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Um relato real e inspirador da força de uma adolescente que viveu por dentro uma das páginas mais negras da História, o Holocausto. «Esta extraordinária e arrepiante memória é uma leitura essencial para todas as pessoas.» Independent Mary Berg O Diário de Mary Berg

por Hitler O Diário de Mary Berg · e devastadores sobre a Segunda Guerra Mundial ... do Holocausto dos EUA), Moishe Shubinsky, de Inglaterra, ... em livro na Nova Iorque em tempos

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História/Memórias

ISBN 978-989-8491-40-4

9 789898 491404

Um relato real e inspirador da força de uma adolescente que viveu por dentro uma das páginas mais negras da História, o Holocausto.

Uma História Épicade Perda e Salvaçãona Europa Oprimida

por Hitler

«Esta extraordinária e arrepiante memóriaé uma leitura essencial para todas as pessoas.»

Independent

Em 1939, no dia do seu décimo quinto aniversário, enquanto as

forças nazis apertavam o cerco sobre Varsóvia, Mary Berg começou

a escrever este diário. Nesse momento, ela ainda não sabia que,

quatro anos depois, teria preenchido 12 cadernos com as suas memórias do

terror nazi, recordando com detalhes vívidos alguns dos mais importantes e dramáticos acontecimentos do século xx.

Desde o cerco das forças alemãs a Varsóvia até à final, e brutal, supressão da Insurreição do Gueto, Mary Berg documenta a prova-ção dos refugiados, a luta diária pela sobrevivência, os recrutamen-tos forçados de judeus, as deportações e o heroísmo dos lutadores da Resistência que se ergueram contra a opressão alemã.

Libertada através de uma troca com um prisioneiro dos Aliados, Mary Berg levou consigo os cadernos que escrevera durante quatro anos. Ao fazê-lo, deixou-nos um dos documentos mais extraordi-nários da Segunda Guerra Mundial: publicado originalmente em 1945, este diário dramático e impactante foi o primeiro a revelar a verdade sobre o Holocausto, um dos capítulos mais negros da História contemporânea.

«17 de abril de 1942Estou quase histérica. Um pouco antes das seis horas de hoje, o capitão da Polícia, Hertz, veio apressadamente a nossa casa e avisou: “Por favor, estejam preparados para tudo; às oito horas vai haver um massacre.” Depois foi-se embora a correr, sem mais explicações. O gueto ficou todo em pânico.

As pessoas fecharam rapidamente as lojas. Corria o rumor de que um Vernichtungskommando (comando destruidor), o mesmo do massacre de Lublin, chegara a Varsóvia para o organizar aqui. Também se dizia que os ucranianos e os lituanos se ocupariam agora da guarda do gueto porque os alemães iam para a frente russa.

Aos funcionários do Gabinete das Provisões foi-lhes dito para sair às seis horas e que deviam voltar para casa o mais cedo possível. A minha mãe meteu apressadamente alguma comida num cesto e foi com o pai procurar um refúgio numa cave. Eu sentia-me aterrorizada e tremia incontrolavelmente. Cada minuto parecia um século. As horas foram passando — sete, oito, nove… Agora, às 11 da noite, caiu sobre a cidade um silêncio de morte.

Há poucos minutos bateu-nos alguém à porta. Estávamos certos de que seriam os alemães. O meu pai abriu a porta e era um mensageiro da Polícia judaica, vindo do seu quartel-general para pedir ao capitão Hertz que se apresentasse imediatamente na Rua Ogrodowa. Deve ter acontecido alguma coisa realmente má para chamarem assim o capitão a meio da noite.

As horas vão-se arrastando lentamente. Não vem um único som da rua. Mantemo-nos todos vestidos, prontos para irmos a correr para o nosso refúgio de um momento para o outro. É horrível viver sob esta tensão constante.»

Sobrevivente do Holocausto, Mary Berg (1924–2013) foi libertada do Gueto de Varsóvia em 1943, refugiando--se, com a sua família, nos Estados Unidos da América. Foi ali que, com a ajuda do jornalista S. L. Shneider-man, organizou os 12 cadernos que escreveu enquanto esteve presa no gueto de Varsóvia, produzindo esta obra, originalmente publicada em 1945, e que a Vogais agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

«Esta extraordinária e arrepiante memória é uma leitura essencial para todos.»

Independent

«Um registo impressionante do terrorismo.»Kirkus Reviews

«Um dos documentos mais importantes da era de Hitler.»

San Francisco Chronicle

Mary BergO Diário de

Mary Berg

O D

iário de«Um dos relatos mais dramáticos

e devastadores sobre a Segunda Guerra Mundial…Um livro corajoso e inspirador.»

The New Yorker

Mary Berg

23 mm

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Índice

Ilustrações .................................................................................. 7

Agradecimentos ......................................................................... 9

Prefácio da edição de 1945 ......................................................... 13

Introdução .................................................................................. 17

capítulo um · O cerco de Varsóvia ....................................... 37

capítulo dois · Os primeiros dias do gueto ........................ 69

capítulo três · A vida continua ............................................ 87

capítulo quatro · Resistência ............................................. 103

capítulo cinco · As bombas russas .................................... 115

capítulo seis · Tifo ................................................................ 125

capítulo sete · «Pela violência feita a teu irmão» ............... 139

capítulo oito · O terror anda na rua ................................... 161

capítulo nove · Mais um ano .............................................. 175

capítulo dez · A primavera é cruel ...................................... 189

capítulo onze · Os alemães tiram fotografias .................... 203

capítulo doze · Os privilegiados vão para a prisão ............ 219

capítulo treze · As crianças vão passear ............................ 231

capítulo catorze · O fim da Polícia judaica....................... 247

capítulo quinze · O regresso dos dias sangrentos ............ 265

capítulo dezasseis · No campo de internamento ............. 283

capítulo dezassete · A batalha do gueto ............................ 295

capítulo dezoito · Viagem para a liberdade ...................... 321

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Notas ........................................................................................... 329

Referências ................................................................................. 343

Cronologia de eventos ............................................................... 349

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ilustrações

Judeus, com braçadeiras, caminham numa rua cheia

de gente no gueto de Varsóvia .................................................. 54

Romek Kowalski ........................................................................ 65

Mapa do gueto de Varsóvia ...................................................... 71

Duas crianças pobres a pedirem esmola numa rua do gueto ... 89

Romek Kowalski a orientar a construção de um muro

do gueto ...................................................................................... 101

O professor Kellerman a tocar o seu violino, possivelmente

com a mulher (desenho de Mary Berg) ................................... 110

Um rapaz é apanhado por um guarda alemão em pleno ato

de contrabando ........................................................................... 112

Mary e a sua irmã Anna no gueto de Varsóvia ........................ 127

Tadek Szajer com o seu boné de trabalhador do Serviço

de Ambulâncias, por volta de 1942 ........................................... 135

Ponte da Rua Chlodna no gueto de Varsóvia em 1942.

A família Wattenberg vivia num dos prédios de apartamentos

perto da ponte antes de ser enviada para a prisão de Pawiak ... 163

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Tadek Szajer (ao centro, no seu uniforme do Serviço

de Ambulâncias) com amigos no gueto ................................... 173

À procura de comida no pátio do número 41 da Rua Sienna

(desenho de Mary Berg) ............................................................ 182

Um homem é mandado parar por um gendarme nazi no gueto

(desenho de Mary Berg) ............................................................ 188

Uma das muitas oficinas existentes no gueto cujos postos

de trabalho eram objeto de disputas acaloradas, porque

se dizia que esses trabalhadores não seriam deportados ........ 213

Uma das numerosas crianças famintas tratadas no Hospital

Pediátrico Judaico Benson e Bauman da Rua Sliska .............. 234

Judeus do gueto de Varsóvia aguardam, no Umschlagplatz,

a vez de entrarem num dos comboios em que irão ser

deportados .................................................................................. 240

Mary Berg (a última à direita) numa representação do grupo

As Ceifeiras Russas no campo de internamento de Vittel,

em 22–23 de março de 1943 (fotografia gentilmente cedida

pela Coleção Stella Gumuchian, dos arquivos de James Fox) ... 293

Judeus capturados durante a insurreição do gueto de Varsóvia

são enviados para o local onde se juntavam as pessoas que

seriam depois deportadas (maio de 1943) ................................ 298

Soldados das SS passam pelos edifícios em chamas

durante a supressão da insurreição do gueto de Varsóvia,

em maio de 1943 ........................................................................ 300

O navio S. S. Gripsholm, palco da operação de troca

de prisioneiros, a entrar no porto de Nova Iorque ................. 325

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créditos fotográficos

Arquivos de James Fox (Coleção Stella Gumuchian): 293

Arquivos de S. L. Shneiderman, Universidade de Telavive: 65, 101,

110, 127, 135, 173, 182, 188, e fotografia da capa (imagem da autora,

a cores)

United States Holocaust Memorial Museum: 54, 89, 111, 213, 234,

240, 298, 300 e fotografias da capa (Insurreição do Gueto de Varsó-

via e imagens da autora a preto-e-branco)

Foram feitos todos os esforços para localizar e contactar os deten-

tores dos direitos das imagens, mas em alguns casos isso não foi

possível. O autor e a editora agradecem toda a informação que lhes

possam fazer chegar e que possibilite retificar as referidas omissões

numa futura edição da obra.

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Comecei a interessar-me pelo diário de Mary Berg e a traba-

lhar sobre ele em meados da década de oitenta do século xx.

No decorrer deste processo procurei, conheci e tive a ajuda

de muitas pessoas nos EUA, na Grã-Bretanha, na Alemanha, na

Polónia e em Israel. Acabei por ficar amiga de algumas. Quero agra-

decer especialmente a James A. Fox, ex-editor-chefe da Magnum

Photos em Nova Iorque e em Paris durante 30 anos, curador de ex-

posições fotográficas e historiador já reformado, pelo tempo e pelo

esforço que dedicou a ajudar-me a compreender o campo de inter-

namento de Vittel. James A. Fox conheceu os Shneidermans em

Paris na Magnum. O irmão de Eileen Shneiderman — o fotógrafo

David Seymour — foi um dos fundadores da Magnum. Aproveito

também para agradecer a oportunidade de entrevistar Gutta Eisenz-

weig Sternbuch e David Kranzler em fevereiro de 2006.

Quero dirigir um agradecimento especial aos filhos de Eileen e

de S. L. Shneiderman — Ben Shneiderman e Helen Sarid — e a Ro-

chelle Saidel pelos seus conselhos e pelo estímulo que me deram;

aos filhos de Sylvia Glass — Walter e David Goldfrank — e a Moira

Hyle, a filha de Norbert Guterman. Também quero agradecer a:

Alan Berger, Alice Eckhard, Anna e Tamas Adamik, de Budapeste,

Batia Gilad (do Arquivo Janusz Korczak no kibutz Combatentes do

Gueto), Jenny Manuel (do Arquivo Judaico Americano), Krystyna

agradecimentos

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O Diário de Mary Berg

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Freijat (secretária do reverendo Dr. Edward Puslecki, superinten-

dente-geral da Igreja Metodista Unida da Polónia), Mark Shenise

(da Comissão Geral dos Arquivos e da História da Igreja Metodista

Unida), Marianne Sandig, de Berlim, Megan Lewis (do Registo

de Sobreviventes do Museu Memorial do Holocausto dos EUA),

Moishe Shubinsky, de Inglaterra, Monica Kulp (filha de Gaither e

Halina Warfield), Robert Giliank, Roman Zakharii, Ryszard Mac-

zewski, de Varsóvia, Shelly Shapiro (do Centro de Educação dos

Amigos e Sobreviventes do Holocausto, de Latham, Nova Iorque),

Serge e Beate Klarsfeld, de Paris, Vanesa Chappell (do Intercâmbio

Interbibliotecas da Universidade Estatal do Centro do Missouri),

Universidade Estatal do Centro do Missouri pela bolsa de investi-

gação universitária para pesquisas nos Arquivos Nacionais e, como

sempre, ao meu marido, Floyd C. Pentlin.

Quero aqui recordar a minha adorada mãe, Jean Riddle (1919–

–2001), que queria que os seus filhos aprendessem a pensar com

clareza, e a minha avó, Addie Gillum Flanery (1893–1974), que foi

minha professora de Inglês no preparatório e que nutria um gosto

e compreensão profundas pela língua inglesa. Quero recordar tam-

bém os tradutores Norbert Guterman (1900–1984) e Sylvia Glass

(1912–2006) pelos esforços que desenvolveram em 1945 para trazer

a público este documento histórico. Lembro-me da conversa tele-

fónica interessante e animada que tive com Sylvia Glass Goldfrank

pouco antes do seu falecimento em 2006.

Como coordenadora desta edição, dedico o meu trabalho à me-

mória de S. L. Shneiderman, que desempenhou um papel essencial

no sentido de garantir que este importante registo sobre o Gueto de

Varsóvia viesse a ser conhecido publicamente em 1944–1945. Aper-

cebeu-se do seu significado para a sobrevivência dos judeus pola-

cos e para a História, trabalhando muito de perto com Mary Berg

e tratando da tradução do diário, da sua publicação em folhetins e,

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Agradecimentos

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finalmente, da sua publicação em livro na Nova Iorque em tempos

de guerra. S. L. Shneiderman nasceu em Kazimierz, na Polónia,

em 1906, e morreu em Israel em 1996. Também gostaria de incluir

nesta dedicatória a sua mulher e colaboradora, Eileen Shneiderman,

nascida com o nome de Eileen Szymin em Varsóvia, na Polónia,

em 1906, tendo falecido em Israel em 2004. Samuel Shneiderman

perdeu os pais e dois irmãos e as respetivas famílias, 11 pessoas no

total, no gueto de Opole, e Eileen Shneiderman perdeu os pais no

gueto de Otwock. Juntos formavam uma equipa de autores inspi-

radora. Vieram para os EUA em 1940 e dedicaram as suas vidas à

preservação do mundo culturalmente rico dos judeus polacos e da

língua iídiche, que os nazis tentaram destruir. Tenho pena de não

terem vivido para verem este diário na sua nova versão impressa.

Susan Pentlin

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Prefácio

da edição de 1945

Contai isto aos vossos filhos,

E que os vossos filhos digam aos filhos deles,

E os filhos deles à outra geração.

Joel, 1:3

As zonas urbanas onde viviam os judeus, criadas pelos nazis

na Polónia e delimitadas por muros, foram concebidas para

humilhar e torturar o povo judaico. O que hoje resta desses

guetos são cinzas, depois de os judeus as terem transformado em

cidadelas de resistência. Em Varsóvia, Byalistok, Bendzin e Czesto-

chowa, os judeus — homens, mulheres e crianças —, empunhando

armas obsoletas, ergueram-se contra os batalhões blindados dos

nazis. Ninguém enviou munições de paraquedas para esses com-

batentes isolados, nem mesmo durante a Batalha do Gueto de Var-

sóvia, que se prolongou por 42 dias. A luta heroica e o sofrimento

dos judeus nos guetos polacos são um dos mais trágicos e menos

conhecidos capítulos da Segunda Guerra Mundial.

A própria palavra «gueto» é uma invenção nazi, porque não pode

haver comparação entre o gueto de Varsóvia e todos os outros que

foram criados pelos nazis na Polónia e os guetos medievais que,

ocasionalmente, serviam de proteção aos judeus que viviam no seu

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O Diário de Mary Berg

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interior. Desde os primeiros tempos que os guetos modernos servi-

ram ao inimigo como armadilhas mortais.

Paradoxalmente, o mundo que deu crédito às mentiras nazis re-

cusou-se a acreditar nos crimes nazis. Ainda hoje há «liberais» que

se recusam a acreditar que os nazis assassinaram quase quatro mi-

lhões de judeus na Europa. Encaram as revelações sobre as câmaras

de gás, os crematórios e as experiências bacteriológicas, executadas

em centenas de milhares de judeus, como produtos da propaganda

antialemã.

Os nazis contavam com isto. Sabiam que quanto maior fosse a

dimensão dos seus crimes, menos credíveis seriam.

As pessoas que viviam fora da Polónia tinham uma imagem

completamente falsa das condições de vida dentro das zonas judai-

cas isoladas no interior do país. No estrangeiro imaginava-se que os

judeus eram uma massa de seres humanos que esperavam apatica-

mente pelo morticínio. Que esta imagem era errónea é o que fica-

mos a saber pelo diário de Mary Berg, a primeira crónica completa

do estabelecimento e da destruição do gueto de Varsóvia escrita por

uma testemunha sem qualquer tipo de preconceito político ou par-

tidário.

No início da ocupação alemã, os próprios judeus não tiveram

a noção do destino que lhes estava reservado. Fizeram o melhor

que podiam para preservar o seu modo de vida e, com ele, as dis-

tinções sociais inevitáveis que prevaleciam antes da ocupação. Por

isso, as condições dentro do gueto espelharam naturalmente a vida

no exterior. Com o tempo, e perante as adversidades do domínio

nazi, começou a aumentar a solidariedade entre todas as classes

dos judeus. Os nazis encaixaram deliberadamente numa área antes

ocupada por cerca de 100 000 pessoas um grupo heterogéneo de

600 000 judeus, oriundos de todos os territórios ocupados. Estes

judeus, de culturas e ideias diversas, mergulhados num abismo de

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Prefácio da edição de 1945

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fome, de doença e de terror, conseguiram organizar uma forma de

existência comunitária.

Tal como aconteceria no seio de outros grupos, os que possuíam

reservas de dinheiro ou de valores conseguiram sobreviver durante

mais tempo do que os menos afortunados. O comércio clandestino

com o chamado «lado ariano» prosseguiu, por vezes com a coni-

vência dos próprios nazis, que aproveitavam estas oportunidades

para adquirirem objetos valiosos em troca dos marcos alemães sem

valor. Através de canais secretos, as organizações de combate dos

judeus conseguiram reunir um parco armamento; o dinheiro para

essas armas veio, em grande medida, dos judeus mais ricos, alguns

dos quais contribuíram voluntariamente enquanto outros o faziam

sob pressão da resistência judaica.

Mary Berg acabara de fazer 16 anos quando foi aprisionada no

gueto de Varsóvia. Os acontecimentos fizeram-na «crescer» rapida-

mente. Sendo filha de uma cidadã americana, pertencia a um mi-

núsculo grupo privilegiado. A bandeira americana na sua lapela e

uma outra à porta do seu apartamento protegiam-na do inimigo,

quais talismãs. Viveu entre os que menos sofreram, embora, dia

após dia, fosse abalada pelas tragédias das suas colegas de escola,

dos seus vizinhos e da sua própria família.

No futuro, esperamos, serão descobertas crónicas escondidas

pelos seus autores nas ruínas do gueto de Varsóvia. Poderão ser

encontrados outros sobreviventes que darão testemunho deste he-

roico episódio da guerra — heroico não apenas pela morte de tantos

mártires, mas pela sua vontade teimosa de viverem uma vida digna

apesar dos riscos medonhos que enfrentavam. Por agora, o diário

de Mary Berg é o único relato existente de alguém que viu tudo com

os seus próprios olhos. A autora conseguiu sair com as suas notas

porque, depois de três anos de saque, os alemães nem sequer se

deram ao trabalho de revistar os poucos habitantes do gueto que,

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O Diário de Mary Berg

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naturais de outros países, conseguiram finalmente deixar Varsóvia.

Originalmente, a jovem Mary Berg escreveu as suas notas em po-

laco, numa forma abreviada. Depois reescreveu-as ao chegar a Nova

Iorque no navio S. S. Gripsholm. Tinha 15 anos quando começou a

escrever o diário e 20 quando decidiu publicá-lo.

Ao preparar o seu manuscrito para publicação, fiz apenas as alte-

rações necessárias para clarificar pormenores que, de outro modo,

seriam ininteligíveis para os leitores americanos. Quase todos os

nomes citados no diário são verdadeiros. Os seus titulares morre-

ram ou deixaram de estar em perigo. Só mudámos os nomes das

pessoas cujo destino é ainda incerto ou cujos familiares poderiam

ficar em perigo se elas fossem identificadas.

Quero aqui expressar a minha gratidão a Norbert Guterman que,

em colaboração com Sylvia Glass, preparou a versão inglesa de The

Warsaw Ghetto*.

S. L. Shneiderman

* O título original da primeira publicação do diário de Mary Berg, em 1945, foi The Warsaw Guetto: A Diary. [N. do T.]

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17

introdução

E assim continuou. Dez por dia, 10 000 judeus por dia. Mas foi

por pouco tempo. Rapidamente passou para os 15 000. Varsóvia!

A cidade dos judeus — a cidade rodeada por uma cerca e por

muros encolheu, expirou, derreteu-se como neve aos meus olhos.

The Song of the Murdered Jewish People, de Yitzak Katzenelson, escrito

em 2, 3 e 4 de novembro de 1943

No dia 19 de abril de 1944 Mary Berg deu início à sua luta

para abrir os olhos dos americanos para a realidade do Ho-

locausto. Uma multidão de milhares de pessoas reuniu-se

nesse dia na Sinagoga de Varsóvia em Nova Iorque e desfilou até à

Câmara Municipal, celebrando desse modo o primeiro aniversário

da Insurreição do Gueto de Varsóvia. A família Wattenberg, Shya e

Lena e as suas filhas Mary (Miriam) e Ann, que haviam escapado ao

terrível destino de tantos judeus europeus e chegado aos EUA ape-

nas quatro semanas antes, encabeçava o desfile. Os participantes

levavam cartazes onde se lia «Apelamos à consciência da América

para ajudar a salvar os judeus que na Polónia ainda podem ser sal-

vos», «Vinguem o sangue do gueto polaco» e «Três milhões de ju-

deus polacos foram assassinados pelos nazis! Ajudem-nos a salvar

os sobreviventes».1

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O Diário de Mary Berg

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Os Wattenbergs tinham chegado aos EUA em março de 1944,

como repatriados, no S. S. Gripsholm, um navio de troca de pri-

sioneiros, alugado pelo Departamento de Estado dos EUA à Swe-

dish American Line. S. L. Shneiderman, um jornalista judeu que

também fugira da Europa nazi, conheceu Mary Berg, então com

19 anos, na doca quando o navio aportou. Ficou a saber que ela tra-

zia consigo um diário da sua experiência e da sua família no gueto

de Varsóvia, escrito em polaco em 12 pequenos blocos de aponta-

mento em espiral.

No prefácio à edição polaca do diário, datada de 1983, Shneider-

man evoca a sua reação:

Li, maravilhado, as letras minúsculas nas páginas densamente

escritas dos seus blocos de apontamentos. Receando que os seus

escritos pudessem cair um dia nas mãos dos nazis, Mary escreveu

as suas notas numa forma muito pessoal de estenografia, usando

apenas iniciais para as pessoas cujos nomes citava. Nunca usou a

palavra «nazi». Em vez disso escrevia «eles».

Nancy Craig, numa emissão de rádio da WJZ em Nova Iorque,

perguntou a Mary como é que ela conseguira trazer o seu diário

para os EUA. E ela respondeu: «Desenvolvi uma espécie de código

próprio e escrevi os factos mais importantes. E depois, muito sim-

plesmente, pu-lo na minha mala de viagem. Também memorizei

todas as datas e todos os nomes importantes.»2 Pouco depois de ter

chegado, Mary começou a reescrever as suas notas em polaco.

Shneiderman trabalhou de perto com Mary nos meses seguin-

tes, decifrando os blocos de apontamentos e pedindo-lhe «para ex-

plicar certos factos e certas situações que, de outro modo, seriam

um enigma não apenas para os leitores americanos como para lei-

tores de todo o mundo», aparentemente corrigindo alguns erros

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Introdução

19

ortográficos e talvez até acrescentando alguns elementos. Nos casos

em que Mary já sabia que as pessoas citadas haviam perecido, ela e

Shneiderman substituíam as iniciais pelos nomes completos. Pela

mesma razão, o apelido da autora foi reduzido para «Berg» para

proteger a família e os amigos que ainda pudessem estar vivos na

Polónia do tempo da guerra. Mary começara a reescrever partes do

seu diário já em Pawiak. Por estes motivos talvez seja mais exato

chamar à sua obra publicada «memórias em forma de diário».

Shneiderman traduziu o manuscrito polaco3 para iídiche, que

publicou em artigos no Der Morgen zshurnal. Depois contratou Nor-

bert Guterman, que nascera na Polónia, e Sylvia Glass, diplomada

do Wellesley College, para traduzir a versão polaca para inglês. Terá

sido esta a versão que apareceu no jornal PM, de Nova Iorque, sob

a forma de folhetim, e, de uma forma resumida, no Jewish Contem-

porary Record no outono de 1944. Mais ou menos na mesma altura,

o diário foi traduzido para alemão por Mary Graf e publicado no

jornal de exilados de Nova Iorque Aufbau [Reconstrução] entre 22 de

setembro de 1944 e 19 de janeiro de 19454.

Shneiderman publicou, em fevereiro de 1945, a versão completa

de Mary Berg com o título Warsaw Ghetto: A Diary [O Gueto de Var-

sóvia: um Diário], em colaboração com L. B. Fisher, em Nova Iorque.

Mary desenhou a imagem que aparece na sobrecapa original que

representava um muro de tijolo que definia os limites do gueto de

Varsóvia. No prefácio a uma edição especial do diário, patrocinada

pela Organização Nacional dos Judeus Polacos, o seu presidente,

Joseph Thon, salientou o propósito de Berg e de Shneiderman ao

publicarem o diário:

Os dirigentes das Nações Unidas declararam que só recorreriam

ao gás tóxico e à guerra bacteriológica se os alemães fossem os

primeiros a usar esses métodos desumanos. E os alemães usaram

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O Diário de Mary Berg

20

esses métodos para chacinarem milhões de judeus em Treblinka,

Majdanek, Oswiecim e outros campos. Mas, ainda hoje, o mundo

inteiro não se apercebeu por completo deste facto. É por isso nosso

dever tornar conhecida a horrível verdade e publicar documentos

e relatos de testemunhas que o revelam não deixando qualquer

margem para dúvidas.

O diário de Mary Berg foi publicado antes de a guerra terminar,

antes de as pessoas nos EUA e noutros países, e mesmo a própria

autora, conhecerem a enormidade dos crimes alemães e os por-

menores da Solução Final. Devemos ainda ter presente que, como

testemunha desses crimes contra a humanidade, Mary chegou a

Nova Iorque antes do verão de 1944, quando os judeus húngaros,

a última comunidade judaica europeia, foram mortos pelo gás em

Auschwitz e ainda havia a esperança de que a atenção mundial pres-

tada ao seu sofrimento pudesse conduzir à sua libertação.

Mary Berg não foi a única testemunha destes acontecimentos a

pronunciar-se em inglês antes do fim da guerra. Entre 1942 e 1943

foram publicados alguns artigos e panfletos com relatos de testemu-

nhas presenciais, e declarações em primeira mão foram também

incluídas num livro sobre os judeus polacos em 1943.5

O diário de Mary Berg, porém, foi o primeiro relato publicado

em inglês a descrever os acontecimentos ocorridos desde a criação

do gueto até às primeiras deportações, realizadas entre julho e se-

tembro de 1942. Foi também um dos primeiros relatos pessoais a

descrever o gás usado para matar a população judaica em Treblinka.

Num prefácio ao diário, Shneiderman assinalou que:

No futuro, esperamos, serão descobertas crónicas escondidas pelos

seus autores nas ruínas do gueto de Varsóvia. Poderão ser encon-

trados outros sobreviventes que darão testemunho deste heroico

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Introdução

21

episódio da guerra […]. Por agora, o diário de Mary Berg é o único

relato existente de alguém que viu tudo com os seus próprios olhos.6

O contributo único dado por Mary Berg foi reconhecido em vá-

rias críticas publicadas durante o inverno de 1945. O The New Yorker

escreveu: «Este é um livro impiedoso, repleto de trevas e terror, e

que, devido à imagem que transmite da coragem e da humanidade

das pessoas do gueto de Varsóvia, é também corajoso e inspirador.»7

A Kirkus Review classificou-o como «um relato comovente do ter-

rorismo»8 e a crítica feita pelo The New York Times recomendava a

leitura desta obra a toda a gente «sem reservas»9. A Saturday Review

afirmou que as entradas do diário de Berg «trazem a marca da sin-

ceridade e da autenticidade e, aparentemente, não são “embeleza-

das” por nenhum tratamento editorial»10.

Pouco depois da sua publicação, em fevereiro de 1945, o diário foi

traduzido para várias línguas.11 Mais recentemente, o diário foi tema

de uma peça de teatro, de uma representação de teatro de rua, e

apareceu no documentário, de 1991, «A Day in the Warsaw Ghetto:

A Birthday Trip in Hell» [«Um dia no Gueto de Varsóvia: uma Via-

gem de Aniversário ao Inferno»]12. Também é citado como fonte

na bibliografia de muitas obras importantes sobre o Holocausto, à

disposição de estudantes e académicos.13

O diário de Mary Berg é único pela sua autenticidade, pela sua

riqueza de pormenores e pela sua emoção. Alice Eckhardt, uma co-

nhecida teóloga cristã, escreveu em 1995:

Agora, com o destino fatal do gueto já por todos conhecido, os por-

menores da vida comunitária, que prosseguia e por vezes até con-

seguia florescer apesar das horríveis condições em que subsistia,

tornam-se ainda mais importantes para o nosso conhecimento.

Os fatores únicos que tornaram possível a esta jovem mulher

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O Diário de Mary Berg

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deixar o gueto, pouco antes da sua destruição, dão à obra uma vi-

talidade e ao mesmo tempo uma emoção tão grandes, que é difícil

de encontrar algo que lhe corresponda.14

Mary Berg tinha 15 anos quando os alemães atacaram a Polónia e

o seu diário é o de uma rapariga. Como muitas outras crianças que

escrevem nos seus diários, procurava encontrar um significado para

a crueldade com que era obrigada a conviver. Como Anne Frank e

outras crianças, Mary começou a escrever o seu diário como um

meio de se confortar e de se manter entretida. Mais tarde tornou-

-se uma forma de expressão para si e para os seus amigos. Alvin

Rosenfeld, no seu livro A Double Dying15, conclui que os diários do

Holocausto escritos por crianças ou jovens adolescentes «parecem

quase constituir um subgénero da literatura de prisão».

Mary esteve com a sua família no gueto de Varsóvia desde o seu

primeiro dia, em novembro de 1940, até poucos dias antes do co-

meço da Grande Deportação, em 22 de julho de 1942. Em 17 de julho

desse ano os pais e as duas filhas foram internados, na qualidade de

cidadãos americanos, na prisão de Pawiak, localizada no gueto. Foi

da janela da prisão que seguiram a deportação de mais de 300 000

habitantes do gueto. Vários anos mais tarde, Mary lembrou-se de

ter visto muitos dos seus amigos entre «os homens envelhecidos de

barba grisalha, as raparigas na flor da idade e os rapazes orgulhosos

que eram levados como gado para o Umschlagplatz, na Rua Stawki,

ao encontro da morte»16.

Pouco depois da meia-noite de 18 de janeiro de 1943, quando

no gueto começou a segunda Aktion, que conduziria ao primeiro

ato de resistência armada no dia seguinte, Mary, os pais e a irmã

Ann foram enviados para um campo de internamento em Vittel,

em França, com outros prisioneiros estrangeiros. Um ano mais

tarde, foram selecionados para uma troca por prisioneiros alemães

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Introdução

23

dos EUA. E a 16 de março de 1944 chegaram à América a bordo do

S. S. Gripsholm.

Desde muito cedo, já no período da ocupação, que Mary soube

que os alemães estabeleceriam um preço para a vida humana e que

os privilegiados que já tinham dinheiro antes da ocupação teriam

uma melhor hipótese de sobrevivência. Quando foi criado o gueto

em Lodz, uma colega de escola de Mary foi para Varsóvia com, nas

palavras de Mary, «histórias de fazer gelar o sangue». A família dela

— contou — conseguira escapar por «subornar a Gestapo com va-

lentes dólares americanos». É claro que Mary sabia que só «os ju-

deus abastados» podiam ter um fácil acesso a dinheiro estrangeiro.

Mary compreendeu que fazia parte desse grupo dos privilegia-

dos. E explicou, no seu diário, que os desprivilegiados «só têm, no

máximo, uma hipótese de dez por cento [de sobrevivência]». Mais

tarde reconheceu, com igual sinceridade, que «só os que dispõem

de grandes somas de dinheiro é que se conseguem salvar desta vida

terrível».

Mary cresceu no seio de uma família abastada em Lodz. O pai

era proprietário de uma galeria de arte e ia ao estrangeiro comprar

obras de mestres europeus como Poussin e Delacroix. Mary fre-

quentou à escola em Lodz e os pais puderam dar-se ao luxo de pas-

sar seis semanas numa estância termal no verão de 1939. A família

tinha familiares a viverem nos EUA.

Mary também teve discernimento para perceber que os cidadãos

estrangeiros beneficiavam de uma melhor hipótese de sobrevivência.

Os judeus com passaportes de países neutros estavam dispensados

de usar a estrela judaica e de fazerem trabalhos forçados. Quando

duas amigas conseguiram obter documentos de identidade nacio-

nais de um país da América do Sul, Mary comentou: «Não admira

que muitos judeus tentem obter documentos desses, mas nem todos

dispõem dos meios para os comprar ou coragem para os usar».

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O Diário de Mary Berg

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A mãe de Mary, Lena, nasceu em Nova Iorque a 1 de maio de

1902 e tinha nacionalidade americana. Aos 12 anos Lena foi viver

para a Polónia com os seus pais, polacos, e um irmão e uma irmã

mais velhos, também nascidos nos EUA. Os irmãos mais novos,

Abie e Percy, nasceram depois de a família ter regressado à Polónia

em 1914. Quando, nos anos vinte, os pais e os irmãos mais velhos

regressaram aos EUA, Lena, que era nessa altura desenhadora de

moda, ficou em Lodz com os irmãos mais novos. Casou-se com

Shya Wattenberg, de nacionalidade polaca, que era pintor e comer-

ciante de antiguidades.17 Tiveram duas filhas, Mary e a sua irmã

mais nova, Ann.

Durante a ocupação alemã, o estatuto da mãe como cidadã ameri-

cana garantiu a toda a família proteção e privilégios, mesmo apesar

de Mary e a irmã terem nascido na Polónia. Quando o carteiro trouxe

à mãe uma carta do consulado americano, em dezembro de 1939,

Mary escreveu que ele «não conseguiu conter-se e expressou a sua

inveja pelo facto de termos ligações com a América». Em 5 de abril

de 1940 observou, com realismo, que «os cidadãos polacos de ori-

gem judaica não têm quem os proteja a não ser eles próprios». Mais

tarde, explicou que o cartão de visita da mãe na porta da casa de Var-

sóvia, indicando que ela era americana, «era um talismã maravilhoso

contra os bandidos alemães que visitam as casas de todos os judeus,

sem serem convidados». Era de tal modo verdade, que os vizinhos

iam para casa deles assim que avistavam os uniformes alemães.

Embora os Wattenbergs fossem refugiados, conseguiram man-

ter consigo algum dinheiro e bens valiosos. Também recebiam

cartas e encomendas de familiares residentes nos EUA, e a Sra.

Wattenberg, como cidadã americana, teve ao início autorização

para sair do gueto. Quando os alemães, em novembro de 1940, fe-

charam oficialmente o bairro judaico para o transformarem num

gueto, os Wattenbergs tiveram a felicidade de se poderem manter

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Introdução

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no apartamento do número 41 da Rua Sienna, na esquina da Rua

Sosnowa, no território do gueto. Esta morada fazia parte da área co-

nhecida por «Pequeno Gueto», na fronteira do gueto a sul. O pátio

para onde as janelas davam abria-se para o «lado ariano» da rua,

onde ainda era possível ver pessoas a andarem livremente.

O «Pequeno Gueto» tornou-se a zona privilegiada, como indica

Gutman:

Mesmo tendo o gueto adotado o princípio de que «todos são

iguais», algumas pessoas eram «mais iguais do que outras» e este

desequilíbrio era também percetível nas ruas. Algumas zonas,

como a Sienna ou a Chlodna, eram consideradas abastadas.

Os apartamentos eram maiores, com menos gente e, acima de

tudo, havia pessoas relativamente bem alimentadas. Estas ruas

eram as moradas dos judeus assimilados […] e dos judeus ricos, que

haviam conseguido manter uma parte da sua riqueza.18

Mary estava ciente desta desigualdade e da importância da ri-

queza na vida do gueto.

O seu conhecimento da corruptibilidade do Judenrat* é também

visível numa entrada escrita mais tarde, depois de ela e a família

se terem mudado para um apartamento no número 10 da Rua

Chlodna, situado junto do portão ocidental do gueto, perto da pas-

sagem pedonal por cima dessa rua. E explicou-o do seguinte modo:

«Os mais abastados, e que puderam subornar os funcionários do

gabinete de alojamento, ficaram com os melhores apartamentos

desta rua de grandes casas modernas. A Rua Chlodna é geralmente

considerada a rua aristocrática do gueto, tal como a Rua Sienna o

foi ao início.»

* «Conselho judaico», órgão administrativo que reunia os chefes das comunida-des criadas pelos judeus nos guetos por imposição dos nazis. [N. do T.]

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O Diário de Mary Berg

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Embora Mary parecesse muitas vezes sentir-se desconfortável

relativamente aos privilégios e à proteção da sua família, também

queria esquecer-se do horror que a rodeava e, com a resiliência pró-

pria dos jovens, adaptou-se à vida durante a ocupação. Wiszniewicz

entrevistou um sobrevivente do gueto que vivia nos EUA há alguns

anos e que lhe disse:

As pessoas pensam que o gueto era como no cinema: um terror

constante e implacável. Mas não era nada disso. Estávamos sem-

pre cercados pelo terror mas vivíamos as nossas vidas normais en-

quanto isso acontecia. No gueto continuava-se a namorar, liam-

-se romances, havia concertos e peças de teatro. As pessoas iam

a um restaurante enquanto alguém morria nas traseiras desse

mesmo restaurante. As situações normais e as situações anormais

interligavam -se repetidamente.19

É esta a vida que Mary descreve em cada página.

Muitos dos seus jovens amigos de Lodz também fugiram para

Varsóvia. Durante o ano de 1940, o diretor do seu liceu de Lodz,

o Dr. Michael Brandstetter20, assim como outros professores, co-

meçou a dar aulas ilegais em Varsóvia. Os alunos reuniam-se se-

cretamente duas vezes por semana em casa dos Wattenbergs para

poderem concluir os seus estudos. A escola só era acessível aos pri-

vilegiados porque os estudantes membros desses grupos de estudos

tinham normalmente de pagar aos seus professores 30 a 40 zlótis

por mês21.

À medida que aumentava o número de refugiados e que as con-

dições se tornavam cada vez mais inquietantes, os judeus de Var-

sóvia começaram a criar uma rede de organizações de apoio e de

autoajuda na zona judaica. Ansiosos por contribuírem, Mary e 11

dos seus amigos de Lodz fundaram um clube para angariar fundos.

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Introdução

27

E pouco tempo passou até que, a pedido de um representante do

Comité Conjunto de Distribuição, decidiram montar um espetáculo

musical. Intitularam-se Grupo Artístico de Lodz ou, em polaco, Lod-

zki Zespol Artystyczny, ou LZA, cujas letras (muito apropriadamente,

na opinião de Mary) formavam a palavra «lágrima».

Um documento recuperado do arquivo Oneg Shabbat refere-se

à juventude «privilegiada» do gueto, na sua maioria composta por

refugiados de Lodz e de cidades vizinhas, a que o autor, com algum

desprezo, chama «juventude de ouro». No seu diário, Mary descreve

as idas aos cafés da Rua Sienna para cantar e as atuações no Teatro

Femina com Romek, incursões que contrastam com os jovens e as

crianças que morriam de fome no gueto. E mesmo o clube LZA,

criado para angariar dinheiro para os pobres, prestou claramente

aos jovens que nele participavam, e de forma muito clara, algum

alívio perante os horrores que viam à sua volta, como Mary regista,

ao contar que passaram «uns tempos muito animados» ao monta-

rem o seu espetáculo, que foi um grande êxito. Ela não deixou, no

entanto, de continuar a ser muito sensível à desigualdade que via e

ao desespero crescente que alastrava dentro do gueto. Poucas sema-

nas antes, registara a visita feita a uma casa de refugiados, onde viu

crianças seminuas e sujas deitadas num estado de total apatia. Uma

criança olhou para ela e disse que tinha fome. Com uma candura

muito caraterística, Mary confessou no seu diário: «Senti-me domi-

nada por um sentimento de enorme vergonha. Eu comi nesse dia

mas não tinha um pedaço de pão que pudesse dar àquela criança.

Nem me atrevi a olhá-la nos olhos e fui-me embora.»

Noutra passagem comovente escreveu sobre os «sonhadores de

pão» que via nas ruas, cujos olhos «estão velados por uma névoa

que é de outro mundo». E explica que se sentam, «em geral, no

outro lado da rua diante das montras das lojas que vendem comida,

mas os seus olhos já não veem o pão que existe atrás do vidro, que

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O Diário de Mary Berg

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talvez lhes pareça um paraíso distante e inacessível». Nessa mesma

entrada, expressa também a culpa que sente pelos seus privilégios,

concluindo: «Tornei-me de facto muito egoísta. Por agora estou

quente e tenho comida mas há tanta miséria e tanta fome à minha

volta, que começo a sentir-me muito infeliz.»

Abraham Lewin, um dos diaristas do gueto, que não sobreviveu,

descreveu os contrastes enormes entre os habitantes abastados do

gueto e os muitos milhares que sofriam com a pobreza, as doenças

e a fome:

É muito difícil contemplar o gueto com as suas multidões de ex-

pressões abatidas e cores aguadas. Alguns parecem cadáveres que

estiveram enterrados durante semanas. São uma visão de tal modo

aterradora, que nos fazem estremecer instintivamente. Em total

contraste com este pano de fundo que são estas figuras literalmente

esqueléticas, o pessimismo que tudo cobre e o desespero que nos fita

em cada par de olhos da massa de transeuntes, existem algumas

raparigas ou jovens mulheres que, embora em número reduzido,

chocam com o seu vestuário demasiado elegante. […] Ao andar na

rua observo esta elegância doentia e envergonho-me perante mim

próprio.22

Como outro ensaísta do Oneg Shabbat recordou aos futuros his-

toriadores, enquanto estes jovens privilegiados viviam comparati-

vamente bem, «não deixavam, no entanto, de serem, eles também,

afetados pelas condições do tempo da guerra que mudaram as suas

vidas de uma maneira negativa.»23

A riqueza e os privilégios no gueto não se fizeram sentir apenas

no alojamento e na educação. Mary descobriu que podia desem-

penhar um papel na proteção dos habitantes ameaçados de irem

para os campos de trabalho e ajudou muitas pessoas a conseguir

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Introdução

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os trabalhos mais desejados. E ela própria teve de enfrentar um di-

lema pessoal e moral quando, no outono de 1941, descobriu que o

Judenrat oferecia cursos práticos em domínios como metalurgia e

artes gráficas aplicadas, perto da sua casa da Rua Sienna24. O curso

ia durar seis meses e a sua propina era de 25 zlótis. Quando se foi

inscrever, Mary descobriu muitos dos seus amigos entre os 600

candidatos, todos ansiosos por fugirem aos campos de trabalho25.

Não é por isso de estranhar que só houvesse algumas dezenas de

vagas.

Mary confessou, no seu diário, que sabia que a «cunha» desem-

penharia um papel essencial na seleção dos alunos. De início, «revol-

tou-se» contra isso mas, ao descobrir que eram poucas as hipóteses

de ser admitida, decidiu «finalmente recorrer ao mesmo método».

Havia um egoísmo adicional nesta decisão porque Mary também

admitiu saber que, nessa altura, as raparigas não eram ameaçadas

pela ida para os campos de trabalho como eram os rapazes.

Mary começara, alguns meses antes, a aceitar a realidade dos su-

bornos e das cunhas. Quando o Judenrat criou a Polícia judaica, ex-

plica Mary, «apresentaram-se mais candidatos do que aqueles que

eram necessários». E depois acrescenta: «Um comité especial sele-

cionou-os e a “cunha” desempenhou um papel importante na es-

colha. No fim, quando já só restavam algumas posições, o dinheiro

também ajudou… Mesmo no Céu nem todos são anjos.» Como o tio

de Mary, Abie, serviu nesta Polícia, é provável que ela tivesse sabido

disso em primeira mão.

Devido ao estatuto social, à educação e à riqueza de que desfru-

tavam antes da guerra, muitos dos amigos e dos familiares de Mary

conseguiram garantir posições «privilegiadas» que lhes permitiram

viver melhor do que os residentes normais do gueto e, pelo menos,

sobreviver durante mais algum tempo. A maioria obteve as suas

posições por intermédio do Judenrat. Embora a opinião pública se

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O Diário de Mary Berg

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dividisse quanto à integridade do Judenrat, Ringelblum, nas suas

notas do Oneg Shabbat26, descreveu este conselho como «hostil ao

povo». Outros, porém, alistaram-se na Polícia judaica, sendo limi-

narmente condenados por Ringelblum e outros memorialistas,

para quem eles «se distinguiam pelas suas medonhas corrupção e

imoralidades.»27

Mais tarde, Mary explicou que o seu tio Percy conseguiu um tra-

balho através do Judenrat, a apanhar tijolos em edifícios em ruínas,

faltando-lhe no entanto a «cunha» necessária para obter uma posi-

ção em que ganhasse mais como capataz. Por outro lado, Mary sabia

que o seu «namorado» do gueto, Romek Kowalski, outro «jovem de

ouro» de Lodz, conseguira uma posição como capataz na constru-

ção do muro do gueto por ter uma «cunha». Kowalski era familiar

do engenheiro Mieczslaw Lichtenbaum, presidente da comissão de

construção do muro formada pelo Judenrat28, e de Marek Lichten-

baum, que se tornou o presidente do Judenrat depois da Grande

Deportação.

Foi depois do que descreve como uma «prolongada luta», o que

provavelmente significa que eram necessários subornos, que o pai

de Mary também conseguiu o ambicionado posto de porteiro no

bloco de apartamentos onde vivia. O Judenrat nomeava os portei-

ros, que tinham direito a um salário, alojamento grátis, isenção das

taxas comunitárias e rações extras, bem como a um passe do Juden-

rat que os dispensava dos trabalhos forçados. Nas palavras de Mary,

«não admira que seja um emprego difícil de obter». Além disso,

Ann, a irmã de Mary, frequentava aulas de costura de roupa infan-

til, dirigidas pelo Instituto de Orientação Vocacional e Formação do

Judenrat (conhecido por ORT).

Um outro conhecido de Mary, Henirk Grynberg, cuja prima

Rutka era a melhor amiga de Ann, dedicava-se ao contrabando no

gueto. Supostamente estaria também envolvido no submundo do

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Introdução

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gueto, já que frequentava o Café Hirschfeld na companhia de agen-

tes da Gestapo. Nota Mary: «É uma das pessoas mais bem-sucedi-

das que exercem esta nova atividade económica. É o que se pode

depreender da sua aparência próspera e dos vestidos elegantes que

a sua mulher e a sua filha vestem.» A sua principal atividade era o

contrabando de soro antitifo que, naturalmente, e à medida que a

febre tifoide se espalhava pelo gueto, ia parar às mãos dos que po-

diam pagar somas elevadas.

O Serviço Especial de Ambulâncias foi um alvo muito especial

das críticas contundentes de Ringelblum, que o viu como um dis-

farce para a venda de cartões e de bonés que davam algumas van-

tagens valiosas aos seus portadores, entre as quais a exclusão dos

trabalhos forçados. Era dirigido pelo grupo do submundo do gueto,

de estilo mafioso e de má fama, conhecido por «Treze», que muita

gente via, com receio, como um instrumento da Gestapo. Um dos

amigos de Mary e colega no LZA — Tadek Szajer — era filho de

um membro dos «Treze» e, ele próprio, membro do Serviço de Am-

bulâncias. Tadek perseguia Mary com o seu fervor juvenil mas ela

rejeitava-lhe todos os avanços, fazendo-lhe ver que enquanto outros,

como Romek Kowlaski, precisavam de trabalhar muito duramente

para sustentarem as suas famílias, Tadek andava sempre bem ali-

mentado e bem vestido e deslocava-se para todo o lado de riquexó.

Mary suspeitava de que o pai dele fazia negócios com os nazis e a

sua decisão de não o ver mais sugere que ela, consciente do que se

passava, queria afirmar uma posição moral.

No início de 1942, Mary ficou a saber que os cidadãos dos EUA

haviam sido autorizados a deixar o gueto e que o pai de um seu

conhecido se encontrava preso na Alemanha. Houve também ru-

mores no gueto de que haveria uma troca de prisioneiros. Algu-

mas semanas mais tarde, Mary registou que, nisto, a «cunha» e

os subornos também podiam ser úteis. E escreveu no seu diário:

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O Diário de Mary Berg

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«É necessário, naturalmente, ter qualquer pedaço de papel onde se

declare que pelo menos um membro da família é cidadão estran-

geiro. A minha mãe tem sorte, neste aspeto, por ser cidadã ameri-

cana de origem e de pleno direito.»

Mais tarde, a mãe de Mary estabeleceu contacto com um agente

da Gestapo chamado «Z», que a prometeu ajudar. Ingenuamente,

Mary admitiu que acreditava que «apesar da sua posição, continuou

a ser um homem decente». Mais provavelmente terá sido passado

para as mãos deste homem algum dinheiro antes de ele ter regis-

tado a Sra. Wattenberg na Gestapo. Um mês depois, Mary Berg e a

sua família atravessaram o gueto, com mais cerca de 700 cidadãos

dos países europeus e americanos neutrais, dos quais 21 eram ame-

ricanos, a caminho da prisão de Pawiak, onde foram internados.

Quando os Wattenbergs foram levados para a prisão de Pawiak,

Mary viu-se separada não apenas de Kowalski e das suas muitas

amigas mas, também, dos irmãos mais novos da mãe, que haviam

nascido na Polónia. O tio Abie acompanhou a família até aos por-

tões da prisão. À despedida, perguntou à mãe de Mary: «Como é

que és capaz de me deixar?». Mais tarde, já em relativa segurança

no campo de internamento de Vittel, Mary escreveu no seu diário:

«Nós, que fomos salvas do gueto, temos vergonha de olhar umas

para as outras. Tínhamos o direito de nos salvar? […] Eis-me aqui, a

respirar ar puro, e lá o meu povo sufoca no gás e morre nas chamas,

queimado vivo. Porquê?»

À chegada ao campo de internamento de Vittel no início de 1943,

os Wattenbergs e outros prisioneiros de Pawiak já nem conseguiam

acreditar que ainda pudesse existir um mundo de relativa norma-

lidade. Gutta Eisenzweig, que partilhou uma cela com Mary em

Pawiak, descreve nas suas memórias, publicadas recentemente, a

sua reação inicial: «Fiquei parada, em choque, porque havíamos

atravessado de repente o abismo que separa o inferno do paraíso

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Introdução

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[…] chegámos a uma atmosfera serena de sumptuosidade típica do

Velho Mundo. O contraste era avassalador.»29 Vittel era uma atração

turística entre os vários campos de internamento dos alemães na

Europa, concebido para assegurar à Cruz Vermelha Internacional

que todos os internados eram bem tratados, para ajudar a reforçar a

segurança dos prisioneiros alemães no estrangeiro.

O campo de Vittel ficava numa estância termal nas montanhas

Vosges, em França. Os internados ficaram alojados nos quartos nos

hotéis e alguns dos luxos das termas ainda se encontravam disponí-

veis. Havia um hospital com médicos bondosos que também eram

internados, como o Dr. Jean Levy, filmes e outros entretenimentos,

algumas lojas e um parque lindo por onde podiam passear durante

o dia. Graças às encomendas recebidas da Cruz Vermelha, nin-

guém passava fome. Os internados americanos e ingleses em Vittel

tiveram tempo suficiente para estabelecer uma vida social. Havia

aulas de línguas estrangeiras, além de outras disciplinas, concertos

e espetáculos diversos. Havia também contactos com a resistência

francesa, várias centenas de freiras e internados como Sofka Skip-

with, que se destacou na ajuda aos recém-chegados de Varsóvia.

Madeleine Steinberg, uma internada inglesa, escreveu as suas

memórias do campo de Vittel. Nelas recorda que Mary se apresen-

tou de imediato como voluntária para acompanhar as crianças nas

aulas de artes e quando brincavam. Também assinala que Mary foi

a primeira pessoa a falar aos restantes internados da vida no gueto

de Varsóvia e a explicar por que motivo as crianças polacas fugiam e

se escondiam na cave quando viam um alemão em Vittel30. Os inter-

nados começaram entretanto a recuperar a esperança. No entanto,

algumas semanas depois da partida dos Wattenbergs para a troca

de prisioneiros do S. S. Gripsholm, a maioria dos internados polacos

que haviam sido transferidos para o Hotel Beau Site fora da cerca

de arame farpado que rodeava o parque foram deportados em duas

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O Diário de Mary Berg

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levas para Drancy e, pouco depois, daí para Auschwitz, onde foram

mortos com gás logo à chegada.

No gueto de Varsóvia, depois das deportações do final do verão de

1942, a Organização de Combate Judaica e outros jovens politizados

assassinaram colaboracionistas residentes no gueto, incluindo os ju-

deus que haviam trabalhado com a Gestapo e feito enormes fortunas

em negócios com os alemães e com os informadores da Gestapo que

já eram conhecidos31. As reações no pós-guerra, em especial entre os

sobreviventes deslocalizados da Europa, contra os criminosos nazis —

incluindo os colaboracionistas que eram membros dos conselhos dos

guetos, as forças de Polícia dos guetos ou os Kapos nos campos —

foram no início muito firmes. Alguns foram julgados na Alemanha

ocupada e declarados responsáveis pelas suas ações.

Houve mais tarde diversos casos muito publicitados de colabo-

racionistas judaicos que foram julgados nos tribunais israelitas e

alemães. A «culpa», porém, no sentido legal foi muitas vezes difícil

de provar e de julgar. Como o objetivo essencial dos alemães era

destruir a população judaica, estes colaboracionistas encontravam-

-se subordinados à vontade dos alemães e, por isso, as linhas que

separavam a cooperação e a colaboração eram muitas vezes indis-

tintas. Os tribunais da moralidade pública também têm tendido a

julgar esses réus com indulgência porque as pessoas acabam por

se interrogar sobre o que poderiam ter feito para se salvarem a elas

próprias, ou a membros da sua família, em circunstâncias seme-

lhantes, se tivessem de passar por esse teste.32

Uma das perguntas que os meus alunos me fizeram ao ler o

Diário de Mary Berg foi como é que ela sabia, em Pawiak, o que

acontecia no gueto e por que motivo é que escreveu que as vítimas

de Treblinka foram mortas com vapor. Embora Mary estivesse em

Pawiak durante a Aktion de 1942, as paredes da prisão «tinham ou-

vidos». Mary refere-se a rumores que lhes chegavam por intermédio

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Introdução

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dos guardas da prisão e da Polícia polaca. Ela e os outros internados

de Pawiak recebiam também cartas de amigos e das famílias. Gutta

Eisenzweig obteve informações atualizadas e pormenorizadas de

Hillel Seidman, um funcionário da comunidade. Também havia

comunicação com os novos internados que iam chegando, e com

as habitações do gueto através das janelas de Pawiak. Os escritos de

Mary refletem ainda o que as pessoas sabiam nessa época. E alguns

dos primeiros relatos indicavam que era vapor o que era usado para

matar pessoas em Treblinka. Ainda levou algum tempo desde que

as primeiras pessoas que fugiram de Treblinka para Varsóvia com-

preendessem que os alemães recorriam a monóxido de carbono.

As imagens de sofrimento que vemos nas primeiras páginas dos

jornais e nos ecrãs de televisão, hoje em dia, fazem com que o nosso

mundo seja de facto muito semelhante ao mundo da experiência

juvenil de Mary. Os jovens hoje invetivam muitas vezes o mundo

para que parem os morticínios. Os estudiosos do Holocausto ten-

tam fazer o mesmo. Esperam que ensinar o passado às gerações fu-

turas lhes dê a força para construírem um mundo novo sem ódios.

O diário de Mary oferece aos leitores a compreensão do que foi o

Holocausto, numa perspetiva intensa e pessoal, e encoraja quem o

lê a ter esperança num futuro melhor para a espécie humana.

Marcel Reich-Reinicki explica nas suas memórias recentemente

publicadas, referindo-se à sua mulher, que fugiu do Umschlagplatz:

«Quem, condenado à morte, viu de muito perto um comboio a par-

tir para as câmaras de gás, fica marcado para o resto da sua vida.»33

Apesar de Mary nunca ter passado pelo Umschlagplatz, viu mais de

300 000 judeus passarem diante da prisão de Pawiak, em Varsóvia,

a caminho da morte que os esperava em Treblinka. Depois de chegar

aos EUA soube que a maioria dos seus amigos e dos seus familiares

havia perecido no Holocausto, incluindo mais 200 judeus de Vittel,

a sua colega de quarto Rosl Weingort, Adam Wentland e as suas

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O Diário de Mary Berg

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irmãs, a Sra. Tamara Schorr, mulher do Grande Rabi de Varsóvia, e

muitas outras pessoas que Mary conhecia. Haviam estado à beira da

liberdade, mas o mundo desviara os olhos e foram todos deportados

para a Polónia, onde morreram nas câmaras de gás de Auschwitz.

Mary começou uma vida nova na América e esforçou-se por dei-

xar o passado para trás. Quando Nancy Craig lhe perguntou em

1945 se queria ir outra vez à Polónia, Mary respondeu:

Não, nunca voltarei. Agora a América é o meu país e eu vou ser

uma verdadeira americana. Não seria agradável voltar à Polónia

e ver só cemitérios […], a família do meu pai também foi morta

[…] tal como todos os nossos amigos. Depois do que passámos, eu

sei o que significa realmente a liberdade […] significa a América.

O facto de estar aqui hoje de manhã a falar consigo na rádio… Isto

é a América.

Embora os leitores possam concluir que Mary teve «sorte» ao

sobreviver, e partir do princípio de que, uma vez nos EUA, ela pôde

regressar à felicidade dos seus anos iniciais da adolescência, mui-

tos compreenderão também que as vidas dos sobreviventes de um

trauma, e talvez as crianças em especial, ficam mudadas para sem-

pre pela perseguição e que o seu futuro é alterado pelo horror, pelas

perdas e pelas opções que tiveram um dia de fazer.

Até ao início dos anos cinquenta do século xx, Mary Berg foi uma

personalidade pública de Nova Iorque, concedendo entrevistas e

aparecendo na rádio. Depois dissociou-se do seu diário, afirmando

que queria esquecer o passado, e desapareceu do campo de visão do

público. Só podemos ter a esperança de que ela tenha sido capaz de

criar uma vida para si própria no mundo do pós-guerra e encontrar

uma consolação para as memórias do passado.

Susan Pentlin

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capítulo um

o cerco de VarsóVia

10 de outubro de 1939

Hoje faço 15 anos.1 Mas sinto-me muito mais velha e só, ape-

sar de a minha família ter feito tudo o que podia para tor-

nar este dia um verdadeiro dia de anos. Até fizeram um

bolo de suspiros de amêndoa, o que é um luxo enorme nesta altura.

O meu pai aventurou-se a sair à rua e regressou com um ramo de

violetas alpinas. Quando as vi comecei logo a chorar.

Não tenho escrito o meu diário há algum tempo, por isso nem sei

se consigo atualizar tudo o que tem acontecido. Mas este é um bom

momento para recomeçar. Passo a maior parte do tempo em casa.

Toda a gente tem medo de sair. E os alemães já chegaram. Até me

custa a crer que foi só há seis semanas que eu e a minha família es-

tivemos nas encantadoras termas de Ciechocinek, numas férias des-

preocupadas como milhares de outros visitantes. Não fazia a menor

ideia do que o futuro nos reservava. E só o pressenti, pela primeira

vez, na noite de 29 de agosto, quando o som roufenho do gigantesco

altifalante que anunciava as últimas notícias paralisou as pessoas que

passeavam pelas ruas da cidade. Embora a palavra «guerra» fizesse

parte de todas as frases, a maioria das pessoas recusou-se a acreditar

que o perigo era real e a expressão de alarme foi-lhes desaparecendo

do rosto à medida que a voz do altifalante se deixava de ouvir.

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O Diário de Mary Berg

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Mas o meu pai era de outra opinião. E decidiu que devíamos

voltar para casa, para Lodz. Em menos de nada, as malas estavam

prontas no meio do quarto. Estávamos longe de pensar que esta

seria a primeira de várias semanas de mudanças constantes de sítio

para sítio.

Apanhámos o último comboio que transportava passageiros civis

para Lodz. Quando chegámos, demos com uma cidade em estado

de confusão. Poucos dias depois, foi o alvo de pesados bombardea-

mentos alemães. O telefone não parava de tocar. O meu pai andava

de um gabinete de mobilização para outro, a receber papelinhos de

cor diferente em cada um deles. Um dia, o tio Abie, o irmão mais

novo da minha mãe, apareceu-nos em casa inesperadamente para

se despedir de nós antes de ir para a frente de combate. Vinha ves-

tido com andrajos, sujo e com a barba por fazer. Não vinha fardado

mas apenas com o boné militar e a mochila às costas, o que o iden-

tificava como soldado. Andava de terra em terra à procura do seu

regimento.

Passávamos a maior parte do tempo na cave da nossa casa.

Quando chegou a informação de que os alemães haviam rompido

as linhas polacas e já se aproximavam de Lodz, a população entrou

em pânico. A debandada da cidade começou às 11 da noite, com as

multidões a fugirem em todas as direções. Menos de uma semana

depois de termos chegado de Ciechocinek fizemos as malas e pu-

semo-nos outra vez a caminho.

Até chegarmos às portas da cidade estivemos na dúvida quanto

ao caminho a tomar — iríamos para Varsóvia ou para Brzeziny? Fi-

nalmente, tal como a maioria dos restantes judeus de Lodz, apanhá-

mos a estrada para Varsóvia. Mais tarde soubemos que os refugia-

dos que haviam seguido a retirada dos exércitos polacos, a caminho

de Brzeziny, foram praticamente todos massacrados pela aviação

alemã.

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O cerco de Varsóvia

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Para nós os quatro — a minha mãe, o meu pai, a minha irmã e

eu — dispúnhamos apenas de três bicicletas, que eram os nossos

bens mais preciosos. Os outros refugiados que haviam tentado tra-

zer objetos que lhes tinham sido valiosos na vida que ficava para trás

foram obrigados a desfazer-se deles. À medida que avançávamos,

íamos vendo a estrada coberta de toda a espécie de coisas, desde ca-

sacos de peles a carros abandonados por falta de gasolina. Tivemos

a sorte de conseguirmos comprar outra bicicleta a um camponês

que passou por nós pelo valor fantástico de 200 zlótis* e esperámos

que isso nos permitisse, aos quatro, movimentar-nos com maior ve-

locidade. Mas as estradas estavam congestionadas e acabámos por

ser gradualmente engolidos pelo fluxo lento e constante das pessoas

que se dirigiam para a capital.

Cada quilómetro que passava era igual ao anterior. Os campos

definhavam debaixo de um calor terrível. A gigantesca nuvem de

pó levantada pela vanguarda dos refugiados ia caindo sobre nós,

transformando o horizonte numa mancha indistinta e cobrindo as

nossas caras e as nossas roupas com camadas sucessivas de pó. Ati-

rávamo-nos frequentemente para as valetas ao longo da estrada, en-

terrando a cara na terra, quando os aviões rugiam aos nossos ouvi-

dos. Durante a noite víamos enormes clarões vermelhos na cúpula

negra do céu. À nossa volta erguiam-se as chamas dos incêndios das

aldeias e das cidades.

Quando chegámos a Lowicz deparámo-nos com a cidade em

chamas. Quando os refugiados tentavam abrir caminho pelas ruas

eram atingidos por pedaços de madeira a arder. Havia postes telefó-

nicos caídos a impedir-nos a passagem. Os passeios estavam cober-

tos de mobílias. Muitas pessoas haviam sido consumidas pelo fogo.

* Um zlóti, à taxa normal de câmbio antes da guerra, valia cerca de 20 cêntimos do dólar americano ou 17 cêntimos do euro. Um zlóti equivale a 100 groszy.

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O Diário de Mary Berg

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O cheiro a carne humana queimada perseguiu-nos durante muito

tempo depois de deixarmos a cidade para trás.

A comida que tínhamos trazido de casa acabou em 9 de setem-

bro. Não se arranjava mais nada para comer pelo caminho. A minha

mãe, debilitada pela fome, desmaiou na estrada. Ajoelhei-me a seu

lado, a chorar descontroladamente, mas ela não deu sinais de vida.

Entontecido, o meu pai foi procurar água enquanto a minha irmã

mais nova se mantinha imóvel, como que paralisada. Mas não pas-

sou tudo de um assomo de fraqueza.

Em Sochaczew conseguimos arranjar alguns pickles e alguns

biscoitos de chocolate que sabiam a sabão. Foi a única coisa que

comemos durante um dia inteiro. Encontrar água para bebermos

era quase tão difícil como arranjar comida. Os poços ao longo do

caminho haviam secado. Encontrámos uma vez um poço com água

turva mas os aldeões avisaram-nos para não a bebermos porque

acreditavam que a água havia sido envenenada por agentes dos ale-

mães. Andámos ainda mais depressa, apesar dos lábios secos como

pergaminhos e das gargantas doridas.

Vimos, de repente, uma coluna de fumo que se erguia da cha-

miné de uma casa à beira da estrada. Todas as casas que encon-

trámos pelo caminho estavam vazias mas aqui já se via um sinal

de vida. O meu pai dirigiu-se à casa imediatamente e regressou

com uma chaleira enorme nas mãos mas com uma expressão es-

tranha no rosto. Com uma voz trémula disse-nos o que encontrara

e, por instantes, ninguém conseguiu tocar naquela água preciosa…

A chaleira estava ao lume. Ao lado, numa cama, o meu pai viu um

homem deitado de cara para a parede. Parecia dormir pacifica-

mente e por isso o meu pai chamou-o várias vezes. Mas sem res-

posta. Aproximou-se mais do camponês adormecido para ver que

estava morto. A cama estava coberta de sangue. E havia buracos de

balas nos vidros da janela.

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O cerco de Varsóvia

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A chaleira que «herdámos» do camponês assassinado tornou-

-se a nossa mais fiel companheira na longa viagem para Varsóvia.

Quando nos aproximávamos da capital, demos com os primeiros

prisioneiros de guerra alemães a caminharem ao longo da estrada,

encabeçados por soldados polacos. Este quadro encorajou-nos mas

os alemães não pareciam muito abatidos pela sua condição. Ves-

tiam fardas elegantes… e sorriam, com insolência. Sabiam que não

ficariam prisioneiros por muito tempo.

Saboreámos a nossa primeira comida cozinhada em Okecie, um

subúrbio de Varsóvia. Alguns soldados, alojados num edifício vazio,

partilharam connosco a sua sopa de batata. Depois de quatro dias e

quatro noites de uma viagem que nos pareceu interminável, aperce-

bemo-nos, pela primeira vez, do cansaço que se apoderava de nós.

Mas não podíamos deixar de continuar. Não havia um momento a

perder e vimos, ao sair de Okecie, como os homens e as mulheres

erguiam barricadas com elétricos vazios e pedras arrancadas da cal-

çada, preparando-se para o cerco à capital.

Em Varsóvia deparámo-nos com mulheres à porta das casas, a

distribuir chá e pão aos refugiados que atravessavam a capital numa

correnteza de filas sem fim. E à medida que dezenas de milhares de

pessoas vindas das províncias entravam em Varsóvia, esperançadas

em encontrarem abrigo, milhares de moradores na cidade fugiam

para os campos.

Alguns familiares que viviam no coração do bairro judaico de Var-

sóvia receberam-nos afetuosa e calorosamente, mas os constantes

ataques aéreos empurravam-nos para a cave durante a maior parte do

tempo em que ficámos com eles. No dia 12 de setembro, os alemães

começaram a destruir o centro da cidade. Tivemos de nos mudar no-

vamente, para procurarmos uma melhor proteção contra as bombas.

Os dias que se seguiram trouxeram fome, morte e medo ao nosso

povo. Não conseguíamos comer nem dormir. Logo ao início, numa

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O Diário de Mary Berg

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nova casa na Rua Zielna, ainda nos sentimos verdadeiramente con-

fortáveis. Os proprietários tinham fugido da cidade, deixando-nos

um apartamento limpo que podíamos usar. Até havia uma criada

que nos trazia chá quente e, pela primeira vez desde a nossa fuga

de Lodz, tivemos uma refeição a sério, servida numa mesa coberta

por uma toalha branca. Incluiu arenque, tomate, manteiga e pão

branco. Para conseguir arranjar o pão, o meu pai teve de permane-

cer horas numa fila muito comprida para uma padaria. Enquanto

esperava, passaram vários aviões alemães que flagelaram as pessoas

com tiros de metralhadora. A fila para a padaria desfez-se instanta-

neamente mas um homem ficou no seu lugar. Indiferente aos tiros,

o meu pai ocupou logo o lugar atrás dele. Um momento depois, o

homem foi atingido por uma bala na cabeça. A entrada para a pada-

ria ficou livre e o meu pai foi comprar o pão.

Depois deste jantar ouvimos uma emissão de rádio em que um

jornalista americano descrevia os métodos de guerra dos nazis aos

seus ouvintes americanos. «Parei num campo e, à distância, vi

uma mulher a cavar batatas. Com ela estava uma criança pequena.

De repente passou a rasar um avião alemão, que disparou contra a

mulher desarmada, fazendo-a tombar de imediato. A criança ficou

ilesa. Era um rapazinho, que se debruçou sobre a mãe tombada,

num choro de dilacerar o coração. Foi deste modo adicionado mais

um órfão aos muitos órfãos de guerra da Polónia, Presidente Roose-

velt!», exclamou o jornalista numa voz rouca, acrescentando: «Peço-

-lhe, ajude estas mães que andam a arrancar batatas da terra para os

seus filhos, ajude estas crianças cujas mães morrem em campos de

paz. Ajude a Polónia nesta hora de provação!». Mas a ajuda nunca

chegou…

A nossa casa no número 31 da Rua Zielna era perto do edifício

dos telefones, que foi um dos alvos da artilharia alemã durante todo

o cerco. Apesar de atingida por muitas balas, a estrutura ampla e

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O cerco de Varsóvia

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firme do edifício só ficou ligeiramente danificada e as telefonistas

mantiveram-se nos seus postos. Muitas casas ao redor ficaram des-

truídas e tivemos de passar novamente as noites na cave. Mas um

dia uma das bombas explodiu na sala da frente do nosso aparta-

mento e fomos obrigados a voltar para a casa, já muito sobrelotada,

dos nossos familiares.

Gradualmente, os alimentos começaram a esgotar-se na cidade.

Uma vez por outra, e dependendo de qual era a fábrica de conser-

vas atingida pelas bombas alemãs, apareciam no mercado diversos

tipos de alimentos enlatados. Houve dias em que só se encontra-

vam nas lojas latas de sardinhas e de pickles.

A nossa fome de notícias era tão grande como a nossa fome de

comida. O único jornal que ainda se via era o Worker [O Operá-

rio], o órgão do Partido Socialista Polaco, que aparecia em edições

especiais. Admirávamos o heroísmo dos seus editores e tipógrafos

que, sob condições dificílimas, garantiam que a população era in-

formada sobre os acontecimentos. Disseram-nos, por exemplo, que

a armada britânica havia aportado a Gdynia. Muitas vezes, as notí-

cias dadas pelo Worker animavam-nos, mas os relatos prematuros

ou falsamente otimistas só serviam para intensificar ainda mais a

nossa deceção.

Em 20 de setembro a telefonia ficou silenciosa e o sistema de

abastecimento de água deixou de funcionar. Começámos a sentir-

-nos como se estivéssemos numa ilha deserta. Nunca esquecerei

o dia 23 de setembro de 1939, o Dia da Expiação2. Os alemães es-

colheram deliberadamente esse feriado sagrado judaico para um

bombardeamento intenso da secção judaica da cidade. Durante o

bombardeamento ocorreu um estranho fenómeno meteorológico:

começou a cair um forte nevão misturado com granizo, a meio de

um dia brilhante de sol. O bombardeamento foi interrompido du-

rante algum tempo e os judeus interpretaram a queda de neve como

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O Diário de Mary Berg

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um ato especial de intervenção divina: nem os mais velhos se recor-

davam de alguma vez terem presenciado tal fenómeno. Mais tarde,

porém, nesse mesmo dia, o inimigo resolveu compensar o tempo

perdido com uma fúria renovada.

Apesar do perigo, o meu pai e alguns dos outros homens que

viviam também na mesma casa foram à sinagoga vizinha. Passados

alguns minutos, um deles regressou a correr, com o talit (o xaile da

oração) pela cabeça, um livro de orações na mão e tão agitado, que,

durante algum tempo, foi incapaz de falar. Uma bomba caíra na

sinagoga e muitos dos devotos tinham sido mortos. Mas, para nossa

grande alegria, o meu pai regressou ileso. Branco como a cal e com

o talit enrodilhado debaixo do braço, disse-nos que muitos dos que

se encontravam a rezar a seu lado, apenas alguns momentos antes,

haviam sido mortos durante o serviço.

Nessa noite arderam centenas de edifícios por toda a cidade. Mi-

lhares de pessoas foram enterradas vivas nas ruínas. Mas nem as

dez horas de bombardeamentos assassinos conseguiram quebrar a

resistência de Varsóvia. O nosso povo lutou com uma teimosia cada

vez maior e, mesmo depois de o Governo ter fugido e de o marechal

Rydz-Smigly3 ter abandonado as suas tropas, homens e mulheres,

novos e velhos, todos ajudaram a defender a capital. Os que não

possuíam armas cavavam trincheiras, as raparigas organizavam

brigadas de primeiros socorros nos vãos das portas, os judeus e os

cristãos resistiam ombro a ombro e lutavam pela sua terra natal.

Na última noite do cerco sentámo-nos todos num canto do res-

taurante por baixo da nossa casa. Alguns judeus idosos cantavam

os Salmos com vozes chorosas. A minha mãe embrulhou-nos em

cobertores espessos para nos proteger dos estilhaços de madeira

que enchiam o ar. Quando ela própria pôs a cabeça de fora por ins-

tantes, foi atingida na testa pelo estilhaço de uma bomba. O rosto

ficou coberto de sangue mas a ferida acabou por se revelar apenas

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O cerco de Varsóvia

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um arranhão. Percebemos que o nosso abrigo era muito perigoso

se deflagrasse algum incêndio e por isso dirigimo-nos para a Rua

Kozla, para nos abrigarmos com os nossos familiares, tropeçando,

enquanto andávamos, nos corpos mutilados de soldados e de civis.

O que encontrámos foi o esqueleto de uma casa por cima de uma

enorme cave repleta de pessoas deitadas no chão de cimento. Não

se sabe bem como ainda conseguiram arranjar lugar para nós. Ao

meu lado estava um rapazinho que se contorcia de dores devido a

uma ferida. Quando a mãe lhe mudou o penso, pôde ver-se que um

estilhaço de uma bomba ainda se encontrava cravado na carne e

que a gangrena já começava a espalhar-se. Mais à frente havia uma

mulher sem um pé, arrancado por uma bomba. Não havia qualquer

tipo de assistência médica disponível para estas pessoas. O cheiro

era insuportável. Nos cantos acumulavam-se crianças que choravam

copiosamente. Os adultos deixavam-se ficar sentados ou deitados,

imóveis, com rostos que pareciam de pedra e olhos vazios. As horas

foram passando. Quando o dia nasceu, fiquei estupefata devido ao

silêncio tão inesperado. Os meus ouvidos, habituados à sucessão

de explosões intermináveis, começaram a zumbir. Era o silêncio

aterrador que precede uma grande tragédia mas eu não conseguia

imaginar nada pior do que aquilo por que já havíamos passado. De

repente apareceu na cave uma pessoa com a notícia de que Varsó-

via capitulara. Ninguém se mexeu, mas reparei nas lágrimas dos

olhos dos adultos. E eu também senti um aperto na garganta, mas

os meus olhos mantiveram-se secos. Os nossos sacrifícios haviam

sido todos em vão, portanto. Vinte e sete dias depois de iniciada a

guerra, Varsóvia, que resistira mais tempo do que qualquer outra

cidade da Polónia, fora forçada a render-se.

Quando saímos da cave vimos as ruínas da nossa cidade à luz

do sol claro de setembro. Já havia equipas de salvamento a traba-

lhar, retirando as vítimas dos destroços. As que ainda revelavam

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O Diário de Mary Berg

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sinais de vida eram deitadas em macas e levadas para os postos de

primeiros socorros mais próximos. Os mortos eram acumulados

em carroças e enterrados no terreno mais próximo que estivesse

desocupado, no pátio de uma casa em ruínas ou numa praça das

redondezas. Os soldados eram enterrados nos jardins públicos com

pequenas cruzes de madeira cravadas nas campas.

Regressámos à nossa rua. Caídos no pavimento, cavalos mor-

tos aos quais pessoas arrancavam bocados de carne. Alguns ainda

se mexiam, mas os infelizes esfomeados nem reparavam e conti-

nuavam a retalhar os animais ainda vivos. Demos com a última

casa onde havíamos ficado, o apartamento da Rua Nalewki, intacta

à exceção das janelas. Mas não havia nada que se pudesse comer.

O porteiro convidou-nos a jantar com ele, pato e arroz. Soube mais

tarde que o «pato» apanhado pelo nosso porteiro era o último cisne

que ainda vivia no lago do Parque Krasinski. Apesar de essa água

se encontrar poluída por corpos humanos em decomposição, não

sentimos quaisquer efeitos nocivos após a estranha refeição.

Alguns dos soldados polacos apressaram-se a vestir roupas civis.

Corriam rumores de que muitos outros haviam conseguido atra-

vessar a fronteira para a Roménia e para a Hungria. Sabíamos que

um dos irmãos da minha mãe era do 56.º Regimento, que fora in-

teiramente dizimado. Já do outro irmão não havia quaisquer infor-

mações.

Nessa tarde, uma prima que vivia na Rua Sienna convidou-nos

para irmos partilhar com ela o seu enorme apartamento, no qual

armazenara uma grande quantidade de comida. Mudámo-nos mais

uma vez, portanto. A viagem foi um pesadelo. Havia valas comuns a

serem escavadas em todas as praças. Varsóvia assemelhava-se a um

cemitério gigantesco.

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O cerco de Varsóvia

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Lodz, 15 de outubro de 1939

Regressámos a Lodz. Demos com a nossa loja e com a nossa casa

completamente saqueadas. Os ladrões até haviam cortado os qua-

dros das molduras para os poderem levar. O meu pai ficou arrasado

pela perda do Poussin e do Delacroix4 que comprara em Paris por

uma soma considerável apenas algumas semanas antes do início

da guerra. Estamos aqui em Lodz há apenas dois dias mas já perce-

bemos que foi um erro termos regressado. Os nazis começaram a

intensificar os seus atos de terrorismo contra a população nativa e,

em especial, contra os judeus. Na semana passada deitaram fogo à

grande sinagoga, que era o orgulho da comunidade de Lodz. Proibi-

ram os judeus de retirarem os livros sagrados, e o shames, ou bedel,

que quis salvar as relíquias sagradas, foi fechado no templo e mor-

reu no incêndio. A minha mãe não se consegue perdoar por ter

convencido o meu pai a trazer-nos para aqui.

Lodz, 1 de novembro de 1939

Fazemos planos para regressarmos a Varsóvia. O meu pai já foi

à nossa frente. Foi obrigado a fugir porque um dos nossos vizinhos

alemães5 informou a Gestapo de que ele havia escondido algumas

pinturas patrióticas do grande pintor polaco, Matejko6. Este vizi-

nho costumava visitar-nos no passado e mais de uma vez pedira

dinheiro emprestado ao meu pai. Quando a Gestapo veio à procura

das pinturas, o ignóbil denunciante acompanhou-os. Mas o meu

pai, felizmente, conseguiu alugar um carro privado a um ariano

para fazer a viagem de 80 quilómetros até Varsóvia. Foi uma pe-

quena viagem que lhe custou uma grande fortuna.

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O Diário de Mary Berg

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Lodz, 3 de novembro de 1939

A nossa casa é quase todos os dias visitada por soldados alemães

que, sob vários pretextos, nos vêm roubar as nossas coisas. Sinto-

-me como se estivesse numa prisão. E nem consigo ir buscar algum

consolo ao olhar pela janela porque, quando espreito por detrás das

cortinas, observo incidentes horríveis como este que vi ontem: um

homem de aparência marcadamente semita estava tranquilamente

parado no passeio junto a uma esquina. Um alemão fardado apro-

ximou-se dele e deu-lhe, pelo que pareceu, uma ordem desproposi-

tada, porque pude perceber que o pobre homem tentou explicar-lhe

qualquer coisa com uma expressão de embaraço. Depois aparece-

ram outros alemães e começaram a bater na vítima com bastões de

borracha. Chamaram um táxi e tentaram metê-lo lá dentro mas ele

resistiu vigorosamente. Os alemães ataram-lhe então as pernas com

uma corda, prenderam a ponta da corda à parte de trás do táxi e or-

denaram ao motorista que arrancasse. O rosto do infeliz foi emba-

tendo nas pedras aguçadas da rua, deixando-as pintadas de sangue.

O táxi desapareceu rua fora.

Lodz, 12 de novembro de 1939

Percy, o irmão mais novo da minha mãe, regressou do cativeiro

nazi. Foi um milagre que o salvou da morte. No campo de batalha,

ao ver os nazis a aproximarem-se e percebendo que a sua unidade

se rendera, decidiu suicidar-se. Como fazia parte de uma unidade

médica, trazia consigo toda a espécie de medicamentos. Engoliu

30 comprimidos de Veronal e adormeceu num campo aberto. De

repente começou a chover torrencialmente e a chuva acordou-o.

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O cerco de Varsóvia

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«Não sei como é que isto aconteceu», contou ele, «mas comecei de

repente a vomitar e deitei fora quase todo o veneno.» Estando dema-

siado fraco para se mexer, acabou por ser levado pelos alemães para

um campo de prisioneiros. No dia seguinte, na companhia de um

camarada, conseguiu atravessar a cerca de arame farpado e, depois

de andar a vaguear durante uma semana na chamada Floresta de

Kampinowska, encontrou o caminho para Lodz.

Lodz, 23 de novembro de 1939

O tio Percy casou-se hoje. A Gestapo proibiu oficialmente os ju-

deus de se casarem mas, desafiando essa determinação, o número

de casamentos judaicos tem aumentado. Nem vale a pena dizer que

todas as certidões de casamento saem com datas anteriores. Devido

aos perigos que nos cercam, todos os casais de noivos querem estar

juntos. Além disso, toda a gente se interroga se os nazis deixarão as

pessoas viverem muito mais tempo.

Para irmos ao casamento, deslizámos um a um, como sombras,

pelos vários quarteirões que nos separavam do local da cerimónia.

Havia um guarda à porta, para avisar da chegada dos nazis e termos

tempo de fugir por outra saída, se fosse necessário. O rabi tremia

enquanto recitava a sua bênção. O mais pequeno ruído nas esca-

das fazia-nos correr para a porta. O ambiente geral era de terror e

apreensão. Todos chorámos e, depois da cerimónia, partimos sorra-

teiramente, de novo um a um.

Circulam cada vez mais rumores sobre a possibilidade de Lodz

ser anexada pela Alemanha e de a população judaica ser fechada

num gueto.7 Os judeus estão a ser raptados em massa e enviados

para diversos campos de trabalho. Os pais da jovem esposa do meu

tio foram mandados para um sítio qualquer na região de Lublin.

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O Diário de Mary Berg

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Uma manhã, quando saíram para ir trabalhar, foram apanhados

por soldados nazis, atirados para um camião e levados para a esta-

ção de comboios. Soubemos mais tarde, por alguém que escapou

do grupo, que fizeram a viagem em vagões fechados durante vá-

rios dias, e sem comida. Exaustos e famintos, foram largados num

campo aberto e levados para a pequena cidade de Zaklikjow, onde

se juntaram a vários milhares de outros judeus vindos de mais cida-

des polacas. Também levaram polacos, nomeadamente os intelec-

tuais, embora não em condições tão terríveis como as dos judeus.

Lodz, 1 de dezembro de 1939

O meu pai encontra-se em Bialystok, nos territórios russos ocu-

pados pela Polónia. Suspirámos de alívio quando soubemos. Ali,

pelo menos, os judeus são tratados como toda a gente e têm uma

hipótese de sobreviverem.

Ainda somos constantemente visitados pelos nossos «vizinhos»

alemães, os trabalhadores ferroviários que vivem na casa ao lado.

Vêm sempre pedir qualquer coisa mas os pedidos deles são ordens,

na realidade. Na semana passada, por exemplo, pediram almofa-

das, fingindo não terem nenhumas. Há alguns dias fomos visitados

por oficiais alemães de alta patente que vinham comprar quadros.

A minha mãe disse-lhes que nos tinham roubado e que já não havia

nenhum para vender. Eles insistiram e começaram a remexer por

toda a casa. Encontraram um pequeno desenho e ofereceram-nos

por ele um preço ridiculamente baixo. Tivemos de aceitar o dinheiro

para nos podermos livrar deles.

Ainda mais desagradável foi uma visita de dois elementos bê-

bedos da Gestapo. Exigiram-nos objetos que nós não possuíamos.

As nossas explicações não os satisfizeram. Finalmente a minha mãe

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O cerco de Varsóvia

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mostrou-lhes os documentos que comprovavam a sua nacionali-

dade americana. Um dos bêbedos puxou do revólver e gritou-lhe:

«Jura pela saúde de Hitler que és cidadã americana ou dou-te já

um tiro!». Só que os judeus foram proibidos de pronunciar o nome

sagrado do Führer. A minha mãe perguntou se podiam abrir uma

exceção para o caso dela. O nazi sorriu e voltou a meter o revólver no

coldre. Depois de procurarem sem êxito as coisas que ele e o amigo

queriam, foram-se embora, batendo os calcanhares e fazendo conti-

nência perante a bandeira americana pendurada no corredor.

Lodz, 15 de dezembro de 1939

Os nazis expulsaram os judeus da Rua Piotrkowska, que costu-

mava ser a rua principal de Lodz, atravessando toda a cidade e di-

vidindo-a em duas metades. Nenhum judeu está autorizado a viver

nesta rua nem a andar nela. O novo decreto alemão criou assim di-

ficuldades acrescidas a muitos judeus. Mas os alemães beneficiam

delas porque andam a emitir autorizações especiais para os judeus

poderem andar na Rua Piotrkowska, a 5 zlótis por cada autorização.

Lodz, 18 de dezembro de 1939

Os alemães confiscaram a nossa loja e a nossa casa. Vivemos

agora com familiares na Rua Narutowicz, perto da escola secun-

dária onde ando. A escola ainda funciona apesar de haver poucos

alunos a irem às aulas por terem medo de sair de casa. A cruel-

dade dos alemães aumenta de dia para dia, e começaram a raptar

rapazes e raparigas para os usarem como horrendos passatempos.

Juntam cinco a dez casais numa sala, ordenam-lhes que se dispam

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O Diário de Mary Berg

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e põem-nos a dançar ao som de discos de gramofone. Duas das

minhas colegas passaram por esta experiência na sua própria casa.

Vários nazis entraram no apartamento delas e, depois de uma

busca rigorosa em todas as divisões, forçaram as duas raparigas

a irem para a sala, onde havia um piano. Quando os pais as tenta-

ram acompanhar, os nazis bateram-lhes com os bastões na cabeça.

Depois fecharam a porta da sala à chave e ordenaram às raparigas

que se despissem. À mais velha ordenaram que tocasse uma valsa

vienense e à mais nova que dançasse. Os sons do piano mistura-

ram-se com os gritos dos pais na sala ao lado. Quando a rapariga

mais nova desmaiou, enquanto dançava, a outra irmã começou a

pedir socorro aos gritos, pela janela. Já era de mais para os nazis,

por isso foram-se embora. As minhas colegas mostraram-me as

nódoas negras com que haviam ficado no corpo depois de terem

lutado contra os seus carrascos.

Varsóvia, 27 de dezembro de 1939

Na semana passada recebemos uma carta do consulado ameri-

cano, intimando a minha mãe a Varsóvia. O carteiro que nos trouxe

a carta não conseguiu conter-se e expressou a sua inveja pelo facto

de termos ligações com a América. Parti para Varsóvia antes da

minha mãe, graças a um amigo gentílico, marido de uma amiga

da minha mãe, que me levou com ele e me fez passar por sua filha,

pondo a sua própria vida em risco. Tenho estado na casa dele e, no

Natal, ele também trouxe a minha irmã de Lodz. Passamos a maior

parte do tempo em casa, aventurando-nos lá fora apenas depois do

anoitecer, para dar pequenos passeios diante da embaixada ameri-

cana. Sentimo-nos, de algum modo, mais seguros debaixo da sua

sombra8.

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www.vogais.pt

Veja o vídeo de apresentação deste livro.

História/Memórias

ISBN 978-989-8491-40-4

9 789898 491404

Um relato real e inspirador da força de uma adolescente que viveu por dentro uma das páginas mais negras da História, o Holocausto.

Uma História Épicade Perda e Salvaçãona Europa Oprimida

por Hitler

«Esta extraordinária e arrepiante memóriaé uma leitura essencial para todas as pessoas.»

Independent

Em 1939, no dia do seu décimo quinto aniversário, enquanto as

forças nazis apertavam o cerco sobre Varsóvia, Mary Berg começou

a escrever este diário. Nesse momento, ela ainda não sabia que,

quatro anos depois, teria preenchido 12 cadernos com as suas memórias do

terror nazi, recordando com detalhes vívidos alguns dos mais importantes e dramáticos acontecimentos do século xx.

Desde o cerco das forças alemãs a Varsóvia até à final, e brutal, supressão da Insurreição do Gueto, Mary Berg documenta a prova-ção dos refugiados, a luta diária pela sobrevivência, os recrutamen-tos forçados de judeus, as deportações e o heroísmo dos lutadores da Resistência que se ergueram contra a opressão alemã.

Libertada através de uma troca com um prisioneiro dos Aliados, Mary Berg levou consigo os cadernos que escrevera durante quatro anos. Ao fazê-lo, deixou-nos um dos documentos mais extraordi-nários da Segunda Guerra Mundial: publicado originalmente em 1945, este diário dramático e impactante foi o primeiro a revelar a verdade sobre o Holocausto, um dos capítulos mais negros da História contemporânea.

«17 de abril de 1942Estou quase histérica. Um pouco antes das seis horas de hoje, o capitão da Polícia, Hertz, veio apressadamente a nossa casa e avisou: “Por favor, estejam preparados para tudo; às oito horas vai haver um massacre.” Depois foi-se embora a correr, sem mais explicações. O gueto ficou todo em pânico.

As pessoas fecharam rapidamente as lojas. Corria o rumor de que um Vernichtungskommando (comando destruidor), o mesmo do massacre de Lublin, chegara a Varsóvia para o organizar aqui. Também se dizia que os ucranianos e os lituanos se ocupariam agora da guarda do gueto porque os alemães iam para a frente russa.

Aos funcionários do Gabinete das Provisões foi-lhes dito para sair às seis horas e que deviam voltar para casa o mais cedo possível. A minha mãe meteu apressadamente alguma comida num cesto e foi com o pai procurar um refúgio numa cave. Eu sentia-me aterrorizada e tremia incontrolavelmente. Cada minuto parecia um século. As horas foram passando — sete, oito, nove… Agora, às 11 da noite, caiu sobre a cidade um silêncio de morte.

Há poucos minutos bateu-nos alguém à porta. Estávamos certos de que seriam os alemães. O meu pai abriu a porta e era um mensageiro da Polícia judaica, vindo do seu quartel-general para pedir ao capitão Hertz que se apresentasse imediatamente na Rua Ogrodowa. Deve ter acontecido alguma coisa realmente má para chamarem assim o capitão a meio da noite.

As horas vão-se arrastando lentamente. Não vem um único som da rua. Mantemo-nos todos vestidos, prontos para irmos a correr para o nosso refúgio de um momento para o outro. É horrível viver sob esta tensão constante.»

Sobrevivente do Holocausto, Mary Berg (1924–2013) foi libertada do Gueto de Varsóvia em 1943, refugiando--se, com a sua família, nos Estados Unidos da América. Foi ali que, com a ajuda do jornalista S. L. Shneider-man, organizou os 12 cadernos que escreveu enquanto esteve presa no gueto de Varsóvia, produzindo esta obra, originalmente publicada em 1945, e que a Vogais agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

«Esta extraordinária e arrepiante memória é uma leitura essencial para todos.»

Independent

«Um registo impressionante do terrorismo.»Kirkus Reviews

«Um dos documentos mais importantes da era de Hitler.»

San Francisco Chronicle

Mary BergO Diário de

Mary Berg

O D

iário de

«Um dos relatos mais dramáticose devastadores sobre a Segunda Guerra Mundial…

Um livro corajoso e inspirador.»The New Yorker

Mary Berg

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