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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA PUC - SP RODRIGO DE OLIVEIRA FEITOSA VAZ Redução de Danos, política do comum e invenções de um cuidado de si: uma cartografia do Centro de Convivência É De Lei MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA PUC - SP

RODRIGO DE OLIVEIRA FEITOSA VAZ

Redução de Danos, política do comum e invenções de um cuidado

de si: uma cartografia do Centro de Convivência É De Lei

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA PUC - SP

RODRIGO DE OLIVEIRA FEITOSA VAZ

Redução de Danos, política do comum e invenções de um cuidado

de si: uma cartografia do Centro de Convivência É De Lei

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social, sob a orientação da Professora Doutora Maria Cristina Gonçalves Vicentin.

SÃO PAULO 2015

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BANCA EXAMINADORA

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"Ofereço aos vagabundos/Que não têm onde dormir"

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AGRADECIMENTOS

“Vou mostrando como sou/e vou sendo como posso/jogando meu corpo no mundo/

andando por todos os cantos/e pela lei natural dos encontros/eu deixo e recebo um tanto/e

passo aos olhos nus/ou vestidos de luneta...”

À mãe, pela constante invenção de um jeito para não nos perdermos um do outro. Por

estarmos sempre tentando nos achar em algum ponto do caminho. Mãe nordestina, mulher de

lenda. Ela, Helena.

À irmã, preciosidade a quem admiro e agradeço pela confiança fraterna.

À Maria Cristina Vicentin, pela parceria como orientadora nesta difícil travessia que é a

escritura de uma dissertação. Pela paciência de seguir junto em meio aos percalços e pedras

no asfalto. Por vezes, seguíamos pistas nas estradas de terra, poeira entrava nos nossos olhos.

No entanto, o seu cuidado com as intensificações sem prudência se fez presente neste texto.

Gratidão por tudo!

Ao NUPLIC (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Lógicas Institucionais e Coletivas), em

especial, Alyne Alvarez, Renata Ghisleni, Julia Joia, Sander Albuquerque, Carolina Galvão,

Sergio Ribeiro, Adriano de Oliveira, Paula Albano, Dayse Andrade, Marina Massari, Claudia

Trigo, Saulo Mota.

Aos outros tantos que a PUC-SP me trouxe como presentes: Raonna Martins, Rebecca Loise,

Aline Matheus, Roberth Miniguine, Amilcar Parker, Vítor Osório...

Aos alunos da disciplina de graduação Introdução à Esquizoanálise, com quem compartilhei

uma experiência de invenção de devir discente-docente.

À PUC – SP: Paulo Freire vive! Eu convidei Zé Celso!

À Peter Pál Pelbart e Eduardo Passos por aceitarem contribuir como banca examinadora deste

trabalho, pela certeira delicadeza de análise de sempre. Gratidão.

Ao Marcelo Sodelli e ao Tadeu de Paula pela atenção como professores suplentes desta banca.

As brilhantes aulas-teatro do NU-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) do Programa de

Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais.

À equipe do CAPSi Sé, grandes carvoeiros de um coitidiano que se inventa diariamente. À

todos, pelos sonhos e saudades que sinto: “Mas tudo bem o dia raiar pra gente se inventar de

novo...”

Às noites no Vivo´s Bar, noites de fé cega e faca amolada.

À Manoel de Barros (in memoriam), por me fazer ter “olhar menino e sofrência de árvore”.

Por hoje, não olhar o céu de azul, mas “de manoel.” Acene-me!

À Priscila Tamis, a amiga-diva que Deus mandou. Sua arma é a delicadeza e ela bomba!!!

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Gratidão pela delicada revisão deste texto.

À equipe do Projeto Oficina – CEDECA Interlagos. Coragem e saúde. Força e audácia. À

Laura Shalom, Raonna Martins, Caio Condexa, Lucas Volpi, Myro Rolim, Daniel Villa. Que

tudo acabe em pipa e em samba!

Aos já queridos parceiros do CAPS Itapeva: Iara Pedó, Aline Buchala, Denise Diba, Juliana

Reis, Paula, Lucas, Vladimir, Germana Morais, Heloisa, Girlany, Daniele Ywazawa, Jamilson

Castro, Cleber, Claudio Bianchi, Maria Rita, Ludmila Poyares, Naymara Damasceno, Renata

Penalva, Vitor Romão, Caroline Caetano, Lúcia Camargo, Cínthia Mori, Bruna Bavuso,

Priscila Serafim, Estefânia, as Fátimas, e demais... Ao charme de nossas demências, à todos

os nossos nomes de louco!!!!

Ao Coletivo DAR – Desentorpecendo a Razão: “Évoé, jovens à vista!”

À equipe do Centro de Convivência É De Lei pela disponiblidade em se deixar entrar e afetar

por este trabalho. Aos conviventes, seus passos e suas mandingas.

Aos amigos paraibanos que lá deixei, ao que digo: sobrevivi, hermanos!!!!

Ao Coletivo Canto Geral de Estudantes de Psicologia da UFPB, aos EREP´s (Encontros

Regionais de Estudantes de Psicologia Norte-Nordeste). Eu que vim no bloco dessa

mocidade!

À Jack Aires, Hadassa Melo, Maria Silva e Narayana Lordão pela confiança em ceder um

pouco de com-viver e conhecimento de suas peculiares almas femininas.

À Flávia Fernando e Dênis Petuco, parceiros gauches de utopias ativas. Ao Cosmos por nos

ter feito hermanos de criação ética.

Ao Rafael Presto e Hugo Takeyama, pela invenção de um com-viver, por terem me feito um

capoeira das relações coletivas. Gratidão pelo que aprendi!

Aos gatos, Nemo, Príncipe e Artaud, verdadeiros donos da casa. Em especial, Nemo, por

povoar minha solidão em dias de intensa escrita, por sua sabedoria felina de ficar ao lado.

À Paulo Bittencourt e Thiago Oliveira, pelo que virá.

À Maria Rita Kehl, por sua escuta, por juntos criarmos diques para este excessivo rapaz

latino-americano.

À esta Paulicéia desvairada, por me fazer exercitar a ambivalência de sentimentos. Pelo que

foi construído nas ruas de junho de 2013, pelos amigos de uma vida inteira que encontrei,

pelo que amei e odiei, pelo que vi e vivi, pelo que viverei.

Ao CNPq e CAPES, por também terem tornado esse trabalho possível.

Azamiga e azinimiga também. Vida Longa!

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RESUMO

VAZ, R. O. F. Redução de Danos, política do comum, invenções de um cuidado de si: uma

cartografia do Centro de Convivência É De Lei. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social),

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2015. 139 p.

Esta dissertação se debruça sobre as práticas de cuidado em Redução de Danos forjadas em

um contexto/campo de lutas que desafiam a sua constituição enquanto uma efetiva política do

comum para álcool e outras drogas. Nosso trabalho, ao utilizarmos da atenção cartográfica

como metodologia, propõe-se a acompanhar o cotidiano de práticas de cuidado em Redução

de Danos empreendidas por um centro de convivência para usuários de drogas em

vulnerabilidade social na cidade de São Paulo – o Centro de Convivência É De Lei. Foram

acompanhadas algumas das atividades do Centro: reunião da equipe, assembleia, o Chá-de-

Lírio, as oficinas de vídeo e hip hop, quando pudemos, por meio de observação participante e

de conversas no cotidiano, nos colocando numa relação de vizinhança com conviventes e

equipe nos modos de produzir o cuidado e delas extrair nossas pistas de análise. Tomamos

também como campo de análise a noção de cuidado de si em Foucault e situamos a

emergência e os trajetos das políticas de saúde relativas ao uso de substâncias psicoativas e os

modos como a Redução de Danos aí comparece. Tais práticas que nomeamos de um cuidar

con-vivendo/con-viver cuidando, constituem-se numa certa dimensão precária e desafiadora,

quando a Redução de Danos se faz máquina de guerra, desfiladeiro estreito. Consideramos

ainda, que tais propostas de cuidado do Centro se afirmam também pelas encruzilhadas e

fronteiras por onde passa.

Palavras-chave: Redução de Danos; máquina de guerra; política do comum; drogas; cuidado

de si.

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ABSTRACT

VAZ, R. O. F. Harm reduction, common policy, inventions of the care of the self: a

cartography of the Centro de Convivência É De Lei. Dissertation (Masters in Social

Psychology), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2015. 139 p.

This thesis deals with the practices of care on harm reduction (forged in a context/field of

fights) that challenges its constitution as an effective common policy for alcohol and other

drugs. The Cartographic attention used as a methodology in this study, sets out to follow the

daily life of care practices in harm reduction undertaken by a living center for drug users in

social vulnerability in the city of São Paulo - Centro de Convivência É de Lei. The following

activities were accompanied and observed in the Center: team meeting; assembly; Chá de

Lírio; and video and hip hop workshops. During the activities, a team that produced ways of

care was formed through participant observation and daily life conversations (in a way that all

participants had a good neighborly relation). From these actions, it was possible to extract

some clues for the analysis. It was also used as field analysis the notion of self care in

Foucault, and we situated the emergency and the paths of health policies in regard to the use

of psychoactive substances and the ways that harm reduction appears in it. Such practices,

that we named as cuidar con-vivendo/con-viver cuidando (Care living together / live together

care), constitute a certain precarious dimension and challenge, when harm reduction becomes

a war machine, a narrow defile. We consider that such proposals of the care center are also

affirmed when passing borderlines and crossroads.

Keywords: harm reduction; war machine; common policy; drugs; war machine; the care of

the self.

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ABREVIATURAS E SIGLAS

AA: Alcóolicos Anônimos

ABORDA: Associação Brasileira de Redutores de Danos

AT: Acompanhante Terapêutico

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CAPSad: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas

CAPSi: Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil

COMUDA: Conselho Municipal de Álcool e Outras Drogas

MPL: Movimento Passe Livre

NEPAIDS - Núcleo de Estudos e Prevenção em AIDS do Instituto de Psicologia da

Universidade de São Paulo

ONG: Organização Não Governamental

PRD: Programa de Redução de Danos

PROSAM: Associação Pró-Saúde Mental

RAPS: Rede de Atenção Psicossocial

RD: Redução de Danos

SAE/DST/AIDS: Serviço de Assistência Especializada em HIV/AIDS

SUS: Sistema Único de Saúde

UNODC: United Nations Office on Drugs and Crime

UPP: União de Polícia Pacificadora

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SUMÁRIO

0. APRESENTAÇÃO ________________________________________________________ 1

0.1. DAS LINHAS QUE COMPÕEM UM CORPO ________________________________ 1

0.2. DA CARTOGRAFIA E LINHAS DESTE TRABALHO _________________________ 5

LINHA 1 - ABRINDO OS TRABALHOS ______________________________________ 12

1.1. - O campo problemático do cuidado de si: a vida como obra de arte _______________ 12

1.2. - Fala Dioniso: operação pharmákon, o campo das drogas em questão _____________ 17

1.3. - O plano-droga e a experimentação ________________________________________ 25

LINHA 2 - REDUÇÃO DE DANOS: PRODUÇÃO DO COMUM E INVENÇÕES DE UM

CUIDADO DE SI ________________________________________________________________ 33

2.1. - Linhas de resistência forçam o espaço: a potência da Redução de Danos __________ 33

2.2. - Do estilo e da territorialidade: itinerâncias, pontos de parada e desvios nas andanças da

RD _____________________________________________________________________ 42

LINHA 3 - O CENTRO DE CONVIVÊNCIA É DE LEI - CONVIVER CUIDANDO,

CUIDAR CONVIVENDO ___________________________________________________ 48

3.1. - De uma sensibilidade às condições iniciais _________________________________ 48

3.2. - Chegar, permitir, tocar _________________________________________________ 56

3.3. - Traçar, encontrar, ver __________________________________________________ 58

3.4. - Re-parar: con-fiando as chances de uma saúde no viver-junto __________________ 63

3.4.1 - O dispositivo assembleia ______________________________________________ 64

3.4.2. - O dispositivo Chá-de-Lírio ____________________________________________ 72

3.4.3. - O dispositivo oficina de vídeo __________________________________________75

3.4.4. - O dispositivo oficina de hip hop ________________________________________ 87

3.5. - Do que se passa entre a gente: a crise que também move ______________________ 98

3.6. - Pelas encruzilhadas e fronteiras do É De Lei: a peleja e os Exus da RD __________ 109

ALINHAVAMENTOS FINAIS OU O QUE RESTA SÃO OS RASTROS ____________ 114

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pausa para um cigarro... ____________________________________________________ 119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _________________________________________ 122

ANEXOS _______________________________________________________________ 140

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0. APRESENTAÇÃO

“Eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver.” (Manoel de Barros)

“E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria

vertente. Queria entender do medo e a coragem, e a gã que empurra a gente para fazer tantos

atos, dar corpo ao suceder (...) Antes conto as coisas que formaram passado para mim com

mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei.

Ninguém ainda não sabe. Só raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O

que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção."

(João Guimarães Rosa)

0.1. – DAS LINHAS QUE COMPÕEM UM CORPO

Posso começar falando de onde venho. De uma pequena cidade no interior da Paraíba,

Catolé do Rocha, “praça de guerra, onde o homem e o bode berra” (CÉSAR, 1995), em um

sertão “onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus, mesmo, se vier, que venha armado”

(ROSA, 1994, p. 19).

Dos sons de uma infância marcada pelas brincadeiras com a “molequeira da rua” a

uma adolescência marcada por acontecimentos-mortes na família, até a ida para a capital João

Pessoa. A militância construída junto aos bandos-parceiros com quem fui me agenciando (não

menciono todos os nomes aqui, por receio de não fazer menção a alguém que talvez, hoje,

ocupe o meio-fio de meu esquecimento) durante a graduação em Psicologia, os

questionamentos empreendidos ao problematizar as práticas de uma profissão que durante a

ditadura militar havia se ocupado em traçar o perfil psicológico do terrorista brasileiro, bem

como a análise da noção de cuidado para com o outro tão cara a prática da Psicologia. Todas

essas afinações com uma perspectiva “menor” na prática estudantil me levaram a escrever

uma monografia sobre a Penitenciária de Segurança Máxima de João Pessoa, inspirado em

Vigiar e Punir, de Michel Foucault, a ir lá, a se abrir aos questionamentos, a pensar também as

prisões a céu aberto das quais padecemos.

Acabo por me deixar atravessar pelos adolescentes em conflito com a lei que

acompanhei em uma experiência de estágio na Vara da Infância e Juventude, de João Pessoa.

Juventudes marginais, artesãos da análise (BOCCO & LAZZAROTTO, 2004), buscando

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também modos de ser e estar no mundo. Nessa aliança com uma juventude desviante, também

me desviava de uma prática hegemônica e cercada de qualquer saber que os aprisionasse em

sistemas identificatórios ainda mais enclausurantes. Aliança com aqueles que andam nus pelas

quebradas com teus exus (BUARQUE, 2006) e que tem a “vida loka”1 como ethos, e sendo

também clandestino pelos becos em busca de novos encontros, buscava um punhado de

parada para esta via através de um olhar psi que não fosse sedentário, alheio e plácido,

baseado na neutralidade, na captura da subjetividade pela individualidade.

Posso aqui ousar também em falar de uma política da amizade como ética criadora que

desafia nossos saberes-fazeres ao experimentar outros espaços possíveis de encontros com as

juventudes (DE SOUZA, 2009). Nos atendimentos, tentava experimentar uma possibilidade

de oficina de histórias, líamos juntos, contávamos nossas próprias histórias, desenhávamos,

montávamos nosso próprio acervo. Éramos moços tecelões e como A moça tecelã, de Marina

Colasanti (2001), tentávamos compor outras malhas possíveis, tecíamos e destecíamos fios,

nos embaraçávamos nos pontos de novelo, tentávamos recomeçar. Modos de conhecer

arriscados, o risco como vertigem necessária para a invenção.

Chego então ao Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, ao convite de uma grande

hermana, parceira gauche nessa trajetória errante, uma psiquiatra menor que não vacila em

compor sua clínica e suas relações com os afetos que a atravessam, sejam tristes ou alegres.

Foi um ano bonito, doído e doido, acreditei e apostei na desconstrução por dentro, trouxemos

o circo para o estacionamento do manicômio, apostamos no processo de contágio junto ao que

estava endurecido, derretendo-o, tornando-o gelatinoso, dissolvendo-o. Trabalhava em um

espaço voltado ao cuidado de usuários de álcool e outras drogas, lugar marcado pela violência

de suas práticas amoladoras de faca2, microfascismos tomavam a casa. Eu pedi pra rua entrar.

Vieram os repentistas, o reggaeiros, os mc´s e os mandingueiros. A possibilidade de desmonte

me acompanhava todos os dias.

A questão das drogas ia criando corpo, uma clínica da Redução de Danos ia se

afeiçoando ao meu fazer diário, uso da música, da dança, da poesia, das artes, dos perceptos e

1 Modos de vida adrenalizantes (também chamado de “correria”) por transgressões da lei, ritmo frenético de

quem se sabe vigiado e acusado como “perigo em potencial.” Vidas também a escapar das mãos que as tentam

controlar.

2 Práticas que segundo Baptista (1999) cortam os corpos rejeitados pela lógica vigente. Mortificantes,

equiparam-se à inércia, seguem no marasmo da confirmação de rotas feitas, destinos conhecidos, ratificação de verdades alcançadas, recusam tempestades e qualquer brisa que remeta à elas, não gostam de circo, nem de

trapézios.

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afetos ganhavam força e plano de consistência na composição. Surge junto aos artistas da

cidade e profissionais da saúde o Sarau Poético, ocorrido nas quintas-feiras, dia de Netuno, às

19h, no auditório do Complexo. Ao se afirmar enquanto espaço de fruição e manifestação

como no filme O Circo Borboleta (2009), onde uma trupe se reuniu e pensou em transmutar o

circo de horrores em um circo de possibilidades e criação, deslocava a problemática da

loucura do campo da psicopatologia médica para a cultura. Foram bons encontros, tendo a

alegria e o riso como mote para aumentar a potência de cada um. Tendo os afetos produzidos

no ato dos encontros como dispositivos, éramos dionisos em libertação.

Aqui faço uma pausa. Dedico esta experiência à uma certa garça que voou em cinzas,

usando seu corpo como veículo, uma “pastorinha” de si mesma3. Também dedico à minha

querida Stela do Patrocínio4 da Paraíba que, até onde sei, hoje vive lépida e fagueira em suas

territorialidades sem prisões, grades, corredores e paredes, tão violentos quanto qualquer

choque elétrico que tenha sofrido. E a todos aqueles que acompanhei em seu processo de

constituição no mundo, as entidades que se manifestavam neles, e aos que vi e soube que

morreram pela violência do Estado, pelos grupos de extermínio tão já naturalizados naquela

região. "Aprendo mais com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci

tendo. É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na

sociedade é chutado como uma barata cresce de importância para o meu olho. Ainda não entendi por

que herdei esse olhar para baixo. Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas. Fui

criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão - antes que das coisas celestiais. Pessoas

pertencidas de abandono me comovem. Tanto quanto as soberbas coisas ínfimas” (BARROS, 2013c,

p. 17).

E o tempo passa. Resolvo seguir meu trajeto torto e chego à São Paulo, seguindo esse

3 Foi umas das internas mais antigas no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira – PB. Havia relatos de

aproximadamente quarenta anos de internação. No dia em que me despedia do Hospital e da cidade de João

Pessoa, fui vê-la. Não falava. Rígida, sua expressão era apenas me olhar furtiva e fixamente. Uma colega de

trabalho que me acompanhava, questionou: “Havia vida ali?” Eu dizia que sim. Dias depois, recebo uma

mensagem: Ela havia posto fogo em seu próprio corpo, partira deste plano, sob chamas. Havia vida ali? Havia

algo que precisava queimar.

4 Stela do Patrocínio fora interna desde 1962 na Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira no Rio de Janeiro e se

destacava dos outros pacientes por sua fala peculiar, com alto teor poético. Algumas de suas falas foram

gravadas em fitas cassetes e, quase quinze anos depois, foram transcritas, organizadas em forma de poesia e

reunidas em livro pela escritora Viviane Mosé, com o título de "Reino dos bichos e dos animais é o meu nome"

Em 2005, a fala de Stela se transformou também em ópera pelo compositor Lincoln Antonio. Totalmente

abandonada pela família, permanecendo por quase 30 anos interna, sem nunca ter saído de lá, Stela veio a morrer

em 1997, vítima de uma infecção generalizada. A nossa “Stela” da Paraíba também esteve interna por quase trinta anos no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira – PB e nos surpreendia com suas falas de ampla intuição

afetiva. Soube recentemente que “Stela” retornou a sua cidade de origem, ao convívio com familiares.

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nomadismo (que é também psíquico) e se faz de sacolejos em meio a viagem, pois ao modo

de Hakim Bey (2004) sentimos “tanto o desejo quanto a necessidade de TAZs (zonas

autônomas temporárias), acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto,

interzonas, oásis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas, trechos de selva e

sertões "liberados", áreas proibidas, mercados negros e bazares underground. Esses nômades

orientam seu percurso por estrelas estranhas, que podem ser núcleos luminosos de dados no

ciberespaço ou, talvez, alucinações. Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa

das mudanças políticas; sobre ele, ponha um mapa da internet, especialmente da contra-net,

com sua ênfase no fluxo clandestino de informações e logística; e, por último, sobre tudo isso,

o mapa 1:1 da imaginação criativa, estética, valores. A malha resultante ganha vida, animada

por inesperados redemoinhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos,

surpresas” (BEY, 2004, pp. 28-29).

Assim, ao passo que inicio um trabalho em um Caps infantil no centro de São Paulo,

busco a PUC/SP por entendê-la como um espaço potente na continuidade na composição de

minhas territorializações/desterritorializações. Penso em seguir como Foucault na coragem da

verdade, dando visibilidade ao que se forja nos interstícios de práticas dominantes, ao que

busca escapar insistentemente do controle e das prescrições.

Escolho o Centro de Convivência É de Lei como lócus de pesquisa por supô-lo como

espaço atravessado por intensidades que criariam condições para um desenho cartográfico de

práticas de cuidado em Redução de Danos. O É De Lei é um dos primeiros espaços de

convivência e interação social para usuários de drogas no Brasil, inspirado no Ego-França5.

Inaugurado em 1998, com intuito de se aproximar mais daqueles que ocupam as cenas de uso

de substâncias psicoativas no Centro de São Paulo, tem seu espaço físico situado na Galeria

do Reggae (Rua 24 de maio, n° 116, 4° andar) onde ocorria em seus arredores, à época, uso

intenso de drogas injetáveis.

Além disso, consideramos os Centros de Convivência como estratégicos para a

inclusão social das pessoas que fazem uso de crack, álcool e outras drogas, através da

construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na comunidade e em variados

espaços da cidade (BRASIL, 2011). Porém, há poucos estudos que se dirigem a experiências

5 Segundo Marina (Comissão de Comunicação do É De Lei), o Ego é um centro de convivência para UD

(usuários de drogas) que atua na perspectiva da RD. Tem abordagem de rua também e está associado a uma rede de serviços, que inclui um serviço de fornecimento de insumos variados, chamado Step. Eles têm reuniões

periódicas com a rede que atende população de rua.

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de caráter comunitário (em geral, estes se ocupam dos grupos de auto-ajuda, como os AA e

comunidades terapêuticas) o que pode trazer visibilidade e subsídios para o cuidado e o apoio

a usuários que delas necessitem.

0.2. - DA CARTOGRAFIA E LINHAS DESTE TRABALHO

THE BEGINNING OF MEMORY

Aqui está uma história de um jogo antigo sobre pássaros chamado The Birds

E é uma história curta antes que o mundo começou

De um tempo quando não havia terra, sem terra.

Apenas o ar e os pássaros todos os lugares.

Mas a coisa foi que não havia lugar para pousar.

Porque não havia terra.

Então, eles só circulavam ao redor e ao redor.

Porque isso foi antes que o mundo começou.

E o som era ensurdecedor. Pássaros estavam em toda parte.

Bilhões e bilhões e bilhões de aves.

E uma dessas aves era uma cotovia e um dia seu pai morreu.

E este era um problema muito grande, porque o que deve fazer com o corpo?

Não havia lugar para colocar o corpo porque não havia terra.

E, finalmente, a cotovia tinha uma solução.

Ela decidiu enterrar o seu pai na parte de trás da sua própria cabeça.

E este foi o início da memória.

Porque antes disso ninguém poderia lembrar de uma coisa.

Eles só estavam constantemente voando em círculos.

Constantemente voando em círculos enormes

(Lauren Andersen)

...cada passagem será nomeada de linha, por entender assim como Deleuze & Guattari

(2012b) que somos compostos por segmentos que nos constituem, por linhas que se

entrelaçam, compondo territórios, não sendo complementares ou continuidades umas das

outras, porém se agenciando, se entrecruzando, compondo nossa malha cartográfica.

Na Linha 1 traçamos alguns elementos voltados à construção de práticas relacionadas

aos usos de substâncias psicoativas que em alguma medida estivessem aproximados à noção

de cuidado de si (FOUCAULT 2012a; 2013). Inicia-se a pesquisa estando sensível a um

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determinado campo-tema (SPINK, 2003). E a inserção no campo-tema como acrescenta

Spink (2003) inicia-se antes mesmo do pesquisador sair de casa, começando já quando este se

encontra mobilizado frente a uma determinada questão.

Políticas de cuidado em relação aos usos de substâncias psicoativas nos parece um

assunto caro. Delineamos as políticas de cuidado em Redução de Danos como um campo

problemático. Das estratégias de cuidado de si e uso dos prazeres na Antiguidade Clássica

como estética da existência, passando pelo cuidado com a ingestão de bebidas alcóolicas nos

simpósios e banquetes gregos, até a formulação do conjunto-droga e da experimentação

através de inspirações deleuzo-guattarianas, buscamos nesta primeira linha senão traçar um

caminho que potencializasse uma análise de nosso campo-tema e que também não desse conta

de uma totalidade.

Ao longo do caminho é que chegamos na Linha 2 ao contexto de emergência da

Redução de Danos como uma política, como linhas de resistência que forçam o espaço,

oferecendo pistas de como esse modo de cuidar se dá, suas itinerâncias, seus pontos de parada

e seus desvios, sua territorialidade e o estilo, sua relação com as linhas de poder.

Na Linha 3, acompanhamos a práticas de cuidado em Redução de Danos no Centro de

Convivência É De Lei em um período que vai de dezembro de 2013 a agosto de 2014. Entre

março e dezembro de 2013, tivemos passagens esporádicas por reuniões e idas ao Centro,

com vias a construir um melhor guia para a nossa cartografia. Inspirados na metodologia

atencional de Kastrup (2009) nos utilizamos de uma perspectiva construtivista, onde não há

coleta, mas produção de dados, naquilo que já está de modo virtual, um deja lá, a invenção

engendrada com o agente do conhecimento, do saber que emerge do fazer e não a

representação de algo que já se suponha dado. Saiba que eu estou revirando os dados,

procurando agulha no palheiro.6

Interrogar o vivo é uma situação social na qual entrar em contato ou não jamais é

indiferente (DESPRET, 2004a). A pesquisa deve cuidar da relação sendo assim uma forma de

cuidado de um território existencial no qual pesquisador e pesquisado se encontram

(ALVAREZ & PASSOS, 2009). A prática vai ganhando consistência com o tempo. O processo

de habitação do território inicia com uma receptividade afetiva.

O rastreio, a primeira das pistas indicadas por Kastrup (2009), configura o território de

observação não como busca de informações a serem apreendidas, a atenção é aberta e sem

6 Referência livre a trechos da canção O tempo não pára, do Cazuza (1988).

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foco, a princípio, e a concentração é sintonia fina com o problema, atitude de concentração no

e pelo problema, pontas, franjas do processo em curso, detecção de signos e forças

circulantes, detecção e apreensão material do que pode parecer desconexo e fragmentado.

Extraindo cenas e percursos em uma concentração sem focalização, atenção à espreita

(DELEUZE, 1994). Tal pista pode ser evidenciada na Linha 3.1. quando tentávamos encontrar

um modo de compor com o campo.

O toque, nossa segunda pista (KASTRUP, 2009) pode levar tempo para acontecer e

pode ter diferentes graus de intensidade. A atenção ao toque assegura o rigor do método sem

abrir mão da imprevisibilidade do processo de produção do conhecimento. Tal tateio na

pesquisa de campo requer a habitação de um território que, em princípio, ele não habita.

Para habitar um território existencial não há uma regra ou protocolo de pesquisa, não é

um procedimento ditado de antemão, mas requer um aprendizado ad hoc, passo a passo,

entendido mais como experiência de engajamento do que como etapas prescritíveis de uma

metodologia de pesquisa. Experiência que só se dá à medida que se realiza, sem pré-

condições (ALVAREZ & PASSOS, 2009). Tocamos ao campo na Linha 3.2. ensaiando esse

jeito tateante de chegar, de habitar, quando acompanhamos algumas reuniões de equipe do É

De Lei.

Nesta medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnográfica e lança mão da

observação participante. Cicourel (1980) aponta que além de observar, o etnógrafo participa,

em certa medida, da vida destas pessoas, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado

pela experiência etnográfica. O tipo de atividade e o grau de envolvimento do pesquisador

variam, dependendo do grupo, podendo ir da observação participante à participação

observante. Segundo Janice Caiafa (2007) uma característica central da etnografia é o fato do

pesquisador se incluir, de uma forma problemática, na pesquisa. Isto envolve, além de um

nível de convivência, o problema do tipo de posição assumida e da relação que estabelece

com os participantes.

O pouso como nossa terceira pista não será como coloca James (1890/1945)

simplesmente uma parada do movimento, mas parada no movimento. Vôos e pousos

configuram um ritmo do pensamento, e atenção desempenha um papel essencial. Abre-se a

questão de onde pousar nossa atenção, selecionando os elementos ao qual prestar atenção

dentre múltiplos e variados. Algo diz respeito a como configuramos o território de observação

e o próprio campo perceptivo, criamos o próprio peixe (PELBART, 2013b).

Como prosseguir o funcionamento atencional após o ato seletivo? Kastrup (2009) nos

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propõe a ampliação de janelas atencionais que servem para demarcar que existe um certo

quadro de apreensão, gesto que delimita um centro mais pregnante, entorno do qual se

organiza momentaneamente um campo, um horizonte, uma periferia. Vermersch (2002) irá

enumerar cinco tipos de janela: a joia, a página do livro, a pátio e a paisagem.

A janela micro é a joia e aproxima-se do joalheiro, da bordadeira, e do leitor

minucioso, é uma atenção focal. Não se distribuindo ou percorrendo por outros espaços além

do campo visado, inibe o campo perceptivo, podendo cessar movimentos e produzir cegueira

atencional. Na janela-página já há indícios de distribuição da atenção, faz-se uma entrada no

campo perceptivo, seguida de movimentos de orientação. Já a janela-sala comporta

focalização, mas através da multiplicidade de partes com graus de nitidez diferenciados. Tem

como ponto novo o próprio movimento da cabeça e do corpo no espaço. A janela-pátio

envolve deslocamento e orientação, detecção, típica da atividade do caçador. E A janela

paisagem é panorâmica, capaz de detectar elementos distantes e conectar seus movimentos

(VERMERSCH, 2002). Esse é nosso desafio.

Cada janela cria um mundo, dá lugar a diversos gestos atencionais, podendo ter

mudanças de nível, alguns mundos se excluem, embora continuem copresentes. Movimento

de zoom não é focalização, apenas a janela-joia é focal. Quando a atenção pousa, há um

trabalho fino e preciso acrescido de magnitude e intensidade, além da redução da

ambiguidade da percepção. No entanto, é importante ressaltar que em cada momento da

dinâmica atencional todo um território de observação se reconfigura (KASTRUP, 2009).

É neste instante que caminharemos para a Linha 3.3. quando a partir desde pouso da

atenção cartográfica traçamos uma maneira de encontrar com os sujeitos que constroem o

campo de pesquisa, um jeito de apostar que seguiríamos juntos ao passo que emergia a

necessidade de conhecer aquilo que produzia o É De Lei e o movia até hoje. O que acontece

no campo a ser pesquisado? Que ações são estas?

Assim nas Linhas 3.4., 3.5. e 3.6., afinamos o reconhecimento atento (KASTRUP,

2009) das práticas de cuidado em RD no É De Lei. Ao elegermos o dispositivo assembleia

(3.4.1.), o dispositivo Chá-de-Lírio (3.4.2), o dispositivo oficina de vídeo (3.4.3) e o

dispositivo oficina de hip hop (3.4.4.) demarcamos nossas janelas atencionais. A escolha

dessas ações se deve ao fato de focarem sempre na participação dos usuários como

protagonistas de suas experiências, de modo a repensar seus modos de vida, bem como se

implicar como sujeito ético-político no mundo. Aos poucos o panorama das janelas nos leva

também a atentar as crises na lida dessas práticas de cuidado em RD, crises qu também nos

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movem (3.5.), e que operam como que por encruzilhadas e fronteiras (3.6.).

Última de nossas pistas, o reconhecimento atento ocorre para Kastrup (2009) na forma

de circuitos. Memória e percepção trabalham juntas. Memória que não conserva a percepção,

mas a duplica. Memória de cotovia, que não é simples lembrança. O tecido da memória vai

tornando-se um folheado, assim como o objeto, que se refaz a cada instante, sem modelo

mnésico preexistente, atiçado pela perturbação da experiência (KASTRUP, 2009). O

reconhecimento atento realiza um trabalho de construção aproximado ao alinhavamento de

fios ou de pedaços de madeira de uma jangada que mesmo ligados de uma maneira solta,

consiga fazer com que a estrutura rudimentar desta siga flutuando.

Para compor o reconhecimento atento, portanto, este cartógrafo se utilizou de alguns

equipamentos de uso como a construção de um prosador ou de um pesquisador conversador

(SPINK, 2008) e, no que diz respeito aos registros se utilizou dos diários de campo

(LOURAU, 1993).

Segundo Spink (2008), o pesquisador conversador considera que estar no campo pode

ser um período intenso de viver junto, ou simplesmente uma série de visitas, prestando

atenção a nossa própria cotidianidade, reconhecendo que é nela que são produzidos e

negociados os sentidos. A sua atenção está direcionada para a importância do acaso diário,

dos encontros e desencontros, do falado e do ouvido, da conversa e do debate, de uma

inserção horizontal do pesquisador nos encontros diários – encontros estes que não

acontecem no abstrato ou no ar, mas que acontecem sempre em lugares, com suas

socialidades e materialidades. O pesquisador deixa de ser um mero participante ou um

observador distante para se enxergar como parte.

Os diários de campo ou caderno de anotações funcionaram como são os hipomnemata

para os gregos (FOUCAULT, 2014a). Sendo uma espécie de prática de cuidado de si pela

escrita, os hipomnemata acrescenta Foucault (2014a) tinham o objetivo administrativo de

reunir o logos fragmentado, além de constituir uma memória material das coisas lidas,

ouvidas ou pensadas, e formar também uma matéria-prima para a redação de tratados mais

sistemáticos. Para a cartografia essas anotações colaboram na produção de dados de uma

pesquisa e têm a função de transformar observações e frases captadas na experiência de

campo em conhecimento e modos de fazer, transformando a experiência em conhecimento e

de conhecimento em experiência, numa circularidade aberta ao tempo que passa (BARROS &

KASTRUP, 2009).

Como um material para ter à mão, as observações anotadas operam não só no sentido

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de poderem ser trazidas à consciência, mas de também poderem ser utilizadas, logo que

necessário, na ação (FOUCAULT, 2014a). São feitas a partir de relatos regulares, após as

visitas e as atividades, que reúnem tanto informações objetivas quanto impressões que

emergem no encontro com o campo. Os relatos contêm informações precisas - o dia da

atividade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsável, ou seja, uma descrição

mais ou menos detalhada, além de também impressões e informações menos nítidas, que vêm

a ser precisadas e explicitadas posteriormente (BARROS & KASTRUP, 2009).

Não se baseando em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas buscando,

sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças e dos afetos, os

relatos podem conter associações que ocorrem ao pesquisador durante a observação ou no

momento em que o relato está sendo elaborado. Vale ressaltar que o momento da preparação

do relato funciona algumas vezes como um momento de explicitação de experiências que

foram vividas pelo cartógrafo, mas que permaneciam até então num nível implícito,

inconsciente e pré-refletido (VERMERSCH, 2000).

É por isto, que a escrita do relato não deve ser um mero registro de informações que se

julga importante ou um momento burocrático. Sua elaboração reitera Barros & Kastrup

(2009) pode até mesmo requerer certo recolhimento, na tentativa de possibilitar um retorno à

experiência do campo, para que se possa então falar de dentro da experiência e não de fora, ou

seja, sobre a experiência.

Vamos tentando acompsnhar não só o que se viu e viveu, mas também o que se ouviu

no campo, o que nos contaram, os relatos dos outros sobre a própria experiência do campo

(CAIAFA, 2007). A processualidade se prolonga no momento de análise do material e

apresentação de diálogos literais é caminho para a conStrução de um texto polifônico

(BAKTHIN, 1990; 2003) que tome o cuidado de não representar os "outros" de maneira geral

e abstrata (CLIFFORD, 2002).

Passemos agora aos detalhes, aos desenhos específicos de cada uma dessas linhas...

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Bouguereau, "A juventude de Baco", 1884

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LINHA 1 – ABRINDO OS TRABALHOS

... desta vez, no entanto, eu venho como o vitorioso Dionísio,

que transformará o mundo numa festa... Não que eu tenha muito

tempo...

(Nietzsche)

O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte

tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a

indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado e ou feita por

especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos

se transformar numa obra de arte?

(Michel Foucault, Sobre a genealogia da ética)

1.1. - O campo problemático do cuidado de si: a vida como obra de arte

Iniciados os trabalhos, aqui começa nosso deslocamento. Ao sair de nossa zona de

conforto, traçamos a escolha de uma destinação. Temos não mais do que pontos cardeais

necessários (ONFRAY, 2009). De início, faremos uma breve passagem pelos conceitos em

Foucault que problematizam a ética do cuidado de si. Teremos como balizas os dois últimos

volumes de História da Sexualidade – O uso dos prazeres (2012a) e O cuidado de si (2013).

A escolha pelo pensamento foucaultiano se dá por este ter buscado problematizar nestes dois

volumes a relação consigo mesmo, que não estivesse restrita aos códigos morais ou atos. A

escolha, portanto, é também ético-estético-política7.

Muchail (2011) irá nos dizer que cuidado de si remete à expressão grega epimeléia

heautoû e à expressão latina cura sui, e se refere a um conjunto de atos e práticas que

envolvem e transformam o sujeito. O sujeito do cuidado de si constitui-se como sujeito de

ação, sujeito ético e político, que se reinventa, diferente do sujeito do conhecimento de si

7 A escolha é ética porque não se trata do rigor de um conjunto de regras como coloca Rolnik (1993) que seriam

tomadas como um valor em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um

campo de saber): ambos são de ordem moral. As verdades criadas com este tipo de rigor, assim como as regras

que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto conduzidas e exigidas pelas marcas deixadas no corpo. É

estética porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado (campo de saber), mas sim o da criação de

um campo, criação que encarna as marcas no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este rigor é o de uma luta contra as forças que em nós desejam o rigor do pensamento permanente em detrimento

ao que se permite constranger, o pensamento desassossegado.

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(gnôti seautón) que teria uma identidade, uma constituição profunda, uma verdade íntima,

uma natureza secreta, enfim, uma interioridade subjetiva. Ao considerarmos o sujeito do

cuidado de si, acrescenta Muchail (2011) abandonamos o “quem somos?” para apostarmos no

“que devemos fazer de nós mesmos?”. A noção de conhecimento de si estaria como que

subordinada ao preceito do cuidado de si. O cuidado de si segundo Muchail (2011) seria a

aplicação concreta desta regra “conhece-te a ti mesmo” – inscrição do templo délfico. “É

neste âmbito, como que no limite deste cuidado, que aparece e se formula a regra ‘conhece-te

a ti mesmo’” (MUCHAIL, 2011, p. 46).

Nesta esteira, Foucault (2012a; 2013), longe de traçar uma hermenêutica do desejo, irá

se interessar em compreender um conjunto de práticas refletidas e voluntárias, onde buscava

não só fixar regras de condutas, mas transformar-se, modificar-se em sua singularidade, fazer

de sua vida uma obra portadora de certos valores estéticos e respondendo a certos critérios de

estilo8. Essas técnicas de si punham em jogos critérios de uma estética da existência ou de

uma arte da existência (techne tou biou) e propunham, mais do que impunham, estilos de

moderação ou de rigor, tendo cada um, certa fisionomia particular.

Sendo assim, Foucault (2012a) delimitará modos de subjetivação pelos quais os usos

dos prazeres (chresis aphrodision) eram referidos enquanto problematização. Fonseca (2011)

coloca que o primeiro desses modos seria a determinação da substância ética, onde o sujeito

se reconhece como matéria essencial de sua conduta e determina uma parte de si como sendo

efeito principal desta conduta. Uma vez delimitada essa região, é possível pensar o segundo

elemento - “o modo de sujeição”: maneira como o sujeito poderia se relacionar com as regras

a serem seguidas. O terceiro elemento seria a elaboração do trabalho ético, como um conjunto

de atitudes a serem tomadas com relação a si mesmo a fim de moldar-se. Ao fim, temos a

teleologia do sujeito, que seria esse sujeito constituído e colocado em prática. O que

caracteriza esse sujeito, acrescenta Fonseca (2011), não é sua atitude, mas um modo de ser e

posturas singulares.

Para pensar esse campo de problematização do cuidado ético de si, Foucault (2012a)

utilizará a noção de aphrodisia para o que era reconhecido como substância ética. O uso da

chresis servirá para pensar o tipo de sujeição ao qual a prática de certos prazeres deveria

8 Um estilo para Foucault (2014b) tem a ver com uma certa maneira de se conduzir, em um certo modo de ser do sujeito, que se traduz pelos seus hábitos, por seu porte, por sua maneira de caminhar, pela calma com que pode

responder aos acontecimentos. Mais adiante trataremos do estilo por perspectivas deleuzo-guattarianas.

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submeter-se; a enkrateia para a atitude que se deve ter a respeito de si mesmo para constituir-

se como sujeito ético e, finalmente, a de temperança ou sophrosune, que caracterizaria esse

sujeito em sua realização. Vale salientar que a escolha por estes termos e por um

passear/viagem até à Antiguidade Clássica não tem por finalidade apontar essas relações que

os “antigos” tinham com os prazeres como retorno ou solução para os nossos tempos atuais de

proibicionismo, de códigos universais que determinam a conduta conveniente, onde temos

uma instância carregada de vigiar e aplicar sanções às infrações cometidas, mas, ao modo de

Foucault (2012a), há o desejo de pensar diferente do que se pensa, desnaturalizando a atual

relação da codificação de nossas condutas estritas à ordem do permitido e do proibido,

herdeiras do poder pastoral (advindo com o cristianismo) e de algumas práticas do tipo

educativo, médico e psicológico.

Retomando nossa discussão, segundo Fonseca (2011), a experiência ética dos

aphrodisia seria os atos, gestos e contatos que proporcionam um modo de prazer e, portanto,

constitui-se como objeto de preocupação. Nessa relação entre ato, prazer e desejo, o que

importa é a dinâmica e não as formas assumidas pelos procedimentos. Os prazeres não são um

mal em si e a problematização se encontra na medida em que os usos destes garantem

vivacidade, isto é, um maior prazer consigo próprio. A busca se dá por maneiras de cuidar de

uma força imanente, isto é, servir-se de uma dinâmica com vistas ao bom uso e às atividades

que o envolve, o que não quer dizer, segundo Foucault (2012a), que esta força não esteja

suscetível de excesso.

Já a noção de chresis, segundo Fonseca (2011), caracteriza-se por pensar a condução

das atividades prazerosas, quais elementos a serem considerados nessa condução, de que

modo a prática se tornaria ética9. O uso dessa dinâmica entre atos, prazeres e desejos,

continua Fonseca (2011), ou seja, a chresis, é definido no pensamento da Antiguidade a partir

de três estratégias: a necessidade, onde se problematiza os excessos, o momento oportuno,

apropriado (kairos), quando convém fazer uso dos aphrodisia, de modo que seja um uso ético

e a estratégia que considera o status de quem pratica/realiza os prazeres, de modo que este

reflita o melhor modo de se impor ou se permitir aos mesmos.

A enkrateia volta-se à elaboração de um trabalho ético, a um combate a si próprio,

considerando que os adversários não estão no sujeito ou perto dele, mas são parte dele mesmo

9 Para Foucault (2014b), uma atitude ética só seria possível quando se permite o exercício da liberdade.

Liberdade não é possibilidade ética, é a própria possibilidade da ética. O indivíduo constituído pela norma ou o

escravo é impedido de ser ético, pois é impedido de exercitar a liberdade.

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(FONSECA, 2011). O combate enquanto algo mais aproximado de uma agonística10 deveria

buscar garantir a vitória da vivacidade. A enkrateia se definiria, enfim, de modo

heautocrático, isto é, produzindo no sujeito uma autoridade sobre si, domínio sobre si, só se

efetuando enquanto exercício (askesis). Exercer a sophrosune, segundo Fonseca (2011), isto é,

a temperança, exigiria coragem (pahresia) e sabedoria do agir, buscando alcançar uma

liberdade que seria o poder que se exerce sobre si. Ser livre seria ser senhor de si e dos seus

atos. Na busca por uma constituição estética da existência, almejava-se a produção de uma

vida bela a partir da relação consigo, estilizar uma liberdade, aquela que o homem livre exerce

sobre sua atividade - estilísticas da existência.

Mais adiante, em O uso dos prazeres, Foucault (2012a), tratando ainda da constituição

estética da vida, problematiza as noções de Dietética, Econômica e Erótica como estilizações

de conduta. A Dietética como cuidado constante de si sobre si, buscará estilizar a vida do

corpo pelos regimes. Para o autor, o regime envolve toda uma arte do viver, arte estratégica

bem diferente de um conjunto de precauções destinadas a evitar doenças ou terminar de curá-

las. “É toda uma maneira de se construir como um sujeito que tem por seu corpo o cuidado

justo, necessário e suficiente. Cuidado que atravessa a vida cotidiana” (FOUCAULT, 2012a,

p. 137).

Não sendo o regime considerado a partir de Foucault (2012a) como um corpo de

regras universais e uniformes, mas uma espécie de modulação das maneiras de viver e sendo

circunstancial, a dietética é uma técnica de existência que não se contenta em transmitir os

ensinamentos de um médico, por exemplo, a alguém que o busque, de modo passivo. Não se

trata, segundo Foucault (2012a), de uma obediência nua ao saber do outro, mas de uma

prática refletida, uma conversação, informam-se e educam-se juntos sobre a melhor vida que

convém, podendo inclusive, fazer as mesmas coisas, só que de uma outra maneira. O autor

também reflete acerca do perigo na própria prática da dieta quando o que se busca é apenas

evitar os excessos, pois se pode ocorrer um exagero na importância dada à estes. Além disso,

frisa que a importância dada a regimes excessivos não tem por finalidade conduzir a vida o

mais longe possível no tempo, nem o maior desempenho, mas torná-la possível de ser vivida

nos limites que lhe foram fixados.

10 Polémos, agon ou guerra agonística são esses os vários termos que Mota (2008), sob inspirações

nietzscheanas, se refere ao combate que o mundo trava para afirmar o devir. Combate que não é extermínio nem precedência à hegemonia, mas contradição que não se resolve, se afirma em sua problematicidade como

elemento do mundo, do devir que nunca deixa de fluir, nunca deságua no ser.

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Com a Econômica, a problematização irá dirigir-se à estilização da condução do oikos

(administração da casa, da terra e dos bens do homem livre) a partir da temperança. Ser

temperante aqui significa a capacidade do sujeito bem conduzir sua vida e a vida dos que dele

dependiam (FONSECA, 2011). No que diz respeito à Erótica, segundo Fonseca (2011), esta

foi objeto de uma intensa problematização no pensamento grego. O amor aos rapazes era, por

exemplo, uma prática livre e reconhecida pelas leis, opiniões e instituições. Buscando uma

estilística própria de liberdade, a problematização estava na solidez da verdade da relação

amorosa e não a partir da virtude do rapaz, também considerando um aspecto viril que

conduzisse esta relação.

Foucault (2012a) colocará que há uma diferença entre o caráter da virilidade proposto

pelos gregos e o que costumeiramente consideramos hoje como viril. Para este autor, a

virilidade estaria ligada ao sujeito temperante, enquanto a intemperança seria encontrar-se em

um estado de não-resistência, em posição de fraqueza e submissão em relação aos prazeres.

Esse sujeito do não domínio seria incapaz de ter uma relação de virilidade para consigo. Uma

mulher poderia ser viril, desde que fosse temperante, isto é, fosse soberana de si.

Ditos deste modo, o uso do feminino para os gregos será demarcado, segundo

Foucault (2012a), se o homem não for suficientemente dono de seus prazeres, pouco importa

a escolha de seu objeto ou se ele prefere os amores masculinos ou ambos os sexos. A linha de

demarcação, portanto, entre um homem viril e um homem efeminado não será a oposição

entre hétero e homossexualidade, nem se reduz à oposição entre homossexualidade ativa e

passiva, mas a atitude em relação aos prazeres, se ele é submisso ou não aos próprios apetites

(FOUCAULT, 2012a).

Tal atitude será chamada de prática de prudência. E será exercitando-a que o sujeito

temperante, segundo Foucault (2012a), deve estar atento ao que se assemelhe com a

incontinência, pois o que este busca é uma liberdade ativa que, muitas vezes, só será

alcançada a partir de um combate a ser sustentado, de uma vitória de si sobre si a partir de

uma agonística. A dominação perfeita de si por esta via seria diferente, conforme o autor, do

reconhecimento da lei e da obediência à autoridade pastoral, caracterizada por uma renúncia a

si e uma pureza, cujo modelo seria buscado ao lado da virgindade.

Em O cuidado de si, Foucault (2013) detém-se ao que chama de Cultura de Si.

Fonseca (2011) colocará que a partir desta noção se desenvolve a ideia de fragilidade e mal,

inscritos com relação ao que os prazeres podem suscitar, “[...] não no sentido de delimitar

formas patológicas, mas de atribuir à raiz dos aphrodisia um núcleo de males possíveis”

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(FONSECA, 2011, p. 125). Além disso, passa a se considerar os efeitos positivos da

abstinência. A Cultura de Si começa a aparecer nos séculos I e II de nossa era e, embora

apresente semelhanças com relação à Estética da Existência (século IV a.C.), constituem

modelos distintos, não há uma ruptura, mas uma nova acentuação de temas. Ocorre, segundo

Fonseca (2011), um processo de intensificação dos cuidados, um saber médico sobre o

regime, o meio, as atividades, a alimentação, o tempo. A busca de novas formas de

constituição do sujeito se deve ao fato das atividades sociais, políticas e cívicas que surgiam.

Fonseca (2011) colocará que estas atividades estariam relacionadas às mudanças no

jogo matrimonial, onde este passa a ganhar um lugar de prática significativa na esfera pública

e as relações pessoais entre os cônjuges passam a ter uma valorização a partir do que um

representa para o outro e a vida compartilhada que possuem. Outro motivo seriam as

mudanças no jogo político com o declínio dos pequenos centros que foram as Cidades-estados

das monarquias helenísticas e do Império Romano. Com essa modificação dos exercícios de

poder e a necessidade de organizar uma nova administração mais complexa diante da

diversificação dos novos papéis políticos que surgiam, intensificou-se a valorização das

relações de si para consigo, embora continuasse a falar em artes da existência, vistas como

preocupações e ocupações presentes em todos os momentos da vida.

Fortaleceu-se a conversão a si enquanto pertencimento a si mesmo sem estar sujeito a

algo que diminua o poder que se tem consigo próprio. Embora a aplicação a si suscite ideia de

solidão, essa se constitui como uma atividade de caráter social, não inclui apenas aqueles que

praticavam, mas aqueles que se encontravam implicados nessa prática: outros humanos,

grupos e instituições, parentes e amigos enquanto confidentes, profissionais de direção da

alma e do corpo, instituições de ensino de aplicação a si (educadores da paidéia). A sociedade

deveria apoiar e segurar a necessidade de trabalho que cada um deveria ter para consigo

(FONSECA, 2011).

1.2. - Fala Dioniso: operação pharmákon, o campo das drogas em questão

Para os gregos, nenhuma substância era má ou boa em si, pois o perigo não estaria na

droga, mas na maneira de usá-la. Foi assim que se cunhou o termo pharmákon, para algo que,

ao mesmo tempo, seria remédio e veneno (DERRIDA, 1991; ESCOHOTADO, 1998). Derrida

(1991) definirá um pharmákon como uma substância, ao passo que se excede como não-

identidade, não-essência, não-substância, e possui uma inesgotável adversidade de seu fundo,

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bem como também uma ausência de fundo. O pharmákon faz sair dos rumos, das leis gerais,

naturais ou habituais; fez Sócrates sair do seu lugar habitual e de seus caminhos costumeiros.

O pharmákon é o descaminho.

Tal autor acrescenta que mesmo quando são drogas utilizadas para fins exclusivamente

terapêuticos, manejadas de modo eficaz e com boas intenções, não podem jamais ser

simplesmente benéficas. Não existe remédio inofensivo, já que a essência ou a virtude

benéfica de um pharmákon não o impede de ser doloroso. Protágoras citado por Derrida

(1991) diz que um pharmákon é sempre colhido na mistura (summeíkton), podendo ser ao

mesmo tempo bom (agathá) e penoso (aniará). Essa dolorosa fruição pode tanto estar ligada à

doença como ao apaziguamento, participando ao mesmo tempo do bem e do mal, do

agradável e do desagradável. É antes, no seu elemento, que se desenham essas oposições.

Ocupando esta ambivalência e uma certa inconsistência:

“O pharmákon é o movimento, o lugar e o jogo (a produção de) a diferença.

Ele é a différance da diferença. Ele se mantém em reserva, na sua sombra e vigília indecisas [...] Nós o veremos prometer-se ao infinito e se escapar

sempre por portas secretas, brilhantes como espelho e abertas sobre um

labirinto” (DERRIDA, 1991, pp. 74-75).

O filósofo Górgias, também citado por Derrida (1991), colocará que é preciso,

portanto, atentar para a disposição das drogas (tòn pharmákon táxin) relacionadas com a

natureza do corpo (tèn tôn somáton phúsin), pois algumas evacuam do corpo certos humores,

cada uma o seu, umas estacam a doenças, outras a vida. Foi neste sentido que a teriaca,

remédio grego feito de ópio, foi usada para prevenir doenças (como são as vitaminas de hoje

em dia). Teríamos como exemplo o imperador romano Marco Aurélio, que tomou teriaca

diariamente ao longo de décadas (ARAÚJO, 2012).

Sendo assim, no limite, um phármakon pode ser benéfico enquanto cura, e por isso,

cercado de cuidados, e ao mesmo tempo encarnar as potências do mal, tendo que ser seu uso

também cercado de precauções. Angustiante e apaziguador, sagrado e maldito; habitando essa

fronteira e essa crise, é que seria capaz de restaurar a sophrosune, apresentando e abrigando a

morte, mas também sendo perfume, uma certa festa e um certo jogo (DERRIDA, 1991).

Nesta mesma esteira, Escohotado (1998) dirá que a toxicidade de um phármakon seria

definida tanto pela pouca familiaridade com este quanto pela proporção entre o que chamou

de dose ativa e dose letal, pois como “dirá mucho más tarde Paracelso, sola dosis facit

venenum.” (ESCOHOTADO, 1998, p. 97). Este autor também cita a Odisséia, de Homero

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(2007) para problematizar a noção de phármakon que, neste livro, ora se refere às poções

mágicas feitas por Circe, bem como o seu antídoto, ou ao veneno no qual Odisseu/Ulisses

embebeda suas flechas ou ainda ao remédio que Helena deita no vinho servido, quando da

visita de Telêmaco (filho de Ulisses que chorava a incerteza sobre o destino do pai, após vinte

anos de sua partida) ao palácio do rei Menelau, em Esparta.

Enquanto as poções de Circe faziam os homens esquecerem até da pátria, a substância

(phármakon) que Helena mistura ao vinho11, e que lhe foi dada pela rainha egípcia Polidamna,

apazigua a dor e a cólera e faz com que os convivas se alegrem. Observa-se, portanto,

acrescenta Escohotado (1998), que o conceito de phármakon provém da insuficiência

detectada na ideia de uma “planta todabuena (panakéia) y la planta todamala (strychnos)”

(idem, p. 96), pois participariam de ambos os estatutos, sendo tanto as poções benéficas de

Helena quanto as misturas malignas de Circe.

As práticas em relação aos usos destas substâncias são variadas e, alguns cuidados

são necessários nos modos de gestão e ingestão das mesmas, como coloca Teofrasto apud

Escohotado (1998), ao falar da administração da datura metel (planta herbácea de efeito

alucinógeno), recomendando apenas uma dose para que o paciente não caia em delírio,

alucinações ou loucura, bem como até à morte. Carneiro (2010), pensando este campo tenso

da bebida entre a abstinência, o excesso, e um caminho pelo meio, que ele chamará de

temperança. Dirá que como remédio e veneno, as substâncias psicoativas podem “não apenas

produzir os extremos de delícia, do conhecimento do sublime e do êxtase, mas também a mais

violenta, comatosa e letal intoxicação, causadora de desvarios e atos repreensíveis dos quais o

próprio sujeito depois se arrepende” (CARNEIRO, 2010, p. 17).

Acrescenta Carneiro (2010) que o corpo ébrio, por exemplo, é o que ele faz ou deixa

de fazer, sua conduta mais ou menos razoável, sua disposição de ceder mais ou menos

controladamente aos seus impulsos e às vontades e seu modo de ritualizar esse

desprendimento. A potência destes produtos só pode ser compreendida a partir de sentidos

atribuídos aos seus efeitos psicoativos. Além disso, os modos de gestão e ingestão das

substâncias estariam intrinsecamente atravessados pela história mais cotidiana das técnicas do

corpo, gestos e posturas, de como os corpos podem transformar suas consciências por meio de

ingestões e de como estados vão adquirir significados culturais partilhados e modos de gestão

coletiva de sua condição alterada.

11 Há hipóteses, segundo Carneiro (2010), de que a substância seria ópio, resina de cannabis ou de outras plantas.

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Inicialmente, Carneiro (2005) nos irá atentar para a polissemia do conceito droga,

trazendo para o seu campo as bebidas alcóolicas, as especiarias, tabaco, açúcar, chá, café,

chocolate, mate, guaraná, ópio, cânhamo, e etc. Segue acrescentando que as psicoativas

seriam aquelas capazes de produzir analgesia ou anestesia, eutanásicos, instrumentos para

sonhar, despertadores da vigília ou adormecedores, calmantes, estimuladores ou inibidores do

apetite, atiçadores ou anuladores da sexualidade e da excitação, além dos inebriantes.

Araújo (2012) relata que as festas dionisíacas seriam exemplos de como os gregos

lidavam com o perigo, o descontrole, o excesso e a temperança. Dioniso era um deus

forasteiro, não integrante original do Olimpo, e como acrescenta Carneiro (2012), tendo sua

encarnação mais conspícua no vinho, era um deus bifronte, ambíguo e contraditório que

celebra a vida e a morte. Nas festas que bebiam em sua homenagem, sob a forma da

embriaguez, Dioniso poderia “baixar” nos convivas, porém a face entusiástica e arrebatadora

do transe, da dança, da música e da profecia revelariam também o rosto da demência, do

irrefreável e da crueldade. Dioniso pode ensinar a arte e o culto de beber o vinho, numa

maneira amenizada, diluído com água numa “cratera” (recipiente usado para misturar o vinho

com a água), e conquistar Atenas e toda a Ática, como narra Homero (2007). O vinho, para os

gregos, era um presente que teria de ser usado com sabedoria e arte apropriadas (CARNEIRO,

2010).

É deste modo que Plutarco, citado por Detienne (1988), relata que os convivas à mesa

pedem aos deuses que o uso do pharmákon não tenha perigo e seja salutar. O vinho misturado

com água proporia uma dieta temperada, em oposição ao puro, visto como destemperado e até

perigoso. Desta maneira, os gregos estipulavam uma gradação do consumo equilibrado e do

excesso alcóolico (CARNEIRO, 2010). Geriam-se coletivamente os estados de êxtase, transe

e furor como práticas de cuidado, inclusive em comemorações dionisíacas, garantindo que

todos pudessem transformar suas consciências, mas também agir em sociabilidade festiva. Tal

prática foi apresentada na comédia de Êubolo apud Detienne (1988, p.88):

“Para as pessoas sensatas, preparo apenas três crateras: uma de saúde,

(hugiêia, que elas tomam antes); a segunda, de amor e prazer; a terceira, de

sono. Depois de terem esvaziado essa terceira, aqueles que chamam sábios vão deitar-se. A quarta, eu a ignoro; pertence à insolência. A quinta é repleta

de gritos; a sexta transborda de maldades e zombarias; a sétima tem os olhos

inchados; a oitava é o meirinho; a nona, a bile; a décima é a loucura (mania).”

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A cratera demonstra que a lição de Dioniso foi aprendida, pois a bebida foi dosada,

diluída e regulada. Ninguém sentia vontade de ser abstêmio, mas o mau uso é a fonte dos

piores males. O uso descontrolado pode levar à desmedida, ao desequilíbrio e ao colapso. No

entanto, é também com vinho que Ulisses (HOMERO, 2007) agradece aos deuses,

especialmente Atena; é um estratagema militar que o salva de um gigantesco ciclope, e é o

que bebe todos os dias como alimento e fonte de alegria (CARNEIRO, 2010).

Os gregos também exercitavam estas práticas de cuidado moderado na gestão e

ingestão de bebidas alcóolicas através dos banquetes (symposion), como coloca Carneiro

(2010). Os simpósios, cujo significado, era “beber juntos”, começou a ocorrer desde o século

VII a.c., afirmando-se como reuniões para beber, comer e conversar. E em meio a

conversações, cantos em coro, música e dança, acrobacias e jogos diversos, cortejos alegres e

ruidosos, sendo, acima de tudo, espaços importantes para formar cidadãos em suas funções

cívicas, debates políticos e filosóficos, e para se ter ensinos de moderação (sophrosune) em

oposição ao descontrole do excesso (hybris) (CARNEIRO, 2010).

Carneiro (2010) acrescenta que as práticas na Grécia Antiga com relação ao consumo

intensivo de álcool variavam conforme o povo e a região. Apenas os espartanos foram

abstêmios. Entre áticos e demais povos, as reuniões para se beber (simpósios) deviam ser

reguladas por um simposiarca que controlava o nível admissível e dosava a bebida, propondo

água, mel ou resinas como misturas, quando conviesse. Os gregos tinham rituais de

sociabilidade festiva diferente dos romanos, que tratavam o vinho como uma simples bebida.

Nos banquetes gregos, a comida era menos importante que a bebida. A conversação

acompanhada de uma série de espetáculos, jogos e concursos festivos, bem como a presença

de dançarinas e músicos, coroas de flores e perfumes, tinha também como desejo atiçar a

força libertadora de Dioniso.

As ações simposísticas vistas como atitudes coletivas tinham também por função

denunciar os perigos dos maus usos dos inebriantes para os que deles usassem

imprudentemente, que bebessem além do que convém, exaltando os que soubessem fazer da

prudência nos modos de beber um estilo de vida. Honrar Dioniso, grande médico e curador,

envolvia toda uma arte de beber, arte política, função política, e um modo de educação

(paidéia). O vinho era proibido aos menores de 18 anos, moderado até os 40 e, depois dessa

idade, serviria para suavizar a austeridade da velhice, amolecer a dureza, rejuvenescer. O

cuidado também vinha combinar com a estação do ano: durante o inverno, tintos bastante

puros e em menor quantidade; no verão, bebidas suaves, brancas e aquosas; no outono,

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bebidas mais escuras, suaves e não aguadas. Esta era a dieta hipocrática (CARNEIRO, 2010).

Embora houvesse povos como os belicosos de pastores nômades e os das estepes

centro-asiáticas (que se espalharam pelo oeste e sul da Eurásia há 2 mil anos a.c.), que

consideravam o consumo intensivo de álcool como embriaguez de honra ou heróica, como

ethos guerreiro, referindo-se aos deuses gregos Hércules e Ares, o germânico Thor, o persa

Varuna e o hindu Indra como bêbados costumazes, o excesso era visto como um caráter

bárbaro, não menos a abstinência também era malvista na Grécia Antiga, assim como em

Roma. Havia pouca enofobia (CARNEIRO, 2010).

No mundo helênico e no mundo romano, a bebida era medidora da capacidade de

conduta do que pode aquele corpo, a embriaguez era vista como prática social legítima e os

excessos abusivos não poderiam comprometer usos positivos e benéficos: abusus non totllit

usum (o abuso não impede o uso). A virtude seria poder medir essa fronteira do uso e do

abuso, fazer da embriaguez um instrumento de aferição da prudência e da temperança, não

“beber como um trácio” como era dito para o beber excessivo. Foi deste modo, por exemplo,

que o imperador Ciro justificou sua precedência ao trono persa em relação ao seu irmão,

colocando-se como mais apto a governar por saber suportar melhor o vinho puro

(CARNEIRO, 2010).

A água no vinho, segundo Carneiro (2010), enquanto tempero, era prática de cuidado

para os maus gestores dos poderes de Dioniso. Muitas vezes, se utilizava a água do mar, pois

segundo Ateneu (1998, p. 32) “vinhos misturados com água do mar não produzem ressaca,

soltam o intestino, estimulam o estômago, provocam flatulências e ajudam a assimilação da

comida”. Plínio em Roma, citado por Ramazzini (1999), acrescentará que “a admirável

habilidade dos vícios descobriria até o modo de embriagar-se apenas com água”

(RAMAZZINI, 1999, p.128). A abstinência foi uma posição pouco prevalecente em relação à

moderação e à temperança na Antiguidade Clássica, pois era vista como “nada em demasia”

(CARNEIRO, 2010).

A virtude da temperança estava também entre as quatro virtudes cardeais, juntamente

com a sabedoria, a coragem e a justiça. A sophrosune – temperança, moderação – já citada no

ponto anterior, serve para limitar os ímpetos; a andria – coragem, força - serve para

perseverar e também resistir; phronesis – prudência, sabedoria – indica caminho e atitude a

seguir e a diakaiosyne – uma espécie de justiça que busque garantir a boa relação das virtudes

entre si (CARNEIRO, 2010).

O temperante era aquele, portanto, que saberia relativizar os prazeres da bebida e

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Sócrates foi um exemplo de um bom bebedor como cita Carneiro (2010), pois em O Banquete

(SÓCRATES, 2009) se mantém acordado até o fim, diferente de Alcebíades, seu ex-amante

que, desregrado, se excede, perde a compostura, a lucidez e acaba por adormecer. Neste

banquete, segundo Carneiro (2010), os filósofos já vinham de uma noitada anterior de

bebedeiras e desejavam conversações mais do que diversão. Para tanto, o simposiarca que

regularia o banquete deveria se abster de beber e, sendo um sóbrio condutor, tinha por função

evitar a imprudência e a desarmonia, para que cada um soubesse beber, falar e cantar de modo

adequado, e que não houvesse brigas nem disputas, e os bebedores se retirassem das

bebedeiras mais amigos que antes.

O vinho se afirma, portanto, como um meio de se aferir a virtude, e cada um podia

evitar a embriaguez, sem que necessariamente parasse de beber. Além disso, seria um

instrumento útil de medicação, de educação pública, e de cuidado de si, e o banquete como

sinônimo do beber e filosofar exerceria essa função de cuidado da gestão do beber com vistas

a evitar a embriaguez (CARNEIRO, 2010). E como acrescenta Aristóteles (1987), a

embriaguez deve ser governada pela virtude da moderação. E uma virtude seria um ponto

intermediário entre dois vícios – um por excesso e outro por carência. Em relação ao medo, o

excesso é a covardia, a carência é do temerário. Só a coragem seria o ponto mediano. No caso

da temperança, a virtude corresponde ao afastamento tanto do excesso dos intemperantes

como da carência dos insensíveis:

“o que se entrega a todos os prazeres e não se abstém de nenhum torna-se

intemperante, enquanto o que evita todos os prazeres, como fazem os

rústicos, se torna de certo modo insensível. A temperança e a coragem são,

pois, destruídas pelo excesso e pela falta” (ARISTÓTELES, 1987, p. 28).

Aristóteles (1987) aproveita para diferenciar o incontinente do intemperante. O

primeiro, segundo ele, não teria a deliberação e a convicção de que é totalmente dominado

pela paixão a ponto de crer que deva buscar tais prazeres sem reservas. O segundo é

incorrigível. O incontinente seria como os que se embriagam depressa e com pouco vinho,

isto é, com menos do que a maioria das pessoas. Para o intemperante, o hábito é uma longa

prática que acaba por fazer-se natureza. O autor também considera que até um vício tem a

condição de ser voluntário, assim como a virtude também é uma prática voluntária e não

condena o prazer em si, admite que todos de um jeito ou outro deleitam-se com seus acepipes

saborosos.

Um texto de autoria incerta, mas atribuída a Aristóteles, segundo Carneiro (2010), vai

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dizer que a temperança também deve levar em consideração não só o excesso dos prazeres,

mas os da tristeza, pois o vinho mesmo podendo trazer alegria, pode levar ao desânimo se

quem bebe é melancólico e desesperançado. Portanto, o simposiarca também deveria tomar

cuidado diante das situações escorregadias criadas pela embriaguez, zelando para que as

brincadeiras e os chistes não fossem ofensivos. Vale salientar que a “justa medida” ou essa

farmaconomia não tinha um aspecto de diagnóstico ou de interpretação fisiológica e

psicológica, e mesmo judeus e alguns católicos e protestantes consideravam o uso do vinho

adequado. O que era condenado era o excesso, a intemperança. Interessante pensar que o

próprio Cristo foi acusado por seus inimigos de ser um beberrão, o filho do Homem que come

e bebe, um glutão (CARNEIRO, 2010).

São Tomás de Aquino, segundo Carneiro (2010), recomendava que não se vivesse nos

festins a ponto de se tornar insensível, pois para ele a insensibilidade à uma substância

também era uma intemperança. A moderação era necessária, mas também o conhecimento do

excesso, bem como a valorização das experiências de intensidade seriam indispensáveis para

que o corpo pudesse se encontrar no limite do que pode, pois como disse o poeta William

Blake citado por Carneiro (2010, p. 136): “nunca se sabe o que é suficiente até que se saiba o

que é mais que suficiente”.

Utilizando-se de uma esteira de filósofos, dentre eles Platão e Aristóteles, é que

Carneiro (2010) irá concluir seu brilhante livro Bebida, abstinência e temperança na História

Antiga e Moderna nos alertando que, nas práticas do beber intensivo, é preciso cuidado para

não fazer do calor do vinho um perigo severo para os humores. Afirma o uso de drogas como

técnica de vida, que determina estilos de vida e aponta não existir uma “solução final” para os

problemas dos usos de drogas, mas uma permanente gestão dos modos de beber, na qual tanto

a fornalha da intemperança quanto os gelos da proibição/abstinência são excessos que

devemos evitar.

Como recomendação, Carneiro (2010) sugere que levemos sempre em consideração a

sabedoria do corpo em relação ao domínio da desmedida, ao desdém por algum limiar e ao

domínio da condução da vida. E que o inebriamento ou a embriaguez, assim como outros

efeitos possíveis de drogas como a sedação, a excitação, a euforia, o êxtase, a enteogenia, a

psicodelia e outros, refletem, dentre todos os encontros e as experimentações a se ter no

mundo, apenas uma intensificação possível.

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1.3. O plano-droga e a experimentação

Pensando esse campo da problematização das drogas e as relações entre intensificação,

experimentação e desejo é que Deleuze & Guattari (2012a) forjarão conceitos como doses ou

arte da prudência com relação, por exemplo, às experiências com drogas. Em um pequeno

texto, Deleuze (1992) diz que não se sabe o que fazer com as drogas, e mesmo com os

drogados, mas também não saberíamos falar melhor delas, pois ora invocaríamos prazeres

muito difíceis de escrever, ora causalidades muito gerais, extrínsecas. Este autor nos propõe

pensarmos em um conjunto-droga. “[...] as drogas dizem respeito às velocidades, às modificações

das velocidades, aos limiares de percepção, às formas e aos movimentos, às micropercepções, à

percepção tornando-se molecular” (DELEUZE, 1992, p. 64).

Em um plano-droga como prefere chamar Deleuze (1992), os drogados fabricam suas

próprias linhas de fuga ativas, mas essas linhas se enrolam, se põem a girar nos buracos

negros. E seria em cada buraco negro que o drogado pode correr o risco de estabelecer uma

relação de dependência abjeta, dependência em relação ao produto. Assim, caberia distinguir

as experimentações vitais dos empreendimentos mortíferos.

Uma experimentação vital, segue Deleuze (1992), é aquela que instaura cada vez mais

conexões, se apodera, se agarra ao experimentador e abre-o a mais conexões e podendo até

comportar elementos de autodestruição sem necessariamente ser uma linha suicidaria. Uma

linha ou um empreendimento suicidário só se traçaria quando o fluxo destruidor se rebate

sobre si mesmo: “minha” dose, “minha” vez, “meu” copo. Sendo a droga pela droga, ela faria

um suicídio tolo, ritmando-se por essa linha morna única e enfadonha.

Deleuze (1992) finaliza colocando que se há algum ponto no qual se deve intervir com

alguma terapêutica seria neste onde se faz a transformação de uma experimentação vital

(mesmo sendo autodestrutiva) em um empreendimento mortífero de dependência

generalizada, unilateral. E em O Abecedário (1994), quando questionado se não se sentiria

responsável pelas pessoas que tomavam drogas responde curto e clínico: “Sentimo-nos

responsáveis por tudo, se algo dá errado” (D de Desejo), e acrescenta:

“Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca, acho, é minha única honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a

um estudante: é isso, drogue-se, você tem razão. Sempre fiz o que pude para

que ele saísse dessa, porque sou muito sensível à coisa minúscula que de

repente faz com que tudo vire trapo. Que ele beba, muito bem... Ao mesmo

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tempo, nunca pude criticar as pessoas, não gosto de criticá-las. Acho que se

deve ficar atento para o ponto em que a coisa não funciona mais”

(DELEUZE, 1994).

Fica claro que este filósofo se afasta totalmente de uma postura paternalista ou

policialesca com relação à questão das drogas. O que ele afirma é, antes de tudo, uma ética do

cuidado de si que impeça a produção de trapos:

“Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem pais, não

sou eu quem deve impedi-los ou [...] mas fazer tudo para que não virem

trapos. No momento em que há risco, eu não suporto. Suporto bem alguém que se droga, mas alguém que se droga de tal modo que, não sei, de modo

selvagem, de modo que digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, não suporto.

Sobretudo o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável. Um velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um

jovem que se ferra por besteira, por imprudência, porque bebeu demais [...]

Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo. É um desfiladeiro estreito,

não posso dizer que há princípios, a gente sai fora como pode, a cada vez. É

verdade que o papel das pessoas, nesse momento, é de tentar salvar os

garotos, o quanto se pode. E salvá-los não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo. É só o que quero” (DELEUZE,

1994).

Por este mesmo caminho, embora se referindo a figura do esquizofrênico produzida

pelo poder psiquiátrico e no processo de institucionalização, Deleuze (1994) louvava um certo

aspecto de valor da “viagem”, o que era também posicionamento do movimento

Antipsiquiátrico, pois seria um modo de evitar e conjurar a terrível produção de trapos de

hospital, de uma criatura de hospital. Podemos aqui também pensar que a fabricação de

drogados é também política. Como afirma Dias (2013), a afinação de Deleuze com os anti-

psiquiatras se dá pela resistência política e questionamento das práticas que marginalizavam

esses estilos de vida. Era possível captar a potência da droga sem se produzir como um

farrapo drogado? Sendo toda experimentação um empreendimento, como ajudar alguém que

tentou alguma coisa, mas falhou, desmoronou? (DELEUZE & GUATTARI, 2010b).

Será no livro Mil Platôs, vol. 3, no capítulo 28 de novembro de 1947 – Como criar

para si um corpo sem órgãos que Deleuze & Guattari (2012a) desenvolverão, portanto, a

relação entre experimentação e prudência através do conceito de Corpo Sem Órgãos (CsO)

que, como coloca Dias (2013), é proveniente de uma intervenção radiofônica de Antonin

Artaud, em 1947, e nos auxilia a pensar práticas com substâncias psicoativas que não estejam

remetidas a uma racionalidade médica e seu corolário de tratar a questão do corpo por meio

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do binômio saúde-doença. Há toda uma crítica a certa concepção do vital dentro de um

modelo político que organiza unitária e hierarquicamente o corpo, distribuindo funções ao

mesmo (DIAS, 2013).

O conceito de Corpo Sem Órgãos se relaciona a uma série de exercícios sobre si

mesmo e pode ser entendido como um conjunto de práticas estéticas, políticas e existenciais,

permeado por intensidades imanentes à própria experimentação, como problematiza Dias

(2013). A experiência com drogas faria “[...] parte do rol de práticas que ativam as forças

intensivas e fazem que elas circulem no corpo” (DIAS, 2013, p. 125). Tal opção conceitual

permite a abertura de sentido, abordando um corpo intensivo, habitado por diferentes graus de

potência, afirmando-se como espaço de criação de uma potência criativa não referida a uma

individualidade, mas às forças coletivas da própria experimentação (DIAS, 2013).

O caráter experimental do CsO, acrescenta Deleuze & Guattari (2012), por ser um

exercício, já inicia no momento que você empreende uma experimentação, não pressupondo

uma espontaneidade do desejo, algo angelical e com garantias prévias, pois esse exercício não

é em si tranquilizador, podem ocorrer falhas, desmoronamentos, pode ser aterrorizante e até

conduzir à morte. É assim que estes autores incluem as drogas na possibilidade de criação do

Cso por meio de experimentações. Sendo um exercício de forças criativas, o Cso é antes a

afirmação de um campo de práticas: “[...] não é uma noção, um conceito, mas antes de tudo

uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo Sem Órgãos não se chega, não se pode

chegar a ele, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (DELEUZE & GUATTARI, 2012a,

p. 12).

Será assim que nesse plano de consistência do CsO que algumas regras valerão

enquanto papel de seleção. Deleuze & Guattari (2012a) estarão atentos para as linhas que se

inscrevem em um CsO: quais seriam suas próprias linhas? Qual mapa você está fazendo e

remanejando? Qual linha você traça, e a que preço, para você e para os outros? Seu CsO se

confunde com a linha? Você se desterritorializa? Qual linha você interrompe, prolonga ou

retoma?

“[...] o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós

possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos:

corpos vítreos vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas. A prova do

desejo: não denunciar os falsos desejos, mas, no desejo, distinguir o que remete à proliferação de estratos, ou bem à desestratificação demasiada

violenta, e o que remete à construção do plano de consistência (vigiar

inclusive em nós mesmos o fascista, e também o suicida e o demente.). O plano de consistência não é simplesmente o que é constituído por todos os

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CsO. Há os que ele rejeita, é ele que faz a escolha, com a máquina abstrata

que o traça. E inclusive num CsO (o corpo masoquista, o corpo drogado,

etc.) distinguir aquilo que é componível ou não sobre o plano (…) Aquilo que o drogado obtém, o que o masoquista obtém poderia também ser obtido

de outra maneira nas condições do plano: no extremo, drogar-se sem droga,

embriagar-se com água pura, como na experimentação de Henry Miller? Ou

bem ainda: trata-se de uma passagem real de substâncias, de uma

continuidade intensivo de todos os CsO?” (DELEUZE & GUATTARI,

2012a, pp. 32-33).

Dentro deste campo de problematização das práticas, a possibilidade de

experimentação, portanto, permite abordar a questão das drogas a partir de forças de criação,

que fazem passar pelo corpo intensidades afirmadoras de vida, animando o campo com

diversas possibilidades para as práticas com as drogas, nos fazendo pensar diferente de uma

relação preexistente na qual o uso de substâncias psicoativas só produziria corpos lúgubres,

vazios e dependentes que estariam atados a linhas de abolição e destruição de si e dos outros,

linhas de morte (DIAS, 2013).

Estamos aqui também trabalhando com a noção de encontro em Spinoza (2009). O

encontro com as drogas ou, para ser mais spinozista, com as substâncias psicoativas, não

necessariamente produziria paixões tristes, que nos oprimiriam nos deprimindo e nos

tornando passivos, coibindo e ajudando na diminuição ou até impedindo nossa potência de

agir. Há também a possibilidade de bons encontros, através de potências ativas, afetos alegres

que coibiriam as paixões tristes, aumentando e ajudando na nossa capacidade de ação no

mundo.

Uma virtude, acrescenta Spinoza (2009), não é um bem em si, apenas significa a força

do homem em ser e agir de forma autônoma, o que o impulsiona, vontade de expansão. Do

mesmo modo, o vício representaria a fraqueza para existir, ser e agir, e não se constituiria em

um mal em si mesmo. Nosso corpo, em sua capacidade de ser afetado pelos encontros que

temos, permanece constantemente neste limite entre a potência de agir e a de padecer. Nosso

desafio seria alcançar o máximo de paixões alegres que nos levassem a sentimentos alegres

ativos, evitando a impotência e a destruição de nós mesmos (DELEUZE, 2002).

Sendo assim, não haveria uma prescrição de como criar para si um corpo sem órgãos,

porém as recomendações (quando se desorganiza o corpo para que as intensidades possam

passar) comportam doses de prudência, cuidado, medida, pois como afirma Fuganti (2008): a

prudência é instrumento da ousadia. A prudência atada à experimentação, mais do que uma

norma, se expressa por uma tecnologia elegante das dosagens, uma prática obstinada em

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relação aos perigos:

“Mas por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados,

catatonizados, aspirados, posto que o CsO é também pleno de alegria, de

êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que

aconteceu? Você agiu com a prudência necessária? Não digo sabedoria, mas

prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta batalha. Será tão triste e

perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a

boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não caminhar com a cabeça, cantar

com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade,

Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna,

Love, Experimentação (DELEUZE & GUATTARI, 2012a, p. 13).

A arte das doses, acrescenta Deleuze & Guattari (2012a), diante do perigo da

overdose, não deve ser feita com pancadas de martelo, mas com uma lima muito fina,

inventando autodestruições que não se confudem com gestos demasiado violentos, com a

pulsão de morte, pois desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a novas

conexões, a eventuais movimentos de desterritorialização, lugar favorável para linhas de fuga

possíveis experimentando a construção de outros planos, um coletivo agenciando e oscilando

delicadamente outros elementos componíveis: “porque não existe meu corpo sem órgãos, mas

'eu' sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma, transpondo limiares”

(Ibidem, p. 28).

Toda essa noção de experimentação proposta por estes autores se distancia do lugar de

relação a um objeto a ser simplesmente consumido. Bondía (2002), por exemplo, proporá uma

outra maneira de pensar a experimentação ao fazer uma análise etimológica da palavra

experiência a aproxima do latim experiri, experimentar, provar. Tal radical periri que também

aparece em periliculum, perigo, se relaciona com a ideia de travessia. O sujeito da

experiência, acrescenta Bondía (2002), tem algo de fascinante que se expõe atravessando um

espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova, mas também buscando nele sua

oportunidade, sua ocasião. A experimentação conteria inseparavelmente a dimensão da

travessia e do perigo, bem como um limite imanente.

Articular a experimentação com a questão do cuidado é, portanto, alinhavá-la com uma

atitude de prudência. Prudência como arte de linhas de experimentação. Orlandi (1999) nos

alertará que a experimentação não é uma norma geral que vale universalmente, mas uma

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prática analisada passo a passo, pois nesta arte subversiva de experimentação das fluências do

corpo sem órgãos, o combate entre as forças que visam controlar o corpo requer, no entanto, a

sobrevivência do organismo, pois dele não se pode prescindir completamente, até porque a

morte acabaria com os corpos sem órgãos que se quer experimentar.

“É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é

também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema,

quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso

conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante.

Imitem os estratos. Não se atinge o CsO e seu plano de consistência

desestratificando grosseiramente” (DELEUZE & GUATTARI, 2012a, p.

26).

Tais formulações também nos ajudam a pensar práticas e estratégias de cuidado que

abandonem a díade drogas-fracasso. A questão seria não tratar as drogas como coisas em si

nem reduzir-se à questão do “drogar-se ou não” - problema binário - mas pensar que é

possível constituir linhas de fuga no momento em que serão necessários outros meios que não

são mais os propiciados pelas drogas, pois neste plano de consistência da experimentação,

como coloca Dias (2013), pode ser necessário prescindir da droga, quando o território

existencial que a constitui traça linhas de anulação da experiência.

Em alguns momentos, acrescenta Deleuze & Guattari (2012b), talvez seja necessário

retraçar um novo caminho de vida quando o desvio redunda em repetições conformistas,

romantismo heróico, narcísico e autoritário da droga, onde só ela asseguraria uma imanência.

É preciso, pelo contrário, que a imanência das drogas também nos permita ficar sem ela.

Podemos lançar mão da interrupção do uso de uma substância quando percebemos

que os fluxos estão petrificados e há perda da efetuação das potências e da capacidade de

conectar-se. Ou melhor, quando há um estreitamento do possível e da ação inventiva como

coloca Yonezawa (2007). Não necessariamente as paradas precisam cair em exigências

caducas e desgastantes, mas dar à parada um lugar de potência, tirando-a do lugar de dor

inútil para um lugar de criação, um uso outro que produza dobras, que seja parceiro dos

devires e da alegria da vida, quando o corpo e seus moveres estiverem distantes daquilo que

podem (YONEZAWA, 2007). Os drogados tangenciariam esses perpétuos perigos de esvaziar

o CsO, em vez de preenchê-lo.

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“Para cada tipo de CsO devemos perguntar: 1) Que tipo é este,

como ele é fabricado, por que procedimentos e meios que prenunciam já o

que vai acontecer; 2) e quais são estes modos, o que acontece, com que variantes, com que surpresas, com que coisas inesperadas em

relação à expectativa?” (DELEUZE & GUATTARI, 2012a, p. 15).

A partir destas recomendações, Deleuze & Guattari (2012a) nos dizem que é preciso

manejar o que passa, o que povoa e o que bloqueia a experimentação. O corpo como vaso-

comunicante atento ao que impede a circulação, ao que pode aguentar sem desabar, sem

desmoronar (Deleuze, 1992). Além disso, todos esses autores, que pensam mais a constituição

de um corpo intensivo do que um corpo extensivo, não nos guiam para uma normatização do

corpo, mas para uma normatividade da experiência.

Canguilhem (1995) discute a possibilidade do vivo constituir e instituir para si suas

próprias normas. A plasticidade do corpo e a experimentação dos limites são vistas por este

autor como dado positivo para se avaliar os abusos possíveis da saúde. Eirado & Passos

(2004) também colocarão algo semelhante ao diferenciar heteronomia e autonomia.

Autonomia, para estes autores, é dar-se a si mesmo suas próprias regras, algo, portanto,

oposto a heteronomia, que indicaria ser regrado, legislado por outro. “Para tanto, é preciso

que se pense a autonomia não apenas como o ato de se determinar a si mesmo, no sentido

fraco, mas como ato de criar-se a si mesmo, no sentido forte” (EIRADO & PASSOS, 2004, p.

79).

Tal afirmação vai se alinhando também com a proposta de saúde do filósofo Illich

(1975) que pensa esta como algo que possibilite a capacidade de atuar na ordem social,

modificando-a, criando-a, em vez de ser a capacidade de suportar a ordem imposta pela lógica

heteronômica contemporânea.

São elementos, portanto, que permitem pensar o cuidado pela via da experimentação,

criticando o ideal transcendente da boa saúde “eternamente abençoada” que deve ser

restituída a qualquer preço, como coloca Dias (2013). A saúde pode ser vista como a

qualidade do vivo de dela dispor e ter capacidade de produzir normatividades de acordo com

o meio. Ou melhor, “saúde é quando a vida arrisca no limite do que ela pode12” (PELBART,

2014). Vontade de saúde como vontade de potência e cuidado de si.

As práticas em Redução de Danos vão se aproximando assim da noção de cuidado de

12 Anotações do autor no curso Modos de existência dado pelo prof. Peter Pál Pelbart. Programa de Estudos

Pós-Graduados em Psicologia Clínica, PUC-SP, 2014.

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si, que diferente do culto californiano de si13 (elogio ao individualismo subjetivo, culto liberal

de si mesmo, tão presente na atualidade), buscam uma experiência transformadora, na qual o

sujeito conduz suas ações num campo aberto de possibilidades, onde pode inaugurar formas

inéditas, inventar maneiras de lidar com seus desejos e prazeres sem se tornar escravo dos

mesmos, constituindo para si diferentes modos de ser (Rodrigues & Tedesco, 2009). São

princípios éticos que não tecem julgamentos de valor sobre a vida das pessoas nas quais

atuam...

13 Foucault (2006).

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LINHA 2 - REDUÇÃO DE DANOS: PRODUÇÃO DO COMUM E INVENÇÕES DE

UM CUIDADO DE SI

"Lá onde há poder, há resistência”. (Michel Foucault)

"Definimos a 'máquina de guerra' como um agenciamento linear

construído sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a máquina de guerra

não tem, de forma alguma, a guerra como objeto; tem como objeto um

espaço muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga.

O nomadismo é precisamente essa combinação máquina de guerra-

espaço liso". (Gilles Deleuze)

2.1. – Linhas de resistência forçam o espaço: a potência da Redução de Danos

Seguiremos aqui o fio da discussão da Redução de Danos como dispositivo concreto

de intervenção e depois como paradigma de um conjunto de práticas de atenção e cuidado

para o uso e abuso de álcool e outras drogas (DIAS, 2013; PASSOS & SOUZA, 2011;

SOUZA, 2007; 2013). Enquanto dispositivo, nos utilizaremos de Foucault (2012b) que o

pensava como uma rede que se pode estabelecer entre os elementos ditos e não ditos. Em um

dispositivo não constam apenas elementos discursivos, mas também instituições e práticas,

todo um social não discursivo (REVEL, 2005). Acrescenta Foucault (2012b) que um

dispositivo seria um tipo de formação que surge em determinado momento histórico, cuja

função seria responder uma urgência.

“Tomemos o exemplo do aprisionamento, o dispositivo que fez com

que, em determinado momento, as medidas de detenção tivessem

aparecido como o instrumento mais eficaz, mais racional, que se podia

aplicar ao fenômeno da criminalidade” (idem, 2012b, p. 365).

A partir desta afirmação, Foucault (2012b) problematiza o que chama de

preenchimento estratégico de um dispositivo, pontuando que o efeito do aprisionamento foi a

constituição de um meio delinquente, onde a prisão funcionou como filtro, concentração,

profissionalização, isolamento desse meio, que passou a ser reutilizado com finalidades

políticas e econômicas diversas. Neste sentido, podemos refletir sobre a “medida” das

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urgências veiculadas com relação à “epidemia crack” e a consequente produção de

dispositivos para dar conta desta demanda. Sendo assim, os diferentes dispositivos seriam

uma tentativa inicial de nomear, de apontar o problema, são práticas atuando como um

aparelho, uma ferramenta, constituindo sujeitos e organizando-os (DREYFUS & RABINOW,

2010).

Tal noção de dispositivo nos ajuda a entender os últimos ocorridos de 25 de julho de

2011, quando um vídeo circula pelas redes sociais, no qual moradores do Bairro das

Laranjeiras – RJ filmam uma criança pedindo socorro da janela da Casa Viva, na Rua Alice. A

Casa Viva é uma instituição voltada para o acolhimento compulsório de crianças usuárias de

drogas em situação de rua. A mídia explode de noticiários e entrevistas, todos comentam da

“epidemia crack”, como contê-la, como evitá-la, como não falar mais dela. Se inspirando nas

UPPs (União de Polícia Pacificadora), a Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de

Janeiro estende a ação para os adultos, permitindo o uso de armas não letais como sprays de

pimenta caso os “viciados” utilizem de violência.

Na cidade de São Paulo, em 3 de janeiro de 2012, também temos o início da Operação

Centro Legal, na região da Nova Luz, com o objetivo de dar continuidade à Ação Integrada

Centro Legal, de 2009. Dividida em três fases, a Operação se deu a partir da força policial que

agia segundo a perspectiva de retirar os traficantes de circulação, encaminhar as pessoas que

fazem uso de drogas na região para tratamento em comunidades terapêuticas14 mesmo contra

a vontade e evitar ao máximo que o espaço da Cracolândia15 voltasse a existir. Aqui vemos,

portanto, a produção da “urgência” em fazer “algo” com as crianças e adultos em situação de

rua que supostamente possam ser usuários de drogas, que passam a ser identificados e

nomeados como perigos em potencial.

14 A proposta de comunidades terapêuticas foi inicialmente empreendida pelo psiquiatra inglês Maxwell Jones.

Dentro desta proposta, Jones (1975) pensava em construir o que ele chamava de uma cultura terapêutica, onde

todos (pacientes e profissionais) tomavam decisões sobre o rumo do espaço coletivamente e havia também a

inversão de papéis e funções dadas a priori. Um médico poderia ir à cozinha lavar louça, bem como um auxiliar

da cozinha poderia facilitar um grupo terapêutico. Atualmente, vemos comunidades terapêuticas internando

pessoas contra sua vontade e operando suas práticas a partir de vieses meramente religiosos e/ou simplesmente

laborterapêuticos, em discrepância total com a construção desta cultura de cuidado.

15 A presença de usuários de crack nas ruas da região da Luz data do início da década de 1990, o que influiu na

construção de uma estigmatização da região como cracolândia, recorrente na mídia impressa. Apesar de tal área

ser encarada pela ótica do abandono, a mesma é alvo de uma série de ações de entidades voltadas não apenas aos

usuários de crack, mas a outros grupos vulneráveis, eventualmente também envolvidos com o uso do crack: população de rua (incluindo crianças de rua), mulheres e travestis em situação de prostituição, catadores de

material reciclável etc. (FRÚGOLI JR. & SPAGGIARI, 2010).

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Desde modo, as práticas acima utilizam seus mecanismos de recolhimento

compulsório e/ou tratamento contra a vontade em comunidades terapêuticas para “aparelhar”

o problema das drogas ao constituir e organizar esse meio do “usuário de drogas”,

considerando que a única possibilidade de tratamento para este é o se isolar deste meio. Além

disso, tal “aparelhagem” estigmatiza e nos “vicia” o olhar, impedindo que nossa ótica esteja

voltada para outras demandas, perspectivas ou experiências que possam surgir ou já estar ali.

Foi assim que na contramão destas ações, o Conselho Federal de Psicologia lança uma

nota repudiando a ação da Cracolândia, nomeando-a como Operação “dor e sofrimento” por

utilizar-se da ostensiva policial, por violar direitos humanos de pessoas já fragilizadas, e por

contrapor-se a uma política que fortaleça a rede intersetorial de atenção integral a esta

população. É por esta via que esta pesquisa se volta às práticas em Redução de Danos por

entender que estas não buscam excluir as questões políticas que envolvem as drogas, os

usuários e seus usos e sim fazem resistência16 a práticas dominantes, principalmente, as que

se utilizam de mecanismos beligerantes (como os acima citados).

Por isso, iremos também nos utilizar da noção de dispositivo em Deleuze (1996), que

vai pensá-lo como uma meada, um conjunto multilinear, não só forjado por linhas de

visibilidade e de enunciação, mas linhas de fissura, de fractura, que se entrecruzam e se

misturam, avançam por crises e abalos. Neste sentido deleuziano, o dispositivo também detém

possibilidades em liberdade e criatividade, em novidade17, nos libertando das continuidades,

criando novas linhas.

Enquanto paradigma RD, estaremos atentos aos efeitos éticos e políticos desta prática,

sua potência de resistência multitudinária enquanto política pública, efetuação e embate de

forças em luta, máquina de guerra em disputa no campo problemático das drogas. Tomaremos

o conceito de público a partir de Negri & Hardt (2005), onde a “coisa pública” se aproxima da

gestão do comum. O público não se reduz às funções estatais; minorias podem se mobilizar e

não se deixar sujeitar pela soberania estatal. São resistências multitudinárias, ativas, que

segundo Deleuze & Guattari (2010a) são aquelas capazes de inventar espaços de liberdade no

16 Resistência aqui será entendida a partir de Nascimento & Tedesco (2009) não como recusa a processos de

normalização, mas como um fazer diferente, como invenção de atos que rompam rotas já estabelecidas.

17 O novo para Deleuze (1996) seria o atual, e o atual não é o que somos, mas aquilo que vamos nos tornando,

aquilo que somos em devir.

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interior das lutas políticas, diante das organizações molares que impedem os elementos

moleculares de seguirem linhas de fuga18.

É por esta via que, diante da construção das políticas, apostamos na inclusão da

própria população enquanto força coletiva de crítica aos modelos instituídos. Sendo peleja

diária, a RD em sua positividade imanente acionaria, como coloca Pelbart (2011), as forças

vivas, a potência psíquica e política da multidão, biopolítica, forças presentes por toda parte

na rede social e que deixam de ser meras reservas à mercê de um capital insaciável para

afirmar sua capacidade de expansão, de produção de laços e de invenção de novos desejos,

novas associações e novas formas de cooperação, considerando que:

“Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e

novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes

gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do

homem comum” (PELBART, 2011, p. 23).

O comum, acrescenta Pelbart (2011), é o espaço produtivo por excelência, pois é nesta

inventividade comum que se forjam novas conexões, que se proliferam as redes através das

multidões, que segundo Negri & Hardt (2005) nada tem a ver como a noção de povo

(identidade) nem a de massa (aqueles que saem em uníssono), mas com fluidas matizes de

resistência, diferenças que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade, identidade única.

Através de uma translocução, as diferenças devem descobrir o comum que lhes permitem

comunicar e agir em conjunto.

Podemos também dizer que tais pontos de resistência são processos de singularização

de uma política subjetiva que aciona dispositivos capazes de mudar os tipos de sociedade,

recusando modos de encodificação preestabelecidos para construir outros modos de

sensibilidade, de relação com o outro (GUATTARI & ROLNIK, 1986), o que coincidiria com

uma prática micropolítica, como é o caso da RD.

Sendo, portanto, também uma política de subjetividade, A RD se afirma como uma

linha transversal aliada à uma experimentação de cuidado que tensiona a linha dura da política

18 Nos Diálogos, Deleuze diferencia três tipos de linhas: linhas molares, moleculares e de fuga. As linhas

molares são lentas e duras, operam na binariedade, isto é, por agregados e padrões estáticos como homem-

mulher, criança-adulto, certo-errado, drogas-fracasso, saúde-doença. As linhas moleculares são relativamente flexíveis, compostas de singularidades, micromultiplicidades. As linhas de fuga operam no nível da

descodificação, da ruptura. Tais linhas atravessam tanto grupos como indivíduos (DELEUZE & PARNET, 1998).

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e da lógica de guerra às drogas (DIAS, 2013). Longe de ser a política com derramamento de

sangue como afirma Batista (1997), que ganha contorno nas políticas de Estado vigentes, a

Redução de Danos faz fugir como máquina de guerra19 (Deleuze & Guattari, 2012c).

Estamos aqui considerando que a RD é capaz de se constituir como uma máquina

revolucionária produtora de linhas de fuga ativas e positivas que resistem ao fascismo do

poder (DELEUZE, 2010a) ao passo que é também resultado da experimentação comum de

coletivos e movimentos sociais em constante tensão e disputa com o aparelho de Estado.

Sendo enunciação coletiva, torna-se assim tarefa de um povo que pensa éticas outras de

cuidado ao experimentar novos modos de intervir nas políticas de álcool e outras drogas

(DIAS, 2013); inconscientes que protestam:

“Nós nos dirigimos aos inconscientes que protestam. Buscamos aliados.

Precisamos de aliados. E temos a impressão de que esses aliados já existem,

que eles não esperaram por nós, que tem muita gente farta, que pensa, sente e

trabalha em direções análogas” (DELEUZE, 2010a, p. 34).

É assim que em 1926 a publicação do Relatório Rolleston,20 elaborado por um grupo

de médicos na Inglaterra, vai indicar outro modo de cuidar dos usuários de morfina e heroína

que não pela abstinência abrupta, mas pela administração prescrita destas substâncias para

estes usuários, sendo acompanhada por um médico. Em 1976, o governo holandês,

preocupado com os riscos relacionados ao uso de drogas, adota uma Lei que diferencia drogas

de risco aceitável, como maconha e haxixe, das drogas de risco inaceitável - heroína, cocaína,

anfetaminas e LSD (DOMANICO, 2006).

19 Nas primeiras páginas de O Anti-Édipo, Deleuze & Guattari (2010a) já dão o tom do que são as máquinas, ou

melhor, não lhes interessa o que são as máquinas, mas como funcionam, o que põem para funcionar, o que se

produz através delas, seus efeitos, como deliram o campo social, que intensidades são acionadas,

experimentadas? É aqui também que vão inserir a noção de máquinas desejantes, considerando que todo desejo

maquina e produz real social; só há real social como diz Rolnik (2011). Pequenas máquinas desejantes podem

funcionar em uma enorme máquina social técnica desde que se desarranje constantemente (DELEUZE & GUATTARI, 2010a). Assim chegamos à produção desejante das máquinas de guerra, que não têm por objetivo a

guerra, mas a produção de uma humanidade nova, a peleja, o combate, as disputas e lutas cotidianas (DELEUZE

& GUATTARI, 2012c). Habitando a zona limite de toda formação social, as máquinas de guerra, segundo

Baremblitt (2010), podem gestar as mais extraordinárias organizações sociais.

20 Segundo Davenport-Hines apud Domanico (2006), as recomendações do Relatório Rolleston foram indicadas

em situações específicas, ou seja, os médicos apoiavam um método já em uso. Na época, a Grã Bretanha não

tinha um problema social de uso injetável de heroína ou morfina como nos Estados Unidos, onde já existia um

uso bastante difundido entre os jovens pobres.

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Buscando auxiliar os usuários de drogas a melhorar seu estado físico e social, tendo a

participação ativa dos mesmos, em 1980, em Amsterdã, é fundada a “Junkiebond”, uma

associação de usuários de drogas injetáveis. No bojo destas mudanças, em 1984, um projeto

experimental de troca de agulhas e seringas usadas por novas se inicia na cidade de Amsterdã

(DOMANICO, 2006).

No Brasil, a Redução de Danos (RD) tem seu marco inaugural em 1989, período em

que suas ações tinham um caráter underground, segundo Souza & Passos (2009).

Underground devido aos métodos silenciosos, como era o caso da prevenção entre usuários de

drogas injetáveis, que aos poucos ganhavam voz e visibilidade, porém sofrendo com as

seguidas ações judiciais e perseguições policiais.

Vê-se aqui que a diferença é produzida pelos embates em torno das verdades

preestabelecidas e dos valores dessas verdades (FOUCAULT, 2012b). Lutas próprias dos

processos que fazem aparecer linhas de força que dão forma à sua materialidade, proveniência

dos acontecimentos que só se revelam pela dispersão das forças e dos inumeráveis desvios

que vão sendo traçados no caminho, onde o corpo é lugar de inscrição dos acontecimentos

históricos. O corpo e suas circunstâncias também são marcados pelas lutas que os produzem

(DIAS, 2013).

É neste contexto que se iniciam os primeiros trabalhos dos redutores de danos:

“agentes” de saúde que conheciam e tinham acesso aos territórios habitados pelos usuários de

drogas. Estes redutores seriam prostitutas, travestis, usuários de drogas, moradores de rua que

se tornam protagonistas e não só “pacientes” das ações de cuidado, criam vínculos

cooperativos em um plano de trocas afetivas, em reposicionamento subjetivo, onde o cuidado

não se faz só na assistência de uns para os outros, mas se orienta também e, sobretudo, como

cuidado de si (SOUZA & PASSOS, 2009).

Nesta mesma época, em 1989, acontecia a experiência de Santos21, quando houve

intervenções na Casa de Saúde José de Anchieta, antigo hospital psiquiátrico, que se

encontrava sob o crivo de denúncias de maus-tratos, produzindo em seus internos a mais

violenta forma de experienciar a loucura, passa a direcionar a atenção em saúde mental, em

nosso país de outro modo, de acordo com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), lei

21 Em 1989, tendo sido eleitos, pela primeira vez, em São Paulo/Capital, Santos e Campinas, prefeitos do Partido

dos Trabalhadores, foram nomeados como gestores municipais da área de saúde profissionais comprometidos

com o movimento da reforma sanitária, fundamentais no processo político-institucional da constituição do SUS.

Ao assumirem tais atribuições, faziam-no no sentido de construir novos dispositivos na área da saúde mental,

considerados altamente relevantes para o movimento da reforma psiquiátrica, na perspectiva da efetivação do

SUS.

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8080/90. Investe-se num modelo assistencial de base territorial e comunitária, por meio da

rede de atenção psicossocial22, substitutiva ao hospital psiquiátrico. Tal modelo de atenção se

efetuará nacionalmente por meio da Lei 10216/2001, Lei Paulo Delgado, também conhecida

como Lei da Reforma Psiquiátrica (SOUZA, 2007).

O segundo marco da RD será de acordo com Souza & Passos (2009) em 1994 com o

“Projeto Drogas” do Programa Nacional de DST/AIDS que mobilizou a criação dos

Programas de Redução de Danos (PRDs). Mas foi em 1996, com a fundação da ABORDA

(Associação Brasileira de Redutores de Danos), que se mobilizaram redutores de danos e

usuários de drogas para que se organizassem politicamente. No bojo do protagonismo dos

movimentos sociais no Brasil pela defesa e ampliação de direitos, as organizações não

governamentais (ONGs), atuando em diferentes frentes, tiveram presença importante, pois, a

partir delas, os redutores de danos puderam construir uma rede democrática de ativismo.

Porém, estabeleceu-se uma estranha e paradoxal relação com o Estado: receber financiamento

do Estado e, ao mesmo tempo, lidar com as forças do Estado que impõe limites a uma política

de drogas que é, sobretudo, política pública. (SOUZA & PASSOS, 2009).

Sendo assim, a RD caminha para o seu terceiro marco, que ainda segundo Souza &

Passos (2009), pode ser situado em 2003 com o Relatório Final da III Conferência Nacional

de Saúde Mental, que estabelece a atenção aos usuários de álcool e outras drogas como

diretriz para a reorientação dos modelos assistenciais em saúde mental. Os PRDs, portanto,

migram do campo exclusivo da DST/HIV para ser de responsabilidade da assistência em

saúde mental. Neste contexto, temos a construção da Política do Ministério da Saúde para

Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas que tem como diretrizes a constituição

dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad), e a construção de

estratégias em Redução de Danos como prática ética possível (BRASIL, 2003).

Além do dispositivo CAPSad, a Portaria Nº 3.088/GM/MS, de 23 de dezembro de

2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno

mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do

Sistema Único de Saúde, salienta que a importância dos centros de convivência como

unidades públicas, articulados às Redes de Atenção à Saúde, em especial à Rede de Atenção

Psicossocial, onde são oferecidos à população em geral espaços de sociabilidade, produção e

22 A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem como finalidade a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de

álcool e outras drogas, no âmbito do SUS (BRASIL, 2013).

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intervenção na cultura e na cidade.

Consideramos assim, como Passos & Souza (2011), que um conjunto de dispositivos

acionados pode constituir um paradigma dependendo de sua força de atração no campo. No

caso do paradigma da abstinência, sua composição se dá através de dispositivos morais,

religiosos e médico-sanitários como política articuladora de práticas concretas voltadas à

problemáticas das drogas, que se exerce de maneira coercitiva e faz da abstinência a única

direção de cuidado possível (PASSOS & SOUZA, 2011).

A RD se aproximaria bem mais do que Guattari (2012) descreve como paradigma

ético-estético-político. Este paradigma fala em criação e desfazimento das visões mecanicistas

das próprias máquinas ao pensar as implicações e a responsabilidade da instituição criadora,

neste caso, dos coletivos multitudinários, com a coisa criada (a RD), cuja ética é produto da

própria experiência de criação processual, não correspondente às exigências de um poder

transcendente.

A abstinência e a RD podem ser pensadas como dois paradigmas que disputam o

campo das políticas públicas sobre álcool e outras drogas. Correlato à política antidrogas, o

paradigma da abstinência tem a hegemonia de seu campo em um conjunto de práticas

privilegiadoras dos hospitais psiquiátricos ou das denominadas comunidades terapêuticas,

onde atualmente a ação deste paradigma é mais visível (DIAS, 2013). Seus interesses, para

efetivarem seu “método”, são as práticas de sequestro e tutela fabricando cada vez mais as

criaturas de hospital.

Embora considere a abstinência como caminho possível, a RD só a trilha a partir da

análise da singularidade de cada caso, pois esta não é a condição essencial para o tratamento,

nem objetivo em si mesmo para a produção do cuidado (DIAS, 2013; SOUZA, 2007):

“A abstinência não pode ser, então, o único objetivo a ser alcançado. Aliás,

quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos que, necessariamente, lidar com as singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que

são feitas. As práticas de saúde, em qualquer nível de ocorrência, devem

levar em conta esta diversidade. Devem acolher, sem julgamento, o que em cada situação, com cada usuário, é possível, o que é necessário, o que está

sendo demandado, o que pode ser ofertado, o que deve ser feito, sempre

estimulando a sua participação e o seu engajamento” (BRASIL, 2003).

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Visando não reforçar a concepção binária de drogas-fracasso para a questão das

drogas, na qual se pauta na simples exclusão da substância, a RD recusa as noções viciosas

das “recaídas” e do discurso moral:

“Se afirmamos que a redução de danos é uma estratégia, é porque

entendemos que, enquanto tal, e para ter a eficácia que pretende, ela deve ser

operada em inter-ações, promovendo o aumento de superfície de contato, criando ponto de referência, viabilizando o acesso e o acolhimento,

adscrevendo a clientela, qualificando a demanda, multiplicando as

possibilidades de enfrentamento ao problema da dependência no uso de

álcool e outras drogas” (BRASIL, 2003).

A RD pode ser entendida, segundo Dias (2013), como diversos modos de experimentar

e produzir cuidado com as pessoas que usam drogas, no qual estas podem falar em nome

próprio (SOUZA, 2013). Sendo assim, a RD afirma-se cada vez mais como uma utopia ativa

ou, melhor, como heterotopia:

“As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham,

contudo num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja

quimérico. As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam

secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque

fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a ‘sintaxe’, e não somente aquela que constrói as frases – aquela, menos

manifesta, que autoriza ‘manter juntos’ (ao lado e em frente uma das outras)

as palavras e as coisas” (FOUCAULT, 2007, p. XIII).

Foucault (2013) acrescenta que as heterotopias são como uma espécie de utopia

efetivamente realizada, espacialidades onde não há universalidade, mas diversas

configurações. Fora da terra ancorada, é uma espécie de espaço experimental lançado ao

infinito do mar (HARA, 2008). Queda d´água, espaços que não perdem seu arcabouço

potencial.

Acionando saberes nômades, A RD não se interessa por águas empoçadas, mas está

atenta ao que é perigoso, doses de prudência. Batalhas diárias, máquina de guerra

experimentando outras práticas, provocando transformações cotidianas atentas aos cuidados

de si. Inventando percursos, espaços de experimentações, expansão da vida, em “uma época

da possível associação de únicos inventando existências, subjetividades e experimentações

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surpreendentes” (PASSETTI, 2007, p.5).

Únicos e iguais na diferença, insurgentes e insurretos, que não temem seu próprio

poder, guerreiros em associação combatendo desigualdades e conservadorismos. Fazer

constante e inacabado, desassossegado, afirma sua existência como ética do cuidado de si.

Existência perturbadora com qualidades menores, que se quer menor, tendo um estilo

habitando zonas de risco e dissolvendo hierarquias e saberes já dados. Utopia agora. “Que tal

o impossível?”23

2.2. – Do estilo e da territorialidade: itinerâncias, pontos de parada, desvios nas

andanças da RD

Um estilo brota do impossível chão, é uma flor no asfalto. Deleuze diz que não se faz

um estilo compondo palavras, é preciso rachar as palavras, rachar as coisas. "O estilo, então,

tem necessidade de muito silêncio e muito trabalho para produzir um turbilhão no mesmo

lugar, depois, lançar-se como um fósforo que as crianças vão seguindo na água da sarjeta."

(DELEUZE, 2010a, p.176) Um estilo pode vir "azul, pingando oceano" (BARROS, 2013a, p.

39), ou poder nascer do deserto, do sertão. "Sertão é o sozinho (...) Sertão: é dentro da gente"

(ROSA, 1994, p. 435). É destas zonas áridas que a prática da RD se povoa com máquinas

desejantes, inventa, aciona, ativa, processualiza, pois as gentes só saem do sertão ao modo do

poeta, tomando conta dele a dentro, no arranhar dos órgãos.

Dias (2013) nos apresenta três características ético-estilísticas para a existência das

práticas em Redução de Danos: a clínica ampliada, a ação no território e a transversalidade. A

clínica ampliada pode ser tomada como ação que questiona os limites do fazer clínico, onde

não há separação entre clínica e política. Nossos saberes-afazeres (BAREMBLITT, 2010)

estão constantemente implicados com as apostas que fazemos no mundo e, portanto, dentro

desta perspectiva, a aliança clínico-política já seria um dèja lá.

Inicialmente, como coloca Losicer (2009), a clínica política avança como uma clínica

de fronteiras, confrontando-se com a incontornável questão da subjetividade para além da

23 Referência à música de mesmo nome do cantor Itamar Assumpção (2010) in Pretobrás III – Devia ser

proibido.

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vida individual das pessoas e das psicopatologias privadas, dispensando filiações teóricas

instituídas e produzindo seus próprios engendramentos. Seria, portanto, uma vocação para a

“indisciplina”, considerando a possibilidade da clínica variar, pois sua fronteira não é

concebida como uma linha definida, mas como uma faixa difusa na qual coexistem elementos

de um lado e de outro dos territórios que a separa.

Sendo assim, a primeira peleja clínico-política é a crítica às construções da

essencialidade e do modo-de-ser-indivíduo, cujos traços, segundo Coimbra & Leitão (2009),

são os especialismos – estratégias que têm funcionado como mantenedoras e fortalecedoras

do status quo, que seria o fortalecimento da concepção hegemônica de homem intimizado,

preocupado como seu auto-conhecimento e sua auto-realização, questionando-se - Quem sou

eu? Qual o meu desejo? Por que desejo? Como e qual é meu mundo interno, íntimo?

Pretendendo chegar a uma verdade sobre si, a um essencialismo, faz-se esquecer que

essa concepção de homem intimizado fora forjado em um contexto histórico. No Brasil,

acrescentam Coimbra & Leitão (2009), a crença nas essências e no “modo-de-ser-indivíduo”

foram fortalecidas e amplamente divulgadas no período da ditadura militar, onde tudo que

escapasse às formas de interiorização naturalizadas, ou seja, ao adequado, ao “deve ser”, era

considerado danoso e deveria ser evitado, iterceptando-se os desejos, as invenções, as

criações. Nesta época, duas categorias de acusação sobre a juventude foram assim produzidas:

a do subversivo e a do drogado, pois colocavam em análise a ênfase dada ao espaço privado,

ao modo de família sadia e estruturada.

A transversalidade seria algo que ampliaria a comunicação entre as práticas e saberes,

permitindo a produção de um plano comum da experiência do cuidado e gestão

compartilhada. A ação no território aponta o desafio desassossegado da RD em estar junto, na

lateralidade, inventando as chances de uma saúde junto às pessoas que fazem uso abusivo ou

problemático de drogas nos diversos contextos que elas se encontram (DIAS, 2013).

Estas são premissas éticas que orientam as práticas de cuidado em RD (BRASIL,

2003). Tomá-las como premissas não significa deixá-las a serviço total de captura pela

máquina do Estado, mas buscar justamente outras relações com a lei e o desejo, já que

queremos pensá-la como produção, como força ativa, afirma Rauter (2009). Se há uma lei

para a RD, que não seja ela a organizar a produção desejante, mas a produção desejante a

possuir “germes de organização”. Imediatamente produtor de real, o desejo também é

produtor de organizações, de territórios ou de leis, que não precisam estar opostas à natureza,

da qual os humanos estariam separados, mas como produções destes humanos em

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continuidade com a natureza, como uma política que administre os encontros, estabelecendo

pequenas guerrilhas, lutas particulares na direção da expansão (RAUTER, 2009).

Produzindo tensionamentos em todo o seu campo de ação/atuação, a Redução de

Danos coloca em questão como construímos o objeto de nossas intervenções, nosso modo de

olhar e seus efeitos sobre os sujeitos das intervenções. Ditos deste modo, uma outra

característica estilística da Redução de Danos será, segundo Lemke (2009), a

desinstitucionalização de suas práticas, que segundo Rotteli et al (1992), será colocar em

questão as instituições e todo aparato conceitual e metodológico erigido historicamente como

resposta à uma questão que, neste caso, podemos citar a instituição “drogado” e seus diversos

corolários.

Desinstitucionalizar, segundo Rotteli (1992), é desconstruir todas essas instituições

que aprisionam em sistemas identificatórios e irreversíveis, é uma intervenção prática que

desmonta determinações normativas, definições científicas e estruturas institucionais que

fizeram com que aquela prática ou aquele estilo de vida assumisse um modo único de

expressão, retomando contato com as questões existenciais do sofrimento e da dita existência

doente. Assim, o cuidado passa a ser entendimento não mais como tratamento ou cura, mas

como projeto de invenção de vida, de sentido e de regimes de sociabilidade, capacidades

singulares de condutas, ou de fazer andar a vida (MEHRY, 2007a).

Desinstitucionalizar é, portanto, produzir práticas que possibilitem a existência dos

usuários no tecido social, em seus territórios de vida, lidando com seu sofrimento na rede que

lhe é inerente, relacionando-o com o corpo social (ROTTELI, 1992). A desinstitucionalização

também requer assim uma relação com o território a partir da criação de serviços

comunitários, do deslocamento da intervenção terapêutica para o contexto social das pessoas,

acrescenta Rotteli (1992).

Porém, essa construção de estabelecimentos comunitários sem uma concomitante

desinstitucionalização paradigmática pode gerar um efeito indesejado como é o caso da

coexistência da internação psiquiátrica com os serviços substitutivos, como são os CAPS, por

exemplo. Sem uma ruptura paradigmática, que porte a crítica ao instituído e à psiquiatrização

dos conflitos sociais, bem como à difusão capital de mecanismos de controle na comunidade,

podemos acabar criando as instituições de tolerância pensadas por Basaglia (2005) - aquelas

que resolvem tecnicamente os conflitos e podem até servir de readaptação ou de complemento

às instituições de violência explícita, como são os manicômios, que apartam da sociedade os

elementos do distúrbio, recortam e culpabilizam o indivíduo pela sua “natureza”, produzem

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sua “carreira moral” (GOFFMAN, 2010).

É importante atentar para o que Pelbart (1992) coloca sobre a abolição das estruturas

manicomiais, pois podemos incorrer no risco de criar uma sociabilidade asséptica que

neutralize toda a potência de desterritorialização de um estilo de vida. A libertação do

drogado, por exemplo, não é estratégia de homogeneização do social, “trazê-lo a qualquer

custo pro nosso mundo.” Se mantemos intactos nossos manicômios mentais, os espaços

subjetivos onde confinamos nossas desrazões, nada podemos fazer perante a alteridade do

outro, pois estaremos abolindo a diferença, em vez de acolhê-la e junto com ela inventar

outras possibilidades. “É preciso libertar o pensamento dessa racionalidade carcerária”

(PELBART, 1992, p. 135).

Mas se tem algo que a desinstitucionalização não “abre mão”, aquilo que, segundo

Rolnik (2011), em nome da vida somos e devemos ser absolutamente impiedosos, é da recusa

ao isolamento do usuário como método de terapêutica. Uma prática de cuidado só pode ser

consequente se for relativa ao sujeito em seu contexto existencial, pois só assim se tem acesso

ao seu mundo subjetivo. É preciso tirar do caminho todas as codificações que impedem um

processo de cuidado (LEMKE, 2009).

A desinstitucionalização das práticas de cuidado, acrescenta Amarante (2010), deve ser

permanente e provisória. Provisória por ser precondição para que apareçam os sujeitos do

cuidado e seus afetos, obturados do crivo da “doença”. E permanente por ser princípio ético-

técnico de colocar persistentemente os saberes-afazeres instituídos em questão, assim como

não estagnar perante uma realidade que se tome como natural e inquestionável.24

Aqui há toda uma valoração ao caráter processual das práticas de cuidado que

resultam em políticas de subjetivação que não restrinjam os territórios existenciais da

população atendida, não estanquem o seu modo singular de “andar a vida” nem os aprisione

em formas identitárias que anulam e negativam as diferenças (LEMKE, 2009). Tal relance

processual, afirma Lemke (2009), também faz com que o evento de uma crise, ao invés de ser

marco de uma estagnação da vida, seja o advento de deslocamento. É, desta maneira, que a

itinerância se insere como peça-chave da construção de um ethos do cuidado em RD.

As práticas itinerantes operacionalizam o cuidado no território, é lugar estratégico para

24 Para isso, a integralidade, acrescenta Lemke (2009), tem uma importante função ética de inserir o cuidado na

complexidade do contexto de vida das pessoas, em seus territórios. A integralidade como princípio de trabalho

amplia a percepção, descentra o olhar da fisiologia para os contextos e interações. Tendo a integralidade como

princípio de trabalho, o profissional estará sempre remetido a uma relação de alteridade com o usuário, não

desconsiderando o modo que este significa e vive seu modo singular de levar a vida (LEMKE, 2009).

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a construção de um cuidado contextualizado aos modos de vida dos usuários, é potência

política do movimento/nomadismo de transformar o território em laboratórios de invenção de

vida. Além disso, mudam a produção do cuidado, é um deslocamento para além do âmbito

espacial, é uma atenção constante aos movimentos de capturas das instituições que buscam

sedentarizar a vida e aos acidentes que estão expostos em seus percursos. Itinerância é

também se relacionar com outras redes de cuidado, é analisar o campo de possibilidades que

têm estes deslocamentos no território em produzirem mudanças no plano intensivo das

práticas e da construção ou ampliação dos territórios subjetivos dos usuários (LEMKE, 2009).

O encontro que produz cuidado deve ser sustentado por uma aposta de que é possível

produzir diferença, mesmo ali onde, em princípio, nada se movimenta. A potencialidade de

produzir um desvio (clinamem), uma experimentação de vida, cuidado e solidariedade, lá

onde os movimentos tinham potencial de morte (LANCETTI, 2007).

As práticas em Redução de Danos buscam, portanto, movimentos de ampliação das

relações e das experiências dos usuários com a própria droga, através da construção de

estratégias clínicas que cartografem causas imanentes ao próprio território existencial, sem

que seja preciso que o sujeito o abandone, como coloca Tedesco & Souza (2009). Nesta

perspectiva, os autores entendem a rua não como lugar estranho, ameaçador, mas como lugar

de praça, de multiplicidades, de produção de vida, de disputas de existências.

Sendo assim, a abordagem da Redução de Danos se afirma como:

“[...] clínico-política, pois, para que não reste apenas como ´mudança

comportamental ,́ a redução de danos deve se dar como ação no território,

intervindo na construção de redes de suporte social, com clara pretensão de

criar outros movimentos possíveis na cidade, visando avançar em graus de autonomia dos usuários e seus familiares, de modo a lidar com a hetero e a

autoviolência muitas vezes decorrentes do uso abusivo do álcool e outras

drogas, usando recursos que não sejam repressivos, mas comprometidos com

a defesa da vida (BRASIL, 2003).

Redução de Danos como potência de embaralhar códigos, de produzir intensidade na

aventura de suas andanças, um registro de guerra que fura cercos (PALOMBINI, 2006).

Mobilidade instituinte, potência transgressora de suas ações, prática de cuidado que, segundo

Petuco & Medeiros (2008), por se constituir historicamente por meio de pequenas

transgressões, burlas de normas e prescrições do cotidiano das práticas é “movimento

clandestino”, pequenas mobilizações afetivas produzidas no campo:

“Quando se trabalha está-se forçosamente numa solidão absoluta. Não se

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pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Há apenas trabalho nas

trevas, e clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não

povoada de sonhos, de fantasmas nem de projectos, mas de encontros. Um encontro, é talvez o mesmo que um devir ou umas núpcias. É do fundo dessa

solidão que se pode dar qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e por

vezes sem as conhecer nem as ter jamais visto), mas também movimentos,

ideias, acontecimentos, entidades. Todas estas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito.

Designa um efeito, um ziguezague, alguma coisa que passa ou que se passa

entre dois como sob uma diferença de potencial” (DELEUZE & PARNET,

1998, p.14).

Estar-se, portanto, sempre em produção, partindo de um certo território, abrindo-se

para outros possíveis. Somos também sujeitos de saberes e ações que nos permitem agir

protagonizando processos novos como formas de mudança. Porém, mesmo protagonizando

mudanças, em muito conservamos, reproduzimos situações dadas. Somos responsáveis pelo

que fazemos (MEHRY, 2007b).

Somos responsáveis com os nossos saberes e fazeres, pelo que vai ser amanhã. Ou o

fazemos diferente, ou não o será (FREIRE, 2007). Fabricamos nossas ações, vivemos estas

tensões, como sujeitos das ações, cartografamos no viver este processo, abrindo linhas de

fuga, partindo para novos mapas, novos sentidos territoriais implicados na produção de novos

coletivos de trabalhadores comprometidos ético-politicamente com a radical defesa da vida

individual e coletiva e na criação de um novo modo de produzir cuidado, no dia-a-dia nos

serviços, “mas, sem receitas, que deixo para livros de comida” (MEHRY, 2007b, p. 15).

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LINHA 3 – O CENTRO DE CONVIVÊNCIA É DE LEI - CONVIVER CUIDANDO,

CUIDAR CONVIVENDO

A invenção é um negócio profundo... Invenção é uma coisa que serve

pra aumentar o mundo, sabe?” (Manoel de Barros)

“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas

pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se

remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em

trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam [...]

Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa

importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da

gente do que outras de recente data. [...] Talvez esse seja o jeito de

escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas

eternas, que permanecem...” (Guimarães Rosa)

3.1. - De uma sensibilidade às condições iniciais:

De início, somos tomados por um problema metodológico de pesquisar a experiência,

acessar seu plano de forças ao passo que vamos chegando junto da mesma. O jeito foi lançar

mão de um pesquisador-xereta (HECKERT, 2012) que põe a mochila nas costas, ou melhor,

seu corpo na roda, abrindo possibilidade para se deixar enfeitiçar ou desenfeitiçar pela

pesquisa (FAVRET-SAADA, 2005). A cartografia operando numa espécie de desfiladeiro

estreito, onde há impasses na construção das estratégias e outros que se dão ao longo do

percurso da pesquisa, requer uma ética do cuidado e uma atitude (ethos) que beiram a clínica.

Nosso trajeto assim começa por volta de março de 2013, em um primeiro encontro com

o Bruno Ramos, presidente do Centro de Convivência É De Lei, à época. Encontramo-nos em

seu consultório e fomos conversando sobre as possibilidades de execução da pesquisa. Bruno

vai colocando que o espaço também é atravessado por precariedades, respingos da

“sobrevivência” de editais, pois o Centro se sustenta da aprovação de projetos na área da

Cultura, HIV/AIDS e Álcool e Outras Drogas.

Sobretudo pelas dificuldades do pesquisador que tentava administrar o tempo de

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dedicação à pesquisa junto a outro trabalho como profissional da Psicologia em um CAPSi,

mas também pelas dificuldades da equipe inteira do É De Lei se encontrar, “pois uns fazem

20 horas, outros 10 horas, e por isso não tem mais ocorrido reuniões gerais de equipe,”

combinamos de nos encontrarmos nas reuniões formativas da equipe que ocorrem uma vez no

mês, onde poderíamos encontrar o maior número de membros e assim discutir/pensar a

pesquisa com todos e iniciar um trabalho de colocar-se junto, no corpo-a-corpo com a

ambiência e as práticas do É de Lei.

Acompanhar a primeira reunião formativa é um ensaio no campo e o pesquisador

tentava ver com a equipe os efeitos de quem leu o projeto de pesquisa. Bruno Ramos

esclarece o caráter de Formação daquela reunião, momento de pensar as práticas, de rever-se

em seu contexto social e compromisso ético-político, lugar de encontro em potência.

Em algumas destas reuniões, houveram questionamentos ao pesquisador quanto ao

que faz e ao que se pesquisa. Fora preciso uma espécie de sensibilidade às condições iniciais

(EUGÊNIO & FIADEIRO, 2013). E o que se produziu de efeitos nessa posição de

lateralidade inicial teve muito menos um efeito de antagonismo do que uma agonística que

nos animou e forçou a pensar. Sendo assim, o cartógrafo se propõe a fazer uma Linha do

Tempo das ações do É De Lei, como que rastreando signos de processualidade, pistas que nos

guiassem. Tal estratégia nos permitia uma primeira com-posição situacional negociada com o

coletivo (“gostamos de uma contrapartida”, como dizem quando encontram o pesquisador).

Um certo jogo já começava, estabelecer uma relação com essa relação, entrar em um

plano comum, um plano de convivência que é trazido para o encontro, feito dos encaixes

possíveis. Aqui um primeiro trabalho em torno do viver juntos nos situava na trajetória e nos

itinerários do grupo e nos colocava ao lado do É de Lei, nos deixando afetar pelo andado.

Em um movimento de leitura dos documentos da organização, boletins, apresentações

em slides, e outros textos do e sobre o grupo pudemos, assim, organizar um tanto do material

disperso pelos armários do Centro. O olho assim vai tateando, explorando, rastreando, e o

mesmo tempo podendo ocorrer com o ouvido ou outro órgão. O que você vê quando olha o

que enxerga?

*

O Centro de Convivência É De Lei é gestado em 1994, quando Andrea Domanico e

Cristina Brites (a primeira, psicóloga e a segunda, assistente social) se reúnem

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“clandestinamente”. A execução do projeto Aids e Uso de Droga Injetável, um dos primeiros a

ser financiado pelo Programa Nacional de DST/Aids em parceria com a UNODC - United

Nations Office on Drugs and Crime, abre fendas, linhas de fuga possíveis que favorecem a

criação do É de Lei.

Assim, em dezembro de 1998, é inaugurado o Centro a partir de vínculo institucional

com o NEPAIDS - Núcleo de Estudos e Prevenção em Aids do Instituto de Psicologia da

Universidade de São Paulo. O nome do Centro surge como homenagem à música Sociedade

Alternativa, do Raul Seixas: “Faça o que tu queres, pois é tudo da lei, da lei...” e a ideia do

espaço ser em uma grande galeria veio dos próprios UDIs (Usuários de Drogas Injetáveis).

Havia uma dificuldade de acesso e intervenção nas cenas de uso e a criação do Centro na

Galeria do Reggae era estratégico por ser um dos points onde os usuários se encontravam, um

território de vida.

O espaço físico, no começo, era composto apenas de uma sala, a 36. Era totalmente

aberta e por isso o espaço para o administrativo e para a área de convivência era junto. O

funcionamento era das 14h às 21h e logo, tem início, o Chá-de- Lírio, que tinha como

objetivo proporcionar um momento de encontro e conhecimento das pessoas que ali se

encontravam. Era uma roda de conversa que não tinha um tema específico como hoje.

Tomava-se um chá e tinha um cigarro coletivo.

Ditos deste modo, em 1999, temos o primeiro projeto oficial do É de Lei enquanto

organização não governamental – É de lei, você tem pra trocar, ainda ligado ao programa

NEPAISD-USP. No começo de 2000, os redutores começam a se deparar com o uso do crack,

principalmente no centro da cidade. Em 2001, o É De Lei se constitui estatutário e

juridicamente, tornando-se independente e uma Organização da Sociedade Civil sem fins

econômicos. Neste mesmo ano, o projeto Você tem pra trocar seringas usadas por novas?

torna-se carro chefe do É de Lei, e que mesmo mudando de nome sempre esteve vigente. Hoje

é o projeto do PRD (Programa de Redução de Danos), mas nesse momento o projeto era

voltado só para o uso de drogas injetáveis. Os dois primeiros redutores de danos do É de Lei

foram usuários de drogas injetáveis.

No entanto, a ideia de Redução de Danos era uma questão complicada e delicada.

Muitas vezes vista como um estímulo ao uso de droga, os redutores que faziam trabalho de

campo, por exemplo, eram obrigados a ter um habeas-corpus preventivo. Vale também

salientar que nessa época - fins dos anos 90 e inicio dos anos 2000 – intensifica-se ações

repressivas de combate ao narcotráfico e endurecimento da lógica de “guerra às drogas” no

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Brasil (RODRIGUES, s/d).

Sob os efeitos do proibicionismo, o crack, segundo Joia (2014), se dissemina nos anos

90 e 2000. Provinda da pasta-base de cocaína, essa substância passa a ser refinada com outros

produtos, sendo de maior poder adictivo e mais barata, proliferando-se nas camadas mais

baixas do Brasil e se tornando o principal inimigo pelas políticas repressivas, marcando- se

como o “câncer” que vitima o corpo social.

Diante deste contexto, junto a outras associações, o É De Lei propõe ao Programa

Nacional de DST/AIDS a implementação de um projeto-piloto para o desenvolvimento de

estratégias de prevenção das DST/HIV/Aids entre usuários de crack, tornando-se um dos

cinco projetos pilotos do país, realizando em parceria com a PROSAM (Associação Pró-

Saúde Mental) o Seminário Nacional de Redução de Danos: Outras Estratégias são

Possíveis. Além disso, é eleito Centro de Referência e Capacitação em Redução de Danos da

Região Sudeste do Brasil pela ABORDA (Associação Brasileira de Redutores de Danos) e

colabora na construção e na formação da equipe do PRD Sampa, o Programa de Redução de

Danos da Área Temática de DST/AIDS da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, bem

como na sua implementação.

Em 2004, O É De Lei implementa uma unidade móvel (o NoiaMovél) com o objetivo

de ter acesso aos usuários nas ruas do centro da cidade. O objetivo, segundo Marina

(profissional da Comissão de Comunicação do É De Lei), era “levar a Sede ao campo” e

assim afetar os usuários para conhecer e frequentar o espaço de convivência do É de Lei.

(FRÚGOLI JR. & SPAGGIARI, 2010). Eram feitas várias intervenções nas praças, no dia das

crianças, com samba, cinema (principalmente na praça Júlio Prestes – bairro da Luz).

Neste período, desenvolvem o Projeto Proarte, voltado para a geração de renda, em

que eram confeccionadas camisetas, encadernação e mosaicos; e o Projeto Advocacy – Faça o

que tu queres pois é tudo da lei, com foco na defesa dos direitos dos usuários de drogas e

financiados pelo Programa Regional de AIDS. Para a Conferência Latina de Redução de

Danos vão três ex-usuários, que se tornaram redutores de danos.

O ano de 2005 é emblemático para esse coletivo: no Dia Mundial de Luta contra a

Aids recebem o 2º Prêmio Aids Responsabilidade Social – Saúde Brasil, com apoio do

Instituto Ethos, HSBC e Ministério da Saúde, são eleitos novamente para compor a diretoria

do Fórum ONG AIDS do Estado de São Paulo e participam da 3ª Conferência Latina de

Redução de Danos, em Barcelona / Espanha, com a apresentação de nove trabalhos. Em 2006,

participa na 17ª Conferência Internacional de Redução de Danos em Vancouver/Canadá, com

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a apresentação de quatro trabalhos, e é indicado para a Câmara Técnica em DST/HIV/Aids do

Conselho Estadual de Saúde, além de iniciar parceria com o Programa Nacional de Hepatites

Virais – Ministério da Saúde.

Neste mesmo ano, o É De Lei segue com três projetos de PRD: Vamos parar a noia e

Advocacy, Proarte. No entanto, há uma diminuição dos financiamentos, resultando na

escassez dos recursos e diminuição de editais oriundas das dificuldades com a gestão Serra no

Estado de São Paulo, que contribuem também para que o É De Lei não consiga realizar o

Advocacy.

Segundo o Dossiê do Fórum Centro Vivo (2007) é na gestão dos prefeitos José Serra-

Gilberto Kassab (2005-2012) que explodem denúncias de diversas violações de direitos

intimimamente relacionadas ao higienismo social que era preponderante nas ações deste poder

público. Escassez de políticas habitacionais, falta de participação popular na elaboração

dessas políticas e conivência do poder público com desocupações forçadas realizadas com

base na violência policial eram marcas dessa gestão, segundo Joia (2014).

Dificuldades também ocorrem na convivência do É De Lei: os usuários começam a

questionar a equipe dizendo que tinham a característica de serem “playboys”, “ricos” e “não-

usuários”. O desafio do cuidar con-vivendo, con-viver cuidando começa a encontrar novelos

difíceis de desfiar, quando a diferença do outro passa a ser marcada não como um modo de

encontrar e poder compor, mas tão somente como diferença de classe, marcando uma

distância que pode ser abismal e impedir relação de cuidado. Desafio de marcar distâncias ao

mesmo tempo que se compartilha territórios existenciais. Desafio de uma política do comum.

Em 2006, o É De Lei realiza formação em RD para a rede de saúde mental - CAPS ad

São Mateus. A equipe deste serviço apoia o É de Lei neste período de dificuldades, na

“brodagem”, trazendo profissionais do próprio CAPS para ajudar a equipe. Em 2007, segue-

se com poucos recursos e projetos, para-se de usar o Noiamóvel. O É De Lei passa a abrir

somente três vezes por semana.

Em 2009, temos a realização do Seminário Internacional Passado, Presente e Futuro da

Redução de Danos – 10 anos do Centro de Convivência É de Lei, as capacitações em Redução

de Danos de profissionais da Prefeitura Municipal de Guarulhos e dos Agentes Comunitários

de Saúde que atuam na região da cracolândia, em São Paulo. Neste mesmo ano, o É De Lei

quase fechou, vivia-se uma época em que as políticas só investiam nas propostas de

recolhimento e “limpeza urbana” da Cracolândia.

São os auspícios da força do Projeto Nova Luz marcando a gestão do prefeito José

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Serra (PSDB). Tal Projeto, segundo Joia (2014), prevê a transformação radical do bairro, com

vistas a “revitalizar” a região, implantar empresas de tecnologia e demolir imóveis, que

passariam a ter inspirações na La Ramba, em Barcelona e em bulevares nova-iorquinos. O

recolhimento dos “ilegais” reafirma mais ainda a higienização do centro. Joia (2014) destaca

as recém criadas rampas antimendigos, o fechamento de albergues no centro e seu

realocamento nas periferias da cidade de São Paulo.

Atendendo as pressões imobiliárias de remoção da população, a Ação Integrada Centro

Legal, em 2009, começa, segundo Joia (2014), a articular também com parcerias público-

privadas através de convênios com Comunidades Terapêuticas no interior do Estado de São

Paulo, garantindo a internação da população em situação de rua (num total de 302 vagas à

época). As abordagens eram realizadas pela Guarda Civil Metropolitana, pela assistência

social, por meio de agentes sociais e de saúde e pelos agentes comunitários de saúde (SÃO

PAULO, 2012).

Mas o ano de 2010 marca outros agenciamentos coletivos para o É De Lei: o início de

parceria com o Ministério da Cultura torna-o também Ponto de Cultura25 com o Projeto:

“Interações estéticas em pontos de cultura” (MINC). Neste período também realizam o

Seminário “Drogas e Vulnerabilidade: Ações Intersetoriais” e iniciam a construção do Fórum

Intersetorial Drogas e Cidadania, que visa discutir junto a outros coletivos as políticas

públicas de atenção ao campo das drogas.26

Atualmente, o É De Lei se divide em: Comissão de Ensino, Pesquisa e Articulação

Política, o Núcleo Campo, a Comissão de Cultura, a de Comunicação e Captação de Recursos

e o Financeiro e Administrativo. Suas ações são, portanto: trabalho de campo, ativismo

político, desenvolvimento de projetos (como o Ponto de Cultura e o Projeto ResPire),

atividades de formação e consultoria.

Através do Ponto de Cultura É de Lei, em julho de 2012, fora realizada uma

25 O Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania - Cultura Viva foi criado e regulamentado por meio

das portarias nº 156, de 06 de julho de 2004 e n° 82, de 18 de maio de 2005 do Ministério da Cultura. Surgiu

para estimular e fortalecer no país uma rede de criação e gestão cultural, tendo como base os Pontos de Cultura,

que são organizações que articulam e impulsionam um conjunto de ações em suas comunidades, agregam

agentes culturais compondo uma rede horizontal de articulação, recepção e disseminação de iniciativas culturais e atuam na efetivação do direito à cultura, principalmente para segmentos e populações historicamente excluídos

e que atuam em áreas, regiões e territórios que apresentem precariedade na estrutura e na oferta de bens e

serviços culturais (Disponível in http://www.cultura.gov.br/).

26 Em Anexo (Quadro 1), podemos visualizar melhor os projetos realizados pelo É De Lei.

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intervenção associada ao projeto internacional INSISE OUT, do fotógrafo francês JR.

Retratos dos conviventes foram ampliados e colados nas ruas da cidade. Um dos pontos de

intervenção foi a Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo. Um documentário sobre a

experiência foi produzido.27

O Projeto ResPire iniciou suas atividades em Junho/2011 e consiste em intervenções

realizadas em festas de música eletrônica no Estado de São Paulo, tendo a perspectiva de

utilizar práticas em Redução de Danos junto aos usuários de drogas que frequentem tais

festas, configurando assim ações diversas de abordagens de usuários, em sua maioria apoiada

por algum projeto. A intervenção se dá por meio de montagem de um espaço (posto de

trabalho) em festas previamente selecionadas para acessar as pessoas que fazem uso de

drogas.

Ao acessar este local os frequentadores das festas poderão conversar com a equipe

sobre usos diversos e sobre prevenção às DST e Hepatites. É aqui que fica o grupo chamado

de info-stand, e este espaço serve de acolhimento também para as pessoas que estiverem

tendo experiências negativas ao ter ingerido alguma droga. Também são distribuídos folders

com informações na perspectiva da RD sobre diversas drogas, como: Maconha, Cocaína,

Anfetaminas, LSD e Ecstasy. Além disso, para as pessoas que fazem uso de cocaína inalada

será distribuído o Kit Sniff, que contêm canudo de silicone e um papel laminado -

materialidades para reduzir danos de quem faz uso de cocaína inalada, além de preservativos e

instruções para reduzir a vulnerabilidade à transmissão da Hepatite C.28

Outra forma de intervenção ocorre com o acompanhamento terapêutico de

frequentadores de festa. Esse trabalho é realizado pelos redutores que muitas vezes ajudam

algumas pessoas a acharem seus amigos. Comumente realiza-se diálogo com equipe do posto

médico sobre interações medicamentosas e se faz a intermediação entre freqüentadores do

evento e equipe médica. Esse grupo é chamado dos cuidadores de bad trip.29

O ativismo político do É De Lei se afirma através da participação ou representação em

espaços para acompanhamento e proposição de políticas públicas, como: - o Conselho

27 É De Dentro e De Fora, disponível no canal do Ponto de Cultura É De Lei no youtube deste 14 de março de

2014.

28 Em Anexo (Imagem 1).

29 Gíria que representa as sensações fisiológicas e psicológicas desagradáveis provocadas pelo uso de substâncias

psicoativas durante os efeitos psicotrópicos.

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Municipal de Políticas Públicas de Álcool e Drogas de São Paulo, onde o É de Lei representa

a sociedade civil organizada em álcool e drogas desde 2002; o Fórum de ONG Aids do Estado

de São Paulo, do qual fez parte da diretoria por duas gestões; e o Fórum Intersetorial de

Drogas e Direitos Humanos. A instituição realiza também consultorias para a implementação

de programas e projetos em Redução de Danos, além do recente projeto De rolê – as mil fitas

de uma juventude inconformada com a lei (o nome foi dado pelos próprios adolescentes). Este

projeto trabalha com oficinas culturais para jovens que estão, já estiveram ou correm risco de

estar em conflito com a lei, e alterna passeios e oficinas pela cidade.30

A convivência fica aberta de segunda a sexta- feira, das 14h às 18h. Durante o período,

pelo menos um redutor de danos ficava de plantão no espaço para o atendimento aos usuários

e realização de atividades com os mesmos. Já o trabalho de campo do É de Lei tem sido

realizado na região central da cidade, mais precisamente na área denominada como Luz.

Segundo Marina (profissinal da Comissão de Comunicação do É De Lei), no ínício, a polícia

“chegava dando enquadros na equipe” (época da gestão Serra). Por estas e outras razões,

segundo ela, demorou para o É de Lei ter uma inserção na região (FRÚGOLI JR. &

SPAGGIARI, 2010).

As ações de campo ajudam a criar vínculos um pouco mais significativos com os

usuários, como também a ampliar relações com os demais atores – comerciantes, moradores,

prostitutas, travestis – que atuam na chamada Cracolândia, e o tipo de ação realizada, seja na

convivência, na Cracolância ou no ResPire não tem resposta pronta, não tem protocolo como

coloca COSTA (2013). Embora alguns recusem piteiras, por achar a idéia muito “legalize it”,

o trabalho de campo busca produzir um cuidado que não seja corta brisa, mas entender um

pouquinho a brisa do outro, se aproximar com certa “mumunha”31. É preciso também haver

um querer ali, acrescenta GOMES (2013), dialogar com o usuário para que haja aceitação de

outros modos de vida.

Ao fazer a escolha de “não ter o rabo preso” (GOMES, 2013), de não ser tomado na

máquina de Estado, o desafio do É De Lei passa a ser operar nas fronteiras, nas bordas de

30 www edelei.org (acesso em setembro de 2012). Algumas destas informações também foram cedidas por

registros históricos das atividades, próprios da instituição (mimeo).

31 Expressão usada por Roberta (da equipe do trabalho de campo no É De Lei) ao se referir ao desafio de

conseguir vincular com os usuários. “Mumunha” seria uma ginga, certo gestual e jeito de corpo que compõe como ferramentas menores para a invenção do cuidado em RD. “Mumunha” é algo que é valorizado na capoeira

Angola, é a mandinga, é o algo a mais que realmente importa.

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militâncias minoritárias. Máquina de guerra que diante do imperativo de “combate ao crack”

trazido pelos anos 2000 é progressivamente investida e atualizada das ambivalências de

proteção e cuidado, controle e segregação (JOIA, 2014). Desfiladeiro estreito. Operação

Resistência.

3.2. – Chegar, permitir, tocar

“Pra onde a gente vai? Sei lá, vamos juntos!” (COSTA, 2013)

Em julho, encaminho um adolescente que acompanhava no CAPSiSé para a oficina de

vídeo que acontece no É de Lei. Fui como AT (Acompanhante Terapêutico) de um

adolescente, de modo a apresentá-lo e vinculá-lo ao projeto. Durante a oficina, os

participantes tentavam articular uma intervenção em shopping chique da cidade de São Paulo,

onde alguém entraria como morador de rua e sairia “bem vestido”. A pergunta central da

intervenção: Você é o que você é ou como os outros lhe veem? Rogério (convivente) era um

voluntário que ainda não sabia se topava. O adolescente segue por algumas oficinas e junto

aos conviventes fotografam e filmam pela cidade de São Paulo.

Aqui o “pesquisador-xereta” retomou contato com o campo e soube da existência do

Chá-de-Lírio, série de debates que ocorre nas tardes de segunda-feira, o Cine-Carroça, filmes

produzidos pelos profissionais e conviventes e projetados sob uma espécie de carroça a ser

exibido caminhando pelas ruas da cidade, e um Fórum sobre Drogas e Direitos Humanos,

ocorrido nas terças-feiras (o dia inteiro) no SAE DST/AIDS (Serviço de Assistência

Especializada em HIV/AIDS) Campos Elíseos. O Fórum tem como coordenador o Raul

Carvalho (também membro do É de Lei).

Em uma reunião convocada pelo É De Lei sobre o COMUDA (Conselho Municipal de

Álcool e Outras Drogas - SP), alguns membros da equipe tentavam juntar o máximo de

pessoas que pudessem comparecer nas 12 pré-conferências que antecederiam a Conferência

Municipal de Políticas Públicas sobre Álcool e Drogas nos dias 18 e 19 de outubro. O É De

Lei tentava fechar pensamentos coletivos que pudessem ser levados a este espaço: a questão

das drogas não deve ficar restrita a um debate sobre clínica, mas perpassar a crítica a um

modelo de sociedade, e a garantia de participação dos usuários de drogas e a possível

desconstrução do COMUDA.

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Ainda participando das reuniões formativas do É De Lei, fico sabendo do que

propunha o Bruno Rico (Comissão de Comunicação): um boletim do É de Lei, que constasse

o que fizeram nestes últimos tempos, um texto principal de articulação política que seja

colocado em um editorial. Bruno Ramos resgata a história do É De Lei na construção das

políticas para HIV/AIDS, relata que hoje o É De Lei faz parte de um Grupo Executivo que vai

fiscalizar o Plano Municipal de Enfrentamento ao Crack no COMUDA.

Aos poucos, a equipe entra em uma discussão trabalho x militância. Será o trabalho

uma forma de militância? Sendo a militância uma forma de vida, poderíamos ser remunerados

por isso? Fala-se que o É De Lei aproveita brechas, e que o fato de se sustentar por meio de

editais, evita que sejam “aqueles que têm o rabo preso”, mas questionam, mais uma vez, a

escassez de recursos financeiros que viabilizem as práticas em Redução de Danos por eles

propostas. Discutem novos modos de organização, debatem os últimos ocorridos no país

como as manifestações do MPL (Movimento Passe Livre) e a Mídia Ninja como críticas a

uma militância tradicional. Pensam-se também como formuladores de políticas. E a discussão

segue, não cessa.

O cartógrafo que acabou de sair a campo não está preocupado com o que é o É De Lei,

mas sim em - Como funciona? E que efeitos produz? Vai caminhando sem saber direito como

e onde, com olhar multidirecional, sem determinação de ponto de chegada ou término, e

entendendo que tanto os lugares quanto as conversas fazem parte do campo (SPINK, 2003) e

que, muitas vezes, podemos nos haver com algum acontecimento que escapa do script ou da

modelagem “natural” (KASTRUP, 2008).32

Vamos desenvolvendo uma mudança da atenção focada e reduzida para uma atenção

desfocada que pode apreender os movimentos do território. O aprendiz-cartógrafo vai

percebendo que não há outro caminho para o processo de habitação de um território senão

aquele que se encontra encarnado nas situações.

Aos poucos, conhecer, agir e habitar um território não são mais experiências distantes

umas das outras. Um novo território se forma. A observação se reconfigura e a atenção muda

de escala por gradação.

32 Virgínia Kastrup (2008) em um trabalho com cerâmica para cegos relata que certa quantidade de barro ao ir ao

forno na busca por montar um casal dançando acaba por derreter, montando uma moça quase “caída” nos braços de um rapaz. Semelhante é o processo de aprendizagem inventiva de uma pesquisa que escapando de uma

modelagem “natural” pode nos surpreender com uma bela “cruzada de pernas”.

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3.3. – Traçar, encontrar, ver

“O ponto de vista está no corpo.” (Eduardo Viveiros de Castro)

Estamos no 4° andar da Galeria do Reggae, no Centro de São Paulo, bairro República.

Vemos pessoas que sobem e descem as escadas rolantes, variadas diferenças habitam o

entorno do É De Lei - reggaeiros, funkeiros, rapper´s, mc´s, rockeiros, crackeiros, alcoolistas,

maconheiros, um pesquisador: “Não me pergunte quem sou, nem me diga para permanecer o

mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 20). Gentes de todo o tipo. É junto a Francisco que

perspectivamos esse ver.

Uma perspectiva, como nos diz Viveiros de Castro (1996), não é uma representação,

mas um ponto de vista que está no corpo. Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida

uma potência da alma, e a diferença é dada pela especificidade dos corpos, nos afetos,

afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se

move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário. “Para os europeus, tratava-se

de decidir se os outros tinham uma alma; para os índios, de saber que tipo de corpo tinham os

outros” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 07).

Inspirando-nos no perspectivismo ameríndio, vamos ensaiando um modo de onde

pousar nossa atenção. O gesto de pouso indica que a percepção, seja ela visual ou auditiva, se

fecha numa espécie de zoom. A atenção do cartógrafo começa a ser capturada de modo

involuntário, quase que reflexo, não se sabe ainda do que se trata. “Tem lugar uma reação de

orientação [...] É preciso ver o que está acontecendo” (KASTRUP, 2009, p. 43).

*

Francisco, que é convivente do É De Lei diz estar esperando Sandra (tesoureira) para

conversar sobre as questões que o tem incomodado no espaço. Relembra uma série de fatos

que o havia levado a receber uma advertência de 45 dias sem aparecer no É De Lei - situações

que envolviam ameaças, inconveniências e agressões físicas. Quando questiono como seria

essa advertência, são as regras do jogo de futebol que nos ajudam a produzir uma

aproximação com o modo que o É De Lei constrói espaços de continência diante de certos

excessos do traçar o viver-junto. A advertência é uma espécie de cartão amarelo, “é um papel

que você é convidado a assinar quando faz assim uma coisa errada”. Vamos pensando de que

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maneira isso se dá, se foi algo acordado por todos. Como se dá essa relação com os limites,

com as bordas, com os contornos no É De Lei? Um território, por mais que aposte na

conversa com o desterritorializado, com uma deriva necessária para a invenção, também

necessita de certas continências. Como estas se dão? Que sentidos se produzem em todos a

partir desse lugar da advertência? O desejo do Francisco é conversar com a Sandra sobre isso,

precisa também conversar com o André (atual presidente do É De Lei) e com o Thiago

(Coordenador Núcleo Campo). “Também vou falar com o Wendell (atual representação dos

conviventes), assim ele já mobiliza os outros”.

Segundo Francisco, a advertência não estaria funcionando bem para todos, alguns

outros conviventes, segundo ele, também a “mereciam”. Vamos ressaltando o quanto é

importante que ele discuta essas questões junto a todos que constroem o É De Lei, que ele

está querendo trazer a discussão dos limites na relação com o outro e com os espaços

institucionais, e que isso é super importante. Coloca também que quer falar sobre mudanças

que acha necessárias na estrutura do É De Lei, que o fato das oficinas serem na segunda sala

do térreo é um incômodo para ele, pois os profissionais passam sempre no meio da oficina,

pedem licença, se desculpam, mas essa interveniência atrapalha, pois, às vezes, precisam

mudar de posição, se mexer, afastar as cadeiras, parar a oficina por alguns segundos. Isso é

um fato. O É De Lei e suas configurações “apertadas”. Suas propostas são que as oficinas

passem a ocorrer no 1° andar e que o espaço do 1° andar, onde normalmente os profissionais

se reúnem para tratar de questões específicas destes (enviar e-mails, escrever projetos, fazer

reuniões das comissões, redigir documentos, receber/fazer ligações) passe para a sala onde

atualmente ocorrem as oficinas. Aqui Francisco trata de um pensamento seu legítimo de

analisar o lugar que o acolhe, que de algum modo o cuida, quer cuida também deste espaço.

Éticas das conviviabilidades.

A questão das mulheres (Marina – Comunicação, Sandra - tesoureira, Bel – vice

presidente e Camila – redutora da convivência) trabalharem sob a vista de todos os

conviventes nos chega de algum jeito. “Não seria melhor que elas trabalhassem em tarefas

que não as deixassem tão visíveis aos olhos de todos e qualquer convivente, além do que, uns

dizem que eu perturbo as mulheres, já ouviu alguém dizer isso?” (Fala do Francisco).

Concluimos que se deveria perguntar às mulheres se elas estão se sentindo à vontade onde

estão. Levar essa discussão para uma assembleia? Antes precisa mobilizar os conviventes para

a discussão e pede minha ajuda, “uma forcinha.” Coloco que, antes de tudo, isso é um assunto

mais deles do que meu e reitero a importância de se conversar sobre/com os limites. Eis

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também um limite se apresentando ali. Francisco questiona onde moro, se moro com

familiares e quanto recebo da Universidade para realizar a pesquisa. Francisco está se

aproximando, algo se passa no meio, algo se agenciou. Francisco que era desconfiado até

então, que não havia até então topado assinar o Termo de Consentimento (para a participação

na pesquisa). Sinto-me à vontade de responder ao Francisco onde moro, acrescento que divido

com dois amigos e falo o valor da bolsa de mestrado, digo que atualmente só me sustento com

isso. E Francisco, como faz para se manter?

Francisco monta os espaços de eventos com madeiras e outros materiais, ressalta que

“levanta os espaços”. Algo semelhante ao que o Diego (outro convivente) já fez ao montar o

São Paulo Fashion Week. Diz que está dormindo em um albergue na Mooca e mostra sua

carteira de registro como albergado: é uma vaga fixa. Nomeia como sinceridade quando relato

o quanto recebo pela pesquisa. Questiona se eu trabalharia no É De Lei. Lhe respondo que

considero o trabalho do É De Lei bem bacana desde as oficinas realizadas ali e as negociações

com a convivência, além do trabalho de campo na Cracolândia e nas raves. Que o É De Lei é

um espaço que vem há muito tempo forçando existir, que deve ter uma importância pra ele

(Francisco), afinal, há mais de sete anos frequenta o Centro.

Francisco pergunta quando volto ao É De Lei. Respondo que na quarta. Ele retorna:

“Traga o termo lá, que eu assino.” Algo se passou. Um convívio possível. Francisco

acrescenta se estou cansado de tanta conversa, falo que não. Ele me pede R$ 2,00 emprestado,

é o que precisa pra poder juntar com o que tem e tomar um lanche pela Rua 24 de maio.

Como Francisco fazia quando lhe falta dinheiro? Mas ele já me respondia, de algum modo:

ele pedia. Mas será que só era esse modo? Tinha R$ 2,00, lhe dei e falei que não precisava me

ressarcir. Descemos o elevador, ele falou que esperaria a Sandra no térreo, fui comer um

lanche e Francisco segue em outra direção, indo tomar o seu café. Desejei-lhe um bom café.

Em um dado momento, pensei, se teria sido ético ter dado R$2,00 a Francisco. Mas por que

não dar? Francisco dissolvendo meu olhar-lugar de pesquisador... Mais um questionamento

dos limites. Confesso que tive receio de que o “não dá” afastasse Francisco. Mas quem nunca

precisou de uns trocados para “inteirar” no lanche? Afinal, não está fácil pra ninguém! Os

trajetos feitos pelo Francisco para se alimentar também passam a ser questões para o

cartógrafo. Onde se alimenta? Como se alimenta? Teria conseguido comer naquele dia?

*

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Tudo isso vai sujando certa assepsia da autoria, do ele e do eu imobilizados no

conforto das suas diferenças e certezas. Aqui, como diz Baptista (2010), santos e monges

terão seus nomes revelados, bem como os que estão com a espada de Lúcifer na mão, como

diz o Diego, outro convivente do É De Lei. Desindividualizar as autorias, profanar

imperativos metodológicos é a nossa aposta ética33. Para que não fiquemos despossuídos das

misturas do mundo, para que não adiemos ainda mais a tomada da rua dos homens.

Tornarmo-nos, pois, fragmentos salteadores no caminho, que desejam interromper a

familiaridade do percurso e roubam a certeza das convicções do pesquisador-passeante usadas

como leme, insuflam o perder-se, induzindo-o a um movimento curioso sem a segurança do

que irá encontrar na travessia. Desfiladeiro estreito atento ao que extrapola os limites daquilo

que o pesquisador defina como seu. Prática negociada entre a dose e a experiência. Não há

como prescrever a prudência.

O processo de composição de um território existencial requer um cultivo ou um

processo construtivo, o aprendiz-cartógrafo se lança numa dedicação aberta e atenta,

cultivando uma disponibilidade à experiência. E não só Francisco, como Rogério, Jucimar,

Valdir, Alex, Wagner, Wendell, Willy, Bruno Logan, Camila, Marcelo, dentre outros,

convidam o pesquisador à dança de um percurso como numa arte-capoeira.

Aprender a capoeira é constituir-se no território existencial do capoeirista, encontrar

uma emoção que engaje. Requer habitar de modo receptivo territórios que se avizinham,

deixando-nos impregnar. O aprendiz-cartógrafo, numa abertura engajada e afetiva ao território

existencial, penetra esse campo numa perspectiva de composição e conjugação de forças.

Constrói-se o conhecimento com e não sobre o campo pesquisado. Estar ao lado sem medo de

perder tempo, se permitindo encontrar o que não se procurava ou mesmo ser encontrado pelo

acontecimento.

Como organizar as idas a campo? Era preciso estar no campo, visitar as diferentes

comunidades e ser afetado por aquilo que as afeta. Sendo encontro não-marcado, como abrir-

se à partilha e à troca com outros ocupados com a questão e a lida do viver juntos? Nosso

desejo era ativar um lugar comum, e a dimensão de encontro é o que caracterizava nosso

33 Sade, Ferraz & Rocha (2013) falam de um ethos da confiança na pesquisa cartográfica que se constrói a partir

da dimensão processual de cultivo e contração de vínculos. Ao invés de apelar para o imperativo “confiem”! o

manejo segue linhas de conversa que se traçam conjuntamente, em regime de contratação com a experiência. A

pesquisa como evento em aberto, não completamente determinado, permite que alguns encaminhamentos sejam

definidos de forma compartilhada com os participantes, gerando experiências de pertencimento e cultivando a confiança. Assumindo voz, os participantes deixam de ser sujeitos anônimos da pesquisa e alvos passivos das

intervenções do pesquisador, assumindo lugar de coautoria na produção de conhecimento.

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deslocamento. Vamos, aos poucos, re-parando, quê que lá está.

É no espaço da convivência que ocorrem as assembleias34, o Chá-de-Lírio35, que se

escuta rap/reggae, Legião Urbana, Raul Seixas, assiste-se filmes, compartilha-se alegrias,

questões cotidianas, podendo também acolher sofrimentos, pois situações de crise36 se fazem

ver e falar; que Aécio faz seus desenhos e nos diz que as pessoas não precisam parar de usar

drogas, mas parar de sofrer, formulando assim seu jeito de como a máquina Redução de

Danos pode funcionar. Do mesmo modo, Alex formula ao seu jeito o funcionamento da

máquina RD para ele: estar ali no É De Lei o reconecta com alguma esperança, aposta na

vida. Fala que “as pessoas entendem errado a maconha, que é uma planta, não é uma droga,” e

que o crack deixa as pessoas infelizes. É também pelo espaço da convivência que Bruno

Logan diz o quanto a maneira de saber dos conviventes transforma sua maneira de se saber;

que Willy ensaia uma maneira de se aproximar de Rodrigo Silva. Desafio da ética do viver-

junto, do cuidar convivendo, do conviver cuidando.

Jogamos dominó na convivência. Segundo Eugênio & Fiadeiro (2013, p. 223), é em

um jogo:

“que o obstáculo é percebido enquanto 'condição' e não enquanto

'condicionante'. Um jogo cujas regras emergem enquanto se joga,

sustentadas na 'consistência' (e não na 'coerência') do que se vive e do que se partilha. Um jogo que só acontece porque deixamos de nos ocupar em 'saber

por quê' e nos concentramos em 'saborear o quê', desdobrando 'a que sabe' o

acontecimento."

Idas consecutivas ao campo, entre goiabadas, biscoitos, refrigerantes, sucos, cafés,

sessões de filmes e várias partidas de dominó. Era preciso encontrar o jogo, um plano comum.

Reparar e saborear consistindo numa experiência imediatamente junto ao “quê” que lá está:

“Enquanto a operação do olhar/ver/saber, produz separação e cisão entre o sujeito (do conhecimento-narrativa) e o objeto (que é conhecido-narrado),

reparar/saborear só se “realiza” (no duplo aspecto de tomar lugar e dar-se

conta do lugar) como ato de aproximação, contacto, relação como ato de des-

cisão. É no ‘juntos’ que se re-para e repara” (EUGÊNIO & FIADEIRO,

2013, p. 225).

34 Ver 3.4.2.

35 Ver 3.4.1.

36 Mais à frente transformaremos esta afirmação em um importante analisador.

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Uma tendência receptiva alta vem justamente para marcar esse caráter aventureiro e

muitas vezes confuso do início das habitações territoriais. A confusão é acompanhada de uma

atração afetiva, uma espécie de abertura, uma receptividade aos acontecimentos em nossa

volta, que nos abre para o encontro do que não procuramos ou não sabemos bem o que é.

Atitude de espreita como ethos, nosso caminho (hodós) vai se fazendo no processo, indicando

essa reversão metodológica que a cartografia exige - hodós-metá (BARROS & PASSOS,

2009). Por isso a ocupação de um território não pode ser iniciada com um problema fechado,

sabendo de antemão o que se busca.

Wendell é um dos primeiros a questionar a que vem a pesquisa, assim como Willy e

Bruno Logan. Essa afecção que é experimentada inicialmente pelo cartógrafo como um

chamamento. A pesquisa pressupõe implicação, na posição de estar com a experiência e não

sobre esta. Os três convocavam a uma ruptura epistemológica com o modus operandi do

conhecimento rigoroso - o “saber sobre”. Era preciso garantir cada vez mais um "saber com",

uma espessura processual que impedisse que o território fosse um meio ambiente composto

de formas a serem representadas ou de informações a serem coletadas. Proponho, então, que

pensemos juntos a construção desta pesquisa no Chá-de-Lírio - espaço/atividade no É De Lei

que se constitui de uma série de debates sobre assuntos variados (não necessariamente

relacionados com à questão das drogas), sempre tendo algum convidado externo. Damos

início à ampliação de nossas janelas atencionais, pois além do Chá-de-Lírio, identificamos

outras práticas que interessavam mais especialmente à pesquisa. São estas: as atividades do

Ponto de Cultura – as oficinas de vídeo e o Cine Carroça; e as oficinas de hip-hop.

3.4. – Re-parar: con-fiando as chances de uma saúde no viver-junto

Re-parar: voltar a parar lá. O jogo começa quando somos apanhados pelo imprevisível.

Fazemos desse imprevisível, uma zona de atenção, lugar de encontro em potência. Pelo sabor

e pelo encontrar, desejamos saborear a experiência do “juntos”. Alargando e distribuindo a

atenção, vamos fazendo da negociação com a imprevisibilidade do que encontramos, um

laboratório de investigação de um viver juntos. Não só encontramos o jogo, somos

encontrados por ele, pois somos também encontrados pelos afetos, aquilo que temos de mais

próprio e também de mais alheio. Inquietação que também é processo criativo, reformula

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perguntas e refunda modos de operar (EUGÊNIO & FIADEIRO, 2013). Quê que lá está? De

que forças estes corpos ainda são capazes?

Para traduzir em palavras o campo de forças, realizamos uma paragem-movimento,

vista não como renúncia, mas como permanência no processo. Parar para reparar no intervalo

da relação e do encontro, parar para estabelecer sentido-direção, tráfego e trânsito no concreto

do encontro com a experiência. E como é que isto funciona? - passa a ser nossa pergunta,

quando nos voltamos para a lida com a concretude do artesanato enquanto este se efetua em

seus espaços-tempos específicos. Será seguindo essa vontade de tecer, que vamos nos

colocando junto daquilo que no viver juntos carrega densidade de relevo acidentado, dando-se

(ou não se dando) em “tempo real” e não se guiando por uma linearidade objetiva universal,

mas pela emergência própria do evento, na duração de cada situação.

Após certo tempo de paragem no acompanhar o cotidiano do É De Lei, tomamos a

assembléia, o Chá-de-Lírio e as oficinas de vídeo e hip hop como dispositivos de análise

potentes, por oferecerem-se como um território a ser explorado, mas também a ser produzido,

inventado. Linhas que participam do processo de produção do Centro de Convivência É De

Lei, linhas de força. Linhas de subjetivação, linhas que inventam modos de existir.

Desejávamos acompanhar os efeitos destes dispositivos nos processos de produção de

subjetividade, sua potência de fazer falar, fazer ver e estabelecer relações.

3.4.1. – O dispositivo assembleia

Escrevo tudo junto porque acontece tudo junto...

*

Nas duas assembleias que acompanhamos estavam presentes: André e Bel (atuais

novos presidente e vice-presidente do É De Lei, respectivamente), Juliana, Willy e Bruno

Logan (redutores de danos da convivência), Marina (Comissão de Comunicação) e Wendell,

Wagner, Rogério, Diego, Aécio e Francisco como conviventes.

André começa a assembleia apresentando a nova Presidência, se colocando como novo

presidente, e apresentando Bel como vice. Esta explica o Projeto ResPire e as oficinas que

estão acontecendo com adolescentes em conflito com a lei. Wendell quer colocar o Projeto

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ResPire na pauta, traz um descontentamento com os projetos ocorridos com a população de

classe média (como é o caso do ResPire), diz que o É De Lei tem feito recorte de classe, tem

dado atenção “aos boys que têm médico particular.” Bruno Logan relata seu trabalho na

Cracolândia e a não diferenciação com a população atendida, colocando que quem faz recorte

de classe são os policiais, agentes do Estado e seus avatares.

Há uma confusão, pois Wendell também diz que o É De Lei também oferta curso de

medicina para os “boys” (?). Constrói-se um entendimento de que ele se refere às

capacitações em RD organizadas pelo É De Lei. Rogério relata que fez curso em RD e

Direitos Humanos pelo É De Lei, no entanto, Wendell insiste que o É De Lei “só tem ido atrás

dos boys.” O que Wendell queria dizer à equipe com aquela fala? De onde vinha a sua

inquietação, provocação? O quanto também os conviventes estariam empoderados de

participar destes espaços? De que maneira se dão os convites?

André retoma fala sobre respeito de uns com os outros. Francisco questiona o porquê

da Sandra, que está lá a dez anos, continuar na mesma posição – 1° tesoureira. André coloca

que Francisco pode perguntar a Sandra se desejava mudar de posição, pois houve um

entendimento de que havia um desejo da mesma de permanecer nesta posição, pois era o que

gostava de fazer. A fala de Francisco produz uma lógica de merecimento para Sandra, de que

ela mereceria subir de cargo, se tornar a presidente. Juliana questiona essa lógica empresarial,

de que as pessoas são contempladas e mais valorizadas quando sobem de cargo. “Aqui todos

nós estamos implicados.” – ressalta Juliana. Wagner interpela, completando: “Aqui não é a

Prefeitura!” A lógica capitalista-em-nós produz essas noções de merecimento a altos cargos.

O quanto esse lugar, por mais que seja cuidadosamente desmontando com a equipe junto aos

conviventes, produz subjetividades atravessadas por lógicas de comando? Um piloto-chefe

que direciona todos e tudo. A lógica de presidência precisaria ser revista, alguéns já haviam

apontado isso ali.

Wendell, insistentemente, se refere ao É De Lei como uma máfia. Rogério coloca que

a máfia está em Brasília. Questionam-se os prêmios, as máquinas fotográficas usadas para as

oficinas do Ponto de Cultura, que parecem não ser utilizadas, segundo Wendell.

A pauta é questionada por Bel e a assembleia fica confusa. Acalmados os ânimos, Bel

informa que a facilitadora da Oficina de Cultura Digital está afastada por duas semanas.

Diego sugere que alguém cubra o lugar dela ou que esse horário seja ocupado com o uso da

internet. Wendell fala das condições precárias dos computadores.

Bel fala que não tem como pagar alguém para fazer hora extra, pois não há verba

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prevista, e que o grupo precisaria ver o que faz com os horários livres da quarta, nestas duas

semanas, que os conviventes poderiam ver junto aos redutores que estivessem na convivência.

Também esclarece as faltas de certos programas (comuns em sistema Windows) que existem

nos computadores, que ocorre devido ao acesso livre do Ubuntu, pois este programa não

precisa pagar para tê-lo, como é o caso do Windows, e que vão ter programas semelhantes,

mas diferenciados, como é o caso de um editor de texto, e que, às vezes, vão faltar plugins,

mas que se aprende junto a cuidar disso, que não é só pôr para os conviventes usarem.

Bel acrescenta que a escolha do Ubuntu foi uma escolha a partir do que a equipe

acreditava em suas implicações que poderia ser produzido ali, não acreditam em um programa

que precisasse pagar uma licença. Wendell diz que não perguntaram se os conviventes

queriam trabalhar com Windows ou Ubuntu. O quanto aquilo no qual o militante-em-nós

acredita conversa com a população que atendemos? Qual o limite entre o que

acreditamos e o que a população solicita, pede, demanda? E que lógicas produzem tais

demandas?

Aécio explica o esquema dos softwares livres e Bel esclarece que o cachê recebido

para o Cine Carroça serviu para comprar equipamentos para o próprio, e que não existe um

lugar determinado, uma sala para o Ponto de Cultura, mas ações culturais dentro do Centro de

Convivência.

André retoma o uso dos computadores. Wendell relata que não há quase nenhum

horário para o uso. Bel retoma assembleia de 06 de fevereiro, onde foi decidido uma hora de

uso, das 14 às 15h, nas segundas, quartas e quintas, sendo que na sexta não haverá uso dos

computadores e na terça um profissional ficará disponível para dúvidas toda a tarde. Marina

relata que o É De Lei não seria uma lan house, e Rogério acrescenta que se pode aproveitar

outros espaços, ter acesso à internet em outros lugares, que o É De Lei não é um espaço

eterno.

Inicia-se novamente uma confusão. Todos falam ao mesmo tempo. Francisco ameaça

pôr fogo no É De Lei, caso não possa utilizar os computadores. Seria ele capaz de realizar tal

ato? Talvez, sim, mas ainda assim apostava que de algum jeito Francisco ainda desejava que

aquele lugar perseverasse pela chama acessa do encontro diário.

Juliana explica que não se está dizendo que não pode usar, mas que o uso se dá dentro

de certos contornos. Rogério explica a importância de uma estrutura administrativa, e de se

buscar direitos em outros lugares. Diz-se como “pássaro livre”, e acrescenta que “sua carta de

alforria vaza dali”: “Sou o que sou e meu nome não é o É De Lei”. Rogério luta pela

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legitimação de uma singularidade e aponta sua emancipação, sua liberdade que escapa de

qualquer enquadramento. O É De Lei, como espaço de passagem, como “grama entre as

pedras do calçamento" (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 33). Vejo que aqui se apresenta uma

potência do/no É De Lei, a capacidade de ser espaço entre, aberto para deixar passar e seguir:

“Há, em toda parte, centros, como multiplicidades de buracos negros que não

se deixam aglomerar. Há linhas que não se reduzem ao trajeto de um ponto, e escapam da estrutura, linhas de fuga, devires, sem futuro nem passado, sem

memória, que resistem à máquina binária, devir-mulher que não é nem

homem nem mulher, devir-animal que não é nem bicho nem homem. Evoluções não paralelas que não procedem por diferenciação, mas saltam de

uma linha a outra, entre seres totalmente heterogêneos; fissuras, rupturas

imperceptíveis, que quebram as linhas mesmo que elas retomem noutra parte, saltando por cima dos cortes significantes... Tudo isso é o rizoma.

Pensar, nas coisas, entre as coisas é justamente criar rizomas e não raízes,

traçar a linha e não fazer o balanço. Criar população no deserto e não

espécies e gêneros em uma floresta. Povoar sem jamais especificar"

(DELEUZE & PARNET, 1998, p. 36).

É pelo voto que se decide o uso de meia hora para cada computador. Existem dois

computadores para uso dos conviventes. A próxima pauta são o uso de crachás, e Wendell

relata que em uma ida ao Fórum junto ao Willy (redutor que o acompanhava) foram barrados

por não terem crachá. André relata que providenciará os mesmos. Algumas identificações

necessárias para negociações com os dispositivos de poder.

Novos redutores de danos para a convivência serão contratados e chegarão em abril.

Wendell questiona porque não contratar os conviventes, e Rogério responde que não

conseguiria trabalhar com eles (risos). Marina relata que os primeiros redutores de danos

foram pessoas que vinham dos campos de intervenção do É De Lei, e Diego interpela:

“Contratar um convivente é dar a espada na mão de Lúcifer” (risos).

Há um mal entendido com relação aos conviventes do É De Lei terem sido nomeados

como mendigos do Centro de São Paulo durante uma atividade no SESC Itaquera. Marina

esclarece que isso não ocorreu e diz o quanto lamenta que Francisco ainda siga ressentindo

desta maneira. Wendell acrescenta que mendigo é quem tem saúde e vive como parasita, que

quem dorme na rua não é mendigo: “Os povos da África, o povo da guerra dormiram na rua,

Che Guevara dormiu na rua e não era mendigo.” Uma boa reflexão pra quem sempre está

marcado pelo crivo da penalidade e da inferioridade, e de intervenções que falam do lugar da

benemerência para os comiserados. Parece que Wendell vislumbra uma potência possível na

afirmação de um grupo minoritário em luta. Ocorre uma confusão quanto à essa identificação

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ou não com o lugar de mendigo.

Acalmados os ânimos, Willy explica a importância dos representantes dos conviventes

de participarem de espaços coletivos, do caráter decisório politicamente. Relembram que

Wendell já fora delegado em conferência que discutiu a redução da maioridade penal. Willy

acrescenta que este lugar também tem sua potência para os conviventes compartilharem suas

experiências e suas questões sobre o Estado, de também poderem realizar grupos de estudo.

Rogério pontua que se informe cada vez mais das reuniões, assembleias, eventos e fóruns que

ocorrem, e Marina pergunta se ele navega nas redes sociais. Rogério responde que não é

marinheiro (risos). Há um respeito a esta renúncia a certa captura da tecnologia informacional.

Marina reconhece a importância de que os conviventes cobrem essas divulgações e que vai

garantir cada vez mais cartazes informativos.

Aécio é o primeiro a se candidatar como representante dos conviventes. Wendell

também se candidata. Diego relata que o representante deve ter o cuidado de não misturar o

mundo exterior com o interior e que deve não usar todas as lógicas das vidas pessoais de cada

um dentro do É De Lei. Vejo que Diego aponta para um processo de diferenciação que o

habitar aquele espaço pode produzir. Parece nos convidar a pensar sobre outro modo possível

de habitar o mundo e de relacionar com os outros. O encontro com o outro em sua radical

diferença. E a possibilidade do outro devir outros.

Rogério relata chateações com o Ponto de Cultura e decide-se que isto será pauta para

a próxima assembleia. Acrescenta que para ser representante dos conviventes deve ter cuidado

com o que fala, “pois tudo pode se tornar uma bagunça ou uma realidade.” Não deseja se

candidatar e parece confuso, acha que Diego já é o escolhido. Bel questiona como será o

processo eleitoral. Wendell e Diego propõem uma urna improvisada, uma caixinha onde se

colocará o nome do candidato da preferência de cada um, e Aécio sugere que a eleição seja

próxima sexta, para que se possa pensar o processo eleitoral. Wendell sugere quarta para

definir todos os candidatos. Há uma votação (5/4) e a escolha é que a eleição seja sexta. Os

candidatos, até então, são o Diego, Wendell e Aécio. Wendell retoma que ser representação

dos conviventes, “não é só ficar nesse ‘mocó’37 não”, mas se colocar nos espaços coletivos de

decisão e construção de políticas públicas fora do espaço físico do É De Lei também.

Ao final desta assembleia, o que pode o pesquisador? Naquele momento, o

37 Modo de habitar coletivamente um espaço. Espaço-morada criado por bandos-parceiros como lugar precário, mas também de proteção e de afirmação, muitas vezes, de um grupo. Algo talvez aproximado do uso do trapiche

onde repousavam Pedro Bala, Dora e seu bando em Capitães da Areia (AMADO, 2008).

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pesquisador pôde anunciar e convidá-los para o próximo Chá-de-Lírio, onde este irá expor e

pensar junto a pesquisa que vem tentando dar consistência. Wendell coloca que foi um dos

que questionou a minha entrada no espaço. Coloco que aquilo me alegra, que seria um sinal

de que a pesquisa já tem produzido efeitos em nós, e que poderíamos conversar sobre isso.

Rogério questiona o que pretendo investigar e se a pesquisa será produtiva. Pontuo que não se

trata de uma investigação e que se ela será produtiva é uma resposta a ser construída com

todos, são eles que irão me dizer, e que aguardemos até segunda. Sustentamos esse não saber

e brincamos. (Diário de campo – 14/03/2014).

*

Chegamos ao dia da eleição, todos discutem que deve votar quem está presente e que

os profissionais também votam. Diego diz que a representação dos conviventes, apesar de dar

a entender ser uma voz acima, deve organizar e se implicar com as vozes de todos, ao passo

que Wendell diz que o representante da convivência deve se ver como “parte da política,

atualizado da Política.” Complementa Rogério, que não é “ficar só na casa, mas expandir pra

fora.” O representante da convivência não é um superior, mas alguém que constrói junto,

continua Diego, e Wendell acrescenta que só se representa um grupo, ouvindo-o.

Há um entendimento coletivo de que ocorrerá uma avaliação trimestral da presidência

e que estas avaliações não serão momentos de “apontar o dedo na cara e cobra”, mas ver

como andam os desdobramentos do dia-a-dia. Após a votação, Wendell e Aécio são

escolhidos como representantes e decidem juntos que depois verão quem fica como 1º

representante e quem fica como vice. Todos agora discutem as atribuições do representante:

atentar-se às políticas relacionadas às drogas; poder discutir a legalização das drogas;

construir junto a equipe de redutores que ficam no espaço da convivência, um novo jeito de

pensar o cuidado e o uso de substâncias psicoativas que não seja pela via do paradigma da

abstinência. Abrir debate e diálogo e assim representar como membro da equipe, ouvindo as

ideias e sugestões dos conviventes, o que cada um quer produzir, pensando também novos

jeitos de explorar o espaço da convivência. Fica combinado que na próxima assembleia será

decidido o tempo de representação (Diário de campo – 21/03/2014).

*

A assembleia segue em uma aposta de construção de um plano coletivo, onde o grupo

opera como que na fronteira entre o que difere e o que comuna, manuseio das doses de um

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encontro. No seio da matilha, as regras emergem da situação a cada vez. Arte das doses que

depende da situação que se passa, é ela que dá a regulação. Situação que gera caminho, uma

direção, que é território para estarmos juntos, é o lugar que temos para nos encontrarmos. E

neste estranho lugar que não está aqui nem ali, nem dentro, nem fora:

“[...] o grupo permite a comunicação dos díspares, do que é forma e do que é

força, do que é produto (social ou subjetivo) e do que é processo de produção (produção de si e do mundo), do que é estado de coisa (forma instituída ou

estrutura subjetiva), do que é movimento (movimento de institucionalização

ou movimento desejante). Habitando essa zona do inespecífico, o grupo está

em um não-lugar (u-tpous) permitindo que, com ele, afirmemos nossas

utopias ativas” (PASSOS, 2009, pp.14-15).

Utopia que só se manifesta em sua dimensão coletiva; grupo que deixa de ser apenas

um conjunto de pessoas reunidas a partir de representações, ou uma natureza, para estar como

efeitos dos modos de operacionalizar fluxos, experiência de composição com outros modos de

afecção, outros modos de existencialização (PASSOS, 2009). Complexa e paradoxal, essa

dimensão coletiva não implica um relativismo ou uma cega conciliação. Não se trata de

homogeneizar ou abrandar as diferenças como coloca Kastrup & Passos (2013), o desafio de

um plano comum é articular, conectar e agenciar essa diversidade, que não seja por relações

de semelhança nem tampouco de identidade:

“O conceito de comum se define por sua consistência experiencial e concreta e constitui um desafio a ser permanentemente enfrentado, não sendo jamais

conquistado de modo definitivo. Não sendo algo que se possa supor já dado,

o comum se produz por procedimentos que vão à jusante da experiência, acompanhando as práticas concretas que comunam, uma vez que realizam

partilha de um bem comum e, consequentemente, criam o efeito de

pertencimento. É comum o que, na experiência, é vivido como

pertencimento de qualquer um ao coletivo. Trata-se de conceito político por excelência, já que comum é a experiência de 'decisão concertada' a que

somos convocados e mesmo forçados a fazer na partilha do coletivo. Entre o

lógico (universal) e o político (comum) define-se, portanto, uma diferença de direção na experiência – à montante e à jusante dela – o que nos permite

pensar uma coexistência que não abole a fricção e na qual o esforço de

construção marca presença” (KASTRUP & PASSOS, 2013, p. 267).

O comum portaria esse duplo sentido de partilha e pertencimento, que indicaria

procedimentos ou atividades sem as quais a produção do comum não se efetiva (Kastrup &

Passos, 2009). Teixeira (2004) chama esses procedimentos de redes de conversações do

trabalho afetivo, que são redes de produção de afetos, produção de redes sociais, de

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comunidades, de formas de vida (biopoder), de produção de subjetividades (individuais e

coletivas) e de sociabilidade. Redes de produção de redes.

Tendo uma profunda inspiração spinozista, Teixeira (2004) irá tratar da “zona de

comunidade” como aposta e desafio a se atingir com a população atendida, “noções comuns”

que só são alcançadas a partir de uma relação de confiança. Os afetos de confiança são

aqueles afetos aumentativos em que os corpos experimentam alegria e potência. O que dá

consistência ao vínculo é quando os corpos mutuamente se convêm (TEIXEIRA, 2004).

Porém, acrescenta Teixeira (2004), essa “zona de comunidade” é o primeiro patamar

de uma relação consistente, o patamar mais fácil de alcançarmos. Para Teixeira (2004), o mais

difícil seria lidar com aquilo que nos outros é diferente, a sua “zona de singularidade”. É

preciso uma potência maior das práticas de cuidado para lidar com as diferenças, com aquilo

que nos outros corpos não nos convém. É aqui que este autor falará da contratualidade como

uma garantia de que certos compromissos serão mantidos quando não temos certezas de que

seremos capazes de aceitar um ao outro, em todas as suas diferenças, até o fim.

Recorremos a um “contrato”, portanto, quando a confiança não é mais suficiente para

sustentar as novas aventuras da relação:

“Sem ela (a confiança), não teríamos chegado até aqui e ela é a própria potência, a própria força ou o trampolim que nos impulsionará mais adiante.

E o que temos adiante? Não mais o que no outro se assemelha a nós. Não

mais o que é facilmente reconhecível. Não mais o que no outro é, de certa

forma, nossa própria imagem espelhada. Mas o que no outro é irredutível. Sua diferença absoluta. Sua singularidade radical. E é aí que começa o

verdadeiro desafio da alteridade” (TEIXEIRA, 2004, p. 8).

A RD opera aqui nesse caminho estreito, no qual o usuário abusivo de drogas é

convocado a falar em nome próprio e, a partir daí, não só assume uma posição de

engajamento, mas de produção da própria experiência do cuidado. Comumente convocados a

falar nas condições de doentes, ex-usuários, réus e/ou criminosos, aqui a troca de experiências

corre solta, é este um dos grandes desafios do É De Lei na construção do cuidado no viver

junto.

Assim como dizem Feuerwerker & Merhy (2011), há “rodas” operando, fabricando

equipes e modos de trabalhar:

“Reúnem-se, fazem ofertas um para o outro, constroem entre si acordos e regras. Organizam-se para atuar como um coletivo, mas em que cada um

possa atuar do seu jeito” (FEUERWERKER & MERHY, 2011 pp. 290-291).

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E atuam tanto para produzir o acordo, quanto para participar da produção das chances

de uma saúde. Os conviventes cogerem e, portanto, são também cuidadores construindo a

funcionalidade do espaço que está sendo produzido. O instituir-se como roda no coletivo que

está aí atuando faz com que os encontros mudem a cara dos acordos e dos agires; os processos

estão mais abertos aos acontecimentos.

É a prática da roda ou a lateralidade (pôr-se lado a lado) que faz circular a experiência

incluindo a todos e a tudo em um mesmo plano sem hierarquias e sem homogeneidade,

traçando um comum, uma comunicação, ao passo que contêm, constroem e afirmam

diferenças (idem, 2011).

*

Certa dimensão do aparelho (FEUERWERKER & MERHY, 2011), de um instituído,

de um plano de constituição mais formal, molaridades com fluxos definidos pelas normas,

como a existência de “uma voz acima”, são postas em xeque a todo o instante. Como seguir

nos organizando coletivamente em um lugar onde ações se decidem? Como os atos de reunir

podem se afirmar cada vez mais não como dado adquirido, mas algo em construção, feito de

cumplicidades, consensos, desacordos, conflitos, tomadas de decisões partilhadas? Ecologia

particular de um lugar...

3.4.2. – O dispositivo Chá-de-Lírio

Chá-de-Lírio. Segunda-feira. Hoje temos como convidado o Marcel (Osama). Estão

presentes: Bruno Logan (redutor de danos da convivência), Wendell (convivente), Maurício

(convivente), Willy (redutor de danos da convivência), Claudio (convivente e dormindo),

Rodrigo Cosme (convivente), Flávio (convivente), e eu.

Marcel atualmente gerencia um CAPSad em Embu das Artes – é assim que começa se

apresentando. Diz que veio após conversar com a Robertinha (equipe campo da Cracolândia –

É De Lei) sobre sua pesquisa de mestrado cujo título é, até então, A Cracolândia muito além

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do crack. Seu objetivo é pensar política pública, identificar os sujeitos sociais que habitam ou

residem pelo território da Cracolândia. “Quem são essas pessoas? O que precisam? O que

querem?” - são suas perguntas. Para isto, possui um protocolo com questões abertas e a

proposta de facilitar este Chá-de-Lírio seria a possibilidade de se aproximar de alguns deles

que resistem/ habitam ou já residiram/habitaram a Cracolândia.

“Já vivi dez anos nas ruas! - relata Wendell, acrescentando que o problema não é viver

nas ruas, que “pode ser de boa se você consegue estabelecer um valor de si.” Diz também que

tem “neguinho que não volta pra sua 'quebrada' e fica lá na Cracolândia, porque se voltar,

morre, às vezes, 'rateou' alguém, tá 'corrido' da maloca!” Chegamos a um pensamento de que

a Cracolândia é também um espaço de proteção das marginalidades, como também

arregimenta um status.

Marcel segue ainda colocando que lhe interessa pensar na pesquisa quais são as

questões dessas pessoas, o que ainda as move. Há uma fala coletiva de que a Operação

Cracolândia surge para “impressionar os gringos, enquanto nosso povo tá morrendo.” Vamos

aos poucos qualificando quem habita pelo território da Cracolândia e alguém lembra de um

senhor, que toca cuíca e escuta Djavan. Ao final, coloca-se a resistência na Cracolândia

também como uma resistência psíquica, pois resiste-se aos modelos hegemônicos, e cria-se

outros mundos, ou jeitos de se agenciar coletivamente. (FREI, 2013). Mas qual seria o limite

entre o intervir e não intervir? O que menos queremos é que virem trapos – nos alerta

Deleuze. Mas o que e quem é o trapo para nós? E para você? O que nos diferencia e o que

nos aproxima da condição de trapo? Desfiladeiro estreito...

*

Reparar naquilo que tem para oferecer, encaixando no acontecimento. Conjunto dos

micro-ajustes e encaixes que permitem o manuseamento em ato dos encontros. Neste outro

Chá-de-Lírio, é o pesquisador-em-mim que abre-junto os trabalhos. Estão presentes Aécio,

Francisco, Diego e Bruno Logan.

Parece que estamos como que em uma praça, uma grande paideia, ou ágoras que

inventam e põem em relação diferentes modos de viver. É preciso colocar-se na roda,

produzir-se no processo de produção daquele encontro, (re) inventar-se nos lugares onde a

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lida acontece, onde todos podem ser “uma família” e estar no mesmo barco. Fora preciso falar

do pai paranóico que suicida, do primo que é morto pela “guerra às drogas”, de que Psicologia

e modo de pesquisa se fala. De como todos chegaram até ali.

Ali Aécio diz que o É De Lei é uma experiência que brota, que chegou neste espaço a

partir de “umas meninas de uma balada rastafári”, que ali é um espaço de se compartilhar

opiniões, que deseja fugir da corporação do Estado. Está cansado de pensar, mas a RD é uma

“coisa para aprender a falar sobre, é um projeto incompleto.” E acrescenta: “E se as pessoas

não internalizassem as leis do proibicionismo, como seria? Como criamos um princípio de lei

de uma liberdade que a gente precisa?” Seus questionamentos atuais são quanto ao mau uso e

o bom uso. Que linha tênue hein, Aécio. Como nuançá-la? Aécio ensaia respostas “de que é

preciso reparar melhor em qual o problema, de fato, que a pessoa tem”.

É ali também que Francisco descansa, “não faz raiva a ninguém”, tem companhias,

“tira o stress”. Frequenta o É De Lei há mais de dez anos e foi neste espaço que encontrou

apoio e suporte para dar conta de questões dificéis de sua vida. Na mesma linha, Diego

reconhece o É De Lei como espaço de troca e passagem de informações: “No início não

dialogava, mas aqui você aprende a saber de suas responsabilidades, e mesmo não sendo uma

obrigação a cumprir é preciso ter/construir a sua conduta própria. A sua questão é você que

cria, são os planos para si”.

Aqui nesta praça temos vários diferentes instituindo seus modos de vida sem o

compromisso funcional de ter que realizar uma função única e específica. Muitos estão,

inclusive, em produção. São vários se intercedendo. “Não são as relações que variam. São as

variações que se relacionam” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 120). E é por isso, que há

os que vão lá apenas para ver os outros. Há outros que vão só por ir e há os que vão para fazer

alguma atividade própria, como a de produzir as chances de uma saúde. No entanto, o que

comuna na praça é que:

“[...] o acontecimento é a regra e os encontros são a sua constitutividade. Nela há muitos ‘entres’. Não há regra a ser imposta, não há funcionalidade a

priori a ser obedecida. Os coletivos que aí estão constituindo-os estão em

pleno ato do acontecer, podendo ou não se expressar para o outro, ou ir em

busca do outro, como forma de ampliar as muitas possibilidades de encontros, mas deixando os sentidos dos fazeres acontecerem em suas

muitas multiplicidades. A possibilidade de compreender esta convivência

contaminante produtiva e criadora, do diferente em nós...”

(FEUERWERKER & MERHY, 2011, p. 291).

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O Chá-de-Lírio se torna lugar de encontro para que todos possam pensar, propor e

criar seus melhores modos/jeitos de andar a vida, discutir diversos outros assuntos que não

necessariamente estão ligadas às questões da RD. Aqui também uma primeira pista é trazida

para pensarmos como se dá o cuidar convivendo, o conviver cuidando. Ela pode ser

encontrada na palavra confiança, con-fiar, fiar com, tecer com, composição e criação com

outro/outrem, ética do viver junto.

A queda de suas vidas, quando eles não mais as sustentam, ali se faz presente, ao

poder compartilhar a experiência de con-viver com o vírus HIV, de como é sobre-viver como

profissional do sexo, por exemplo. Con-vive-se e sobre-vive-se junto, ao lado. Podem pensar

sobre isso, questionar seus modos de vidas, criar novas conexões com aquilo que suas vidas

ainda não experimentaram. A confiança é fundamental e vital, é a aposta de que a experiência

compartilhada amplia nossa potência de agir ao fazer existir a variação.

Vamos assim apostando na riqueza deste plano. Só podemos seguir adiante a partir do

que o plano da experiência pode oferecer de ancoragem em um plano comum. Discussões

coletivizadas e fluidas sobre a proposta da pesquisa indicam a emergência da confiança dentro

e além do grupo. Trata-se de “fazer junto”, linhas de conversa são traçadas conjuntamente na

busca por vincular-se e compor com esse plano. O que está em jogo neste “regime de

contratação” é manejarmos uma forma de criar uma zona de interesse que nos vincule.

Seguimos na dimensão processual de cultivo da experiência de pertencimento e confiança

no/com o campo.

3.4.3. – O dispositivo oficina de vídeo

“Num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um

bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma

multiplicidade. Nós, feiticeiros, sabemos disso desde sempre.”

(DELEUZE & GUATTARI)

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Estamos todos no É De Lei assistindo a um noticiário sobre o Small Nambas, uma

tribo do Pacífico, situada na Ilha Vanuatu. Atentos, os conviventes aguardam o início da

Oficina de Vídeo ao passo que se concentram no assistir a cerimônia de preparação para o

novo chefe do Small Nambas. No que o noticiário pode se aproximar do momento atualmente

vivido pelo É De Lei com a nova presidência, na véspera da escolha da representação do

convivente? Em dado momento do noticiário, a repórter explica que para compor a

sonoridade do ritual de inauguração do novo chefe, árvores, troncos e galhos também

compõem a orquestra.

*

Interrogações que o acontecimento nos coloca: o quê, no que aí está? Começamos pelo

meio. “Cada acontecimento é 'o que tem' e a entrada em relação faz emergir o seu sentido-

direção como plano comum a ser cuidado-assistido num compromisso com a sustentação

continuada.” (EUGÊNIO & FIADEIRO, s/d). Assumir aqui é tomada de posição: assumir a

responsabilidade, gerir as consequências de pesquisar no viver juntos, analisar implicações.

Acionamos a paragem, depois a pausa, agora, ensaiamos uma permanência.

Re-paramos na vizinhança. Vizinhança entendida de um modo alargado. Estamos em

blowup38 (ANTONIONI, 1966; LIMA SILVA, 2014). A ida a campo envolve algum grau de

afastamento do meio familiar. Buscamos experimentar um estranhamento. É preciso

introduzir uma irregularidade na continuidade familiar, há uma interrupção do fio regular do

pensamento e da vida. A situação da pesquisa oferece atrito, e é esse atrito que impulsiona o

pensamento, que traz novidade. Essa é a dificuldade que está em jogo no trabalho de campo e

não necessariamente as agruras de preâmbulos convencionais (CAIAFA, 2007). Afirma ainda

Caiafa que "é preciso estar disponível para a exposição à novidade, quer se a encontre longe

ou na vizinhança. Trata-se de uma atitude que se constrói no trabalho de campo. É que o

38 Em uma famosa película intitulada “Blow-up” (1966), o cineasta Michelangelo Antonioni nos apresenta um

fotógrafo que através de inúmeras ampliações de uma cena vai abrindo caminhos para sentidos que não eram

óbvios no início da trama. O personagem principal é um fotógrafo de moda que interpelado por uma cena em um

parque tira inúmeras fotografias. Quando as revela, se afeta por um recorte de uma. Vai, aos poucos,

aproximando e ampliando sucessivamente, entre movimentos de olhar e deixar ver. Aqui nos inspira um método investigativo, como bem coloca Lima Silva (2014), que se faz interpelado e ao mesmo tempo com recortes,

aproxima-se e afasta-se ampliando.

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estranhamento não está dado, é algo que se atinge, é um processo do trabalho de campo"

(p.149).

A relação com os participantes deve ser de agenciamento, de composição entre

heterogêneos (DELEUZE & GUATTARI, 2014; DELEUZE & PARNET, 1998). E este

agenciamento se dá como relação de co-funcionamento, cultivando um tipo de simpatia, que

não é mero sentimento de estima, mas uma composição de corpos envolvendo afecção mútua.

É essa simpatia que nos permite entrar em relação com os heterogêneos que cercam, agir com

eles, escrever com eles.

Afinamos aqui a proposta e a aposta de nossa cartografia que é desenhar a rede de

forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, na tentativa de dar

conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para isso é preciso, num certo

nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças. “Se deixar levar” não se trata de mera

falta de controle de variáveis, mas de ausência do controle purificador da ciência

experimental. Estamos no coração da cartografia e nos encontramos sempre na situação

paradoxal de começar pelo meio, entre pulsações.

*

A Oficina de Vídeos inicia-se às 15h30, e ocorre sempre às quintas-feiras. Bruno Rico

é o profissional facilitador do encontro junto com Clarice – estagiária da Terapia Ocupacional.

Bruno apresenta as imagens que foram produzidas no CAPS Adulto Cidade Ademar. Junto ao

Bruno e a Clarice (que também trabalha no referido serviço), alguns conviventes como Aécio

e Paulo cobriram o bloco Loucos pelo Carnaval realizado por este CAPS. A ideia é que o

material fique pronto e editado daqui a 15 dias e que seja marcada uma exibição para/no

serviço em questão.

Bruno também acrescenta que nesta mesma data de apresentação do vídeo poderiam já

iniciar a produção do documentário sobre as mãos, pois já era proposta daquele grupo

trabalhar com outras estéticas do corpo, com os gestos das mãos, no caso. Clarice explica a

importância da participação de todos, seu protagonismo, sua autonomia. Há uma escolha

coletiva dos planos, uma cuidadosa edição, discussão dos takes, procura de closes. Diego

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sugere que não se mostre o bloco logo no início do vídeo, sugere que haja uma descrição do

bloco. Bruno pensa um texto para o final do vídeo com a descrição.

*

“Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele

tem seus modos de matilha, mais do que características, mesmo que

caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto em

que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem

um fascínio pela matilha, pela multiplicidade.”

(DELEUZE & GUATTARI)

Aécio faz perguntas a Willy sobre as reuniões e este lhe responde que terá reunião da

convivência às 18h. Confirmo também minha presença e Aécio questiona: “você vai pra

reunião? Você é da cúpula? Eu achei que...” Respondo que não sou da cúpula, retomo o que

discutimos no Chá-de-Lírio sobre o projeto de pesquisa, sobre acompanhar as práticas em

Redução de Danos que se dão ali e que me veio alguns questionamentos sobre a construção

diária de um conviver, por isso irei à reunião. Aécio diz que está construindo um conjunto de

reivindicações. “Estou tentando achar meu lugar de representação.” Os efeitos disso já são

sentidos pela equipe de profissionais que comentam o seu empoderamento de “analista

institucional” (aspas do cartógrafo).

Aécio busca não exercer um fascismo de matilha, como dizem Deleuze & Guattari

(2012b), diante de sua nova posição no seio da mesma como representante dos conviventes,

instala-se na borda. Que função temos nós em relação ao bando, à matilha? Aécio coloca que

tem anotado tudo em um caderninho que segue com ele. Estamos nós com nossos caderninhos

em mãos (Diário de campo – 25 de abril de 2014).

A viabilidade do trabalho vai se fazendo a partir da disposição não apenas de “estar

com eles”, mas de “estar entre eles”. Como comenta Caiafa (1985, p. 23): “É impossível estar

com eles sem estar entre eles, o bando rejeita qualquer 'observador,' a ponto de nem ser

possível desejar isso.” “Estar entre eles” consolida-se em também fazer amizade. Aécio fez as

vezes daquele amigo em particular, “fenômeno de borda” ou “anômalo”, aquele “indivíduo

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excepcional” com quem se trava relações de aliança para acessar o devir-animal da matilha

(DELEUZE & GUATTARI, 2012b).

Não é possível aproximar-se da matilha sem contagiar-se. A aliança é um pacto-

epidemia e o contágio é também uma comunicação transversal, que se processa atravessando,

fazendo-se passar “entre” (EUGÊNIO, 2006). O que se processou no pesquisador-amigo foi

compor com a produção da filmagem para o documentário sobre mãos. Compor com suas

mãos, literalmente, deixando-as serem filmadas, dizendo o que faria se não as tivesse: que

acionaria outras forças do corpo, outros sentidos, bem como seguindo o trajeto de montagem

das cenas e do roteiro, ensaiando junto. A cena arrastou-me com ela em devir. No entanto, não

se trata de ter-me tornado um deles, nem de imitá-los, nem de identificar-me com eles, até

porque não há identidade unívoca no bando. É de multiplicidade que se trata.

Que todos soubessem que eu era um pesquisador em campo era algo que me

diferenciava, decerto. Marcávamos nossas distâncias. E assim fomos nos inspirando, como

propõem Álvarez & Passos (2009), nos primeiros capoeriristas angoleiros que encaravam as

rodas e as festividades como tempo de vadiação. E que mesmo atravessados pelos tempos do

trabalho que controlam o corpo, aproveitavam as horas vagas para vadiar, ou melhor, para

parar o tempo do relógio e contemplar o tempo dos eventos.

Abreu (2005), a respeito da capoeira na Bahia do século XIX, destaca a posição da

"cocorinha" característica do jogo da capoeira: modo de ficar agachado, como que sentado

nos calcanhares sustentando o corpo sob os pés. Nem em pé nem sentado, o capoeirista fica

entre essas posições, intermediário, em meio ao que se passa. A cocorinha é a posição em que

os angoleiros iniciam, ao pé do berimbau e diante da orquestra, o seu jogo:

“A cocorinha. Eis aí outro cruzamento do mundo do trabalho do negro com a

capoeira: a posição de cócoras em que os ganhadores ficavam (em repouso), às vezes horas a fio, como se não quisessem nada, desbastando o tempo,

esperando a hora passar, adivinhando, intuindo, espreitando uma nova chance

de trabalho. Torcendo para surgir um novo biscate, pois o trabalho do

carregador (principalmente ligado ao cais) também dependia do acaso, das flutuações da maré, do tempo, das chegadas e saídas dos navios, da força da

economia, da quantidade de carga disponível etc. Na beira do cais, enquanto

a hora da labuta não chegava, podiam ficar esperando o relaxamento da vigilância policial para armarem rodas de jogos proibidos, cultuar vícios e

iniciar as vadiações. O hábito da cocorinha se repetido automaticamente

pelos carregadores, todos os dias podia funcionar como um rito. Um rito de

repouso e espera (faces da preguiça) - estado de vigília - no qual pessoas que

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dispunham de tempo indeterminado para assim ficar, terminavam por marcar

um lugar, estabelecer um ponto fixo - seu canto” (ABREU, 2005, pp.103-

104).

Através da beleza dessa cena, encontramos todos os elementos da vadiação e de sua

estreita relação com o tempo do cultivo e da habitação em um território existencial. O

primeiro elemento presente é o repouso. Ficar horas a fio numa mesma posição. No entanto,

não podemos confundir esse repouso "como se não quisesse nada" com um relaxamento

passivo ou dispersão da atenção e um desligamento dos acontecimentos, mas a concentração

de uma estranha atenção desfocada, uma espreita atenta a diversos eventos inesperados.

Repouso dos movimentos automáticos e espreita aos eventos, "do acaso, das flutuações da

maré do tempo, do relaxamento da vigilância policial …"

E por falar nisso...

*

No dia 17 de abril de 2014, antes de chegar ao É De Lei, uma parada para um lanche

na entrada da Galeria do Reggae. Em alguns segundos, pessoas correm apressadas, são

ambulantes fugindo dos ‘‘gambés’’ (aspas do cartógrafo).39 Uns conseguem escapar (suas

vidas já são um escape diário!) se refugiando em pontos da Galeria. OutroS não, estão ali na

frente da construção do novo SESC (o SESC 24 de maio) sendo revistados (ou revisitados)

pelos tais “gambés”. Eis o que se apresenta ao nosso entorno. Terminado o lanche, pego o

elevador até o 4º andar. Lá estão alguns dos que, em outras ocasiões, também são ou já foram

“visitados” (aspas do cartógrafo) por estes “gambés”.

Qualquer fluxo incerto afeta a saúde da urbe. A cidade da ordem do capital doma a

vida tornando-a asséptica. Gradativamente, a vida asséptica torna as ruas lugar temido por

onde se passa sem nenhuma surpresa. A polícia parece ser um dos gerentes de nosso

contemporâneo traçado urbano. O que aconteceria se o coração não conseguisse mais

bombear sangue? A rua morre?40

39 Gíria bastante utilizada pelos homens da rua para se referir aos policiais.

40 Baptista (2010).

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*

Estamos agora na Oficina de Vídeo, exatamente na sala onde ficam os computadores

do É De Lei, um armário que, às vezes, alguns profissionais retiram biscoitos, uma pequena

prateleira com livros e alguns boletins informativos do É De Lei, uma TV, onde muitas vezes,

conecta-se a um dos computadores para que se possa exibir vídeos e/ou produzi-los

coletivamente. Ao lado, um relógio em formato de vinil sem funcionar. Próximo ao armário,

temos um painel de fotografias apoiado na parede. Na direção transversa à minha, um janelão

com grade. Dele, observamos o lado externo ao É De Lei. Do nosso lado esquerdo, um

banheiro e uma escada que nos leva ao espaço administrativo. Cada uma dessas coisas tem

nome. As paredes decoradas, tudo fala.

A oficina de vídeo oscila entre “curiosos” e participantes, muitos transitam entre ela,

uns montam seu território, constroem ativamente, outros nem tanto. Interesses vários. Do que

o fio de minha memória de cotovia recorda, passou por aqui os conviventes Rogério, Aécio,

Valdir, Wagner, Diego, Alex, Jucimar, Rodrigo Cosme, Francisco, Wanderson, Paulo,

Wendell, Flávio e Rodrigo Silva. Além destes, um ou outro colaborador interessado em

conhecer e contribuir voluntariamente com a proposta da oficina esteve por aqui. Na oficina,

todos podem sugerir projetos e Bruno nos diz que teria uma boa e uma má notícia. A boa é

que cada vez mais tem aumentando o número de envolvidos na construção/produção da

oficina. A má é que o pouco espaço físico não tem dado muito conta desse número de pessoas.

Bruno relembra as intervenções do projeto Inside Out41, aqueles rostos anônimos que foram

carregados nas costas de participantes da oficina pelas ruas de São Paulo, lembra um filme de

terror produzido, tendo o sangue representado por ketchup. “Afinal, não temos os recursos da

Broadway” - brinca. Frisa também o stop motion (animação) produzido e o documentário O

dorminhoco, filme onde um cara espera muito que algo aconteça, que sua amada apareça e

isso acontece exatamente no momento em que ele dorme. Clarice interpretou a “amada”

(aspas do cartógrafo). Bruno acrescenta que todos esses vídeos estão disponíveis no site do É

De Lei e Aécio coloca que nessas produções sempre é importante pensar as maquiagens.

Ao relembrar tudo isso, Bruno pensa em afinar melhor o documentário sobre mãos

que, segundo ele, dá a pensar a mão como gesto inaugurador, a mão que escreve, que dá a

cachimbada, que pega o alimento, a mão para nada. Pontua que também não deseja tornar o

41 Mencionado na Linha 3.1.

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documentário metonímico, isto é, de tomar a parte pelo todo, como se a mão pudesse falar de

todo o corpo. “Dá para saber o que é uma pessoa pelas mãos?” - questiona. “O que fazer sem

as mãos?

Ao vermos alguns vídeos que foram filmados no CAPS Cidade Ademar, todos

comentam. Algumas mãos parecem medicadas; Clarice coloca que quando se deixou de filmar

sob a mesa, as mãos passaram a gesticular mais, Diego diz que algumas mãos tinham

articulações involuntárias. Valdir sugere que se filme as mãos de reikistas em trabalho. Na

última cena, as mãos do farmacêutico do CAPS, as mãos que dão o remédio (Diário de campo

– 17 de abril de 2014).

Na oficina de 24 de abril de 2014, todos estão bem ansiosos, pouca atenção,

dispersão... Rogério quer entender um pouco da proposta, pois o grupo sairá para filmar

algumas mãos que circulam pela Galeria do Reggae. Nesse fazer coletivo, todos preparam os

equipamentos. É hora de sair para filmar. Clarice sugere que as mãos de Aécio sejam filmadas

e este diz precisar antes de um cortador de unhas para “maquiá-las”. Novamente, dispersão...

Bruno e Clarice comentam que hoje está meio louco, meio bagunça... Diego e Wagner são os

mais atentos. O primeiro refuta: “Não me inclui nessa estratégia de bagunça não!”.

Bruno sugere que Rogério monte o equipamento de filmagem junto com ele. Diego

sabe bem dos procedimentos e como escolher a lente, a milimetragem, a tonalidade e o foco

da câmera, e Clarice o elogia, afirmando que ele já pode substituir o Bruno na oficina. Diego

se afirma como insubstituível: “Sou original, que nem o guaraná Antártica!”. Bruno pede que

ele verifique se há um cartão de memória na câmera. Diego responde: “Don´t have care!”.

Sempre espirituoso, alegre. Junto com Francisco, ensaiam uma primeira imagem, verificando

como está a câmera. Rodrigo Cosme questiona qual a moral da história para o documentário,

não há resposta. Um para nada, no sentido de Deligny ao falar da aranha que tece sua teia não

para capturar a mosca (PELBART, 2013b).

Saímos. Nosso itinerário inicia com a filmagem das mãos que jogam xadrez. Ainda no

4º andar da Galeria, as filmagens seguem pelas mãos que costuram. O espaço é a sala de um

costureiro, onde Cláudio, também convivente do É De Lei, trabalha. Aécio filma a Galeria ali

de cima. Clarice chega e sugere filmar suas mãos. Este aceita. Clarice com a câmera na mão,

questiona o que dizem as mãos de Aécio. Este diz que são mãos que abraçam, que dão

carinho, que comem, que tocam, mas também são mãos que executam gestos desagradáveis,

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que xingam. Clarice continua: “Como xinga essa mão?”. Aécio diz não saber como fazer

naquele momento: “É difícil dizer o que dizem as mãos...” (risos).

Seguimos, e, nessa potência do comum, o coletivo negocia as filmagens. Começamos

pelo elevador, filmamos as mãos da moça que conduz o elevador que nos leva ao É De Lei e

que também nos deixa à frente da Rua 24 de maio. Filmamos um cabeleireiro realizando um

corte, uma moça pondo dreadlocks. Esta deseja que se divulgue seu salão, questiona se não dá

para filmar o letreiro do salão. O grupo explica que o documentário é só sobre mãos e que

assim que ficar pronto, o salão receberá uma cópia. É o que se pode fazer e dizer. Há um

estilo e uma proposta.

Filma-se as mãos da “chapa”, o “chapeiro” em seu trabalho, em uma pequena

lanchonete. Filma-se as mãos que “bolam” um cigarro. Observamos uma gari realizando seu

serviço à frente da Galeria. Novamente, esse coletivo negocia com a mesma a filmagem.

Seguimos seu trajeto até certo ponto, filmando as mãos que varrem, as mãos que colhem o

lixo. Somos também embalados pelas sonoridades ali, música reggae.

No retorno ao É De Lei, Clarice e Aécio conversam mais uma vez sobre mãos. Ele

reafirma o quanto foi difícil falar sobre o que elas dizem. Clarice ressalva: “Não há problema,

isso quer dizer que você não diz qualquer coisa, se preocupa com o que diz”. Aécio sorri: “É

isso mesmo!”.

O documentário está quase sendo finalizado, juntar-se-á as mãos do CAPS Cidade

Ademar com as mãos da Galeria do Reggae. Ainda há mãos a serem registradas? Que gestos

ainda seguiremos acompanhando em seus exercícios? E nossas mãos, como andam? (Diário

de campo – 24 de abril de 2014).

Em 8 de maio de 2014, Bruno inicia colocando como o grupo poderia finalizar o

roteiro do documentário sobre mãos, retoma a ideia de filmar as mãos de uma quiromancista.

Diego relata que quando vai ao Centro Cultural São Paulo sempre procura livros sobre

quiromancia e cartas, gosta bastante de estudar sobre o assunto. Bruno sugere que se possa

pegar um desses livros como recurso de imagem para o curta-metragem.

Decidimos que vamos ao Pavilhão do Chá. Bruno diz que se a gente tiver sorte,

filmamos uma quiromancista. Paulo brinca: “Sorte é com ela mesmo”. Valdir diz que pode

convidar um amigo seu, que é quiromancista e mora em Parelheiros, para contribuir nas

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filmagens. Bruno acorda em telefonar junto com ele ao final da oficina. Alex sugere que o

grupo possa depois fazer um filme em relação à Copa do Mundo. Todos consideram a ideia

interessante. “A ideia da Copa é quente” (Bruno). “A ideia da Copa é cra(qu)(ck)e”. Bruno

também coloca o desejo de filmar em um antigo cinema que fica na Avenida São João e que

agora foi ocupado por um grupo de artistas que receberam fomento. “Lá poderíamos, pensei,

em fazer um filme de terror, tem essa estética” - sugere Bruno. Decidimos ir até lá, depois que

encontrássemos a quiromancista, conhecer o local, ver se surge uma ideia.

Começa o trabalho de preparar o equipamento antes de sairmos, o fazer junto. Alguns

saem da sala. Enquanto Bruno e Paulo organizam as câmeras, Clarice ‘‘ler’’ (aspas do

cartógrafo) as mãos do Diego. Estamos no preparo.

Tudo pronto. Estamos saindo. Jucimar e Santiago decidem nos acompanhar. Flanamos.

Mas o que é flanar:

“Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da

observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à

noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar

nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os

cantores de modinha das alfurjas da saúde, depois de ter ouvido dilettanti de

casaca aplaudirem o maior tenor do lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um

pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada

e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que

interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja. É vagabundagem?

Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência” (RIO, 2008, pp.

31-32).

Assim, em caminhada, passamos em frente ao Theatro Municipal, outros corpos

também em seus movimentos. O que há de comum naquele coletivo, naquele bando?

Diferentes vidas, diferentes maneiras de existir em conversações. “Corpos em experimentação

no espaço, ora tão elementares, ora tão intensos” (ALCÂNTARA, 2011).

À toque de benguela42, vadiamos relaxados e dispondo de um tempo a perder.

Despreocupados com as horas ou pelo menos não deixando que elas indiquem nosso rumo. É

42 Este toque pode ser usado no início de uma roda de capoeira regional, ou durante o jogo para acalmar os

ânimos dos jogadores quando o jogo esquenta. O toque comanda um jogo cadenciado, onde os movimentos são

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dia de brincadeira, de atenção às conversas, aos encontros, às disputas, sem pressa para

realizar o que se pretende, sem muitas pretensões.

Na espreita, estamos na espera dos acontecimentos. Espera atenta, mas não ansiosa.

Não há como guiar ou controlar a vadiação, nem muito menos treiná-la, a não ser na

convivência com situações propícias a ela, em “fazer com”. No meio do caminho,

encontramos com um “Jason” (aspas do cartógrafo). Paulo e Bruno pedem licença, filma-se

suas mãos. Há duas quiromancistas no Pavilhão. Uma delas não topa participar da filmagem.

A outra está em trabalho. Desistir? Espera-se um pouco e já conseguimos uma quiromancista,

ou melhor, uma mão que lê outra mão. Das mãos que se juntam em um outro encontro

possível. Aécio se dispõe a ser a “mão a ser lida” (aspas do cartógrafo).

Enquanto filmamos, o riso na vadiação nos acompanha através do Diego que partilha

conosco seus orixás. Defendemos nossa alegria como uma trincheira. Após a filmagem,

seguimos. Vamos agora ao Cine Art Palácio. Um rapaz nos recebe, explica um pouco o

espaço, vemos imagens de quando era um cinema pornô. Valdir filma. Subimos uma escada e

estamos numa grande sala que parece ter sido uma sala para assistir vídeos. Um grupo está

ensaiando.

Enquanto Valdir filma o que se passa, Aécio está em profunda concentração,

acompanhando o ensaio. Subimos mais um lance de escadas. Um espaço bem escuro,

possivelmente onde se faziam projeções. Bruno tem a ideia de filmar Paulo tocando gaita. Ele

é também trompetista (um fato curioso!). Um momento bonito. Sob a luz de um pequeno

refletor, filmam-se suas mãos enquanto a sonoridade do seu sopro nos enchia de

encantamento. Cada canto, um encanto (Diário de campo – 08 de maio de 2014).

No nosso último dia de gravação, há toda uma “gritaria” pela Galeria. Willy me

explica que está ocorrendo a eleição do síndico da Galeria. É lá que estão os componentes da

Oficina de Vídeo. Sandra (1ª tesoureira) também está lá como representante do É De Lei. O

grupo retorna agitado, principalmente Aécio. Este relata que estava filmando a eleição do

novo síndico, que “meteu a mão na câmera”. Alguém brinca que, pelo menos, filmou a mão

que derruba a câmera. Houve também algumas filmagens na rua com as mãos de alguns

quebrados e fluidamente transformados em outros. O jogo é conduzido mais no chão do que gingando e exige do capoeirista mais inteligência e malícia do que o jogo tradicional. Disponível em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Benguela_%28capoeira%29 (acesso em novembro 2014).

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transeuntes. Alex se despede, está indo morar no Guarujá. Todos lhe desejamos boa sorte, e

que se cuide (Diário de campo – 29 de maio de 2014).

Finalizamos o documentário no dia 07 de agosto de 2014. Bruno Rico o exibe pra

gente. Hoje na Oficina estamos só eu e o Aécio. Wendell está no computador e apenas

acompanha de soslaio. Rodrigo Silva nos observa pelo lado externo ao É De Lei, através de

uma grande janela em grade, sentado em uma cadeira que ele mesmo colocou e todos os dias

de oficina (hip hop ou vídeo), ela está ali. Montou seu território (Diário de campo – 07 de

agosto de 2014).

Com duração de seis minutos, o documentário traz toda essa experiência do vagar,

apreensão, segundo Pelbart (2013b), das coisas que o acaso oferece, onde não se trata de

encontrar o que já existe, nem mesmo o que se procura, mas de criar a partir desse vagar

aquilo que se encontra, “é uma pesca que cria o peixe” (PELBART, 2013b, p. 262). São mãos

que fazem o documentário, mas na verdade é todo um corpo que traça, como diz o autor, pois

o essencial é o traçar, não é uma mão que é “sua”, mas um desenho que é comum.

Desenho que a RD opera como prática in-mundo (ABRAHÃO et al, 2013). Através

desta mistura nos tingimos de/com o mundo. Nos contaminamos com o processo e nos

sujamos de mundo, atravessados pelos encontros. A partir deste dispositivo, vemos o corpo

exposto à uma experimentação com as mãos, somos afetados por uma outra experiência

corporal. Em vez de um mergulho, percorremos as superfícies da cidade, engajando-nos com

olhos atentos aos deslocamentos feitos pela contaminação com a microscopia da geografia

desta.

No ato inesgotável de compor, editar, montar e desmontar o documentário, sentidos

políticos de movimento foram acionados. Mobilidades desencadeadas por encontros. Que

mobilidade humana desejamos para as nossas cidades? Que política desejamos? Que políticas

de montagem estiveram disponíveis em nossas andanças? Movimentos improváveis

denunciam a força do gesto, que recusa a sina do eu. Cada gesto torna-se um destino, potência

invisível, vida indecifrável. Na urbe invisível, a cidade ainda vive.

Deixar falar o material produzido é deixar falar a própria cidade e os corpos que nela

vivem, trafegam, transitam, inventam, produzem:

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“Mãos/mas sem pressa/ a fazer o pão/ a pegar o bolo/ a matar a sede/

orquestrando a política/ a dizer a verdade/ por tampar os olhos/ o fardo

amargo das mãos que herdaram o chão/ A ponta da seta do pare e diga/ siga/ O que é ecológico /puxar/ tirar da gaveta/ Com as mãos/ um maço de rosas

secas/ por apenas dizer a verdade/ rosto a rosto/ olhos nos olhos/ negras!

Eram as mãos do operário nas teclas/Ao contrário do pianista/ em preto e

branco” (Aécio, 2014).

3.4.4. - O dispositivo oficina de hip hop

"Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se

há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E

algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhes

arrancava da boca. Mas lembro-me de que eram palavras moduladas

como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do

ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que

chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras

brilhantes como as escamas dum peixe, palavras grandes e desertas

como praias. E as suas palavras reuniam os rostos dispersos da

alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento,

frescura das águas, oiro do sol; silêncio e brilho das estrelas."

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

De perto em perto, seguimos, entre proximidades e distâncias. A sustentabilidade do

entre é oferta de lugar comum para o que converge e o que diverge na investigação partilhada.

Estamos entre outros e outros, entre-muitos de uma comunidade. Os homens deste lugar são

como continuição das águas, como “formigas carregam suas latas.

Devaneiam palavras” (BARROS, 2013b, p 22). É o escuro que encosta neles para ter vaga-

lumes:

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“[...] eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos

cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio

incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações" (Andresen,

2014, s/d).

“Arre, ele está misturado em tudo” (ROSA, 1994, p. 8).

*

É no chão que tem altares e lagartos. Aceita-se entulhos para o poema. Música dos que

vivem à escória vira reza. Escritura como inventário do descartável, território baldio. Como

no grito dos feirantes costroem sua beira de calçada. Quem é sua poesia? Como se fossem

palavras caídas no espinheiro, escrevem como que extraíssem os nervos do entulho, como que

puxassem com um barbante sujo umas latas tristes. Escrevem a ponto de traste.

Quem é sua poesia?

*

No chão, temos livros da Cecilia Meireles, do João Cabral de Melo Neto, sobre rap e

sobre quilombos como resistência ao escravismo. Willy é o redutor de danos facilitador da

oficina e me fala que isto compõe a estética da mesma. Sempre, no início, o coletivo espalha

aqueles livros pela sala. Junto aos conviventes, Willy diz que o ser humano deve se apropriar

de todas as ferramentas, saber como as coisas são feitas e todos os conviventes, então,

experimentam pôr uma “batida” (aspas do cartógrafo) através da base do programa que o

Willy usa ali, o Fruity Loop.

Willy me questiona que som eu ouço com as “batidas” (aspas do cartógrafo) ensaiadas

pelos conviventes. Relato que se assemelha a uma abertura de algum show, “como se algo

estivesse prestes a começar” (aspas do cartógrafo). Algo que gagueja, algo inexato. A oficina

de hip hop, assim como a de vídeo, é também marcada por certo nomadismo inventivo. Por

ela, muitos passam e basicamente são quase os mesmos participantes da oficina de vídeo

(acrescentamos aqui o convivente Roberto).

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Questiono o que se pode produzir de sonoridades através desse programa. É Wagner

que me relata que desde rock até um som de violino. Pausa para o lanche. A oficina se

encerra. A ideia sempre é garantir a construção coletiva em um trabalho afetivo a partir do

som de todos. Willy fala que na próxima oficina poderíamos harmonizar o som.

"Qual o compasso do ruído ao desenrolar das linhas? [...] Para que serve a música

mesmo? Para que serve o ouvido? [...] A música feita de ritmo e ruído, de braço e tamanco, de

linhas que restam, braços que puxam, de chão e pés que batem” (TILOBA, 2014, p. 10).

“Como alguma coisa pode, rara, surgir do ruído?” (SERRES, 2003, p. 52).

*

“Isto não é um lamento. É um grito de uma ave de rapina. Irisada e

intranquila (...) Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de

alguém. Provavelmente a minha própria vida”

(CLARICE LISPECTOR)

O que há ali é uma espécie de palavrar, lavrar das palavras:

Lavrar (Etm. do latim: lavrare)

v.t.d. Arar, cultivar a terra, utilizando ferramenta ou aparelho agrícola; revirar.

Bordar ou realizar ornamentos em. Forjar ou cunhar moedas; realizar trabalhos em madeira,

pedra ou metal; Analisar ou explorar áreas de mineração.

Jur. Decretar ou prescrever (alguma coisa) por escrito; ordenar: lavrar uma lei.

v.i. Difundir ou difundir-se de maneira gradual. Desenvolver-se de modo progressivo.43

Em nossa segunda oficina, Willy nos explica que a ideia de hoje é escrever sobre o 13

de maio, data em que a Princesa Isabel assinou a Abolição da Escravidão no Brasil, em 1888.

“Existiu abolição? Existe liberdade, igualdade? Quem está na periferia consegue chegar em

alguns espaços? Com pensar a gentrificação?” – essas são algumas das inquietações do Willy.

43 Disponível em http://www.dicio.com.br/lavrar/ (acesso em outubro de 2014).

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Ele nos convida a também se inquietar com elas. Para quem não quiser escrever, Willy nos

diz que a oralidade está presente, que se pode recitar, “devolvendo no hip hop”. Enquanto

todos escrevem e somos embalados pelas sonoridades da banda de reggae Ponto de

Equilíbrio, Willy acrescenta que o É De Lei reabriu o momento de receber doações de livros,

pois “a ideia é socializar informações”.

É chegado o momento de todos compartilharem a escrita. O que Rodrigo Cosme

escreve como quem conta ao próprio 13 de maio de 1888 o que se passa hoje aqui no Brasil:

“13 de maio de 1888, aqui momento de crise, as pretas trabalham muito e ganham pouco.” -

esses são alguns trechos de seus versos. Roberto versa que é “um periférico nato, anda nos

becos garimpando alguma liberdade”. Willy finaliza agradecendo a “família É De Lei” como

sempre se refere a todos e coloca que o rap faz o que o Estado não faz. Semana que vem, pôr

os escritos no instrumental de hip hop produzido.

*

A virtualidade do si circula na roda. Ali articulam-se afetos. Todos em uma dinâmica

de vibração de forças vão combinando ritmos no encontro com outros corpos, discursos,

afetos, desejos. Busca-se perserverar a partir de uma capacidade infinita de movimentos.

A partir dessas referências do Willy, retomo os “capoeiras” nas comunidades negras do

século XIX na busca por laços de companheirismo, diversão e lazer diante da disputa de

territórios. Enfraquecidos em sua potência de vida e de luta, excluídos pela lógica do capital e

negociando ou competindo com aqueles que encontravam “alguma oportunidade”, tinham a

malícia e malandragem como estratégias de enfrentamento, peculiar performatividade,

diálogo corporal caracterizado pela elegância do gesto em detrimento da competição. Era uma

luta dançada com ginga, diálogo que se estabelecia na relação agonística entre os jogadores. O

potencial da luta estaria diretamente ligado com o lúdico e com a dança. A luta era fermento

para a liberdade, arte de re-existir como afirmação e invenção na construção de sociabilidades

(CESSE NETO, 2014). Re-existimos, a que será que se destina?

O canto passa a ser também reza e é marcado por elementos ritualísticos. A

“mandinga”, como assim é chamado esse canto, é valorizada nas rodas de capoeira e quase

sempre marcada pelas brincadeiras e pela teatralidade. Para que haja essa dança-luta na roda e

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na vida, o reconhecimento do próprio corpo é primordial e permite o acolhimento de ritmos

mais lentos (idem, 2014).

A beleza do jogo nasce do prazer da criação e não de modelos estéticos aceitos

socialmente, pois não se trata de uma coreografia rígida, não visa agradar quem assiste a partir

de um referencial pré-determinado. O que se produz é fruto do encontro. Cada um vai

expressando sua mandinga desenvolvendo artimanhas no atravessamento entre a música, em

sintonia com a mesma, criando diferentes combinações de movimentos, pensando

musicalmente com o corpo a cada canto e toque dos instrumentos que se tenha disponíveis

(ib., 2014).

*

“Basta que o ódio esteja suficientemente vivo para que dele se possa

tirar alguma coisa, uma grande alegria, não de ambivalência, não a

alegria de odiar, mas a alegria de querer destruir aquilo que mutila a

vida” (GILLES DELEUZE).

"Trouxe comigo para a luta um ódio profundo, dia a dia mais intenso

devido ao espetáculo revoltante dessa sociedade em que tudo é reles,

ambíguo, feio, em que tudo é um entrave à expansão das paixões

humanas, às tendências generosas do coração, ao livre

desenvolvimento do pensamento."

(Palavras proferidas pelo anarquista Émile Henry levado à guilhotina

em 1894 aos 22 anos de idade em seu julgamento. Sua demolidora

crítica se dirige ao direito, ao tribunal e à sociedade).

Após o término da oficina, Rodrigo Cosme recolhe um dos livros que constroem a

estética da oficina. Este livro tem como título Sociedade do Sonho. Conversamos sobre como

é estar ali no É De Lei, e esse coloca que “tá no convívio é não tá no convívio. Não é evitar o

consumo, mas equilibrar as coisas, pôr no lugar, não é isolar”. Indago-lhe a escolha pelo livro,

questionando sua relação com a sociedade. Diz não ter interesse em fazer parte de sociedade

nenhuma e, principalmente, desta que vivemos que, segundo ele, é desrespeitosa, injusta e

hipócrita. Finaliza com um “não sou santo”.

O que teria sido produzido no corpo deste homem para que esse efeito de recusa

absoluta ao modelo hegemônico de vida capitalística se instaurasse? O paradoxo ali

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evidenciado: uma sociedade que não aceita santos, mas que se sustenta na hipocrisia, na

injustiça e no desrespeito. Rodrigo Cosme renuncia a tudo isso. Mas e agora, o que se poderia

anunciar? Que tipo de poder da vida poderia ser possível? “Liberdade caça jeito” – diz

Manoel de Barros (2013a, p.28). Rodrigo Cosme caçava um (Diário de campo – 16 de maio

de 2014).

*

Tudo é caso de sangue44. Sangue é movimento45. Com o sangue de quem foram feitos

os seus olhos?46

Willy nos apresenta uma música sua – Amor de nossas vidas. Entramos em uma

discussão sobre o descobrimento do Brasil. Quem descobriu o quê? E o que foi feito nesses

500 anos? Aécio diz ter uma curiosidade, algo que, até aquele momento, ele não havia

pensado: “E o que havia antes do descobrimento? Queria descobrir o que havia antes do

descobrimento!”. Willy lhe sugere algumas leituras e continua relatando que o rap é sua vida

e não ganha pelo mesmo. Veio do hip hop, e tudo começou quando era MC, até que passou a

ouvir outras “paradas”. Acrescenta por que pôs o amor como título de sua música, apesar

desta tratar de questões densas: “Não podia ser ódio, o rap nasce do protesto, mas você não

precisa ser alguém que fica 'de canto' e só usa roupa preta. Importante pensar na raiz,

questionar a sociedade, mas apontar e produzir/construir transformações”. Foi assim que

Willy foi se aproximando também do reggae e do baião, pois achava que o rap estava

perdendo um sentido, “ficando vazio, era sempre o mesmo discurso”. Era preciso compor

com outros planos.

Rodrigo Cosme nos diz que escreve desde os 18 anos e que concorda com o Willy: “O

rap pode ter uma visão crítica, sem fugir do ritmo da poesia. Fazer pensar, mas também mexer

para lá e para cá”. Willy segue apresentando o histórico do rap, nos dizendo que “nos anos 80,

se começou a experimentar som até de lata”.

44 Deleuze & Parnet (1998, p.75).

45 Baptista (2010, p. 70).

46 Haraway (1995, p. 25).

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Rogério, depois de bastante tempo sem aparecer no É De Lei, chega à Oficina. Está

trabalhando como padeiro. Willy propõe um intervalo, pois é hora do lanche. Aécio e Rogério

iniciam uma conversa sobre a existência do poder. Aécio se questiona: “Até onde vai o meu

poder, a minha pessoa? Existe poder maior que o poder do Estado?”. Sorrindo, Rogério lhe

responde: “Existe, nós!”.

Retomamos a oficina. Willy traz ainda alguns elementos das raízes do hip hop. “Raiz

negra” - nos afirma. Acrescenta que o hip hop possui atravessamento com o grafite que,

segundo ele, surge também como demarcação de território. Diz que começou no hip hop aos

11 anos. Era um modo de poder falar as coisas que o incomodava. “O hip hop me

alfabetizou”. Willy diz que a alfabetização escolar mesmo só veio aos 15. “Antes eu era

apenas empurrado pelo Estado, passando de ano de qualquer jeito, como ocorre com

frequência no nosso sistema de ensino público”. Willy compartilha conosco sua revolta. Nos

põe para conviver com ela, transmutando-a em um plano sensível.

Assim, Rodrigo Cosme compartilha conosco sua letra, diz se tratar de uma letra

coletiva, chamada Terapia Ocupacional, improvisa-a no instrumental produzido ali através do

programa Fruity Loop. Em partes da música, algo como “sou favelado até umas horas” ecoa.

Mas não como depreciação de sua condição, mas como uma voz potente minoritária, de uma

“altíssima pobreza” (AGAMBEN, 2013a).

Ao final, Willy agradece a todos, diz que o rap se constrói nesse jeito artesanal de

fazer e que, no próximo encontro, trará mais instrumentais como jazz com hip hop, hardcore,

reggae com jazz. Finalizamos ouvindo O salto, de O Rappa (Diário de campo – 30 de maio de

2014).

*

O que faz manter junto essa rede de fiação? É o canto aberrante que cria agenciamento

territorial? Arquitetura da oficina construindo uma arte de morada para os que ali estão, doses

sonoras de re-existência a partir de um conjunto de marcas de um corpo, o canto de um

pássaro. A consistência das matérias de expressão vai se dando quando os temas rítmicos e

melódicos ressoam um novo canto, quando emana das forças da terra, das forças de um

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povo47. “Há aqui muitas maneiras de enunciar uma mesma diferença” (DELEUZE &

GUATTARI, 2012b, p. 157).

São ritornelos que colhem ou juntam forças no seio do território. São ritornelos de

afrontamento, de infância ou de pássaro, canto folclórico fabricando tempo. Ritornelos

populares, de “caixa de música”, ritornelo Fruity Loop. Imensos cantos de um povo,

individuações de multidão, agrupamentos de potência. E eram vozes como que de um devir-

matilha... Devir-expressivo do ritmo.48

Expressividade que faz território pela melodia. Pelos seus cantos territoriais assinam

um nomos musical, um estilo. Agora estamos em casa, ética como casa. Arrisca-se uma

improvisação, lança-se junto para germinar linhas de errância em um percurso costumeiro,

acolhendo os volteios, os nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes, nos

quais muitos componentes intervêm.49 Interferências e marcas contribuindo na criação de

novos componentes vocais para uma prática em RD:

“[...] mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há

sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou um canto de Orfeu”

(DELEUZE & GUATTARI, 2012b, p. 122).

Podem tranquilizar-se cantarolando quando tomados de medo no escuro, quando a

aposta até então era somente fincada na vontade de morrer. Entre a experimentação e a

prudência, o que temos é a afirmação de uma ética do improviso. Eis a aventura do ritornelo.

Sabe-se lá para onde estamos indo:

“O tema que você toca no começo de uma canção é o território, e aquilo que

vem depois, e que pode ter muito pouco a ver com o primeiro, é a verdadeira

aventura (COLEMAN, baixista de free jazz, apud COSTA, 2006).

47 Deleuze & Guattari (2012b).

48 Idem (2012b).

49 Ib., (2012b).

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E se a música é aventura do ritornelo - elemento de passagem sempre transitório

produzindo agenciamento territorial através de uma cantiga reconhecível - podemos pensar a

RD na tensão entre uma ética que nos incita a experimentação e uma ética que nos convoca à

prudência, produzindo uma “ética do improviso”, próxima ao que o pai do free jazz, Ornette

Coleman, já havia feito com a sua música, como coloca Costa (2006). Uma aventura de

improvisar continuamente, lançando-se eticamente à experimentação, com a sobriedade

necessária para fazer deste movimento um ato criativo. Talvez seja este o risco e o sabor de

um ethos operado pelo ritornelo. “Saímos de casa no fio de uma cançãozinha”

(DELEUZE & GUATTARI, 2012b, p. 123).

*

“O mesmo pé de que dança o samba, se preciso, vai à luta:

capoeira!” (Mestre Nestor Capoeira)

“Se não puder dançar esta não é minha revolução”. (Emma Goldman)

A oficina de hip hop de 25 de julho de 2014 se propõe a problematizar o ‘‘momento

criolo’’ que, segundo Willy, seriam aqueles momentos “em que pessoas se parecem, mas estão

se 'estranhando’. A oficina é embalada por sonoridades como Michael Jackson, Jimi Hendrix,

Led Zepelin, Pink Floyd, The Doors.

Rodrigo Cosme diz que hoje vivemos uma escravidão sutil, camuflada, mas que

ninguém pode ser constituído juiz nem reputado inocente. Willy retoma a cultura iorubá e nos

diz que esses povos falam de um processo chamado de africanização, uma espécie de volta à

civilização, de saída da barbárie, que seria insuportável. Nessa volta à africanização, as

pessoas poderiam trocar informações, existir enquanto soma de existência, pois cada um teria

sua verdade, seu saber, aprende de um jeito na vida. “Não se trata de evitar o conflito, mas

também não é desconsiderar o 'rolê' do outro, considerando só o seu como certo e adequado”.

Willy fala de Paulo Freire (2007), referenciando livremente sua célebre frase: “Ninguém

educa ninguém, mas também ninguém aprende sozinho. Nos educamos em comunhão”.

Coloca que tem vozes que há de se escutar, há de se saber escutar, pois só assim superaríamos

o barbarismo.

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Entramos em uma discussão sobre tradições e a possibilidade de romper com as

mesmas. Willy fala de passagens de violência intrafamiliar em sua vida, que não gostaria de

repeti-las em seus convívios atuais. Todos também compartilham situações de violência

intrafamiliar sofridas. Sugiro que possamos ver o curta-metragem Vida Maria50, que trata

justamente da tradição como impossibilidade da diferença ou do desvio advir. Sugiro também

que vejamos Abril despedaçado. Willy fala que depois pode trazer esse último filme.

Há um pequeno intervalo e, ao retornarmos à Oficina, assistimos o curta. Wagner fica

bastante emocionado ao término do curta. Willy nos questiona se as pessoas escolhem suas

condições ou elas são impostas. Wagner coloca que elas são impostas, já o Rodrigo Cosme diz

que o nosso modo de vida atual produz “o pai que vai pro bar em vez de conversar com o

filho”, mas que ninguém seria digno da escravidão, que seria ela a “tomar o tempo das

pessoas, deste pai que não têm tempo pro filho ou pra esposa, pra estudar, pra equilibrar a

mente e o espírito, cuidar de si e de seu relacionamento. Há condições impostas, mas há

possibilidades de liberdade”.

Willy segue questionando como romper com as condições impostas, onde buscar?

Rodrigo Cosme fala de “uma busca pelo conhecimento, que não dependa da Assistência

Social, do governo ou de atrativos deleitáveis. Há escolhas conscientes, ninguém é arrastado,

onde se planta tomate, se colhe tomate. O sistema influencia, de certa forma, nas escolhas,

mas há territórios livres. A sociedade influencia, mas não dá só pra se deixar levar, podemos

não querer, podemos 'bater o pé', não dá pra falar só como se existissem de um lado, os

inocentes, e, de outro, os culpados. Ninguém é constituído juiz, nem reputado inocente”.

Willy fala que suas questões eram apenas provocações, como convites para as diversas vozes

que ali estavam. Finalizamos a oficina com a música O Fim da trégua, do Medula (Diário de

campo – 25 de julho de 2014).

*

50 Curta-metragem em animação de Márcio Ramos (2006). Vida Maria narra a trajetória de várias Marias que são

impedidas de aprender a ler, pois precisam ajudar no sustento da casa, em vez de “ficar desenhando o nome”. Todas essas Marias são “marcadas a ferro” por um tradicionalismo transgeracional e por condições também

materiais que as impedem de apostar em uma possibilidade de invenção e criação nas suas vidas. Sempre as

mesmas Marias que só sobrevivem no limite do desenho de seus nomes, dos muitos filhos para ajudar nas

despesas da casa, sempre mais do mesmo, nunca além.

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Os capoeiristas encontravam nas cantigas de rodas modos de transmitir as bravuras de

sua vida, referir-se a fatos do cotidiano, costumes, fatos da escravidão, expressões de dor e

sofrimento de um povo, de pesadas ancestralidades machucadas, além de serem espaços

dinâmicos de repensar constantemente a tradição, afirmar alegrias, vadiagens, lutas e

conquistas. Agachados, cada um falava a partir do que sentia e para iniciar a roda cantavam

uma ladainha, música introdutória que geralmente se referia a alguma lenda ou “causo”

(CESSE NETO, 2014). Assim é o que faz Willy quando abre a oficina com a sua canção.

Todos ouvem atentamente o seu canto.

As ladainhas são momentos altos de musicalidade que, segundo Castro (2007),

referem-se ao lamento do negro marcado por uma experiência capturada na África e

remodelada em situação de escravidão.51 O caráter narrativo da ladainha visa trazer

compreensão da mensagem da letra, invocando ideias e valores importantes para o contexto

do jogo. É um momento de exposição, a musicalidade irá criar tensão e relaxamento entre os

jogadores quando estes mostram suas habilidades.

É pela ginga que o angoleiro explora mais sua mandinga. Joga-se sempre perto do

outro. “É preciso jogar e deixar jogar” (FRIGERIO, 1989. p. 86). Desafiado a perceber além

dos limites da roda, o ritmo que está sendo tocado e a música cantada, o angoleiro mistura ao

jogo certa malícia para que a roda também se torne espaço de astúcia e de criatividade para

enfrentar as “rasteiras” do cotidiano, buscando mostrar os recursos que cada um tem para lidar

com situações inesperadas, além de propor surpresas (CESSE NETO, 2014). Aqui visualizo

algo bem aproximado de como a oficina de hip hop constrói seu sentido-direção quando Willy

abre para que a discussão sobre nossas possibilidades de liberdades não cesse.

Ao partilhar conosco também a sua história, Willy nos lembra que não se deve “gastar

energia” em algo sem sintonia com o outro. Será Foucault (2014b) que também nos dirá que

não é por ser cuidado dos outros que ele é ético. O cuidado de si é ético porque implica

relações complexas com os outros, é uma maneira de cuidar dos outros, na qual algumas

vezes é preciso ouvir um amigo, alguém que lhe diga a verdade. Portanto, o problema das

relações com os outros está presente ao longo de todo o desenvolvimento do cuidado de si.

51 É comum encontrar nessas cantigas referências às línguas africanas iorubá e nagô.

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Abre-se aqui o campo da especificidade da experiência concreta da RD, que se dá pelo

compartilhamento de experiências e posturas éticas sobre o cuidado. A produção do comum se

dá pelo efeito do encontro dos corpos e o que se busca produzir nesses encontros. As ações

são produzidas pelo próprio compartilhamento de experiências, em co-operação. Novas

sensibilidades são ativadas e são elas que constroem novas direções e normas (SOUZA &

CARVALHO, 2012).

Estabelecem-se vínculos solidários e itinerários terapêuticos nos quais os usuários

possam encontrar condições de decidir sobre as ações desenvolvidas em relação à sua saúde,

respeitando vontade e tempo, até que possam pouco a pouco estabelecer formas de um

cuidado de si (LEMKE, 2009). Nessa condição, o cuidar do outro é operado por distintas

modalidades de saber e fazer, não culmina com as práticas particulares das profissões, das

tecnologias do cuidado ou dos protocolos, prolonga-se pela invenção de si, dos entornos, de

mundos (MERHY, 2007a).

Em cena, todos nos confundíamos. Assumíamos, coletiva e performaticamente, uma

certa maneira de sentir, mover, existir. Fazíamos pequenos arranjos com a matéria de

expressão que vinha. Arrastamos e fomos arrastados por uma experimentação que

transbordava o âmbito da arte, rasgava uma sensibilidade blindada. Quando nos pomos a

cantar, nos conectamos com a vida que resiste. Que re-existe. Não é a vida nua e bruta, mera

sobre-vida. É a vida em estado de variação. De maneira precária, pode-se cantar, ensaiar e

estar em casa, simultaneamente.

3.5. - Do que se passa entre a gente: a crise que também move

É engraçado repetir o olhar como se nunca antes! Contagiar o vento,

como se estranhasse." (SILVA, 2014, p. 57)

“Voltar à cena para desenhar uma outra cena, eis o risco. Movimento

sinuoso no coração do impensado, ao jogo que duplica a cena no

agenciamento de uma outra jogada, o retorno ao diferente, aos lances

de inusitado, na multiplicidade do pensar e do viver juntos, tal como

um devir-matilha, que na dessemelhança dos uivos joga, canta, dança,

migra, produzindo uma imagem outra no pensamento. No horizonte

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dessas movimentações vemos vários desdobramentos em dardos

arremessados ao aberto das direções, tangenciando os 'jogos do

mundo'." (Daniel Lins & José Gil)

Já desde a entrada na Rua 24 de maio, sou marcado pelos sons e os aromas de uma

África. Os muitos que compõem o corpo/coro da Galeria do Reggae vieram de diversos

lugares do continente africano. Herdeiros de diásporas negras, buscam por lugares de vida e

tentam ali re-inventá-la, re-criar trajetos, sem no entanto deixar de afirmar sua cultura, seu

povo. Junto com alguns, pego o elevador, chego ao 4° andar, e o pequeno corredor que

percorro até a entrada no É De Lei continua a me embalar das sonoridades da música e da

comida típica africana. Sou meio que convocado pela música. Trata-se de feitiçaria,

mandinga? Como num gingado, avanço o passo, incorporando certa malícia, me aproximando

aos poucos da entrada do É De Lei. Há uma força de re-existência contornado aquele lugar.

Um povo se afirma pelas bordas. Um povo que canta junto. Há uma cantiga singular, suas

mãos, gestos, roupas, acessórios, estética da existência. Há um negro-em-nós, e ele é um

capoêra.

O que vemos, o que nos olha?52

Ver como quem joga capoeira é um processo aliado ao movimento, como se o corpo

no seu conjunto pudesse enfim entrar no jogo. A malícia do capoeirista, em estreita relação

com o movimento, pode ser melhor entendida como interação ou fluxo. É a visão com

movimento que produz aprendizagem, pois como diz: se apenas “se aprendesse olhando,

cachorro seria açougueiro!”

*

Em plena navegação, estamos em um Chá-de-Lírio proposto pelo cartógrafo como

retribuição aos encontros que tivemos/fizemos e que compuseram o material desta pesquisa.

Nossos afetos co-incidem e se impessoalizam, e o retribuir é também um dar, convidando o

outro e o entorno a receber e a também inaugurar novamente o jogo do con-viver juntos

(EUGÊNIO & FIADEIRO, 2013).

52 Didi-Huberman (2010).

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Estão presentes no Chá-de-Lírio - Rogério, Diego, Wendell, Bruno Logan, Marcelo e

Willy, e alguns outros que estavam ali de passagem. De início, passo um vídeo do youtube

intitulado A canção dos homens, baseado em um conto africano.

Cada membro da tribo africana tem uma canção própria que marca sua singularidade

no grupo. A canção de cada um é escolhida desde o seu nascimento, quando as mulheres vão à

floresta e juntam, cantam e rezam até surgir a canção da criança. Quando ela se torna

reconhecida como adulta, casa e mesmo quando “parte deste mundo”, todos na tribo cantam

sua canção. Mas não é só estes momentos costumeiramente ritualísticos que marcam a força

de se ter um canto próprio. Quando um membro da tribo também comete algum ato

considerado aberrante ou anti-social perante o grupo, todos o levam até o centro da tribo e lhe

cantam sua canção, para que ele lembre quem realmente é.

*

Como cuidar daquilo que é quebranto diário, poção maligna de Circe?

Aos poucos, vamos trazendo para a dimensão daquela praça o analisador situações de

crise na convivência. Como cuidar daquele parceiro que “causa” na convivência, que não é

um mero sofredor de “pequenas causas”? Como não devolver “à altura da porrada”? Rogério

fala que é preciso amparar o outro também na queda, como que numa atitude de entrega ao

que ele sente, para que não haja morte da sensibilidade, onde nada mais nos afeta. “É preciso

entender que o outro é também 'sofredor de caminhada' e acolher ele também”. Diego reforça

que o É De Lei é um espaço onde ele “pode ser ele mesmo”, que “em outros lugares, as

pessoas não o veem, ‘passam por cima' e podem até atropelar”. De que lado está a vida? Um

leve toque pode ajudar o outro a levantar. E é ali que a partilha do 'sofrimento na caminhada'

serve de amparo para:

“[...] o outro na queda: não para evitar que caia, nem para que finja que a queda não existe ou tente anestesiar seus efeitos, mas sim para que possa

entregar-se ao caos e dele extrair uma nova existência. Amparar o outro na

queda é confiar nessa potência, é desejar que ela se manifeste. Essa confiança fortalece, no outro e em si mesmo, a coragem da entrega”

(ROLNIK, 1994, p. 8).

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Um campo de confiança se constitui quando é possível se expor ao outro com as

marcas de linhas de fuga no corpo e na alma, sem sentir-se ou ser tachado de louco, fraco ou

perdedor. O lugar da recaída – dito comum para os que retomam o uso abusivo de alguma

substância psicoativa - é ressignificado, por exemplo, ao pensarem que a experiência do

“cair” é inevitável e que de dentro da queda é possível reerguer-se transmutado, embora não

haja qualquer garantia de que isso vá de fato acontecer.

Aqui, mais uma vez, a RD se afirma quando a sintonia ou o compartilhamento de

estados afetivos ocorrem largamente sem serem notados, afetos de vitalidade ajudam a

integrar experiências distintas. Esses processos de sintonia afetiva criam um plano de

experiência comum, permitem que haja confiança para agir no mundo, podem expressar uma

comunhão ou possuir uma função de comunicação. Apostamos juntos que caso novas

situações de crise acontecessem na convivência, poderíamos cantar para o “sofredor” a sua

canção para que ele lembrasse de quem ele é.

Ali vozes anoitecidas nos convencem de que estão vivas,53 modos menores de viver-

junto. Parecem vaga-lumes. Descobrimos nos vagalumes lampejos de desejo ao trazerem sua

pequena luz, que não resplandece. É um fraco lampejo doloroso, e trevas onde crepitam.

Luciolle54. Sim, Lucifers com a espada na mão. Os vagalumes desaparecem todos ou eles

sobrevivem, apesar de tudo? Uma luz parece querer gemer, luzes menores salpicando o

espaço. A vida destes vaga-lumes parece estranha e inquietante, são almas errantes, resistentes

de todo o tipo, tentando escapar às condenações de suas existências.55

Diante de suas sobrevivências, são singularidades quaisquer (AGAMBEM, 2013b)

que gozam como diz Deleuze (2011) de uma frágil saúde irresistível, provinda do fato de

terem “visto e ouvido coisas demasiado grandes para eles, fortes demais, irrespiráveis, cuja

passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria

impossíveis. [...] Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada

pelo homem e no homem?” (Idem, p. 14).

53 Referência ao livro de contos do escritor Mia Couto (2013). Dois irmãos, ao retornarem após um longo

período desaparecidos, não convencem a ninguém de que estão vivos. São taxados então de invisíveis – ou, no

lirismo da prosa de Couto, “vozes anoitecidas”. Neste conto, a luz “emagrece”, as pessoas “pastoreiam tristezas”.

No É De Lei, há também um “pastoreiar” das tristezas, no sentido do “pastoreiar” do sertão, como num cuidar,

um olhar em movimento, flexibilizando distância e aproximação.

54 Didi-Huberman (2011).

55 Idem (2011).

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O que é capaz de criar essa frágil saúde, essa “favelação até umas horas”, essa

altíssima pobreza, esses corpos esgotados, que não aguentam mais? Buscam não mais do que

agenciamentos que lhe convenham (DELEUZE, 1994): estados de coisas, seus gostos, suas

preferências; estilos de enunciação, uma certa maneira de falar, andar, estilos de gesticular,

cantar, fazer rima/rap; seu território, espaço onde se sentem melhor; e a desterritorialização, o

modo como se sai do território. “E é aí que o desejo corre...” (Idem, 1994).

E esse desejo corre como espaço de possíveis para não sufocar (DELEUZE, 2010a).

Vontade de arte para se sair do inferno, como bem diz Artaud (1993). Biopolítica das

resistências, atores de lutas concretas, que fazem a experiência do estado de exceção, mas

“garimpam liberdades”, inventam formas, experimentam tateantes seus excessos (PELBART,

2013a), que não aparecem como algo a ser banido da experiência, mas integrado a um modo

de vida e à afirmação de uma força transgressora, uma potência estética que apresenta novos

modos de perceber o mundo (DIAS, 2013).

Entendemos, aos poucos, que o olhar de um prolonga-se no olhar do outro. Sem se

confundir um com o outro, é uma luta, e os corpos coincidem para criar uma forma: o jogo, no

qual não há ganhador nem perdedor. É o jogo que tem de ser bonito, imbricando os corpos a

ponto de que o que ali se vê são movimentos e curvas desenhando trajetórias no espaço

(CESSE NETO, 2014). Beirando a dissolução da identidade? Canta-se: era eu, era meu mano;

era meu mano, era eu. Palavras de vaga-lume.

*

Aprendizado de uma visita imaginária

“Quando estive na África do Sul visitei uma comunidade de etnia

Zulu. Lá conheci pessoas, assisti a uma apresentação de danças e

pude presenciar alguns costumes, o principal deles era o de fazer as

coisas coletivas sempre da forma mais simples e em grupo, nunca

uma pessoa só, como quando, no almoço, usei as mãos para levar

os alimentos à boca, sentado no chão junto a outras pessoas em

volta de um belo tecido colorido onde foram postas as comidas.

Tudo muito alegre, solidário, suave e lindo. Já quase na hora de

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voltar para o hotel onde eu estava hospedado, como havia naquela

comunidade muitas crianças e elas gostavam de futebol, propus a

elas uma brincadeira para eu me despedir, uma corrida em que a

criança que chegasse primeiro ganharia uma bola como prêmio.

Elas imediatamente toparam. Então organizei as linhas de partida

e a chegada. Todas as crianças se posicionaram na linha de partida

e o combinado era que quando eu desse o sinal elas começariam a

correr em direção à linha de chegada. Com tudo pronto, dei a partida

e as crianças iniciaram a corrida. Curiosamente para mim, elas

correram juntas e chegaram juntas na linha de chegada. Como achei

aquilo diferente, eu lhes perguntei por que fizeram isso, ou seja, por

que saíram, correram e chegaram juntas. Uma delas me respondeu:

É Ubuntu, senhor, somos cada uma e cada um de nós porque nos

fazemos e fazemos tudo juntos. O senhor não percebeu que tudo que

fizemos hoje, fizemos juntos?Meus olhos transbordaram de emoção.

Nunca uma experiência me afetou tão fortemente. Ubuntu, ternura e

constituição comum do comum. Pretinhosidade.”

(NASCIMENTO, 2014, p. 29)

Ressaltamos certa dimensão Ubuntu existente no É de Lei e, principalmente, na

oficina de hip hop. A prática de cuidado em RD também como prática Ubuntu. Nascimento

(2014) cita que uma perspectiva Ubuntu é filosofia baseada na categoria do “nós”, concepção

de si mesmo como membro integrante de um todo social, cuja referência vem das tradições

africanas e fora desenvolvida pelo filósofo Tshiamalenga Ntumba. Trata-se de ética coletiva

cujo sentido é a conexão de pessoas com a vida. A preocupação com o outro, a solidariedade,

a partilha e a vida são princípios fundamentais da ética Ubuntu:

“Ubuntu 'significa que somos pessoas através de outras pessoas', 'que não

podemos ser plenamente humanos sozinhos'. Praticar Ubuntu é 'estar aberto e disponível aos outros' e 'ter consciência de que faz parte de algo maior e que

é tão diminuída quanto seus semelhantes que são diminuídos ou humilhados,

torturados ou oprimidos' (idem). A pessoa ou instituição que pratica Ubuntu reconhece que existe por que outras pessoas existem. Reconhece, portanto,

que existem formas singulares de expressão de humanidade, e que as

singularidades, como tais, têm igual valor” (Idem, 2014, p. 30).

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Ubuntu como comum, como políticas de ações afirmativas por reconhecer práticas

culturais e suas dimensões produtivas, de recomposição social e racial das instituições e, pois,

de constituição do Comum (Ibid., 2014). Desafio imenso, desfiladeiro estreito por propor que

uma multiplicidade de singularidades se relacionassem simétrica, respeitosa e produtivamente,

sem degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura (GLISSANT, 2005).

Rimos ao lembrar do desafio da assembleia que tentava afetar a todos, principalmente os

conviventes, com a dimensão do uso dos softwares livres pelo sistema Ubuntu. Ubuntu é

desafio para a prática em RD, desfiladeiro estreito. Dimensão pública, dimensão comum.

A potência intercessora56 deste trabalho (o próprio Willy é também intercessor!) vem

da força da palavra mexida como quem mexe com pimenta, “até vir sangue no órgão”, usando

apenas as palhetas que dispõem e que funcionam como exploração processual, contribuindo

para uma relação autêntica com o outro (GUATTARI, 2012). Ao falar com presença e abertura

produzimos conexões e fazemos mover.

Cada um presentifica o outro na roda com seu chamado, seu canto. Canta a si em voz

alta e é ecoado pelos outros. Esse outro que é tomado, como coloca Pelbart (2013a), como

uma vida capaz de condutas, campo de ação para uma “multidão” de condutas. Vidas que

podem adotar diversas direções diferentes, sobre as quais as técnicas de si incidem. Esse si

que não é instância substantiva, personológica ou universal, localizada por trás do sujeito, mas

potencialidade relacional:

“Sim, claro, é preciso cuidar, mas cuidar, sobretudo, dos jovens, e ensiná-los

a cuidar de si mesmos. Mas o que é preciso cuidar neles, e o que é preciso

ensiná-los a cuidar? Qual é o objeto do cuidado? Ora não é a alma, mas a vida, não psyché, mas bios, ou seja, a maneira de viver (...) Ao invés da

contemplação da alma, surge a estilística da existência. Não se busca o ser da

alma, mas um estilo de vida” (PELBART, 2013a, p. 10).

56 Os intercessores, segundo Deleuze (2010a), ampliam nosso campo de possível e de atuação: “O essencial são os

intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo,

artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artista – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma

série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso dos

meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimem sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo

quando isso não se vê” (DELEUZE, 2010a, p.160).

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É preciso, portanto, como diz Guattari & Rolnik (1986), achar uma saída, encontrar

algo que “balance seu coreto”:

"Vou dar um exemplo pessoal: considero a poesia como uns dos

componentes mais importantes da existência humana, não tanto como valor,

mas como elemento funcional. Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas. 'Atenção, cara, na tua idade, se você não tomar poesia, não vai ter

jeito...'”. (GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 223).

Só assim, defendem Guattari & Rolnik (1986), novos universos de referência podem

ser criados, conduzindo estratégias para que pessoas ou grupos possam ter relações tão

criadoras quanto possíveis com a situação que se está vivendo:

“Uma cura seria como construir uma obra de arte, com a diferença de que

seria preciso reinventar, a cada vez, a forma de arte que se vai usar. Uma

pequena receita, de passagem” (Idem, 1986).

Ulpiano (1993) acrescenta que a obra de arte é feita como uma queixa, com as dores e

os sofrimentos. A arte é também uma alteração de percepção segundo este autor, e seria uma

bobagem achar que ela “é apenas para tomar o chá das cinco [...] A arte é uma coisa seríssima

- produz mundos!”. Sem a arte associada com a política, a vida seria impossível,

sufocaríamos. A arte é uma experimentação de sentidos, e revelação de experiência. Quando a

vida engasga, a arte é superior à vida.

“A arte é a nossa saída. É muito pouco, eu sei que é muito pouco... isso não

desfaz o abismo do terror no qual estamos, mas a arte é o caminho que nós

temos” (ULPIANO, 1993).

Têm-se assim um povo menor inventando uma possibilidade de vida em um mundo

que os confunde com as doenças (estado que se cai quando processos são interrompidos), são

médicos de si e do mundo. Medida de saúde invocada por uma raça bastarda e oprimida que

não pára de agitar-se sob as dominações, resistindo a tudo que esmaga e aprisiona. Em

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processo, abrem sulcos para si (DELEUZE, 2011). Há que se inventar no viver-junto as

chances de uma saúde, atravessando como um vencedor as fronteiras da desrazão.

O comum faz-se em como juntos habitamos um território, coexistimos em uma

atividade, como partilhamos, tomamos parte, nos engajamos, pertencemos, e assim

disparamos diferentes modos de fazer comunidade em práticas de cuidado. Este modo de

pensar se aproxima justamente da noção de partilha do sensível de Rancière (2014), que vai

defini-la como um comum partilhado, ao mesmo tempo que também há partes exclusivas. O

que não podemos permitir, acrescentam Kastrup & Passos (2013), é que a linha da partilha

sensível no plano comum se torne um “comunitarismo” igualitarista, privativista e excludente.

Mattos (2001) irá reafirmar que só se ativa essa nova sensibilidade quando nos

relacionamos com um outro de modo não objetivante, não o vendo como um órgão doente,

mas numa dimensão relacional de cuidado que se depara e se envolve com as aspirações,

desejos e sonhos. Do mesmo modo, Deleuze (1985, pp.59-60) também nos dirá que:

“Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar,

traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes, não,

não é isso. Há um momento em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o doente, é preciso ir até ele, partilhar seu estado.

Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de identificação? Mesmo

assim, isso é seguramente mais complicado. O que nós sentimos é antes a

necessidade de uma relação que não seria nem legal, nem contratual, nem institucional. Com Nietzsche, é isso. Nós lemos um aforismo, ou um poema

de Zaratustra. Ora, materialmente e formalmente, tais textos não são

compreendidos nem pelo estabelecimento ou aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por uma instauração de instituição. O

único equivalente concebível seria talvez ‘estar no mesmo barco’”.

Ou como diz Despret (2011), solicitamos à emoção a escolha de nosso campo. É

preciso nos darmos um coração, sintonizarmos com certo ritmo do outro,

Os sujeitos percebem um ritmo que os conecta ao mundo, através da experiência de um corpo

habitado pelo coração do outro:

“Ter um corpo é aprender a ser afetado. Diria que estes sujeitos de fato

produziram um corpo, aprenderam a ser afetados, harmonizando os diversos componentes do ritmo do mundo, de um mundo indeterminando, um mundo

do qual fazia parte o ritmo do coração. Eles articularam o mundo ao ritmo de

um coração que os habita, o tempo da experiência. E este acordo produziu

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um novo possível daquilo que lhe foi mostrado, e daquilo que lhes foi

pedido. Os batimentos do coração são de certa forma uma espécie de uma

“disponibilidade” ofertada ao sujeito, eles dispõem outra maneira de

produzir o acordo do coração com o saber do mundo” (DESPRET, 2011,

p.56-57).

É seguindo esse ritmo do que toca ao coração que chegamos a falar do que “pilha” e

do que “bodeia” em trabalhar no É De Lei.57 O que se passa entre, nos caminhos que se criam

por entre impossibilidades no cotidiano das práticas em RD? O que nos move? Segundo o

discurso da equipe, o que “pilha” – aquilo que aumenta nossa potência de agir, aquilo que nos

move - refere-se ao potencial da instituição em ter um know-how de práticas reconhecidas por

seu caráter antiproibicionista, forte atuação política e humanizada:

“[...] a inovação, termos que pensar em como dar conta daquela realidade

através de um olhar profundo e entender toda sua complexidade. Desenvolver

estratégias e métodos de como fazer diferente. Não ter uma receita fechada é

instigante. Repensar sobre uso de drogas, situação de rua, rede e etc. É parte da sua alimentação e nutrição. Temos menos definido o que se deve fazer e

tentamos construir juntos através do diálogo. Nosso posicionamento como

resistência foi importante para sustentar a instituição em terrenos áridos. Uma grande potência é convivência, é onde pulsa o sangue do é de lei. A

pluralidade. A lida com as diferenças sem o discurso moral” (Fala do Bruno

Rico).

Bel acrescenta que o que lhe “pilha” é: “trabalhar com cultura, ver o É de Lei como

um espaço raro e rico para o encontro humano. Temos muito mais potência do que

conseguimos realizar”. A liberdade de trocar e construir as formas de trabalho junto, isto a

mobiliza: “A interface, arte, saúde e projetos sociais é muito gratificante. O que pilha são as

alegrias dos encontros no É De lei. Tanto com usuários como com a equipe, apesar das

dificuldades. A transdisciplinaridade é bem positiva”.

No entanto, há também o que “bodeia”, que se refere àquilo que diminui nossa

potência de agir, que nos põe em cansaço, caracterizando certo encontro com o esgotamento

57 As falas foram cedidas pelo É De Lei como vídeos em acervo de uma formação feita pelo espaço em 1º de dezembro de 2012, na cidade de Itu. Momento de análise das implicações, o encontro também problematizou o

que “bodeia” e o que “pilha” em trabalhar no É De Lei (mimeo).

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do possível: “Ninguém da equipe vive só de É De Lei” (Fala do André, com relação à baixa

remuneração).

Já Bruno Ramos insere na análise as relações do É De Lei com o precário em práticas

RD: “A precariedade força certa improvisação, e tudo que fazemos nasce de um grande

esforço”. “A falta de espaço para pequenas decisões coletivas, além do espaço físico também

'bodeia', por ser muito pequeno e precário para uma proposta de mistura contínua com os

usuários, além de, às vezes, se trabalhar além das horas previstas quando algo 'necessário' tem

que ser feito” (fala da Bel). No entanto, “temos responsabilidade neste jogo, podemos ficar

adoecidos e muitas vezes não conseguimos cuidar disso” (Fala da Marina). E é Bruno Rico

que traz seu desejo em tratar as atividades da convivência através de novas significações: “A

questão da convivência é rica, e por hora emocionante, mas ao mesmo tempo isso faz

questionar: onde queremos chegar?”.

O que impede a criação? Pontos que atravessam a relação nesse território, realidade

precária do trabalho cotidiano. Realidade que nos convoca a cada vez mais criar outras

intervenções e lidar com a complexidade. Dimensão de uma escolha também: sobre-viver de

editais, não ter o “rabo preso” com a máquina de Estado. Coragem de se lançar em uma

desafiadora modalidade de cuidado.

Como criar a partir do que esgotado deseja continuar? “Como também estranhar o que

fazemos? Poder ter escuta para o que 'fica solto' na convivência ou nos momentos em que me

sinto afetada pelos preconceitos de classe social, pelos machismos que também há nos

conviventes?” (Fala da Camila).

Virar do avesso, olhar para este momento que fica entre o que já fizemos e o que

vamos fazer. Pare, Re-pare. Repare Melhor.

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3.6. - Pelas encruzilhadas e fronteiras do É De Lei: a peleja e os Exus58 da RD

Sawu Bona, Sikona59

.

Estou saindo do É De Lei quando encontro Aécio, vem chegando do CAPS. Após

cumprimentá-lo, observo o lugar onde Rodrigo Silva sempre ficava acompanhando as oficinas

de hip hop e de vídeo. Rodrigo é um caso que inquieta a equipe do É De Lei. Sabe-se muito

pouco dele, onde vive, como vive, que rede de serviços o acessa. “Às vezes, ele está em crise,

não sabemos bem o que ele tem, há dias que pouco fala. Às vezes, fica agressivo, tem gestos

esquisitos. É preciso seguir os rastros, as pistas que ele vai deixando/soltando” - são falas

recorrentes da equipe do É De Lei.

Com um “pé dentro, pé fora”, Rodrigo montava seu território, seu canto, nas fronteiras

do É De Lei. Sempre lá estava ele, em frente à grande janela que separa a sala (onde ocorrem

as oficinas) e o espaço externo ao É De Lei. A janela é parapeito. Inspirado na ginga e na

malícia dos redutores de danos que ficam na convivência vou buscando desenvolver um bom

encontro com Rodrigo. Encontro que se faz no improviso. Se a distância for muita, a ação

perde sentido, se for pouca, arrisca-se ferir perigosamente, pois podemos nos aproximar

demais. Desfiladeiro estreito.

O gesto de prudência não pode ser prescrito. Arte interrogativa da prudência como

complexa apreensão do problemático das trocas intensivas (SILVA, 2007). Prudência, ao

58 Exu, entidade do panteão das religiões de matriz africana que não pode ser mapeada através das noções de

bem e mal. Exu, além de Senhor dos Caminhos, Dono das encruzilhadas, é o princípio dinâmico da cosmovisão

africana presente na cultura yorubá. Para Eduardo Oliveira (2007), Exu, através da filosofia do paradoxo, impregna todos os seres vivos, é o princípio de individuação que está em tudo e a tudo empresta identidade. É o

mesmo que dissolve o construído; aquele que quebra a regra para manter a regra; aquele que transita pelas

margens para dar corpo ao que estrutura o centro; é aquele que inova a tradição para assegurá-la, e dessa forma,

mantém um equilíbrio dinâmico baseado no desequilíbrio das estruturas desse mesmo sistema filosófico-ético.

59 Expressão que trata a necessidade de viver em grupo. Quando um integrante da tribo africana Zulu encontra

alguém, costuma dizer: - Sawu bona (Olá! Eu te vejo!); A resposta: - Sikona (Eu estou aqui!). A explicação se dá

ao fato da necessidade que existe do ser humano de estabelecer relações, e no conceito de que as pessoas “o

vejam“! Se você vê o outro – significa que ele é importante para você, e exalta a existência dele, pois as pessoas

que existem para você é porque são importantes na sua vida.

Se ela responde “estou aqui”, significa que a presença dela fortalece a colaboração, pois ela está para o seu

encontro, o elo mais importante. Essa tribo não adota em suas leis a pena de morte, porém, a pena máxima

decretada é a invibilidade, que é o fato da pessoa deixar de existir. Uma vez a pessoa deixando de existir,

ninguém a cumprimentará com "SAWUBONA", ou melhor, nenhum habitante da tribo enxergará essa pessoa. O

indivíduo, simplesmente, pode gritar, fazer o que quiser para chamar a atenção dos demais, que não será mais

visto por ninguém. O que acontece é que o condenado acaba abandonando a tribo e vai viver sozinho, morrendo na selva. Disponível em http://jaimemarlonsilva.com/2011/04/30/sawu-bona-sikhona/ (acesso em outubro de

2014).

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invés do medo, é cuidado com o ativo, com o campo intensivo, com as formas afirmativas

(FUGANTI, 2008). Prudência inventiva, nômade, e o limite não como ponto perigoso que já

se sabe, mas como lugar deslocado, estrangeiro, onde se encontra o ponto de mutação, dobra e

desvio. Prudência como arte micropolítica de cuidado com a novidade, e o limite como lugar

em que se sente o campo de forças dessa novidade. Limite que não é ponto que se chega por

inflamento quantitativo, mas por movimentação qualitativa (YONEZAWA, 2007).

Experimentação de ultrapassar limiares, mas sem perder a natureza, a continuidade de

si mesmo (FUGANTI, 2008). Experimentação como arte micropolítica do corpo, como

biopolítica menor (YONEZAWA, 2007). Que deslocamentos se experimenta?

Novelos em tessitura. É turvo, um cuidado interpelado, entre peles. É uma espera

intensiva que vai criando sentidos na demora. Singularidades tecidas de algo comum.

Mandinga e malícia se misturam. É nossa maneira de jogar, molejo típico de danças

afrodescendentes. Rodrigo me pergunta qual vício tenho, enquanto Willy observa essa

aproximação sorrindo. Respondo que café, açúcar, coca-cola são uns de meus maiores vícios.

Rodrigo vai se afastando, não deseja mais seguir.

Habilidade de transmigrar e entender é dos pássaros...

RD como política da luz e da penumbra operando em situações fronteiriças. Enxergar

vaga-lumes ou pássaros como Rodrigo nos exige sentir a atmosfera e construir a dança,

atentar ao envio de sinais que ele transmite. Vaga-lumes como pistas. Rodrigo-Exu que nos

convoca a re-pensar nossas éticas, a pensar políticas que operem nas bordas, nas fronteiras,

esse povo sem parte, não incluído na partilha. Corpos que habitam o entre, janelas

envidraçadas e sem parapeitos. É nas misturas que os parapeitos podem se constituir. Seus

transtornos pedem novos modos de transitar, criação de redes para além da praça. As

fronteiras surgem hibridizadas e não podem ser pensadas apenas como barreira, mas travessia

para invenções de novas políticas de cuidado em RD.

Abrir e dobrar fronteiras, recriando-as, constituindo novos lugares subjetivos, força-

nos a tecer novas redes implicadas neste Outrem como mundo possível. Em que

agenciamentos Rodrigo pode entrar? Apostamos aqui cada vez mais na menorização de

espaços institucionais como lugares de vida (vide experiência da Clínica de La Borde60), em

60 Em 1955, Félix Guattari junto ao psiquiatra Jean Oury iniciam na Clínica de La Borde, ao sul de Blois, na

França, um estilo de cuidado para psicóticos que recusava a produção do que chamaram doente bestial, cuja

relação com o mundo se resumiria a andar em círculos o dia inteiro, bater a cabeça contra as paredes e avilta-se

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éticas politicamente monstruosas, criolas porque mestiças, híbridas, que são produzidas no

exílio e na errância, produzidas no interjogo das relações, ao mesmo tempo que são lugares de

encontro e de passagem (CORSINI, 2008).

Imprevisível nova estética de cuidado. Ética do anômalo, de aliança com o anômalo,

que nos exige a invenção de metalurgias talvez excêntricas, ferramentas menores próximas

das artes. É assim que Onetto (2006/2008) diz que os nômades praticam ciência. E as

principais armas de uma máquina de guerra nômade são os afetos:

“Um instrumento moldado segundo uma forma específica, fabricado em série

para o trabalho dos homens, com uma finalidade que responde às necessidades do aparelho de Estado, pode se transformar, de um momento a

outro, num afeto-arma. Mas se um utensílio comporta mecanismos de

projeção que o abrem para um tipo de utilização “afetiva”, a recíproca

também vale para a arma do soldado ou mesmo do militante quando ela adquire um aspecto racional-teleológico de cumprimento lógico e objetivo de

uma finalidade. Desse modo, está claro que “armas” aqui não designam

necessariamente metralhadoras, pistolas e bugingagas do gênero. Ao contrário, elas raramente designam esses objetos. As mãos livres do karatê

são muito mais 'afetos-armas' do que os sabres dos samurais em seus

cavalos” (ONETTO, 2006/2008, p. 157).

Tal metalurgia precisa ser continuamente criada, forjada. O metalúrgico trabalha tão

somente com o estabelecimento de modos de vidas. “Como os nômades inventam ou

encontram suas armas?” (DELEUZE & GUATTARI, 2012c, p. 90).

“Quando será que teremos parangolés nessa convivência ou uma rede para deitar?”

(Fala da Bel em Diário de campo – 27 de maio de 2014).

*

na sujeira e nos excrementos. La Borde se caracterizava como um espaço institucional menor por mobilizar os

psicóticos na invenção de múltiplas instâncias coletivas como organização de assembleias, ateliês, reuniões, que

só seriam possíveis a partir do encontro que cada um teria com sua palheta de expressão, pois só assim poderiam

encontrar seus verdadeiros rostos, e que não fossem os da estranheza e da violência, mas o de uma relação

diferente com o mundo. Além disso, havia um minirrevolução interna, cuja proposta era a do contágio e da

mistura: lavadeiras e faxineiras que animavam ateliês, comitês de redação de jornais e atividades esportivas, e

enfermeiros que cuidavam da arrumação, da louça, da cozinha e da recreação (GUATTARI, 2012).

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“Saudosa maloca, maloca querida.”

Bem no final, fico sabendo que o É De Lei mudará de sede. Continuará no 4º andar, no

entanto, ocupando um espaço maior. Do mocó à maloca – pensamos e rimos juntos. “Mas o

que é mocó mesmo? - pergunta Wendell. Devolvo-lhe mais uma vez a pergunta. É Rogério

que palpita: mocó é um lugar que você só vem pra se esconder, se proteger, mas não precisa

ser só assim”. É De Lei pode ser maloca ampliada, lugar de morada, criação, política do

comum, invenção de um cuidado de si. Cuidado de si que é constante reinventar-se, atitudes

de luta frente a microfascismos do cotidiano, microfascismos-em-nós, incessantes embates,

pelejas, pequenas guerras, agonismo de lutas.

O agon é a formulação de diferentes estratégias no dia-a-dia. A agonística é a própria

arte do encontro. Desta arte-luta, inventamos na roda, o atelier existencial do cotidiano. É no

ardor da peleja que a RD como prática associativa possibilita o exercício das diferenças e

afirmação do singular. Associação ventilada por bandos, implicando nossos corpos e afetos,

modulando condutas. É sempre numa zona autônoma temporária (TAZ) que um bando opera,

coagulando através de espaços e acontecimentos transitórios (CESSE NETO, 2014). Jeito de

fazer peripatético como num passeio, caminhando e conversando (LANCETTI, 2007).

Há tão somente estigmergia: trabalho coletivo, sem sujeito e sem objeto, daquilo que

emerge da relação, trabalho com o que se tem a cada vez e com o que fica, com as marcas e os

rastros do con-viver juntos (FIADEIRO & EUGÊNIO, 2012). Por uma política RD que se

afirme na luta pela vida, entre uma micro e uma macropolítica, cheia de força para produzir

crise, desestabilizar nossas fronteiras disciplinares e que se baseie no gesto, no corpo, no

rastro, pois:

“Só assim é possível traçar as linhas de errância, estabelecer lugares. Da

aranha interessa não só o tecer incessante, sem finalidade (pois Deligny

duvida que a finalidade da teia seja agarrar a mosca), mas a própria teia

aracnóide, isto é, a rede” (PELBART, 2013b, p. 261).

Os trajetos fazem uma rede. Fazer o que é possível para que uma rede se trame, nem

que seja necessário torcer alguns fios. Rede como guerrilha comum, necessidade de uma

saída, abrigo. “O que é mesmo que eles ligam, esses fios?” (PELBART, 2013b, p. 264).

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Regras que emergem da situação. Arte das doses que depende da situação que se passa, é ela

que dá a regulação. Situação que gera caminho, uma direção, que é território para estarmos

juntos, é o lugar que temos para nos encontrarmos. Fronteiras fluidas como espaço-terreiro.

Fazemos uma pausa, fazemos uma dúvida. Aquilo que no plano do comum o acontecimento

pede. Recolocamos o problema. Seguramos a pergunta. Como viver juntos? Como viver

juntos com o que há? A cada pergunta, uma re-pergunta.

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ALINHAVAMENTOS FINAIS OU O QUE RESTA SÃO OS RASTROS

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto:

que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas

- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade

maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.”

(Guimarães Rosa)

Pesquisar foi uma espécie de capoeira. E como nas primeiras experiências de roda, o

desafio do iniciante era se conectar ao ritmo da bateria musical, as mensagens expressas nas

cantigas. O que orientava a cadência do jogo era o diálogo corporal. Ignorar esse apelo era

imperícia grave. Se modulava nos rastros do cotidiano uma relação de cuidado e

conhecimento no “juntos”. “Treinava-se” um jeito de compor com o campo a partir dos sinais

que eram passados. Certa “mumunha” precisou ser tentada, configurando o desafio de

estabelecer uma sintonia com os sujeitos de uma pesquisa, sem objetá-los (DESPRET,

2004b). É um exemplo de uma experiência emocional porque também causa o momento de

indeterminação e hesitação, desestabilizando a distribuição usual. O outro exemplo é o do

etólogo Konrad Lorenz, que mantinha uma relação intensa com a sua gralha Yellow-Red. A

primeira interpretação de Despret (2004b) é a do antropomorfismo. Lorenz tratava a gralha e

se relacionava com ela como se ela fosse humana, plasmando a relação de características e

expectativas que supostamente não existiriam em animais. A autora sugere, então, a posição

inversa, que é a gralha que estaria “gralhamorfisando” Lorenz, fazendo-o agir com

características e expectativas supostamente inexistentes em humanos.

É relatada uma terceira situação para superar as distribuições existentes entre homem

(antropomorfismo) e animal (zoomorfismo), desestabilizando a distinção: a narrativa de

Lorenz de quando fora estimulado pelo pássaro, por um sinal próprio deste, a preencher o seu

bico com alimento. O etólogo então aproveitou a transformação para, a seguir, ele próprio

oferecer a boca aberta. O pássaro então interpretou o sinal como para alimentar o próprio

homem. Ocorre nesse caso mais do que um sujeito que se relaciona com outro, mas um

sujeito que está com outro, aprendendo e se constituindo através da perspectiva do outro, uma

experiência de estar “com”, de sintonia, e a partir da qual é possível constituir-se novos

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arranjos, novas disposições, por assim dizer um terceiro gênero que não existia. Sintonia, em

suma, para Despret (2004b) é:

“[...] Lorenz não só levanta a pergunta do ponto de vista daquele para quem a

pergunta é dirigida. Ele faz mais do que isso: ele ativa este ponto de vista, e

desse modo ele ativa seu objeto como um sujeito, um sujeito da paixão, um

sujeito produzindo paixões; um sujeito das perguntas, um sujeito produzindo perguntas. Lorenz não só faz emergir um sujeito do ponto de vista que seu

corpo está construindo, mas ele mesmo é ativado por aquele a quem fez

existir. Ele é ativado como um sujeito ao mesmo tempo criando e sendo

criado pelas paixões” (DESPRET, 2004b, p. 131).

A noção de sintonia de Despret (2004b), portanto, não está falando de uma

metodologia que nos permite ter acesso a determinado objeto de estudo, como se tivéssemos

uma separação estanque entre um pesquisador e um objeto a ser alcançado, mas está ocupada

na possibilidade de afetar e ser afetado nesses encontros, onde pesquisador e pesquisado são

vetores de uma relação e o ponto de vista da pesquisa será aquele criado por esse encontro, na

relação. Será uma espécie de “terceiro gênero” por ser um desvio, um novo que se apresenta

na relação capaz de colocar novas questões.

*

Na mitologia greco-latina, Aracne e Penélope conheciam a arte de tecer. A primeira

tinha o mais belo bordado, envaideceu-se e foi castigada pela deusa Palas Atena numa

competição. Já a segunda fazia do tecer uma artimanha: durante o dia tecia e durante a noite

desfazia o tecido (PASSOS, 2008). É assim também que a tessitura do cotidiano das práticas

de cuidado em RD vai nos convocando à desenvoltura de certas artimanhas. Em dados

momentos, precisamos tratar os nós.

Emaranhados nos nós, ficamos desassossegados. Desassossegos das práticas em RD.

Nós, linhas atravessadas nas agulhas, nós que são facéis de desfazer, desde de que desejemos

re-costurar de outros modos. Nós como marcas daquilo que nos interpela na superfície, ali

onde pára a linearidade e intervém uma rugosidade, uma aspereza, um grito de um na

convivência, uma linha persecutória de outro. Desassossegos dos corpos que estão, sim,

vivos, em meio aos nós (SILVA, 2014).

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Desacomodamo-nos diante da tessitura de difíceis cotidianos que se inventam nos

tropeços e avessos dos encontros e desencontros que vão se fazendo. Nós, corações apertados

(idem, 2014). Um pequeno desastre que pode esclarecer as coisas (ANTONIONI, 1966). Que

pode já ter ocorrido. Dessassossego como dispositivo percorrido como possibilidade de linha

intempestiva, relação, arranjo de parapeito para a prática em RD. Dessassossego-potência

como utopia ativa, vontade de mudar, inventar, criar, possibilidade de deslocamento e

transformação, abertura a um campo de virtualidade de possíveis. Transposição. Travessia.

No encontro com retalhos, novos pontos de alinhavo, tecido e cuidado sem desesperos.

Nós que criam traços, atentam aos rastros. Manusear com o que se pode efetuar. Lidar com a

concretude do artesanato quando se efetua. Com-viver cuidando, cuidar com-vivendo no

Centro de Convivência É De Lei só continuirá possível se no terreno e com ele nos

dispusermos a descobrir, a cada vez, os materiais a serem acionados: palavra, corpo, imagem,

música, e onde os vamos situar (numa galeria, interface audiovisual, fotográfica, etc).

É por um triz, limite tênue onde tudo vinga ou pode construir desmoronamento. São

tentativas frágeis e persistentes, como coloca Pelbart (2013b), envolvendo o erro e as linhas

de errância que tecem a urdidura dos fios, sendo preciso evitar que eles se rompam, mas

também cuidar para que estejam bem tensionados. Mas tais tentativas não se fazem só de

trajetos de errâncias, há também os trajetos costumeiros:

“Costumeirar envolve o mais rés-do-chão, fazer pão, cortar lenha, lavar a louça, comer, vestir-se, isto que a existência exige, e que, no entanto, é algo

distinto do mero hábito, pois é no meio dessa repetição coleliva que cada

instante pode ser a ocasião para um desvio, uma irrupção, uma iniciativa. Trata-se, pois, não de uma repetição mecânica, embora haja um componente

de repetição no costumeirar, mas de permitir, para usar um léxico mais

filosófico, que da repetição se extraia a mínima diferença, aquele desvio

mínimo onde se dê um acontecimento, o inadvertido” (PELBART, 2013b,

p. 265).

Tentativas são comparáveis à jangada, acrescenta Pelbart (2013b), inspirado em

Deligny61:

61 Fernand Deligny foi escritor, cineasta, pedagogo e um obstinado e solitário experimentador de modos de

existência coletiva, chamados por ele de “tentativas” ou “jangadas”. Dedicou parte de sua vida à construção de

um lugar de vida para crianças autistas, na França.

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“Pedaços de madeira ligados entre si de maneira bastante solta, para que

quando venham as ondas do mar, a água atravesse os vãos entre os troncos e a

jangada consiga continuar flutuando. É apenas assim com essa estrutura rudimentar, que quem está sobre a jangada pode flutuar e sustentar-se.

Portanto, 'quando as questões se abatem nós não apertamos as fileiras, não

juntamos os troncos – para constituir uma plataforma concertada. Ao

contrário. Não mantemos senão aquilo que do projeto nos liga.' Daí a importância primordial dos liames e do modo de ligação, e da distância

mesma que os troncos podem tomar entre eles. 'É preciso que o liame seja

suficientemente solto e que ele não se solte.' Eu diria, abusando da fórmula, que é preciso que o liame seja suficientemente solto para que ele não se solte.

A jangada, ainda diz Deligny, não é uma barricada. Mas: 'Com o que sobrou

das barricadas, poderia se construir jangadas...'” (PELBART, 2013b, p.

265).

Troncos e galhos também compõem a orquestra. Do que é preciso pra essa jangada

continuar se sustentando? Nos passos em falso ou no desequilíbrio, que espaços para pensar

novas propostas se abrem? Acolher a ferrugem nas engrenagens? Manejar os desassossegos

como aposta para tecer um plano de abertura ao encontro, que é também ferida. Sustentar a

ferida aberta. Nós implicados com outros nós, ensaiando certo jogo de cintura, malícia para

que o desassossego não seja imobilizante. Experimentação do equívoco.

Abrir-se ao dissenso, ao metálogo, recusa da concordância para pensar/analisar o ato

de “colocar-se com” (FIADEIRO & EUGÊNIO, 2012). Colocarmos na mesa as pulgas que

temos atrás das orelhas, pois são elas importantes ferramentas de trabalho. Incômodas pulgas

exigirão respostas a construir (BERTUSSI; BADUY; FEUERWERKER; MERHY, 2011). Re-

existimos a cada encontro. Encontrar é ir “ter com” as pulgas também. Inquietações

transversais: Como cuidar con-vivendo? Como con-viver cuidando? Podemos e devemos nos

responsabilizar por nossos modos de con-viver juntos e de criar mundos. Sujeitos-artistas a

inventar realidades, artesãos, alfaiates de nosso próprio convívio.

Que linhas costurar? Que planos mudar? Os lugares também derrapam, as linhas

também falham. Que costuras desfazer? Que tom de vigor criar para nós amarrotados? Que

leveza construir para lidar com algum bicho papão que fica no armário ou, melhor, na

convivência? Nós em confecção.

Construção cotidiana, aposta intempestiva, aposta pautada em ações coletivas, nas

quais se erra nas encruzilhadas dos fios para melhor compreendê-los, sem necessariamente

apreendê-los. Trans-habita-se as bordas, segue-se também as linhas tortas. Não apertemos

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demais os nós. Percorrendo tracejados vários, ao habitarmos os dessassosegos, coragem e

leveza passam a ser parceiras para desfazer emaranhados. Desafiando os nós, acolhemos

também exus.

*

Fora a tapeçaria que guiou nossa viagem, nossa vontade de tecer não reuniu todos os

fios. A narrativa também apresenta uma ligeira defasagem, deixa alguns fios soltos, sozinhos.

Uma janela entreaberta. O que se contou tem pregnância da memória e escolheu certos

lugares de onde retirar sua seiva, sendo também uma espécie de phármakon preparado com

sábia dosagem, tônico que pode nos surpreender com uma força ou intensidade inesperada a

cada experiência. Pano esgarçado, podendo existir minutos que foram intuídos à

temporalidade. Que o que aqui se escreve esteja mais próximo do grito! Grito de cotovia...

Foram mínimos gestos, linhas de errâncias, trajetos feitos ao longo de um dia, de uma

jornada, desvios sutis, giros, escapadas, recorrências, sem excesso de compreensão, esses aí

todos, sem finalidade, que abrem para iniciativas emergindo do comum, alargando os gestos,

variando, multiplicando, ampliando e inventando um campo de possibilidades. Atentos às

tramas que se armavam e se teciam nos espaços de experiência das práticas em RD no Centro

de Convivência É De Lei, esse ver cartográfico testou, como diz Guattari & Rolnik (1986),

não mais do que modalidades de expressão, como no candomblé.

Laroiê62. Coragem e saúde. Força e audácia.

Por fim, o término dos trabalhos é na verdade o desejo de que se abram novos

caminhos, para além das linhas desse encontro. Nunca há desejos o bastante. “O desejo é

revolucionário porque quer sempre mais conexões e agenciamentos” (DELEUZE & PARNET,

1998, pp. 94-95).

Acabemos, pois, como quem forja o tempo de um respiro, como quem quer uma...

62 Saudação a Exu.

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119

pausa para um cigarro...

Tecendo a Manhã

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(João Cabral de Melo Neto)

“Eu vos digo: é necessário ter um caos em si para poder dar à luz uma estrela bailarina.”

(Friedrich Nietzsche)

É dança, é luta, é capoeira

Guerreiros Castello Branco

Compositor: Castello Branco e Tô

Somos guerreiros nesse lugar

Vindos de lugar nenhum

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Nossa voz

Nossa luz

Nossa

Somos guerreiros nesse lugar

Vindos de um lugar comum

Nossa voz

Nossa luz

Nossa

Nossa

A Vida Que Te Beija

Trupe Chá de Boldo

Não

Tristeza não

Essa é quando a alma veste luto

E já não luta

Sim

Peleja sim

Coração

Em busca de beleza

Corre anda rasteja

Só não deixa fugir a vida que te beija

Vem cantar

Como quem resisti

Resisitir

Como quem deseja

Primavera Nos Dentes

Secos & Molhados

Quem tem consciência pra se ter coragem

Quem tem a força de saber que existe

E no centro da própria engrenagem

Inventa contra a mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado

Quem já perdido nunca desespera

E envolto em tempestade, decepado

Entre os dentes segura a primavera

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“O correr da vida embrulha tudo, a vida é

assim: esquenta e esfria, aperta e daí

afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que

ela quer da gente é coragem” (Guimarães

Rosa).

“A gente é rascunho não acabaram de fazer” (Manoel de Barros)

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140

ANEXOS

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141

Quadro 1 – Projetos financiados pelo governo brasileiro para estratégias em RD

(Redução de Danos)

Nº ANO TÍTULO FINANCIADOR

1

1999 / 2000 “É de Lei”: Você tem pra trocar? Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

2

2001 / 2002 Vocês têm pra trocar seringas usadas

por novas?

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

3 2002 Seminário Nacional de Redução de

Danos: outras estratégias são

possíveis.

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

4 2002 / 2003 Sexta, sábado e domingo pedem

cachimbo.

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

5 2002 / 2003 PRD “É de Lei”. Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

6 2002 / 2003 Nem patroa, nem patrão: sexo só

com proteção.

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

7 2004 Pró- ArtE de Lei Programa Estadual de DST/Aids de São

Paulo – Secretaria Estadual de Saúde e

SPDM – Sociedade Paulista para

Desenvolvimento da Medicina

8 2004 / 2005 Sexta, sábado e domingo pedem

cachimbo – a solicitação continua.

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

9 2004 / 2005 Programa de Redução de Danos “É

de Lei”: Inclusão e Fortalecimento.

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

10 2005 / 2006 Centro de Defesa: Faça o que tu

queres, é tudo da Lei.

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

11 2006 / 2007 Programa de Redução de Danos “É Programa Estadual de DST/Aids de São

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142

de Lei”: Inclusão, Fortalecimento e

outras Estratégias Possíveis.

Paulo - Secretaria Estadual de Saúde

12 2006 / 2007 Vamos Para-r-a Nóia?...Comunidade

“É de Lei” apresenta a Cracolândia.

Programa Estadual de DST/Aids de São

Paulo - Secretaria Estadual de Saúde

13 2006 / 2007 Canudos: Uma expedição contra as

Hepatites.

Programa Nacional de Hepatites Virais –

Ministério da Saúde do Brasil

14

2007 / 2008 RoDa Sudeste

(Parceria com a Associação Brasileira

de Redutores e Redutoras de Danos)

Programa Nacional de DST/Aids –

Ministério da Saúde do Brasil

15 2008 Reduzindo os danos: prevenção da

co-infecção Tuberculose HIV/AIDS

Programa Nacional de Controle da

Tuberculose – Ministério da Saúde do

Brasil, Fundação Ataulpho de Paiva e

Fundo Global

16 2009/2010 Programa de Redução de Danos “É

de Lei”.

Programa Estadual de DST/Aids de São

Paulo - Secretaria Estadual de Saúde

17 2009 Seminário Internacional Passado,

Presente e Futuro da Redução de

Danos – 10 anos do Centro de

Convivência É de Lei.

Programa Estadual de DST/Aids de São

Paulo - Secretaria Estadual de Saúde

18 2010/2012 Ponto de Cultura – “Cultura de Rua,

na Rua, pra Rua”.

Ministério da Cultura

19

2010 Seminário “Drogas e Vulnerabilidade:

Ações Intersetoriais”.

Programa Estadual de DST/Aids de São

Paulo - Secretaria Estadual de Saúde

20 2011 Interações Estéticas

21 2011/2012 ResPire – Saúde em Festa Departamento de DST, AIDS e Hepatites

Virais – Ministério da Saúde

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143

22 2011/2012 PRD - Programa de Redução de

Danos “É de Lei”.

Programa Municipal de DST e AIDS –

Secretaria Municipal de Saúde

IMAGEM 1 – KIT SNIFF DO É DE LEI