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220/2005 1/33 Processo n.º 220/2005 (Recurso Civil e Laboral) Data : 16 de Fevereiro de 2006 ASSUNTOS : - Acção de reivindicação - Posse derivada do contrato-promessa - Procuração consigo mesmo - Irrevogabilidade e não caducidade do mandato SUMÁRIO: 1. Na reivindicação para que o réu triunfe na acção é necessário que prove que tem título ou situação legal que justifique a sua posse. 2. Não é possível qualificar a priori de posse ou mera detenção o poder de facto exercido sobre a coisa objecto do contrato prometido entregue antecipadamente, tudo dependendo do animus que acompanhe esse corpus. 3. A irrevogabilidade e não caducidade do mandato no interesse

Processo n.º 220/2005 · - Procuração consigo mesmo ... quando a escritura pública de compra e venda, ... um inventário obrigatório por óbito de D,

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220/2005 1/33

Processo n.º 220/2005 (Recurso Civil e Laboral)

Data: 16 de Fevereiro de 2006

ASSUNTOS:

- Acção de reivindicação

- Posse derivada do contrato-promessa

- Procuração consigo mesmo

- Irrevogabilidade e não caducidade do mandato

SUMÁRIO:

1. Na reivindicação para que o réu triunfe na acção é necessário

que prove que tem título ou situação legal que justifique a sua posse.

2. Não é possível qualificar a priori de posse ou mera detenção

o poder de facto exercido sobre a coisa objecto do contrato prometido

entregue antecipadamente, tudo dependendo do animus que acompanhe

esse corpus.

3. A irrevogabilidade e não caducidade do mandato no interesse

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do mandatário ou no interesse comum resulta ipso jure da constatação de

interesses do acto gestório que se não confinam aos do mandante.

4. O possuidor da coisa prometida comprar, transferida e paga,

actuando com o animus domini, terá tutela dos seu direito contra outro

titular que se arrogue direito que lhe seja hostil.

O Relator,

João A. G. Gil de Oliveira

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Processo n.º 220/2005 (Recurso cível)

Data: 16/Fevereiro/2006

Recorrente: A

Recorrida: B

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA

INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – RELATÓRIO

Na acção de reivindicação interposta por B contra os

ocupantes da fracção “J” R/C do prédio sito na XXX; A; e C foi

proferida a seguinte decisão:

“Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga a acção

procedente e provada e, em consequência decide:

【據上論結,本法庭裁定訴訟理由成立,裁決如下:】

1. Declarar a Autora B como a legítima proprietária da fracção autonoma, designada

《J》R/C, do prédio, sito na XXX nº 412ª-438 e 719ª-A a 745 da XXX, em regime de

propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o

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nº 21715 a fls. 114v do livro B72, e a ocupação da mesma por parte dos RR. como

sendo ilegítima e ilegal.

【宣告原告人 B 為位於 XX 大馬路 412 號 A 至 438 號、XXX719 號 A 至 745 號“J”

地舖之獨立單位之所有權人,該單位登記在澳門物業登記局第 B72 冊第 114 頁背

面,編號為 21715,並宣告被告佔用該單位屬不當及違法。】”

2. Condenar os Réus a reconhecer o referido direito de propriedade da Autora sobre

a fracção, ora reivindicada, e a restitui-la livre e devoluta de pessoas e bens à Autora.

【判被告承認原告擁有該單位之所有權及將該單位返還予原告。】

***

3. Condenar, os Réus a pagar à Autora a quantia que se liquidará em execução de

sentença, mas que desde já é fixada no valor de MOP$8,000.00 por mês, desde

23.09.2000, quantia equivalente aos prejuízos da A., por lucros cessantes derivados da

impossibilidade de obter os rendimentos que resultariam do seu uso (renda) que a

Autora obteria pelo arrendamento da fracção ora reivindicada, acrescida dos

respectivos juros legais, calculados a partir daquela data, que se venham a vencer até

integral pagamento.

【判被告向原告支付每月澳門幣捌仟元之費用,自 2000 年 9 月 23 日起計算,作

為原告之消極損害賠償,因為倘非被告非法佔用該單位,原告可出租該單位而取

得租金之收入,總金額於執行判決時結算,並附加按法定利率計算之利息,自上

述日期起計算,直至全數支付。】

***

4. Julgar-se improcedentes os pedidos dos Réus.

【判被告之請求理由不成立。】”

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A, Réu na acção que julgou procedente a acção de reivindicação

proposta pela A. B, não se conformando com a decisão proferida, dela

interpôs recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

Entre os principais factos alegados pelo Réu, ora Recorrente, para provar o

seu direito e consequentemente a improcedência da acção interposta pela Autora, ora

Recorrida, destacam-se:

Que, quando a escritura pública de compra e venda, celebrada em 05 de

Julho de 2000 entre a Autora, ora Recorrida e a Companhia denominada “Sociedade

de Investimento e Construção XXX.”, já tinha sido instaurado pelo Ministério Público

um inventário obrigatório por óbito de D, originária promitente compradora da

fracção objecto do litígio;

Por essa via, a fracção reivindicada pela Autora, ora Recorrida, fazia,

àquela data, já parte da herança deixada por óbito de D;

O ora Recorrente é irmão da falecida D, e foi nomeado no âmbito do

processo de inventário obrigatório, cabeça-de-casal e representante legal do menor E,

único herdeiro daquela;

A Autora, ora Recorrida, outorgou a escritura pública de compra e venda da

fracção objecto desta acção, na qualidade de compradora e não como procuradora da

falecida D;

Não existindo na escritura pública qualquer menção à dita procuração;

Sendo que, a falecida havia outorgado, em 07 de Dezembro de 1998,

procuração a favor da Autora, relativamente a esta mesma fracção, com carácter

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irrevogável, com poderes para fazer negócio consigo mesmo e sujeita a condição

através da inclusão de uma cláusula temporal a qual ditava que: “os podres

conferidos nesta procuração só poderiam ser utilizados a partir de 06 de Dezembro de

1999”;

Foi igualmente dito pelo ora Recorrente que a falecida D havia pago a

totalidade do preço da fracção, na data da outorga do contrato promessa e que tal

facto havia sido reconhecido pela Autora, ora Recorrente no âmbito do processo de

inventário obrigatório;

Pelo que, à data do seu falecimento esta tinha a posse exclusiva da fracção,

de forma pública, pacífica, ininterrupta e de boa fé, desde, pelo menos, a data da

outorga do contrato promessa;

Assim, o ora Recorrente, na qualidade de cabeça-de-casal, com o decesso

daquela sucedeu à falecida nessa posse sobre a fracção;

Encontrando-se nessa posse desde data anterior à celebração da escritura

pública de compra e venda e respectivo registo, ocorridos ambos em 05.07.2000;

E que dessa posse deriva a presunção de propriedade por parte do Réu, ora

Recorrente;

Concluindo pela ineficácia da compra e venda realizada entre a Autora, ora

Recorrida e a sociedade, em relação ao herdeiro e ao Réu, ora Recorrente, na

qualidade de legal representante daquele;

Fundamentando que a Autora, ora Recorrida, não podia desconhecer, sem

culpa, a posse o direito de propriedade que o a Réu, ora Recorrente, vinha exercendo

sobre a fracção;

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E que a transmissão da propriedade não foi acompanhada pela transmissão

da respectiva posse;

E ainda que a comunicação da venda apenas foi efectuada pela Autora, ora

Recorrida ao Réu, ora recorrente, em 23.07.2000;

Por outro lado, o Réu, ora Recorrente, sustentou ainda um outro argumento

relacionado com o factos dos poderes de representação conferidos pela falecida à

Autora, ora Recorrida, estarem caducos;

Pedindo que fosse declarada a ineficácia jurídica em relação ao Réu, ora

Recorrente, da aquisição, por escritura pública, do direito de propriedade, da fracção

e que fosse ordenado o cancelamento do registo da mencionada transmissão;

Condenando-se ainda a Autora, ora Recorrente, a restituir a aludida fracção

autónoma ao acervo hereditário da sucessão aberta por óbito de D;

O Réu, ora Recorrente, sustentou ainda que a procuração outorgada pela

falecida D em 07.12.1998 havia caducado;

Porquanto a procuração continha uma cláusula temporal, a qual

determinava expressamente que só poderia ser utilizada a partir de 06.12.1999;

Ora, tendo a Mandante falecido em 02.12.1999, a procuração deixou de

produzir quaisquer efeitos jurídicos a partir dessa data;

Tendo a Autora, ora Recorrida, alegado que “em 05-07-2000, a A. no uso

dos poderes que lhe foram validamente conferidos, acordou com a sociedade

vendedora revogar o identificado contrato-promessa”, sem que tenha junto qualquer

prova documental comprovativa dessa mesma revogação;

Sucede que a procuração já estava caducada (caducidade do mandato) por

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morte da Mandante – alínea a) do art.º 1100.º CCM;

Pois apesar do mandato ter sido conferido no interesse da Mandatária,

estava sujeito a uma cláusula temporal;

Só a partir de 06 de Dezembro de 1999 o Mandato poderia ser exercido e

produziria então efeitos jurídicos em relação a terceiros;

Concluindo-se que a procuração não poderia ser então válida e eficazmente

usada –art.º1175.º do C.C. – art.º 1101.º CCPM;

E que a revogação do referido contrato-promessa de compra e venda,

também não foi válida e eficazmente realizada;

Concluindo-se, consequentemente, que a escritura pública de compra e

venda também o não foi;

Outro aspecto igualmente importante e salientado na contestação

apresentada pelo Réu, ora Recorrente, foi o facto da legítima possuidora (falecida D)

ter ocupado a fracção, desde a data da celebração do contrato promessa (26.08.1993)

com a sociedade, na qual exercia a sua actividade como mediadora imobiliária,

conservando-a, mantendo nela empregados encarregados da sua guarda e

manutenção e exercendo a sua qualidade de legítima possuidora da mesa, que

efectivamente era;

Isto é, a falecida D, detinha a posse da fracção objecto do presente litígio

deste a data da outorga do contrato-promessa com a sociedade até à data da sua

morte, tendo-se a mesma transmitido para o seu herdeiro e passando a fazer parte da

herança aberta pelo seu óbito;

O Réu, ora Recorrente, defende-se ainda por impugnação, dando por

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reproduzidos os argumentos utilizados em sede de excepções;

Acrescentando ainda que a Autora, ora Recorrida, conhecia perfeitamente

da legítima ocupação da mencionada fracção autónoma, por parte do Réu, ora

Recorrente;

E que não se tratando de uma ocupação ilícita a mesma não acarreta

quaisquer prejuízos à Autora, ora Recorrida;

A Autora, ora Recorrida, agiu com manifesto “animus decipiendi”, omitindo

factos e invocando prejuízos que não teve, com fundamento na posse abusiva e

ilegítima do Réu, ora recorrente;

A Autora, ora Recorrida sabia muito bem a que título o Réu, ora Recorrente,

ocupa a mencionada fracção autónoma;

De onde se concluiu que a acção de reivindicação da posse não poderia

proceder por não se verificar o requisito essencial, subjectivo da ocupação ilegítima

do imóvel;

Sendo a jurisprudência praticamente unânime no que respeita à exigência

cumulativa de dois requisitos: a) que o autor seja proprietário da coisa reinvindicada;

b) que o réu seja detentor ilegítimo; para que possa proceder a acção de

reinvindicação da propriedade;

O que não aconteceu no caso em apreço;

O Réu, ora Recorrente, tentou demonstrar, por diversas vias, que aqueles

requisitos não se encontravam preenchidos e, consequentemente, que a acção

intentada pela Autora, ora Recorrida, não poderia proceder;

Um dos argumentos utilizados prenderam-se com a questão da procuração e

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da revogação do contrato promessa outorgado entre a falecida D e a Companhia

vendedora;

A este propósito desenvolveu o Mm.º Juiz a tese da irrevogabilidade da dita

procuração e apesar de a considerar uma questão falsa, dedicou grande parte da sua

fundamentação à mesma;

Não é irrelevante o facto da procuração não ter sido utilizada pela Autora,

ora Recorrida, quer na revogação do contrato promessa quer na escritura púbica de

compra e venda;

A Autora, ora Recorrida, não fez uso da dita procuração porquanto:

a. Bem sabia que o poder para proceder à revogação do

contrato-promessa anteriormente celebrado entre a Mandante e a Companhia

Vendedora, caía fora dos limites dos poderes conferidos por aquela mesma

procuração;

b. Por outro lado, na data em que outorgou a escritura pública de compra

e venda bem sabia do falecimento da Mandante e que a cláusula temporal poderia

operar e que:

c. A dita procuração apenas produziria os seus efeitos a partir de

06.12.1999, e rendo a mandatária falecido uns dias antes, tal poderia integrar uma

das causas justas, necessárias e suficientes, para afastar a irrevogabilidade da

mesma;

Ao logo do processo a Autora, ora Recorrida, não logrou fazer qualquer

prova de que procedeu a essa mesma revogação, nos termos e sob a forma legalmente

exigível, essencial e determinante para a realização do negócio posterior (art.º 404.º,

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n.º 2 do C.C.M.);

Pelo que, a Autora, ora Recorrida nunca poderia ter feito uso da procuração

para revogar o contrato-promessa pois bem sabia que o fazia ao arrepio dos poderes

que lhe foram conferidos;

Isto juntamente com o facto dela bem saber que a fracção se encontrava na

posse da Mandante até ao seu falecimento e que posteriormente integrou o seu acervo

hereditário, impediam-na de realizar a escritura pública directamente com a

Companhia vendedora;

Aliás, o Mmº Juiz deu como assente que a Autora, ora Recorrida, havia

outorgado a escritura pública de compre e venda do imóvel em crise, na qualidade de

compradora e não como procuradora da falecida D;

Como também deu por provado o facto da Mandante D ter a posse da

referida fracção e ter pago, na data da outorga do contrato-promessa de compra e

venda, a totalidade do preço da fracção;

Assim, ao contrário do defendido pelo Mm.º Juiz e considerando os factos

dados como assentes pelo mesmo relativamente a esta matéria, a questão da

procuração tem repercussões directas na acção em apreço;

Na medida em que, para alguém intentar uma acção de reivindicação da

propriedade tem que ter título suficiente e legítimo para o fazer;

Assim se concluindo que:

a. A procuração não poderia ser então válida e eficazmente usada – art.º

265.º, n.º 3 do C.C. (art.º 258.º do C.C.M.) e art.º 1175.º do C.C. (art.º 1101.º CCM),

na media em que, mesmo tendo sido conferida a favor da mandante, a mesma, por

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conter uma cláusula temporal (constituindo esta uma justa causa), caducaria por

morte da mandatária;

b. A revogação do referido contrato-promessa de compra e venda,

também não foi válida e eficazmente realizada (art.º 404.º, n.º 2 do C.C.M.); e

c. A escritura pública de compra e venda também o não foi;

E consequentemente por ser considerar que a escritura pública de compra

e venda enfermou de vícios, deveria o Mm.º Juiz ter julgado a mesma ineficaz em

relação ao herdeiro da falecida, aqui representado pelo Réu, ora recorrente;

Outro aspecto fundamental na apreciação desta questão prende-se com a

posse titulada, legítima e conhecida da falecida D sobre a dita fracção;

Resultou igualmente provado que a falecida D, ocupava a fracção

referenciada, desde a data da outorga do contrato promessa de compra e venda, lá

exercendo a sua actividade profissional.

E ainda, que por morte desta sucedeu-lhe um único herdeiro, seu filho

menor e que por testamento cerrado a mesma nomeou como seu executor

testamentário o Réu, ora Recorrente A;

Assim, a posse que a mesmo detinha sobre a fracção, em resultado do

contrato-promessa de compra e venda celebrado e pagamento efectuado da totalidade

do preço, transmitiu-se para o seu herdeiro desde a data da sua morte (art.º 406.º, n.º

1 do C.C.M.);

“Havendo sucessão na posse, do herdeiro ou legatário, a posse do de

cujus continua, ipsu jure e automaticamente, no sucessor, (....) E, a posse, em princípio,

não é nova: a posse continua a ser a antiga, com todos os seus caracteres, de boa ou

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má-fé, titulada ou não titulada, pacífica ou violenta.” (Pires de Lima e Antunes Varela,

anotação 3, art.º 1255.º do C.C. e Menezes Cordeiro, A. Posse, 2ª edição, pág. 109).

Vide ainda a título de exemplo o Acórdão proferido pelo Tribunal da

Relação de Lisboa de 26.11.1992, no âmbito do processo n.º 49236, que nos diz que:

“Por morte do possuidor a posse dele passa para os seus herdeiros e sucessores,

desde o momento do decesso daquele”.

“Por isso, os sucessores dos bens que constituem o acervo da herança são

considerados para todos os efeitos, possuidores daqueles bens independentemente de

qualquer apropriação material desses bens”.

De onde se pode concluir que o Réu, ora Recorrente, à semelhança da

falecida D, ocupa de forma legítima, titulada, pública, ininterrupta e de boa fé a

mencionada fracção (art.º 1184.º, n.º 2 do C.C.M.);

E aquando da outorga da escritura pública de compra e venda a Autora,

ora Recorrida não podia desconhecer, sem culpa, a posse e o direito de propriedade

daí derivado, que o Réu, ora Recorrente, na qualidade de cabeça-de-casal, vinha

exercendo sobre a dita fracção;

Afastando-se assim a presunção derivada do registo, da propriedade da

Autora, ora Recorrida, sobre a fracção;

O art.º 7.º do Código do Registo Predial diz-nos que “O registo definitivo

constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos

termos em que o registo o define”;

Ora tratando-se de uma presunção, a mesma poderá sempre ser ilidida

pelas partes;

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Conforme o estatuído no art.º 1193.º, n.º 1 do Código Civil de Macau, se a

posse for anterior à data do registo, como《in casum》prevalece a presunção fundada

na posse;

Dizendo-nos, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de

Lisboa de 13.02.2001 que: ”O registo predial tem uma eficácia presuntiva, podendo

verificar-se um conflito entre aquela e a presunção derivada da posse, sendo este

resolvido a favor desta, excepto se houver uma presunção regista anterior ao início de

tal posse, sobrepondo-se, desta sorte, o usucapião ao registo.”;

Ora, no caso vertente, a eficácia presuntiva do registo da aquisição da

Autora, ora Recorrida, é afastada pela presunção derivada da posse do Réu, ora

Recorrente, sendo que o registo apenas prevaleceria se fosse anterior à data dessa

mesma posse;

O que não sucedeu;

“Entre nós, o registo predial tem efeito meramente declarativo e não

constitutivo, pelo que a inscrição do acto no registo não o defende contra os efeitos de

declaração de nulidade, para além de sempre ser possível a prova de não

correspondência à realidade do facto inscrito” (vide Acórdão do Tribunal da Relação

de Lisboa de 18.06.1996);

Pelo exposto, não pode o ora Recorrente conformar-se com o facto do

Mm.º Juiz, se ter limitado a dar como assente “tout court” que pela circunstância do

imóvel ter sido registado a favor da Autora, a mesma é sua proprietária, e que o

Recorrente não ilidiu a presunção derivada desse registo, provando que a Autora não

era proprietária ou demonstrando que é titular de um direito que lhe permite possuir

ou ocupar a coisa reivindicada;

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Sendo antes de concluir que o Réu, ora Recorrente é legítimo possuidor

da fracção em crise, sendo a sua posse muito anterior ao registo da aquisição;

Pelo supra exposto, resulta evidente para o ora Recorrente que, não de

forma alternativa mas antes cumulativa, conseguiu provar ambos os requisitos: que a

Autora, ora Recorrida não é a proprietária da fracção e que os Réus ocupam,

legitimamente, a fracção objecto do litígio;

E mesmo não concedendo, caso V. Exas. doutamente considerem que

apenas um dos requisitos resultou provado, tal é suficiente para obstar à

procedência da acção de reivindicação intentada pela Autora, ora Recorrida;

Assim, por uma ou outra via, entende o ora Recorrente que existia

fundamento para o Mm.º Juiz ter julgado a acção improcedente;

Por todo o exposto, atendendo aos factos dados como assentes, às normas

jurídicas violadas, nuns casos, e ao errado enquadramento legal feito, noutros casos, e

anda à falta de fundamentação por parte do Mm.º Juiz no que respeita à questão da

posse do ora Recorrente, nunca poderia ser julgada procedente a acção intentada pela

Autora, ora Recorrida.

Nestes termos e nos mais de Direito, e com o mui sempre douto suprimento

de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a

decisão recorrida com as inerentes consequências legais.

B contra-alega, formulando as seguintes conclusões:

Toda a alegação do Recorrente assenta no erro radical de querer ver discutidas

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em sede de recurso questões que já foram decididas em sede de despacho saneador;

Efectivamente, em sede de despacho saneador, a fls. 352 e seguintes dos autos,

julgaram-se improcedentes as excepções e rejeitaram-se, por processualmente

inadmissíveis, os pedidos reconvencionais deduzidos pelo Réu, ora Recorrente, em

sede de contestação;

E como o despacho saneador, na parte em que julgou improcedente toda

essa defesa por excepção e reconvenção do Réu, não foi por este impugnado por via

do recurso, fez caso julgado quanto às decisões dessas matérias, Mas mesmo que

assim não fosse.

A procuração que a falecida D outorgou em 07-12-1998 a favor da Autora,

ora Recorrida pouco tem que ver, directamente, com a boa solução e o objecto da

presente lide, pois conforme está provado documentalmente nos autos, a Recorrida

não adquiriu a Fracção sub judice mediante o uso de qualquer procuração, antes a

adquiriu directamente, por compra e venda, à anterior proprietária.

Diga-se, de resto, que o recorrente não chega a concretizar e a extrair

qualquer consequência prática desta parte da sua alegação, não referindo quais as

normas jurídicas violadas, porque razão diz que a procuração é inválida ou que

relevância isso teria para a presente acção;

Mais grave, e salvo o devido respeito, ainda mais desprovida de sentido, é a

alegação contida no final do capitulo “procuração” de que a escritura pública de

compra e venda da Fracção sub judice não foi valida e eficazmente realizada;

A afirmação é tão mais incompreensível quando é certo estar assente por

provado nos autos que a Autora, ora Recorrida, adquiriu o imóvel à anterior

proprietária registada, mediante escritura pública de compra e venda, e que o eu

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direito de propriedade está devidamente registado na CRP;

Mas mais uma vez o Recorrente nada explica ou conclui quanto à invalidade

ou ineficácia desse negócio, não chegando sequer a referir as normas jurídicas

supostamente violadas; Acresce que,

Se é certo e ficou provado que a falecida D exerceu posse sobre a Fracção sub

judice desde 26-08-1993, em virtude de ter sido promitente compradora da mesma,

não menos provado está que em 07-12-1998 a dita D outorgou uma procuração

irrevogável a favor da ora Recorrida na qual a constituiu sua bastante procuradora

para exercer todos os poderes relativamente ao contrato-promessa referente à Fracção,

com a limitação temporal de esses poderes só poderem ser utilizados a partir de

06-12-1999;

Acresce que em 05-07-2000 a Autora adquiriu, por escritura pública de

compra e venda outorgada com a anterior proprietária, o direito de propriedade sobre

a Fracção e que nesse mesmo dia registou o seu direito junto da CRP; Mais.

Está provado nos autos que o Autora comunicou em 23-09-2000 a todos os

ocupantes da Fracção, entre os quais o recorrente, que houvera adquirido o direito de

propriedade sobre a mesma, mais lhes solicitando a sua imediata descoupação;

Provado ficou também que o Réu e ora Recorrente, em resposta a essa missiva,

recusou a entrega da dita fracção, referindo que a estava a ocupar pelo facto de a sua

irmã, a falecida D, a ter anteriormente ocupado;

Ou seja, a partir de 06-12-1999, ou pelo menos a partir de 23-09-2000 – data

em que a Recorrida e proprietária da Fracção comunicou aos ocupantes a sua

oposição à ocupação que estava a ser feita – que não se pode, obviamente, falar de

posse com as características enunciadas pelo Recorrente exercida por esses ocupantes

220/2005 18/33

da fracção;

Aliás, desde a referida data que a ocupação que estes fazem do dito imóvel se

tem de considerar abusiva e ilegal, tendo a expressa oposição do legítimo

proprietário;

O Recorrente não tem, obviamente, posse nos termos preconizados nas sua

doutas alegações e antes ocupa abusivamente, ilegitimamente e de má-fé a Fracção

sub judice;

De todo o modo, mesmo aceitando, sem conceder, que era verdadeira a

fantasiosa posse a que o Recorrente se arroga, este não alegou nem extraiu qualquer

consequência jurídica da mesma que lhe conferisse algum direito a ocupar

legitimamente a Fracção sub judice;

Quanto às considerações e deambulações do Recorrente tecidas à volta de um

processo de inventário estas em nada abalam o direito de propriedade da Recorrida

sobre a Fracção, nem conferem ou demonstram a existência de qualquer direito (real

ou obrigacional) do Recorrente ou de um terceiro que este representa (?) sobre o

referido imóvel;

A sucessão na posse, a que se refere o Recorrente, sem mais uma vez retirar

qualquer consequ6ecnia jurídica da alegação, é mais um instituto de que este fala

confusamente, salvo o devido respeito, sem qualquer nexo de pertinência para o

presente caso;

É de resto falso, mas também irrelevante para o caso sub judice, que um

terceiro que não é parte nesta lide (o filho da falecida D) tenha sucedido na posse

desta, pois não foi, nem poderia validamente ser, deduzido por este qualquer pedido

reconvencional de aquisição da Fracção de acordo com as regras da usucapião;

220/2005 19/33

Uma simples leitura da matéria assente no processo bastará para aferir que é

falso que o Recorrente tenha ilidido a presunção de titularidade do direito de

propriedade de que a Recorrida beneficia por força das regras do registo predial;

Da análise dos factos provados resulta inequívoco que a ora Recorrida é a

proprietária registada da loja reivindicada, além do mais por funcionamento da

presunção registral do artigo 7.º do Código de Registo Predial;

Acresce que o Recorrente não logrou no decurso da presente acção ilidir

esta presunção, não provando que ele ou um terceiro são os proprietários ou que o

Fracção a ninguém pertence;

Face à matéria de facto provada é de igual modo incontestável que se logrou

provar nos autos que a fracção reivindicada está ocupada pelos A e C;

Por seu turno, o Recorrente não logrou provar factos impeditivos do efeito

jurídico pretendido pela Autora, e que nessa medida implicassem uma solução

diferente para a presente lide;

Não provou, contra a presunção de propriedade da Recorrida, que a coisa

reivindicada lhe pertence, ou que pertence a outrem ou que não pertence a ninguém;

Não provou que não obstante o direito de propriedade da Recorrida, há uma

relação real ou obrigacional que lhe permite não restituir a coisa reivindicada;

Não provou ser usufrutuário, locatário credor pignoratício ou titular de

direito de retenção sobre a coisa reivindicada.

Em suma, o Recorrido nada provou que possa obstar à procedência das

pretensões trazidas a juízo pela Autora.

Carecem assim de qualquer fundamento ou razoabilidade as criticas

220/2005 20/33

dirigidas no presente recurso contra decisão posta em crise que fez, antes pelo

contrário, exemplar aplicação da Justiça.

Nesta conformidade, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se

nos seus precisos termos a decisão recorrida.

II – FACTOS

Vêm provados os seguintes factos:

Da Matéria de Facto Assente:

- Sob o artigo matricial 71143 do Concelho de Macau, encontra-se inscrita

em nome da Autora B a fracção autónoma designada por “J”, r/c, do

prédio em propriedade horizontal, com os nºs 412-A a 438 da XXX e

719-A a 745 da XXX, conforme documento de fls. 17 dos autos (alínea A

da Especificação)

- A Autora, através de escritura pública de compre e venda, datada de

5.07.2000, declarou adquirir a fracção autónoma descrita em A) dos factos

assentes a “Sociedade de Investimento e Construção XXX”, que declarou

vendê-la à aqui Autora, conforme consta do documento de fls. 40 a 45 dos

autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea B da Especificação).

- A Autora procedeu, ainda, ao registo daquela aquisição no próprio dia

5.7.2000 junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, mediante a

inscrição nº 16666 do Livro G, conforme documento de fls. 9 a 16 dos

autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea C da Especificação).

220/2005 21/33

- Entre “Sociedade de Investimento e Construções XXX” e D foi outorgado

a 26.08.1993, o contrato denominado de “contrato de compra e venda de

prédio”, contrato este em que “a parte A vende à parte B e esta adquire a

fracção autónoma designada por loja “J” do XXX que está em curso a

construção, sito na Avenida Dr. XXX ...”, conforme documento da fls. 24

dos autos (tradução em língua portuguesa a fls. 349 dos autos), cujo teor

se dá por reproduzido (alínea D da Especificação).

- O preço da fracção autónoma designada por loja “J” do Edifício “XXX”

foi pago na totalidade pela parte B – D -, na data do antecedente contrato

(alínea E da Especificação).

- Mediante outorgada a 7.12.1998, D declarou constituir sua bastante

procuradora a ora Autora B, a que, com a limitação temporal constante do

úlitmo (...) paragrafo da mesma escritura (“Os poderes conferidos nesta

procuração só poderão ser utilizados a partir de 6 de dezembro de 1999”),

conferiu poderes para exercer quaisquer direitos que para a outorgante

advenham do contrato-promessa acima referida em D) dos factos assentes,

“... nomeadamente o de ceder a sua posição contratual, exigir o

cumprimento da promessa, obter a sua execução específica, exigir e

receber quaisquer indemnizações pelo seu não cumprimento ...”, tudo

conforme documento de fls. 18 a 23 dos autos, cujo teor se dá por

reproduzido (alínea F da Especificação).

- Mais, ainda, declarou a outorgante D naquele escrito de fls. 18 a 23 que

“Ësta procuração é também conferida em benefício da procuradora, nos

termos do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco e do artigo

220/2005 22/33

mil cento e setenta e cinco, ambos do Código Civil, pelo que não poderá

ser revogada sem consentimento da interessada”, tudo conforme

documento de fls. 18 a 23 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido

(alínea G da Especificação).

- D faleceu a 2.12.1999, em Beijing (documento de fls. 199 a 201 dos autos)

(alínea H da Especificação).

- Pelo testamento cerrado, datado de 23.05.1996, a aludida D, que era

solteira, designou como seu único herdeiro, o seu filho menor E e como

seu executor testamentário o ora Réu, A, conforme certidão judicial de fls.

202/203 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea I da

Especificação).

- A C, de que a falecida D era sócia-gerente, tem como centro da sua

actividade negocial a fracção autónoma referida em A) dos factos assentes,

sendo o Réu A empregado nesta sociedade (alínea J da Especificação).

- A 19.05.2000 foi instaurado pelo MP inventário por óbito de D, sendo que,

segundo consta do dito inventário, o único herdeiro da inventariada será

seu filho E, menor, nascido a 1.07.1989, e ali exercendo as funções de

cabeça de casal o aqui Réu A, tudo conforme certidão judicial junta a fls.

197/198 destes autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea L da

Especificação).

- A Autora comunicou ao Réu A a aquisicão da fracção referida em A) dos

factos assentes, mediante a carta datada de 23.09.2000, conforme consta

de fls, 30/31 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea M da

Especificação).

220/2005 23/33

- Em resposta a esta carta, o Réu A recusou a entrega da dita fracção,

referindo que estava a ocupar a dita fracção pelo facto de sua irmã D a ter

ocupado, fazendo nela sede de uma sociedade de que era sócia, conforme

carta de fls. 33 e 34 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea N

da Especificação).

- Apesar da celebração da escritura de compra e venda referida em B) dos

factos assentes, a Autora não logrou até ao momento ocupar a fracção ali

referida, encontrando-se a mesma a ser utilizada pelos RR., A e C (alínea

O da Especificação).

***

Da base Instrutória:

- Em 2003 e 2004, a Autora poderia dar a fracção autónoma em causa da

arrendamento pela renda mensal cerca de MOP$8,000.00 (alínea O da

Especificação).

- Desde a data do contrato referido em D) dos factos assentes – 26.08.93 -,

a D usufruiu da fracção “J”, ali exercendo a sua actividade de mediadora

imobiliária, através de empresa C (resposta ao quesito 8º).

- Conservando-a, mantendo nela empregados encarregados da sua guarda e

manutenção (resposta ao quesito 9º).

- O Réu A, na sua qualidade cabeça de casal nos autos de inventário

Pº-CIV-018-00-3, passou a administrar os bens da D dos quais se conta

com a participação social desta última na Empresa C, que continua a

instalar-se na referia fracção (resposta ao quesito 11º).

220/2005 24/33

- Pela contestação e acompanhamento da presente acção, o Réu A terá de

pagar ao seu Mandatário constituído MOP$50,000.00 (resposta ao quesito

13º).”

III – FUNDAMENTOS

1. Vamos analisar a questão em termos simples.

A A., ora recorrida, B, propôs acção de reivindicação sobre o

andar em causa.

Alegou, para tanto, a propriedade e respectivo registo sobre a

coisa, factos que vêm comprovados.

Contrapôs o R., ora recorrente, A, que essa fracção fazia parte

do acervo hereditário de D, estando na posse desta última, quando do seu

falecimento, ocorrido em 2 de Dezembro de 1999, sendo, então, a mesma

promitente-compradora da aludida fracção autónoma, cujo preço foi pago

na totalidade, quando da assinatura e outorga do contrato-promessa da

compra e venda, em 26/08/1993.

Factos estes que lhe dariam o direito de se opor àquela

peticionada restituição da coisa e concluindo pela ineficácia da compra e

venda realizada entre a Autora, ora Recorrida e a sociedade, em relação ao

herdeiro e ao Réu, ora Recorrente, na qualidade de legal representante

daquele.

Perante este argumento, invocou desde logo a A. que a falecida

promitente-compradora lhe havia conferido uma procuração relativamente

a esta mesma fracção, com carácter irrevogável, com poderes para fazer

220/2005 25/33

negócio consigo mesmo com a limitação temporal de esses poderes só

poderem ser utilizados a partir de 06-12-1999.

Ao que o R., replica que a procuração já estava caducada.

2. Dentro deste quadro, a A. pediu, no que ao caso interessa, o

reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição da coisa e o R.

pediu a improcedência desse pedido, por provadas as excepções aduzidas,

formulando vários pedidos reconvencionais:

- reconhecimento ao E a qualidade de herdeiro da falecida D,

aqui representado pelo seu representante legal, o ora Réu, A designado

cabeça-de-casal nos autos de inventário obrigatório por óbito da D;

- a restituição da fracção autónoma, aqui reivindicada, ao acervo

hereditário da sucessão aberto por morte daquela falecida; a declaração de

caducidade da procuração, datada de 07-12-1998, assinada por D;

- a ineficácia, face ao representado do ora Réu, da revogação

dos referidos contratos-promessa de compra e venda, na data de 5 de Julho

de 2000;

- a ineficácia, em relação ao representado do Réu, E, da

aquisição das fracções autónomas, nomeadamente daquela a que se

reportam os autos e consequente cancelamento do registo da aquisição.

3. Há uma questão que a recorrida alega e que se prende com o

facto de as questões concernentes aos diversos pedidos reconvencionais

não poderem ser discutidas nesta sede, porquanto os pedidos

reconvencionais não foram admitidos em sede de prolação do despacho

220/2005 26/33

saneador, despacho esse que se mostra transitado.

Em certa medida tem razão. Na medida em que essas questões

constituam o fundamento dos pedidos reconvencionais.

Já não assim enquanto essas matérias constituam o fundamento

das excepções eventualmente impeditivas do direito alegado pela A.

4. Vejamos então.

A. A. logrou provar, sem margem para quaisquer dúvidas, o

facto pressuposto da reivindicação, ou seja a propriedade sobre a coisa.

Na verdade, dispõe o artigo 1253º do C. Civil:

“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou

detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente

restituição do que lhe pertence.

2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser

recusada nos casos previstos na lei.”

E o R. logrou provar facto que impeça essa restituição nos

termos previstos no n.º 2 do citado artigo 1235º?

Na reivindicação para que o réu triunfe na acção é necessário

que prove que tem título ou situação legal que justifique a sua posse.

E essas situações serão a alegação do domínio sobre a coisa

(verdadeiro dono) ou da posse oponível ao proprietário, seja ela derivada

de um direito real ou derivada de uma relação contratual a cuja

observância esteja adstrito o autor.

220/2005 27/33

Pode ainda o réu recusar a entrega alegando direito de retenção,

para além como é evidente, de negar os factos (v.g. negar que o autor não

tem o domínio, que seja o possuidor da coisa demandada, que a coisa que

possui não é a reivindicada), arguir excepções de longo tempo, que o

domínio não pertence ao autor, perecimento da coisa, sem culpa sua,

sendo possuidor de boa-fé, etc. 1

O R. invoca a posse.

Pretende radicá-la na transferência da coisa na sequência de um

contrato-promessa que a falecida D terá efectuado com pagamento integral

do preço.

Só que a A. diz ser a possuidora na medida em que esse direito

lhe pertence, não só porque o comprou, como os direitos derivados

daquele contrato-promessa lhe foram transmitidos por aquela D atrvavés

de uma procuração em que podia realizar actos sobre a dita fracção e a seu

favor.

Foi este o entendimento acolhido na douta sentença recorrida e

que aqui continua a merecer acolhimento.

É verdade que o nosso ordenamento adoptou a doutrina

subjectivista de Savigny, autonomizadora do corpus e do animus , única

forma de distinguir a verdadeira posse dos casos de mera detenção.

E na esteira de autorizada doutrina, tem a Jurisprudência de

Macau acatado a ideia de não ser possível qualificar a priori de posse ou

mera detenção o poder de facto exercido sobre a coisa objecto do contrato

1 - Manuel Salvador, Elementos da Reivindicação, 1958, 216

220/2005 28/33

prometido entregue antecipadamente, tudo dependendo do animus que

acompanhe esse corpus.2

5. No caso sub judice, no sentido de afastar a licitude da posse

da A. que, realça-se, actuou na requerida compra em nome próprio e não

como procuradora da D, tece o recorrente longas considerações,

reclamando a caducidade da procuração, pedido este que veio a ser

indeferido nos termos já acima apontados.

Bom, desde logo se observa que a questão perde acuidade, na

medida em que a A. não adquiriu a fracção como procuradora da D,

embora estivesse munida de uma procuração em que esta a declarou

constituir sua bastante procuradora, com poderes só utilizáveis a partir de

6 de dezembro de 1999, com poderes para exercer quaisquer direitos que

para a outorgante advenham do contrato-promessa aludido,

nomeadamente o de ceder a sua posição contratual, exigir o cumprimento

da promessa, obter a sua execução específica, exigir e receber quaisquer

indemnizações pelo seu não cumprimento, procuração conferida em

benefício da procuradora, nos termos do n.º 3 do art. 265º e do art. 1175º,

ambos do Código Civil, pelo que não poderia ser revogada sem

consentimento da interessada.

Mas tendo morrido em 2/12/1999 a procuração teria caducado.

Ora do disposto no n.º 3 do artigo 265º do C. Civil vigente ao

tempo da celebração do mandato “se a procuração tiver sido conferida

2 - Ac. do TSI de 17/3/05, proc. 292/2004

220/2005 29/33

também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada

sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”, reforçado no

regime do mandato em que este é livremente revogável por qualquer das

partes, a não ser em que tenha sido conferido no interesse do mandatário –

artigo 1170º e do artigo 1175º em que “A morte, interdição ou inabilitação

do mandante não faz caducar o mandato quando este tenha sido conferido

também no interesse do mandatário ou de terceiro”, resulta quer a

irrevogabilidade do contrato quer a sua eficácia no post-mortem do

mandante.

Essa irrevogabilidade e não caducidade do mandato no interesse

do mandatário ou no interesse comum resulta ipso jure da constatação de

interesses do acto gestório que se não confinam aos do mandante3, o que

neste caso, no que à fracção prometida comprar respeita é por demais

evidente.

É neste enquadramento que se configura a actuação da A. como

compradora daquela fracção, não tendo tido necessidade de usar da

procuração. Esta legitima tão somente a sua actuação perante a Sociedade

vendedora que tinha prometido vender a outrem e perante aquele mandato

se terá visto livre para vender a quem tinha poderes para transferir os

direitos resultantes de um contrato-promessa anteriormente celebrado.

6. Pelo que, tal como se assinala na douta sentença recorrida, a

caducidade ou não da procuração não tem repercussões directas nos

3 -Manuel Januário Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, 1989,171

220/2005 30/33

direitos adquiridos pela Autora, já que esta celebrou directamente o

contrato de compra e venda com a legítima vendedora, Companhia de

Investimento e Construção XXX. Agora, porque é que esta companhia, já

tinha prometido vender a fracção à falecida D e veio a vender o imóvel à

Autora, esta que é a verdadeira questão! Para saber o que se passou e

porque assim aconteceu, seriá preciso chamar a referida Companhia.

Por aqui se vê que falece razão ao recorrente ao dizer que se

assentou num facto não provado, qual fosse o de que com essa procuração

se terá revogado o contrato- promessa celebrado.

7. Quanto à posição de que a escritura pública de compra e

venda não foi válida e eficazmente realizada é questão que não merece

qualquer desenvolvimento, face ao que vem comprovado relativamente à

aquisição da fracção e respectivo registo.

Se o que o recorrente pretende fazer abalar é a conduta da

vendedora que havia prometido vender a outrem e vendeu à A., então essa

é outra questão que só em sede de eventual incumprimento contratual

pode ser aquilatada.

8. Vejamos então se posse do R. é boa para que se possa opor à

restituição da coisa.

É verdade que ficou provado que a falecida D exerceu posse

sobre a Fracção sub judice desde 26-08-1993, em virtude de ter sido

promitente compradora da mesma, ali tendo instalado uma Companhia

que continuou no mesmo local após a sua morte.

220/2005 31/33

Mas não menos provado está que em 07-12-1998 a D outorgou

uma procuração irrevogável a favor da ora Recorrida na qual a constituiu

sua bastante procuradora para exercer todos os poderes relativamente ao

contrato-promessa referente à Fracção, com a limitação temporal de esses

poderes só poderem ser utilizados a partir de 06-12-1999.

Acresce que em 05-07-2000 a Autora adquiriu, por escritura

pública de compra e venda outorgada com a anterior proprietária, o direito

de propriedade sobre a fracção, direito esse que fez registar na

Conservatória.

E o que não deixa de ser muito significativo é o facto de a A. ter

comunicado, em 23-09-2000, a todos os ocupantes da Fracção, entre os

quais o Recorrente, que houvera adquirido o direito de propriedade sobre a

mesma, mais lhes solicitando a sua imediata desocupação.

Provado ficou também que o Réu, ora recorrente, em resposta a

essa missiva, recusou a entrega da dita fracção, referindo que a estava a

ocupar pelo facto de a sua irmã, a falecida D, a ter ocupado.

Em suma, a partir pelo menos, a partir de 23-09-2000, que não

se pode, obviamente, falar de posse exercida por esses ocupantes sobre a

dita fracção, sendo que desde essa data que a ocupação que estes fazem do

dito imóvel é abusiva e ilegal, tendo a expressa oposição do legítimo

proprietário.

9. E com isto estamos a entrar no cerne da questão.

220/2005 32/33

Como acima se disse e já noutras situações se tem julgado, o

possuidor da coisa prometida comprar, transferida e paga, actuando com o

animus domini, terá tutela dos seu direito contra outro titular que se

arrogue direito que lhe seja hostil.

Assim é de facto.

Só que neste caso a situação diverge daquel’outras acima

elencadas.

Em primeiro lugar, quoad est demonstrandum sempre se teria de

provar aquele animus.

Mas mesmo que este elemento se presumisse a partir da mera

ocupação e desenvolvimento da actividade comercial no local - o que é

pouco, bastando pensar em tantas ocupações a título precário -, o que se verifica é

que a primitiva possuidora com o direito à celebração do contrato

definitivo e com a sua posse tutelada a partir desse contrato, abriu mão da

sua posição e transferiu os seus direitos para a A.

A partir desse momento, a posse que ela e os seus sucessores

passam a exercer deixou de merecer a tutela que o vínculo obrigacional

comportava com alguma projecção em termos de tutela real -

possibilidade de obrigar o promitente vendedor ao contrato definitivo.

Com a celebração daquela procuração a favor e no interesse da

mandatária, incidente sobre a fracção em causa, já não lhe é mais possível,

nem à mandante nem aos seus sucessores fazer cumprir especificamente o

contrato, sem que aquela invoque a defesa dos seus interesses

expressamente conferidos na procuração que detém.

220/2005 33/33

No fundo, pode dizer-se que foi a própria

promitente-compradora que, com a sua actuação, passou a ocupar a coisa

em nome da mandatária que a partir do momento em que adquire a fracção

a pode reivindicar sobre quem não tenha justo título, como será o caso em

relação aos seus ocupantes.

Perante isto cabe jus ao proprietário da coisa reivindicá-la, pelo

que se confirma o doutamente decidido.

IV – DECISÃO

Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao

recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Macau, 16 de Fevereiro de 2006,

João A. G. Gil de Oliveira (Relator)

Choi Mou Pan

Lai Kin Hong