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3 I niciativas do poder público para prevenir o uso de bebidas alco- ólicas por motoristas — causa de muitos acidentes nas estradas do país — trouxeram à ordem do dia, não sem suscitar polêmica, o instrumento popu- larmente conhecido como ‘bafômetro’. Esse instrumento de medição não vi- nha sendo muito utilizado, apesar de sua praticidade e eficiência. A ingestão de álcool e suas conseqüências Quando uma pessoa ingere bebi- das alcoólicas, o álcool passa rapida- mente para a corrente sangüínea, pela qual é levado para todas as partes do corpo. Esse processo de passagem do álcool do estômago/intestino para o sangue leva aproximadamente 20 a 30 minutos, dependendo de uma série de fatores, como peso corporal, capa- cidade de absorção do sistema diges- tivo e gradação alcoólica da bebida. A conseqüência é a intoxicação, que varia de uma leve euforia (a pessoa fica alegre) até estados mais adianta- dos de estupor alcoólico. Como resul- tado, a capacidade da pessoa para conduzir veículos é altamente compro- metida, tendo em vista que a intoxica- ção afeta a coordenação motora e a rapidez dos reflexos. De acordo com a legislação brasileira em vigor, uma pessoa está incapacitada para dirigir com segurança se tiver uma concen- tração de álcool no sangue superior a 0,8 g/L. O que significa isso? Um ho- mem de porte médio tem um volume sangüíneo de aproximadamente cinco litros. Então, esse teor de 0,8 g/L de sangue corresponde a cerca de 5 mL de álcool puro como limite máximo permitido. Isso corresponde a um co- po pequeno de cerveja ou a uma terça parte de uma dose de uísque, consi- derando a primeira como tendo um teor alcoólico de 32 g/L e o último, 320 g/L. No entanto, pode-se beber um pouco mais do que isso e ainda estar dentro do limite legal, tendo em vista que vários mecanismos no san- gue encarregam-se de eliminar do organismo a substância tóxica. Entre os principais sistemas de que o orga- nismo dispõe para purificar o sangue estão: (1) A eliminação, nos pulmões, pelo ar alveolar. (2) A eliminação pelo sistema uri- nário. (3) A metabolização de etanol, prin- cipalmente no fígado. Os dois primeiros processos res- pondem por aproximadamente dez por cento do descarte do álcool do corpo humano. O último, por aproxi- madamente 90 por cento. A metaboli- zação consiste na oxidação — relati- vamente lenta, por etapas sucessivas e catalisadas por enzimas específicas — do etanol, de acordo com a seguin- te seqüência: CH 3 CH 2 OH CH 3 CHO CO 2 + H 2 O Devido a esses (e talvez outros) processos, estudos têm mostrado que uma pessoa de porte médio pode ingerir, num período de aproximada- mente duas horas, 750 mL (pouco mais que uma garrafa grande) de cerveja ou uma dose de uísque para chegar a um teor de 0,5 g/L (ligeira- mente abaixo do limite legal brasileiro). No que se refere ao tema deste arti- go, o primeiro processo tem funda- mental importância. Como o sangue circulante passa pelos pulmões, onde ocorre troca de gases, parte do álcool passa para os pulmões. Desta forma, o ar exalado por uma pessoa que te- nha ingerido bebida alcoólica terá uma concentração de álcool proporcional à concentração do mesmo na corrente sanguínea (hálito ou ‘bafo’ de bêbado). Per Christian Braathen A seção “Química e Sociedade” apresenta artigos que focalizam aspectos importantes da interface ciência/sociedade, procurando sempre que possível analisar o potencial e as limitações da ciência na solução de problemas sociais. Este artigo trata de uma aplicação de grande relevância e importância social: proteção da sociedade pela prevenção de acidentes de trânsito mediante detecção e controle de motoristas intoxicados pelo álcool. A presença de álcool no sangue é determinada pela medição do álcool no ar exalado pela pessoa, o que é feito pela observação visual ou instrumental de simples reações químicas de oxirredução. álcool, etanol, ‘bafômetros’, intoxicação QUÍMICA E SOCIEDADE QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Princípio Químico do Bafômetro N° 5, MAIO 1997

Princípio Químico do Bafômetro

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Iniciativas do poder público paraprevenir o uso de bebidas alco-ólicas por motoristas — causa de

muitos acidentes nas estradas do país— trouxeram à ordem do dia, não semsuscitar polêmica, o instrumento popu-larmente conhecido como ‘bafômetro’.Esse instrumento de medição não vi-nha sendo muito utilizado, apesar desua praticidade e eficiência.

A ingestão de álcool e suasconseqüências

Quando uma pessoa ingere bebi-das alcoólicas, o álcool passa rapida-mente para a corrente sangüínea, pelaqual é levado para todas as partes docorpo. Esse processo de passagemdo álcool do estômago/intestino parao sangue leva aproximadamente 20 a30 minutos, dependendo de uma sériede fatores, como peso corporal, capa-cidade de absorção do sistema diges-tivo e gradação alcoólica da bebida.A conseqüência é a intoxicação, quevaria de uma leve euforia (a pessoafica alegre) até estados mais adianta-

dos de estupor alcoólico. Como resul-tado, a capacidade da pessoa paraconduzir veículos é altamente compro-metida, tendo em vista que a intoxica-ção afeta a coordenação motora e arapidez dos reflexos. De acordo coma legislação brasileira em vigor, umapessoa está incapacitada para dirigircom segurança se tiver uma concen-tração de álcool no sangue superior a0,8 g/L. O que significa isso? Um ho-mem de porte médio tem um volumesangüíneo de aproximadamente cincolitros. Então, esse teor de 0,8 g/L desangue corresponde a cerca de 5 mLde álcool puro como limite máximopermitido. Isso corresponde a um co-po pequeno de cerveja ou a uma terçaparte de uma dose de uísque, consi-derando a primeira como tendo umteor alcoólico de 32 g/L e o último,320 g/L. No entanto, pode-se beberum pouco mais do que isso e aindaestar dentro do limite legal, tendo emvista que vários mecanismos no san-gue encarregam-se de eliminar doorganismo a substância tóxica. Entre

os principais sistemas de que o orga-nismo dispõe para purificar o sangueestão:

(1) A eliminação, nos pulmões,pelo ar alveolar.

(2) A eliminação pelo sistema uri-nário.

(3) A metabolização de etanol, prin-cipalmente no fígado.

Os dois primeiros processos res-pondem por aproximadamente dezpor cento do descarte do álcool docorpo humano. O último, por aproxi-madamente 90 por cento. A metaboli-zação consiste na oxidação — relati-vamente lenta, por etapas sucessivase catalisadas por enzimas específicas— do etanol, de acordo com a seguin-te seqüência:

CH3CH2OH → CH3CHO →CO2 + H2O

Devido a esses (e talvez outros)processos, estudos têm mostrado queuma pessoa de porte médio podeingerir, num período de aproximada-mente duas horas, 750 mL (poucomais que uma garrafa grande) decerveja ou uma dose de uísque parachegar a um teor de 0,5 g/L (ligeira-mente abaixo do limite legal brasileiro).

No que se refere ao tema deste arti-go, o primeiro processo tem funda-mental importância. Como o sanguecirculante passa pelos pulmões, ondeocorre troca de gases, parte do álcoolpassa para os pulmões. Desta forma,o ar exalado por uma pessoa que te-nha ingerido bebida alcoólica terá umaconcentração de álcool proporcionalà concentração do mesmo na correntesanguínea (hálito ou ‘bafo’ de bêbado).

Per Christian Braathen

A seção “Química e Sociedade” apresenta artigos que focalizamaspectos importantes da interface ciência/sociedade, procurandosempre que possível analisar o potencial e as limitações da ciênciana solução de problemas sociais.Este artigo trata de uma aplicação de grande relevância eimportância social: proteção da sociedade pela prevenção deacidentes de trânsito mediante detecção e controle de motoristasintoxicados pelo álcool. A presença de álcool no sangue édeterminada pela medição do álcool no ar exalado pela pessoa, oque é feito pela observação visual ou instrumental de simplesreações químicas de oxirredução.

álcool, etanol, ‘bafômetros’, intoxicação

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Embora a existência de álcool nosangue possa ser detectada por umaanálise direta do mesmo, é muito maisconveniente detectar o mesmo no arexpirado. Os instrumentos usados pa-ra esta finalidade são popularmentechamados de ‘bafômetros’, e seu fun-cionamento baseia-se em reações deoxidação e redução.

A química dos bafômetrosOs bafômetros mais simples são

descartáveis e consistem em peque-nos tubos contendo uma misturasólida de solução aquosa dedicromato de potássio e sílica,umedecida com ácido sulfúrico. A de-tecção da embriaguez por esse instru-mento é visual, pois a reação que ocor-re é a oxidação de álcool a aldeído ea redução do dicromato a cromo (III),ou mesmo a cromo (II). A coloraçãoinicial é amarelo-alaranjada, devido aodicromato, e a final é verde-azulada,visto ser o cromo (III) verde e o cromo(II) azul. Estes bafômetros portáteissão preparados e calibrados apenaspara indicar se a pessoa está abaixoou acima do limite legal. As equaçõesque representam a reação química dobafômetro portátil estão no quadroabaixo.

A Fig. 1 ilustra o funcionamentodestes ‘bafômetros’ descartáveis.

Veja como fabricar um bafômetrosemelhante a este na seção “Experi-mentação no Ensino de Química”,neste número.

Os instrumentos normalmente usa-dos pelas polícias rodoviárias, doBrasil e de outros países, são instru-mentos bem mais sofisticados. Doponto de vista de detecção/medição,existem basicamente dois tipos. Emambos, os ‘suspeitos’ sopram paradentro do aparelho através de um tubo(descartável) onde ocorre oxidaçãodo etanol a etanal. No primeiro tipo, osistema detetor/medidor é eletroquími-co, baseado no princípio da pilha decombustível (como as usadas nos ôni-bus espaciais da NASA para produzirenergia elétrica a partir da reação en-tre os gases hidrogênio e oxigênio): oetanol é oxidado em meio ácido sobreum disco plástico poroso coberto compó de platina (catalisador) e umedeci-do com ácido sulfúrico, sendo um ele-trodo conectado a cada lado dessedisco poroso. A corrente elétrica pro-duzida, proporcional à concentraçãode álcool no ar expirado dos pulmõesda pessoa testada, é lida numa escalaque é proporcional ao teor de álcoolno sangue. O funcionamento e aquímica desse detetor de etanol podeser visto no Quadro 1.

O outro tipo de dispositivo de testeé o modelo Taguchi desenvolvido noJapão e que consiste em um sensorsemicondutor, seletivo para etanol,constituído basicamente de óxido deestanho com várias impurezas (prin-cipalmente terras raras). O sensor éaquecido a aproximadamente 400 oC,condições nas quais o mesmo se tor-na ‘ativo’. Quando o etanol entra emcontato com esse sensor, é imediata-mente oxidado, ocorrendo por conse-guinte uma mudança característica naresistência/condutância 1 do sensor.Esta é medida como voltagem, nova-

mente proporcional à concentração deálcool no ar expirado, que por sua vezé proporcional à concentração deálcool no sangue.

A Fig. 2 mostra um modelo do tipode bafômetro usado pelas políciasrodoviárias do mundo inteiro.

Em alguns países existem ‘bafô-metros públicos’, que operam pelainserção de uma moeda, normalmentelocalizados perto de telefonespúblicos.

Também é interessante ressaltarque recentemente foram desenvolvi-dos ‘bafômetros’ acoplados ao siste-ma de ignição de veículos, especial-mente desenvolvidos para caminhõese ônibus. O sistema obriga o motoristaa soprar para dentro do instrumento,e caso exceda o limite legal, o veículosimplesmente não funciona. Uma

Figura 1: A foto A mostra o tubo após o testede uma pessoa que não ingeriu álcool. A fotoB mostra o tubo após o teste de uma pessoaintoxicada e, conseqüentemente, semcondições para conduzir um veículo. Os‘bafômetros’ descartáveis ilustrados pela fotosão fabricados pela companhia americanaWNCK, Inc., mas outras empresas fabricamdispositivos similares.

Figura 2: Modelo de bafômetro tipo Taguchi.

Equações da reação química do bafômetro portátilEquações da reação química do bafômetro portátilEquações da reação química do bafômetro portátilEquações da reação química do bafômetro portátilEquações da reação química do bafômetro portátil

Equação completa:

K2Cr2O7(aq) + 4H2SO4(aq) + 3CH3CH2OH(g) → Cr2(SO4)3(aq) + 7H2O(l) + 3CH3CHO(g) + K2SO4(aq)alaranjado incolor verde incolor

Equação na forma iônica:

Cr2O72-(aq) + 8H+(aq) + 3CH3CH2OH(g → 2Cr3+(aq) + 3CH3CHO(g) +7H2O(l)

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interface computadorizada obriga omotorista a repetir o teste a intervalosirregulares. O instrumento foi desen-volvido pela companhia alemã DrägerInternational e chama-se Interlock.

É importante mencionar que em-bora os ‘bafômetros’ portáteis mencio-nados acima sejam bastante confiá-veis, os laboratórios de medicina le-gal usam métodos e aparelhos aindamais sofisticados (e muito mais caros),principalmente baseados em espec-troscopia no infravermelho (cadamolécula, inclusive o etanol, tem seuespectro de infravermelho caracterís-tico) e em cromatografia gasosa (emque as moléculas são separadas deacordo com a massa molecular, eassim detectadas).

Simulando um ‘bafômetro’

Até a década de 50, a oxidação doetanol pelo dicromato de potássio emmeio ácido (ou mesmo permanganatode potássio em meio ácido) era ométodo padrão de análise para adeterminação de álcool em ar expiradopelos pulmões (ou mesmo em plasmasangüíneo). É ainda usado nos ‘bafô-metros’ descartáveis mencionadosneste artigo.

Para saber mais1. ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA, v. 9,

p. 976, Ed. 1972.2. O GLOBO, 04 set., 1996. Caderno

Carro Etc.3. Alcohol Countermeasure Sys-

tems. Internet: http://www.acs-corp.com/

4. Intoximeters Inc. Internet: http://www.intox.com/prod-

ucts/fuell_cell_wp.html5. WNCK Inc., 600 Kenrick, ste.A2,

Houston, 77060, Texas, EUA.ObsObsObsObsObs: 3, 4 e 5 são fabricantes de

‘bafômetros’.FFFFFontesontesontesontesontes: Manual do bafômetro usado

pela Polícia Rodoviária Federal eEnciclopédia Britânica.

No eletrodo negativo (ânodo) ocorre a oxidação (catalisada pela platina),conforme a semi-reação:

CH3CH2OH(g) → CH3CHO(g) + 2H+ (aq) + 2e–

No eletrodo positivo (cátodo), ocorre a redução do oxigênio (contido noar), conforme a semi-reação:

½O2(g) + 2H+(aq) + 2e- → H2O(l)

A equação completa da pilha, será portanto:

CH3CH2OH(g) + ½O2(g) → CH3CHO(g) + H2O(l)

Quimicamente, isso representa uma combustão incompleta do etanol, daío nome pilha de combustível.

Quadro 1: Funcionamento de bafômetro baseado no princípio da pilha de combustível.

Para efeito de ensino de química,é interessante simular o conjunto‘ébrio—bafômetro’ baseado na reaçãoquímica, uma vez que ilustra vários as-pectos de química inorgânica, físico-química (oxirredução, por exemplo) equímica orgânica de interesse paraalunos do ensino médio e superior. Pa-ra montar esse conjunto, são neces-sários um erlenmeyer com rolha dedois furos, um tubo de ensaio (ou vidri-nho transparente, tipo para remédio),tubos de vidro, tubo látex, álcoolcomum (96 GL), solução de dicromatode potássio 0,1 mol/L misturado comigual volume de ácido sulfúrico a 20mL/L (ou seja, dicromato de potássio0,05 mol/L em meio fortemente ácido).O simulador ‘ébrio—bafômetro’ segueo esquema apresentado na figuraabaixo.

Soprando-se para dentro do álcool,

o ar arrasta vapores de álcool que,borbulhando na solução ácida dedicromato de potássio provoca umamudança de coloração como segue(caso não observe mudança de cor,aumente a acidez da solução dedicromato):

ALARANJADO → MARROM →VERDE → AZUL

A equação química é a mesmaapresentada para os ‘bafômetros’ des-cartáveis mencionados, ilustrada noquadro abaixo da Fig. 1, exceto que,quando aparece a cor azul, em vez deverde, é porque o cromo foi reduzidoa cromo (II).

AgradecimentosO autor agradece a colaboração do

sr. Gibraim Souza Couri, superinten-dente da Polícia Rodoviária Federal,agência de Belo Horizonte - MG; GlennForrester, da Intoximeters Inc., EUA;Felix J.F. Comeau, da Alcohol Coun-termeasure Systems, EUA, e Carl King,da WNCK Inc., EUA.

Per Christian Braathen, licenciado em química pelaUERJ, mestre em química analítica pela PUC/RJ edoutor em educação científica pela Universidade deWisconsin, EUA, é docente do Departamento de Quí-mica da Universidade Federal de Viçosa, Viçosa - MG.

Nota1. Resistência é a medida da capaci-

dade que um material tem de se opor àpassagem da corrente elétrica. A condu-tância é a medida da capacidade que ummaterial tem de permitir a passagem dacorrente elétrica.

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Disco poroso com eletrólito

Negro de platina

Negro de platina

Entrada de álcool

Sopro

ÁlcoolSolução ácidade K Cr O2 2 7