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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Santos – 29 de agosto a 2 de setembro de 2007 1 Processo criativo em propaganda e intertextualidade 1  João Anzanello Carrascoza 2  Escola Superior de Propaganda e Marketing Resumo: Os materiais publicitários são criados por meio da prática de bricolagem exercida diariamente por redatores e diretores de arte – profissionais que atuam em duplas nas agências de propaganda e são responsáveis pela elaboração das mensagens. No processo de criação, as duplas se valem de todo tipo de material cultural como ponto de partida, sobretudo citações de imagens e enunciados fundadores. O presente artigo traz uma reflexão sobre o processo criativo na propaganda em geral e investiga, em específico, a intertextualidade, inclusive na forma de ready-made , como método da Criação  pu blic it ár ia . Palavras-chave:  Processo criativo; publicidade; bricolagem; intertextualidade; ready- made. A associação de idéias e a publicidade O tema da criatividade aplicada ao  fazer  publicitário vem despertando interesse dos estudiosos especialmente pelo fato de se exigir dos profissionais de Criação em agências de propaganda soluções originais  full time. As duplas de “criativos”, formadas por um redator e um diretor de arte – modelo de trabalho mais adotado no mundo pelas corporações que oferecem serviços publicitários –, são valorizadas de acordo com seu talento de gerar idéias inusitadas para a comunicação dos clientes. E, no contexto atual, não basta ser dotado dessa capacidade. Cabe às duplas produzir idéias em largo volume,  pa ra ev ita r pro po siç õe s co inc ide ntes, e ain da fazê-lo com rap idez, o bede cen do prazos cada dia mais exíguos – às vezes não mais que algumas horas, desde o momento em que recebem o pedido de serviço até à veiculação nos mass media. Há poucas contribuições acadêmicas sobre o assunto e uma pequena bibliografia que se restringe a abordar brevemente como é o processo de produção de idéias no caso específico dos publicitários. Seguindo o ponto de vista de Rocha 3 , definimos esse tipo de  pr of issi on al como um bricoleur , que sua missão é compor mensagens, 1  - Trabalho apresentado no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP Publicidade e Propaganda. 2  - João Anzanello Carrascoza é doutor e mestre em Ciência da Comunicação pela ECA-USP, onde é professor titular no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM. E-mail: [email protected].  3  - ROCHA, Everardo P. Guimarães.  Magia e capitalismo. Um estudo antropológico da publicidade.  2. ed., São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 58-59.

Processo Criativo Em Propaganda

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    Processo criativo em propaganda e intertextualidade 1

    Joo Anzanello Carrascoza2 Escola Superior de Propaganda e Marketing

    Resumo:

    Os materiais publicitrios so criados por meio da prtica de bricolagem exercida diariamente por redatores e diretores de arte profissionais que atuam em duplas nas agncias de propaganda e so responsveis pela elaborao das mensagens. No processo de criao, as duplas se valem de todo tipo de material cultural como ponto de partida, sobretudo citaes de imagens e enunciados fundadores. O presente artigo traz uma reflexo sobre o processo criativo na propaganda em geral e investiga, em especfico, a intertextualidade, inclusive na forma de ready-made, como mtodo da Criao publicitria. Palavras-chave: Processo criativo; publicidade; bricolagem; intertextualidade; ready-made.

    A associao de idias e a publicidade

    O tema da criatividade aplicada ao fazer publicitrio vem despertando interesse dos

    estudiosos especialmente pelo fato de se exigir dos profissionais de Criao em agncias

    de propaganda solues originais full time. As duplas de criativos, formadas por um

    redator e um diretor de arte modelo de trabalho mais adotado no mundo pelas

    corporaes que oferecem servios publicitrios , so valorizadas de acordo com seu

    talento de gerar idias inusitadas para a comunicao dos clientes. E, no contexto atual,

    no basta ser dotado dessa capacidade. Cabe s duplas produzir idias em largo volume,

    para evitar proposies coincidentes, e ainda faz-lo com rapidez, obedecendo prazos cada

    dia mais exguos s vezes no mais que algumas horas, desde o momento em que

    recebem o pedido de servio at veiculao nos mass media.

    H poucas contribuies acadmicas sobre o assunto e uma pequena bibliografia

    que se restringe a abordar brevemente como o processo de produo de idias no caso

    especfico dos publicitrios. Seguindo o ponto de vista de Rocha3, definimos esse tipo de

    profissional como um bricoleur, j que sua misso compor mensagens, 1 - Trabalho apresentado no VII Encontro dos Ncleos de Pesquisa em Comunicao NP Publicidade e Propaganda. 2 - Joo Anzanello Carrascoza doutor e mestre em Cincia da Comunicao pela ECA-USP, onde professor titular no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Mestrado em Comunicao e Prticas de Consumo da ESPM. E-mail: [email protected]. 3 - ROCHA, Everardo P. Guimares. Magia e capitalismo. Um estudo antropolgico da publicidade. 2. ed., So Paulo: Brasiliense, 1990. p. 58-59.

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    preferencialmente de impacto, valendo-se dos mais diversos discursos que possam servir

    ao seu propsito de persuadir o pblico-alvo. Os criativos atuam cortando, associando,

    unindo e, conseqentemente, editando informaes que se encontram no repertrio

    cultural da sociedade. A bricolagem, assim como o pensamento mtico, a operao

    intelectual por excelncia da publicidade. Essa posio terica tambm a assumida pelo

    prprio mercado na figura do publicitrio brasileiro mais premiado internacionalmente,

    Washington Olivetto, que afirma ser o criativo um adequador de linguagem4.

    Como contribuio ao assunto, estudamos um dos mtodos de criao mais

    explorados no cotidiano das agncias de propaganda: a associao de idias5. Por meio

    dessa praxis, uma idia ligada, mesclada, ou amalgamada, outra, gerando uma nova

    informao a resposta dos profissionais que elaboram os materiais publicitrios ao

    desafio proposto em briefing. Apoiamos nossa argumentao inicialmente em Aristteles,

    para quem as idias podiam ser associadas por semelhana, contraste e contigidade. O

    filsofo David Hume acrescentou a essa classificao a associao por causa e efeito e

    suprimiu a de contraste por julg-la uma mescla entre a associao por semelhana e

    contigidade6. Recorremos ento a exemplos similares dados por Hume para melhor

    definirmos cada um desses tipos de associao: quando observamos uma paisagem

    reproduzida num quadro, nossos pensamentos so conduzidos cena original, o que

    consiste numa associao por semelhana. Quando se fala sobre um apartamento num

    determinado edifcio, pode-se pensar em outros apartamentos existentes ali; a associao

    se d ento por contigidade. E, se pensamos num ferimento, quase impossvel no

    refletirmos acerca da dor que o acompanha, sendo que a conexo de idias nesse caso de

    causa e efeito.

    Vejamos em um anncio pea mais representativa da publicidade impressa os

    diferentes elementos culturais associados que compem seu texto, aqui entendido como a

    sua dimenso verbal e visual. A proposio do anncio, expressa em seu ttulo, Use

    Valisre que o seu candidato vai para o 2 turno (fig. 1). Para chegar a ela, o redator

    associou o momento poltico do pas, ento s vsperas do segundo turno das eleies para

    governadores, idia de que s uma mulher com roupas ntimas atraentes seria capaz de

    levar um homem (seu candidato) a uma segunda sesso de sexo na mesma noite (causa e

    4 - Ver prefcio de Olivetto ao nosso livro Razo e sensibilidade no texto publicitrio, So Paulo: Futura, 2004. 5 - Conferir o ensaio Associao de idias e palavras na propaganda inserido em nossa obra Redao publicitria Estudos sobre a retrica do consumo, So Paulo: Futura, 2003. 6 - HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. In Os Pensadores . So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 40-41.

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    efeito). No campo visual vemos a foto de uma mulher numa lingerie provocante junto a

    um homem adormecido, ratificando assim a proposio verbal.

    Outro exemplo advm de um exerccio de associao de idias que demos a

    diversas turmas de estudantes de Publicidade e Propaganda na Escola Superior de

    Propaganda e Marketing em So Paulo e na Escola de Comunicaes e Artes da

    Universidade de So Paulo, assim como em oficinas de redao publicitria ministradas a

    profissionais de marketing e comunicao de empresas pblicas e privadas. O exerccio

    consistia em elaborar, com a ajuda de todo o grupo, um anncio para um zoolgico que,

    ento, comemorava mais de um sculo de existncia. Diante do desafio, tnhamos,

    obviamente, duas coordenadas que possibilitariam associaes criativas: a do mundo

    animal (zoolgico) e da temporalidade (mais de um sculo). Solicitamos assim que os

    participantes listassem, numa coluna, os animais capazes de atrair mais visitantes ao

    zoolgico. E, na outra coluna, a do tempo, que sugerissem imagens relacionadas

    longevidade.

    Na primeira coluna, do mundo animal, foram citados, sempre, o leo, o elefante, a

    girafa, a zebra, o macaco, o tigre, o jacar, e, vez por outra, bichos menos conhecidos,

    como o ornitorrinco, o coala, o canguru.

    Na segunda coluna, relacionada a um sculo de vida, surgiram, como imagens

    recorrentes, rugas, cabelos brancos, coluna vertebral avariada, bengala, dentaduras, calva e

    culos, entre outras.

    Uma vez orientados os participantes para que buscassem associar os animais de

    uma coluna s imagens da outra, o resultado, em todos os exerccios realizados, tanto com

    jovens universitrios quanto com executivos de marketing pouco afeitos a esse tipo de

    desafio, foi, com pequenas variaes, invariavelmente o mesmo:

    1. Urso grisalho.

    2. Tigre apoiado numa bengala.

    3. Elefante e suas mltiplas rugas.

    4. Girafa com a coluna vertebral torta.

    5. Macaco usando dentadura.

    6. Coruja de culos.

    7. Leo calvo.

    Se selecionamos a opo 3 desta lista de associaes rugas do elefante , temos

    uma criao igual a de um dos anncios premiados em Cannes, o mais importante festival

    de publicidade do mundo (fig. 2).

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    O resultado evidencia como possvel se chegar a solues criativas em

    propaganda por meio de simples associao de idias.

    A intertextualidade na bricolagem publicitria

    Diante de um job, as duplas de Criao so movidas pelo esprito bricoleur

    precisamente na hora do brainstorming prtica em que o redator e o diretor de arte

    lanam livremente idias para depois aperfeio-las, adequando-as ao pedido de trabalho.

    Para isso, vital que tenham um rico background cultural e estejam empenhados

    constantemente no seu alargamento, buscando no prprio estoque de signos de sua

    comunidade a matria-prima para alcanar a soluo mais adequada ao problema de

    comunicao do anunciante. A rotina dos criativos exige, pois, que aperfeioem a

    habilidade de combinar os variados discursos por meio do jogo intertextual.

    Como a mensagem de propaganda visa influenciar um pblico definido, ainda que

    formado por um contingente principal e outro secundrio, recomendvel o uso, pela

    dupla de Criao, no processo de bricolagem, de discursos j conhecidos desse target. O

    objetivo, obviamente, facilitar a sua assimilao, dando-lhe o que ele de certa forma j

    conhece, embora haja um trabalho para vestir esse conhecimento j apreendido que a

    prpria finalidade do ato criativo publicitrio.

    Esses materiais culturais, populares ou eruditos, so utilizados como pontos de

    partida para a criao das peas de propaganda, aparecendo sob a forma de citao direta

    ou indireta, o que nos leva ao conceito de dialogismo de Bakhtin. Ou seja: um texto

    sempre dialoga com outros, sendo esse o princpio constitutivo da linguagem7. A trama de

    todo texto , portanto, tecida com elementos de outros textos, revelando nesse cruzamento

    as posies ideolgicas de seu enunciador. E essa tessitura obtida por meio da citao, da

    aluso ou da estilizao. Assim, vamos desaguar nas parfrases (quando um texto cita

    outro para reafirmar suas idias) e nas pardias (quando um texto cita outro para contestar

    seu sentido).

    H casos em que a pardia se d apenas no plano verbal, como num premiado

    anncio da Igreja Episcopal americana, no qual temos a imagem de Cristo na cruz e o

    7 - BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997.

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    ttulo O heri morre no final, que contradiz a moral de happy end dos filmes

    hollywoodianos, nos quais sempre o bandido quem morre no final.

    Tambm h casos em que a pardia se estabelece tanto no campo visual quanto no

    verbal, como no anncio do detergente Limpol (fig. 3): a imagem traz o garoto-

    propaganda Carlos Moreno travestido de Che Guevara (associao por semelhana) e o

    ttulo Hay que endurecer con la gordura sin perder la ternura con las manos jams!,

    criado a partir da clebre sentena do guerrilheiro Hay que endurecer sin perder la ternura

    jams.

    A utilizao de pardias se d tambm na elaborao do slogan, que finaliza a

    mensagem verbal do anncio, assim como o ttulo que a inicia. Um bom exemplo o das

    Loes Dove, que se apropria da frase O sol nasceu para todos, alterando-a para uma

    nova assertiva: O sol nasceu para todas. Ou seja, para todas as mulheres, uma vez que o

    produto direcionado ao pblico feminino e o visual dessa campanha publicitria traz

    mulheres cujo corpo no corresponde ao modelo oficial de beleza.

    Outros tantos slogans, construdos a partir de frases, expresses, formas fixas ou

    padres lingsticos comuns ao nosso repertrio cultural, podem ser aqui elencados:

    O slogan da Vasp A melhor distncia entre dois pontos tem como ponto de

    partida a sentena matemtica A menor distncia entre dois pontos uma reta. O slogan

    dos relgios Dumont, O primeiro a cada segundo, trabalha com o universo semntico do

    produto relgio (segundo), e dialoga com um slogan clssico do Reprter Esso, O

    primeiro a dar as ltimas.

    O slogan da rede de livrarias Siciliano, Ler ou no ser, parodia o To be or not to

    be shakespeareano.

    A prpria publicidade alimenta o repertrio cultural da comunidade com novas

    proposies, tambm depois reaproveitadas. O slogan Porque ns somos carnvoros, da

    Churrascaria Marius, por exemplo, uma citao do slogan Porque ns somos

    mamferos, do leite Parmalat.

    Vamos agora nos deter num caso instigante de citao-clich localizada no plano

    visual envolvendo distintos contextos culturais. Para isso, selecionamos trs cartazes

    produzidos em diferentes pases, embora relativos a causas semelhantes: recrutamento de

    soldados para o exrcito americano (fig. 4), alistamento para o servio militar britnico

    (fig. 5) e convocao de voluntrios para o movimento brasileiro MMDC (fig. 6).

    A imagem que domina os trs cartazes de um indivduo de feies austeras,

    apontando o dedo indicador para o leitor, numa ntida postura coercitiva. Na propaganda

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    americana, ancorada no ttulo I want you for U.S. Army. Nearest Recruiting Station,

    este indviduo o Tio Sam; na britnica, que traz a chamada Britons want you. Join your

    countrys army! God save the king, um comandante; na brasileira, associado s frases

    de ordem Voc tem um dever a cumprir. Consulte a sua conscincia!, um soldado.

    Mas a rede de significao resultante da citao de uma imagem fundadora pode

    ser bem mais complexa, como verificamos nas trs figuras a seguir. A primeira delas o

    leo sobre tela de Manet, de 1863, Le dejeuner sur lherbe (fig. 7). A segunda, o

    anncio da marca Yves Saint-Laurent (fig. 8), utiliza essa pintura como ponto de partida,

    mas resulta num discurso com nfase em outros valores sociais. A terceira, o anncio da

    Women (fig. 9), tambm se inspira no quadro de Manet, e opera leitura distinta da

    reproduzida no anncio da YSL.

    J uma parfrase dupla, em que o texto verbal e o visual trazem uma citao,

    pode ser encontrada nesse anncio da Sabesp (fig. 10). No mbito das imagens, temos a

    foto de um sabonete Lux (o produto citado) e, no plano lingstico, temos o ttulo Se

    no existisse a Sabesp, 9 entre 10 estrelas do cinema no tomariam banho, que dialoga

    com o famoso slogan dessa marca de sabonete 9 entre 10 estrelas do cinema usam Lux.

    H numerosos casos em que a pardia ou a parfrase resulta no apenas de uma

    citao no campo verbal ou na instncia visual do anncio, ou mesmo em ambos de forma

    concomitante, mas precisamente da interao dessas duas dimenses. Exemplifiquemos

    com um dos anncios da campanha para restaurao do Parque Histrico do Pelourinho,

    em Salvador (fig. 11). O ttulo Os novos baianos uma referncia a um conhecido grupo

    de msicos da Bahia. Mas a citao ganha novo sentido quando, no plano das imagens, em

    vez da foto desses msicos, temos a de trs personalidades mundiais (Paul Simon, Akio

    Morita e Julio Iglesias), que contriburam com doaes para a causa do Pelourinho,

    conforme o texto esclarece.

    Sintomaticamente, o movimento dos Adbuster, que combate a publicidade

    dominante, se vale dos mesmos procedimentos para criticar as campanhas publicitrias

    de anunciantes globais, como as pardias e as parfrases nos planos verbal e/ou visual.

    Podemos comprovar esse ponto de vista com a consagrada campanha mundial da

    vodka Absolut, cujos anncios promovem associao entre o formato diferenciado da

    garrafa da bebida e as mais variadas referncias culturais, como smbolos representativos

    de cidades, manifestaes artsticas, eventos populares, comportamentos sociais etc.

    Vejamos um anncio dessa campanha intulado Absolut Rio (fig. 12).

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    Imitando o layout e o conceito criativo da campanha da Absolut, os Adbuster

    criaram anncios-pardias, como esse, com o ttulo Absolut AA, abordando as vtimas

    do lcool em busca de cura nos Alcolicos Annimos (fig. 13).

    Assim, ao reencenar o passado, por meio da intertextualidade, atualizando-o com

    um novo sentido que, no entanto no prescinde daquele que lhe deu origem, a publicidade

    se soma a outros produtos mediticos que, inegavelmente, vo tecendo a trama das

    identidades culturais.

    O ready-made na criao publicitria

    O tema da intertextualidade nos leva obrigatoriamente ao universo do ready-made,

    do deslocamento de materiais j prontos para a moldura da propaganda.

    O ready-made foi trazido cena nas artes plsticas por Marcel Duchamp e

    consistia em separar um objeto de seu contexto original, alterando assim seu significado,

    ou retificando-o8.

    Essa interveno que Duchamp chamava de assistir, corresponde, na atividade

    publicitria, ao dos redatores e diretores de arte quando deslocam frases e imagens j

    conhecidas do pblico para a pea que esto criando.

    Num anncio que incorpora um ready-made, a dupla de Criao faz uso, no

    processo associativo, daquilo que Maingueneau denominou de enunciados fundadores,

    pois j so tesouro da coletividade, gozando do privilgio da intangibilidade. Isso porque

    esses enunciados no podem ser resumidos nem reformulados, constituem a prpria

    Palavra, captadas em sua fonte9.

    Dentre os ready-mades de Duchamp, h trs mais adequados nossa discusso do

    que os lendrios Roda de bicicleta e Fonte. O primeiro deles Pliantde voyage,

    no qual temos a capa de uma mquina de escrever, sobre um tampo de madeira, com a

    marca Underwood visvel (fig. 14). Das vrias interpretaes possveis, uma delas seria

    o apelo ao pblico que a palavra underwood (debaixo da madeira) suscita: haveria algo

    para ser visto abaixo da capa. Outra interpretao seria a semelhana da capa com uma

    saia de mulher e a palavra underwood (que poderia ser traduzida tambm como

    8 - CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: o engenheiro do tempo perdido. So Paulo: Perspectiva, 2000. 9 - MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do discurso. Campinas: Pontes, 1989. p. 100.

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    debaixo da mata), remetendo aos plos pubianos femininos. No por acaso que a capa

    da mquina/saia nos remete ao mundo do consumo e da moda.

    O segundo ready-made que nos interessa Apolinre Enlameled (fig. 15), uma

    homenagem ao poeta Guillaume Apollinaire. Duchamp utilizou integralmente um anncio

    das tintas Sapolin, colocando, em sua extremidade superior uma tarja escura na qual

    escreveu Apolinre Enlameled. E, na extremidade inferior, inseriu uma espcie de

    assinatura e a data (1916/1917).

    justamente essa assistncia, no a objetos mas a frases e imagens, que os

    criativos, nas agncias de propaganda, vm fazendo na elaborao de tantos anncios.

    Uma das campanhas publicitrias mais polmicas nos ltimos anos foi a da marca

    Benetton. Algumas de suas peas so legtimos ready-mades. Em uma delas (fig. 16), o

    seu idealizador, Oliviero Toscani, apropriou-se de uma foto, feita por Thereza Frare, de

    um doente terminal de AIDS junto sua famlia, e apenas sobreps num canto dela o

    logotipo Benetton10.

    O terceiro ready-made que selecionamos L.H.O.O.Q, uma provocativa

    retificao do quadro Mona Lisa (fig. 17). Duchamp toma a obra-prima de Da Vinci e

    emascula a modelo, colocando-lhe bigode e cavanhaque, e a inscrio L.H.O.O.Q (em

    francs, elle a chaud au cul; em portugus, algo como ela tem fogo no rabo). Sem

    entrar nas especulaes surgidas a respeito dessa frase, o que nos importa o irreverente

    esprito bricoleur do artista, que a publicidade tem igualmente copiado, sobretudo a partir

    de imagens fundadoras.

    Incontveis so os exemplos de anncios que parodiam a Mona Lisa, como o do

    amaciante de roupas Mon Bijou (fig. 18), produto da Bom Bril, da mesma campanha do

    anncio com a imagem de Che Guevara, citado antes.

    Uma campanha institucional da Pfizer ilustra o processo criativo do ready-made

    no apenas como um ponto de partida para peas de publicidade, mas como ponto de

    chegada de quase toda a sua base discursiva, numa espcie de apropriao por inteiro de

    um discurso j absorvido socialmente.

    Todos os anncios dessa campanha so estruturados a partir da citao completa de

    diferentes discursos culturais. Um deles tem como matriz a letra da cano Do seu lado,

    do compositor Nando Reis:

    Faz muito tempo, mas eu me lembro, voc implicava comigo.

    10 - TOSCANI, Oliviero. A publicidade um cadver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 59-60.

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    Mas hoje eu penso que tanto tempo me deixou muito mais calmo O meu comportamento egosta, o seu temperamento difcil Voc me achava meio esquisito e eu te achava to chata Mas tudo que acontece na vida tem um momento e um destino Viver uma arte, um ofc io S que preciso cuidado Pra perceber que olhar s pra dentro o maior desperdcio

    O teu amor pode estar do seu lado O amor o calor que aquece a alma O amor tem sabor pra quem bebe a sua gua

    Eu hoje mesmo quase no lembro que j estive sozinho Que um dia eu seria seu marido, seu prncipe encantado Ter filhos, nosso apartamento, fim de semana no stio Ir ao cinema todo domingo s com voc do meu lado O amor o calor que aquece a alma.11

    A comunicao da Pfizer assume a citao direta, adotando aqui o argumento de

    autoridade, uma vez que o artista cultuado por um pblico fiel ao tipo de msica que ele

    compe. Assim ficou o texto do anncio, no qual a letra da msica, em aspas, funciona

    como gancho para que o anunciante expresse seu posicionamento ligado paixo pelo

    ser humano, de quem diz estar sempre ao lado:

    Paixo segundo Nando Reis: Faz muito tempo, mas eu me lembro, voc implicava comigo. Mas hoje eu penso que tanto tempo me deixou muito mais calmo. O meu comportamento egosta, o seu temperamento difcil. Voc me achava meio esquisito e eu te achava to chata. Mas tudo que acontece na vida tem um momento e um destino. Viver uma arte, um ofcio. S que preciso cuidado. Pra perceber que olhar s pra dentro o maior desperdcio. O teu amor pode estar do seu lado.O amor o calor que aquece a alma. O amor tem sabor pra quem bebe a sua gua. Eu hoje mesmo quase no lembro que j estive sozinho.Que um dia eu seria seu marido, seu prncipe encantado. Ter filhos, nosso apartamento, fim de semana no stio. Ir ao cinema todo domingo s com voc do meu lado. O amor o calor que aquece a alma. Para Nando Reis, paixo significa estar do seu lado. Para a Pfizer, paixo o que faz a gente pesquisar a cura para os males que afetam a qualidade de vida dos homens e das mulheres. E a gente faz isso todos os dias. Com paixo.

    Tal estratgia visa, portanto, transferir para a imagem da marca o discurso ou a

    reputao de uma celebridade.

    Vejamos agora um exemplo internacional, clssico, que fez o uso do j pronto

    como estratgia criativa.

    11 - REIS, Nando. Do seu lado. Disponvel em: Acesso em: 10 abr. 2006.

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    Escolhemos uma campanha publicitria clssica da Apple, que se vale do ready-

    made no campo visual, trazendo fotos divulgadas na imprensa de personalidades de

    renome mundial, exatamente pelo fato de que pensavam diferente da maioria. Esse pensar

    diferente (Think different) , ento, associado marca do anunciante. As fotos em

    questo so retratos consagrados de Picasso, Einstein, Gandhi, Hitchcock, John Lennon e

    Neil Amstrong, entre outros.

    Reproduzimos uma delas, a de Gandhi, que correu mundo e to bem a fragilidade

    fsica de um homem que pregava veementemente a filosofia da no-violncia (fig. 19).

    Agora vejamos a interveno feita nessa foto pela publicidade, que apenas a

    reenquadra e acrescenta a logomarca da Apple e o slogan da campanha (fig. 20).

    Exemplo bem brasileiro, seguindo essas caractersticas, de ancorar a criao

    publicitria em fotos j consagradas, a campanha do Instituto Ethos que traz em seus

    anncios imagens colhidas pela cmera de Sebastio Salgado, um dos mais importantes

    fotgrafos documentais do mundo (figuras 21 e 22).

    Alm de transpor para o plano visual dos anncios as fotos em preto e branco de

    Salgado, a campanha tambm expe como ttulo uma sentena j pronta, de cunho

    religioso cristo, Filho, um dia isso tudo ser seu. Esta citao da Bblia12 ganha um

    sentido irnico ao ancorar imagens de meninos cortadores de cana (fig. 23) e de urubus

    sobrevoando montanhas de lixo (fig. 24).

    Em suma, a freqente utilizao de ready-mades , sem dvida, uma das

    encenaes mais interessantes da propaganda no palco da hiper-realidade, multiplicando

    diariamente os simulacros e fazendo da astcia intertextual um infinito work in progress.

    Referncias bibliogrficas

    BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997. CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: o engenheiro do tempo perdido. So Paulo: Perspectiva, 2000. CARRASCOZA, Joo Anzanello. Redao publicitria Estudos sobre a retrica do consumo. So Paulo: Futura, 2003.

    12 - A passagem bblica referida est no episdio das tentaes que o diabo acometeu a Cristo: O diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. E lhe disse: "Eu te darei toda a autoridade e esplendor deles, porque me foram dados e posso d-los a quem quiser. Ento, se me adorares, tudo ser teu". LUCAS. BibleGateway.com. Disponvel em: Acesso em: 17 abr. 2006.

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    HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. In Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 40-41. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do discurso. Campinas: Pontes, 1989. p. 100. ROCHA, Everardo P. Guimares. Magia e capitalismo. Um estudo antropolgico da publicidade. 2. ed., So Paulo: Brasiliense, 1990. p. 58-59. TOSCANI, Oliviero. A publicidade um cadver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 59-60.

    Figuras

    Figura 1 Figura 2

    Figura 3 Figura 4

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    Figura 5 Figura 6

    Figura 7

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    Figura 9 Figura 10

    Figura 11 Figura 12

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    Figura 13 Figura 14

    Figura 15 Figura 16

    Figura 17 Figura 18

    Figura 19 Figura 20

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    Figura 21 Figura 22

    Figura 23 Figura 24

    Crditos

    Figura 1 Valisre: 15o Anurio do Clube de Criao de So Paulo, p.153. Figura 2 Zoolgico de Buenos Aires: Disponvel em: Acesso em: 13 abr. 2006. Figura 3 Limpol: Gonalves, Maria Silvia. Leitura intertextual na escola , Dissertao de Mestrado, Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, p. 100. Figura 4 US Army: Disponvel em: Acesso em: 03 jan. 2006. Figura 5 Exrcito ingls: Disponvel em: Acesso em: 03 jan. 2006. Figura 6 MMDC: Disponvel em: Acesso em: 03 jan. 2006. Figura 7 Manet: Nret, Gilles. douard Manet. Germany Editora Taschen, Traduo: Joo Bernardo Bolo, 2003. Figura 8 YSL: Disponvel em: Acesso em: 03 abr. 2006. Figura 9 Women: Disponvel em: Acesso em: 03 abr. 2006. Figura 10 Sabesp: Revista Propaganda, 1986. Figura 11 Pelourinho: Revista Veja, 6 de abril de 1988. Figura 12 Absolut: Carto Postal Multicolecionismo,

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    Figura 13 Adbuster: Disponvel em: Acesso em: 03 abr. 2006. Figura 14 Pliantde voyage: Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997, imagem 30. Figura 15 Apolinre Enlameled: Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997, imagem 31. Figura 16 Benetton: Toscani, Oliviero. A publicidade um cadver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, Caderno de anncios, p. 6. Figura 17 L.H.O.O.Q: Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997, imagem 33. Figura 18 Mon Bijou: Revista Cludia, julho de 1998. Figura 19 Gandhy: Disponvel em: Acesso em: 26 mar. 2006. Figura 20 Apple: Disponvel em Acesso em: 16 dez. 2005. Figura 21 Foto de Sebastio Salgado: Disponvel em: Acesso em: 08 abr. 2006. Figura 22 Foto de Sebastio Salgado: Disponvel em: Acesso em: 08 abr. 2006. Figura 23 Instituto Ethos: Revista Repblica, setembro de 2000. Figura 24 Instituto Ethos: Revista Repblica, setembro de 2000.