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Primeira Parte 1897-1933 Ascensão a qualquer preço

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Primeira Parte

1897-1933

Ascensão a qualquer preço

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1. “Da mocidade, da mocidade, sempre soa em mim uma canção”

Joseph Goebbels sobre sua infância e juventude

“Não aguento mais a agonia. Preciso pôr no papel a amargura

do coração. Else me dá um caderno comum. Em 17 de outubro,

inicio meu diário.”1

Em 1923, Goebbels toma essa decisão — à qual se manterá fiel até as últimas

semanas de vida: o diário seria o seu companheiro permanente.

A agonia e a amargura que o maltratavam no outono de 1923 tinham

causas diversas: com efeito, nessa época, o dr. Joseph Goebbels era um escritor

fracassado de quase 27 anos, acabara de ser despedido de um emprego que

detestava num banco de Colônia e agora, totalmente sem recursos, voltara a

morar com os pais em Rheydt, no baixo Reno. Namorava Else, uma jovem

professora primária, mas a relação era problemática. Pouco antes, o casal tinha

brigado durante uma viagem de férias à ilha de Baltrum, atormentado por

problemas financeiros. Goebbels se considerava “um destroço num banco de

areia”: sentia-se “mortalmente enfermo”. Vinha de “dias ferozes de bebedeira e

desespero”.2

A situação política e econômica geral contribuía consideravelmente para

a depressão do arruinado escritor. Rheydt, sua terra natal, fazia parte da região

da margem esquerda do Reno, ocupada por tropas britânicas, belgas e francesas

desde o fim da Primeira Guerra Mundial. A resistência passiva ao exército fran-

cês, que no início do ano, além de sua zona de ocupação à margem do Reno,

invadira o Ruhr, acabava de fracassar. A inflação chegara a um pico absurdo: o

dinheiro ganho de manhã já não valia nada à noite. Agrupamentos extremistas

de esquerda e de direita se armavam para a guerra civil; na Renânia, os separa-

tistas preparavam a secessão do Reich. Abalada por uma série de crises internas,

a república alemã ameaçava se desintegrar. “A política é de rir e chorar”, escre-

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24 “DA MOCIDA DE , DA MOCIDA DE , SEMPR E SOA EM MIM UM A CA NÇÃO”

veu Goebbels,3 que ansiava pela crise como uma febre purificadora. “O dólar

sobe como um trapezista. Cá dentro, uma alegria secreta. Sim, o caos tem de

chegar se for para melhorar as coisas.”4

Naquela situação pessoal e política extremamente tensa, o diário deve

tê-lo ajudado. Meses depois, ele começou a preparar uma biografia breve inti-

tulada “Erinnerungsblätter” [Reminiscências]. Tratava-se de uma apressada

confissão biográfica, em parte abreviada, escrita no verão de 1924. É a fonte

mais importante de que dispomos dos anos da sua juventude.5 A decisão de

iniciar um diário e de prestar contas de sua vida numa biografia breve proveio

do estado depressivo em que Goebbels se encontrava em 1923-24. No seu

desespero, interessava-lhe indagar quem era, como tinha ficado daquele jeito e

que metas queria atingir na vida.

Os anos de Rheydt

“Nascido em 29 de outubro de 1897, em Rheydt, na época uma das ambicio-

sas cidadezinhas industriais no baixo Reno, próxima a Düsseldorf e não muito

distante de Colônia”, assim começava o relato. Ele nos informa que Fritz Goeb-

bels, o pai nascido em 1862, era um modesto empregado de uma fábrica de

velas; em 1892, casou-se com Katharina Odenhausen, sete anos mais nova,

empregada numa propriedade rural. Os dois vinham de humildes famílias de

trabalhadores braçais.6 Bons católicos, como se dizia na região do baixo Reno,

tiveram seis filhos: Konrad (nascido em 1893), Hans (1895), Maria (falecida

em 1896 aos seis meses de idade), Joseph (1897), Elisabeth (1901) e Maria

(1910).7 Em 1900, o pai conseguiu adquirir uma “casinha discreta”.8

A infância de Joseph foi assolada por doenças. O adulto guardou na me-

mória, entre outras mazelas, uma prolongada enfermidade, pneumonia, com

“horríveis delírios febris”: “Lembro-me de um domingo em que a família fez

um grande passeio a Geistenbeck. No dia seguinte, no sofá, fiquei com minha

antiga doença no pé. [...] Uma dor enlouquecedora.” Seguiram-se um demora-

do tratamento e outros exames no hospital da Universidade de Bonn cujo re-

sultado inapelável foi: “Pé definitivamente paralisado.” As consequências fo-

ram amargas: “Desde então, juventude sem alegria. Um dos acontecimentos

decisivos da minha infância. Eu fiquei sozinho. Já não podia participar das

brincadeiras dos outros. Tornei-me solitário e excêntrico. Por isso, quem sabe,

também o queridinho de todos em casa. Os meus colegas não gostavam de

mim.” Só um lhe deu apoio, o amigo Richard Flisges.9

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JOSEPH GOEBBEL S 25

Quanto à “doença no pé”, o relato de Goebbels indica que se tratava de

uma deformação de origem neurogênica, uma atrofia que, na criança, resulta

principalmente de distúrbios metabólicos. O pé direito ficou voltado para den-

tro e, em comparação com o esquerdo normal, era mais grosso e mais curto.10

Não é menos triste o que ele conta acerca do tempo de escola iniciado

em 1904. Lembrou-se do “professor Hennes, um vigarista”. Mas também ha-

via o professor Hilgers, “um trapalhão e velhaco que nos maltratava e trans-

formava a vida escolar num inferno [...]. Uma vez, no banho, mamãe achou

os vergões de seu bastão nas minhas costas”. Goebbels não escondeu que as

dificuldades na escola também se deviam a sua atitude: “Na época, eu era

bastante voluntarioso e livre-pensador, um garoto precoce de que nenhum

professor gostava.”11

No último ano do curso primário, foi submetido a uma frustrada opera-

ção no pé. “Quando mamãe ia voltar para casa, eu me pus a berrar. Sem falar

na lembrança terrível da última meia hora antes da anestesia e dos trens que

passavam perto do hospital de madrugada, fazendo tudo trepidar.” Mas a in-

ternação também teve um lado agradável: a sua madrinha, tia Stina, levou-lhe

livros de histórias da carochinha, os quais ele “devorou literalmente. Os meus

primeiros contos de fada. Em casa, ninguém era de contar histórias. Foram

esses livros que despertaram em mim o prazer da leitura. Dali por diante, pas-

sei a devorar tudo o que fosse impresso, inclusive jornais e artigos sobre polí-

tica, mesmo sem entender uma palavra”. Assim que teve alta, foi transferido

para o ginásio de Rheydt, ocasião em que o pai interferiu para embelezar seu

certificado escolar.12 Embora tivesse sido “muito preguiçoso e indiferente”,

segundo a sua própria avaliação, pouco a pouco tornou-se um ótimo aluno,

extremamente ambicioso, com talento especial para matérias como religião,

grego e história.13

A explicação de sua ambição parece óbvia: uma compensação para a de-

formidade física. Ele próprio arriscou essa interpretação num texto autobiográ-

fico de 1919 intitulado Michael Voormanns Jugendjahre [A juventude de Mi-

chael Voormann], uma dramatização literária da sua infância e juventude que

observava conscientemente a tradição do Entwicklungsroman.14 Michael era

“um menino estranho. Mesmo sem o conhecer, a gente o via arregalar os olhos

grandes, cinzentos, e pousar um olhar interrogativo em quem lhe dirigia a pa-

lavra. Havia algo especial naquele olhar, um vasto mundo de perguntas do qual

ninguém tinha ideia. Raramente era visto brincando com os outros garotos”, e

os colegas “não gostavam dele”. Então: “Era extremamente duro e grosseiro

com eles, e, quando alguém lhe pedia um favor, apenas ria e virava a cara. Só

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26 “DA MOCIDA DE , DA MOCIDA DE , SEMPR E SOA EM MIM UM A CA NÇÃO”

uma pessoa o amava: sua mãe.” A seguir, Goebbels descreve a mãe, estilizando-

-a, a ela e ao pai, como membros do lumpemproletariado: “Não sabia ler nem

escrever, pois era uma simples criada até que o pai, um pobre jornaleiro, com

ela se casasse. Deu-lhe sete filhos, coisa que a tornou magra e pálida. Michael

era o quarto filho. Ninguém sabia a origem de sua mãe, nem mesmo o pai.”

Quanto a este, era “um homem honesto, sincero, com forte senso do dever”,

que às vezes se mostrava “duro e rude com a mãe” e do qual Michael herdara

certa “característica tirânica”.

Aos 10 anos de idade, ele é acometido de uma doença grave. Sua perna

direita fica paralisada: “Michael geralmente era triste; foi ficando assim com o

tempo. Tornou-se um pouco mais fechado e passou a evitar a companhia dos

colegas.” Fez-se “aplicado e esforçado na escola, pois tinha a ambição de ainda

vir a ser um grande homem”. Não era benquisto pelos colegas, e essa exclusão

tornou-o “duro e amargo”. É evidente que, no romance, Goebbels tentou criar

uma variante da sua autobiografia: ao contrário do pequeno-burguês Joseph

Goebbels, Michael Voormann era da classe baixa e, mediante um desempenho

escolar excepcional, procurava compensar o seu isolamento dos meninos da

mesma idade — solidão que, originalmente, tinha raízes na consciência da sua

própria esquisitice e que a deficiência física intensificava. Goebbels buscou

uma elaboração dramatizada da sua história: alçado de condições modestas,

aleijado, desprezado, solitário, porém muito dotado, enérgico e bem-sucedido,

mas também ressentido, frio, corroído pela ambição. Depois dessa exposição,

não é difícil pressupor uma evolução natural rumo à genialidade.

As diferenças são evidentes com relação às memórias escritas cinco anos

depois como trailer do diário: como vimos, aqui ele também descreveu a defi-

ciência física como causa principal da sua infância triste, mas se recusou a

encará-la como a verdadeira alavanca da sua compulsão de subir na vida. Em

discussões literárias posteriores sobre sua vida, o problema físico teve um papel

tão secundário quanto no diário, já que ele raramente o menciona, muito

embora dependesse de um aparelho ortopédico para andar e sempre enfrentas-

se complicações.15 Acaso isso permite encarar Michael Voormann como um

relato autêntico da sua vida? Seria um raro e precioso documento autobiográ-

fico, no qual Goebbels, excepcionalmente, se mostra capaz de autorreflexão

sincera? Na obra em questão, o autor tentou romper com a grande ilusão da

supressão da deficiência e enfrentar com franqueza a deformidade física e suas

consequências?

O fato de Joseph Goebbels, ainda adolescente, se sentir destinado a gran-

des feitos; de procurar fugir, por meio do desempenho escolar, do ambiente

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JOSEPH GOEBBEL S 27

acanhado dos anos de sua infância e se isolar das outras crianças, tudo isso pode

ter encontrado reforço na sua deficiência física, mas o traço narcísico de sua

personalidade, sua forte compulsão por reconhecimento e aprovação por parte

dos outros, tinha outras causas.

Atualmente, a psicanálise entende que o distúrbio narcisista de persona-

lidade tem raízes em aberrações ocorridas entre o segundo e o quarto ano de

vida. Fala-se em desenvolvimento de autonomia perturbado: a criança não tem

condições de se livrar da mãe provedora e dominante, e o desenvolvimento da

sua personalidade fica travado. Várias podem ser as causas dessa relação pertur-

bada: a negligência ocasional da mãe, por exemplo, ou uma educação domés-

tica que oscila entre preceitos diversos e através da qual a criança recebe sinais

contraditórios, digamos, cuidado exagerado por um lado e rigor excessivo por

outro. Não é preciso muita criatividade para imaginar que uma família nume-

rosa e pouco favorecida pelo bem-estar material como a de Goebbels apresen-

tasse tais condições. Naturalmente, não podemos reconstruir a educação do

pequeno Joseph; tampouco é necessário, pois basta que haja explicações plau-

síveis para seu narcisismo sem dúvida presente.

No caso de Joseph Goebbels, podem-se observar as possíveis consequên-

cias do distúrbio de autonomia. Para fortalecer sua identidade percebida

como insuficiente, o narcisista busca permanentemente o reconhecimento,

procura sobretudo um parceiro na vida que lhe seja totalmente dedicado e do

qual — conforme o modelo da mãe provedora — ele espera reconhecimento

e aprovação. Para o narcisista, é difícil distanciar-se de quem lhe presta reco-

nhecimento; às vezes, na sua percepção, parece que a sua própria personalida-

de se funde com a da outra pessoa. Nesse aspecto, a tentativa de Goebbels de

oferecer, com Michael Voormann, uma variante do seu desenvolvimento é

uma expressão típica da insegurança com relação à sua identidade. O roman-

ce é, pois, uma experimentação lúdica com a própria biografia, não uma

autorrevelação.

Em geral, os narcisistas têm dificuldade em distinguir devaneio de reali-

dade, aparência de verdade, sucesso de fantasia de sucesso, pois sua relação com

o ambiente é subdesenvolvida, sua autoconsciência carece de raízes seguras:

eles vivem autocentrados e tendem à autossuperestimação e à megalomania.

Mas — em razão da fraqueza do ego que os caracteriza — são frequentemente

afligidos pela ansiedade de separação e de perda, percebem a ausência de suces-

so como fracasso e, por este motivo, tendem à depressão.16 Portanto, Goebbels

não desenvolveu narcisismo para compensar a deficiência física; pelo contrário,

por causa da propensão fixada na primeira infância à autossuperestimação e à

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28 “DA MOCIDA DE , DA MOCIDA DE , SEMPR E SOA EM MIM UM A CA NÇÃO”

distorção da realidade, teve condições reais de ignorar amplamente a deformi-

dade que o afetava. Esta, na sua autoavaliação, tinha importância secundária.

A leitura das memórias de Goebbels revela que, no ginásio, ele não se

sentia isolado por causa da deficiência física e da ambição dela resultante,

pelo contrário: ele recorda a série de colegas que mais tarde voltariam a cruzar

o seu caminho.17 Mas em primeiro plano estava o despertar da libido e da

sexualidade que muito ocupou o adolescente e lhe criou não poucos proble-

mas. A madrasta de um amigo provocou nele a primeira “apetência por mu-

lher”. Como o próprio Goebbels formula: “Eros desperta. Menino ainda,

maliciosamente esclarecido.” Segundo as suas memórias, ele se apaixonou

pela primeira vez aos 12 anos. “Período sentimental. Cartas bombásticas.

Poemas. Ademais, amor por mulheres maduras.” Nessa época aconteceu in-

clusive um episódio desagradável, porque algumas cartas de amor forjadas

por ele e endereçadas a uma menina que amava acabaram sendo devolvidas a

seu verdadeiro autor, Joseph Goebbels. Esse fato levou seu professor predile-

to, Voss, a quem ele creditava grande influência sobre o seu desenvolvimento

escolar, a não endossar sua candidatura para uma bolsa de estudos oferecida

pelo município. Em Michael Voormann, ele dá ao incidente as dimensões de

um pequeno martírio.18

O verão de 1914 — Goebbels tinha 16 anos — proporcionou-lhe uma

experiência amarga: “Irrupção da guerra. Mobilização. Tudo pela pátria. Pena

que não posso participar. [...] Os primeiros colegas feridos. [...] Pouco a pouco,

muitos deles partem. [...] A sala de aula começa a ficar vazia.”19 Pelo serviço

postal militar, ele manteve contato com os colegas que estavam combatendo

no front.20 Em dezembro de 1915, sua irmã Elisabeth morreu de tuberculose;

alguns anos depois, o pai lembrou-o da família reunida junto ao leito da morta,

procurando consolo na oração.21

Conservaram-se alguns escritos do tempo de escola, nos quais o jovem

recorre ao tom “patriótico” adequado que ele próprio classificou retrospectiva-

mente de “ode”.22 Além do professor de alemão Voss, é evidente que ele tinha

admiração pelo professor de história Gerhard Bartels, que lhe deu aulas no

primeiro ano do ensino fundamental. Quando da morte prematura deste, pu-

blicou-se uma homenagem póstuma com uma colaboração de Goebbels: elo-

giava principalmente as aulas engajadas de Bartels, em particular as histórias

heroicas com que incutia ideais patrióticos nos alunos.23 O ano de 1917 mar-

cou a conclusão do ensino médio; sendo o melhor aluno da turma, coube a

Goebbels fazer o discurso na cerimônia de colação de grau. Como era de se

esperar, esse discurso estava totalmente imbuído do credo patriótico: “Agora o

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JOSEPH GOEBBEL S 29

povo dos poetas e pensadores precisa provar que é mais do que isso, que está

credenciado a ser o líder político e espiritual do mundo.”24

Inicialmente, Goebbels queria estudar medicina, mas o professor Voss o

dissuadiu. “Que seja alemão e história. Pouco importa.” Estudar — qualquer

que fosse a faculdade — era importante inclusive porque, na qualidade de es-

tudante universitário, ele ficava dispensado do serviço obrigatório (desde 1916,

todos os homens maiores de 17 anos eram obrigados a prestar o “Serviço de

Emergência da Pátria”).

No último ano do ensino médio, Goebbels começou a namorar Lene

Krage, de Rheindahlen: “Primeiro beijo na Gartenstrasse. [...] Maravilhosa fe-

licidade juvenil. Casar, naturalmente. Questão de honra.” O diploma trouxe

consigo a “despedida de Lene”, pelo menos por ora: “Confinados no Kaiser-

park de madrugada. Beijo-lhe o seio pela primeira vez. Pela primeira vez, ela se

torna mulher amante.”25

Em suma, constata-se que, na infância e na juventude, não lhe faltou o

reconhecimento a que ele aspirava com tanta avidez: concluiu os estudos com

brilho: o primeiro da classe; apesar da situação econômica precária da família,

podia escolher a faculdade que quisesse, tinha amigos e até namorada.

Um estudante não muito aplicado

No início de abril de 1917, Goebbels foi estudar em Bonn com dois colegas da

escola.26 Sua situação nada tinha de invejável: “Falta de dinheiro. Muita fome.

Aulas particulares a garotos insolentes.” A universidade o “influenciou pouco”,

como ele admite. Ao que parece, passava menos tempo na universidade que na

fraternidade estudantil católica Unitas Sigfridia, em que ingressou pouco de-

pois de chegar a Bonn. Tornou-se “mentor” do novo amigo Karl Heinz (“Pil-

le”) Kölsch, que ele designava como seu “ideal”.27 Na Sigfridia, adotou o nome

Ulex (personagem de um romance de Wilhelm Raabe, seu autor predileto).

Em junho de 1917, brilhou na festa da fraternidade com um discurso sobre o

escritor que ele admirava desde os tempos de escola. Recomendou Raabe como

modelo dos colegas, pois era alguém que “lutava por seus ideais, lutava por sua

Weltanschauung (visão de mundo)”.28 Os membros da fraternidade gostavam

de se entregar a noites de bebedeira: bares, festas, partidas de boliche. Nos fins

de semana, organizavam excursões. Mas a vida do grupo sofreu consideravel-

mente com a guerra: o número de membros ativos caiu para cinco, e nas suas

publicações não faltavam queixas sobre a cerveja cada vez pior. O caixa estava

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30 “DA MOCIDA DE , DA MOCIDA DE , SEMPR E SOA EM MIM UM A CA NÇÃO”

vazio, mas Goebbels, agora secretário da Unitas, não tinha o menor escrúpulo

em pedir doações aos companheiros recrutados para o serviço militar.29

Nas férias semestrais, foi temporariamente convocado para trabalho bu-

rocrático no Serviço de Emergência da Pátria, mas não tardou a se livrar da

obrigação.30 Por falta de dinheiro, retornou a Rheydt. Lene estava à sua espera:

“Uma noite com ela no sofá, em Rheindahlen. Mantivemos a pureza. Eu me

sinto homem.” Não conseguia se livrar da penúria: “Contas pendentes em

Bonn. Briga em casa. Papai ajuda. Vivência espiritual de Bonn igual a zero.”31

Finalmente logrou arranjar uma fonte de renda: a Associação Albertus Magnus

de Colônia, católica, concedeu-lhe uma ajuda de custo estudantil e, aos pou-

cos, acabou lhe emprestando nada menos que 960 marcos.32

Durante a estada em Rheydt, escreveu os contos “Bin ein fahrender

Schüler, ein wüster Gesel...” [Sou um estudante errante, um companheiro ava-

calhado...] e “Die die Sonne lieben” [Os que amam o sol], textos que em 1924

ele mesmo julgou “Pomposamente sentimentais. Quase intragáveis”. O Kölnis-

che Zeitung, a quem ofereceu os trabalhos, recusou-se a publicá-los.33 Mas “Ein

fahrender Schüler” [Um aluno peregrino], assim como o romance Michael Vo-

ormann, escrito em 1919, desperta interesse para compreender a autoavaliação

que Goebbels fazia de si mesmo e a maneira como refletia sobre sua pessoa. O

herói é um certo Karl Heinz Ellip (o nome de seu amigo “Pille”, a quem dedi-

cou o conto, escrito de trás para a frente), que adotou o nome Ulex, persona-

gem do romance de Raabe; Ellip explica a escolha do nome, dizendo que com-

bina com ele porque Ulex é “um genuíno idealista alemão”, “profundo e

sonhador como todos nós alemães”. Além disso, Ellip/Ulex é um “sujeito gran-

de e forte” e se destaca pelo temperamento alegre e festivo. Filho único de um

grande latifundiário no norte, estuda (por puro diletantismo) alemão e história

em Bonn e outros lugares. Ellip é chamado à sua “Elpenhof” natal, para junto

da mãe moribunda que ele ama acima de tudo; na noite da sua morte, abalado

pela agonia da mulher, sofre um ataque cardíaco. É enterrado com ela.

Em outubro de 1917, iniciou-se o segundo semestre em Bonn, onde

Goebbels passou a dividir um quarto com Kölsch.34 O relacionamento com

Lene esfriou, pois ele estava interessado na irmã de Kölsch, Agnes. Na casa da

família Kölsch, à qual agora era sempre convidado, conheceu a outra irmã,

Liesel. Confusão erótica generalizada: “Liesel me ama, eu amo Agnes. Brinca

comigo.” Durante o semestre, essa patuscada se complicou ainda mais quando

o colega Hassan também se apaixonou por Agnes. O alojamento de Hassan

era uma verdadeira garçonnière: “Agnes em Bonn. Uma noite com ela no quar-

to de Hassan. Beijei-lhe o peito. Pela primeira vez, ela é totalmente generosa

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JOSEPH GOEBBEL S 31

comigo. Tinha deixado a porta aberta e depois disse que não.” Não tardou a

reprise com Liesel: “Liesel em Bonn. Uma noite com ela no quarto de Hassan.

Eu a poupo. Ela é totalmente boa para mim. Estou como que satisfeito com

uma boa ação.”35

“Quase não vou à universidade”, anotou a respeito dos seus progressos

acadêmicos naquele semestre. “Agonia e inquietude. Tempo de fermentação.

Eu procuro e não acho.”36 Entretanto, nos dois semestres em Bonn, inscreveu-

-se numa série de cursos de história e letras e chegou a assistir a uma aula mag-

na de Heinrich Heine. Ao mesmo tempo, fez cursos de história da arte, psico-

logia, folclore e assistiu a uma palestra intitulada “Doenças venéreas, causas e

prevenção”.37 Concluído o segundo semestre, Goebbels e Kölsch decidiram

prosseguir os estudos em outra faculdade; na época, era comum a troca fre-

quente de universidades. Foi com o coração partido que a Unitas se despediu

dos dois camaradas que, com sua atividade intensa, tanto haviam estimulado a

vida da fraternidade.38

Goebbels passou o terceiro semestre em Friburgo, onde foi recebido por

“Pille” Kölsch, que se adiantara e queria muito apresentá-lo a uma conhecida,

Anka Stalherm. “E como eu te conheci profunda e inteiramente, Anka Sta-

lherm!”, registrou Goebbels nas “Erinnerungsblätter”.39 Apaixonou-se por

Anka, que era três anos mais velha e de família burguesa,40 e, nas semanas se-

guintes, procurou indispô-la com o amigo.

No feriado de Corpus Christi, viajou ao lago de Constança com Kölsch

e dois outros amigos; Anka foi para lá pouco depois. Visitaram diversos luga-

res; Goebbels ficou com ciúmes de Kölsch, sentimento que não fez senão

aumentar. De volta a Friburgo, registrou vários sinais favoráveis de parte de

Anka: “Ruptura gradual entre Anka e Kölsch. Em compensação, mais ligada

a mim.” Os dois passaram a se encontrar frequentemente a sós; pouco a pou-

co, ele se aproximava de seu objetivo: “Eu a beijo [...] uma satisfação desme-

dida e sem propósito.” A afeição por Anka desgastou inevitavelmente sua re-

lação com Kölsch; por fim, só lhe restou sair da morada comum: “Primeiro

desentendimento. Diferença social. Sou um pobre-diabo. Sem dinheiro.

Grande calamidade. Quase não vou à universidade. [...] Nem lembro que

estamos em guerra.”

Anka não sabia se lhe convinha separar-se definitivamente de Kölsch.

Isso acabou levando-a a uma “cena patética” com Goebbels: “De joelhos, ela

suplica o meu amor. Descubro pela primeira vez o quanto uma mulher é capaz

de sofrer. Estou abalado.” A tragédia prossegue na manhã seguinte e termina de

maneira cabal: “Anka é minha.”41 Ele venceu: “Dias abençoados. Só amor. Tal-

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32 “DA MOCIDA DE , DA MOCIDA DE , SEMPR E SOA EM MIM UM A CA NÇÃO”

vez o período mais feliz da minha vida.” Anka pediu para conversar com Köls-

ch. Como ele não quis, ela lhe escreveu uma carta de despedida.42

Terminado o semestre, Goebbels passou as férias de outono na casa dos

pais, em Rheydt.43 Estava “magro e pálido”. Dedicou três semanas à elaboração

de uma ideia: um drama em cinco atos, “Judas Iscariotes”, uma reinterpretação

nada original da história de Judas no Novo Testamento: o personagem é apre-

sentado como um patriota que, tendo sido um fervoroso partidário do Mes-

sias, opta por traí-lo porque ele se recusa a liderar a libertação revolucionária do

povo judeu do domínio romano; com a morte de Cristo, Judas quer se alçar a

líder, mas, reconhecendo a grandeza de Jesus, se suicida.44 Foi a primeira vez

que Goebbels manifestou sérias dúvidas religiosas, mas, aconselhado pelo pá-

roco local, achou melhor deixar a obra na gaveta. Não queria, como escreveu a

Anka, romper com “a fé e a religião da infância”; o fato de ele dever a bolsa de

estudos a esse mesmo pároco deve tê-lo instigado a tomar tal decisão.45

Por uma infeliz coincidência, Anka e a rejeitada Agnes se encontraram; o

resultado foi o seguinte: “Anka duvida de mim. Carta fria e tímida.” Ela o visi-

tou e com ele teve uma conversa que, no entanto, deixou muita coisa em aber-

to. Anka queria continuar os estudos em Würzburg, enquanto Goebbels afir-

mou que preferia ir para Munique. Nos dias subsequentes, ele ficou esperando

“desesperado” por notícias.46 Em vão. Por fim, foi para Würzburg, procurou

por Anka e a encontrou: “Um mero olhar, e nós somos os mesmos de antiga-

mente. Depois de longas lutas por ela, eu fico.”47

O semestre de inverno de 1918-19 foi o quarto do estudante Joseph

Goebbels. Até então, ele não tinha levado os estudos a sério. Não deixa de ser

surpreendente o pouco que a Primeira Guerra Mundial e a política afetaram a

vida do estudante. Ele se ocupava de suas leituras e ambições literárias, cultiva-

va amizades, aquela errática relação amorosa com Anka, e desfrutava ao máxi-

mo a vida de universitário. A julgar por seus próprios depoimentos, não parece

que a guerra o tenha marcado decisivamente, nem que a exclusão da “experiên-

cia no front”, por causa da deficiência física, tenha gerado nele algum comple-

xo de inferioridade ou ressentimento.

Em Würzburg, porém, Goebbels parece ter se dedicado mais aos aspectos

acadêmicos do estudo. Seu histórico universitário menciona cursos de história

antiga, literatura alemã, linguística, história da arte, arqueologia, letras neolati-

nas, pedagogia e história da arquitetura.48 Ele já não se sentia atraído pelas

fraternidades. Desistiu de participar da Unitas.49 À noite, leu Dostoiévski pela

primeira vez: “Chocado”, assim o deixou a leitura de Crime e castigo, segundo

escreveu em 1924.