Posse Ihering

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    POSSE NO ATUAL CDIGO CIVIL: ALGUNS REDIMENSIONAMENTOS

    NECESSRIOS AO POLTICO DO DIREITO

    Janine Stiehler Martins

    Juza de Direito titular da comarca de Navegantes-SC. Mestranda em Direito pela Univali Itaja-

    SC. E-mail:[email protected]

    SUMRIO. 1. Introduo. 2. Consideraes preliminares sobre as principais

    teorias da posse. 2.1. Teoria subjetiva de Savigny. 2.2. Teoria objetiva de Ihering.

    3. O confronto entre posse e propriedade em aes possessrias. 4. O papel dopoltico do Direito no contexto dos interditos possessrios. 4.1. Anotaes sobre

    os fundamentos da Poltica Jurdica e seu papel harmonizador na construo da

    norma jurdica concreta. 4.2. A funo social da posse e a contribuio do poltico

    do Direito. 5. Consideraes finais.

    RESUMO

    O confronto, em aes possessrias, dos institutos da posse e da

    propriedade, foi atenuado pela modificao legislativa do Cdigo Civil de 2002 que

    impediu a invocao de ttulo de domnio em tais aes, consagrando-se a

    separao absoluta entre os juzos possessrio e petitrio. O presente estudo

    sustenta a necessidade de igualar hierarquicamente ambos os institutos,

    propondo-se ao poltico do direito, como fundamento de legitimidade da deciso

    judicial, o resgate da validade material da norma, ou seja, a adequao aos

    valores de Justia, tica, Legitimidade e Utilidade. A supremacia da posse ou a

    desvalia da propriedade, em ao possessria, ultrapassa a questo do justo

    ttulo, e deve advir da correlao entre o princpio da funo social da propriedade

    e o reconhecimento da sua coexistncia com o princpio da funo social da

    posse, com vistas a conceber uma soluo compatvel com o que socialmente

    desejado e necessrio sociedade em cada caso concreto.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    EXPRESSES-CHAVE. 1. Posse e pureza das aes possessrias. 2. Funo

    social da posse. 3. Contribuio do poltico do Direito.

    1. INTRODUO

    O presente estudo intenta apresentar, inicialmente, a compreenso

    sobre a natureza da posse e a sua proteo no atual Cdigo Civil, atravs da

    delimitada diferena entre as teorias subjetiva e objetiva da posse, usualmente

    citadas mas no compreendidas em sua essncia pelos aplicadores do Direito.

    Atravs disso, analisar-se-, em seguida, o que levou o legislador, no art. 1210,

    2, do mesmo diploma, a impedir a discusso sobre propriedade em aespossessrias, e o natural confronto entre posse e propriedade em tais aes.

    Mais frente, sero apresentados alguns aspectos dos fundamentos

    da Poltica Jurdica e seu papel harmonizador diante da criao judicial do Direito,

    ou seja, da norma jurdica concreta, mais especificadamente, nas aes

    possessrias.

    Por derradeiro, analisar-se- o reconhecimento da existncia da

    funo social da posse, e da possvel contribuio do poltico do Direito para a

    equiparao de hierarquia entre posse e propriedade, com a relegao de

    divergncias e discusses procedimentais para segundo plano e com a

    consagrao, no processo judicial, daquele instituto - posse ou propriedade- que

    melhor cumprir sua funo social.

    2. CONSIDERAES PRELIMINARES SOBRE AS PRINCIPAIS TEORIAS DA

    POSSE

    2.1. Teoria subjetiva de Savigny.

    2

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    Para Savigny1, autor da teoria subjetivista da posse, esta nasce

    como uma situao de fato que, ao ser protegida pelo Direito, acaba por se

    transformar em um direito. Segundo esta teoria necessrio, para a

    caracterizao da posse, o elemento objetivo (corpus), isto , a apreenso fsicadireta da coisa, dentro da esfera de seu poder; e tambm o elemento subjetivo

    (animus domini), ou seja, vontade de ter a coisa como sua.

    A teoria subjetiva distingue, assim, a mera deteno da efetiva

    posse, por considerar a primeira como mera existncia do elemento objetivo. O

    fundamento da proteo possessria encontra-se no princpio geral de que todos

    devem ter a proteo do Estado contra qualquer ato de violncia. Assim, Savigny

    entende ser a posse um poder de dispor fisicamente da coisa, com o nimo deconsider-la sua e defend-la contra a interveno alheia. A ausncia de um dos

    elementos citados corpus ou animus domini, acarreta a inexistncia de posse,

    respectivamente, pela ausncia de relao de fato entre a pessoa e a coisa, ou

    pela caracterizao de mera deteno sobre a coisa.

    Em sntese, a posse direito e fato: considerada em si mesma um

    fato; considerada nos efeitos que gera, um direito.

    2.2. Teoria objetiva de Ihering

    A teoria objetivista da posse, de autoria de Ihering2, se caracteriza

    por entender que o elemento objetivo da posse, citado por Savigny, suficiente

    para comprovar a existncia de posse. O autor vai alm ainda ao explicar que a

    presena deste elemento objetivo pode ser detectado, com as escusas pelo

    propositado plenoasmo, de maneira objetiva, pois segundo ele, a posse a

    exteriorizao da propriedade, sua parte visvel. O possuidor age em nome da

    coisa como se fosse o proprietrio. Ao vislumbrar a posse, presume-se apropriedade.

    A inteno de ter a coisa como sua (animus), nos termos do elemento

    subjetivo de Savigny, despicienda, segundo Ihering, para a comprovao da

    1 O autor escreveu a obra Tratado da Posse no ano de 1803, com apenas 24 anos de idade,segundo GOMES, Orlando. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2004,, 19a edio, revistada,atualizada e aumentada segundo Luiz Edson Fachin.2IHERING, Rudolf von. Teoria Simplificada da posse. So Paulo: Edipro, 2002, 2a edio.

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    posse, a qual passa a existir quando esta preenche sua finalidade econmica, de

    acordo com a ordem natural das coisas. Isto significa que, para o autor, no h a

    necessidade do poder de fato sobre a coisa para a ocorrncia do elemento

    objetivo, apresentando um elemento diferenciador sobre o prprio conceito decorpus trazido por Savigny. Como exemplo da existncia da posse, para Ihering,

    pode-se citar a colheita deixada no campo por um produtor: embora no a tenha

    fisicamente, a conserva em sua posse pois age como o proprietrio

    ordinariamente o faz. Contrariamente, v. g., se o produtor deixa uma jia no

    mesmo local, no mais conserva a posse sobre ela, pois no assim que um

    proprietrio deve agir em relao a um bem desta natureza.

    Ihering explica que o animus est subentendido no comportamentodo possuidor, pois se age como dono, porque quer ser dono, quer dizer, o

    animus j se encontra no conceito de corpus, sendo este explicado como o

    propsito de servir-se da coisa como proprietrio, em vista de sua funo

    econmica. Acrescenta ainda Ihering3 que

    O corpus, segundo a teoria dominante, o poder fsico, com asupremacia de fato sobre a coisa. Esta a noo fundamental deacordo com a teoria atual. Ela absolutamente errnea, como sepode ver da minha obra j citada sobre o Fundamento da Proteo

    Possessria [...] Reconhece-se pois a posse exteriormente. Osterceiros podem saber se a relao possessria normal ouanormal [...] A teoria reinante no nos presta auxlio algum; limita-se a dizer se o possuidor continua possuindo, mas no nos dizcomo os terceiros podem e devem reconhecer se ele possui ouno.

    Na presente teoria, o Direito protege a posse no por ela em si, mas

    pela propriedade que a posse faz supor protege a posse para proteger os

    direitos do proprietrio. Em suma, a posse a condio de fato da utilizao

    econmica da propriedade, um meio de defesa da propriedade e uma rota que

    leva propriedade. O direito de possuir faz parte do contedo do direito de

    propriedade.

    O Cdigo Civil atual, assim como j o fazia o de 1916, adotou

    predominantemente, a teoria objetiva de Ihering, apesar de ter se inspirado na

    3IHERING, Rudolf von. Teoria Simplificada da posse. So Paulo: Edipro, 2002, 2a edio, p. 55 a

    61.

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    teoria de Savigny. Consoante redao do seu art. 1196, considera-se possuidor

    todo aquele que tem de fato o exerccio, pleno ou no, de algum dos poderes

    inerentes propriedade.

    3. O CONFRONTO ENTRE POSSE E PROPRIEDADE EM AES

    POSSESSRIAS

    A posse, para o legislador brasileiro, o exerccio de alguns dos

    poderes peculiares propriedade a exteriorizao da propriedade. um poder

    de fato que algum detm sobre algo com o exercio do direito de usar (faculdade

    de utilizar a coisa para obter as finalidades a que ela se destina), gozar (colher os

    frutos da coisa), dispor (possibilidade de dar o destino que melhor lhe aprouver acoisa) e reaver a coisa de quem a possuir sem razo jurdica.

    Neste sentido, muita discrepncia ocorre na lide forense sobre o

    conceito de possuidor em aes possessrias, principalmente nas relativas a bens

    imveis. Exige-se, para o autor da ao que postula proteo possessria,

    estivesse ou esteja na posse ftica efetiva do imvel anteriormente ao esbulho ou

    concomitantemente turbao? O que poder de fato sobre a coisa? Mais

    precisamente, qual o conceito de possuidor em aes possessrias?

    Incontveis decises judiciais extinguem aes possessrias,

    liminarmente, pela falta de comprovao de posse de fato por parte do autor da

    demanda. Entretanto, certamente tal divergncia surge pela separao absoluta

    entre os conceitos de posse e de propriedade, reservando-se as aes

    possessrias somente para aqueles que pretendem discutir posse, sem qualquer

    apresentao de ttulo de propriedade para confronto com a parte contrria. Tal

    questo comumente conhecida pela chamada pureza dos interditos

    possessrios, ou seja, a impossibilidade de invocao de propriedade, amparadaou no por justo ttulo, por uma ou ambas as partes na maioria das aes

    possessrias.

    Tal questo causa grande divergncia no seio jurisdicional e, de

    conseguinte, conflitos e discrepncias nas decises judiciais. Sabe-se que a posse

    , antes de tudo, um fato material, no jurdico, a tanto que nas aes

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    possessrias se verifica quem tem a posse (jus possessionis) no o direito a ela

    (jus possidendi). Assim, em geral, nelas no se discute propriedade, mas apenas

    a existncia do poder de fato sobre a coisa. Porm, consoante entendimento

    jurisprudencial pacificado at a edio do atual Cdigo Civil, havia uma exceo,permitindo a invocao de propriedade em aes possessrias: a) se a posse

    fosse duvidosa, ou seja, se nenhuma das partes conseguisse provar

    satisfatoriamente sua posse, no sentido da evidncia de que o possuidor no

    dono da coisa; e b) se ambos litigassem com base no domnio (propriedade), ou

    seja, que a posse estivesse sendo disputada a este ttulo. Neste caso, aplicar-se-

    ia ento o disposto no art. 5054 do Cdigo Civil de 1916 a exceo de domnio

    (exceptio proprietatis).Destarte, a exceptio proprietatis, adotada pelo Cdigo Civil de 1916 e

    largamente reconhecida e aplicada pelos tribunais na forma supra explicitada, em

    seu art. 505, surgiu como meio de adequar a pureza das aes possessrias

    possibilidade de resguardo aos litigantes que dispunham de ttulo de propriedade,

    a tanto que a matria chegou a ser objeto da Smula n. 487 do STF: Ser

    deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domnio, se com base neste for

    ela disputada.

    A seu turno, o Cdigo Civil de 2002, na tentativa de ratificar a pureza

    das aes possessrias e impedir a invocao de propriedade em tais aes,

    suprimiu a segunda parte do art. 505 do Cdigo Civil de 1916 e expressamente

    no recepcionou o instituto jurdico da exceo de propriedade (exceptio

    proprietatis) nos interditos possessrios, consoante redao do art. 1.210, 25,

    do CC.

    Uma primeira anlise sobre a modificao legislativa pode suscitar a

    questo da aparente incongruncia de que um direito considerado maior apropriedade -, ceda diante de um menor a posse. Alm disso, para os que

    aceitam a teoria de Ihering, a extirpao da exceo de propriedade

    4Art. 505. No obsta manuteno, ou reintegrao na posse, a alegao de domnio, ou de

    outro direito sobre a coisa. No se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quemevidentemente no pertencer o domnio.5Art. 1210, 2. No obsta manuteno ou reintegrao na posse a alegao de propriedade ou

    de outro direito sobre a coisa.

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    incompatvel com o conceito objetivo de posse, segundo o qual a proteo

    possessria justificada como uma posio defensiva do proprietrio, ou seja,

    para a finalidade de facilitar a proteo da propriedade.

    A proteo possessria, desde o Direito Romano, distingue os juzospossessrios referentes somente posse; e os juzos petitrios referentes

    questo de propriedade, permitindo que uma pessoa munida de ttulo de

    propriedade seja perdedora em ao possessria. Este fato, inclusive, gera

    imensos conflitos quanto ao instituto da coisa julgada nas aes possessrias e

    petitrias, deixando as partes merc de decises judiciais conflitantes relativas

    ao mesmo imvel e mesma questo de fundo.

    Orlando Gomes

    6

    explica que: primeira vista, tal princpio parece injusto, e mesmo paradoxal,porque ou admite que o fato prevalea sobre o direito, ou faz comque direito maior ceda diante do menor. Justifica-se, no entanto,em face da finalidade das aes possessrias, que, por suanatureza, no comportam discusso sobre o domnio. Protege-sepura e simplesmente a posse, embora, muitas vezes, se sacrifiquea realidade pela aparncia. Mas nem por isso o dono da coisa estimpedido de defender a sua propriedade contra quem possui acoisa indevidamente. O que se diz que o meio processual imprprio, pois a ao possessria se destina a dirimir litgiosrelativos posse, no propriedade. Para a garantia do seu

    direito, o proprietrio dispe da ao de reivindicao, a serexercida precisamente contra o possuidor que detm injustamenteo bem. uma ao petitria, que no se confunde com as aespossessrias, consoante entendimento pacificamente admitidodesde os romanos

    E continua, mais adiante:Nos termos da lei processual, defeso intentar o reconhecimentodo domnio na pendncia do processo petitrio, mas seentendendo que a posse deve ser deferida a quem evidentementetiver o domnio se com base neste for disputada. Sustenta-se,tambm, que, por economia processual, se deveria permitir o

    conhecimento, na possessria, de matria petitria, evitando-se apropositura de duas aes. Seria, porm, instaurar a confuso emtoda ao possessria, reunindo aes de finalidade diversa. Aproibio de cumulao do juzo possessrio e petitrio deordem pblica e verificvel ex officio pelo juiz7

    6GOMES, Orlando. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2004,, 19a edio, revistada, atualizada

    e aumentada segundo Luiz Edson Fachin, P. 102.7GOMES, Orlando. Direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2004,, 19a edio, revistada, atualizada

    e aumentada segundo Luiz Edson Fachin

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    Dito isto, necessrio esclarecer que o presente estudo no visa tecer

    consideraes sobre as divergncias doutrinrias e/ou jurisprudenciais sobre

    questes dogmticas e de mera processualstica, mas sim redefinir o papel do

    magistrado, na condio de poltico do Direito, quando em confronto com taissituaes.

    A posse no inferior propriedade, e nem esta, diante da extino

    da exceo de propriedade, passou a ser mais importante que aquela. O ponto

    central de tal discusso perpassa por questo muito mais importante, qual seja, a

    exigibilidade de existncia de funo social em ambos os institutos. E neste

    sentido, a Poltica Jurdica, ao trabalhar com critrios racionais e objetivos para o

    arbitramento valorativo da norma, importante ferramenta aos aplicadores doDireito. Tanto a posse, como a propriedade, devem auxiliar para que a sociedade,

    como um todo, seja beneficiada por aquele direito de posse ou por aquele direito

    de propriedade. Este reconhecimento harmonizar a teoria objetiva de Ihering com

    a pureza dos interditos possessrios, pois o que bastar ao magistrado que uma

    das partes comprove estar exercendo, mais legitimamente que a outra, a funo

    social da posse ou da propriedade por si invocadas na ao possessria.

    Tal questo ser, frente, examinada mais a fundo.

    4. O PAPEL DO POLTICO DO DIREITO NO CONTEXTO DOS INTERDITOS

    POSSESSRIOS.

    4.1. Anotaes sobre os fundamentos da Poltica Jurdica e seu papel

    harmonizador na criao da norma jurdica concreta

    A funo do Direito transcende uma simples compatibilizao entre

    conflitos aparentes entre normas de contedo substantivo ou processual, visando

    uma nova postura terica e humanista do jurista no alcance de normassocialmente desejadas, no sentido de justas, teis e eficazes.

    O direito positivo no pode ser fechado s conquistas sociais e ao

    projeto de solidariedade fulcrado na realizao da cidadania. Desta forma,

    incumbe Poltica do Direito uma viso no dogmtica, mas comprometida com a

    transformao da sociedade e dos seus interesses, os quais podem ser

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    racionalizados pelo legislador e pelo Juiz. Esta racionalizao intenta a busca da

    validade material da norma, ou seja, compatibilizar o socialmente desejado e

    necessrio ao homem, e no apenas a sua validade formal, mediante obedincia

    s normas processuais para sua vigncia.Ferreira de Melo8, em sua obra Fundamentos da Poltica Jurdica,

    ressalta que a Poltica do Direito deve estar comprometida com o Justo, tico,

    Legtimo e Necessrio. O mesmo autor cita, em sua obra, que os autores que

    dedicaram ateno e importncia Poltica Jurdica, foram reducionistas em suas

    concepes.

    Por no ser o objeto especfico deste trabalho, deixa-se de

    apresentar as diversas conceituaes sobre a categoria em foco, apenasacrescentando-se que os referenciais tericos da Poltica Jurdica, segundo o

    autor em tela, abrangem questes de natureza ideolgica e epistemolgica. Nesta

    segunda funo, ressalta-se da obra em questo, a necessidade de crtica ao

    direito vigente, cujos princpios e normais devem ser cotejados luz de critrios

    racionais de Justia, Utilidade e Legitimidade, atravs da busca em fontes formais

    e informais de representaes jurdicas do imaginrio social que se legitimem na

    tica, princpios de Liberdade e Igualdade, e na Esttica da convivncia humana.

    Necessria, assim, a vinculao da tica Poltica, compatibilizando-se o que

    moramente correto ao que socialmente til, para o fim de construir novos

    paradigmas democrticos e de fazer atuar o Direito como instrumento de

    transformao social.

    Explica Ferreira de Melo9 que:

    muitos juristas temem que a abertura jurdica a um trabalhointerdisciplinar e a uma aproximao maior a um paradigmaaxiolgico, seja o caminho da autodestruio do Direito. Ledo

    engano. O direito, se no for entendido simultaneamente comofato, valor e norma, viso tridimensional exposta lucidamente porMiguel Reale, no permitir jamais a necessria aproximaoentre a regulao social e a regulao jurdica ou seja entre omundo das prticas sociais e o da positivao.

    8MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Poltica Jurdica. Porto Alegre: Sergio Antonio

    Fabris Editor, 1994, 136p.9MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Poltica Jurdica. Porto Alegre: Sergio Antonio

    Fabris Editor, 1994, p. 99.

    9

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    E continua:

    [...]Nem todas as prticas sociais so necessariamenteboas, ou seja, melhor adequadas para a soluo justa dosconflitos que as proposies do senso terico do jurista. No

    entanto elas tm, em regra, mais condies de ganhareficcia pela chamada legitimidade da fonte. Da mesmaforma no ser, pelo fato de residir no social, que o costumepossa ser invocado inconseqentemente, para dirimirquestes originadas na complexidade da vidacontempornea.[...]10

    Diz-se da Poltica Jurdica a disciplina que tem como objeto o Direito

    que deve sere como deve ser, em oposio funcional Dogmtica Jurdica, que

    trata da interpretao e da aplicao do Direito que , ou seja, do Direito vigente,

    ou o conjunto de estratgias que visam a produo de contedo da norma, e de

    sua adequao aos valores Justia (V) e Utilidade Social (V)11

    Os limites do presente estudo impedem, naturalmente, disgresses

    aprofundadas sobre a Hermenutica. A construo da norma jurdica concreta, ou

    seja, a criao judicial do direito, se d pela interpretao e aplicao da lei

    atravs de uma fonte legitimada, que atualmente no mais se circunscreve apenas

    na lei, doutrina, costume, jurisprudncia e analogia. Os desafios atuais so mais

    complexos e tormentosos para o poltico do direito, exigindo-lhe uma postura maiscriativa que consiga angariar maior consenso social possvel, a no se

    justificando, por outro lado, uma idia de justia livre, no criteriosamente

    selecionada.

    As necessidades sociais so a fonte da Poltica Jurdica, de modo a

    aproximar-se da capacidade de responder s crenas sociais e legitimar a

    assegurao de valores fulcrados na sociedade. A norma passa a ser eficaz e

    vlida no somente porque vigente, mas porque conforma a legitimidade de seu

    contedo e seus fins aos sentimentos de justia e aquiescncia social.

    10MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Poltica Jurdica. Porto Alegre: Sergio Antonio

    Fabris Editor, 1994, p. 99.11MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionrio de Poltica Jurdica. Florianpolis: OAB Editora, 2000, p.

    77.

    10

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    Neste sentido, Ferreira de Melo12 discorre sobre a possibilidade de

    racionalizar critrios de justia, e dentre eles arbitrar a norma de acordo ou no

    com uma obrigao moral de agir, harmonizando a norma com a moralidade

    aceita pela comunidade. E denomina este critrio de justia como legitimidadetica, diminuindo o impacto e a diferena entre o direito desejado e o direito posto.

    O papel da Poltica Jurdica no negar vigncia ao direito posto,

    mas sim harmoniz-lo e examinar a justia como um valor atribudo norma pela

    conscincia jurdica da sociedade, de molde a satisfazer necessidades legtimas

    da sociedade.

    neste vis que o papel do poltico do direito adquire extrema

    importncia diante da proteo ao possuidor que cumpra sua funo social, o queser analisado a seguir.

    4.2. A funo social da posse e a contribuio do poltico do Direito.

    Como j mencionado, a discusso processualstica da pureza das

    aes possessrias e da impossibilidade da oposio de ttulo de propriedade em

    tais aes, relega, a segundo plano, o verdadeiro fundamento de tamanha

    divergncia: o reconhecimento da posse como instituto jurdico diminuto e inferior

    ao da propriedade. E mais: a superioridade do domnio em relao posse no

    passa da possibilidade de apresentao de ttulo de registro imobilirio.

    J na Lei das XII Tbuas, de longe, o referencial mais distante do

    Direito Romano, havia uma preocupao em minimizar o litgio no uso da

    propriedade e preservar o melhor uso das riquezas, de modo a coibir a destruio

    ou desperdcio. No mesmo norte, embora o dominiun, ou seja, a propriedade

    individual, para o qual converge o antigo mancipium, conferia o carter absolutoda propriedade da famlia romana e revelava um plus importncia da questo

    patrimonial, ao mesmo tempo dava exemplos de direcionamento a uma nova

    12MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Poltica Jurdica. Porto Alegre: Sergio Antonio

    Fabris Editor, 1994, 136p.

    11

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    tendncia econmica e social das coisas, observando-se a clara submisso do

    exerccio da propriedade ao interesse social, conforme Pezzela13.

    A propriedade privada urbana, luz das Constituies Brasileiras,

    teve em seu conceito interferido por valores diversos (polticos, ideolgicos,jurdicos etc). Segundo Costa14, a primeira fase da histria constitucional brasileira

    abrange o perodo imperial, da proclamao da Independncia ao advento da

    Repblica, ao passo que a segunda fase perdurou durante a Primeira Repblica,

    implantando-se, formalmente, as instituies liberais, aliceradas na concepo

    individualista da propriedade. No terceiro perodo do Constitucionalismo Brasileiro,

    a partir da Carta de 1934 at 1967/69, surgiu um rol de princpios enfatizantes do

    aspecto social dos direitos fundamentais. A quarta fase deu-se a partir daConstituio de 1988 e segue at os dias atuais, quando ocorreu o processo de

    redemocratizao do pas, ampliando-se, significativamente, o rol de direitos

    fundamentais, dentre eles, a propriedade privada (art. 5o, XXII), vinculando-a,

    porm, ao cumprimento de sua funo social (art. 5o, XXIII). Ou seja, o direito de

    propriedade fica vinculado ao desenvolvimento social, mediante regras de

    interesse pblico, e no mais, doravante, meramente de interesse privado.

    Como se v, a dogmtica principiolgica impe a concretizao da

    aplicao social implcita nas normas constitucionais da Carta de 1988.

    Renomados autores, civilistas e constitucionalistas, entendem a adoo do

    princpio constitucional da funo social da propriedade, no atual Cdigo Civil,

    como uma reao da ordem jurdica contra os desperdcios da utilizao do bem

    por parte dos respectivos proprietrios.

    Necessrio ressalvar, porm, que todos os doutrinadores

    reconhecem a necessidade de assegurar a propriedade privada, sem risco de

    socializao da propriedade, assegurando, unicamente, a conscincia social dohomem e o sentimento de solidariedade poltica, econmica e social.

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil, em seu art. 5, e

    art. 182, 4, dispe que a propriedade somente merece proteo se cumprir com

    13 PEZZELLA, M. C. Cereser. Propriedade privada no Direito Romano. Porto Alegre: Safe, 1998,224 p.14COSTA, Cssia Celina P. Moreira da. A constitucionalizao do direito de propriedade privada.

    Rio de Janeiro: Amrica Jurdica: 2003, 226 p.

    12

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    sua funo social; e, paralelamente, o art 1228, 1 15, do atual Cdigo Civil,

    apresenta a preocupao com a funo social da propriedade, aparentemente

    procurando nos juristas a obedincia ao carter social do direito de propriedade

    como princpio de ordem pblica, impondo seja o mesmo exercido emconsonncia com suas finalidades econmicas e sociais.

    Desta forma, questo de relevo, atualmente, saber se h ou no

    uma mudana no conceito tradicional de propriedade, diante da passagem dos

    sistemas liberais, sociais e os ciclos constitucionais brasileiros, principalmente

    diante da consolidao, na atual Constituio Federal Brasileira, do princpio da

    atividade econmica, de ntido contedo programtico, segundo o qual a

    propriedade dever exercer sua funo social, mediante linhas diretoras para aao pblica, cuja previso primeira remonta Carta Magna de 193416. Barroso17

    explica que tal preceito conduz a um contedo de inconstitucionalidade

    relativamente aos atos com ele incompatveis, gerando direito ao administrado de

    opor-se judicialmente ao cumprimento de regras contrrias a este preceptivo. A

    seu turno, Mello Motta18 acrescenta que a subordinao da propriedade a fins

    outros que no o mero domnio voluntarstico do proprietrio marcou um

    rompimento com seu princpio individualista, surgindo o conceito de propriedade

    como funo social e a necessidade de o sistema jurdico, atravs de seus

    aplicadores e estudiosos, resolver as tenses da decorrentes.

    Por outro lado, se a posse o exerccio de uma situao de fato

    sobre alguma coisa que cumpre a sua finalidade econmica em relao ao seu

    possuidor e, por isso, protegida pelo Direito, pode-se definir que a posse

    tambm deve ter funo social.

    Destarte, impe-se redelimitar o papel e a importncia da posse

    como instrumento de pacificao social.15Art. 1228, 1. O direito de propriedade deve ser exercido em consonncia com as suas

    finalidades econmicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com oestabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilbrio ecolgico e opatrimnio histrico e artstico, bem como evitada a poluio do ar e das guas.16TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

    17BARROSO, Luis Roberto. Interpretao e aplicao da constituio. So Paulo: Saraiva, 2003,

    378 p.18 MOTTA, Maria Clara Mello. Conceito constitucional de propriedade. Tradio ou mudana. Riode Janeiro: Lumen Juris, 1997, 218 p.

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    Ana Rita Vieira Albuquerque19 adverte que a concepo de uma

    teoria social da posse remonta a Perozzi que, em 1096, publicava a primeira

    edio de sua obra Instituio de Direito Romano, na qual considerava a posse

    como relao de fato, e no de direito, que dependia do costume social deabsterem-se todos do uso de uma coisa aparentemente no livre, em respeito

    paz social. Diversas outras obras de relevo da se seguiram, sendo interessante

    anotar, neste diapaso, as teorias do fato socioeconmico potestativo (no qual a

    posse ultrapassa a idia de coisa puramente material, esta no dissociada do fato

    social), e da teoria portuguesa da posse til (inserida na Constituio Portuguesa

    de 1976, na qual h um direito de gozo que, no necessariamente, se equipara

    posse em sentido tcnico).Assim, embora no comum esta lembrana no meio forense, pode-

    se afirmar, sem dvida, que ao lado do princpio da funo social da propriedade

    encontra-se o princpio da funo social da posse. Ora, se ao proprietrio incumbe

    exercer seus poderes em respeito ao aspecto social do domnio, ao possuidor

    tambm releva representar o contedo social de sua vontade, e no meramente

    uma vontade vazia de possuir. A posse, ainda que potencialmente seja a

    exteriorizao do domnio, no deixa de caracterizar um instituto autnomo e

    prprio, que pode e deve ser reconhecido com valor de igual peso, mesmo que em

    detrimento da relao proprietria.

    Ademais, relegar-se a posse, como usualmente feito pelo Cdigo

    Civil de 1916, em instituto inferior propriedade, algo que no mais persiste

    aps a Constituio de 1988 e a ratificao do princpio da funo social deste

    instituto no atual Digesto Civil. A concretizao, paralelamente, da funo social

    da posse, exigir a ponderao de bens entre os diferentes princpios jurdicos.

    Chega-se, aqui, possibilidade real de coliso entre os princpios da funo socialda propriedade e o da funo social da posse, o que, naturalmente, seria alvo para

    outro estudo, sem qualquer comparao de profundidade com a singeleza destes

    breves apontamentos.

    19ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da funo social da posse e sua conseqncia frente

    situao proprietria. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, 229 p.

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    Necessrio, porm, neste tocante, fazer um parntesis. Destarte, a

    par da almejada pureza dos interditos possessrios, destinadas a proteger a

    posse em si mesma, e diante da imensa divergncia de decises judiciais no que

    se refere ao manejo de aes possessrias por parte daqueles que detm ttulo dedomnio, indispensvel analisar o alcance da defesa da propriedade em tais

    demandas. O fundamento da proteo possessria como instrumento da paz

    social, privilegiado na teoria subjetiva de Savigny, veio a ser coadunado com a

    insero, no novel Cdigo Civil de 2002, em seu art. 1228, da previso do

    princpio da funo social da propriedade em nvel ordinrio, induzindo retomada

    da indagao sobre o real conceito de possuidor para fins de aes possessrias

    e estabelecendo uma posse identicamente dotada de funo social, elevando oconceito de dignidade da pessoa humana a um plano substancial, e tambm

    dotando a posse de uma vontade do possuidor, no mais uma vontade vazia,

    consoante explica Albuquerque20. Relativiza-se, com isso, a posse como relao

    material do homem com a coisa, passando a ser priorizada para o animus

    (vontade) individual e coletivo21.

    Dito isto, acrescente-se que o atual Cdigo Civil, na esteira da

    incluso do referido princpio em nvel infraconstitucional, tambm em seu art.

    1210, par 2o, extirpou a previso legal, outrora ocorrente no art. 505 do Cdigo

    Civil de 1916, da exceo de propriedade (exceptio proprietatis), no sentido de

    que a posse deveria ser deferida a quem evidentemente tivesse o domnio se com

    base neste fosse disputada, estabelecendo a absoluta separao entre juzos

    possessrio e petitrio. A despeito disso, permanece em vigor a Smula n. 487 do

    Supremo Tribunal Federal, manutendora da dicotomia entre juzo possessrio e

    petitrio, fazendo surgir, nas aes possessrias, um espao vago, ambguo e

    ainda mais tormentoso aos juristas.Assim, nas aes possessrias, nas hipteses em que ambas as

    partes disputam a ttulo de domnio ou quando a posse for duvidosa, resta saber, a

    partir do princpio da funo social da posse e da propriedade e seus eventuais

    20ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da funo social da posse e sua conseqncia frente

    situao proprietria. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, 229 p.21ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenutica dos direitos reais limitados. Rio de Janeiro:

    Renovar, 2001.

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    confrontos, qual o papel a ser assumido pelo aplicador do Direito, e se, num

    conflito entre posse e propriedade no mbito possessrio, pode decorrer a

    prevalncia desta ltima quando no vislumbrada a funo social daquela. Em

    sntese, estamos em tempo onde no mais somente a propriedade deve cumprirfuno social.

    Assente est, hodiernamente, o que j vinha sendo introduzido, verbi

    gratia, desde o Estatuto da Terra (Lei n. 4504, de 30.11.64) e, mais atualmente,

    atravs da Lei n. 10.257, de 10.07.01 Estatuto da Cidade, que tanto a posse

    como a propriedade necessitam cumprir seu papel social, princpios estes erigidos

    condio de exigncia para a vida em sociedade, centrada cada vez mais no

    globalismo, priorizao necessria dos direitos difusos e concretizao daverdadeira cidadania22. Tais diplomas legais, supra citados, estabelecem normas

    de ordem pblica e elevado interesse social que regulam e simplificam o uso da

    propriedade urbana em prol do bem coletivo e ambiental. Isto soma-se, entretanto,

    necessidade preemente de uma (re)organizao do papel do jurista.

    Vrias hipteses, assim, podem ocorrer em aes possessrias: a)

    proprietrio versus possuidor, na qual aquele comprova estar exercendo o domnio

    com base na funo social da propriedade, donde exsurge a procedncia da

    demanda; b) proprietrio versus possuidor, na qual apenas este comprova estar

    exercendo a posse com base na funo social desta, o que acarreta a

    improcedncia do pleito possessrio; c) possuidor versus possuidor, na qual

    necessrio aferir qual deles exerce, efetivamente, a posse com respeito ao seu

    carter social. Ser considerada a melhor posse aquela que atender a funo

    social do instituto, e no aquela fundada, necessariamente, em justo ttulo, tal

    como pode ocorrer, por exemplo, no caso de um deles possuir uma escritura de

    direitos possessrios.Como se pode perceber, dever o magistrado considerar a

    atualidade da posse, a necessidade e o aproveitamento do bem. A melhor posse

    ser, por exemplo, aquela que atender moradia do possuidor e sua famlia, com

    o maior e melhor aproveitamento da terra.

    22 FACHIN, Luis Edson. A funo social da posse e a propriedade contempornea. Porto Alegre:Fabris, 1998, 102 p.

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    Nos itens a e b, verifica-se, evidentemente, uma coliso entre os

    princpios da funo social da posse e o da funo social da propriedade. Impede

    afirmar, neste tocante, que ambos os princpios possuem igual peso, devendo o

    caso ser solucionado com base em outro princpio: o da proporcionalidade dosbens, exigindo ponderao de bens e valores por parte do Juiz.

    Veja-se: o que se pretende aqui o reconhecimento de idntico peso

    entre os institutos da posse e da propriedade, no sendo este o lugar para uma

    prematura e inconseqente afirmao de que os princpios da funo social da

    posse e funo social da propriedade possuem hierarquias idnticas ou diversas,

    pois no esse o objeto do presente estudo. Em caso de colidncia dos citados

    princpios, por aferir o julgador que tanto o autor como ru da ao possessria,por exemplo, possa no ocupar inteiramente o imvel com seu melhor

    aproveitamento, ou, por ex., que ambos sejam composseiros de fato da rea

    (sendo um deles proprietrio), a resoluo da questo certamente se tornar mais

    complexa, exigindo do Juiz a ponderao de bens e a anlise de cada caso

    concreto, sendo impossvel prever o direcionamento do problema.

    Em havendo, para um futuro no distante, um fortalecimento da

    aplicao e reconhecimento, de per si, do princpio da funo social da posse,

    independente da propriedade, poder ocorrer uma gradativa perda de fora do

    instituto da usucapio, atualmente manejada apenas para alar um direito, ainda

    hoje, considerado superior o da propriedade.

    Inmeras possibilidades reais de regularizao da posse, e no to-

    somente da propriedade, esto hoje disposio do poltico do Direito, seja ele

    membro de quaisquer dos trs Poderes da Repblica, tais como o direito de

    superfcie, este alis j inserido no Cdigo Civil, em seu art. 1225, II, como direito

    real; concesso de direito real de uso, zonas especiais de interesse social,concesso de uso para fins de moradia, etc, todos criados pelo Estatuto da

    Cidade, e que neste sentido reforam a necessidade de a posse ser alada a

    direito to importante quanto a propriedade, desde que cumpram sua funo

    social. Ou seja, o reconhecimento da posse, autnoma e independente da

    propriedade, possvel atravs de institutos jurdicos j existentes mas pouco

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    utilizados pelas autoridades do Poder Executivo, Legislativo e Judicirio, sem

    olvidar a importante ao que pode ser feita atravs do Ministrio Pblico.

    Embora este tema possa ser considerado ofensivo e perigoso para

    muitos, uma breve anlise dos mais diversos tribunais estaduais brasileiros dconta de que a realidade social do brasil j vem sobrelevando a importncia da

    posse, onde diversos julgadores, embora no admitam expressamente, protegem

    a posse no menos por sua funo social, caracterizando-se-a como verdadeiro

    direito subjetivo.

    O mais importante, desta forma, aceitar que a funo social da

    propriedade e da posse, erigida em nvel constitucional e infraconstitucional,

    ratifica e corrobora a inteno legislativa de coexistncia harmnica e pacfica dosinstitutos da posse e da propriedade. Ou seja, a posse tambm deve exercer sua

    funo social, e o princpio deve igualmente ser adotado nas aes possessrias

    puras.

    Com isso, o magistrado deve estar atento para o fato de que no

    basta mais ao proprietrio possuir registro imobilirio, e tampouco bastar ao

    possuidor, em ao possessria, invocar a impossibilidade de discusso de

    domnio nas aes possessrias. O que importa, doravante, o reconhecimento

    de que a propriedade, e tambm a posse, necessitam cumprir com seu papel

    social. No h, diante disso, hierarquia entre posse e propriedade; o que fica para

    segundo plano a discusso sobre se a propriedade pode ou no ser discutida

    nas aes possessrias, deixando-se ainda para uma outra discusso a

    relativizao, da decorrente, da coisa julgada entre juzo possessrio e petitrio.

    Ora, a posse, como a propriedade, podem estar exercendo sua funo social hoje

    e, mais frente, podem no mais estar cumprindo com tal mister. A coisa julgada,

    assim, ficaria circunscrita ao mbito formal do processo ento em foco e, no seumbito material, ficaria delimitada sob idntica causa de pedir: o exerccio da

    funo social de um ou outro instituto, seja juzo possessrio ou petitrio.

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    Ferreira de Melo23 adverte que:

    tudo est a nos indicar que precisamos aperfeioarconstatemente o nosso direito, especialmente o processial, quedeve ser o que sempre deveria ter sido: o grande instrumento da

    realizao da justia. Quando conseguirmos essa correo derumos, estaro superadas as causas principais dos abismos quese situam entre as legtimas reivindicaes da sociedade e direitosindividuais de um lado, e a prepotncia da vontade do legislador(imbrincada esta com os fins polticos do Estado ou mesmo degrupos e classes) e o poder majesttico dos Tribunais, de outrolado

    Se a doutrina objetiva de Ihering esclarece que considerado

    possuidor quem tem um poder de fato sobre uma coisa que, por sua vez, cumpre

    a sua finalidade econmica em relao ao seu possuidor, resta claro que o

    possuidor merecer a proteo possessria quando demonstrar que estiver

    fazendo dela uma ocupao conforme o bem comum, com a finalidade ambiental

    e social de pacificao da comunidade. No basta ao possuidor, para a garantia

    de reconhecimento de legitimidade de sua posse, a prtica esbulhativa no

    amparada com uma preocupao de interesse e harmonia social; no lhe socorre,

    tambm, as prticas violentas e atentatrias contra a paz da vizinhana.

    A proteo possessria existe para afastar o elemento de

    insegurana e desassossego social. De outro lado, no basta ao proprietrio, paraa garantia de reconhecimento de legitimidade de seu ttulo de domnio, a

    apresentao do documento, despido da utilizao econmica e destinao social

    do imvel. O que importa doravante, repita-se, a prova de que possuidor ou

    proprietrio utilizem o imvel com base no seu melhor aproveitamento, seja na

    proteo ambiental ou utilizao econmica que gere no somente lucro ao

    proprietrio, mas garantia de empregos, competitividade de preos em eventual

    explorao de seus recursos naturais, enfim, no maior benefcio possvel para a

    comunidade envolvida.

    Volnei Ivo Carlin24lembra que

    o juiz vive, cotidianamente, o conflito entre o direito e a eqidade,optando entre o justo ou o legal, na busca da sua melhor tica

    23MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de poltica do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio

    Fabris Editor, 1998, p. 46.24 CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia Jurdica. Florianpolis: OAB Editora, 2005, 3a ed, p. 78.

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    processual. [...] Deve o Juiz, em tais casos, privilegiar a seguranajurdica, em respeito aos textos e cdigos, ou abrir novos caminhose exercer o seu poder criador? E qual seria a fronteira destaevoluo? Como decidir? Onde se coloca a questo tica? [...] Sointerrogaes demonstradoras das dificuldades enfrentadas pela

    profisso e que exigem conhecimentos tericos e prticos, emltiplos domnios

    So estas, em suma, algumas consideraes sobre a dicotomia entre

    posse e propriedade, e algumas alternativas para o magistrado, diante de seu

    poder criador, fazer firmar a segurana jurdica atravs da imposio da funo

    social de ambos os institutos, incursionando, da, um aperfeioamento do valor

    Justia com adeso paulatina, mas firme, da sociedade.

    5. CONSIDERAES FINAIS

    A finalidade do breve estudo foi identificar qual o melhor caminho a

    ser seguido pelos aplicadores do Direito relativamente discusso entre posse e

    propriedade em aes possessrias, e a interferncia e cotejamento necessrio

    dos princpios da funo social da posse e da propriedade, ainda que extirpada a

    exceo de domnio do atual Cdigo Civil.

    Arraigados concepo liberal/individualista do Cdigo Napolenico,

    a jurisprudncia vem caminhando discrepantemente na anlise da exceo de

    domnio nos interditos possessrios, uns reconhecendo a separao absoluta

    entre os juzos possessrio e petitrio, e outros, timidamente, admitindo no haver

    a possibilidade de estabelecer regra ou princpio na anlise dos temas, diante da

    necessidade de estabelecer-se, caso a caso, a funo social no somente da

    propriedade, mas tambm da posse.

    Somados a estes fatos, gize-se, os julgados desta jaez dirigem-se

    ao sabor dos ventos pela falta de conhecimento profundo sobre as teorias objetiva(Ihering) e subjetiva (Savigny) sobre a posse, alm do frgil conceito de possuidor

    estabelecido pelo Cdigo Civil que, apesar de adotar a primeira teoria, contm

    inmeros indcios de mesclagem com esta ltima.

    O papel do poltico do Direito, assim, resgatar o valor justia para a

    justificao da norma, fazendo equiparar a hierarquia entre os institutos posse e

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    propriedade, relegando-se aquele que no cumprir com sua funo social,

    independentemente de apresentao de justo ttulo. necessrio correlacionar os

    princpios da funo social da propriedade e da posse com as alteraes

    legislativas do atual Cdigo Civil, tudo com vistas a conceber, definitivamente,uma soluo concreta, e no meramente aparente, ao conflito posto em juzo.

    desafio do Juiz identificar o alcance da aplicao dos princpios da

    funo social da posse e da propriedade nas aes possessrias, confrontando

    em igual peso ambos os institutos e criar uma nova possibilidade de um direito

    redirecionado s prticas solidrias de convivncia humana e no to alheia

    realidade social.

    A ao concreta frente a este desafio ser, sem dvida, umainquestionvel contribuio para os estudiosos do Direito, mas sobretudo, e

    principalmente, aos jurisdicionados, que clamam e aguardam por uma Justia

    mais eficaz, clere e comprometida com aspectos e anseios sociais.

    6. Referncias Bibliogrficas

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    frente situao proprietria. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, 229p.

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