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13 de Novembro de 2009 Filosofia política A concepção de estado de Nozick João Cardoso Rosas Universidade do Minho Robert Nozick nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, em 1938, numa família judaica de origem russa. Desde a adolescência que se interessou pela filosofia — na qual se iniciou através da leitura da República de Platão —, vindo mais tarde a licenciar-se neste domínio, no Columbia College. Embora não tenha considerado a sua licenciatura particularmente interessante, ela permitiu-lhe prosseguir os seus estudos de pós- graduação, na Princeton University, onde se doutorou em 1963, com uma tese sobre “A Teoria Normativa da Escolha Individual”. De Princeton passou para Harvard, seguidamente para a Rockefeller University e, em 1969, de novo para Harvard. Foi aqui que fez grande parte da sua carreira, publicou vários livros e se tornou “University Professor”, a posição académica mais elitista e cobiçada nesta universidade. Viria a falecer algo precocemente, de doença prolongada, em 2002. Nozick não foi somente um filósofo político. Os seus interesses eram extremamente variados e iam desde a filosofia das ciências à metafísica, ou da teoria da racionalidade à filosofia existencial. O leitor pode constatar isso mesmo mediante a bibliografia escolhida do autor inserida no final desta Introdução. Embora percorrendo muitos aspectos diferentes

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    13 de Novembro de 2009 Filosofia poltica

    A concepo de

    estado de Nozick

    Joo Cardoso Rosas

    Universidade do Minho

    Robert Nozick nasceu em Brooklyn, Nova Iorque,

    em 1938, numa famlia judaica de origem russa.

    Desde a adolescncia que se interessou pela

    filosofia na qual se iniciou atravs da leitura da Repblica de Plato

    , vindo mais tarde a licenciar-se neste domnio, no Columbia College.

    Embora no tenha considerado a sua licenciatura particularmente

    interessante, ela permitiu-lhe prosseguir os seus estudos de ps-

    graduao, na Princeton University, onde se doutorou em 1963, com uma

    tese sobre A Teoria Normativa da Escolha Individual. De Princeton

    passou para Harvard, seguidamente para a Rockefeller University e, em

    1969, de novo para Harvard. Foi aqui que fez grande parte da sua carreira,

    publicou vrios livros e se tornou University Professor, a posio

    acadmica mais elitista e cobiada nesta universidade. Viria a falecer algo

    precocemente, de doena prolongada, em 2002.

    Nozick no foi somente um filsofo poltico. Os seus interesses eram

    extremamente variados e iam desde a filosofia das cincias metafsica,

    ou da teoria da racionalidade filosofia existencial. O leitor pode

    constatar isso mesmo mediante a bibliografia escolhida do autor inserida

    no final desta Introduo. Embora percorrendo muitos aspectos diferentes

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    do pensamento filosfico, tanto no seu ensino como nas suas

    publicaes, Nozick foi muito influenciado pela chamada filosofia

    analtica, o que se traduz numa preocupao grande com a anlise

    semntica e o rigor lgico da argumentao.

    Mas a obra que consagrou Nozick como pensador de relevo foi

    precisamente aquela que agora traduzida para portugus: Anarquia,

    Estado e Utopia, de 1974. Esta a sua grande obra de filosofia poltica e,

    depois dela, o autor no regressou reflexo poltica seno de forma

    episdica e passageira. O livro de Nozick uma longa e cuidadosa

    reaco obra que, apenas trs anos antes, tinha revolucionado a

    filosofia poltica contempornea: Uma Teoria da Justia, escrita por John

    Rawls, seu colega mais velho no Departamento de Filosofia de Harvard. A

    esse propsito, diz Nozick:

    Uma Teoria da Justia uma obra de filosofia poltica e moral poderosa,

    profunda, subtil, de grande flego, sistemtica, qual nada se pode

    comparar desde os escritos de John Stuart Mill, quando muito. uma

    fonte de ideias luminosas, integradas num todo cativante. Os filsofos da

    poltica hoje tm ou de trabalhar no seio da teoria de Rawls ou de

    explicar por que no o fazem. (Anarquia, Estado e Utopia, Cap. 7, pgina

    228)

    Ora, o intento de Nozick consiste precisamente em explicar por que razo

    no pretende trabalhar no seio da teoria rawlsiana e prefere optar por um

    paradigma alternativo.

    Rawls tinha apresentado uma defesa neocontratualista e altamente

    sofisticada da justia social, implicando uma viso alargada da igualdade

    de oportunidades e da distribuio do rendimento e da riqueza. Nozick

    postula uma alternativa assente em direitos individuais de propriedade

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    que funcionam como um entrave moral a todas as formas de

    distributivismo. Se o pensamento de Rawls pode ser lido como uma

    justificao do estado social, o de Nozick consiste numa defesa explcita

    de um estado mnimo que no procura corrigir as desigualdades sociais.

    Assim, entre Uma Teoria da Justia de Rawls e Anarquia, Estado e Utopia

    de Nozick, ficam estabelecidos os fundamentos do debate entre liberais-

    igualitrios (ou social-democratas), por um lado, e libertaristas (ou

    neoliberais), por outro. Como bom de ver, este um debate cujos

    fundamentos filosficos foram estabelecidos h trinta e cinco anos, mas

    cuja traduo ideolgica e consequncias polticas so nossas

    contemporneas.

    O distanciamento crtico de Nozick em relao teoria de Rawls no

    surge do nada. Nozick sempre fora seduzido pela tradio libertarista

    americana, especialmente atravs da obra e do pensamento de Ayn Rand.

    Esta autora fazia assentar a defesa do libertarismo num egosmo tico de

    base biolgica. Segundo Rand, o prprio direito vida dos

    organismos racionais que leva a uma ideia de liberdade como no

    interferncia de carcter absoluto e, da, ao estado mnimo como aquele

    tipo de estado que melhor assegura essa liberdade de carcter negativo.

    Mantendo embora o iderio libertarista de Rand, Nozick considera que o

    seu biologismo no fornece uma base slida para a defesa do estado

    mnimo e que este necessita de uma justificao diferenciada.

    ***

    A primeira questo que um autor libertrio como Nozick tem de enfrentar

    precisamente a de saber se o estado se justifica de todo, ou se seria

    prefervel a sua ausncia, isto , a anarquia no sentido poltico, no

    etimolgico. A primeira parte de Anarquia, Estado e Utopia trata

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    precisamente deste problema. Embora sem antecipar toda a riqueza da

    argumentao nozickiana, importa aqui esboar o essencial do argumento

    que conduz preferncia pelo estado mnimo em relao anarquia.

    Nozick prope-nos uma experincia mental que consiste em imaginar o

    estado de natureza de Locke, no qual no existe ainda estado civil mas

    apenas indivduos dotados de direitos morais pr-polticos. Este ponto de

    partida absolutamente fulcral na economia do pensamento nozickiano e

    no seria possvel entender a sua obra poltica sem nele atentar. Como

    escreve Nozick logo a abrir o Prefcio do seu livro,

    Os indivduos tm direitos e h coisas que nenhuma pessoa ou grupo

    lhes pode fazer (sem violar os seus direitos). Estes direitos so de tal

    maneira fortes e de grande alcance que levantam a questo do que o

    estado e os seus mandatrios podem fazer, se que podem fazer

    alguma coisa.

    Os direitos pr-polticos em Nozick devem ser vistos, na linha de Locke,

    como uma decorrncia do direito propriedade de si mesmo. Cada

    indivduo dono de si prprio e no propriedade de outrem e isso

    implica o direito vida, liberdade de fazer o que quiser consigo mesmo,

    com o seu corpo e os seus talentos pessoais, e ainda o direito aos haveres

    ou propriedade no sentido mais estrito, na medida em que ela esteja de

    acordo com a justia (voltarei a esta questo mais adiante). Se partirmos,

    ento, de um estado de natureza com indivduos dotados de direitos

    concebidos em termos de autopropriedade, ser que em algum momento

    ser necessrio o estado mnimo?

    Para responder a esta questo, Nozick parte da constatao, j feita por

    Locke, de que o estado de natureza encerra em si uma considervel

    insegurana. Os indivduos dotados de direitos morais no tm qualquer

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    entidade qual recorrer caso esses direitos sejam violados. Por isso s

    podem fazer justia pelas prprias mos ou, na linguagem lockiana, so

    os prprios a ter o direito de executar a lei da natureza que protege a

    propriedade individual. Ser ento necessrio ultrapassar a instabilidade

    que daqui decorre. A soluo encontrada por Locke era a celebrao de

    um contrato social que permitia legitimar as instituies do estado civil.

    Nozick segue uma estratgia algo diferente. Prefere recorrer ao

    contrafactual de uma evoluo hipottica a partir do estado de natureza e

    sem recurso ao artifcio do contrato, mas tendo em conta o valor moral

    dos direitos individuais. Por outras palavras, pensa que, partindo do

    estado de natureza formado por indivduos proprietrios de si mesmos,

    haveria um deslizamento natural para algo diferente e que, atravs de um

    mecanismo de mo invisvel, daria lugar ao estado civil. Vejamos como.

    Nozick imagina que os indivduos comeam por organizar-se em

    associaes protectivas com vista a garantir a sua prpria segurana. Esta

    uma primeira forma concertada de defesa dos direitos individuais. Mas,

    como os membros das associaes protectivas no podem dedicar-se a

    tempo inteiro a essa proteco, a tendncia para a diviso do trabalho e

    a profissionalizao destas associaes. Ou seja, as associaes

    protectivas iniciais do origem a empresas encarregadas de proteger os

    seus clientes. No entanto, no est ainda ultrapassada a instabilidade do

    estado de natureza. As associaes protectivas transformadas em

    empresas entram em concorrncia e conflito. A lgica do mercado da

    proteco leva ento ao desaparecimento das mais fracas e ao triunfo das

    mais fortes. Em ltima instncia, esta lgica conduz ao surgimento de uma

    associao protectiva profissionalizada dominante. Para melhor proteger

    os seus clientes, esta associao dominante anuncia publicamente que

    punir todos aqueles que atentarem contra os direitos dos seus clientes.

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    Desta forma, a agncia dominante assegura em termos prticos, na

    famosa expresso de Max Weber, o monoplio da violncia autorizada.

    Nesta fase, estamos j na presena do estado civil ou, melhor dizendo,

    daquilo que Nozick intitula estado ultramnimo.

    Porm, se a agncia protectiva dominante coloca entraves aco dos

    independentes, i.e., dos no clientes, tem o dever moral de os compensar.

    Essa compensao surge mediante o fornecimento de servios de

    proteco a todos os indivduos dentro de uma determinada rea

    geogrfica. Este ltimo aspecto constitui a segunda parte da definio

    weberiana do estado. Assim, quando todos os que se encontram dentro

    de um determinado territrio, delimitado por fronteiras, esto protegidos

    por uma entidade que detm o monoplio da violncia autorizada,

    estamos finalmente na presena do estado mnimo. Este pode garantir

    satisfatoriamente os direitos individuais ao proteger todos os indivduos

    contra o uso indevido da fora, o roubo, a fraude e o incumprimento dos

    contratos. A instabilidade inicial do estado de natureza est resolvida,

    com vantagem para a segurana dos direitos dos indivduos.

    A experincia mental aqui descrita de uma forma muito sucinta permite

    estabelecer que um estado mnimo prefervel anarquia, na medida em

    que protege melhor a autopropriedade individual. No entanto, a maior

    parte das filosofias polticas contemporneas e, em especial, a

    rawlsiana servem para justificar um estado com funes alargadas, em

    nome da justia social ou distributiva. Por isso Nozick dedica a segunda

    parte de Anarquia, Estado e Utopia a refutar a necessidade de um estado

    mais extenso do que um estado mnimo mediante a defesa de uma teoria

    da justia de cariz libertarista e alternativa face ao distributivismo

    rawlsiano. Nozick designa a sua prpria viso como teoria da

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    titularidade.

    A teoria da titularidade diz respeito s posses, ou haveres, dos indivduos,

    isto , propriedade no sentido estrito e mais comum. Coloca-se ento a

    questo: em que circunstncias tm os indivduos direito aos seus haveres

    (ou no)? Nozick considera que a teoria da titularidade responde a esta

    questo abarcando trs aspectos diferentes: a justia na aquisio, a

    justia na transferncia e, finalmente, a rectificao da injustia. Vamos

    agora percorrer brevemente cada um destes trs aspectos.

    Qualquer pessoa tem direito a qualquer haver alvo de uma aquisio

    inicial desde que, por essa aquisio, no tenha infringido os direitos

    individuais de outrem. Isso implica certamente que a aquisio no pode

    ser conseguida atravs do uso da fora ou do roubo, por exemplo. Mas a

    legitimao da aquisio est tambm dependente da chamada restrio

    lockiana. Esta implica que aquele que adquire por exemplo, um

    terreno que antes no pertencia a algum deixe o mesmo e

    suficientemente bom para os outros. No entanto, a formulao de Locke,

    feita num tempo em que o mundo por descobrir parecia inesgotvel e no

    faltava terra para todos, actualizada por Nozick de um modo peculiar.

    No pensamento nozickiano, a restrio lockiana passa a significar que

    qualquer aquisio moralmente permissvel desde que no prejudique

    seja quem for. Esta interpretao da restrio extremamente plstica e

    permite justificar, por exemplo, a aquisio de recursos naturais at agora

    inexplorados, ou, para dar outro exemplo particularmente significativo, a

    apropriao de patentes mdicas por tempo indefinido (para alm

    daquilo que permite o prprio direito internacional). Com efeito, quem

    acede a um novo recurso a que ningum conseguia antes aceder, ou cria

    uma patente que ningum antes tinha criado, no est a prejudicar

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    algum, no est a deixar algum pior, e por isso tem o direito pleno ao

    seu haver.

    Porm, a maior parte dos haveres dos indivduos no provm de

    aquisies iniciais mas antes de processos de transferncia (contratos de

    compra e venda, doaes, heranas, etc.). Mais uma vez, os indivduos tm

    direito aos haveres que resultam de transferncias nas quais no houve

    violao de direitos individuais nem desrespeito da restrio lockiana. Ou

    seja, desde que essas transferncias tenham sido conscientes e

    voluntrias e no prejudiquem algum. Esta ideia tem largo alcance, na

    medida em que as enormes desigualdades nos haveres dos indivduos e

    famlias resultam de uma multiplicidade de transferncias ao longo do

    tempo das suas vidas, ou mesmo ao longo das geraes. Se esses

    processos de transferncia foram justos, ento nada h a objectar s

    disparidades sociais que da resultam.

    O terceiro aspecto da teoria da titularidade consiste na necessidade de

    estabelecer algum princpio de rectificao sempre que os haveres de

    algum no resultaram de aplicaes sucessivas da justia na aquisio e

    da justia na transferncia. Ou seja, se se verificar, por exemplo, que os

    haveres de algum resultaram de roubos ou aquisies ilegtimas no

    passado, ento ser necessrio rectificar. Este princpio aplica-se

    individualmente, mas tambm em termos mais alargados. Por exemplo,

    Nozick pensa que os ndios americanos deviam ser devidamente

    indemnizados pelas terras que lhes foram roubadas pelos colonos

    brancos. Outro exemplo, relativamente recente, de aplicao rectificativa

    poderia ser a devoluo aos judeus do ouro roubado pelos nazis.

    Os trs aspectos da teoria da titularidade apontam para a principal

    caracterstica distintiva desta teoria da justia dos haveres: o seu cariz

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    histrico. Aquilo que cada indivduo detm a justo ttulo depende do que

    aconteceu no passado e ao longo do tempo. Ou seja, se aquilo que os

    indivduos possuem decorre da justia na aquisio e nas transferncias,

    ento efectivamente justo. Se, por outro lado, se detecta no passado

    alguma aquisio ou transferncia injusta, ela deve ser rectificada. Mas

    Nozick resiste consequncia mais radical do seu pensamento que

    consistiria em sustentar que, face ao desconhecimento do passado,

    sobretudo remoto, seria mais justo aplicar um princpio rectificador geral

    mediante, por exemplo, uma distribuio igualitria dos haveres e

    comear tudo de novo. Do meu ponto de vista, esta concluso

    consequente com o prprio pensamento de Nozick. Mas ele sabe bem

    que a suspeio genrica sobre o passado e o respectivo remdio

    rectificativo equivaleria a uma espcie de socialismo, ainda que

    temporrio, e considera claramente excessivo introduzir o socialismo

    como castigo pelos nossos pecados (cf. final do captulo 7).

    Uma caracterizao mais esmiuada da teoria da titularidade teria de levar

    sua contraposio face a outras teorias a que estamos mais habituados e

    que, contrariamente teoria nozickiana, tm carcter teleolgico ou

    estabelecem padres distributivos que caberia ao estado introduzir na

    sociedade. A teoria teleolgica standard o utilitarismo. O seu objectivo

    a maximizao do bem-estar social. Ao invs desta teoria, e de outras do

    mesmo tipo, a teoria da titularidade no pretende alcanar qualquer

    resultado final especfico. A justia depende do que aconteceu no passado

    e no de qualquer resultado final que se pretenda atingir no futuro.

    A teoria padronizada clssica, por sua vez, aquela que diz que uma

    distribuio de bens materiais deve depender de qualquer qualidade

    pessoal, como por exemplo o mrito, ou a vida virtuosa. Ora, a teoria da

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    titularidade no estabelece qualquer padro a criar politicamente e, pelo

    contrrio, considera que a imposio desses padres distributivos conduz

    o estado a interferir indevidamente na liberdade dos cidados. A

    liberdade, diz Nozick, contrria imposio de padres por parte do

    estado social, sejam quais forem esses padres.

    Na segunda parte do seu livro, Nozick dedica-se tambm a uma crtica

    especialmente circunstanciada da teoria rawlsiana, por vezes com

    argumentos que nos parecem excessivamente formais. No entanto, bom

    de ver que a teoria da titularidade est realmente nos antpodas da teoria

    da justia de Rawls e que, se partirmos desse pressuposto, a crtica de

    Nozick faz todo o sentido. Para Nozick, o distributivismo rawlsiano trata os

    mais favorecidos instrumentalmente, obrigando-os a contribuir para a

    melhoria da situao dos mais desfavorecidos. Ao faz-lo, a teoria de

    Rawls acaba, segundo Nozick, por revelar o seu carcter teleolgico e por

    no respeitar suficientemente os indivduos e a sua autopropriedade. A

    justia de Rawls e de todas as teorias distributivas, poder-se-ia dizer,

    fundamentalmente injusta luz da teoria da titularidade.

    Gostaria ainda de deixar uma palavra breve sobre a terceira parte do livro

    de Nozick. Esta tambm a parte mais curta, mas no deixa de merecer

    ateno. Nozick apresenta aqui o estado mnimo, como um

    enquadramento para a utopia. Por outras palavras: a concepo do

    estado mnimo defendida em Anarquia, Estado e Utopia no uma viso

    de tipo perfeccionista que indique de que forma os indivduos devem

    viver. Pelo contrrio, trata-se de um enquadramento geral que permite

    aos indivduos viverem vidas muito diferentes. Assim, por exemplo, se

    algum pretende viver uma vida sob o signo do comunismo, ou da

    comunidade de bens, pode perfeitamente organizar-se para o fazer

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    fundando uma comuna com aqueles com quem partilha essas ideias.

    Mas com a enorme vantagem de, ao contrrio do que aconteceu nos

    pases do socialismo real, no instrumentalizar a liberdade dos outros

    para esse mesmo fim.

    O uso da palavra utopia nesta terceira parte do livro no inocente.

    Esta palavra pertence tradio da esquerda poltica, ou mesmo

    tradio do pensamento socialista que Nozick tanto fustiga. Basta

    recordar que o inventor da palavra utopia, Thomas More, considerava

    que a base da sociedade ideal que ele prprio descreveu era a ausncia

    da propriedade privada e do dinheiro. Ora, a abolio da propriedade

    privada seria para Nozick a maior das injustias, na medida em que

    traduziria o desrespeito pelo indivduo enquanto proprietrio de si

    mesmo. Mas aquilo que Nozick quer sugerir nesta parte final do livro

    que o libertarismo que defende tambm deve ser visto como uma utopia

    e, portanto, como capaz de inspirar todos aqueles que querem viver numa

    sociedade livre.

    Procurmos resumir aqui o esqueleto da argumentao nozickiana nas

    trs partes que compem Anarquia, Estado e Utopia. Mas temos

    conscincia que aquilo que dissemos no faz jus ao detalhe do raciocnio e

    ao virtuosismo intelectual que Nozick mostra ao longo de toda a obra e

    que s atravs da sua leitura directa pode ser apreendido. tambm

    importante assinalar que algumas das passagens deste livro se tornaram,

    entretanto, referncias obrigatrias da filosofia e do pensamento poltico

    contemporneo. exemplo disso a seco intitulada A mquina de

    experincias, no captulo 3, que se tornou paradigmtica na crtica ao

    utilitarismo. Outro exemplo o chamado argumento Wilt Chamberlain,

    numa seco do captulo 7 intitulada Como a liberdade perturba os

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    padres. Este argumento, que conta uma histria imaginada sobre o

    jogador de basquetebol Wilt Chamberlain, tornou-se no exemplo

    paradigmtico da argumentao libertarista contra o estado distributivo.

    ***

    O pensamento de Nozick pode ser aproximado do de outros libertaristas

    contemporneos mais conhecidos do pblico portugus, como so os

    casos de F. A. Hayek e Milton Friedman. Tambm eles defendem um

    individualismo estrito e criticam o estado social ou distributivo. No

    entanto, como refere Rui Fonseca no texto referenciado na bibliografia

    desta Introduo, devemos distinguir entre um libertarismo instrumental e

    um libertarismo fundamental. O daqueles autores, de formao sobretudo

    econmica, pertence primeira categoria. A sua defesa do libertarismo

    assenta em grande parte na defesa dos mecanismos de mercado livre e

    na ideia de que esses mecanismos so distorcidos pelas ideias de justia

    distributiva e pela aco do estado social. No caso de Nozick, ao invs, o

    libertarismo fundamental na medida em que assenta numa concepo

    moral da pessoa humana nos termos j referidos da autopropriedade.

    Para Nozick, o distributivismo do estado social equivale quebra do

    imperativo categrico kantiano na frmula do fim em si. Ou seja, o

    estado social trata os indivduos Nozick est a pensar sobretudo nos

    mais favorecidos como um meio ao servio de um determinado fim (a

    justia como equidade, a maximizao do bem-estar, ou outra coisa do

    gnero) e no como fins em si. Portanto, a sua justificao do libertarismo

    filosoficamente mais robusta. Assenta em princpios morais e no

    apenas, ou primacialmente, em consideraes sobre a eficincia dos

    mercados e a ordem espontnea da sociedade.

    Em anos mais recentes, depois da publicao de Anarquia, Estado e

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    Utopia, surgiu uma interessante corrente de renovao do pensamento

    libertarista a que se costuma chamar libertarismo de esquerda. Partindo

    das ideias de Nozick sobre a propriedade de si e recolhendo as anlises

    crticas desta noo desenvolvidas pelo filsofo de Oxford G. A. Cohen, os

    libertaristas de esquerda, como Hillel Steiner e Michael Otsuka, recusam a

    ideia de que a autopropriedade legitime por si mesma a propriedade de

    recursos naturais. Da preconizarem uma diviso igualitria desses

    recursos, ou a compensao que os proprietrios devem aos no

    proprietrios mediante impostos ou rendas sobre a propriedade de

    recursos naturais, incluindo a propriedade da terra. Embora a crtica dos

    libertaristas de esquerda me parea adequada dentro da lgica interna

    do libertarismo, evidente que o prprio Nozick recusaria este tipo de

    implicaes igualitrias do seu pensamento. Mas a possibilidade de

    derivar, a partir de Nozick, desenvolvimentos tericos que vo muito para

    alm daquilo que ele prprio explicitamente defendeu, tambm um

    sinal da vitalidade intelectual deste pensador e da obra agora traduzida

    para a lngua portuguesa.

    Joo Cardoso Rosas

    Bibliografia

    De Nozick

    NOZICK, Robert, Anarchy, State, and Utopia, New York, Basic Books, 1974

    Philosophical Explanations, Cambridge Mass., The Belknap Press of

    Harvard University Press, 1981

    The Examined Life: Philosophical Meditations, New York, Simon &

    Schuster, 1989

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