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Amor sem password A violência no namoro será o próximo tema do E se Fosse Consigo?. Os adolescentes acham normal exigir as passwords do computador do parceiro, fiscalizar com quem falam, como estão vestidos, baralham paixão com agressão, e a internet serve hoje de instrumento de ciúme, controlo e abersexijng {EU ANA MARGARIDA DE CARVALHO E CONCEIÇÃO LINO E SE FOSSE CONSIGf ¦ Namoro de risco Num jardim público, um rapaz maltrata e insulta a namorada em público, à frente de quem passa. A cena é protagonizada por dois atores da ACT - Escola de Atores de Lisboa, mas podia ser real, como tantas vezes acontece. Quem está disposto a intervir? É o ponto de partida do programa da SIC sobre violência no namoro, segunda-feira às 20h50, em simultâneo na SIC e na SIC Notícias, seguido de debate na SIC Notícias. Ra uma românlica, achava que ia ser tudo como numa "histó- ria da Disney", relembra a atual estudante em Coimbra. Na al- tura tinha 16 anos e a ideia do "namorado perfeito, que dava prendinhas e miminhos e man- dava muitas mensagens" fê-la sentir- se como uma princesa. As amigas todas tinham namo- rado, ela, no II 2 ano, sentia-se pressionada. Tudo a fascinava naquele rapaz "misterioso", "engraçado", "bem vestido", achava-lhe piada ao estilo, até à maneira de andar... "Pensei 'chegou a minha hora de ser feliz'". E teve a felicidade à maneira da Disney - durante dois meses. Depois começou a nolar pequenos sinais, que se calhar até estavam desde o início, mas ela, inebriada, não lhes deu relevância. A maneira ríspida de falar, as exigências, queria saber com quem estava, questio- nava tudo, as saídas com amigas, com os pais... Passado algum tempo, o príncipe en- cantado não se transformou em sapo porque iria tornar-se algo mais feroz. O rapaz, outrora "caladinho", fazia ameaças: se ela não fizesse o que ele queria, estraga- va-lhe a vida... E depois a obsessão com o telemóvel e o Facebook. Exigia saber tudo, quem eram os amigos, que pesquisas fazia, com quem comunicava... "E eu, inocente, explicava tudo, tentava acalma 10. Pensava que eram ciúmes, que isso significava que ele gostava de mim, que talvez ele estivesse a exagerar um bocadinho, mas ia passar"... As amigas começavam a notá-la retraí- da nas mensagens, os pais a dar conta das nódoas negras nos braços. Negava tudo. Quando o namorado começava a insulta -la, quando vinham as ameaças e chanta- gens, os pulsos a serem apertados, torci- dos, ela gelava: "Como é que ninguém vê, ninguém percebe?" Não tinha coragem de conlar, mas "eslava esperançosa de que al- guém percebesse c pusesse um ponto final naquilo". A autoestima desabou como num terramoto. A confiança ficou em destroços. Deixou de sair, de estar com amigos, para evitar as ameaças do namorado. Achava se feia, vulgar, "ele fazia-me sentir a pior pes- soa do mundo". O namorado passou à fase dos apertões no pescoço, dos murros dis- simulados, dos encontrões contra muros.

Press Review page - ulisboa.pt · sentir-se como uma princesa. As amigas todas já tinham namo-rado, ela, no II2 ano, sentia-se pressionada. Tudo a fascinava naquele rapaz "misterioso",

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Amor sem

passwordA violência no namoro seráo próximo tema do E se Fosse

Consigo?. Os adolescentesacham normal exigir as

passwords do computadordo parceiro, fiscalizar comquem falam, como estãovestidos, baralham paixãocom agressão, e a internetserve hoje de instrumento deciúme, controlo e abersexijng{EU ANA MARGARIDA DE CARVALHOE CONCEIÇÃO LINO

E SE FOSSE

CONSIGf¦

Namoro de risco

Num jardim público, um rapaz maltrata e

insulta a namorada em público, à frente de

quem passa. A cena é protagonizada por dois

atores da ACT - Escola de Atores de Lisboa,mas podia ser real, como tantas vezes

acontece. Quem está disposto a intervir?É o ponto de partida do programa da SIC

sobre violência no namoro, segunda-feiraàs 20h50, em simultâneo na SIC e na SIC

Notícias, seguido de debate na SIC Notícias.

Ra uma românlica, achava queia ser tudo como numa "histó-ria da Disney", relembra a atualestudante em Coimbra. Na al-tura tinha 16 anos e a ideia do"namorado perfeito, que davaprendinhas e miminhos e man-dava muitas mensagens" fê-lasentir- se como uma princesa. As

amigas todas já tinham namo-rado, ela, no II 2 ano, sentia-sepressionada. Tudo a fascinava

naquele rapaz "misterioso", "engraçado","bem vestido", achava-lhe piada ao estilo,até à maneira de andar... "Pensei 'chegou a

minha hora de ser feliz'". E teve a felicidadeà maneira da Disney - durante dois meses.

Depois começou a nolar pequenos sinais,

que se calhar até estavam lá desde o início,mas ela, inebriada, não lhes deu relevância.A maneira ríspida de falar, as exigências,queria saber com quem estava, questio-nava tudo, as saídas com amigas, com os

pais... Passado algum tempo, o príncipe en-cantado só não se transformou em sapoporque iria tornar-se algo mais feroz. O

rapaz, outrora "caladinho", fazia ameaças:

se ela não fizesse o que ele queria, estraga-va-lhe a vida... E depois a obsessão com otelemóvel e o Facebook. Exigia saber tudo,quem eram os amigos, que pesquisas fazia,com quem comunicava... "E eu, inocente,explicava tudo, tentava acalma 10. Pensava

que eram ciúmes, que isso significava queele gostava de mim, que talvez ele estivessea exagerar um bocadinho, mas ia passar"...

As amigas começavam a notá-la retraí-da nas mensagens, os pais a dar conta dasnódoas negras nos braços. Negava tudo.Quando o namorado começava a insulta-la, quando vinham as ameaças e chanta-

gens, os pulsos a serem apertados, torci-dos, ela gelava: "Como é que ninguém vê,

ninguém percebe?" Não tinha coragem de

conlar, mas "eslava esperançosa de que al-guém percebesse c pusesse um ponto finalnaquilo". A autoestima desabou como numterramoto. A confiança ficou em destroços.Deixou de sair, de estar com amigos, paraevitar as ameaças do namorado. Achava se

feia, vulgar, "ele fazia-me sentir a pior pes-soa do mundo". O namorado passou à fasedos apertões no pescoço, dos murros dis-simulados, dos encontrões contra muros.

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uma cabeçada deixou-lhe um hematomano nariz. A agressão mais violenta aconte-ceu num sítio público, mas ninguém viu,ninguém quis saber, ninguém a ajudou.Tentou pegar no telemóvel, mas ele sacou--lho da mão. Tentou fugir, ele agarrou-a.Queria gritar mas a voz não lhe saía. Olhouem vão para as janelas dos prédios, talvezalguém a estivesse a ver, mas nada. Estavaencurralada num namoro de pesadelo, tão

longe do seu sonho de princesa. "O quemais me custava nem era a agressão físicanem a chapada, mas o insulto constantenos meus ouvidos." Foi a mãe que, mesmosem perceber nada de computadores, ace-deu à conta dela do Facebook, viu aque-las mensagens cheias de fúria e ameaça e

a convenceu a terminar o namoro. "Sen-ti-me terrivelmente mal por a minha mãeter descoberto e estar a confrontar-me,mas era um alívio." A primeira medida damãe foi apreender-lhe o telemóvel - re-cebia dezenas de mensagens por dia donamorado. Em seguida, ao fim de mesesde perseguição, chamadas anónimas, e atéde invasão da casa, apresentaram queixa à

polícia. Durante dez meses, não pôde sair

sem estar acompanhada, as mensagens queo cx namorado insistia em enviar lhe, "àsduas da manhã com ameaças de morte",eram reencaminhadas para a polícia. Aos

poucos, tudo se foi atenuando. Não tudo.As nódoas negras na pele, sim. As outrascontinuam lá. Ela, a vítima, foi quem Leve

de viver escondida e de andar escoltada.Acabou-se o romantismo das históriasde princesas: "Fiquei cética em relação aoamor... Os miminhos e as prendinhas ti-nham um reverso... por detrás dos 'adoro--te e amo-te' havia sempre a chantagem e

a violência... Estou sempre em estado de

alerta, não voltei a ser a mesma."

Namorados aceitam quepartilhar a password é prova

de amor e não invasão daprivacidade

"TODA A GENTE FAZ ISSO"Na escola secundária de Carlos Amarante,em Braga, a equipa da SIC prepara-se paradiscutir a violência no namoro com alunosentre o IO 2 e o 12 e anos. No auditório é pro-jetado o testemunho de uma jovem a quemo namorado fez passar tormentas físicase psicológicas e a seguir figuras públicasvão deixando alertas sobre o que é violêncianuma relação a dois. Mesmo com a mensa-

gem da campanha da APAV "Quem te amanão te agride", percebe-se que há ainda alu-nos pouco despertos para a gravidade. Emrelação ao agressor, mostram-se unânimese condenam Mas rapidamente, à medidaque a jornalista da SIC vai fazendo pergun-tas, percebe-se que estão bastante familia-rizados com situações de abuso, encaradascom uma certa naturalidade: "mexer no te-lemóvel sem autorização"; "fazer reparosou proibir de vestir determinado tipo deroupa"; "forçar o beijo ou ter relações deafeto contra vontade"... Alguns exprimemopiniões desculpabilizantes: "se o rapaz dizà rapariga para não se vestir de determina-da maneira não é proibi-la, é abrir-lhe os

olhos", ou "aconselhar-me outra roupa é

ser protetor, para que outros rapazes nãoolhem para mim e me assediem..." Quantoa partilhar com os namorados a passworddo Facebook e ler as mensagens, parece sercomum entre eles: "toda a gente faz isso".Uma rapariga do 12 e ano comenta que os

agressores são manipuladores, "aprovei-tam-se da dependência emocional do ou-tro". Como os ditadores, acrescenta. E pare-ce ser consensual a ideia de que "quem amatem medo de perder"

Há duas décadas que a violência nonamoro tem sido alvo de atenção espe-cial por parte de psicólogos e sociólogos:"Ocorre numa fase tão crítica que podemoldar comportamentos para relações fu-turas", observa Marta Reis, psicóloga clí-nica, sexóloga e investigadora da equipaAventura Social, da Universidade de Lisboa.

Acrescenta, como preocupação agravante,o facto de os adolescentes raramente pro-curarem ajuda. Ou porque a imaturidadeainda não lhes permite distinguir um com-portamento violento de um gesto de amor,ou por terem medo de serem culpabiliza-dos, pressionados a terminar a relação, nãoobterem ajuda ou mesmo por recearemconsequências. O abuso pode ter envolvido

comportamentos ilegais, como consumode droga ou álcool. A adolescência, explicaa psicóloga, é o "período de maior vulne-rabilidade para a ocorrência de abuso naintimidade". E também a idade em que se

"começam a formar as crenças e atitudessobre os relacionamentos interpessoais ede abuso, de poder e controlo". O namo-ro é uma espécie de exercício prático parao relacionamento adulto, se as primeirasexperiências forem violentas, continuaMarta Reis, há fortes probabilidades de aviolência se perpetuar.

Investigações na área demonstram quea violência nas relações dos jovens é dema-siado recorrente e provoca danos a nívelfísico, social, emocional e sexual. "Casaise jovens namorados não consideram queseja violência partilharem a password doFacebook. Permitem comportamentos quedemonstram pouca autonomia e indepen-dência, aceitando-os como provas de amor.E não o que realmente são: falta de respeitoe invasão", nota ainda a investigadora. Ossentimentos de paixão e amor já não sãofáceis de definir e "muito rapidamente umjovem vai confundir o outro como algo de

seu, de posse total". Na adolescência é tudo8 ou 80, muitos não conseguem autocon-trolar as emoções sem perceber que estão a

agredir. Nem percebem muitas vezes ondeestá a fronteira entre o consentimento nas

relações sexuais e a negação. "E normalhaver ciúmes, provas de amor, pequenosarrufos de namorados, alerta a psicólo-ga, mas não comportamentos invasivos

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recorrentes, com medo, ameaça c represá-lia. Isso não é um relacionamento saudável

Os 'chats' nas redes sociais têm-seI ornado o modo favorilo de os jovens na-morarem. A janela dos seus bisavós è hoje ados ecrãs. Comunicam, de forma instantâ-nea, a toda a hora, com fotos e vídeos. Mas,lamenta a professora, "as novas tecnologiaspodem potenciar relacionamentos maisfrios, ansiedades c, paradoxalmente, fal-ta de comunicação entre os namorados".Os adolescentes estão muito pressionadospara responderem de forma inslanlânea às

mensagens dos parceiros, quer estejam naescola, a fazer um teste ou no hospital. Seisso não acontece, de imediato surgem dú-vidas, ansiedade, desconfiança. "Os jovenstornam-se vulneráveis na sua privacida-de." É também na esfera onlinc que decor-rem comportamentos mais arriscados, dizMarta Reis, como cyberbullying e cybersí.a/king (assédio) enlre namorados e ex-na-morados. Ou mesmo sexting ou cybersex(usar conteúdos sexuais para chantagear e

subjugar, controlando o outro, através da

ameaça de mostrar no mundo virtual o queo casal fez na privacidade).

Estudos recentes da OMS indicam queas adolescentes europeias têm pior saúdemental do que os rapazes. No que respeitaa agressão no namoro, a i.endência cres-cente é para as vítimas serem também dosexo masculino. Muitas vezes, "o agressortambém é vítima. Existe violência mútua,o que vai legitimar um contínuo ciclo deviolência. As redes sociais são usadas parapedir desculpa e continuar o ciclo", concluia psicóloga.

Meter sempre a colher

23,1%das raparigas

21,6%dos rapazes

AFIRMARAM-SE VÍTIMAS DE ALGUMA

FORMA DE AGRESSÃO SOCIAL

Os resultados sugeriam a associaçãode consumo de álcool

Fonte: Estudo, junto de 245 jovens, meramente indicativo, Youtn Sexual

Aggression & Victimizotion, realizado, em 2015, pela equipa da AventuraSocial (integrado num projeto da União Europeia)

Nicole Pereira Quando tinha 12 anos, um envolvimento com um namorado violento e umagravidez precoce roubaram-lhe a infância

INFÂNCIA PERDIDANicole Pereira foi vítima de agressõesgraves quando ainda era menina, quandoainda queria a mãe, brincava com bonecase tinha medo das trovoadas. Vive em Rabode Peixe (S. Miguel, Açores) e aos 12 anosapaixonou-se por um rapaz, "estava cega,só o via a ele. Não sabia o que era amar,tinha uma mente de criança" Aos 13 engravidou e foi viver para casa do namorado.Ele e os pais não a deixavam sair, nem parair à escola. Até de uma ida ao supermerca-do estava privada. Passava os dias a cho-rar c a fazer a lida da casa, sem falar comninguém. Ele batia-lhe, queimava-a com o

cigarro, mesmo grávida atirou-a das esca-das. "Eu tentava fazer tudo bem para nãoter problemas, mas ele arranjava sempremolivos para me bal.er. E eu só linha amor

por ele, como se ele fosse o único homem,como se não houvesse amanhã, sentia ciú-mes, só o queria a ele." Não tinha liberdade

para nada, nem telemóvel para falar comas amigas ou com a família. Não podia pin-tar o cabelo, não se podia maquilhar nemvestir o que quisesse. "Ali só podia estarcalada e obedecer." Uma vez, o namoradobateu-lhe tanto que ficou desmaiada, caídano chão. Fugiu, descalça, de pijama, cor-reu pelas ruas até casa dos pais, e deixou asua menina, com três meses. "Senti tanto afalta da minha filha, ouvia o choro dela..."

Depois de um processojudicial, o namora-

do foi obrigado a devolver a criança à mãe e

a inanler uma dislância de segurança. "Nãotive infância", lamenta Nicole.

Os Açores estão referenciados comouma região onde a violência assume pro-porções alarmantes. Entre 2007 c 2014, 12

mulheres foram mortas no arquipélagoàs mãos dos parceiros. Segundo explicaMaria José Raposo, presidente da limar(União de Mulheres Alternativa e Respos(a) em S. Miguel, os namoros nos Açorescomeçam muito cedo. Se uma rapariga de17 anos ainda não tem namorado, diz-seque "está encalhada". É logo alvo de co-mentários depreciativos, acusada de nãoter atrativos físicos. E coagida a ter rela-ções sexuais, ainda que não esteja prepara-da. Esta pressão para ter namorado talvezexplique a forma passiva como as raparigas reagem a aliludes de violência sexuale psicológica por parte dos rapazes. Hásituações de humilhação, de perseguição,de coação, com pais coniventes. Recorda ade uma miúda de 16 anos que era coagidapelo namorado a assistir com ele a filmespornográficos. Ou o caso de um rapaz quemantém a namorada refém de fotografiasem posições eróticas que ameaça divulgar no Facebook. "O exercício de qualquertipo de controlo, o 'não podes vestir isto,não podes sair, não podes falar com aque-le' é o primeiro sinal de uma relação nãosaudável". Muitas aceitam, não veem malem entregar ao namorado as passwords."Digo-lhes: 'a password é algo que é teu,ver a tua caixa de mensagens é invasão da

privacidade, como mexer na tua mala ounas gavetas'." l'lamcarvaLho@visao .impresa.pt