISCHER, 2011, p. 59)

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O ciberespaço, para Lévy (2010), permitiu uma liberação da expressão

pública. O clima intelectual da computação social, a avaliação, a crítica, a

categorização não estão mais reservadas aos mediadores culturais tradicionais

(clero, professores, jornalistas) e se voltam às mãos das multidões; são os

utilizadores que se tornam protagonistas, aumentando as possibilidades da

inteligência coletiva e, por sua vez, da potência do “povo”. Esta mutação

favoreceu a pressão sobre administradores estatais e governos para mais

transparência, abertura e diálogo.

Com um caráter mundial, os movimentos de opinião e ação cidadã

atravessam as fronteiras e entram em contato com problemas ecológicos,

econômicos e políticos mundiais. Nesta nova esfera pública, segundo Lévy

(2010), ainda estão as nuvens (cloud computing), onde se desenrolam

tecnicamente os processos de computação social. Os nossos dados estão em

algum lugar na rede e ao mesmo tempo em todos os lugares. Novos valores e

modos de ação são trazidos por esta esfera pública em que a abertura, as

relações entre pares e a colaboração são uma condição. Estes novos meios de

comunicação social interativos - diferentemente das mídias de massa, que

funcionavam de um centro emissor para uma multiplicidade receptora na

periferia - funcionam de muitos para muitos, em um espaço descentralizado. A

comunicação no ciberespaço traz uma nova situação, que se relaciona ao

apagamento da distinção público/privado. Como diz Lévy (2010), se trata

simplesmente da erosão da esfera privada; o menor movimento de atenção no

ciberespaço é gravado de uma maneira ou de outro e poderá ser utilizado para

orientar futuros anúncios publicitários de acordo com o perfil de acesso do

usuário. O aumento da transparência e da multiplicação de contatos implica

numa nova velocidade de circulação das ideias e dos comportamentos.

O que está em jogo quando se pensa a dimensão política da sociedade

informacional, para Lemos (2010), é esta nova relação entre a tecnologia e os

processos comunicacionais sociais, em que um dos princípios da cibercultura

se relaciona com a “liberação da palavra”, que afeta a constituição da opinião e

da esfera pública. A esfera da conversação mundial se ampliou, como se

constata pela expansão de sistemas e ferramentas de comunicação, sendo que

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a liberação da emissão é correlata ao aumento da esfera pública mundial e da

emergência de novas formas de conversação e de veiculação da opinião

pública, agora também planetária. Outros dois princípios, segundo o autor, são

o da conexão e da conversação mundial - o que Lévy chamou de inteligência

coletiva) – processo no qual a liberação da emissão e da circulação da palavra

em redes abertas e mundiais criou uma interconexão planetária, fomentando

uma opinião pública ao mesmo tempo local e global; e o da reconfiguração

social, cultural e política. Assim, as ações de produzir, distribuir e compartilhar

são os princípios fundamentais do ciberespaço, que é essencialmente político e

que se constitui como um cenário privilegiado da cibercultura. Nesse contexto,

o futuro da Internet, diz Lemos (2010), aponta para novas modalidades de

emissão livre, de formas de compartilhamento de informação e de cooperação,

esperando, segundo o autor, que estas mudanças globais da esfera política

caminhem em direção a uma ciberdemocracia. “O ciberespaço já fez da cultura

um lugar de produção de conteúdo livre entre pessoas e grupos e de

reconfiguração da vida social, política e cultural.” Assim, o sentido da

tecnologia, para Lemos (2010), se refere ao seu poder de produzir sentido e de

fazer a sociedade, e não somente a sua dimensão material.

A transformação da esfera midiática pela liberação da palavra se dá com o surgimento de funções comunicativas pós-massivas que permitem a qualquer pessoa, e não apenas empresas de comunicação, consumir, produzir e distribuir informações sob qualquer formato em tempo real e para qualquer lugar do mundo sem ter de movimentar grandes volumes financeiros ou ter de pedir concessão a quem quer que seja. Isso retira das mídias de massa o monopólio na formação da opinião pública e da circulação da formação. Surgem novas mediações e novos agentes, criando tensões políticas que atingem o centro da polis em sua dimensão nacional e global. (LEMOS, 2010, p. 25)

Os seres humanos são animais sociais que, segundo Lévy (2010),

exploram todas as possibilidade para criar relações, comunicar, fabricar

comunidades. E o “ciberespaço representa a este respeito o nec plus ultra

tecnológico” e a

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[...] propensão à inteligência coletiva representa o apetite para o aumento das capacidades cognitivas das pessoas dos grupos, que seja a memória, a percepção, as possibilidades de raciocínio, a aprendizagem ou a criação. O crescimento do ciberespaço é, ao mesmo, tempo a causa e o efeito do desenvolvimento dessas três tendências; o todo formando uma espécie de motor tecnocultural auto-organizado. Dos primeiros computadores dos anos 1950 até a computação social da primeira década do século XXI, os acontecimentos dos sessenta últimos anos constituem provavelmente apenas uma faísca inicial, ou se quisermos, a pré-história da cibercultura mundial e de sua esfera pública. (LEVY, 2010, p. 15)

Se as relações sociais possuem as marcas do tempo em que são vividas,

seria interessante verificar sociologicamente como sua produção evoluiu

historicamente. Diante desta nova realidade social - na qual uma multiplicidade

de “eus” se torna possível de ser vivida no papel de sujeitos virtuais no

ciberespaço e novas formas de sentir e pensar se constituem na rede, assim

como na vida real - um modus vivendi interativo se cristaliza mesmo aceitando-

se que o ciberespaço é habitado por sujeitos incorpóreos e fragmentados, diz

Pais (2006).

Este novo modo de vida é inédito para a nossa espécie - que passou a se

comunicar através das tecnologias digitais, substituindo, muito recentemente

na história da humanidade, o estar face a face com o outro - e os seus efeitos

ainda permanecem despercebidos. Se pensarmos a cibercultura ou a cultura

digital em seu sentido mais amplo, enquanto um elemento constituinte de

nossas vidas cotidianas, pode-se dizer que novas “práticas culturais” 9, estão

em curso, compreendidas por Pierre Mayol (2005) como

9 Prática Cultural para Mayol é tomada no sentido da tradição antropológica (Morgan, Boas, Frazer,

Durkheim, Mauss, Lévi-Strauss etc.): sistemas de valores subjacentes que estruturam as tomadas de

posturas fundamentais da vida cotidiana, que passam despercebidos à consciência dos sujeitos, mas são

decisivos para sua identidade individual e de grupo.

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[...] a combinação mais ou menos coerente, mais ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos (menu gastronômico) ou ideológicos (religiosos, políticos), ao mesmo tempo passados por uma tradição (de uma família, de um grupo social) e realizados dia-a-dia através dos comportamentos que traduzem em uma visibilidade social fragmentos desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciação traduz na palavra fragmentos do discurso. “Prático” vem a ser aquilo que é decisivo para identidade de um usuário ou de um grupo, na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede das relações sociais inscritas no ambiente. (MAYOL, 1996, p.39)

Assim, considerando a cultura digital como prática cultural, para Certeau

(2005), o que a sustenta e organiza pode ser determinado por três prioridades:

o oral, o operatório e o ordinário. A indústria e a tecnologia da cultura,

progressivamente assegurando-se de sua autonomia, conseguiram desprender

estes três setores, tornando-os objetos de sua própria conquista. A cultura oral

tornou-se alvo de uma escrita capaz de educar ou informar, os praticantes são

transformados em supostos consumidores passivos e a vida comum se

transformou num vasto território à disposição da colonização da mídia.

Nesta direção, no estudo de caso sobre o cotidiano dos afetos virtuais –

na obra nos “Rastos da Solidão” - Pais (2006) se questiona sobre como

desenvolver uma sociologia de um fenômeno, como a dos afetos ou das

relações sociais, por exemplo, em que a natureza é muitas vezes secreta e

misteriosa. Uma das possibilidades seria contemplar os contornos sociais e

históricos que fazem com que os afetos ou as relações sociais tenham as

marcas do tempo em que são vividas. São as maneiras de pensar e de agir,

como disse Durkheim apud Pais (2006), que se expressam através de uma

subjetividade que se objetiva socialmente.

Colocam-se as mesmas interrogações, seguindo os caminhos traçados

por Pais (2006): em que medida as comunicações on-line atuam como

antídotos ao atomismo da sociedade? É possível, no ciberespaço, revigorar os

“nós sociais”? Existe no ciberespaço um sentimento de comunidade? É

possível dar conta dos sentimentos que circulam nas plataformas digitais

atuais? Os cibernautas se satisfazem com meras existências virtuais? Qual a

natureza dos vínculos construídos a distância? Os laços “on-line” se

aprofundam no “off-line”? Quais os efeitos sobre a construção das identidades

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destas novas formas de interação social mediadas pela tela de um

computador?

Para se compreender os significados das interações em seus contextos

fenomenológicos, estas e outras questões são de grande importância, tendo

como ponto de partida a liberação da palavra, como disse André Lemos, na

esfera da conversação mundial, que é realizada, sobretudo, pela linguagem. A

linguagem é considerada o sistema de sinais vocais mais importante do

sistema de sinais da sociedade humana, segundo Berger (1974). A vida

cotidiana é, sobretudo, a vida com a linguagem e é por meio dela que participo

com meus semelhantes; por isso, a compreensão da linguagem é essencial

para a compreensão da realidade da vida cotidiana. Assim, a linguagem é

capaz de se tornar o repositório objetivo de vastas acumulações de significados

e experiências, que podem ser conservadas no tempo e transmitidas às

gerações seguintes.

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CAPÍTULO IV. O cotidiano, a cultura digital e a leitura como prática

cultural

O cotidiano nesta pesquisa, foi tomado como alavanca metodológica do

conhecimento, entendendo, segundo Pais (2003), a dramaturgia da vida

cotidiana e seus atravessamentos pelo caráter ritua l e de teatralização das

interações “face a face”, em grande parte caro à obra de Ervign Goffman.

Como disse Pais (2003), “o argumento de fundo consiste em sustentar que o

“eu social” é actuado como numa obra de teatro, manipulado como num jogo

estratégico, tendo como pano de fundo uma situação concreta de interacção”.

A vida diária é considerada, por Pais (2003), como um dos terrenos da

Sociologia da vida cotidiana “onde se frutifica a teoria da acção”, introduz - para

além das entidades já constituídas na Sociologia, como os coletivos sociais e

indivíduos - um novo objeto de estudo: o das situações de interação. Por este

ponto de vista, segundo Pais (2003)

[...] os instrumentos analíticos que são usados por esta sociologia (o enfoque dramatúrgico ou a análise de conversação) enquadram-se num paradigma sociológico que podemos denominar de “situacionismo metodológico” para o distinguirmos de outros paradigmas dominantes das ciências sociais, como sejam o holismo (estruturalismo, materialismo histórico) ou o “individualismo metodológico.(PAIS, 2003, p.15)

A perspectiva do situacionismo metodológico, segundo Pais (2003), nos

força a explorar nossas convicções mínimas, quando, por exemplo, nos

perguntamos, no momento em que cumprimentamos uma outra pessoa, por

que estendemos a mão direita, e não a esquerda, e a oscilamos no sentido

vertical ao invés do horizontal.

A vida cotidiana, enquanto perspectiva teórica e metodológica, surge a

partir da curiosidade de saber espontaneamente, de um questionamento sobre

o porquê das coisas ocorrerem da maneira que estão a ocorrer. Daquilo que se

passa quando nada parece se passar, a interrogação sociológica olha para o

cotidiano que nos envolve e para todos os seus enigmas e, para Pais (2003), “o

desafio consiste em enigmatizar o social, recorrendo à ironia, na certeza de

que a obscuridade dos enigmas é potencialmente clarificadora, intrigantemente

reveladora”. O cotidiano assume, assim, um lugar de decifração de enigmas

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sociais, ou seja, o desafio do pesquisador da Sociologia da vida cotidiana é ter

um olhar social, informado e uma postura de decifrador social. A partir de uma

lógica decifradora, própria das metodologias qualitativas, Pais (2003) se

questiona como decifrar o sentido das expressões e representações que fazem

a vida cotidiana. Uma hermenêutica qualitativa é necessária, reivindicando uma

historicidade do cotidiano, e a diversificação das fontes, como as literárias, por

exemplo, pode objetivar o real através de múltiplas (re)construções ambientais.

Num caminho que se faz ao caminhar, Pais (2003) afirma que

[...] o trilhar sociológico das rotas do quotidiano não obedece uma lógica de “demonstração”, mas antes a uma lógica de “descoberta”, na qual a realidade social se insinua, conjectura e indica, através de uma percepção descontínua e saltitada de olhar que a sociologia do quotidiano exercita no seu vadiar sociológico.(PAIS, 2003, p.17)

Um movimento de novos saberes e sensibilidades, em contraposição a

um positivismo “etnocêntrico” de algumas formas “canônicas” da Sociologia, é

incorporado pela Sociologia da vida cotidiana, na qual, segundo Pais (2003)

[...] a lógica de descoberta que caracteriza a sociologia do quotidiano afasta-se da lógica do “preestabelecido”, que condena os percursos de pesquisa a uma viagem programada, guiada pela demonstração rígida de hipóteses de partida, a uma domesticação de itinerários que facultam ao pesquisador a possibilidade de apenas ver o que seus quadros teóricos lhe permitem ver. (PAIS, 2003, p.17)

Rejeitando a análise da vida cotidiana a uma submissão às perspectivas

teóricas microssociológicas, para Pais (2003), a Sociologia da vida cotidiana

tem a necessidade de explorar as relações dialéticas entre microanálise e

macroanálise, articulando, assim, comportamentos e estruturas sociais. O

cotidiano é entendido como significante flutuante do real-social e talvez a

sociologia consiga articular “duas perspectivas metodológicas nem sempre

conjugáveis: ver a sociedade a nível dos indivíduos e ver como a sociedade se

traduz na vida deles”.

A experiência subjetiva como matéria-prima do conhecimento sociológico

e o interesse de desvendar como as pessoas experimentam o mundo que

compartilham e constroem em interação são as referências apontadas por Pais

(2003) para uma Sociologia da vida cotidiana.

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Buscando o relevante do irrelevante, muitos enigmas que se passam na

vida cotidiana são revelados. Nas microações que se passam na vida cotidiana

é possível ver a sociedade no nível dos indivíduos - com um olhar social

através dos mesmos - e observar como o social se traduz em suas vidas. O

tempo social, que é quantificável, também é revelado objetiva e

subjetivamente, pensando em suas diversas percepções. Há um dizer

individual que é social e a Sociologia da vida cotidiana, di z Pais (2003), é do

“aqui e agora” que se escreve na temporalidade histórica. Tal Sociologia

buscará o tempo perdido da História, do atual como história, segundo Martins

(2014), do possível que se esconde na falsa temporalidade do tempo das

ações sociais reduzido ao agora, ao viver o instante, ao mero sobreviver, o

tempo do dia a dia, de um dia depois do outro, sem passado nem futuro.

A sociedade está organizada em camadas de tempos sociais

desencontrados, em que o atual é anacrônico, ou seja, destemporali zado.

Nesta sociologia, inspirada em Henri Lefebvre apud Martins (2014), se busca o

desvendamento dos tempos que nos regem e não sabemos o que foi e

continua sendo, o que será já é, são as tensões que pulsam no cotidiano. Nas

sutilezas desse campo de mistérios e de ocultações da realidade social, a

imaginação sociológica encontra seus grandes desafios teóricos e

investigativos. O sociólogo não pode desconsiderar a relevância do

fragmentário, afirma Martins (2014), pois aí estão os segredos mais eficazes da

reprodução social e da oculta revolução que se esconde nas dobras cinzentas

do irrelevante e do que parece ser mínimo. Como colocou Lefebvre apud

Martins (2014), é no cotidiano que se encontra a produção social inovadora, a

práxis, dialeticamente contida no próprio processo de reinteração das relações

sociais já existentes, no reprodutivo. Logo, a sociologia da vida cotidiana se

[...] propõe a investigar o visível e o aparente das ações e relações sociais cotidianas na mediação das estruturas sociais e dos processos históricos que lhes dão sentido, não raro o sentido inesperado. O artesanato intelectual do sociólogo é a ferramenta inventiva que constrói em face de casa desafio. Não é um método técnico, mas um conjunto de intuições sociologicamente fundamentadas das regras de criação do método ad-hoc, ajustado ao desafio investigativo e explicativo do objeto ao mesmo tempo, em cada circunstância. (MARTINS, 2014, p. 10)

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Segundo Martins (2014), no caso dos sociólogos, o tema é uma variante

da tradição mais geral do artesanato, da pesquisa sociológica, da atividade

intelectual que investiga e desvenda, cria o dado, faz da informação bruta um

dado sociológico. A sociologia como um pensar que ainda é um fazer, mas um

fazer pensando; a sociologia no âmbito da arte e não da coisa e da produção.

Dessa maneira, Martins (2014) considera que a literatura se aproxima muito

mais do fazer sociológico, considerando que

A literatura tem mais liberdade para lidar com as filigranas do real. Contém descrições da realidade social mais rica do que a narrativa sociológica pode conter. Aquela dominada pela riqueza do imaginário; esta circunscrita aos cânones e regras das exatidões que limitam as possibilidades da imaginação sociológica. Assim como a Sociologia, muitas obras da literatura dos séculos XIX e XX, em boa medida, também trataram de diferentes manifestações da desagregação da sociedade tradicional e da difícil constituição da sociedade moderna. No fundo literatura e Sociologia se debruçam sobre a perdição do homem contemporâneo, seu afastamento de si mesmo e de suas referências, da comédia ao drama e à tragédia. São modalidades diferentes de conhecimento social, como sabemos. Mas a literatura mostra ao sociólogo um amplo terreno de desencontro que afirma essa diferença, mas também confronta nas dúvidas que provoca, nos desafios que propõe à imaginação sociológica. (MARTINS, 2014, p. 16)

4.1 A cultura digital e as tecnologias de informação e comunicação

Diante deste contexto social e dinâmico da vida cotidiana, da cultura

digital e das novas práticas culturais em que esta pesquisa e o estudo de caso

realizado se debruçaram. Por se tratar de uma temática e de uma iniciativa

analisada, extremamente contemporânea, torna-se importante situar algumas

definições das categorias analíticas utilizadas e as perspectivas pela quais se

tem caminhado neste percurso.

A primeira delas, e talvez a mais importante, é a de cultura digital10. Ainda

muito recente, aproxima-se de outros conceitos como sociedade da

informação, cibercultura, revolução digital, era digital, cada qual utilizado por

determinados autores, ativistas, pensadores. Esse conceito demarca nossa

época, em que as relações humanas são fortemente mediadas por tecnologias

10

http://culturadigital.br/conceito-de-cultura-digital/

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e comunicações digitais, afirma a plataforma Cultura Digital. Lançada em 2009

pelo Ministério da Cultura do Brasil, a iniciativa tem o intuito de agregar na web,

pessoas e fluxos de conteúdos ligados à construção de políticas públicas e

marcos regulatórios para o digital. A plataforma estimulou a participação de

mais de 7 mil integrantes, que criaram 2000 blogs, 400 grupos de discussão e

500 fóruns, até 2012. A plataforma também foi importante em debates como o

do Marco Civil da Internet, proposto pelo Ministério da Justiça brasileiro,

promovendo o uso da rede não apenas como espaço de discussão, mas como

ferramenta para colaboração do público e sistematização das contribuições

enviadas ao projeto de lei, aprovado em 2014. Manuel Castells – afirma em

texto da plataforma Cultura Digital, num dossiê da revista Telos – definiu a

cultura digital nos tópicos a seguir:

Habilidade de comunicar ou mesclar qualquer produto baseado em uma linguagem comum digital; Habilidade para comunicar desde o local até o global em tempo real e, vice-versa, para poder diluir o processo de interação; Existência de múltiplas modalidades de comunicação interconexão de todas as redes digitalizadas de bases de dados ou a realização do sonho do hipertexto de Nelson com o sistema de armazenamento e recuperação de dados, batizado como Xanadú, em 1965; Capacidade de reconfigurar todas as configurações criando um novo sentido nas diferentes camadas dos processos de comunicação; Constituição gradual da mente colet iva pelo trabalho em rede, mediante um conjunto de cérebros sem limite algum. Neste ponto, me refiro às conexões entre cérebros em rede e a mente coletiva. (CULTURADIGITAL.BR; 2015)

Os pesquisadores e ativistas Bianca Santana e Sérgio Amadeu Bueno,

num processo participativo de construção de uma agenda de Cultura Digital, no

Seminário Internacional de Diversidade Cultural, sistematizaram a seguinte

definição:

Reunindo ciência e cultura, antes separadas pela dinâmica das sociedades industriais, centrada na digitalização crescente de toda a produção simbólica da humanidade, forjada na elaboração ambivalente entre o espaço e o ciberespaço, na alta velocidade das redes informacionais, no ideal de interatividade e de liberdade recombinante, nas práticas de simulação, na obra inacabada e em inteligências coletivas, a cultura digital é uma realidade de uma mudança de era. Como toda mudança, seu sentido está em disputa, sua aparência

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caótica não pode esconder seu sistema, mas seus processos, cada vez mais auto-organizados e emergentes, horizontais, formados como descontinuidades articuladas, podem ser assumidos pelas comunidades locais, em seu caminho de virtualização, para ampliar sua fala, seus costumes e seus interesses. A cultura digital é a cultura da contemporaneidade. (CULTURADIGITAL.BR; 2015)

Por fim, Gilberto Gil - músico que esteve à frente do Ministério da Cultura

e que participou de vários eventos voltados à cultura forjada pelas redes

interconectas e pelos recursos digitais - numa aula magna na Universidade de

São Paulo, esforçou-se em conceituar o que seria a cultura digital com a

definição a seguir:

Novas e velhas tradições, signos locais e globais, linguagens de todos os cantos são bem-vindos a este curto-circuito antropológico. A cultura deve ser pensada neste jogo, nessa dialética permanente entre tradição e invenção, nos cruzamentos entre matrizes muitas vezes milenares e tecnologias de ponta, nas três dimensões básicas de sua existência: a dimensão simbólica, a dimensão de cidadania e inclusão, e a dimensão econômica. Atuar em cultura digital concretiza essa filosofia, que abre espaço para redefinir a forma e o conteúdo das políticas culturais, e transforma o Ministério da Cultura em ministério da liberdade, ministério da criatividade, o ministério da ousadia, ministério da contemporaneidade. Ministério, enfim, da Cultura Digital e das Indústrias Criativas. Cultura digital é um conceito novo. Parte da ideia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte. (CULTURADIGITAL.BR; 2015)

O intuito de trazer estas perspectivas tão interessantes sobre este

fenômeno social ainda recente vem no sentido de mostrar os esforços que vêm

se constituindo atualmente na direção de compreendê-lo, e de demonstrar a

importância desta pesquisa, que também se coloca na busca de uma

compreensão deste novo contexto social.

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Por conseguinte, o tema da tecnologia surge no horizonte desta reflexão e

análise, enquanto agente de mudança e produto de evolução cultural e social.

Partiu-se de uma percepção, como diz Damásio (2007), de que “estas

tecnologias representam efetivamente algo novo, passível de provocar

profundas transformações nos comportamentos subjectivos e na organização

da experiência coletiva”.

A escolha de uma iniciativa no âmbito da educação vem no sentido de

que a educação e a tecnologia, como diz Damásio (2007), são objetos de

estudo com forte relevância social e científica.

A educação é um objecto privilegiado para compreendermos de que forma é que se estão a transformar as nossas fronteiras sociais e culturais e, consequentemente, a redesenhar a nossa experiência subjetiva e a nossa identidade. (DAMÁSIO, 2007, p.16)

Consequentemente, a experiência educativa refletirá sempre uma ação

dos sujeitos sobre eles próprios ou sobre outros indivíduos, “determinada por

uma interacção que envolve entidades biológicas e culturais que se relacionam

com ambientes sociais e naturais”, afirma Damásio (2007). A estrutura social

da experiência educativa tem se transformado em função da importância cada

vez maior da tecnologia no modelo de produção e organização social

característico de nossas sociedades, diz Castells apud Damásio (2007). Assim,

diz Damásio (2003), é possível pensar nas consequências cognitivas,

comportamentais e sociais, qualitativamente positivas para os sujeitos e para a

comunidade envolvida num determinado uso de uma ou mais tecnologias da

informação e comunicação, num processo educativo.

Neste ponto da discussão, é importante ponderar também algumas

definições sobre a “tecnologia”, pois ao longo da pesquisa utilizamos algumas

nomenclaturas diferentes - de acordo com os determinados momentos

históricos e os autores e pesquisadores estudados - como: novas tecnologias

de informação e comunicação – NTIC ou tecnologias digitais ou somente

tecnologias da informação e comunicação – TIC. Este é um terreno fértil de

debate, quer científico, quer ideológico, afirma Damásio (2007), no qual é muito

difícil estabelecer uma definição clara e uniforme que cubra a multiplicidade de

perspectivas científicas e também as abordagens ideológicas. Seguindo a

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perspectiva de Damásio (2007), nesta pesquisa, por tecnologia, entende-se “a

soma de um dispositivo, das suas aplicações, contextos sociais de uso e

arranjos sociais e organizacionais que se constituem em seu torno”. Este

conceito não se limita somente à extensão da atividade humana, mas integra

também aquilo que Licklider apud Damásio (2007) definiu como simbiose entre

homem e máquina, em que a segunda funciona como elemento cooperante e

ativo durante os procedimentos de raciocínio dos sujeitos. Para Damásio

(2007),

[...] esta ideia de “colaboração” é determinante para a compreensão da relação entre a tecnologia e o sujeito e enforma a nossa concepção da relação entre a tecnologia e a sociedade, sendo por isso, essencial, nomeadamente ao nível educativo. (DAMÁSIO, 2007, p.45)

A tecnologia combina, assim, elementos tecnológicos com práticas e

formas de organização social, envolvendo, diz Damásio (2007),

[...] um conjunto de artefatos e dispositivos que incorporam um vasto número de práticas no seu uso e desenvolvimento e que se organizam de acordo com lógicas sociais e organizacionais específicas. (DAMÁSIO, 2007, p.45)

As Tecnologias da Informação e Comunicação são uma forma particular

de manifestação deste conceito genérico e se constituem, afirma Damásio

(2007), da maior relevância para a nossa organização social. Segundo o autor,

não podemos considerar que elas são o centro nervoso da nossa ordem social

e que sem elas viveríamos um caos, mas devemos entender que são

essenciais,

[...] porque a sua forma de organização e a sua estrutura nos permite individual e coletivamente, coligir, processar e partilhar o conjunto de crenças e valores que facilitam a criação de sentidos partilhados que sedimentam a nossa organização social. (DAMÁSIO, 2007, p.45)

O uso de uma tecnologia não é configurado apenas na prática direta do

manuseamento ou compreensão do funcionamento do sistema, ele envolve,

segundo Damásio (2007), a soma de três elementos: tecnologia, fatores sociais

e práticas.

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Nesta perspectiva, torna-se relevante fazermos uma breve definição do

conceito de uso, contribuindo também para um horizonte mais claro desta

discussão. “O uso é um fenômeno participatório e colaborativo que implica uma

apropriação efetiva da tecnologia pelo sujeito”, ou seja, para Damásio (2007),

não se limita somente ao manuseamento instrumental da tecnologia; o uso é

[...] participatório, porque implica uma experiência activa do lado do sujeito que se adapta à forma da tecnologia em ordem à prossecução dos seus objectivos; colaborativo, porque a tecnologia tem de se adaptar ao sujeito e integrar as suas crenças, valores e referências na sua própria estrutura, em ordem a passa aos estágios seguintes de evolução. (DAMÁSIO, 2007, p.47)

A necessidade não é algo obrigatoriamente enunciada pelo sujeito de

forma consciente, mas é um fenômeno, afirma Damásio (2007), que se constrói

mutuamente ao logo de diferentes estágios de evolução. Dessa forma,

considera-se que

[...] o uso é um fenômeno colaborativo, porque o indivíduo não recorre à tecnologia como resposta óbvia a uma carência, é a tecnologia e o sujeito que se moldam mutuamente no interior da esfera social em ordem à obtenção de resultados socialmente enunciados e partilhados. (DAMASIO, 2007, p. 47)

A contribuição de Damásio (2007) vem no sentido de iluminar algumas

categorias analíticas importantes, favorecendo a localização da abordagem

desta pesquisa como um todo, tendo em vista o atual cenário germinante em

que esta temática se insere. No que tange à abordagem empírica,

especialmente quando envolve as tecnologias e a internet, é importante

pontuar que estes elementos têm sido desafiantes às pesquisas nas Ciências

Humanas e Sociais, diz Fragoso (2013). Por este ponto de vista, a internet e as

novas tecnologias podem ser compreendidas tanto como objeto de pesquisa

(aquilo que se estuda), quanto local de pesquisa (ambiente onde a pesquisa é

realizada) e, ainda, instrumento de pesquisa (por exemplo, ferramenta para

coleta de dados sobre um tema ou assunto). Para Alexander Halavais apud

Fragoso (2013),

[...] a internet constitui uma representação de nossas práticas sociais e demanda novas formas de observação, que requerem que os cientistas sociais voltem a fabricar suas próprias lentes, procurando instrumentos e métodos

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que viabilizem novas maneiras de enxergar. (FRAGOSO, 2013, p. 16)

O questionamento sobre a disciplinaridade dos estudos de internet está

longe de ser resolvido, diz Fragoso (2013). E, segundo Forests Costigan apud

Fragoso (2013), um dos principais desafios é o fato dela não poder ser

capturada por um quadro individual, tendo em vista que cada retrato

acrescenta um quadro e fronteiras que não existem, já que a internet não pode

ser contida. Esses retratos também acrescentam enfoques e tornam-se

proeminências a itens individuais que não são universalmente dominantes. Os

retratos ficam estagnados, mas a internet continua em constante estado de

fluxo.

De forma geral, segundo a autora, os estudos das ciências sociais

produzidos sobre a internet, na perspectiva dos fluxos e dos tipos de análises,

têm se dividido em duas categorias: uma relativa à habilidade de busca e

recuperação de informações a partir de enormes bancos de dados e outra

relacionada às capacidades de comunicação interativa presentes na internet.

Dentre as abordagens qualitativas de pesquisa sobre a internet, surgem

dois modelos de abordagem teórica, segundo Christine Hine apud Fragoso

(2013): a internet enquanto cultura e enquanto artefato cultural. O primeiro

compreende o espaço distinto do off-line, no qual se enfoca o contexto cultural

dos fenômenos que ocorrem nas comunidades e/ou mundos virtuais, levando

em consideração também suas funções e formações sociais, “além de tipos de

organizações, como conflitos, cooperações e o fortalecimento das

comunidades virtuais como uma entre os diferentes tipos de narrativas

possibilitadas pelas redes digitais”.

O segundo modelo de abordagem traz a perspectiva da internet como

artefato cultural11, observando sua inserção na vida cotidiana e favorecendo

11

A noção de artefato cultural é oriunda da antropologia e dos estudos sobre as com unidades. Segundo Shah, um artefato cultural pode ser definido como um repositório vivo de significados compartilhados que são produzidos por uma comunidade de ideias. Um artefato cultural é um s ímbolo comunitário de pertencimento e possessão (no sentido não violento e não religioso da palavra). Um artefato cultural se torna infinitamente mutável e gera muitas autorreferências que são mutuamente definidas, muito mais do que gera uma narrativa central. Por estar além do alcance da lei, o artefato cultural torna-se um signo para a construção da Ordem Simbólica dentro da comunidade. Ele carrega uma autoridade ilegítima, que não é sancionada por sistemas legais ou pelo Estado, mas pelas práticas vivenciadas pelas pessoas que as criam. (SHAH apud FRAGOSO, p. 40, 2013).

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[...] a percepção da rede como um elemento da cultura e não como uma entidade à parte, em uma perspectiva que se diferencia da anterior, entre outras coisas, pela integração dos âmbitos on-line e off-line. A ideia de artefato cultural compreende que existem diferentes significados culturais em diferentes contextos de usos. O objeto internet não é único, mas sim multifacetado e passível de apropriações. (FRAGOSO, 2013, p.42)

A noção da internet como artefato cultural oportuniza um entendimento

do objeto como um local intersticial, onde as fronteiras do on-line e off-line são

fluidas e ambos se interatuam. Neste sentido, as práticas de produção e

consumo de conteúdos dos usuários trazem um amplo recorte de análise.

Neste sentido, o coletivo de pesquisa espanhol Mediacciones, diz Fragoso

(2013), acrescentou um terceiro modelo de abordagem da internet: como

tecnologia midiática que gera práticas sociais - embora, segunda a autora, se

pareça filiada à noção de artefato cultural.

4.2 As mudanças na leitura como prática cultural

A prática cultural da leitura, analisada em seu contexto histórico, cultural e

também sociológico por Roger Chartier, Jean Hébrard, François Bresson, Jean

Marie Goulemot, como se verá mais adiante, remete a uma das práticas

culturais mais significativas que compõe os patchworks cotidianos, como diz

Certeau (2013). Pode ser considerada como uma prática cotidiana do tipo

tática, produzida sem capitalizar, ou seja, sem dominar o tempo, assim como

outras práticas como conversar, habitar e cozinhar. As maneiras de falar,

enquanto retórica ou ciência, oferecem um aparelho de figuras típicas para a

análise das maneiras cotidianas de fazer, onde duas lógicas se fazem

presentes na ação, uma estratégica ou tática, e se depreendem dessas duas

maneiras de praticar a linguagem. Segundo Certeau (2013), “no espaço da

língua (como no dos jogos) uma sociedade explicita mais as regras formais do

agir e os funcionamentos que as diferenciam.”

A leitura e a escritura constituem uma linguagem simbólica, com a qual

nos comunicamos, pela fala, que passa despercebida na vida cotidiana. Apesar

disso, suas transformações ao longo da história da humanidade, como afirmou

Goulemot (2009), remetem sua importância à realidade social e ao acervo

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social de conhecimento ou à biblioteca cultural construídos a partir do sistema

de valores, códigos e significados presentes na linguagem e,

consequentemente, na escrita e na leitura. Dessa forma, realidade e

conhecimento são discutidos por Berger (1974) na problemática da sociologia

do conhecimento, que trata da multiplicidade empírica do conhecimento nas

sociedades humanas e também dos processos pelos quais qualquer corpo de

conhecimento passa para chegar a ser socialmente estabelecido como

realidade. Tal sociologia diz respeito à analise da construção da realidade

social e trata das relações entre o pensamento humano e o contexto social em

que surge. Irá ocupar-se de tudo aquilo que passa por conhecimento em uma

sociedade, independentemente de sua validade ou invalidade. Na medida em

que todo conhecimento humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em

situações sociais, busca compreender o processo pelo qual isso se realiza, de

modo que uma dada realidade admitida como certa solidifica-se para o homem

da rua. Por isso, torna-se importante

[...] definir “realidade” como uma qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser independente de nossa própria volição (não podemos “desejar que não existam”), e definir “conhecimento” como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características especificas. É neste sentido (declaradamente simplista) que estes termos tem importância tanto para o homem da rua quanto para o filósofo. (BERGER, 1974, p. 11)

Por ser o foco exorbitado da cultura contemporânea e de seu consumo, a

leitura é um ponto de partida, segundo Certeau (2013), para a compreensão do

contexto social, pensando no binômio produção-consumo, cujo possível

substituto equivalente geral seria a escritura-leitura.

Da televisão ao jornal, da publicidade a todas as epifanias mercadológicas, a nossa sociedade canceriza a vista, mede toda a realidade por sua capacidade de mostrar ou de se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar. É uma epopeia do olho e da pulsão de ler. (CERTEAU, 2013, p.47)

A leitura (da imagem ou texto) poderia constituir-se como um ponto

máximo da passividade do consumidor, enquanto voyeur, em uma sociedade

do espetáculo. No entanto, pelo contrário, diz Certeau (2013), a atividade

leitora apresenta todos os traços de uma produção silenciosa: “ flutuação

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através da página, metamorfose do texto pelo olho que viaja, improvisação e

expectação de significados induzidos de certas palavras, intersecções de

espaços escritos, dança efêmera”. Incapaz de fazer estoque, a menos que se

registre ou escreva, o leitor não se garante contra o gasto de tempo; esquece o

que está lendo e também aquilo que já leu, a não ser quando compra o objeto,

ou seja, um livro ou imagem, que, no entanto, se tornam apenas resíduos ou

promessa dos instantes perdidos na leitura.

A fina película do escrito se torna um remover de camadas, um jogo de espaços. Um mundo diferente (o do leitor se introduz no lugar do autor. Esta mutação torna o texto habitável, à maneira de um apartamento alugado. Ele transforma a propriedade do outro em lugar tomado de empréstimo, por alguns instantes, por um passante. (CERTEAU, 2013, p.48)

O leitor é como um caçador. Transportado para aquele instante da leitura,

diz Certeau (2013), se faz plural e insinua as astúcias do prazer da

reapropriação do texto do outro. Esta produção, enquanto invenção de

memória, faz das palavras soluções de histórias mudas, transformando o

legível em memorável, sendo que os usuários dos códigos sociais transformam

o lido em metáforas e elipses de suas caçadas. Destarte, a leitura introduz,

segundo Certeau (2013), uma “arte” que não é passividade; muito parecido

com o que fizeram os poetas e romanceiros com a teoria, uma inovação

infiltrada e nos termos de uma tradição. Na Idade Média, o texto se enquadrava

numa teoria de quatro ou sete leituras que poderiam ser recebidas num livro.

Atualmente, o texto não provém mais de uma tradição; tem sido imposto por

um geração de uma tecnocracia produtivista e agora não se trata mais de um

livro de referência, mas de toda a sociedade feita de texto e de escritura da lei

anônima da produção.

A esta arte de leitores conviria comparar outras. Por exemplo, a arte de conversar: retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras “de situação de palavra”, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não pertence a ninguém. A conversa é um efeito provisório e coletivo de competências na arte de manipular “lugares-comuns” e jogar com o inevitável dos acontecimentos para torná-los “habitáveis”. (CERTEAU, 2013, p. 49)

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A vida diária se apresenta como uma realidade ordenada e, segundo

Berger (1974), seus fenômenos estão previamente dispostos em padrões que

aparentemente são independentes da apreensão que se tem deles, mas que

se impõe a mesma, e a realidade da vida diária já aparece objetivada, ou seja,

constituída por uma ordem de objetos designados como objetos antes da

nossa entrada em cena. Assim, a linguagem utilizada na vida cotidiana fornece

continuamente as necessárias objetivações, determinando a ordem em que

elas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha sentido para o

indivíduo. A linguagem comum de que dispomos para a objetivação de nossas

experiências funda-se na vida cotidiana e conserva-se sempre apontando para

ela, mesmo quando a uti lizamos para interpretar experiências delimitadas de

significação. Compreender essa linguagem comum é, por isso, essencial para

a compreensão da nossa própria realidade da vida cotidiana e, ademais, é por

meio dela que participo com meus semelhantes. Sua origem vem da situação

face a face, afirma Berger (1974), mas pode ser facilmente separada desta, por

exemplo, quando se fala ao telefone ou pelo rádio ou grita-se no escuro ou a

distância ou se transmite um significado linguístico por meio da escrita,

compreendendo-a como um sistema de sinais de segundo grau. O destaque

consiste fundamentalmente de sua capacidade de comunicar significados que

não são expressões diretas da subjetividade “aqui e agora”. Outros sistemas de

sinais participam junto, mas sua imensa variedade e complexidade tornam-no

muito mais facilmente destacável da situação face a face do que qualquer outro

como, por exemplo, o sistema de gestos. Deste modo, diz Berger (1974), a

linguagem é capaz de se tornar um repositório objetivo de vastas acumulações

de significados e experiências, preservando no tempo para transmitir as

gerações seguintes.

A reciprocidade inerente à linguagem é outra das qualidades que a

distingue de outros sistemas de sinais e, segundo Berger (1974), a contínua

produção de sinais vocais numa conversa, por exemplo, pode ser sincronizada

de modo sensível com as intenções subjetivas dos participantes envolvidos na

mesma. Falamos como pensamos, ouvimos o que cada um diz virtualmente no

mesmo momento, tornando possível o contínuo, sincronizado e recíproco

acesso às nossas subjetividades, numa aproximação intersubjetiva na situação

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face a face que nenhum outro sistema de sinais pode reproduzir. Além disso,

ouvimos a nós mesmos, à medida que falamos. Os próprios significados

subjetivos se tornam objetiva e continuamente alcançáveis e mais reais para

nós mesmos. Em outras palavras, a linguagem, diz Berger (1974), torna mais

real a nossa subjetividade, não somente para o interlocutor de uma conversa,

mas também para nós mesmos. Esta é uma capacidade da linguagem de

cristalizar e estabilizar para nós a nossa própria subjetividade, conservando-a

quando a linguagem se destaca da situação face a face.

Enquanto um sistema de sinais, a linguagem tem a qualidade da

objetividade, encontrando-a com uma facticidade externa a nós e, ao mesmo

tempo, exercendo efeitos coercitivos, ou seja, nos forçando a entrar em seus

padrões. Não se pode usar as regras da sintaxe alemã quando se fala inglês,

diz Berger (1974), o que faz com que os padrões dominantes da fala correta

variem de acordo com as ocasiões, mesmo se forem utilizados padrões

“impróprios” privados.

A linguagem me fornece a imediata possibilidade de contínua objetivação de minha experiência em desenvolvimento. Em outras palavras, a linguagem é flexivelmente expansiva, de modo que me permite objetivar um grande número de experiências que encontro em meu caminho no curso da vida. (BERGER, 1974, p. 57)

A linguagem permite, assim, uma tipificação das experiências, que podem

ser agrupadas em amplas categorias que fazem sentido para o indivíduo e para

os seus semelhantes. Segundo Berger (1974), “desta maneira, as experiências

biográficas estão sendo continuamente reunidas em ordens gerais de

significados, objetiva e subjetivamente reais.”

Esta capacidade de transcendência do “aqui e agora” estabelece pontes

entre diferentes zonas dentro da realidade da vida cotidiana, integrando-as

numa totalidade dotada de sentido. Tais transcendências possuem dimensões

espaciais, temporais e sociais, sendo que por meio da linguagem, afirma

Berger (1974), um mundo inteiro pode ser atualizado a qualquer momento.

Através das objetivações linguísticas, no que tange às relações sociais, a

linguagem torna presente os indivíduos que estão no passado relembrado ou

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constituído, assim como outros projetados como figuras imaginárias no futuro,

transcendendo completamente a realidade da vida cotidiana.

Um tema significativo afirma Berger (1974) que “abrange assim esferas da

realidade pode ser definido como um símbolo, e a maneira linguística pela qual

se realiza esta transcendência pode ser chamada de linguagem simbólica”. A

significação linguística se desprende da realidade “aqui e agora” da vida

cotidiana, elevando-se a regiões inacessíveis à experiência cotidiana.

Construindo imensos edifícios de representação simbólica, segundo Berger

(1974), eleva-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas

presenças de outro mundo, como é o caso da religião, da filosofia, da arte e da

ciência, sistemas de símbolos historicamente importantes deste gênero.

“Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum da realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” (BERGER, 1974, p. 59)

Desse modo, campos semânticos ou zonas de significação

linguisticamente circunscritas são construídas pela linguagem. E, engrenados

na organização destes campos semânticos, encontram-se o vocabulário, a

gramática e a sintaxe.

Assim, a linguagem constrói esquemas de classificação para diferenciar os objetos em “gênero” (coisa muito diferente do sexo, está claro) ou em número; formas para realizar enunciados da ação por oposição a enunciados do ser; modos de indicar graus de intimidade social, etc. (BERGER, 1974, p.59)

Uma rica coleção de significados, afirma Berger (1974), é continuamente

aproveitável para a ordenação da experiência social dos indivíduos. Os campos

semânticos construídos a partir da soma de objetivações linguísticas e a

experiência biográfica e histórica podem ser objetivadas, conservadas e

acumuladas. Acumulação esta que ocorre de maneira seletiva, pois os campos

semânticos determinam o que será retido e esquecido como partes das

experiências totais do indivíduo e da sociedade.

Em virtude desta acumulação constitui-se um acervo social de conhecimento que é transmitido de uma

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geração a outra e utilizável pelo indivíduo na vida cotidiana. Vivo num mundo do senso comum da vida cotidiana, equipado com corpos específicos de conhecimento.(BERGER, 1974, p.60)

Neste contexto das significações linguísticas e desta coleção de

significados, a escrita alfabética constituiu-se enquanto uma codificação da

linguagem oral - única forma “natural”, por assim dizer, segundo François

Bresson (2009), no sentido de que sua utilização na produção de um discurso

não requer nenhum procedimento de instrução e educação. As escritas

alfabéticas foram inventadas apenas uma vez na história da humanidade,

enquanto as escritas ideográficas ou silábicas puderam ser redescobertas

várias vezes. A história dos grafismos remonta ao paleolítico e a da escrita é

muito mais curta, tendo somente uns cinco mil anos. Assim, quando se fala em

leitura, se pensa imediatamente nos textos compostos segundo os campos

semânticos construídos, conforme nossas maneiras de escrever por meio de

um alfabeto. Mas, é preciso lembrar-se que esta não é a única maneira de

transcrever uma linguagem; segundo o autor, por exemplo, a língua chinesa

utiliza outro tipo de grafia, que não é o alfabeto.

Dessa maneira, a utilização de uma determinada língua implica num

processo de aquisição, que ocorre a partir de um contato com a palavra de

outro, por exemplo, nos primeiros meses de vida - uma forma prática que não

precisa ser explicitamente organizada e socialmente dirigida. Por outro lado, o

mesmo não ocorre em relação à escrita e à leitura , que não são adquiridas

espontaneamente, mas, necessariamente, são práticas sociais instituídas e o

simples contato com os escritos e a observação de leituras não são suficientes

para a transmissão deste conhecimento. A passagem da forma oral primitiva da

língua para a forma gráfica codificada, segundo Bresson (2009), nunca é

imediata. Por isso, é interessante perguntar, segundo o autor, pensando na

leitura e suas dificuldades, como em sociedades como as nossas -

suficientemente alfabetizadas e em que estamos constantemente em contato

com o escrito - a aprendizagem da leitura e da escrita ainda requer ensino,

mesmo que, em nossa vida cotidiana, cartazes, embalagens, sinais de trânsito,

paradas de ônibus e do metrô sejam oferecidas aos nossos olhares desde

muito cedo.

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Esse carácter instituído do escrito e a necessidade de seu ensino são independentes da forma da codificação: o problema é o mesmo na China ou no Japão, onde os processos de escrita são muito diferentes dos nossos e onde a abundância do escrito é da mesma ordem. (BRESSON, 2009,p. 26)

Acreditou-se que as dificuldades da escrita e da leitura advinham das

formas do grafismo e da sua organização sequencial de direção; e, logo

depois, nos anos quarenta, atribuiu-se as dificuldades patológicas encontradas

na aprendizagem da leitura (dislexias), as dificuldades de organização do

espaço, que acreditavam ser mais frequentes nos canhotos que nos destros o

devido a dificuldade de tratamento das sequências de caracteres orientados.

Mas, após a realização de pesquisas sistemáticas, como aponta Bresson

(2009), estas conjecturas não se confirmaram. Isto posto, as letras devem ser

lidas no sentido correto, mesmo se soubermos ler ao inverso ou no espelho,

pois são, necessariamente, orientadas em relação à linha, seja ela reta ou não,

percorrida da direita para esquerda ou vice-versa ou de cima para baixo.

A direção da linha, com seu início e seu fim, encadeia os elementos sucessivos do discurso escrito como a palavra se encadeia em seus momentos sucessivos. O tempo do percurso da linha reproduz a crônica dos acontecimentos constituída pela sequência das palavras. A linha escrita deve, portanto marcar por um signo ou uma convenção de disposição onde é o seu começo. A disposição correlativa das letras vizinhas explicita esta orientação. Deve-se notar que os sentidos de leitura não são todos igualmente representados e que, nos textos de várias linhas, a disposição orientada de baixo para cima parece ausente. (BRESSON, 2009, p.26)

A aprendizagem da disposição dos caracteres sucessivos sobre o suporte

de papel, argila, cera ou pedra é uma necessidade da escrita, que faz disto

mais que uma simples figuração. As dificuldades de escrita não estão somente

no reconhecimento das grafias distintas enquanto formas espaciais, mas

encontram-se também, segundo Bresson (2009), no sistema de

correspondência entre a sequência gráfica e a falada, fazendo com que essas

sequências gráficas sejam a linguagem e representem de maneira quase

unívoca um discurso.

Uma escrita constitui uma forma de análise da palavra, que abstrai dela traços suficientes para que,

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independentemente dos lugares e tempos, cada leitor possa restituir praticamente as mesmas palavras ou que as mesmas palavras possam ser traduzidas praticamente nas mesmas grafias.(BRESSON, 2009, p. 28)

Inúmeras maneiras são utilizadas para se assegurar a correspondência

entre palavra e grafia, com o objetivo inicial de conservar, nesta transformação,

o sentido, que é a função da linguagem; e, em seguida, conservar a

propriedade combinatória, uma condição, segundo Bresson (2009), da

propriedade de produtividade da linguagem, capacidade para produzir textos

em número ilimitado e que podem ser inteiramente novos enquanto textos. A

questão da correspondência entre a escrita e o sentido é complexa, pois nosso

conhecimento inicial de nossa língua materna é oral, nosso saber apoia-se

sobre unidades combinacionais que são, ao mesmo tempo, som e sentido.

Para Bresson (2009), “falar ou compreender é atualizar o conhecimento das

palavras, ao mesmo tempo, som e sentido; em certos casos, apenas som,

quando não sabemos o que isso quer dizer”.

O processo de leitura de nossas escritas alfabéticas implica na utilização

de um saber verbal organizado a partir de sons, o que não significa que haja

uma articulação realizada ou esboçada pela leitura silenciosa, que se

desenvolve, para os bons leitores, em velocidades muito superiores às das

leituras que exigem a articulação da fala. Os vínculos entre escrita e voz

também podem ser distinguidos, para Bresson (2009), pois, por exemplo, se

podemos ler poesia mesmo em silêncio, é porque continuamos a fazê-lo

encontrando o ritmo e a melodia. Quando escrevemos, achamos que uma frase

“cai” bem ou mal por conta de sua melodia, sua correspondência com os

grupos normais de respiração.

A invenção da escrita exigiu apenas condições sociais: a escolha de estratégias de escrita estava ligada à estrutura da língua. O alfabeto mostra-se assim um invenção surpreende. O fato de um enorme número de escolares aprender a ler, aparentemente sem dificuldades muito consideráveis, é surpreendente também. O fato de nosso ambiente estar hoje repleto de escrito não torna menos surpreendente a possibilidade da leitura. Fenômeno cultural, portanto, e realmente pouco natural: não podemos prescindir de um ensino para ter acesso a leitura. (BRESSON, 2009 p. 34)

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Com efeito, por um longo período, a leitura, enquanto uma prática cultural

da vida cotidiana, parece não ter colocado qualquer questão e, segundo

Chartier (2009), tornou-se importante elucidar os modelos, efeitos, a história e

o presente de uma prática cultural tão imediata, que parece não poder jamais

ter sido outra coisa senão aquela que é hoje para nós. Assim, considerando a

linguagem simbólica e seus campos semânticos através da significação

linguística e das objetivações na vida cotidiana, como diz Berger (1974),

Chartier (2009) questiona se não seria a leitura o resultado mais

universalmente partilhado da aprendizagem escolar; se a leitura não implicaria

sempre numa relação íntima entre o leitor solitário e o livro ou o jornal que é

sua leitura; uma prática cultural, portanto, mas que naturalmente é para (quase)

todos idêntica. Reconhece-se, neste sentido, o contraste entre grandes leitores

e leitores de ocasião, entre lectores profissionais, para os quais ler é sempre

um gesto de trabalho, e todos aqueles para quem o encontro com os textos é

simples informação e divertimento.

Por isso a importância de se questionar esta representação comum e

remontar à sua história, descobrindo os modos de leitura inteiramente

estranhos ao nosso tempo, afirma Chartier (2009): do século XVIII camponês,

em que a relação com o livro de magia enunciava as dificuldades e exigências

que são aquelas de toda leitura, qualquer que seja ela, para um século XIX

citadino, urbano, em que se conhecia uma pluralidade de usos coletivos ou

individuais. Decifradores de textos ou imagens foram confrontados ao livro ou,

mais imediatamente, a todos os escritos semeados pela cidade, constituindo-se

um primeiro corpus, segundo Chartier (2009), de atitudes antigas, de quando

as formas de ler não estavam separadas das práticas de escrita ligadas a elas -

seja porque através da cópia se permitia domar e sujeitar os perigos do escrito,

seja porque também se multiplicavam no cotidiano urbano os materiais

manuscritos de uma leitura íntima, secreta e possivelmente subversiva.

Dentro e fora-do-texto, estas figuras de leituras antigas estão dadas e

todo autor, todo escrito, acaba por impor uma ordem, uma postura, uma atitude

de leitura. Explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente

pela maquinaria do texto, inscrita na letra da obra e também nos dispositivos de

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sua impressão, o protocolo de leitura, segundo Chartier (2009), define a

interpretação correta e o uso adequado do texto, esboçando seu leitor ideal.

Deste último, autores e editores têm sempre uma clara representação: são as competências que supõem nele que guiam seu trabalho de escrita e de edição; são os pensamentos e condutas que desejam nele que fundam seus esforços e efeitos de persuasão. (CHARTIER, 2009, p.20)

Cada leitor, diz Chartier (2009), a partir de suas referências, individuais ou

sociais, históricas ou existenciais, dará um sentido mais ou menos singular ou

partilhado aos textos de que se apropria. Um reencontro deste fora-do-texto

não é tarefa fácil, pois as confidências dos leitores sobre suas leituras comuns

são raras.

Nas sociedades do Antigo Regime, elas podiam ser encontradas ao fim de uma existência, na narrativa autobiográfica que desfia a trajetória de uma vida, como a de Jamerey-Duval, pastor que se tornou erudito, ou então ao longo de uma correspondência que não separa comentários sobre os livros e as notícias do cotidiano familiar, como a de Jean Ranson, negociante de La Rochelle, leitor fiel de Rousseau. Com estes testemunhos em primeira pessoa, pode-se ter uma medida da distância (ou da identidade) existente entre leitores virtuais, inscritos em filigrana nas páginas do livro, e aqueles de carne e osso que o manuseiam, assim como, podem ser diferenciadas, no concreto das práticas, as habilidades leitoras, os estilos de leitura e os usos do impresso. (CHARTIER, 2009, p. 21)

A partir disso - com o universo da cultura digital atual, advindo das

inovações tecnológicas mais recentes, e o surgimento de uma cultura cada vez

mais imagética e mais fluida, em que o poder dos fluxos é mais importe que os

fluxos de poder – para se pensar a prática cultural da leitura no cotidiano atual,

indagamo-nos: como pensar o leitor do século XXI e os polegarzinhos, como

chamou Serres (2013), que possuem à sua disposição uma infinidade de

recursos audiovisuais e de plataformas digitais para compartilhar suas leituras

íntimas neste universo; e quais as habilidades leitoras, estilos de leitura e usos

do impresso ou do digital se realizam atualmente?

Ler aprende-se e aparecem uma série de interrogações, afirma Chartier

(2009), para se descobrir formas e processos de acesso ao escrito, em que

surgem um conjunto de contrastes, que podem ser discernidos tanto no

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material histórico, quanto na observação contemporânea. A oposição das

aprendizagens escolares institucionais e ordenadas da leitura opõe-se às

aprendizagens selvagens do autodidatismo, do qual Jamerey-Duval12 é uma

figura exemplar, diz Chartier (2009).

Fora da escola e de suas pedagogias formalizadas, a conquista do saber ler supõe, ao mesmo tempo, a entrada em uma cultura já penetrada e trabalhada pelo escrito, mesmo se este for conhecido apenas pela mediação de uma palavra e pelo conhecimento memorizado dos textos, depois reconhecidos, recortados e decifrados no livro.(CHARTIER, 2009, p.21)

Os leitores formados pela instituição nas sociedades tradicionais devem

ser confrontados com aqueles que conquistaram o escrito com grande luta e

competência e se estes últimos não forem certificados e controlados pelos

letrados, corre-se o risco de se produzir leituras fora da norma, improváveis ou

rebeldes. Deste modo, a investigação histórica proporciona uma questão

central difíci l, como aponta Chartier (2009): “nas aprendizagens da leitura, qual

o peso respectivo das estruturas perceptivas e cognitivas do homem e dos

condicionamentos histórica e socialmente variáveis que regem as aquisições?”.

A sociologia das práticas culturais, segundo Hébrard (2009), entende a

leitura como uma arte de fazer que se herda mais do que se aprende e que,

por isso, tem

[...] mais frequentemente valor de sintoma de enraizamento nos grupos sociais que praticam formas dominantes da cultura do que valor de instrumento de mobilidade cultural em direção a esses mesmos grupos. Colocando o acento sobre o ler mais do que sobre o l ivro, sobre a recepção mais do que sobre a posse, os pesquisadores demonstraram amplamente que na escola, não é a leitura que se adquire, mas são as maneiras de ler que aí se revelam. (HEBRARD, 2009, p. 37)

No aprender a ler, a criança, segundo Hébrard (2009), se contentaria em

reinvestir no domínio do escrito as práticas culturais mais gerais do seu

imediato. Porém, a diversidade de resultados obtidos nesse processo são

mascarados pela rigidez da tecnologia pedagógica e a normatividade dos

12

Pequeno camponês do século XVIII, expulso de sua casa aos treze anos pela miséria e brutalidade de seu círculo familiar, não escolarizado, e que, entretanto, após “aventuras extraordinárias”, torna-se aos vinte e cinco anos “professor de história e de antiguidades” na academia de Lunéville no ducado de Lorena. A exemplaridade de um autodidatismo. (HÉBRARD, 2009, p 40.)

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procedimentos de avaliação. Um mesmo ceticismo se coloca em relação a

existência de uma dinâmica cultural ligada ao acesso ao escrito, afirma

Hébrard (2009) que caracteriza os modelos propostos pela psicopedagogia ou

pela psicolinguística para a compreensão da aprendizagem e da prática de

leitura. A conquista dos últimos anos, neste campo, consiste em considerar o

fato da comunicação escrita ser uma comunicação diferenciada, dando ao leitor

uma posição inteiramente distinta da de simples receptor ou mesmo

decodificador da mensagem. O trabalho de leitura é considerado, diz Hébrard

(2009), como um “processo de produção de sentido no qual o texto participa

mais como um conjunto de obrigações (que o leitor toma mais ou menos em

consideração) do que como estrita mensagem”. A partir disso, é possível

mostrar, segundo Hébrard (2009), que a capitalização cultural específica de

cada leitor interfere mais no ato léxico do que sobre a aprendizagem escolar de

uma técnica de decifração. Além disso, torna-se fácil compreender a maneira

pela qual o leitor reativa, no ato de ler, suas aquisições culturais anteriores; por

outro lado, é mais difícil utilizar os mesmos modelos para explicar como o

encontro com um texto pode remodelar um universo pessoal intelectual ou

fantasmagórico. Logo, a leitura pode ser pensada mais facilmente como um

processo de confirmação cultural do que como motor de um deslocamento ou

de uma progressão no mesmo campo.

A leitura é sempre apropriação, invenção e produção de significados, diz

Chartier (1999), utilizando-se da bela imagem de Michel de Certeau que

considera o leitor como um caçador que percorre terras alheias. Apreendido

pela leitura, o texto não tem, de modo algum, o sentido atribuído pelo seu

autor, editor e comentadores. A história da leitura, por sua vez, supõe, em seu

princípio, a liberdade do leitor para deslocar e subverter aquilo que o livro lhe

pretende impor. Esta liberdade não é absoluta e está cercada por limitações

derivadas das capacidades, convenções e hábitos, diz Chartier (1999), que

caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam de

acordo com os tempos, os lugares, os objetos lidos e as razões de ler;

inventam-se novas atitudes e outras se extinguem.

Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a

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relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão.(CHARTIER, 1999, p.77)

O texto eletrônico apresentou-se como uma revolução, mas a história do

livro já viu outras, segundo Chartier (1999). Uma primeira tentação é comparar

a revolução eletrônica com a revolução de Gutenberg, na qual uma nova

técnica, baseada nos tipos móveis e na prensa, transfigurou a cultura escrita –

numa época (meados da década de 1450) em que a reprodução de um texto

só era possível copiando-o à mão. Esta inovação possibilitou uma redução no

custo do livro, através da distribuição das despesas pelo total da tiragem, e,

analogamente, uma redução no tempo de reprodução do texto, graças ao

trabalho da oficina tipográfica, afirma Chartier (1999). Todavia, as estruturas

fundamentais de um livro manuscrito e as de um livro produzido pós-Gutenberg

têm, ambas, sua base no códex. Os dois são objetos compostos por folhas

dobradas um certo número de vezes, determinando o formato do livro e de

seus sucessivos cadernos. Dessa maneira, diz Chartier (1999), a distribuição

do texto na superfície da página, os instrumentos que permitem as

identificações (paginação, numerações), os índices e os sumários existem

desde a época dos manuscritos. Isso é herdado por Gutenberg e, depois dele,

pelo livro moderno, nos permitindo verificar uma continuidade muito forte entre

a cultura do manuscrito e a cultura do impresso, embora se tenha acreditado

numa ruptura total entre uma e outra.

Por sucessivos deslizamentos, a impressão se impôs mais lentamente do

que se imagina, afirma Chartier (1999), e conviveu também com uma espécie

de sobreposição com um outro sistema de multiplicação, a xilografia, que, na

China, no Japão e na Coreia, propiciou um outro sentido para o signo. Nesse

sistema, observamos como ponto fundamental a forte continuidade entre a arte

do texto manuscrito, a caligrafia e o caractere impresso, pois se tratava de uma

impressão sobre o papel, mas sem tipos móveis, em que os escritos eram

gravados em madeira e a técnica de impressão era aquela da fricção da folha

sobre a madeira entintada. Neste sentido, o signo no extremo oriente possui,

ao mesmo tempo, um conteúdo semântico e um sentido, pela sua própria

forma, o que não aconteceu no Ocidente.

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No final do século XVI e início do XVII, a imagem inserida no livro está

ligada à técnica da gravura em cobre e vê-se, então, uma disjunção entre o

texto e a imagem para imprimir: de um lado, os caracteres tipográficos e, de

outro, as gravuras em cobre, sendo necessárias prensas diferentes, duas

oficinas, duas profissões e duas competências. Isso pode explicar porque, até

o século XIX, a imagem ficou situada à margem do texto, no “frontispício

abrindo o livro, as pranchas fora-do-texto”. No Oriente, por sua vez, na

xilografia, diz Chartier (1999), permanece mais familiar a ligação forte entre

texto e imagem, já que era, gravados sobre o mesmo suporte. Nestes

deslizamentos e sobreposições de mudanças fundamentais das maneiras de

transmitir a informação, diz Darton (2010), por meio das mudanças no suporte

tecnológico, a escrita pode ser considerada, como um avanço desta natureza,

mais importante da história da humanidade. Transformando, por sua vez, a

relação do ser humano com o passado abrindo caminho para o livro como força

histórica. Nesta perspectiva, o historiador do livro, segundo Chartier (1999), ao

olhar para trás, deve ser producente ao definir as transformações passadas,

desde logo, porque o objeto escapa à apreensão da história material, tal como

era sabido outrora abordar e definir o livro, tornando o termo objeto difícil de ser

empregado atualmente, pois existe

[...] um objeto que é a tela sobre a qual o texto eletrônico é lido, mas este objeto não é mais manuseado diretamente, imediatamente pelo leitor. A inscrição do texto na tela cria uma distribuição, uma organização, uma estruturação do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se defrontava o leitor do livro em rolo da Antiguidade ou o leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou impresso, onde o texto é organizado a partir de sua estrutura em cadernos, folhas e páginas. O fluxo sequencial do texto na tela, a continuidade que lhe é dada, o fato de que suas fronteiras não são mais tão radicalmente visíveis, como no livro que encerra, no interior de sua encadernação ou de sua capa, o texto que ele carrega, a possibilidade para o leitor de embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos na mesma memória eletrônica: todos esses traços indicam que a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler. (CHARTIER, p.12-13, 1999)

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Se o objeto perde sua antiga densidade, o leitor se sente livre. O leitor da

tela se assemelha ao leitor da Antiguidade, época em que o texto corria diante

de seus olhos, em um livro em rolo que era preciso desdobrar horizontalmente.

Agora, o texto eletrônico imagético corre verticalmente pela interface gráfica,

proporcionando maior interatividade, inclusive com os dispositivos touchscreen.

E não se consegue imaginar o que acontecerá quando os monitores 3D

(Tridimensional) se tornarem mais acessíveis. Recentemente, o Google lançou

os óculos de papelão (Cardboard)13 para ver conteúdo em 3D pelo celular e o

jornal New York Times iniciou a elaboração de conteúdos neste formato. O

futuro da projeção caminha para o monitor holográfico, que criará imagens

mais realistas que o seu anterior 3D, sem a necessidade de óculos.

O leitor da tela também se assemelha ao leitor medieval e ao do livro

impresso, pois uti liza-se de referências como paginação, índice e recorte de

texto. Para Chartier (1999), ele é, simultaneamente, esses dois leitores de

outrora, porém, mais livre, porque o texto eletrônico permite maior distância

com relação ao escrito e a tela aparece como ponto de chegada do movimento

que separou o texto do corpo. Nesse sentido, pode-se pensar na atualidade o

papel dos e-readers, equipamentos destinados à leitura dos livros digitais, que

possibilitam ao leitor se movimentar com sua biblioteca por todos os lugares,

mantendo, entretanto, o distanciamento do objeto em si, que seria o livro.

Diferentemente do livro em forma de códex – cujo leitor o coloca em sua frente,

sobre uma mesa e vira suas páginas ou o segura nas mãos, quando o formato

é menor - o texto eletrônico possibilita uma relação muito mais distanciada, não

corporal; acontecendo o mesmo com quem escreve, como afirma Chartier

(1999):

Aquele que escreve na era da pena, de pato ou não, produz uma grafia diretamente ligada a seus gestos corporais. Com o computador, a mediação do teclado, que já existia com a máquina de escrever, mas que se amplia, instaura um afastamento entre o autor e seu texto. A nova posição de leitura, entendida no sentido puramente físico e corporal ou num sentido intelectual, é radicalmente original: ela junta, e de um modo que ainda se deveria estudar técnicas, posturas, possibilidades que

13

http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/05/1635341-oculos-de-papelao-para-ver-conteudo-3d-ganha-nova-versao.shtml

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na longa história da transmissão do escrito, permaneciam separadas. (CHARTIER, p. 16, 1999)

A revolução em curso diz respeito tanto ao modo de produção quanto à

reprodução dos textos e, no mundo do texto eletrônico, a reflexão sobre edição

e distribuição torna-se um coisa só. Um produtor de texto pode ser

imediatamente editor e, graças à internet, a difusão é imediata. Isto explica, em

parte, o abalo na separação entre tarefas e profissões, provocado pela

revolução industrial da imprensa, no século XIX. Essa revolução na cultura

escrita provocou, segundo Chartier (1999), mudanças nos papéis do autor,

editor, tipógrafo, distribuidor e livreiro, que antes estavam claramente

separados. E, mais recentemente, as redes eletrônicas vêm trazendo novas

mudanças, já que todas as etapas envolvidas na produção e reprodução de

textos podem se acumular e são contemporâneas uma das outras.

A encarnação do texto numa materialidade específica, traz diferentes

interpretações, compreensões e usos por parte de seus diferentes públicos e,

para isso, segundo Chartier (1999), em outras palavras é preciso ligar uns com

os outros as perspectivas ou processos tradicionalmente separados.

De um lado, cada leitor, cada espectador, cada ouvinte produz uma apropriação inventiva da obra ou do texto que recebe. Aí temos que seguir Michel de Certeau, quando diz que o consumo cultural é, ele mesmo, uma produção – uma produção silenciosa, disseminada, anônima, mas uma produção. De outro lado, deve-se considerar o conjunto dos condicionamentos que derivam das formas particulares nas quais o texto é posto diante do olhar, da leitura ou da audição, ou das competências, convenções, códigos próprios à comunidade à qual pertence cada espectador ou cada leitor singular. (CHARTIER, p. 19, 1999)

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CAPÍTULO V. Um percurso para novas aprendizagens: os “Itinerários

Literários Virtuais”

No cenário de grandes transformações socioculturais vividas pela

humanidade no século XXI, a educação foi uma das esferas do saber na qual

as relações entre o professor e o aluno, em seus vários âmbitos, foram

modificadas substancialmente pelas tecnologias de comunicação e informação.

A cultura digital passou a fazer parte da vida cotidiana da comunidade

escolar e novas práticas culturais surgiram neste novo contexto, no qual as

relações de ensino e aprendizagem e a realidade social passam a ser

mediadas pelo uso das tecnologias digitais.

Nesse cenário desafiante, se insere o presente estudo de caso sobre o

experimento dos “Itinerários Literários Virtuais”, organizado pela Comunidade

Educativa CEDAC, uma organização não governamental, que como citado

anteriormente, esta iniciativa visa ampliar as experiências estéticas literárias,

por meio da leitura, da análise de obras literárias e do uso contextualizado de

ferramentas tecnológicas.

Aproveitou-se a fala dos entrevistados da instituição organizadora do

projeto, para compor uma visão da educação atual e das perspectivas futuras,

tendo em vista, o exponencial uso das tecnologias de informação e

comunicação na sociedade contemporânea. Neste contexto, diz o entrevistado

A:

o ensino híbrido surge atualmente com a ideia de oferecer vários caminhos para os alunos, mesclando a exposição do professor e a pesquisa autônoma, com a utilização de recursos e ferramentas tecnológicas, buscando identificar as facilidades e as maneiras com que cada aluno aprende, de acordo com o uso de ferramentas diferentes. (Entrevistado A)

Este tipo de ensino vem na direção de experiências recentes mais

consolidas com o uso de algum tipo de recurso e das quais já se conseguem

avaliar alguns resultados. Mas o desafio técnico ainda é grande com relação ao

acesso à internet, manejo dos espaços, acesso aos materiais e,

principalmente, à formação dos educadores.

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Nas escolas as discussões, diz o entrevistado C:

ainda estão muito aquém e não são suficientes para que a tecnologia esteja irmanada com o dia a dia de estudo e de pesquisa, de forma integral e dinâmica; o que acontece ainda é o uso artificial da tecnologia, com as idas até o laboratório de informática para fazer pesquisa, e não o uso que a necessidade vai possibilitando, com flexibilidade. (Entrevistado C)

O entrevistado C, afirma ainda que a inclusão das tecnologias na sala de

aula é um caminho sem saída e que os trabalhos, pesquisas e atividades

poderão melhorar, mas que levará um tempo e que o caminho é difícil.

A educação hoje solicita muito mais meios de busca de informação do que antigamente, quando você tinha um livro básico, um livro de pesquisa, um dicionário. Cabia na mão o que você iria pesquisar. Os livros de pesquisa eram usados cinco ou seis anos e até passavam de pai para filho. De repente, este boom total da tecnologia e, cada vez mais, esta exigência: de um lado, a busca de informação e atualização e, de outro, a própria tecnologia e o conhecimento ligado a seu uso. (Entrevistado C)

Diferentemente de outrora, não é o acúmulo de conhecimento que é

importante atualmente, diz o entrevistado B, mas, uma relação de

competências e procedimentos de acessar e articular.

A partir disto, as relações de ensino e aprendizagem e a relação entre professor e aluno se tornam diferentes, pois a detenção do conhecimento deixa de ser um poder e a articulação com o outro, numa relação simétrica, vai ganhando mais força, assim como, a troca de conhecimentos de naturezas diferentes. (Entrevistado B)

As experiências mais recentes de ensino e aprendizagem, neste contexto

da cultura digital, têm tornado mais claro os caminhos na relação de interação

entre aluno, professor e conhecimento. Para o entrevistado A,

as tecnologias podem fazer com que os professores entendam melhor como se aprende, colocando uma provocação que pode fazer com que o professor se

desestabilize. Quando ele percebe que uma busca no Google traz para o aluno aquilo que ele traria no programa do curso dele, ele precisa se questionar. Não é aí que eu vou colaborar. Então, ele começa a pensar que não adianta só ter informação e não ser crítico; o meu papel de professor está aí: ensinar a ser crítico, não mais ensinar a informação. Isso é uma contribuição imensa que a tecnologia pode trazer. Tirar o professor deste lugar de não investir num pensamento inteligente nem no

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desenvolvimento cognitivo destes alunos, de subestimá-los, achando que se ele dá uma informação, os alunos vão devolver como eles aprenderam. A tecnologia põe o professor em cheque. Ele pensa: isso aí ele consegue sem mim, mas e o que ele consegue só comigo? O professor precisará se reinventar. (Entrevistado A)

Algumas destas novas experiências ainda utilizam a tecnologia como

pretexto, por razões muitas vezes mercadológicas. Por exemplo, o caso de um

tablet com um aplicativo de alfabetização para as crianças fazerem a letra

cursiva vai na contramão do uso comentado no trecho acima, diz o entrevistado

A - como podemos ver pelo exemplo da Finlândia, que tornou optativo o ensino

da letra cursiva, já que, de fato, parece que ela vai morrer na história, diz o

entrevistado A. E complementa:

Por outro lado, muita coisa interessante tem aparecido: crianças se colocando para a construção de blogs, para fazer a construção colaborativa de textos, e o uso do celular. As TIC e o seu potencial ajudam na aprendizagem, do professor e do aluno, facilitando o acesso a alguma informação, impondo um desafio de pensamento on-line, diferente de uma situação em que ela não estivesse presente, neste caso, podendo ser de grande influência. (Entrevistado A)

Ocupando um lugar central na construção do todo social, desde a

sociedade grega do século IV, o ato de educar, para os gregos, exaltava o

indivíduo e seu potencial criador, afirma Damásio (2007) - fato que tornava a

educação única e que, provavelmente, determinou sua influência até os dias de

hoje. Como elemento essencial da estruturação social, representou uma

posição singular e os gregos, a assimilaram, ainda numa concepção da lógica

de organização da própria sociedade. Segundo Damásio (2007), educar era

para os Gregos uma atividade que pertencia por excelência à comunidade,

porque era a favor da própria comunidade que revertiam os seus benefícios. A

experiência educativa, por sua vez, refletirá sempre uma ação dos sujeitos

sobre eles próprios ou sobre outros indivíduos, determinada, segundo Damásio

(2007), por uma interação envolvendo entidades biológicas e culturais que se

relacionam com ambientes sociais e naturais. Daí que a estrutura social da

experiência educativa tem se transformado em função da importância relativa

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cada vez maior das tecnologias e do modelo de produção e organização social

característicos das nossas sociedades.

A educação surge transversalmente nesta pesquisa, enquanto área

central de constituição de nossa identidade individual e coletiva. E, como diz

Damásio (2007), também é uma área da atividade humana na qual

[...] se manifestam em paralelo formas e contextos tão diferentes de uso da tecnologia, e encontramos representados conteúdos tão variados. [...] A educação é um objeto privilegiado para compreendermos de que forma é que se estão a transformar as nossas fronteiras sociais e culturais, e, consequentemente, a redesenhar a nossa experiência subjetiva e a nossa identidade. (DAMÁSIO, 2007, p.16)

Uma formação realizada em situação de leitura compartilhada, diz

Colomer apud Medrano (2014), é importante, pois

[...] compartilhar as obras com outras pessoas é importante porque torna possível beneficiar-se da competência dos outros para construir sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa sinta-se parte de uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades mútuas. (MEDRANO, 2014, p.2)

Os usos das ferramentas tecnológicas são amplamente difundidos nos

contextos sociais, segundo Medrano (2014), mas o mesmo não ocorre no

contexto escolar. Para Ferreiro apud Medrano (2014) “as instituições escolares

são altamente conservadoras, resistentes à incorporação de novas tecnologias

que signifiquem uma ruptura com as práticas anteriores”. Para a autora, esta

realidade precisa mudar para que a escola se aproxime das práticas sociais

reais e atue em consonância com a modernidade.

A proposta dos Itinerários Literários Virtuais coloca a possibilidade do uso

das novas tecnologias digitais pelos professores, demais profissionais da

educação e interessados de outras áreas de maneira contextualizada, para

compartilhar opiniões, organizar informações, acessar dados, produzir

conclusões etc., rompendo barreiras e possibilitando novas habilidades e

avanços nas competências tecnológicas.

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Maria Tereza Adruetto apud Medrano (2014) dirá “Los nuevos textos -

libro electrónico, hipertexto e hipermedia – requieren nuevos procesos de

pensamiento, nuevas capacidades y habilidades de lectura, nuevos tipos de

conocimientos y el dominio fluido y seguro de diferentes estrategias para

optimizar seu uso.”

Os universos do livro impresso e digital se relacionam, para Medrano

(2014), tendo em vista que um leitor competente atualmente precisa ler o texto

em qualquer suporte e circunstância.

Os Itinerários permitem conjugar leitura em papel e leitura e escrita em

tela, proporcionando desenvolver, ao mesmo tempo, competências literárias e

habilidades de leitura em novos formatos textuais e novos modos de interagir

com uma grande quantidade de informações disponíveis.

Os Itinerários Literários Virtuais se constituem em uma experiência que

envolve a leitura e a literatura, consideradas, sobretudo como linguagem – que

possui uma capacidade se tornar um repositório objetivo de vastas

acumulações de significados e experiências, que podem ser conservadas no

tempo e transmitidas às gerações seguintes – numa plataforma de ensino a

distância, com o uso de diversas ferramentas tecnológicas atuais, visando à

ampliação do repertório cultural de seus participantes e também à promoção de

novas aprendizagens de usos destes novos recursos tecnológicos disponíveis

na cultura digital.

Dentre todas as práticas culturais encontradas na vida cotidiana, a da

leitura é de suma importância na construção da realidade social. A literatura,

por sua vez, é uma das formas mais importantes de repositório da sociedade

ocidental e, se acessada, poderá ampliar o repertório cultural dos participantes

e sua visão de mundo.

Com base na perspectiva metodológica da vida cotidiana como bússola -

e como bom artífice que utiliza soluções para desbravar novos territórios, diz

Senett (2013) – o estudo de caso realizado teve a curiosidade de buscar

entender tanto o “Como” quanto o “Porquê”, partindo, assim, de uma lógica da

descoberta, dentre elas destacam-se as práticas de leitura, como prática

cultural e sua importância na vida cotidiana ao longo da história humana.

Assim se justifica o motivo pelo qual antes de se realizar a microanálise

das interações sociais e do caminho percorrido na plataforma de ensino a

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distância - Itinerários Literários Virtuais -, elaborou-se um estado da arte sobre

a leitura, suas práticas e suas transformações ao longo do tempo. Isso permitiu

um entendimento mais claro sobre essa prática cultural e sobre o cenário

macroestrutural onde ela se localiza no tempo e no espaço.

5.1 Caminhando pelo experimento dos Itinerários Literários Virtuais sobre

Guimarães Rosa

Os Itinerários Literários Virtuais “têm este nome pensado na ideia de que

seriam possíveis percursos individuais para as pessoas”, afirmou o

entrevistado B.

O experimento aqui analisado foi realizado a partir da plataforma de

ensino a distância Moodle14, durante oito semanas, nos meses de setembro e

outubro de 2014. Como o tempo tem se tornado um recurso escasso na vida

cotidiana da grande maioria das pessoas atualmente, foram previstos, segundo

o entrevistado B, esses dois meses por ser um período considerado bom para

se conseguir o envolvimento dos participantes. Além disso, por se tratar de um

curso que surge para a ampliação do repertório cultural, a ideia foi que ele

demandasse pouco tempo, semanalmente, para garantir uma participação mais

efetiva - sendo que o ideal era que os participantes dispusessem de duas horas

semanais.

A realização das atividades se organiza em materiais digitais, ou seja,

documentos de orientação e estudo, e ferramentas tecnológicas digitais - como

Dipity15, para a construção de uma linha do tempo para contextualizar

historicamente o autor e sua obra, e o Scoop-it16, para organizar e compartilhar

informações e conteúdos disponíveis na internet, dentre outras. No espaço de

interação virtual encontram-se os fóruns de discussão assíncronos e a

14

Moodle (Modular Object Oriented Distance LEarning) é um sistema de gerenciamento para criação de curso on-line. Esses sistemas são também chamados de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) ou de Learning Management System (LMS).O moodle é um software livre de apoio à aprendizagem e pode ser instalado em várias plataformas que consigam executar a linguagem php, tais como Unix, Linux, Windows, MAC OS. Seu desenvolvimento é feito de forma colaborativa por uma comunidade virtual, que reúne programadores, designers, administradores, professores e usuários do mundo inteiro e está disponível em diversos idiomas. Fonte: http://www.moodlelivre.com.br/tutoriais -e-dicas-moodle/o-que-e-moodle 15

http://www.dipity.com/ 16

http://www.scoop.it/

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discussão síncrona aconteceu através da mediação de dois Hangouts 17, que

foram realizados entre o meio e o final do curso, para balizar e garantir um

conhecimento comum do grupo. Uma sequência didática, diz Medrano (2014),

dirige os Itinerários, mesclando o uso de materiais digitais, ferramentas

tecnológicas e os espaços de interação.

As atividades foram pensadas de forma que o participante pudesse ter a

autonomia de fazer o seu itinerário individual, de acordo com sua

disponibilidade, os encontros presenciais virtuais foram agendados

previamente e os participantes foram convidados a participar,

independentemente de onde estivessem em seu percurso.

Em todo momento era possível acessar e fazer as atividades, que não

tinham uma linearidade; ou seja, mesmo aqueles que porventura estivessem

atrasados poderiam fazer o percurso.

A experimentação do uso das tecnologias em processos formativos -

como uma maneira de ampliar as oportunidades de aprendizagem,

potencializar o tempo e superar as dificuldades espaciais - vem se realizando

ao longo de algum tempo, diz Medrano (2014). Assim, começou-se a desenhar

situações em que seria possível fazer a formação leitora dos professores e

demais profissionais da educação de forma que pudessem acessar a leitura,

materiais e discussões com autonomia e com sua própria organização de

tempo, porém mantendo uma mediação planejada.

“Os preconceitos com relação ao ensino a distância tem diminuído”,

segundo o entrevistado A, por conta das inteligências que vêm sendo

desenvolvidas nas propostas para este tipo de ensino, que têm avançado e que

podem ajudar cada vez mais na autonomia dos envolvidos; ou seja, não é mais

uma ilusão. O entrevistado A afirma que a “tecnologia consegue ter inteligência

para oferecer uma autoformação” e diz:

Você busca no Youtube o nome de um autor e você faz um percurso de estudo e de pesquisa maravilhoso. Então, eu acho que não é só uma profusão de informação, mas há cada vez mais meios inteligentes de uso e de autoinstrução a partir disso. O potencial da educação a distância aumenta, na minha avaliação, mas tem que ter uma inteligência humana e artificial para fazer algo que tenha sentido e que todos aprendam mesmo.

17

http://www.google.com/+/learnmore/hangouts/?hl=pt-BR

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144

Este uso tem se tornado cada vez mais potente. (Entrevistado A)

“O ensino a distância vai entrar, inevitavelmente, na vida da sociedade”,

diz o entrevistado B;

Já há uma tendência não só de cursos, mas também de trabalho que não são realizados diariamente na matriz da empresa. Por isso, o curso a distância é muito bom e confortável para quem participa, que tem a liberdade de escolher os horários para participar; mas, é preciso gerenciar bem o seu próprio tempo. Há uma tendência em considerarmos a presença muito importante, mas, daqui a alguns anos, isso não terá tanta importância, esta mentalidade poderá mudar. (Entrevistado B)

Nesta modalidade de ensino, você qualifica a participação, diz o

entrevistado B,

porque num curso presencial, mesmo estando de corpo presente, pode não existir uma contribuição importante; diferente do ensino a distância, em que você precisará fazer uma entrada - normalmente por escrito - para se fazer presente, o que possibilita uma participação mais cuidadosa em que se lê, se revisa, complementa, pode-se ler o que o outro escreveu, se apropriar com tempo, pode voltar a ler, selecionar trechos e escrever sobre. Tudo isso é possível, com exceção dos chats on-line. (Entrevistado B)

Em algumas regiões do Brasil, diz o entrevistado C,

como no Maranhão, por exemplo, o ensino a distância era a única forma de acesso das pessoas que não teriam recursos financeiros para viajar e fazer uma graduação; por isso, há uma democratização do acesso e do ensino. (Entrevistado C)

E complementa:

Em relação aos seus conhecimentos, é confortável para as pessoas não estar presente numa sala de aula, porque às vezes não se tem tanto conhecimento e na plataforma há uma liberdade maior de participar escrevendo. Estando presente, às vezes há certo constrangimento de não conseguir acompanhar naquele momento, uma determinada discussão. O curso a distância possibilita ter um tempo maior, para pensar, para fazer uma pesquisa, para resolver as propostas, para corresponder aos desafios que o curso oferece. (Entrevistado C)

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A escolha pela obra de Guimarães Rosa para nortear este primeiro

Itinerário Virtual deveu-se à importância do autor no cenário literário brasileiro,

o que permite realizar análises literárias profundas e distintas. O autor seduz o

leitor pela sua hospitalidade e respeito intelectual, segundo Medrano (2014),

demandando empenho para envolver-se em sua construção literária. Para os

participantes, foi uma oportunidade de ampliar experiências estéticas literárias

por meio da leitura e da análise da obra deste escritor, que utiliza, diz Medrano

(2014), a palavra de maneira distinta, desconstruindo e reconstruindo a língua

para produzir uma linguagem poética, uma literatura muito particular.

Os interessados em participar deste primeiro experimento foram

convidados pela instituição organizadora da iniciativa entre os membros da

equipe interna e de outras instituições parceiras. Aproximadamente vinte e oito

voluntários se inscreveram, sendo a grande maioria com ensino superior em

diversas áreas do conhecimento.

As primeiras informações foram obtidas no primeiro fórum de

apresentação, considerando-se que o papel assumido do pesquisador no

estudo de caso era silencioso, sem participação ativa. Os pontos positivos e

negativos desta escolha foram apontados na metodologia, mas o intuito foi não

interferir na interação dos participantes, nem mesmo a posteriori.

Um convite por e-mail, com as orientações de como acessar a plataforma,

foi enviado a todos os inscritos. Foi organizado um espaço de interação

permanente, onde existiam dois fóruns - um de notícias e outro para dúvidas e

comentários - uma sala de bate-papo, uma linha do tempo com curiosidades e

destaques sobre a vida e a obra do autor, e um mural (Scoop-it), que foi sendo

atualizado com novas informações ao longo do percurso. Neste espaço de

interação, também foi disponibilizado um vídeo de apresentação aos

itinerantes.

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Figura 118

- Espaço de interação permanente com vídeo de apresentação.

18

Todas as imagens utilizadas nesta pesquisa foram cedidas pela Comunidade Educativa CEDAC que promoveu e organizou o projeto dos “Itinerários Literários Virtuais: Guimarães Rosa”.

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147

Figura 2 - Linha do tempo construída sobre o autor com o Prezi19

.

Figura 3 - Mural construído sobre o autor com a ferramenta Scoop-it.

19

www.prezi.com

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1ª Semana: andanças pelo bairro

Na primeira semana, chamada de “andanças pelo bairro”, a proposta era

de que os participantes se apresentassem para se conhecerem virtualmente e

acompanhassem os comentários dos colegas, interagindo no fórum. Depois,

eles foram convidados a construir coletivamente uma linha do tempo, com a

ferramenta Dipity, sobre o período de vida e produção de obras de Guimarães,

relacionando fatos literários, culturais, políticos e sociais brasileiros que

ajudassem na contextualização do autor e de sua obra. Essa linha do tempo

ficou disponível para consulta sempre que necessário.

Figura 4 - Linha do tempo sobre o autor construída pelos participantes com Dipity.

No fórum de apresentação, cada participante foi convidado a colocar seu

nome, formação e motivação para participar dos Itinerários. A explicitação das

motivações foi muito interessante, pois, justamente, nos levou à análise da

linguagem enquanto repositório objetivo de vastas acumulações de significados

e experiências, como coloca Berger (1974).

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A seguir, reproduzimos alguns trechos mais significativos das

apresentações realizadas no fórum de discussão, que nos remetem à questão

da linguagem, lembrando que, por uma questão ética e de privacidade dos

participantes, os nomes foram mantidos em sigilo durante toda a pesquisa.

Sempre gostei muito de ler e de ser desafiada pela leitura. Meu primeiro "atrevimento" foi ler Tolstói - Ana Karenina- aproximadamente aos 12 anos, incentivada por um tio adorável e adorado. Amei! E daí foram tantos outros, até que cheguei ao Guimarães via o conto Famigerado lido na escola (em um livro didático). Me apaixonei pelo jeito do história ser narrada, pelos desafios que a linguagem impunha, pela possibilidade de uma palavra - famigerado - ter mais de um sentido, bom, enfim, logo quis ler os outros contos do livro. E olhem só, o livro era o "Primeiras estórias". Lembro-me da alegria quando minha professora do primário aparecia com uma sacola de feira azul. Sabem o que tinham nela: livros, muitos livros. Acho que já deixei bem transparente o motivo por eu estar bem animada por participar dos "Itinerários": ter um prazer enorme por falar, refletir e aprender mais sobre o Rosa. (Participante 1) Apaixonei-me pelo Miguilim [Manuelzão e Miguilim, obra de Guimarães Rosa] ao ouvir uma colega ler em voz alta o trecho final dessa narrativa. Ainda hoje, me encanta a imagem do menino que vê o Mutum pela primeira vez e o descobre bonito... Fiz uma primeira tentativa de ler Grandes Sertões, li tudo, mas sabia que não conseguira apreender a riqueza que ali estava.”(Participante 2) Gosto muito de ler, assim como de estar com meus amigos, entre outras boas coisas da vida. Mas foi com duas amigas, ao longo de um ano, que fizemos a leitura em voz alta do "Grande Sertão Veredas". Era um fórum ao vivo! Encontrávamos quinzenalmente aos sábados no consultório da minha comadre e líamos juntas. Foi um período muito bom. (Participante 3) Ler Guimarães Rosa era um projeto da velhice, quando teria tempo e sossego para degustá-lo, pois sempre achei que ler Guimarães Rosa exigia mais. Então, estar aqui permite esta aproximação e a certeza de uma boa leitura. (Participante 4) Ouvindo as recomendações dos colegas nas rodas de biblioteca que realizávamos no final de cada semestre, passei a apreciar mais a leitura. Hoje em dia estou sempre lendo. Quando acabo um logo engato em outro. Procuro diversificar: autores atuais, "clássicos", romance, biografia, conto, nacionais, estrangeiros... A velocidade depende do volume de trabalho, período de

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férias... De Guimarães li há alguns anos alguns contos do "Primeiras histórias. Estou bastante animada com a possibilidade de reler e compartilhar a leitura com outros para poder desfrutar melhor. (Participante 5)

O último conto que apresentarei a vocês apresentei aos colegas, há 43 anos. Tomei-o nas mãos novamente agora. Fiquei mais velha. E Guimarães... cada vez mais novo. Prazer em conhecer um pouco mais de cada um dos itinerantes! (Participante 6) Ouvindo as histórias lidas e contadas, compartilhando gostos literários e nesse vendaval de livros reencontrei a poesia, que já gostava desde os tempos da adolescência. Escolhi participar do grupo para compartilhar olhares e poder com isso entrar mais no universo de Guimarães. (Participante 7)

Leio desde muito pequena e sozinha. Nasci gostando. Eu acredito que com algumas pessoas acontece assim. Como não havia muita fartura de livros, os que eram meus ou emprestados, eram lidos repetidamente. Lembro que na 5ª série li "Tonico" sete vezes, "Vidas Secas" mais que sete, até que descobri a biblioteca Municipal, fiz cadastro e passei a ler mais e mais... Quando surgiu esse convite para os "Itinerários" dei-me conta de que li somente alguns contos de Rosa e achei a oportunidade muito boa para conhecer mais esse autor e ler mais obras dele. (Participante 8)

Sou encantada pelas palavras... as faladas, cantadas, escritas, inventadas, descobertas... Por isto, gosto muito de ler junto com outras pessoas - que ótimo poder fazer isto com a obra de Guimarães. Tenho os meus contos preferidos do Primeiras estórias e estou curiosa para saber quais leremos juntos aqui! (Participante 9) A minha boa relação com a literatura só aconteceu quando eu já estava em sala de aula, como professora, infelizmente. A minha intenção ao participar desse curso é conhecer Guimarães Rosa e me apaixonar. (Participante 10) A minha paixão por Guimarães Rosa vem de minha adolescência... minha mãe e meu pai eram apaixonados e eu detestava simplesmente porque eles adoravam! Depois mais tarde, quando me permiti experimentar o que eles tanto gostavam, aí entendi... Guimarães escolhe a forma certa pra falar do que o homem tem de mais humano e do que o mundo tem de mais belo... Acho que quem gosta de gente, de conhecer gente, acaba gostando de Guimarães. (Participante 11)

Fiquei feliz demais agora, vendo as pessoas que vão participar... conhecendo mais as histórias de cada uma... teremos uma possibilidade diferente de nos aproximar...

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Em relação à leitura e literatura, sempre fui apaixonada pelos livros, até mais do que por ler... Meu pai foi, durante uma época, vendedor do Círculo do Livro. Minha felicidade era quando os livros chegavam e eu podia organizá-los, pegá-los, mas, quase nunca, podia folheá-los, porque vinham plastificados... então, ficava lá imaginando tudo o que podia conter neles... Adorava essa brincadeira! A partir daí, meus caminhos foram sempre cruzando com diferentes experiências variadas com os livros, a leitura... Fico triste quando não consigo ler... Mas, agora, estou bem feliz por começar a compartilhar essas leituras com vocês. Rosa é um desafio para mim... que bom poder enfrentá-lo em tão boa companhia! (Participante 12)

Minha área de atuação não tem relação direta com literatura, mas sou apaixonada por leitura em geral. Só li uma obra de Guimarães Rosa, e amei e odiei ao mesmo tempo. O estilo da escrita literalmente tira o fôlego. Prazer em conhecê-los. (Participante 13)

Tenho interesse nos temas relacionados ao Brasil, identidade, nossa formação social, politica e cultural. Tentei ler Grande Sertão na graduação mas desisti, agora peguei pra ler de novo, estou gostando muito. Guimarães tem importância enorme nos estudos brasileiros, no entendimento de quem somos e na inovação de linguagem. Vai ser muito rico, mergulhar em sua obra! (Participante 14)

Que privilégio chegar mais tarde e já poder compartilhar de tantos depoimentos lindos, com os quais encontrei tantas semelhanças... Acho que já gostava de ler quando nasci, mas como eram raros os livros em minha infância... Tê-los? Quase nunca. Emprestá-los? Quando um adulto compreendia o meu desejo. Na escola? Só quando cheguei na 5a série e conheci a série Vagalume. Daí nunca mais os perdi. Do Guimarães, somente alguns contos do Primeiras Estórias e a tentativa frustrada do Grande Sertão. Até que em um conto do Mia Couto, uma descrição me despertou o desejo de conhecê-lo mais. E aqui estou, para essa aventura roseana. (Participante 15)

Os depoimentos dos participantes podem ser analisados, numa primeira

camada, olhando para o formato da escrita, que revela como o ato de falar em

situações face a face, na atualidade, está se convertendo cada vez mais numa

conversa escrita, neste processo que se vive na sociedade contemporânea

permeada pelas tecnologias digitais.

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A escrita, apesar de se constituir como um sistema de sinais secundário,

na perspectiva de Berger (1974), na era da cultura digital, parece estar

ganhado cada vez mais espaço, por meio da “conversa escrita”.

Como citado anteriormente por Berger (1974), a realidade da vida

cotidiana só é possível por conta das objetivações. Neste sentido, os trechos

mostram que a experiência inicial foi um meio muito interessante de objetivar

as intenções subjetivas, de maneira muito intensa e rica, através das

interações realizadas entre os itinerantes no fórum de apresentação. Nesse

contexto, a linguagem - enquanto o sistema de sinais mais importante da

sociedade humana - pode ser considerada, não só como a capacidade

intrínseca do ser humano de expressividade vocal realizada no “aqui e agora”,

mas também como o sistema de sinais que, por meio da escrita, se descolam

da situação face a face e ganham autonomia, transmitindo outros significados

linguísticos.

O ciberespaço mudou a temporalidade para um presente contínuo, no

qual a divisão que existia, até pouco tempo atrás, entre o real e o virtual, deixou

de fazer sentido, a partir da cultura digital estabelecida atualmente.

Na situação face a face, a linguagem possui uma qualidade inerente de

reciprocidade, segundo Berger (1974), que a distingue de qualquer outro

sistema de sinais; ou seja, a linguagem faz minha subjetividade “mais real” não

somente para o interlocutor, como para o próprio falante. A sua referência

primária está na vida cotidiana, sobretudo, na consciência em estado de vigília,

dominada por motivos pragmáticos. Ela nos força a entrar em seus padrões,

impondo, por exemplo, que não se pode usar as regras da sintaxe alemã

quando se fala inglês, como disse Berger (1974). É preciso levar em conta os

padrões dominantes da fala correta nas várias ocasiões, possibilitando também

tipificar experiências, agrupando-as em amplas categorias, com sentido não só

para quem as organiza como também para os seus semelhantes.

Desta maneira, minhas experiências biográficas estão sendo continuamente reunidas em ordens gerais de significados, objetiva e subjetivamente reais. Devido a esta capacidade de transcender o “aqui e agora”, a linguagem estabelece pontes entre diferentes zonas dentro da realidade da vida cotidiana e as integra em uma totalidade dotada de sentido. As transcendências

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têm dimensões espaciais, temporais e sociais. Por meio da linguagem posso transcender o hiato entre minha área de atuação e a do outro, posso sincronizar minha sequencia biográfica temporal com a dele, e posso conversar com ele a respeito de indivíduos e coletividades com os quais não estamos agora em interação face a face. Como resultado destas transcendências, a linguagem é capaz de “tornar presente” uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do “aqui e agora. (BERGER,1974, p. 59-60)

Refletindo sobre os conteúdos de outras formas sociológicas de

interação, a conversa é o suporte mais difundido de toda a comunidade

humana na vida sociável, diz Simmel (2006). O assunto é somente o suporte

indispensável do estímulo desenvolvido pelo intercâmbio vivo do discurso

enquanto tal. Todas as formas de interação da conversa estão a serviço de

inúmeros assuntos e finalidades das relações humanas e possuem o

significado em si mesmas, ou seja, no estímulo do jogo da relação estabelecida

entre os indivíduos que se unem ou se separam, vencem ou subjugam-se,

recebem ou dão, como comentará o autor. É possível diferenciarmos cada

sociedade por intermédio de dois conceitos: a forma e o conteúdo. A própria

sociedade significa, em geral, a interação entre os indivíduos, que surge a

partir de determinados impulsos ou da busca de certas finalidades que formam

uma unidade. Mas, como cita Simmel, uma “sociedade” pode ser definida

como:

Conteúdo e matéria da sociação, tudo o que existe nos indivíduos e nos lugares concretos de toda a realidade histórica como impulso, interesse, finalidade, tendência, condicionamento psíquico e movimento nos indivíduos – tudo o que está presente nele de modo a engendrar ou mediatizar os efeitos sobre os outros, ou a receber esses efeitos dos outros. Em si e para si, essas matérias com as quais a vida se preenche, essas motivações que a impulsionam, não têm natureza social. A fome, o amor, o trabalho, a religiosidade, a técnica, as funções ou os resultados da inteligência não são, em seu sentido imediato, por si só sociais. São fatores da sociação apenas quando transformam a mera agregação isolada dos indivíduos em determinadas formas de estar com o outro e de ser para o outro que pertencem ao conceito geral de interação. A sociação é, portanto, a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes,

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inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados – se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses, sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, causais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana. (SIMMEL, 2006, p.60-61).

2ª semana: o jardim das casas, dos caminhos e das palavras

Voltando aos Itinerários, na segunda semana, chamada de “o jardim das

casas, dos caminhos e das palavras”, a proposta era de leitura do conto

“Sequência”. Antes de lerem o texto, a ideia era que os participantes

pensassem o que esta palavra sugeriria, ou seja, sobre que tema ou assunto o

participante pensaria que o texto poderia falar. Também se iniciou a criação de

um glossário de termos e expressões de Guimarães Rosa, que foi alimentado

pelos itinerantes ao longo do percurso, de forma colaborativa, por um Wiki20

dentro da plataforma.

20

https://titanpad.com/

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Figura 5 – Glossário de termos e expressões de Guimarães Rosa construído de forma colaborativa por

Wiki.

Pensando sobre o nome do conto, os participantes refletiram sobre se

haveria algum tipo de conflito ou dificuldade que o personagem teria de viver e

resolver e sobre quais personagens poderiam figurar neste texto. A seguir,

seguem as impressões de alguns participantes registradas no fórum de

discussão:

Sequência deve ser algo que não deu certo, mas que o protagonista aceitou o acontecido e deu sequência a vida com naturalidade, incorporando esse acaso, aceitando com naturalidade. Será o nascimento de um filho, a morte de alguém, o acolhimento de alguém a família? Pelo pouco que li de Guimarães, os acontecimentos são incorporados à vida não aceitação, como se fosse o designo. (Participante 1)

Penso em um conto que fala de coisas de geração para geração, de pai para filho, de vô para neto... Imagino que tenha criança, uma família, gente simples, dessas que a gente conhece... (Participante 2) Não sei ao certo, mas me parece ser algo relacionado "a vida que segue...". Depois de algum acontecimento, uma perda... Me passa também pela cabeça as várias gerações de uma mesma família, como ela começou e como foram se transformando em novas famílias no transcorrer da vida. (Participante 3)

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Acho que o título é uma pegadinha, fala em sequência, mas vai acabar tratando de algum tema em que sequencias não são possíveis. Penso sempre que o Guimarães "nos engana" ao longo de seu texto. Acho que pode tratar de algum pequeno "drama" do cotidiano em personagens simples do interior de algum lugar. Sei lá, isso foi o que pensei. (Participante 4) A palavra sequência me sugere situações que tem desdobramentos - previstos ou imprevistos, não sei, mas algo que poderá ser o núcleo da trama. Mas... pensando bem, não sei se isto se parece muito com Guimarães. (Participante 5)

Também me sugere a ideia de ciclos, algo natural, ou que não pode ser controlado pelas pessoas. (Talvez aí esteja influenciada pelo que diz Paulo Rónai... pelas ideias de "resignação" e "apaziguamento". (Participante 6)

Nesta perspectiva, é interessante notar como a leitura é sempre produção

de sentido, como disse Jean Marie Goulemot (2009). É possível enxergar pelos

trechos acima o que o autor se referiu como lugar de produção de sentido, de

compreensão e de gozo. Os jogos de conotações que a leitura produz ficam

evidentes e também fica claro que a leitura é a constituição, e não

reconstituição, de um sentido, como afirma o autor. A situação de leitura

proporciona a revelação de uma das virtualidades significantes do texto.

A linguagem, por outro lado, é capaz de transcender a realidade da vida

cotidiana - referindo-se, por exemplo, a experiências pertencentes a áreas

limitadas de significação - e de abarcar esferas de realidade diferentes. Por

exemplo, o significado de um sonho pode ser interpretado integrando-o

linguisticamente à ordem da vida cotidiana.

Como mencionado por Berger (1974), campos semânticos - ou zonas de

significação linguisticamente circunscritas - são construídos pela linguagem. O

vocabulário, a gramática e a sintaxe fazem parte desta organização de campos

semânticos, por meio dos quais a experiência, tanto biográfica quanto histórica,

pode ser objetivada, conservada e acumulada. Esta acumulação é seletiva,

pois o campo determina o que será retido e o que será esquecido, como partes

da experiência total do indivíduo e da sociedade. Com esta acumulação,

constitui-se um acervo social de conhecimento, que é transmitido de uma

geração para outra e que pode ser utilizado pelo indivíduo na vida cotidiana.

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Depois de lerem o conto “Sequência”, os participantes precisaram pensar

em como apresentariam esse conto para um amigo. Segue, o registro das

impressões no fórum da plataforma:

Acabei de ler um conto do Guimarães Rosa que faz parte do livro "Primeiras estórias" muito surpreendente. Nele há uma troca de posição entre uma vaca e um vaqueiro, uma vez que é a vaca fujona quem conduz, quem indica caminhos. Na busca, o vaqueiro vai vivenciando emoções diversas. Além disso, o leitor é o tempo todo "provocado" pela linguagem nada óbvia do narrador. Você precisa lê-lo! (Participante 1) Que texto! De fato me senti uma mosquinha observando a trama. Por um bom tempo julguei que fosse sobre a fuga da vaca. Cheguei a torcer para que o rapaz (sem nome) não chegasse até ela. Mas qual surpresa se reservava ao rapaz e a mim... O autor já dava indícios que a vaca sabia aonde ia desde o início, mas esta ideia só foi se confirmando ao longo do texto. Sorte do moço que a seguiu, encontrou muito mais do que procurava. (Participante 2)

É muito gostoso ler as considerações de vocês sobre o conto. Muito me ajudam a entrar nesse mundo tão inesperado (difícil) da escrita de Rosa. Mas acho que o texto descreve a "perseguição" entre o vaqueiro e a vaquinha, mas que no fundo ela queria conduzi-lo ao encontro da amada. Talvez os descaminhos desse encontro. A vaquinha me parece ao mesmo tempo secundária ao encontro final, mas primordial para o desfecho. (Participante 3) Adorei o conto e também adorei ler as conversas de vocês, mesmo que tanto tempo depois... Hoje vamos conversar mais... Que belas paisagens e que detalhes nesse caminho tortuoso... me senti andando com a vaca para lá e para cá, batendo na cerca, nadando no rio... que delícia! A vaquinha, sim, surpreendente! Mas depois da segunda leitura fiquei me perguntando: por que o título sequência? Quem pensou sobre isso? Sequência da vida no caminhar da vaca e do encontro com o destino? Sequência de algo inesperado para esse "vaqueiro" que não cumpre seu objetivo, é conduzido pela vaca e ainda encontra sua amada? Pensações, sensações... muitas! (Participante 4)

As experiências subjetivas foram objetivadas através da escrita,

possibilitando a troca entre os participantes, sem uma situação face a face, nos

remetendo, como disse Goulemot (2009), ao fora-do-texto, que é também uma

história coletiva e individual com dois lados: o que nos liga ao contemporâneo e

o que se constitui como nossa marca, que está inserida em modelos genéricos.

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O público se reconhece e pensa através de modelos narrativos; como

mencionado anteriormente.

A literatura surge como um campo semântico, propiciando uma interação

dos participantes na vida cotidiana, que é constantemente afetada por nossa

participação comum no acervo social disponível do conhecimento.

Por outro lado, já se nota uma ampliação deste acervo, a partir das

leituras e discussões realizadas através das interações na plataforma e do uso

das ferramentas tecnológicas disponíveis; a própria construção de um glossário

sobre o autor é um exemplo desse processo. O acervo social do conhecimento

se constitui pelo conhecimento de minha situação e de seus limites. Esta

participação no acervo social do conhecimento permite a localização dos

indivíduos na sociedade e o manejo deles de maneira apropriada. O que

construímos como história pessoal pertence, em boa parte de seus aspectos, à

uma narração cultural, diz Goulemot (2009). Neste sentido, não existe uma

compreensão autônoma do que é lido ou entendido, mas uma articulação em

torno da biblioteca cultural, que, em outras palavras, é o acervo social de

conhecimento. Ocorre um processo de troca: a biblioteca trabalha cada texto

oferecido e o texto lido, em compensação, trabalha a própria biblioteca. A cada

leitura, diz o autor, o que já foi lido muda de sentido, torna-se outro. É uma

forma de troca.

O texto eletrônico e a leitura em tela, neste sentido, se complementam ao

texto impresso ou o livro. O novo suporte do texto em tela, diz Chartier (1999),

“permite usos, manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais

numerosas e mais livres do que qualquer uma das formas antigas do livro”. No

formato impresso - tanto no rolo antigo como no códex medieval e moderno - o

leitor poderia insinuar sua escrita nas margens e nos espaços deixados em

branco. Mas, devido à rígida divisão entre a autoridade do texto e o leitor,

oferecida pela cópia manuscrita ou pela composição tipográfica, as

intervenções do leitor, necessariamente, estão sempre nas margens, como

lugar periférico com relação à autoridade do texto. Isto não é mais verdadeiro,

segundo Chartier (1999), a partir dos usos do texto eletrônico, pois

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[...] o leitor não é mais constrangido a intervir na margem, no sentido literal ou figurado. Ele pode intervir no coração, no centro. Que resta então da definição de sagrado, que supunha uma autoridade impondo uma atitude feita de reverência, de obediência ou de meditação, quando o suporte material confunde a distinção entre o autor e leitor, entre a autoridade e apropriação? (CHARTIER, 1999, p.88)

3ª semana: na porta da casa de Rosa

Na terceira semana, chamada de “na porta da casa de Rosa”, foi

realizada uma análise colaborativa em Wiki, com mais detalhes de uma parte

do conto lido na semana anterior. Como se trata de uma reprodução de

parágrafos do conto - compartilhados com o grupo para que se preparassem

para a discussão on-line que seria realizada na semana seguinte, via Hangout -

reproduzimos abaixo uma imagem da plataforma, com os parágrafos

destacados do texto, mas não vamos analisá-los.

Figura 6 - Wiki construído em colaboração pelos participantes sobre o conto “Sequência”.

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4ª semana: sentar-se no sofá, nas cadeiras, nas banquetas, nas

almofadas e no tapete da sala

Na quarta semana – intitulada “sentar-se no sofá, nas cadeiras, nas

banquetas, nas almofadas e no tapete da sala” – aconteceu o momento

presencial – ou síncrona – na virtualidade do ciberespaço, no Hangout, para o

fechamento da construção coletiva do sentido do conto “Sequência”. A tarefa

de casa havia sido pensar o conto integralmente, levando-se em conta

elementos como, por exemplo: o potencial simbólico, a linha divisória da

história, a linguagem, a estrutura, o narrador etc.

A cada semana, foram disponibilizadas orientações gerais para os

participantes, assim como os materiais necessários em formato digital - como

as sínteses dos fóruns, o glossário, as ações dos personagens. Tudo foi

disponibilizado na plataforma para ser acessado de acordo com a organização

temporal do participante de forma assíncrona.

Figura 7 - 1o Hangout realizado virtualmente com os participantes.

O título desta semana - “sentar-se no sofá, nas cadeiras, nas banquetas,

nas almofadas e no tapete da sala” - revela a intencionalidade deste momento

dos Itinerários: um convite a entrar na casa do autor, sentar-se na sala e

conhecer mais de sua intimidade. Nesse que foi o primeiro momento síncrono

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de balização do conhecimento dos participantes, foi realizada a leitura do conto

“Sequência”, que havia sido discutido nas atividades anteriores. Foi uma

transmissão on-line para diversos participantes, que puderam expressar suas

impressões e, pela primeira vez, se olhar, se ouvir e se conhecer virtualmente

no ciberespaço. Segundo o entrevistado A,

o momento síncrono de leitura - em que você está lendo compartilhadamente com alguém, como fizemos nos Hangouts com várias pessoas lendo - e o fato de você ver o outro lendo o mesmo texto que você, todo mundo aqui e agora, vivendo isso junto, seja virtual ou presencialmente, é essencial, porque a literatura ganha outro status. E não só a literatura. Quando você lê uma reportagem de jornal e comenta com o outro, isso demonstra a importância do outro, que é a comunidade para construir sentido, trocar impressões. Mesmo num curso virtual, é necessário ter um recurso em que as pessoas se encontrem. E os Itinerários garantem isso, esses momentos de encontro com um horário marcado. Os vídeos cumprem um pouco isso, pois eu vejo a pessoa e há uma conexão que passa muito fortemente, porque tem quem está do outro lado da tela. (Entrevistado A)

A ferramenta tecnológica do Hangout - lançada pelo Google21 como uma

ferramenta de transmissão de vídeo on-line, através do Youtube22 - pode ser

considerada uma das grandes inovações do início deste século. Ela transforma

radicalmente as relações estabelecidas até então nos binômios produção-

consumo e escrita-leitura, como apontou Certeau (2013), pois permite que

todos possam produzir, transmitir e assistir conteúdos na internet. Caminhamos

de uma cultura imagética das fotografias, dos Blogs e de outras ferramentas e

plataformas digitais que surgiram com essa característica, para uma cultura do

audiovisual, do vídeo. Observamos mais recentemente uma quantidade

crescente de videoblogs – Vlogs – em que “vlogueiros” ou “vloggers”,

polegarzinhos em sua grande maioria, estão produzindo nesta cultura do

“penso, logo posto”.

A experiência atual quase banalizada de se fazer uma transmissão on-

line via Hangout se configura na confluência de múltiplos meios. No caso do

experimento aqui analisado, temos a leitura virtual em voz alta, enquanto

linguagem repleta de significações, num vídeo no ciberespaço, em um grupo

21 www.google.com.br 22

www.youtube.com.br

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de pessoas on-line, com todo o seu sensorium ativo, podendo ver e ouvir. Isso

demonstra como a simbiose homem-computador tem evoluído no decorrer do

tempo, assim como, a dialética mão-cérebro-instrumento, estimulada por novos

stimulis, que possibilita o surgimento do homo digitalis. Experiências como

essa - de transmissão on-line colaborativa entre os indivíduos - vividas no

cotidiano da segunda década do século XXI vão ao encontro do que Santaella

(1998) afirmou: por meio de crescentes conexões corpo-máquina, das

interfaces do orgânico e tecnológico, e de uma mistura do organismo humano

com o eletrônico, informático e telemático, uma remodelagem do corpo e uma

reconfiguração da consciência humana vêm se tornando cada vez mais

incontestáveis.

Isto nos remete à concepção destas experiências, tão comuns

atualmente e que, ainda nos anos 50, foram antecipadas por Douglas

Engelbart, engenheiro americano que acreditava na complexidade como algo

fundamental. Naquela época, ele pensava em alguma forma possível de ajudar

de maneira significativa o ser humano a lidar com a complexidade e com a

urgência, de modo que isso tivesse uma utilidade universal. Segundo Isaacson

(2014), “um empreendimento dessa natureza não trataria apenas de um

problema mundial específico, ele daria às pessoas os meios de enfrentar

qualquer problema”.

Engelbart lançou-se, então, numa missão de descobrir como as pessoas

poderiam retratar, em termos visuais, o pensamento que tinham e vinculá-lo a

outras pessoas, para que pudessem colaborar; em outras palavras, seriam

computadores interativos em rede com visores gráficos. Engelbart acreditava

que algum dia as pessoas teriam seus próprios terminais e que estes poderiam

ser usados para manipular, armazenar e compartilhar informações.

“Inteligência aumentada” foi o nome que ele sugeriu para esta vasta

concepção. Em 1957, diz Issacson (2014), Engelbart estava no Instituto de

Pesquisa de Stanford (EUA) quando a inteligência artificial era um assunto

muito debatido e tentava-se criar um sistema que imitasse as redes neurais do

cérebro humano. Engelbart tinha um respeito tão grande pela engenhosa

invenção que era a mente humana, que sua missão era aumentar a inteligência

humana, criando máquinas que pudessem trabalhar estritamente com pessoas

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e ajudá-las a organizar as informações. Assim, esforçou-se para descobrir

“como o computador poderia interagir com as diferentes capacidades com as

quais já nascemos”. Durante anos trabalhou nos rascunhos de sua visão numa

monografia e publicou, em 1962, um manifesto com o título de “Aumentando o

intelecto humano” [Augmenting Human Intellect]. Não era sua intenção

substituir o pensamento humano pela inteligência artificial, mas que os talentos

intuitivos da mente humana, diz Isaacson (2014), fossem combinados com as

capacidades de processamento da máquina para produzir

[...] um campo integrado onde pressentimentos, experimentos, intangíveis e a “compreensão humana das situações” coexistam de maneira proveitosa com poderosos conceitos, terminologias e anotações eficientes, métodos sofisticados e auxiliares de alta potência. (ISAACSON, 2014, p.290)

Engelbart forneceu muitos exemplos, afirma Isaacson (2014), da

possível simbiose entre seres humanos e máquinas, como o arquiteto que usa

o computador para projetar um prédio e o profissional que prepara um relatório

ilustrado – hoje, exemplos tão comuns em nosso cotidiano, que a historicidade

dos objetos a nossa volta passa despercebida, do mesmo modo que todo o

processo de tecnização não planejado de longa duração dos quais resultaram

esses objetos. Buscando descobrir um jeito simples de permitir que seres

humanos interagissem com máquinas, Engelbart disse, segundo Isaacson

(2014), que ia “tentar alguns dispositivos para fazer seleção numa tela”. Sua

intenção era encontrar uma maneira mais simples de usar um cursor e

selecionar alguma coisa numa tela. Engelbart e seu colega Bill English

testaram vários dispositivos disponíveis naquela época e definiram as

características desejáveis de um dispositivo que ainda não existia. Um dia, por

acaso, numa conferência, ele lembrou-se do planímetro que podia medir a área

de um espaço, deslocando-se sobre seu perímetro com duas rodas

perpendiculares, uma horizontal e outra vertical. Com base nesta ideia, fez seu

esboço de como o dispositivo rolaria com suas rodas em volta de um desktop,

diz Isaacson (2014), sendo que sua voltagem seria transmitida por um fio para

a tela do computador a fim de movimentar um cursor para cima e para baixo,

para frente e para trás. Fizeram, então, um protótipo. Como o fio saía da parte

de trás, como uma cauda, apelidaram o dispositivo de “mouse”; e, assim, foi

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inventado um dos dispositivos mais utilizados em nosso cotidiano na cultura

digital. Impressiona, afirma Isaacson (2014),

[...] o resultado, ao mesmo tempo simples e profundo, foi uma clássica expressão física do ideal de aumento e do imperativo de participação ativa. Usava o talento humano de coordenação entre a mente, a mão e o olho (coisas que os robôs não sabem fazer bem) para fornecer uma interface natural com um computador. Em vez de atuarem de modo independente, seres humanos e máquinas atuariam em harmonia. (ISAACSON, 2014, p.292)

Depois disso, em 1968, Engelbart concebeu um sistema de aumento da

inteligência plenamente desenvolvido, nomeado de “On-line System”, que,

além do mouse, incluía muitos outros avanços. Isaacson (2014) afirma que

estes avanços obtidos por Engelbart,

[...] conduziram à revolução do computador pessoal como gráficos na tela, múltiplas janelas numa tela, publicação digital, diários ao estilo blog, colaborações ao estilo wiki, compartilhamento de documentos, e-mail, envio instantâneo de mensagens, interconexão de hipertexto, videoconferências ao estilo Skype e formatação de documentos. (ISAACSON, 2014, p.293)

Alan Kay, que trabalhou com Engelbart, afirma Isaacson (2014), disse:

“Não sei o que o Vale do Silício fará quando tiver esgotado todas as ideias de

Engelbart”.

Uma demonstração do sistema “On-line System” de Engelbart, ainda em

1968, entrou para a história e tornou-se conhecida como a Mãe de Todas as

Demonstrações, diz Isaacson (2014). A demonstração foi feita no lançamento

do Whole Earth Catalog23, organizado por Stewart Brand, um evento que se

revelou uma combinação fundamental das culturas hippie e hacker. Mesmo

depois dos lançamentos da Apple, a demonstração do “On-line System” ainda

é considerada a mais deslumbrante e influente da era digital, afirma Issacson

(2014). Num ano turbulento - no qual houve a guerra do Vietnã; os russos

esmagaram a Primavera de Praga; Richard Nixon foi eleito presidente dos

EUA; a Apollo 8 girou em volta da lua; e a companhia Intel foi fundada - afirma

Isaacson (2014), perante uma multidão de quase mil pessoas numa

conferência da indústria de informática em São Francisco, Engelbart

23

http://www.wholeearth.com/index.php

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apresentou o “On-line System”. Com o visor de seu terminal de computador

projetado numa tela de seis metros atrás dele, disse: “Espero que os senhores

aceitem bem este ambiente bastante inusitado” e perguntou, segundo Isaacson

(2014), para plateia presente:

[...] se em seu escritório, vocês operários intelectuais, fossem equipados com um visor de computador respaldado por um computador que ficasse ligado, à sua disposição, o dia inteiro, e respondesse de imediato a qualquer ação que vocês realizassem, quanto valeria tudo isso pra vocês? (ISAACSON, 2014, p. 295)

A cinquenta qui lômetros dali, encontrava-se Stewart Brand - no

laboratório de Engelbart em Stanford - gerando imagens num computador e

controlando, segundo Isaacson (2014), duas câmeras. Duas linhas de micro-

ondas foram alugadas para esta transmissão e uma conexão telefônica

transmitia para o laboratório em Stanford os cliques do mouse e do teclado que

Engelbart fazia e enviava imagens e informações para o auditório em São

Francisco. Algo inédito estava acontecendo naquele momento; a plateia via

incrédula, diz Isaacson (2014), Engelbart colaborar com um colega distante na

criação de um documento.

[...] outras pessoas editavam, acrescentando gráficos, mudando o layout, construindo um mapa e embutindo elementos audiovisuais em tempo real. Conseguiram até criar hiperlinks juntos. Em suma, Engelbart mostrou, já em 1968, quase tudo o que um computador pessoal conectado a uma rede é capaz de fazer hoje. (ISAACSON, 2014, p. 296)

Por isso, sua apresentação foi considerada a mãe das apresentações,

afirma Isaacson (2014). Neste dia, Engelbart foi aplaudido de pé - alguns

correram até ele como se fosse um astro de rock - e entrou para história.

Levando-se em conta que a primeira transmissão on-line ocorreu em

1968, é interessante pensar que os aplicativos usados atualmente - como

Hangout, por exemplo - foram criados originalmente naquela época, e que o

mouse, utilizado atualmente por milhares de pessoas diariamente, foi originado

no planímetro, ainda nos anos 50, assim como tantos outros artefatos culturais

que se inserem em nosso cotidiano na cultura digital, com diferentes

significados e contextos de usos, constituindo sentidos para o real social.

Todas as inovações tecnológicas resultaram numa nova dinâmica social, com

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novos padrões sociais e um novo habitus, e advieram de um processo social

de longa duração não planejado, de um entrelaçamento de acontecimentos,

como afirma Norbert Elias (2006). A visão de Douglas Engelbart se concretizou

no presente e contribuiu para aquilo que desejava, afirma Isaacson (2014), a

ampliação da inteligência humana de maneira universal, nos lançando ao

nosso destino biotecnológico.

Este olhar para a historicidade na pesquisa realizada justifica-se no

sentido de que uma análise crítica do cotidiano implica numa perspectiva

histórica, diz Pais (2003). “O presente é um produto histórico, ainda que

escondido ou camuflado. A historicidade do cotidiano emerge remontando atrás

para mostrar sua formação”, afirma o autor. Tempo e espaço organizam-se

também em torno do presente; embora a existência ultrapasse o horizonte do

presente, sua dimensão temporal é vivida no dia a dia. A própria rotina constitui

um processo repetido de apropriação do tempo e do espaço, no qual, segundo

Lalive d’Epinay apud Pais (2003), os atores sociais estabelecem uma relação

de uso com o tempo e o espaço da qual emerge sua apropriação.

5ª Semana: Um pé na sala, outro na cozinha

Na quinta semana – intitulada de “um pé na sala, outro na cozinha” - foi

realizado um novo fórum de discussão, agora sobre o conto “Nenhum,

nenhuma”, do Primeiras Histórias, de 1962, mesmo livro do conto anterior,

“Sequência”. A proposta era reconhecer semelhanças e diferenças entre os

dois contos. Depois, os participantes foram convidados a produzir uma frase no

Wiki que representasse o que cada um compreendia e sentia sobre o autor e

sua obra. Segue o que foi registrado pelos participantes na plataforma:

Nos gerais de Guimarães alumio meu bornal de sensações. (Participante 1)

Nessa construção, conspira ação de palavras, vou adentrando seu jardim e conhecendo suas rosas. (Participante 2)

As rosas de Guimarães, suas pérolas, são novas palavras novas, construídas com sentimentos e sensações que envolvem, perfumam, invadem, fazem lembrar e dão saudades de um outro tempo, vivido, vivo ou não. (Participante 3)

Tempo vivido do autor que passa a ser do leitor, tempo ressignificado pela palavra nova, inventada, construída

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pelo chão, pelos homens duros que organizam sua realidade com sua sensibilidade. (Participante 4)

Ler Guimarães fica sempre no terreno do novo. Parece que o verbo "reler" não faz o muito sentido, pois a cada leitura, a sensação é a de novas descobertas, novos deslumbramentos. Enfim, a sensação é de que a escrita de Guimarães carrega o "inesgotável". (Participante 5)

Guimarães sigo com suas velhas/novas palavras novas/velhas na sequência desse itinerário... feliz por estar em boa companhia! (Participante 6)

Poetizar a vida dura que não é nem poesia concreta aos nossos olhos... isso é o que mais me encanta em Guimarães. (Participante 7)

Figura 8 - Wiki produzido em colaboração pelos participantes com uma frase sobre o autor.

Este conjunto de frases elaboradas pelos participantes passa por uma

relação da escrita com a leitura, ou seja, traz um sentido de autoria muito

interessante, que nos remete ao que disse François Bresson (2009) sobre a

escolha das estratégias de escrita estar sempre ligada à estrutura da língua.

Guimarães Rosa transita por esta linguagem falada do cotidiano com maestria,

levando para a escrita esta oralidade; apoiando-se no som e no sentido,

constrói sua narrativa.

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Segundo Bresson (2009), falar ou compreender é atualizar o

conhecimento das palavras, que são ao mesmo tempo uma pronúncia sonora e

sentido. Para além dos códigos narrativos encontrados na obra da leitura,

parece existir segundo Goulemot (2009), uma cultura coletiva sobre a qual se

constitui uma noção de biblioteca, comentada anteriormente; tratam-se de

textos e também de todo um sistema de valores que neles estão em obra.

Consequentemente, não existe uma compreensão autônoma do que é dado a

ler ou a entender, mas uma articulação em torno de uma biblioteca do texto

lido, que forma - num primeiro momento - uma intertextualidade que

fundamenta a leitura e constitui-se no sentido que estará em operação.

O livro ou texto lido ganha, assim, seu sentido daquilo que foi lido antes

dele; o sentido nascerá, em grande parte, para Goulemot (2009), tanto desse

exterior cultural quanto do próprio texto - sendo que é bastante certo que seja

de sentidos já adquiridos que nasça o sentido a ser adquirido. A leitura é como

um jogo de espelhos, um avanço espetacular; nos reencontramos ao ler.

Todo saber anterior – saber fixado, institucionalizado, saber móvel, vestígios e migalhas – trabalha o texto oferecido à decifração. Não há jamais compreensão autônoma sentido constituído, imposto pelo livro em leitura. A biblioteca cultural serve tanto para escrever quanto para ler. Chega mesmo a ser, creio eu, a condição de possibilidade da constituição de sentido. (GOULEMOT, 2009 p. 114)

Esta perspectiva se assemelha à maneira como Roland Barthes e

Philippe Hamon, diz Goulemot (2009), tinham - cada um a seu modo -

analisado os efeitos do real e o verossímil enquanto um acordo entre as

representações adquiridas e os códigos admitidos ao leitor e ao escriturário.

Destarte, pode-se dizer, afirma o autor, que um texto contemporâneo articula

sua produção a partir de seu consumo.

Em outras palavras, a escrita se constitui a partir da leitura, por meio de

uma comunidade de códigos narrativos24, e pelo emprego, no processo de

escrita, de fatores que intervém na constituição do sentido pela leitura.

24

Considerando a narração enquanto mecanismo apto a produzir efeitos , e a leitura, por conseguinte, como uma oscilação dessa máquina em confronto com o corpo, com o tempo e com a cultura adquirida . (GOULEMOT, 2009, p.114)

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6ª semana: quarto para os olhos, escritório para os lábios e 7ª

semana: no porão, ouvindo o coração

Na sexta semana - “quarto para os olhos, escritório para os lábios” -

continuou-se a discussão do conto “Nenhum, nenhuma”, como preparação

para o próximo encontro presencial virtual, via Hangout.

Na sétima semana - “no porão, ouvindo o coração” - as atividades se

aproximavam do fim e realizou-se o encontro virtual, com o breve fechamento

da discussão do conto “Nenhum, nenhuma” e a leitura compartilhada de

trechos do conto “Meu tio luaretê”. Com duração de aproximadamente uma

hora, esse foi o último momento virtual síncrono, depois de todas as

discussões realizadas via plataforma pela “conversa escrita”.

Figura 9 - 2o Hangout - encontro virtual com os participantes .

Durante o 2o Hangout, os participantes puderam também trocar

impressões sobre seus percursos, colocando seus desafios, avanços e

questões. Mesmo com todos os avanços tecnológicos, existem dificuldades de

transmissão e de conectividade entre um número grande de pessoas, por conta

de fatores estruturais, como a velocidade e a qualidade de conexão da internet

disponível, e de outras variáveis técnicas que podem existir. O mural do espaço

permanente também foi atualizado neste ínterim e os itinerantes foram

convidados a acessar esta página.

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As máquinas visuais e sonoras, fotográficas, cinematográficas, o gravador

e a televisão foram chamadas de máquinas sensórias, por Santaella (1998), e

formam os sentidos humanos, a inteligência sensória da espécie,

especialmente a do olho e do ouvido, que se estenderam e se ampliaram. Hoje,

precisamos de hipercérebros processadores devido ao crescimento do cérebro

da nossa espécie nos signos que este crescimento extrojetou que se localizam

nas centrais de dados informatizados, como Google, Youtube, Wikipédia dentre

tantos outros, a disposição nas redes.

Enfim, os meios, instrumentos e máquinas de produção de linguagens, como extensões de nossas capacidades sensórias e cerebrais, e os signos por eles produzidos, como amplificadores e multiplicadores dessas capacidades, foram dando ao nosso corpo dimensões correspondentes aos níveis crescentes de extra-somatização do cérebro. De fato, tão crescentes têm sido os níveis dessa extra-somatização a ponto de podermos hoje afirmar que o corpo humano já não apresenta mais a forma nem a dimensão que aparece no espelho do nosso quarto. À arquitetura líquida, movente, plástica e cibernética do nosso cérebro corresponde atualmente uma arquitetura corporal também redimensionada. (SANTAELLA, 1998, p. 39)

8ª semana: do telhado para o mundo-de-meu-deus

Na oitava e última semana - “do telhado para o mundo-de-meu-deus” - foi

disponibilizado um vídeo on-line de uma leitura do conto “Travessura”, do livro

Tutameia, e organizou-se um álbum de fotografias com legendas, para os

participantes mergulharem ainda mais no universo do autor. No Wiki chamado

de “Proposta para o seu dizer sobre Guimarães”, ao final desta jornada pela

obra do autor, foram produzidas estas frases pelos itinerantes:

Guimarães traz o sertão para dentro da gente, é um olhar sensível que fala da vida, de um jeito que forma e conteúdo se justapõe e faz com que isso se torne uma experiência única, pois nos envolvemos com a história e somos tomados por sentimentos. Esse jeito de falar do sertão de Minas Gerais traz a essência da humanidade, por isso toca tão fundo, às vezes sem a gente nem saber direito dizer o porquê. (Participante 1) Guimarães nos desafia a ver e sentir o mundo para além daquilo que a racionalidade consegue nos mostrar. Se uma palavra não existe, ele a inventa, e assim, nos faz sentir algo que a linguagem não alcança. As paisagens, o

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rio, os animais, os personagens, distantes da minha rotina urbana, do séc. XXI é ao mesmo tempo tão próxima dos meus sentimentos, das relações, do meu ver o mundo. A leitura de Guimarães nos aproxima de um dos brasis, cria empatia, e no meu caso respeito e admiração pela cultura sertaneja. Estreita relações e nos faz compreender melhor a nossa identidade como brasileiros. (Participante 2) Guimarães tece as palavras com os fios feitos de raízes dos brasis... Nas palavras dele, "Cada palavra tem que ser justa como um bordado delicado". E ele nos surpreende, sempre, pelas palavras bordadas, pela humanidade que transborda de seus personagens, pelo Brasil que ele reinventa e que nos toca a alma, um Brasil distante que ele nos aproxima, nos torna íntimos... Queria agradecer muito ter sido conduzida, nesse delicioso passeio pelo interior do Brasil de Guimarães. (Participante 3) O ritmo dos contos de Guimarães nos faz entrar na história, no sertão... a linguagem repleta de neologismos e vocabulário intrigante nos faz explorar a nossa própria língua, a herança dos tempos presente nos textos desse autor fascinante... o envolvimento com a obra é tão grande, que quase passamos a pertencer àquele mundo sertanejo, nos indagando também sobre as questões profundas da vida... (Participante 4)

Figura 10 - Álbum de fotografias de Guimarães Rosa produzido com Prezi.

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Os depoimentos aqui apresentados trazem a perspectiva de

transformação do leitor de outrora no atual navegador, a partir da revolução

instaurada com o texto eletrônico, que, segundo Chartier (1999), muniu o

navegador de uma liberdade maior, nunca antes experienciada na trajetória

humana.

A leitura é uma arte de fazer e o seu trabalho é, em grande parte, um

processo de produção de sentido e de confirmação cultural, como diz Hébrard

(2009). Dessa forma, como se referiu anteriormente, a leitura popular ou

erudita, em tela ou impressa, produz jogos de conotações e sempre será

considerada como uma produção de sentido. A prática cultural de uma leitura

pode ser compreendida, como já dito, neste lugar de produção de sentido, de

compreensão e de gozo:

Ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor, o que implicaria que o prazer do texto se originasse na coincidência entre o sentido desejado e o sentido percebido, em um tipo de acordo cultural, como algumas vezes se pretendeu, em uma ótica na qual o positivismo e o elitismo não escaparão a ninguém. (GOULEMOT, 2009, p. 109)

Dessa maneira, ler é constituir - e não reconstituir - um sentido e a leitura,

por conseguinte, é uma revelação pontual de uma polissemia do texto literário,

afirma Goulemot (2009). A situação da leitura é, neste ponto de vista, a

revelação de uma das virtualidades significantes do texto; é aquilo por meio do

qual se atualiza uma de suas virtualidades, uma situação de comunicação

particular, pois é aberta. De outro lado, o leitor, nessa relação com o texto,

define-se por uma fisiologia, uma história e uma biblioteca. A situação de leitura

pode ser definida como fora-do-texto, que também pode ser compreedida como

uma história coletiva e pessoal, dividindo-se em dois lados: um que se liga ao

contemporâneo e outro que constitui nossa marca e que opera para além do

sentido das palavras e do agrupamento das frases. Sobre o texto impresso, diz

o autor, existe uma posição (atitude) de leitura do corpo: “sentado, deitado,

alongado, em público, solitário, em pé...”. Além disso, existem também as

atitudes próprias às gerações, aos aspectos técnicos (uso de abajur, por

exemplo) ou climáticos; há uma disposição pessoal para a leitura, um rito.

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“Somos um corpo leitor que cansa, fica sonolento, que boceja, experimenta

dores, formigamentos, sofre de cãibras. Há mesmo uma instituição do corpo

que lê.”

Do ponto de vista da situação de leitura, o texto eletrônico, como diz

Chartier (1999), tem uma relação mais distanciada e não corporal; com a

mediação do computador e do teclado instaura-se um afastamento entre o

leitor e o texto, um nova posição de leitura - no sentido corporal e físico -

radicalmente original. Para Chartier (1999), esta revolução - fundada numa

ruptura da continuidade e sobre a necessidade de aprendizagens novas e de

um distanciamento com relação aos hábitos - tem poucos precedentes tão

violentos na história da cultura escrita. Este momento atual poderia ser

comparado com duas rupturas anteriores, menos brutais: uma quando, no

início da era cristã, os leitores de códex ou códice se deligaram da tradição do

livro em rolo, o que não foi fácil; e outra, no século XVIII, numa transição

igualmente difícil, quando foi necessário adaptar-se a circulação efervescente e

efêmera do impresso. Parece, assim, de modo geral, que estes leitores - os

atuais e os de outrora, guardadas as proporções - defrontaram-se com um

objeto novo, que permitia novos pensamentos, mas que supunha o domínio de

uma forma imprevista, que implicava em técnicas de escrita ou de leitura

inéditas.

Os primeiros leitores eletrônicos verdadeiros não passam mais pelo papel. Nas experiências que foram feitas em torno da Biblioteca Nacional da França, envolvendo uma população de estudiosos ou grandes leitores profissionais, pôde-se observar que alguns dentre eles liam diretamente na tela as informações e os textos armazenados na memória de seu computador. Nos Estados Unidos, vê-se mesmo desenvolver a prática da leitura de conferências na tela do computador portátil, aberto pelo conferencista como era o caderno ou a pasta de papéis. Isto define uma figura do leitor futuro? Talvez. (CHARTIER, 2009, p. 95)

A experiência dos Itinerários possibilitou aos itinerantes transitar na

ruptura da continuidade, através de situações de leitura muito interessantes,

que proporcionaram novas atitudes para os leitores, por meio da cultura digital

e de um conjunto de diversas ferramentas disponíveis atualmente na rede. O

contato com a obra deste autor, que tem uma linguagem tão cotidiana e

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própria, foi muito significativo e revelou, pelas interações analisadas, muitas

aprendizagens no percurso realizado. Em pouco tempo, o experimento foi

muito positivo e mostrou que as práticas de leitura neste novo contexto social

da cibercultura e do ciberespaço podem contemplar o leitor e também os

navegadores, como chamou Chartier (1999). O que chamamos de literatura é

um ato literário com perfil útil e representativo, segundo Bertolo (2014), sobre o

qual se tem construído um espaço de inter-relacionamento social. Entendemos

o ato literário como um singular uso do patrimônio público - que a linguagem

representa - e sobre o qual nos constituímos como seres sociais que somos. A

leitura tem sua raiz, afirma Bertolo (2014), na convicção de que é a realidade

que nos acompanha é ela que “lê conosco, ao mesmo tempo que,

dialeticamente, essa realidade brota da leitura que efetuamos do que existe,

material ou imaterial, tangível ou intangível”. Toda leitura é, assim, pessoal e,

por sê-lo, também é leitura compartilhada, comum, coletiva.

A leitura como espaço comum, visto à luz das impressões digitais que compõem nossa personalidade leitora. [...] Alguém disse que quando alguém se pergunta “Para que a leitura?” sem saber encontrou uma resposta: lemos para aprender a perguntar a nós mesmos porque lemos. (BERTOLO, 2014, p. 15)

Avaliação e análise do percurso realizado

No final dos Itinerários, os participantes avaliaram os recursos

tecnológicos utilizados e destacaram os fóruns – que foram espaços de

interação muito ricos, conforme analisamos neste estudo de caso - e o Hangout

- pela conversa on-line e troca de conhecimentos entre os participantes e a

formadora, num momento síncrono, que propiciou um compartilhar de olhares

para o autor e sua obra. “Poder conversar sobre dois contos de Guimarães

com várias pessoas ao mesmo e virtualmente foi muito interessante”, avaliou

um itinerante.

A disponibilização dos materiais e a organização das atividades também

foram motivos de destaque. O recurso para construção de texto coletivo – Wiki

– foi apreciado por possibilitar o acompanhamento do processo de construção.

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A plataforma Moodle utilizada foi bem avaliada por possibilitar guardar

todos os materiais e links, o que ofereceu uma dinâmica para as atividades,

tendo em vista que organização do tempo era individual.

Por outro lado, houve quem se assustou com a quantidade de

orientações - percebendo que seria necessário se dedicar mais tempo do que o

esperado - e com a plataforma, pois ainda não tinha tido contato com o

ambiente virtual de aprendizagem a distância.

Do total de inscritos, 75% tiveram pelo menos um acesso à plataforma, ou

seja, participaram de uma atividade; mas houve uma flutuação na participação,

no decorrer das oito semanas. A plataforma ficou disponível durante mais um

mês depois do término das atividades planejadas, para que os participantes

que eventualmente não tivessem feito todas as atividades pudessem realizá-

las.

Os Itinerários Literários Virtuais, enquanto projeto, foi construído, segundo

o entrevistado A, “de um jeito muito construtivista de aprendizagem , em que as

escolhas foram pensadas e repensadas considerando como o sujeito aprende”.

De forma geral, três dimensões permearam a concepção dos Itinerários: a

primeira é a da literatura para o participante, o acesso pessoal ao universo

cultural e a esta estrutura da literatura, que é importantíssima, diz Antonio

Cândido; a segunda se refere a como estou aprendendo com este curso, ou

seja, a como se aprende; e a terceira está ligada a como ensino literatura para

o outro, para que serve e para que se ensina literatura.

Estas dimensões circulam em paralelo ao objetivo mais direto do curso que é falar deste autor, aprender mais sobre Guimarães Rosa. Os conteúdos que rondam este percurso são destas três dimensões, ao mesmo tempo, de forma subliminar. É diferente de você entrar em um curso em que você lê um texto e responde a uma pergunta. Estamos num percurso que te coloca em situações que procuram ser ao máximo semelhantes às práticas sociais de leitura da literatura, que é participar de uma comunidade que lê, comenta e faz relações. O percurso é muito coerente neste sentido, porque queremos que o professor e o profissional da educação aprendam que a literatura se faz assim, uma homologia importantíssima para o participante. (Entrevistado A)

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O experimento permite contribuir de forma facilitadora, para pessoas com diferentes níveis de profundidade de conhecimento - o iniciante, o médio e o aprofundado - ampliando as possibilidades de aprimorarem a sua própria formação. Os Itinerários são receptivos aos diversos níveis de conhecimento dos participantes, que, a partir do estágio em que se encontram, podem ampliar seu conhecimento. Do grupo participante, nem todos conseguiram acompanhar o percurso, por conta da falta de disponibilidade de tempo, pelo hábito e/ou pela dificuldade de organização, mesmo com apenas duas horas semanais de dedicação às atividades. Situações interessantes de atividades foram propostas em pequenos agrupamentos, mas muitas vezes um só fazia. (Entrevistado C)

Além disso, para participar do Hangout, por exemplo, é preciso uma

aprendizagem; é uma cultura diferente, que exige uma organização e

gerenciamento de tempo, um aprender a entrar na conversa, a falar olhando

para o monitor e vendo várias imagens.

As TIC potencializam muito mais o acesso à literatura, entram como aliado da concepção. A formação a distância é fascinante, é progressiva, a tendência é de que quanto mais houver, mais haverá e mais sabidos poderemos ficar, pessoas melhores podemos nos tornar. É quase como uma religiosidade pensar na literatura num caminho para o bem, num contexto de educação de crianças, jovens e adultos. A literatura está aí para nos ajudar a nos reconhecermos como humanidade, que é o grande mistério da existência, é ser gente. A leitura é um continente, traz esta dificuldade de ser gente, de ser humano, o peso deste mistério, traz de um jeito bonito, pela linguagem; é muito acolhedora toda esta dimensão da existência tratada por uma linguagem bela, é um conforto, é uma coisa que ajuda a elaborar internamente e olhar para as coisas de fora, as cenas, as paisagens, os fatos sociais - como as crônicas, ligadas a fatos e ocorrências, e todo tipo de gênero, cada um com suas características. A literatura traz uma dimensão humana, é um grande direito que vai ao encontro do que somos; por meio da linguagem se pode verbalizar, tratar das questões emocionais e sociais. A literatura está aí, é a grande linguagem para a existência. A palavra todo mundo fala, já as outras artes - fotografia, pintura - ainda não dizem tanto. Temos que usar as tecnologias para esta instância, para chegar nas pessoas – por meio de um curso que ajuda a conhecer um autor e a reconhecer como falar das coisas, com seus estilos, temática. É um potencial maravilhoso chegar nas pessoas através das TIC. (Entrevistado C)

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Com os Itinerários, “chegou-se a uma estrutura básica de curso que

poderá servir para outros autores e virar uma tecnologia social, podendo ser

utilizada com diferentes gêneros literários, seguindo o mesmo caminho”, afirma

o entrevistado B.

Para uma pessoa com uso restrito da internet, que nunca entrou numa plataforma de ensino a distância - e só usa o Facebook, Youtube etc. - os Itinerários possibilitam que ela construa um texto colaborativo, aprenda a abrir um mural, a seguir murais de outras pessoas, que consiga navegar para além do que o Google diz. Participando dos Itinerários, ela já faria uma entrada diferente neste universo cibercultural. Um desafio é conseguir que pessoas sem afinidade com as TIC, a partir de sua entrada no percurso, possam ter menos resistência porque normalmente quem aceita participar de um curso a distância já tem uma visão menos preconceituosa. (Entrevistado B)

Segundo o mesmo entrevistado,

a literatura não salva, não faz as pessoas melhores, mas assume um lugar fundamental para as pessoas repensarem suas vidas, mas não é isso que as faz melhor. Ela cumpre um papel de humanização e os Itinerários abrem um espaço neste sentido, pois trazem a mediação de um especialista, que conhece muito de um autor e mostra coisas que não poderiam ser vistas sem a sua indicação. (Entrevistado B)

Porém, para o entrevistado B, quem se inscreve num curso como esse,

normalmente já tem uma entrada na literatura; aquele que não gosta de ler,

afirma, não vai fazer o itinerário, o que acaba não ajudando na promoção do

acesso à literatura. Por isso, seria necessário pensar em outra iniciativa que

possibilitasse um acesso mais democrático e uma entrada mais aberta.

Um dos objetivos dos Itinerários Literários Virtuais era a formação de uma

comunidade leitora on-line. A título de comparação nesta discussão, trazemos

as comunidades de afetos virtuais, entendidas por Pais (2006) como suporte de

comunicação de novas redes de relacionamento; nas comunidades on-line as

pessoas se juntam com propósitos de filiação.

Em rede assim como na vida real, cultiva-se um modus vivendi interativo, mesmo aceitando que o ciberespaço é habitado por sujeitos “incorpóreos e fragmentados”. Os próprios emoticons criam e reforçam fronteiras, unificam os membros de uma comunidade discursiva, excluem outsiders dessa comunidade. Como na vida real, os participantes contribuem para uma definição global da

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situação que implica não tanto um real acordo sobre o que existe mais um acordo real acerca de que pretensões sobre determinados problemas deverão se concentrar as atenções. (PAIS, 2006, p. 204)

Por isso, na perspectiva do autor, nos questionamos sobre a natureza das

comunidades virtuais, sobre quais seriam seus limites e potencialidades. A

comunicação mediada por computador inaugurou uma nova era na tecnologia,

cuja característica essencial seria, talvez, a síntese entre o símbolo e o ato, a

representação e a ação.

Aprofundando um pouco mais esta discussão, duas formas de integração

social se apresentam para Tönnies apud Pais (2006): a comunidade e a

sociedade/associação. Sendo que a primeira delas é baseada no afeto e na

emoção, e a segunda, na instrumentalidade e na razão. Esta distinção se

coloca pela valorização que o autor dá à subjetividade, quando analisa que a

ação social é induzida por “tendências de orientação” em relação aos outros,

tendências englobadas no conceito de vontade (wille que significa vontade em

alemão). O autor faz uma distinção entre dois tipos de vontade - uma seria

natural ou essencial e a outra, racional ou instrumental - que estão

relacionadas aos dois modos de expressão da ação social mencionados, ainda

que nem um nem outro se encontrem de forma pura. Tönnies irá propor uma

visão complexa da subjetividade, em termos da polaridade e tensão entre as

duas tendências de orientação definidas acima. Max Weber apud Pais (2006)

irá seguir as mesmas distinções propostas por Tönnies, mas irá distinguir os

vários tipos de ação social e retomará os conceitos de comunidade e

sociedade, diferenciando-os da seguinte forma:

[...] designa por comunidade uma relação social que se inspira num “sentimento subjetivo” (afetivo ou tradicional) dos seus participes em constituir um todo; designa por sociedade a relação social que se inspira numa “compensação de interesses” por motivos racionais (de fins e valores) ou numa “união de interesses” com igual motivação. Dos muitos exemplos de Weber para ilustrar esses conceitos retenhamos o de “contrato econômico” como ilustrativo de sociedade e, como ilustrativos de uma comunidade, os exemplos de uma “tropa unida por sentimentos de camaradagem, uma relação de piedade [...] (PAIS, 2006, p. 206)

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Ao examinar o conceito de comunidade, Hermam Schmalenbach apud

Pais (2006), descobriu um elemento residual, mas essencial, e forjou o

conceito de “Bund”, que pode ser traduzido do alemão por “liga” ou

“comunhão”, segundo Pais (2006). Sendo essencial, constituiria todos os

elementos psíquicos de adesão intensa entre os diversos membros de um

grupo, elementos estes que seriam independentes dos laços primordiais ou

físico. Seria justamente isso que constitue uma das tendências de orientação,

afirma Pais (2006), que faz com o que cibernauta tenha uma inclinação pelo

outro, no caso das comunidades de afetos virtuais, independentemente da

ausência de laços primordiais e físicos.

Ora, esta constatação feita por Pais (2006) nos leva a pensar as

motivações para se fazer parte de uma comunidade de leitores on-line e o

papel dos sujeitos virtuais, que, no curso das práticas comunicativas, podem

induzir direta ou indiretamente para uma comunidade de afetos do tipo Bund -

que é gerada por elementos psíquicos de adesão, como, por exemplo, o gosto

pela literatura ou pela língua portuguesa, ou o desejo de aprender mais sobre a

vida e a obra de um autor. Esta ligação poderá ter vários níveis de motivação e,

para Pais (2006), os conceitos de Tönnies - de sociedade e comunidade - não

aparecem em estado puro, mas formam misturas cujas doses relativas

dependem das circunstâncias consideradas e da definição de situações por

parte dos agentes sociais.

Como se pode verificar no experimento dos Itinerários aqui analisado,

para Pais (2006), é inegável que as palavras são um meio de conexão com os

outros; elas nos mascaram, mas também nos revelam, já que podemos nos

revelar através das máscaras que usamos.

Ao teclarem-se palavras num computador, desprendem-se também ideias soltas (pelas palavras) que permitem aos nossos interlocutores fazerem uma ideia de nós próprios, ativando ou não elementos psíquicos de adesão (bund). Palavras que, por outro lado, servem para moldar emoções, ansiedades, representações do outro. Apesar da ausência de uma co-presença física há um sentimento de presença perante o outro. Ou seja, se é certo que “conexão virtual” se alia a um sentimento de liberdade em relação a uma existência corpórea; e se, em rede, por outro lado, o self parece divorciar-se do corpo; também é verdade que ao mesmo tempo, o corpo é reivindicado, através de palavras, de expressões, de fotografias, de apelos e sugestões. (PAIS, 2006, p.209-10)

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No ciberespaço, as imagens substituem corpos ausentes, segundo Pais

(2006), e essa ausência dá asas à imaginação e produz, em relação aos outros

imaginados, essa química “fusional”, que Hermann chamou de bund.

Nesse sentido, os encontros presenciais virtuais realizados por Hangout,

por exemplo, foram momentos marcantes dos Itinerários. Foi quando, apesar

de se estar virtualmente no ciberespaço, essa química fusional ocorreu de uma

forma impressionante, através das imagens de cada um que estava no grupo

on-line e também por meio do sistema de sinais vocais da linguagem, numa

interação face a face, mas descorporificada no virtual.

No sentido da democratização apontada pelo entrevistado B, um dos

desdobramentos deste experimento foi a criação de um grupo público no

Facebook (“Leitores de Guimarães”), que conta atualmente com 463 membros.

Pretende-se também criar um Blog sobre a experiência, com conteúdos do

autor.

O tempo é uma questão a se considerar na realização da leitura. Uma comunidade de leitores garante um grupo que pensa muito parecido e a dificuldade é juntar as pessoas com afinidade em relação ao tema. A ideia do blog era estender o itinerário para a constituição de uma comunidade de leitores on-line na qual os participantes continuassem a interagir, mesmo depois de seus itinerários pessoais. Este será um espaço onde talvez consigamos fazer uma reflexão sobre uma comunidade de leitores virtual e presencial. O itinerário disparou ações pontuais, mas a constituição de uma comunidade leva tempo, e para isso, precisamos ter alguém que anime este conteúdo, senão, a comunidade não se forma, precisa manter uma chama da discussão, pessoas falando sobre aquilo, dando sugestões, tendo uma continuidade daquela conversa, para que as pessoas vejam uma diferença ao participar desta comunidade. (Entrevistado B)

O leitor se forma em comunidade, segundo o entrevistado B, e isso tem

se tornado cada vez mais claro. A leitura técnica seguindo um passo a passo

não forma leitores. O livro sozinho não é nada, diz o entrevistado C, e

complementa:

É preciso ter relações sociais para se formar grupos, para constituir uma comunidade de leitores. A natureza da literatura me leva a pensar que o presencial tem ganhos que o virtual não tem; por exemplo, o gostoso da convivência se dá no presencial, o virtual é mais frio. Porém, a comunidade de leitores em que eu quero me

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aperfeiçoar enquanto leitor tem mais possibilidades no virtual, porque você consegue ter uma comunidade ampla, sem limites, você consegue inclusive colocar o autor numa roda de conversa, de qualquer parte do mundo; no presencial é sempre limitado. Me parece que esta relação mais virtual tem como eixo um conteúdo e conhecimento e não esta troca, mais inteira, que acontece no presencial. (Entrevistado C)

A maior parte dos itinerantes, em suas avalições, considerou positivo o

experimento e os itinerantes resumiram em uma frase o que acharam da

experiência; destacamos algumas a seguir:

No geral, acredito que seja um bom caminho para discussões e estudo coletivos, pois possibilita que cada um gerencie seu tempo de participação, além de ampliar as possibilidades de obter conhecimento como assistir a vídeos, interagir em tempo real, ver fotos interessantes, compartilhar ideias e reflexões sobre um assunto pré-determinado. (Participante 1) Essa experiência literária e tecnológica foi muito interessante. Constituir uma comunidade leitora virtual foi algo encantador tanto pelo prazer de adentrar ao mundo do Guimarães de mãos dadas com tanta gente bacana e com mediação da formadora, quanto pela possibilidade de articular o conhecimento individual com a construção coletiva. Muito bom! (Participante 2) Achei um casamento fantástico! Uma forma potente de apoiar leitores na construção de sentido de uma obra ou de várias de um autor! (Participante 3) O que eu senti vivendo os Itinerários do Guimarães Rosa, era que você vai cavoucando aquele autor, mostrando as entrelinhas, subtextos e onde está a belezura da literatura, que num processo rápido você não capta; precisa fazer este percurso mesmo, este itinerário. Deixa eu ver o que este autor escreveu, em que época era, será que essas palavras diferentes são uma característica dele mesmo? Você vai vivenciando coisas como leitor e generalizando algumas. Uma pessoa, por exemplo, que faça quatro itinerários, vai perceber coisas sobre literatura, sobre o que ela faz em nossa vida, buscando outras obras. (Entrevistado A)

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Chega-se ao fim desta jornada e a literatura, como disse Martins (2014), é

um terreno fértil para a compreensão do real social. A literatura, da maneira

mais ampla possível, envolve, segundo Cândido (2011),

[...] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção da escrita das grandes civilizações. (CÂNDIDO, 2011, p. 15)

Deste modo, aparece como manifestação universal de todos os homens

em todos os tempos, afirma Cândido (2011). Não se pode viver sem ela. Assim

como sonhamos independentemente da nossa vontade, o sonho assegura a

presença do universo fabulado em nossas vidas cotidianas, podendo-se dizer

que “a literatura é o sonho acordado das civilizações”. A literatura tem o papel

de desenvolver em nós a quota da humanidade, na medida em que nos torna

mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade e o semelhante.

Por humanização, Cândido (2001), entende

[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade da vida dos seres vivos, o cultivo do humor. (CÂNDIDO, 2011, p.15)

A realidade pode ser compreendida como produto da leitura. Ao longo de

sua história, a humanidade - entendida como conjunto de homens e mulheres -

segundo Bertolo (2014), vem realizando sua existência, dentro de relações

sociais concretas que a cada momento histórico aconteceram; e a realidade

poderia ser considerada como o resultado de todas as leituras possíveis que

foram produzidas ao longo desse desfile histórico. Como um livro aberto mas

arbitrário, a realidade aparece como uma leitura plural que constrói, nomeia,

interpreta, interroga, responde, julga ou nega e que nos é proposta .

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Sabemos que essa pluralidade esconde e encerra um contínuo e dinâmico enfrentamento entre leituras individuais e coletivas que se afirmam, emergem ou enfraquecem de acordo com as posições de força e relevância que as condições sociais determinam para cada conjunto social, grupo ou classe em cujo interior são realizadas as leituras pessoais. Cada leitor lê na companhia de umas circunstâncias sociais e históricas que lhe proporcionam critérios, hábitos, referências, teorias ou escalas de valores, e em consequência, seria justo afirmar que é a realidade quem, definitivamente, lê. Ocorreria então que a leitura, enquanto modo de relação com a realidade, apresenta um rosto dialético, pois é leitura da realidade ao mesmo tempo em que é lida por ela. Um processo apaixonante no qual ninguém nem nada detém a última palavra. (BERTOLO, 2014, p. 92-93)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A informação explode ao nosso redor com fúria, afirma Darton (2010) e as

tecnologias da informação mudam a uma velocidade tão impressionante que

precisamos encarar um problema fundamental como nos orientamos neste

novo panorama, como entender tudo isso.

Foi um pouco nesta direção que nos movemos neste trabalho com o

intuito de contribuir, por meio de alguns indícios da vida cotidiana, na

construção de uma cartografia – diga-se de passagem, que é muito mais ampla

e complexa que o presente estudo – da sociedade atual.

Um dos caminhos sugeridos, por Darton (2010), seria analisar a história

das maneiras de transmitir a informação que foi resumida, pelo autor, de forma

radicalmente simples.

Segundo Darton (2010), houve quatro mudanças fundamentais na

tecnologia da informação, desde, que os humanos aprenderam a falar. A

primeira ocorreu, por volta de 4000 a.C., quando os humanos aprenderam a

escrever, os hieróglifos egípcios datam de 3000 a.C., e a escrita alfabética

surgiu em mais ou menos 1000 a.C. Deste modo, a invenção da escrita pode

ser considerada, afirma Darton (2010), como o avanço tecnológico mais

importante da história da humanidade, pois, transformou a relação do ser

humano com o passado abrindo caminho para o surgimento do livro como força

histórica. Uma segunda mudança tecnológica ocorre quando o códex ou códice

substituiu o pergaminho transformando a experiência da leitura, como tão bem

apontou Chartier (1999). O códice foi transformado pela invenção da impresão

com tipos móveis, por volta de 1450. A invenção de Gutenberg, segundo

Darton (2010), se propagou de forma avassaladora, tornando o livro cada vez

mais acessível a círculos de leitores cada vez maiores e o público leitor se

tornou cada vez maior devido a melhorias na alfabetização, educação e acesso

à palavra impressa. A quarta grande mudança ocorreu mais recentemente e

tem haver com a comunicação eletrônica, um momento de transição onde os

modos de comunicação impressos e digitais coexistem e novas tecnologias

tornam-se obsoletas muito rapidamente na cultura digital analisada nesta

pesquisa.

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Cada mudança na tecnologia transformou o panorama da informação e

numa visão de longo alcance, reorganizando os fatos, é possível chegar num

panorama, afirma Darton (2010), que enfatiza a continuidade ao invés da

mudança,no que diz respeito à natureza da informação em si.

Todas as eras, segundo o autor, foram uma era da informação, cada uma

a seu modo e de sua forma. Convivendo com a instabilidade da informação,

que nunca foi estável as novas tecnologias da informação nos forçaram a

reconsiderar o próprio conceito de informação. Ou seja, precisamos encará-la

como mensagens que são constantemente remodeladas em seu processo de

difusão, e não, como fatos objetivos ou pepitas da realidade a serem

garimpadas em jornais, arquivos e bibliotecas. Essa perspectiva nos faz lidar

com textos múltiplos e mutáveis, afirma Darton (2010), em vez de documentos

fixos e estabelecidos, o leitor, como disse Chartier (1999), se tornou um

navegador pelos textos eletrônicos.

Os modos eletrônicos de comunicação são tão revolucionários quanto à

invenção da impressão com tipos móveis e da própria escrita, como foi possível

notar na trajetória construída neste trabalho, sobretudo, pela análise de umas

principais práticas culturais, a leitura e o estudo de caso realizado.

Tal e qual, os leitores do século XV se confrontaram com o texto

impresso, os navegadores de hoje em dia vivem um momento inédito na

história humana, numa ruptura da continuidade, o futuro, seja ele, qual for será

digital.

Neste cenário, desta sociedade da informação em formação, esta

pesquisa visou compreender estes novos territórios e as consequências da

cultura digital no mundo contemporâneo, no cotidiano e na leitura como prática

cultural.

Como um flâneur recolhendo os fragmentos do real social - a partir do

estudo de caso sobre as práticas de leitura, por meio do experimento do

Itinerários Literários Virtuais, de Guimarães Rosa e com os limites que lhe

cabem, como foi apontado - o pesquisador artesão, dialogando com a estrutura

macrossocial e olhando para o relevante do irrelevante, empenhou-se em

construir uma narrativa desta experiência, inovadora para os tempos atuais e

com o potencial de levar a leitura e a literatura às pessoas geograficamente

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distantes, através do uso das tecnologias de informação e comunicação,

oportunizando a ampliação de seu acervo cultural e social de conhecimento.

Neste sentido, pelo estudo de caso realizado, foi possível demonstrar a

questão norteadora desta pesquisa e afirmar que uma nova prática cultural de

leitura vem emergindo dentro do contexto da cultura digital, mostrando as

interações sociais mediadas pelos artefatos culturais da atualidade, presentes

na vida cotidiana dos indivíduos.

Além disso, notou-se como a cultura digital se encontra num processo de

integração crescente entre os sujeitos e a tecnologia, compreendida aqui como

instrumento de transformação social, como produto da evolução social e como

geradora de consequências sociais. Estas três dimensões, apontadas por

Damásio (2007), estão presentes nesta pesquisa, neste holograma construído

por meio deste percurso.

Na simbiose homem-máquina, esta confluência de fatores, como se viu,

tem um potencial grande de ser utilizado para melhorar a vida das pessoas, por

meio de algo tão humano como as tecnologias, a literatura e,

consequentemente, a leitura.

O caminho é longo e nos parece, cada vez mais, somente de ida.

Lembrando o que disse Pierre Levy (2010), os acontecimentos recentes, desde

os anos 60, se constituem numa faísca inicial; estamos na pré-história da

cibercultura mundial e de sua esfera pública.

Diante de todos estes avanços, na atual sociedade da informação em

transformação, tem-se uma percepção de que nos encontramos como o anjo

do quadro Angelus Novus, de Klee, que, como disse Benjamim (2012), está

voltado para o passado, mas que tem a tempestade do progresso presa às

suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las, sendo impelido

irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto, em sua

frente, um amontoado de ruínas cresce até o céu. É preciso puxar o travão do

continuum da história para se pensar que o conceito de presente não é

transição, mas o momento em que o tempo para e se imobiliza, e quando é

possível escrever a história para sua própria pessoa, afirma Benjamim (2012).

Este presente precisa ser compreendido e, para isso, é necessário escovar a

história a contrapelo, segundo Benjamim (2012), pensando no movimento dos

pensamentos e também na sua imobilização. A história é compreendida, assim,

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como objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio,

mas preenchido do “tempo de agora”, que abrevia, num resumo

incomensurável, a história de toda a humanidade, coincidindo com o lugar

ocupado pela história humana no universo.

Em vista disso, o cotidiano ou a vida cotidiana que olha para o “aqui e

agora”, como alavanca do conhecimento, é um lugar privi legiado da análise

sociológica, como se verificou nesta jornada investigativa, porque é revelador,

por excelência, de determinados processos do funcionamento e da

transformação da sociedade e dos conflitos que a atravessam, afirma Pais

(2003).

A escolha desta perspectiva metodológica trouxe desafios com os quais

se tentou lidar, em alguma medida, por meio da leitura do contexto das

relações sociais, considerando que, como Pais (2003) afirma, a sociologia da

vida cotidiana se configura como uma espécie de lançadeira de tear, de um

lado para o outro, num movimento pendular, cerzindo no universo social as

micro e as macroestruturas.

O imaginário das artes (literatura, cinema, pintura, música) é uma fonte

inesgotável de formação dos saberes - como se verificou com a invenção do

computador e através da ciência poética de Ada Lovelace, ainda no século XIX,

que demonstrou ainda mais sentido na ligação da ciência e da arte frente às

perspectivas cartesianas.

O estudo de caso realizado sobre o experimento dos Itinerários Literários

Virtuais, tendo como base a leitura como prática cultural, revelou esta

possibilidade de acessar novos saberes e sensibilidades, demonstrando o

potencial de uso das tecnologias para o acesso a essa manifestação universal

de todos os homens de todos os tempos, a literatura, que, segundo Cândido

(2011), é o sonho acordado das civilizações.

Foi possível constatar, a afirmação de Martins (2014), que a leitura de

contextos sociais pela via da literatura, se aproxima muito mais de uma fazer

sociológico e de uma sociologia no âmbito da arte, como um pensar que ainda

é um fazer, mas um fazer pensando.

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A arte é fonte básica universal de escuta do mundo, conservatório de

imagens e marca da criatividade humana, como Walter Herzog bem mostrou

em seu filme a Caverna dos Sonhos Esquecidos, que mostra as marcas de

nossos antepassados habitantes das cavernas que foram gravadas para a

posteridade. Reaprender a trabalhar com oposições complementares e

circuitos não lineares é fundamental, como diz Carvalho (2015), para garantir o

caráter multidimensional da vida, da sociedade, da cultura. E, nesse processo,

a reflexão sobre os metatemas – natureza, vida, conhecimento, ideias,

humanidade, ética - acabam por adquirir um valor de suma importância para

superação de qualquer tipo de dualidade. Isso se passa, sobretudo, por

exemplo, por uma compreensão mais ampla da natureza - enquanto uma poli-

super-meta-máquina imersa, simultaneamente, em desordens e

reorganizações - e do mundo natural - como um circuito de equilíbrios, desvios

e desequilíbrios. Como um sistema vivo, a ecologia sempre tenta se adaptar e

garantir um equilíbrio relativo que mantenha a vida em níveis suportáveis para

os homens, e os ecossistemas, por sua vez, dualizam sujeito e objeto. Nesse

contexto, afirma Carvalho (2015), a marca humana reside no polenraizamento

físico-biológico-zoológico.

Um biólogo contemporâneo de Benjamim (2012) disse que, se

compararmos com a história da vida orgânica na Terra, os míseros 50.000

anos do homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia

de 24 horas. Somos sapiens há muito pouco tempo, levando-se em conta a

idade do nosso planeta; mas somos primatas há muito mais.

Os processos de hominização, cerebralização, culturalização e tecnização

retratados aqui mostram que temos, em nossa retaguarda, um longuíssimo

processo evolutivo. Porém, é de somente 130 mil anos, afirma Carvalho (2015),

nosso tempo enquanto seres vivos portadores de linguagem, sistema de

códigos tão essencial à nossa espécie e que se constitui como um nó de toda a

cultura da sociedade humana e de toda a complexidade social. O

reconhecimento da juvenilidade da nossa espécie é um caminho de superação

do antropocentrismo e que nos lança na diáspora sapiental e na desordem.

Trata-se de admitirmos, segundo Carvalho (2015), que trazemos dentro de nós

uma memória coletiva de proporções gigantescas e que

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[...] nela estão inscritas, armazenadas, estocadas conquistas, catástrofes, perdas, ganhos, utopias. Somos, portanto, imperfeitos, inacabados, mergulhados na incerteza da biosfera e da biodiversidade. Nossa assinatura humana é uma rubrica de presença, mas também de uma intenção do bem-viver e do agir ético.(CARVALHO, 2015, p.4)

Nosso planeta Terra é muito antigo; possui entre 4,55 e 3,9 bilhões de

anos e os primeiros vestígios de vida ocorreram há 3,5 bilhões. A globalização

uniformizante e ilusória disseminou policrises em todo o planeta Terra. No

entanto, estamos enraizados no local e há uma resistência em se perceber o

universal; ensimesmados na pertença individual, não queremos ver o rosto da

sociedade e, menos ainda, do cosmo, diz Carvalho (2015). Saímos de um

mundo determinista, fixo e racional - como vimos na era da máquina,

denominada assim por Hebert Marcuse (1999), em que causas e efeitos eram

dominados pela ideia da reversabilidade - e caímos em um mundo irreversível,

fluido, no qual o futuro é incerto e onde cada vez mais seremos sempre

coautores do caminho a ser trilhado.

Nossa matriz da vida é a Terra-pátria, como afirma Edgar Morin (2013),

por isso, precisamos pensar que a metamorfose da sociedade atual será a via

para conduzir a humanidade para uma sociedade-mundo de um tipo totalmente

diferente, num planeta que vem requerendo cada vez mais cuidados de

preservação, sustentabilidade e amor, segundo Carvalho (2015).

Desde os caçadores-caçados de outrora, criadores da técnica mãe das

invenções, somos, na essência, artífices envoltos em táticas, estratégias e

trajetórias em nosso cotidiano. Somos filhos do cosmo e pertencentes a uma

sociedade, uma cultura, uma pátria; somos leitores caçadores em terras

alheias, como disse Certeau (2014). Temos sido inundados de descobertas por

todas as partes, movidas pelo quadrimotor da modernidade – ciência-técnica-

indústria-lucro – que produz cada vez mais desigualdades, diz Carvalho (2015).

A existência dos indivíduos ocorre pela portabilidade de um corpo

próprio e também, diz Carvalho (2015), pelos movimentos que realizam em um

espaço extracorpóreo, no qual estabelecem seus relacionamentos, seja com

outros indivíduos ou com os artefatos culturais em seu entorno. Por mais que

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tenhamos avanços nas tecnologias, o corpo permanece sede das pulsões,

paixões, desejos, hormônios. Por isso, os humanos sempre tentam explicar a si

mesmos e diagnósticos de vida e morte são sistematizados, seja através da

metafísica, da religião, da ciência ou da arte.

Muitas definições advieram daí, geralmente atreladas a condições tecnoeconômicas; são as chamadas revoluções tecnológicas e os processos civilizatórios delas decorrentes. Mas isso só não basta. O homem não é função direta das ferramentas que cria, das habilidades que possui. É mais do que isso. Criador de símbolos, procura dar conta da unidade e da diversidade humanas. (CARVALHO, 2015, p. 4)

Criadores que somos de símbolos e da linguagem, enquanto campo de

significação, somente um horizonte transdisciplinar poderá nos nortear, afirma

Carvalho (2015), para irmos além das fronteiras disciplinares. Nesse processo,

o reconhecimento das ciências do homem e da natureza como unidade

indissolúvel é fundamental. Nenhuma sociedade será capaz de se pensar com

sabedoria se não fizer isso, esse era, afirma Carvalho (2015) o alerta de

Charles Snow feito na década de 1950.

A sabedoria tem na memória sua fonte inescapável e, segundo Carvalho

(2015), a articulação entre memória individual, coletiva, cósmica e tríade

individuo-espécie-sociedade possibilita recuperar o tempo perdido, trazendo-o

para o presente e traduzindo-o para o futuro.

Ao longo desta pesquisa, os processos sociais foram entendidos a partir

de seu desenvolvimento não planejado de longa duração, como sugeriu

Norbert Elias (2006). Por isso, trazem uma compreensão mais ampla do real

social atual, por meio do resgate do estado dos saberes anteriores, é um

caminho que demonstra a importância da articulação destas memórias no

presente, como disse Carvalho (2015). Foi um esforço deste caminho, que se

fez ao caminhar, pelos enigmas da Sociologia da vida cotidiana.

No conjunto de capítulos, empenhamo-nos em construir um holograma,

buscando uma religação dos saberes e passando por diferentes áreas, na

tentativa de construir um caráter transdisciplinar para esta pesquisa.

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Partimos do caráter humano da técnica e da identidade do sapiens, que -

desde os tempos em que era um caçador-caçado que andava pelas savanas -

vem se aperfeiçoando através da cultura e desenvolvendo suas táticas e

estratégias cotidianas para caçar e sobreviver, num processo que resultou na

cerebralização e culturalização; e passamos pela modernidade, quando

instituiu-se uma cultura de inovação tecnológica permanente, que permitiu ao

homem racional transformar a vida, a sociedade e o planeta, por meio da

industrialização e da racionalização tecnológica - processos inéditos, até então,

na trajetória humana.

A tecnização constituiu-se, então, num processo social de longa duração

não planejado, cujas consequências ainda se encontram em curso, com efeitos

profundos nos modos de ser e de estar. O computador e a internet foram duas

invenções de grande magnitude não planejadas, cujos efeitos sísmicos ainda

são sentidos e cujas consequências mais profundas estão por serem reveladas

pelos caminhos que a humanidade trilhará neste século.

Com a comunicação mediada por computador, o mundo passou a estar

conectado numa rede global de instrumentalidade e, nesse contexto, surgiram

a cibercultura e o ciberespaço como novas dimensões humanas. Na

temporalidade atual, vivemos no tempo objetivo e subjetivo do on-line, de um

presente contínuo, e tornamo-nos esquecidos demais, diante do caráter

instantâneo das nossas relações.

Preocupados com o imediato, como diz Carvalho (2015), esquecemos de

nós mesmos e dos nossos saberes, que são senhas de acesso para o mundo

da vida e que se constituem na memória coletiva da nossa espécie, na

memória histórica da nossa cultura, que é parte da memória coletiva da Terra.

Faz-se necessário religar estas conexões de sentido, diz Carvalho (2015), e

criar narrativas complexas que articulem passado, presente e futuro de forma

não linear; mesmo considerando a indeterminação do futuro, sabe-se das

promessas que não foram cumpridas no passado e dos projetos que não

conseguem ser operacionalizados no presente.

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O sentido da vida e da morte, dos sonhos e delírios cerca, diz Carvalho

(2015), desde sempre, o sujeito uno e múltiplo, que é endorreferente - ou seja,

traz consigo a marca da longa evolução que o transformou no que é – e, ao

mesmo tempo, exorreferente, pois se aliena de uma parte de si mesmo para

viver e conviver com todos os outros, em sociedade.

Como animais sociais que somos, os sujeitos tentarão sempre conhecer -

seja por meio da oralidade, da escrita, da informação midiática; daí a

importância do acúmulo e preservação, a qualquer custo, dos conhecimentos

que formatam a biblioteca universal dos saberes humanos.

A intenção da identidade do individuo é fazer valer sua presença em um

mundo cada vez mais articulado e estruturado na e pela tríplice de identidades

individuais, coletivas, cósmicas e esta rearticulação como um holograma abre o

destino histórico para indeterminação e incertezas.

Se jamais saberemos com plena exatidão de onde viemos, o para onde vamos é cada vez mais impossível de diagnosticar e mesmo prever. O que a identidade deve garantir é a preservação da Terra-pátria e o prosseguimento da trajetória da hominização. (CARVALHO, 2015, p.4)

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