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PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU DIREITO PROCESSUAL CIVIL A PÓS QUE ACOMPANHA VOCÊ | www.posestacio.cers.com.br Perpetuatio iurisdictionis ou perpetuação do juiz natural? Fernando da Fonseca Gajardoni Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP) e do programa de Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da UNAERP. Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Zulmar Duarte de Oliveira Junior Advogado. Consultor Jurídico do Estado de Santa Catarina. Professor do Centro Universitário Barriga Verde (UNIBAVE). Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro de Ensino Superior Sul Brasileiro (CESULBRA). SUMÁRIO: 1. Acendramento indispensável. 2. O princípio do juiz natural. 3. Competência: divisor de trabalho e limite ao Poder. 4. Operacionalização do juiz natural. 5. A perpetuatio iurisdictionis ou perpetuação do juiz natural? 6. Modulações à perpetuatio (causas modificativas de competência). 7. Conflito de competência nº 114.782/RS (STJ). 8. Violação do juiz natural e nulidade. 9. Conclusões. 10. Bibliografia. RESUMO: O texto trabalha a relação entre a garantia constitucional do juiz natural com a vetusta regra da perpetuatio iurisdictionis, concluindo que a segunda é um reflexo necessário (o desdobramento processual) da primeira. Após analisar as razões inspiradoras da perpetuação do juiz natural e a importância de preservação do juiz originariamente definido como o competente para o

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Perpetuatio iurisdictionis ou perpetuação do juiz natural?

Fernando da Fonseca Gajardoni

Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

(FD-USP). Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da

USP (FDRP-USP) e do programa de Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da UNAERP. Juiz de

Direito no Estado de São Paulo.

Zulmar Duarte de Oliveira Junior

Advogado. Consultor Jurídico do Estado de Santa Catarina. Professor do Centro Universitário

Barriga Verde (UNIBAVE). Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro de Ensino

Superior Sul Brasileiro (CESULBRA).

SUMÁRIO: 1. Acendramento indispensável. 2. O

princípio do juiz natural. 3. Competência: divisor de trabalho e

limite ao Poder. 4. Operacionalização do juiz natural. 5. A

perpetuatio iurisdictionis ou perpetuação do juiz natural? 6.

Modulações à perpetuatio (causas modificativas de

competência). 7. Conflito de competência nº 114.782/RS (STJ).

8. Violação do juiz natural e nulidade. 9. Conclusões. 10.

Bibliografia.

RESUMO: O texto trabalha a relação entre a garantia

constitucional do juiz natural com a vetusta regra da

perpetuatio iurisdictionis, concluindo que a segunda é um

reflexo necessário (o desdobramento processual) da primeira.

Após analisar as razões inspiradoras da perpetuação do juiz

natural e a importância de preservação do juiz

originariamente definido como o competente para o

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julgamento da causa, tece críticas à visão utilitarista

estabelecida pelo STJ, no julgamento do CC 114.782-RS

(relativo a causas de interesses de crianças e adolescentes).

PALAVRAS CHAVES: Competência. Juiz natural. Garantia

constitucional. Perpetuatio iurisdictionis. Perpetuação do juiz

natural. Causas modificativas. Processo civil. Criança e

adolescente.

ABSTRACT. The text works the relationship between

the constitutional guarantee of the natural judge and the

perpetuatio iurisdictionis rule, concluding that the latter is

necessary to protect the first. After analyzing the reasons

inspiring the perpetuatio and the importance of preserving

the court originally defined as the competent for the trial,

criticizes the utilitarian view established by the STJ, in the CC

114.782-RS (relating to the causes and interests of minors).

KEY WORDS. Competence. Natural judge.

Constitutional guarantee. Perpetuatio iurisdictionis.

Amendment notices causes. Civil Procedure Law. Minors

RESUMO: Il testo fa il rapporto tra la garanzia

costituzionale del giudice naturale e il principio da perpetuatio

iurisdictionis, concludendo che quest'ultima è una condizione

necessaria rispecchia il primo. Dopo aver analizzato le ragioni

che ispirano la perpetuatio e l'importanza di preservare il

giudice originariamente definito come competente per il

giudizio della causa, critica la visione utilitaristica stabilito

dalla STJ, nel CC 114. 782-RS (relativi a cause di interessi di

bambini e adolescenti ).

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1. Acendramento indispensável

O presente artigo nasceu de um vivo debate envolvendo os autores e outros professores do

que se convencionou designar por escola processual do twitter1, em torno de decisão recente do

Superior Tribunal de Justiça2, concernente à possibilidade de modificação da competência no curso

do processo pela alteração do domicílio do menor parte da relação processual3 4.

Por certo, o estudo tem forte ligação, sendo quase um desdobramento, do artigo escrito

por um dos coautores, titulado como “Instalação de nova vara e redistribuição do acervo:

nulidade?”5, onde abordada, ainda que sob outro enfoque, a presente temática.

Feito os registros, importante consignar, quase num anticlímax, a decisão do Superior

Tribunal de Justiça orça perigosamente com o juízo de exceção, uma vez que permite a uma das

partes a alteração e escolha do juízo competente para trâmite de um determinado processo.

Certamente, nos dias que correm, a garantia do juízo natural e seu reverso, a vedação do

juízo de exceção, ficam, por assim dizer, eclipsadas numa atmosfera que respira a normalidade

institucional.

Ainda assim, a ninguém interessa o esmaecimento de tais garantias constitucionais, pois a

inobservância de normas constitucionais, sob argumentos dos mais diversos, quase sempre

utilitaristas6, comprometem sua eficácia normativa, relegam sua pretensão de eficácia, subsistindo

aquelas apenas no plano nominal.

1 A expressão foi cunhada por ANDRÉ VASCONCELOS ROQUE. 2 Calha observar que um dos primeiros escritos que se tem notícia sobre a perpetuatio iurisdictionis era destinado à comentar provimento jurisdicional da Corte de Cassação de Roma. (CHIOVENDA, Giuseppe. Ensayos de derecho procesal civil: relación procesal de cognición (jurisdicción y competencia – formas del proceso y propuestas de reforma). Traducción de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: EJEA, 1949. vol.II, p. 3). 3 Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108304&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=menor Acesso em: 20 maio de 2013. 4 Utiliza-se a expressão “relação processual” como dístico representativo da pendência da demanda, envolvendo às partes e o magistrado, numa série de situações e etc., sem compromisso em adentrar na delicada questão da natureza jurídica do processo. 5 GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Instalação de nova vara e redistribuição do acervo: nulidade? In: José Miguel Garcia Medina; Luana Pedrosa de Figueredo Cruz, Luis Otávio Siqueira Cerqueira, Luiz Manoel Gomes Júnior. (Org.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à prof. Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 259-266. 6 ““A necessidade da ‘dogmática’ e da ‘teoria’ não implica qualquer distanciação perante as necessidades da prática e da vida. Mas compreenda-se a mensagem aqui insinuada. Sem as teorias de Newton não se teria chegado à Lua – assim o diz e demonstra Sagan; sem o húmus teórico, o direito constitucional dificilmente passará de vegetação

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Bom que se lembre, se a bonança sucede a tormenta, aquela sobrevém, num movimento

de ida e volta, numa contínua sequência de dias fastos e nefastos, cuja única proteção, ponto de

apoio, são os direitos fundamentais.

2. O princípio do juiz natural

Fincado os pés em terras brasileiras, podemos dizer, a necessidade de um juiz previamente

competente há muito foi percebida, desde a Constituição do Império de 1824, que acolhia no seu

artigo 179, inciso XI: “XI. Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por

virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta”.

As Constituições seguintes, à exceção da Carta de 1937, por igual consagraram

expressamente o princípio do juiz natural, sendo a Constituição Republicana de 1934 quem, pela

vez primeira, usou a expressão tribunais de exceção, obviamente para vedá-los (artigo 113, item

25)7.

Pois bem, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) estratificou em

dois enunciados linguísticos, como direitos e garantias individuais (artigo 5o), que “não haverá juízo

ou tribunal de exceção” (inciso XXXVII), bem como “ninguém será processado nem sentenciado

senão pela autoridade competente” (inciso LIII).

Bem da verdade, os dois dispositivos são faces da mesma moeda, um lado trabalhando

positivamente (cara), estabelecendo a necessidade da competência do juízo, outro vedando o

estabelecimento de um juízo ad hoc (coroa, o valor), tudo a penhorar o postulado do juiz natural.

Diz-se assim que o princípio do juiz natural se traduz na exigência de prévia

individualização, através de normas gerais, abstratas e objetivas, do juiz competente para

determinada tipo de causa — fattispecie abstrata.

rasteira, ao sabor dos “ventos”, dos “muros” e da eficácia. Mas o inverso também tem os seus perigos: a hipertrofia teorética (e filosófica) pode insinuar a transformação de modelos teorético-constitucionais e filosóficos em verdadeiras normas jurídicas, esvaziando ou minando a efectividade e validade do direito constitucional. Por outras palavras: a fuga para o céu dos conceitos e teorias pode acarretar a diminuição da capacidade de reflexão do direito relativamente aos problemas concretos das mulheres, dos homens e de todos os seres vivos da nossa comunidade. Um ‘direito ex cathedra’, um direito reduzido a teorias abstractas, esquece que os problemas dos homens e da polis se situam no terreno da experiência humana e não nas alturas abstractas de um ‘saber sábio’ do direito. Em síntese: procura-se um direito “bem pesado” não dissolvido nem nas pressões utilitaristas de um ‘direito descartável’ nem nas nebulosas abstractas das teorias que esquecem o lugar das coisas e o mundo dos homens.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional: e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 1111-1112). 7 DUARTE, Bento Herculano; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte. Princípios do processo civil: noções fundamentais (com remissão ao Novo CPC); jurisprudência do STF e do STJ. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2012. p. 44/48.

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Noutro modo de externar a proposição, independentemente da ocorrência do fato, por

hipótese é possível indicar, abstratamente, qual seria o juízo competente para o julgamento de

potencial ocorrência fenomênica, valendo-se das regras de competência existentes no nosso

ordenamento.

Agora, essa face positiva é reforçada pela vedação (face negativa) da criação de órgãos

julgadores ex post facto ou ad personam, garantindo, assim, tratamento imparcial a todos os

jurisdicionados e administrados, predicado indispensável da própria atividade de julgar e da

isonomia constitucional (artigo 5º, caput, da CRFB)8.

A nenhum jurisdicionado ou administrado é lícito escolher o juiz de sua causa, como não é

lícito ao Estado criar juízos ditos de exceção, retirando do juiz natural a competência para o

conhecimento do processo.

Efetivamente, dessa trama constitucional se pode concluir com segurança: o juiz natural

precede, sempre, o dito litígio. Quando do surgimento deste já se tem o juízo que, naturalmente,

irá debelá-lo.

Como sói de ser, o Código de Processo Civil em vigor (artigo 86), no que segue e é seguido

por inúmeros outras preceptivos legais, também pelo Novo CPC (artigo 43 da última das dezenas

de versões da Câmara que se tem notícia), agasalha essa urdidura constitucional.

Certamente o leitor informado tem presente que a exposição, conquanto importante ao

desenvolvimento do nosso raciocínio, nada tem de novidade, nem muito menos apresenta

justificativa à crítica já antecipada ao julgado do Superior Tribunal de Justiça.

Nada obstante, importa reter neste passo ser o postulado do juiz natural também uma

forma de contenção de poder, no que veda a escolha, por quem quer que seja,

independentemente das lídimas razões subjacentes, de um juízo ad hoc.

3. Competência: divisor de trabalho e limite ao Poder

Ponto está, na delimitação da competência, o legislador considera, como horizonte, a

questão da necessidade de divisão dos trabalhos, pois absolutamente impensável a figura de um

juiz abstratamente competente para análise de toda e qualquer questão nascida no território

nacional.

8 A importancia da imparcialidade: “pode ser aferida pela propria compreensão do fenomeno jurisdição, quase sempre vinculado a percepção de independência para a prestação de tutela” (DUARTE, op. cit., p. 48).

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Mas não só.

Também, no regramento da competência, assume relevo a necessidade imperiosa de

limitação do poder dos diferentes órgãos jurisdicionais, exigência própria da orgânica inerente a

eles, evitando-se a autofagia.

CARNELUTTI bem percebeu essas exigências do Estado moderno: “geralmente de

população numerosa e de vastos confins, não é possível que um único homem proveja a compor

todos os litígios, e, por isso, a multiplicidade, tanto dos órgãos judiciais quanto dos homens que

compõem cada órgão, em uma noção de experiência comum. É evidente que, posto que se trata

de aplicar o princípio fundamental da divisão de trabalho, o poder tenha de se distribuir entre tais

ofícios e tais homens. O conjunto dos litígios é distribuído entre os órgãos judiciais ou entre os

homens que os compõem, de tal maneira que, assim como cada um deles não teria a

possibilidade, tampouco tem poder com respeito a todos; o poder lhes é conferido, pois, com

respeito a uma determinada porção de tal conjunto. Chama-se competência a extensão do poder

que pertence (compete) a cada órgão judicial ou a cada componente do órgão, em comparação

com os demais; o conceito de competência, inclusive de acordo com o significado da palavra,

implica no concurso de vários sujeitos com respeito a um mesmo objeto que, portanto, distribui-se

entre eles. Por conseguinte, competência é o poder correspondente ao órgão judicial ou ao oficial

considerados no singular. Explica-se assim a diferença entre competência e jurisdição: esta é o

poder pertencente não a cada órgão judicial, mas a todos os órgãos em conjunto, ou em outras

palavras, a cada órgão judicial considerado como genus e não como species”9.

Ora, neste pensar, a competência é, acima de tudo: “uma determinação dos poderes

jurisdicionais de cada um dos juízes; mas, como essa limitação de poderes se manifesta

praticamente em uma limitação das causas sobre as quais pode exercê-los cada juiz, o conceito de

competência se desloca assim, por um fenômeno de metonímia: de medida subjetiva dos poderes

do órgão judicial, passa a ser entendida, praticamente, como medida objetiva da matéria sobre a

qual está chamado em concreto a prover o órgão judicial, se entendendo deste modo por

competência de um juiz o conjunto de causas sobre as quais pode ele exercer, segundo a lei, sua

fração de jurisdição.”10

9 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil: composição do processo. Traduzido por Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Classic Book, 2000. vol. II. p. 360/362. 10 CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. tradução de Luiz Abezia e Sandra Fernandez Barbiery – Campinas: Bookseller, 1999. p. 108-109.

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Verdade seja, o estabelecimento prévio da competência atende à necessidade prática de

divisão dos trabalhos entre os órgãos jurisdicionais, bem como se prende, aí num plano mais

elevado, à imperiosa questão da limitação do poder.

Aliás, as limitações ao poder estatal decorrentes de sua partilha entre poderes distintos

(checks and balances — le pouvoir arrête lê pouvoir)11, igualmente justificam a limitação interna

do poder, evitando que uma só pessoa enfeixe, exaurindo, todas as potencialidades do poder em

perspectiva, uma vez que na República inexistem poderes supremos.

A República afasta os absolutos.

Justamente, esse aspecto é de ser considerado, mormente porque cobra, atribuindo

inegável valor, na perpetuação da jurisdição uma hermenêutica que, para além de problemas

práticos de racionalização dos trabalhos, dê eficácia12 à garantia constitucional do juiz natural.

4. Operacionalização do juiz natural

A par disso, o legislador premido pelas necessidades práticas e objetivando balizar o poder

procede à distribuição de uma massa ideal de litígios frente aos diversos órgãos jurisdicionais13.

Vários são os critérios utilizados para tal finalidade, tais como os caracteres do litígio, o

status funcional da parte demandante/demandada, o território em que desdobrado, sua projeção

econômica, isto é, certos elementos materializados nas demandas — índices de competência14.

11 “A liberdade política em um cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que provém da convicção de que cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o Governo seja tal que cada cidadão não possa temer outro. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.” (MONTESQUIEU. O espírito das leis. Tradução Pedro Vieira Mota. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 167/168). 12 “A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia” (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição: (die normative kraft der verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. p. 16). 13 Os critérios de divisão da competência supõe “dois dados: uma elaboração do conjunto dos litígios e uma elaboração do conjunto dos órgãos judiciais ou dos componentes dos órgãos, de tal modo que sirvam para diferenciar um dos outros e, portanto, para atribuir cada litígio a seu orgão judicial ou a seu oficial.” (CARNELUTTI, op. cit., p. 360/362). 14 “extrai a lei os índices distintos de competência: algumas vezes toma em consideração no objeto e no título da causa os caracteres qualitativos atinentes à natureza jurídica da relação controvertida ou da providência requerida (competência por razão da matéria).” (CALAMANDREI, op. cit., p. 108-109).

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O legislador opera indutivamente, partindo dessas diferentes realidades concretas

estabelece regras abstratas em que divide uma realidade porvir em diferentes juízos, por conta da

matéria, das pessoas, do valor, das necessidades funcionais e do território.

Noutro giro, as partes, dedutivamente, frente às peculiaridades da pretensão que se

apresenta, verificam o juízo competente para o processamento da demanda, o juiz natural.

Aí assume relevo ímpar, como uma das principais formas de concretização do princípio do

juiz natural, a distribuição dos feitos.

Com efeito, partindo-se do princípio de que é vedado à parte eleger o juiz de sua causa,

como é vedado ao Estado, também, interferir nas regras gerais e abstratas para a definição do juiz

natural, só um sorteio (distribuição) pode determinar o juiz competente para dada demanda

quando haja, de acordo com as normas gerais e abstratas já referidas, mais de um juiz competente

para a mesma causa.

Daí porque os artigos 251 e 252 do CPC expressamente apontam que onde houver mais de

juiz (igualmente competente), os processos serão distribuídos alternadamente, obedecendo entre

eles rigorosa igualdade.

Nessas hipóteses, certamente evitando abuso de Poder, o momento final na fixação da

competência é conduzido à álea do sorteio, que define o juízo concretamente competente,

timbrando definitivamente a demanda (artigo 253, inc. II, do CPC).

Com esta operação se fixa a competência concreta do juízo para o caso (que até então só

tinha competência concorrente para ele), sem que se permita à parte a opção pelo órgão julgador

de sua preferência, ou que os juízes possam eleger tal ou qual causa que lhes interesse julgar.

Eis a razão pela qual a distribuição de feitos não é facultativa, mas sim cogente. O juiz

sorteado para julgamento da causa é absolutamente competente para o seu conhecimento, eis

que a regra que fixou sua competência foi concebida na tutela do interesse público.

5. A perpetuatio iurisdictionis ou perpetuação do juiz natural?

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Sem esforço, pode-se verificar que a regra da perpetuatio iurisdictiones, estatuída no artigo

87 do CPC15, é um reflexo necessário do juiz natural, porquanto lhe dá proteção no desdobramento

processual, sem o que ficaria completamente esvaziado.

Noutras palavras, de nada adiantaria assegurar a necessidade de observância do juiz natural

na distribuição do feito, acaso, em momento seguinte, durante sua tramitação, aquele fosse

esvaziado, pela possibilidade de alteração do juízo então competente.

Se as regras de competência previamente estabelecidas são o substrato do juiz natural, a

preservação deste se faz pelo postulado da perpetuatio iurisdictiones, que melhor seria qualificado

como perpetuação do juiz natural.

Portanto, o instituto merece uma releitura, a fim de que se desprenda da concepção inicial

de mero direito do autor, passando a ser compreendido como bastião do juiz natural, que sem ele

malogra inevitavelmente.

Entrementes, quando CHIOVENDA delimitou o instituto, dando-lhe feições próprias e

contornos precisos, o desenho tinha como pano de fundo o direito do autor, de evitar um dano por

servir-se do processo, pelos custos, duração e tempo deste.

Transcreve-se trecho expressivo desse modo de pensar:

“Entre las manifestaciones de esta tendencia encuentra lugar el principio que constituye

argumento para este trabajo. Se tiende con el mismo a evitar el gravíssimo daño que sufrirían los

litigantes (y aquí más especialmente el actor) si por el cambio sobrevenido durante el juicio, en las

circunstancias determinativas de la compentencia, debiese venir a menos la competencia del juez

ante el cual se inició la causa”16.

Conquanto esses aspectos ainda devam ser objeto de consideração, os mesmos não

favorecem as novas e necessárias análises diretamente decorrentes do juiz natural, razão porque

uma adequada perspectiva sobre a perpetuação leva em conta tanto a proteção ao autor, quanto e

principalmente a preservação do juiz natural.

Ao propósito, proposta a demanda, fica determinada a competência (artigo 87 do CPC),

razão porque são irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas

posteriormente.

15 “Art. 87. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. 16 CHIOVENDA, op. cit., p. 21.

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Nestes termos, cristalizada a competência, com a distribuição da demanda perante o juiz

competente, alteração no estado de direito ou de fato dos litigantes não implica em qualquer

alteração da competência, preservando-se o juiz natural.

Para ficarmos com alguns exemplos, ajuizada separação judicial no foro do domicílio da

separanda (art. 100, I, do CPC), a mudança de domicílio dela não implica alteração da competência

originariamente firmada, ainda que ela se mude posteriormente para o domicílio do separando;

distribuída execução fiscal, a posterior mudança de domicílio do executado não desloca a

competência já fixada (súmula 58 do STJ); se a competência foi fixada tendo em vista situação de

incapacidade civil do réu, eventual emancipação (art. 5º do CC) nem por isto altera a competência

inicial; correndo demanda perante Comarca que foi posteriormente desmembrada, as demandas

dos réus domiciliados na nova Comarca e ajuizadas com fundamento no art. 94 do CPC continuam

a correr na antiga Comarca; eventual alteração do teto da competência do órgão em razão do valor

da causa não implica alteração da competência já firmada pela distribuição; se a coisa pretendida

aumentar de valor após o ajuizamento da demanda, nem por isto, também, altera-se o valor da

causa, com o encaminhamento do feito a outro juízo; etc.

Oportuno se torna dizer, a perpetuação só incide se a demanda for distribuída para juízo

absolutamente competente. Logo: a) se ajuizada demanda perante juiz absolutamente

incompetente, não há espaço para perpetuação ofensiva aos ditames da ordem pública; e b)

ajuizada demanda perante juiz relativamente incompetente, a perpetuação só se operará se a

parte demandada, no prazo e na forma do art. 304 e ss. do CPC, não opuser a exceção declinatória

de foro, ou se o juiz, na hipótese do art. 112, parágrafo único, do CPC, não declarar de ofício a

nulidade do foro de eleição em contrato de adesão.

A regra do art. 87 do CPC, além de servir ao conjunto de normas à dispor sobre a

estabilização da demanda (art. 264 e 294 do CPC), também objetiva proteger a parte autora e o

próprio desenvolver da atividade judicial. O primeiro, na medida em que tem esclarecido e

definido o juízo da causa logo no início do feito. O segundo, pois se se alterasse a competência

sistematicamente e conforme alterações de fato ou de direito posteriores ao ajuizamento, não

haveria ordem e nem rendimento do processo.

Finalmente, mencionado dispositivo estratifica o postulado do juiz natural, na exata medida

em que assegura sua observância na marcha processual, possibilitando sua perpetuação durante o

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desdobramento do processo no tempo e espaço, merecendo, por isso, uma nova qualificação, mais

adequada a suas finalidades e potencialidades, qual seja, a perpetuação do juiz natural.

6. Modulações à perpetuatio (causas modificativas de competência)

Consabido é, inexistem princípios constitucionais absolutos, razão porque eles se

dimensionam e conformam reciprocamente, cedendo aqui e ali, num horizonte de eficácia

normativa ótima, espaços para desenvolvimento do outro frente às exigências particulares.

É óbvio, pois, que o próprio sistema preveja situações em que o interesse público

recomende certa apostasia às regras de perpetuação do juiz natural, plenamente justificáveis à luz

de um mais escorreito e eficaz desenvolvimento da atividade jurisdicional.

Assim, 05 (cinco) situações de fato e de direito legalmente previstas vão autorizar que o

processo, apesar de originariamente distribuído para dado juízo, seja encaminhado para outro

juízo, em contrariedade, assim, ao ideário da perpetuação. Todas constituem verdadeiras causas

modificativas de competência, exceções válidas à luz do princípio do juiz natural.

A primeira das situações é a da supressão do órgão judicial (art. 87 do CPC). Não haveria

como ser preservada a regra do art. 87 do CPC pela própria extinção do órgão judicial dantes

competente para o conhecimento da causa. Nestes casos, a única saída lógica é abrir uma exceção

à regra e determinar, caso o órgão naturalmente competente seja suprimido, que o seu acervo de

processos seja redistribuído para um ou mais juízos, que a partir de então também se perpetuarão

na competência para o conhecimento destes processos. Entendimento contrário levaria à

esdrúxula situação em que o órgão judiciário desnecessário não pudesse se extinto enquanto não

esgotado todo o seu acervo.

A segunda exceção é a alteração da competência absoluta do órgão judicial. A aplicação

desta exceção deve ser feita cum grano salis17, merecendo interpretação absolutamente restrita.

Não deve ser aplicada pelo simples fato de numa determinada Comarca ter ocorrido a

especialização de competência, sob pena de permitir à indevidas modificações. A hipótese tem

17 “Trata-se também de uma exceção segundo a matéria quando a lei derrogou em relação a determinados casos, as mais das vezes estritamente delimitados, uma regra que procura conseguir validade no sentido mais amplo possível, porque a sua realização pareceu ao legislador, inclusivamente nesses casos, pouco prática ou oportuna e, devido a isso, acreditou poder aqui renunciar a ela. Tem de evitar-se aqui que, mediante uma interpretação excessivamente lata das disposições excepcionais, ou mediante a sua aplicação analógica, o propósito de regulação do legislador se transmude afinal no seu contrário.” (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 6. Ed. Tradução de José Lamego. Liboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. p. 503).

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que ser reservada a situações mais extremas, como a intervenção no feito de pessoa cuja presença

torna incompetente o juízo primevo (súmula 150 do STJ) ou, mesmo, numa alteração de

competência de índole constitucional (por exemplo, pela ampliação ou diminuição da competência

das justiças especializadas). Em outros termos, o que se sustenta é que a alteração da competência

absoluta do órgão jurisdicional para quem originariamente distribuída a causa não gera,

automaticamente, a redistribuição do acervo, devendo os juízos afetados pela alteração

infraconstitucional (remetente e remetido) aferir se ela não vai de encontro às regras

constitucionais que fixam a competência do ponto de vista do juízo natural. Eventual erro nessa

avaliação resolve-se através do competente conflito de competência (art. 115 da CPC).

Uma terceira exceção à perpetuatio advém da ocorrência de conexão (art. 103 do CPC) e

continência (art. 104 do CPC) entre demandas. É recomendável, à luz da economia processual e da

identidade de soluções, que demandas com identidade parcial de elementos sejam julgadas pelo

mesmo juízo. É o que dispõe o art. 105 do CPC, a autorizar o juiz, de ofício ou a requerimento das

partes, a ordenar a reunião de ações propostas em separado a fim de quem sejam decididas

simultaneamente. Com a unificação das demandas com identidade parcial de elementos,

certamente parte dos processos deverá ser deslocada ao juízo prevento – aferível conforme as

regras dos artigos 106 e 219 do CPC – conseqüentemente abandonando o juízo para onde foram

originariamente distribuídas. Até porque, nestes casos, bem vistas às coisas, já tramitava

inicialmente perante o juízo prevento, natural, parcela da lide.

Finalmente, duas últimas e (relativamente) novas situações em que se admite a violação da

perpetuatio.

A primeira delas (e a quarta na nossa ordem) é hoje contemplada no art. 475-P, parágrafo

único, do CPC, com redação dada pela Lei n. 11.232/2005. Com efeito, a disposição autoriza o

exeqüente a optar pelo deslocamento da execução do juízo da condenação – funcionalmente

competente para a execução – para o juízo do local onde estejam os bens sujeitos à expropriação,

ou para o juízo do atual domicílio do executado. A regra, que cria uma exceção voluntária ao art.

87 do CPC, tem por nítido mote o de evitar o transitar desnecessário de precatórias entre o juízo

funcionalmente competente para a execução e o do domicílio do executado ou do local dos bens.

Requerida a incidência do novel dispositivo, os próprios autos da ação serão remetidos ao novo

juízo, que, então, passa a ter competência integral para todos os atos executivos e incidentes.

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A outra exceção (a quinta na nossa contagem) se encontra no art. 109, § 5º, da Constituição

da República, a admitir que nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador

Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de

tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante

o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de

deslocamento de competência para a Justiça Federal. Caso ao STJ pareça que a Justiça Federal tem

mais isenção e possibilidade material, no caso em concreto, para o julgamento de feitos de

natureza cível ou criminal que envolva direitos humanos (o que se aferirá caso a caso), cessa a

competência advinda da perpetuatio do juízo estadual para o qual originariamente distribuída a

causa. Temos fundada dúvida sobre a constitucionalidade deste dispositivo à luz do princípio do

juiz natural, não tanto pelo fato de excepcionar a regra de competência previamente estabelecida

no sistema (algo que é perfeitamente lícito), mas sim por fazê-lo através de um critério altamente

subjetivo (inconstitucionalidade pela abertura excessiva do texto – overbreadth doctrine). Afinal, o

que é grave violação de direitos humanos? Demais disso, o dispositivo permite exatamente o que é

o punctum saliens da vedação do juízo de exceção, o estabelecimento da competência para o

processamento de determinada demanda perante um juízo selecionado post factum.

7. CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 114.782/RS (STJ)

Fixadas essas diretrizes mentais, que sobremaneira determinam o resultado da apreciação,

impõe-se o enfrentamento do julgado do Superior Tribunal de Justiça, mote deste estudo.

Pois bem, o Superior Tribunal de Justiça, no Conflito de Competência no 114.782/RS,

relatora Ministra Nancy Andrighi, decidiu:

PROCESSO CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE

RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C GUARDA DE

FILHO. MELHOR INTERESSE DO MENOR. PRINCÍPIO DO JUÍZO IMEDIATO.

COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE.

1. Debate relativo à possibilidade de deslocamento da competência

em face da alteração no domicílio do menor, objeto da disputa judicial.

2. Em se tratando de hipótese de competência relativa, o art. 87 do

CPC institui, com a finalidade de proteger a parte, a regra da estabilização

da competência (perpetuatio jurisdictionis), evitando-se, assim, a alteração

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do lugar do processo, toda a vez que houver modificações supervenientes

do estado de fato ou de direito.

3. Nos processos que envolvem menores, as medidas devem ser

tomadas no interesse desses, o qual deve prevalecer diante de quaisquer

outras questões.

4. Não havendo, na espécie, nada que indique objetivos escusos por

qualquer uma das partes, mas apenas alterações de domicílios dos

responsáveis pelo menor, deve a regra da perpetuatio jurisdictionis ceder

lugar à solução que se afigure mais condizente com os interesses do infante

e facilite o seu pleno acesso à Justiça. Precedentes.

5. Conflito conhecido para o fim de declarar a competência do Juízo

de Direito de Carazinho/RS (juízo suscitante), foro do domicilio do menor.”

(CC 114782/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado

em 12/12/2012, DJe 19/12/2012).

Deveras, o precedente permitiu a modificação da competência por conta do protagonismo

do menor em demandas que envolvam seus interesses, propugnando inclusive o respeito ao

acesso à justiça.

Mais ainda, cotejou o tema na perspectiva da ótica histórica de que a perpetuação se faz no

interesse das partes e, presente essa circunstância, deveria prevalecer o interesse do menor na

alteração da competência, a par da mudança do seu domicílio (artigo 147 do ECA18).

Colhe-se do voto da d. relatora:

“O intuito máximo do princípio do juízo imediato, acima

manifestado, está em que, pela proximidade com a criança, é possível

atender de maneira mais eficaz aos objetivos colimados pelo ECA, bem

como entregar-lhe a prestação jurisdicional de forma rápida e efetiva, por

18 “Art. 147. A competência será determinada: I - pelo domicílio dos pais ou responsável; II - pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável. § 1º. Nos casos de ato infracional, será competente a autoridade do lugar da ação ou omissão, observadas as regras de conexão, continência e prevenção. § 2º A execução das medidas poderá ser delegada à autoridade competente da residência dos pais ou responsável, ou do local onde sediar-se a entidade que abrigar a criança ou adolescente. § 3º Em caso de infração cometida através de transmissão simultânea de rádio ou televisão, que atinja mais de uma comarca, será competente, para aplicação da penalidade, a autoridade judiciária do local da sede estadual da emissora ou rede, tendo a sentença eficácia para todas as transmissoras ou retransmissoras do respectivo estado”.

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meio de uma interação próxima entre o Juízo, o infante e seus pais ou

responsáveis.

Nessa toada, o CPC, que, por indicação expressa do art. 152 do ECA,

têm aplicação subsidiária nos procedimentos afetos à infância e juventude,

cede espaço, no que toca à fixação da competência, ou mesmo sua

alteração, para o foro onde a criança exerce, com regularidade, seu direito à

convivência familiar e comunitária, regra especial que assume caráter

subordinador no que se refere às disposições gerais de competência

previstas na lei processual civil.

Na prática, deixa mitigada a regra da perpetuatio jurisdictionis,

estabelecida no art. 87 do CPC, que cede lugar a uma solução que oferece

tutela jurisdicional mais ágil, eficaz e segura ao infante, permitindo, desse

modo, a modificação da competência no curso do processo”.

Como se denota, o precedente trincou a perpetuação ao argumento de que a tutela do

interesse do menor tanto justifica a prevalência do seu domicílio na definição da competência,

como permite a modificação da competência supervenientemente pela alteração do seu domicílio.

Todavia, tal perspectiva reducionista não apreende bem ter o tema assento constitucional,

notadamente na garantia do respeito ao juiz natural e, por consequência, na necessidade de sua

perpetuação durante todo o andamento do processo.

Bom é dizer, por mais lídimo que sejam as intenções do precedente, o fato é que o

interesse do menor não pode vergar a garantia constitucional do juiz natural após a cristalização da

competência.

De fato, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em regra abstrata, determina os

critérios para o estabelecimento da competência (índice de competência) — no momento da

ocorrência da fattispecie concreta — cuja pedra de toque é o melhor interesse do menor (artigo

147 do ECA). Anote-se, a regra é mais benéfica ao menor daquela constante do Código de Processo

Civil (artigo 9819).

Agora, com o devido e merecido respeito, fixada a competência, acorde com o interesse do

menor, este mesmíssimo interesse não justifica a alteração da competência, concretamente

estabelecida, por fato posterior, permitindo quiçá o direcionamento indevido de juízo.

19 “Art. 98. A ação em que o incapaz for réu se processará no foro do domicílio de seu representante”.

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Ora, uma coisa é estabelecer competência privilegiada aos menores, para um sem número

de processos, noutro sem número de juízos, sem qualquer ligação com o fato ocorrido. Coisa

diversa é permitir a alteração, com base num fato posterior à demanda, para que a competência

observe um fato ocorrido, exatamente o que a vedação do juízo de exceção tenciona impedir.

A nosso ver, a tutela ao menor não justifica, com todos os potenciais riscos decorrentes, a

alteração da competência para o processamento de uma demanda, com a escolha, às vezes

animada por espírito não Republicano, de determinado e específico juízo.

Acresce mais um fundamento.

A ordem jurídica tratou com juízo de desvalor a alteração do domicílio do menor,

qualificando-a como uma possibilidade de alienação parental (artigo 2o, parágrafo único, inciso VII,

da lei no 12.318, de 26 de agosto de 2010), tudo a redobrar a atenção do intérprete.

Ademais, relegar a apreciação vis a vis é permitir um subjetivismo sem controle em matéria

ligada à própria validez da relação processual — a competência é pressuposto processual de

validade —, cujo imperfeito desate inquina irremissivelmente o provimento jurisdicional (artigo

485, inciso II, do CPC). Anote-se, sempre que possível, a análise dos pressupostos processuais deve

se apartar da pretensão externada, a fim de que não seja falseado por discussões que dependam

de cognição de mérito e, consequentemente, da apreciação da prova.

8. Violação do juiz natural e nulidade

A violação da perpetuação do juiz natural implica em indiscutível ofensa ao núcleo deôntico

do princípio do juiz natural. E, sendo assim, ofender este postulado é violar diretamente (e não

reflexamente) o próprio texto constitucional, ensejando, assim, o cabimento do recurso

extraordinário (art. 102, III, “a”, da Constituição da República).

Na doutrina não resta dúvida de que o efeito da citada violação é a nulidade absoluta dos

atos decisórios praticados, eis que desatendida a regra de competência absoluta (art. 113, § 2º, do

CPC).

O que não é tão pacífico assim é a questão da sanabilidade do vício pelo decurso do tempo

ou, em outros termos, se eventual vício restaria superado pela sanatória geral advinda da coisa

julgada.

Pese a respeitável posição no sentido de que violação aos princípios constitucionais do

processo, em especial ao juiz natural, jamais é sanável, tem prevalecido o entendimento de que

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transitada em julgado a ação processada e/ou decidida pelo juiz que não seja o natural, somente

no biênio da ação rescisória é lícita a desconstituição da sentença (art. 485, II, do CPC), sob pena

de insegurança jurídica latente (STJ, 1ª Turma, Resp. n. 114.568/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de

Barros, j. 23.06.1998).

9. Conclusões

Estabelecidas tais premissas, chegado o momento de passar em revista as ilações

consequentes:

1. As regras sobre distribuição dos feitos e sobre a perpetuatio dão concretude ao princípio

do juiz natural, devendo esta última projeção do princípio ser requalificada como o postulado da

“perpetuação do juiz natural”, expressão linguística que melhor apresenta sua importância e

potencialidades.

2. A violação a perpetuação do juiz natural viola diretamente o princípio constitucional do

juiz natural, dando azo ao manejo de recurso extraordinário, pois aqui não se trata de ofensa

meramente reflexa, mas propriamente de violação ao núcleo deôntico da garantia constitucional20.

3. O precedente estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça, no Conflito de Competência

no 114782/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, é, com todas as vênias, incorreto,

relegando o princípio do juiz natural, pois permitir a flexibilização indevida da perpetuação do juiz

natural pela presença de menor num dos polos da relação processual.

4. A violação das regras acima (distribuição ou perpetuatio) acarreta a nulidade absoluta

dos processos e das decisões proferidas pelo juízo constitucionalmente incompetente, ensejando,

inclusive, o cabimento de ação rescisória, mas só no biênio legal (art. 485, II, do CPC). Após este

prazo eventual vício é acobertado pela sanatória geral da coisa julgada.

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20 DUARTE, op. cit., p. 117/120.

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