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220/2005 1/33
Processo n.º 220/2005 (Recurso Civil e Laboral)
Data: 16 de Fevereiro de 2006
ASSUNTOS:
- Acção de reivindicação
- Posse derivada do contrato-promessa
- Procuração consigo mesmo
- Irrevogabilidade e não caducidade do mandato
SUMÁRIO:
1. Na reivindicação para que o réu triunfe na acção é necessário
que prove que tem título ou situação legal que justifique a sua posse.
2. Não é possível qualificar a priori de posse ou mera detenção
o poder de facto exercido sobre a coisa objecto do contrato prometido
entregue antecipadamente, tudo dependendo do animus que acompanhe
esse corpus.
3. A irrevogabilidade e não caducidade do mandato no interesse
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do mandatário ou no interesse comum resulta ipso jure da constatação de
interesses do acto gestório que se não confinam aos do mandante.
4. O possuidor da coisa prometida comprar, transferida e paga,
actuando com o animus domini, terá tutela dos seu direito contra outro
titular que se arrogue direito que lhe seja hostil.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
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Processo n.º 220/2005 (Recurso cível)
Data: 16/Fevereiro/2006
Recorrente: A
Recorrida: B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA
INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
Na acção de reivindicação interposta por B contra os
ocupantes da fracção “J” R/C do prédio sito na XXX; A; e C foi
proferida a seguinte decisão:
“Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga a acção
procedente e provada e, em consequência decide:
【據上論結,本法庭裁定訴訟理由成立,裁決如下:】
1. Declarar a Autora B como a legítima proprietária da fracção autonoma, designada
《J》R/C, do prédio, sito na XXX nº 412ª-438 e 719ª-A a 745 da XXX, em regime de
propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o
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nº 21715 a fls. 114v do livro B72, e a ocupação da mesma por parte dos RR. como
sendo ilegítima e ilegal.
【宣告原告人 B 為位於 XX 大馬路 412 號 A 至 438 號、XXX719 號 A 至 745 號“J”
地舖之獨立單位之所有權人,該單位登記在澳門物業登記局第 B72 冊第 114 頁背
面,編號為 21715,並宣告被告佔用該單位屬不當及違法。】”
2. Condenar os Réus a reconhecer o referido direito de propriedade da Autora sobre
a fracção, ora reivindicada, e a restitui-la livre e devoluta de pessoas e bens à Autora.
【判被告承認原告擁有該單位之所有權及將該單位返還予原告。】
***
3. Condenar, os Réus a pagar à Autora a quantia que se liquidará em execução de
sentença, mas que desde já é fixada no valor de MOP$8,000.00 por mês, desde
23.09.2000, quantia equivalente aos prejuízos da A., por lucros cessantes derivados da
impossibilidade de obter os rendimentos que resultariam do seu uso (renda) que a
Autora obteria pelo arrendamento da fracção ora reivindicada, acrescida dos
respectivos juros legais, calculados a partir daquela data, que se venham a vencer até
integral pagamento.
【判被告向原告支付每月澳門幣捌仟元之費用,自 2000 年 9 月 23 日起計算,作
為原告之消極損害賠償,因為倘非被告非法佔用該單位,原告可出租該單位而取
得租金之收入,總金額於執行判決時結算,並附加按法定利率計算之利息,自上
述日期起計算,直至全數支付。】
***
4. Julgar-se improcedentes os pedidos dos Réus.
【判被告之請求理由不成立。】”
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A, Réu na acção que julgou procedente a acção de reivindicação
proposta pela A. B, não se conformando com a decisão proferida, dela
interpôs recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
Entre os principais factos alegados pelo Réu, ora Recorrente, para provar o
seu direito e consequentemente a improcedência da acção interposta pela Autora, ora
Recorrida, destacam-se:
Que, quando a escritura pública de compra e venda, celebrada em 05 de
Julho de 2000 entre a Autora, ora Recorrida e a Companhia denominada “Sociedade
de Investimento e Construção XXX.”, já tinha sido instaurado pelo Ministério Público
um inventário obrigatório por óbito de D, originária promitente compradora da
fracção objecto do litígio;
Por essa via, a fracção reivindicada pela Autora, ora Recorrida, fazia,
àquela data, já parte da herança deixada por óbito de D;
O ora Recorrente é irmão da falecida D, e foi nomeado no âmbito do
processo de inventário obrigatório, cabeça-de-casal e representante legal do menor E,
único herdeiro daquela;
A Autora, ora Recorrida, outorgou a escritura pública de compra e venda da
fracção objecto desta acção, na qualidade de compradora e não como procuradora da
falecida D;
Não existindo na escritura pública qualquer menção à dita procuração;
Sendo que, a falecida havia outorgado, em 07 de Dezembro de 1998,
procuração a favor da Autora, relativamente a esta mesma fracção, com carácter
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irrevogável, com poderes para fazer negócio consigo mesmo e sujeita a condição
através da inclusão de uma cláusula temporal a qual ditava que: “os podres
conferidos nesta procuração só poderiam ser utilizados a partir de 06 de Dezembro de
1999”;
Foi igualmente dito pelo ora Recorrente que a falecida D havia pago a
totalidade do preço da fracção, na data da outorga do contrato promessa e que tal
facto havia sido reconhecido pela Autora, ora Recorrente no âmbito do processo de
inventário obrigatório;
Pelo que, à data do seu falecimento esta tinha a posse exclusiva da fracção,
de forma pública, pacífica, ininterrupta e de boa fé, desde, pelo menos, a data da
outorga do contrato promessa;
Assim, o ora Recorrente, na qualidade de cabeça-de-casal, com o decesso
daquela sucedeu à falecida nessa posse sobre a fracção;
Encontrando-se nessa posse desde data anterior à celebração da escritura
pública de compra e venda e respectivo registo, ocorridos ambos em 05.07.2000;
E que dessa posse deriva a presunção de propriedade por parte do Réu, ora
Recorrente;
Concluindo pela ineficácia da compra e venda realizada entre a Autora, ora
Recorrida e a sociedade, em relação ao herdeiro e ao Réu, ora Recorrente, na
qualidade de legal representante daquele;
Fundamentando que a Autora, ora Recorrida, não podia desconhecer, sem
culpa, a posse o direito de propriedade que o a Réu, ora Recorrente, vinha exercendo
sobre a fracção;
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E que a transmissão da propriedade não foi acompanhada pela transmissão
da respectiva posse;
E ainda que a comunicação da venda apenas foi efectuada pela Autora, ora
Recorrida ao Réu, ora recorrente, em 23.07.2000;
Por outro lado, o Réu, ora Recorrente, sustentou ainda um outro argumento
relacionado com o factos dos poderes de representação conferidos pela falecida à
Autora, ora Recorrida, estarem caducos;
Pedindo que fosse declarada a ineficácia jurídica em relação ao Réu, ora
Recorrente, da aquisição, por escritura pública, do direito de propriedade, da fracção
e que fosse ordenado o cancelamento do registo da mencionada transmissão;
Condenando-se ainda a Autora, ora Recorrente, a restituir a aludida fracção
autónoma ao acervo hereditário da sucessão aberta por óbito de D;
O Réu, ora Recorrente, sustentou ainda que a procuração outorgada pela
falecida D em 07.12.1998 havia caducado;
Porquanto a procuração continha uma cláusula temporal, a qual
determinava expressamente que só poderia ser utilizada a partir de 06.12.1999;
Ora, tendo a Mandante falecido em 02.12.1999, a procuração deixou de
produzir quaisquer efeitos jurídicos a partir dessa data;
Tendo a Autora, ora Recorrida, alegado que “em 05-07-2000, a A. no uso
dos poderes que lhe foram validamente conferidos, acordou com a sociedade
vendedora revogar o identificado contrato-promessa”, sem que tenha junto qualquer
prova documental comprovativa dessa mesma revogação;
Sucede que a procuração já estava caducada (caducidade do mandato) por
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morte da Mandante – alínea a) do art.º 1100.º CCM;
Pois apesar do mandato ter sido conferido no interesse da Mandatária,
estava sujeito a uma cláusula temporal;
Só a partir de 06 de Dezembro de 1999 o Mandato poderia ser exercido e
produziria então efeitos jurídicos em relação a terceiros;
Concluindo-se que a procuração não poderia ser então válida e eficazmente
usada –art.º1175.º do C.C. – art.º 1101.º CCPM;
E que a revogação do referido contrato-promessa de compra e venda,
também não foi válida e eficazmente realizada;
Concluindo-se, consequentemente, que a escritura pública de compra e
venda também o não foi;
Outro aspecto igualmente importante e salientado na contestação
apresentada pelo Réu, ora Recorrente, foi o facto da legítima possuidora (falecida D)
ter ocupado a fracção, desde a data da celebração do contrato promessa (26.08.1993)
com a sociedade, na qual exercia a sua actividade como mediadora imobiliária,
conservando-a, mantendo nela empregados encarregados da sua guarda e
manutenção e exercendo a sua qualidade de legítima possuidora da mesa, que
efectivamente era;
Isto é, a falecida D, detinha a posse da fracção objecto do presente litígio
deste a data da outorga do contrato-promessa com a sociedade até à data da sua
morte, tendo-se a mesma transmitido para o seu herdeiro e passando a fazer parte da
herança aberta pelo seu óbito;
O Réu, ora Recorrente, defende-se ainda por impugnação, dando por
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reproduzidos os argumentos utilizados em sede de excepções;
Acrescentando ainda que a Autora, ora Recorrida, conhecia perfeitamente
da legítima ocupação da mencionada fracção autónoma, por parte do Réu, ora
Recorrente;
E que não se tratando de uma ocupação ilícita a mesma não acarreta
quaisquer prejuízos à Autora, ora Recorrida;
A Autora, ora Recorrida, agiu com manifesto “animus decipiendi”, omitindo
factos e invocando prejuízos que não teve, com fundamento na posse abusiva e
ilegítima do Réu, ora recorrente;
A Autora, ora Recorrida sabia muito bem a que título o Réu, ora Recorrente,
ocupa a mencionada fracção autónoma;
De onde se concluiu que a acção de reivindicação da posse não poderia
proceder por não se verificar o requisito essencial, subjectivo da ocupação ilegítima
do imóvel;
Sendo a jurisprudência praticamente unânime no que respeita à exigência
cumulativa de dois requisitos: a) que o autor seja proprietário da coisa reinvindicada;
b) que o réu seja detentor ilegítimo; para que possa proceder a acção de
reinvindicação da propriedade;
O que não aconteceu no caso em apreço;
O Réu, ora Recorrente, tentou demonstrar, por diversas vias, que aqueles
requisitos não se encontravam preenchidos e, consequentemente, que a acção
intentada pela Autora, ora Recorrida, não poderia proceder;
Um dos argumentos utilizados prenderam-se com a questão da procuração e
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da revogação do contrato promessa outorgado entre a falecida D e a Companhia
vendedora;
A este propósito desenvolveu o Mm.º Juiz a tese da irrevogabilidade da dita
procuração e apesar de a considerar uma questão falsa, dedicou grande parte da sua
fundamentação à mesma;
Não é irrelevante o facto da procuração não ter sido utilizada pela Autora,
ora Recorrida, quer na revogação do contrato promessa quer na escritura púbica de
compra e venda;
A Autora, ora Recorrida, não fez uso da dita procuração porquanto:
a. Bem sabia que o poder para proceder à revogação do
contrato-promessa anteriormente celebrado entre a Mandante e a Companhia
Vendedora, caía fora dos limites dos poderes conferidos por aquela mesma
procuração;
b. Por outro lado, na data em que outorgou a escritura pública de compra
e venda bem sabia do falecimento da Mandante e que a cláusula temporal poderia
operar e que:
c. A dita procuração apenas produziria os seus efeitos a partir de
06.12.1999, e rendo a mandatária falecido uns dias antes, tal poderia integrar uma
das causas justas, necessárias e suficientes, para afastar a irrevogabilidade da
mesma;
Ao logo do processo a Autora, ora Recorrida, não logrou fazer qualquer
prova de que procedeu a essa mesma revogação, nos termos e sob a forma legalmente
exigível, essencial e determinante para a realização do negócio posterior (art.º 404.º,
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n.º 2 do C.C.M.);
Pelo que, a Autora, ora Recorrida nunca poderia ter feito uso da procuração
para revogar o contrato-promessa pois bem sabia que o fazia ao arrepio dos poderes
que lhe foram conferidos;
Isto juntamente com o facto dela bem saber que a fracção se encontrava na
posse da Mandante até ao seu falecimento e que posteriormente integrou o seu acervo
hereditário, impediam-na de realizar a escritura pública directamente com a
Companhia vendedora;
Aliás, o Mmº Juiz deu como assente que a Autora, ora Recorrida, havia
outorgado a escritura pública de compre e venda do imóvel em crise, na qualidade de
compradora e não como procuradora da falecida D;
Como também deu por provado o facto da Mandante D ter a posse da
referida fracção e ter pago, na data da outorga do contrato-promessa de compra e
venda, a totalidade do preço da fracção;
Assim, ao contrário do defendido pelo Mm.º Juiz e considerando os factos
dados como assentes pelo mesmo relativamente a esta matéria, a questão da
procuração tem repercussões directas na acção em apreço;
Na medida em que, para alguém intentar uma acção de reivindicação da
propriedade tem que ter título suficiente e legítimo para o fazer;
Assim se concluindo que:
a. A procuração não poderia ser então válida e eficazmente usada – art.º
265.º, n.º 3 do C.C. (art.º 258.º do C.C.M.) e art.º 1175.º do C.C. (art.º 1101.º CCM),
na media em que, mesmo tendo sido conferida a favor da mandante, a mesma, por
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conter uma cláusula temporal (constituindo esta uma justa causa), caducaria por
morte da mandatária;
b. A revogação do referido contrato-promessa de compra e venda,
também não foi válida e eficazmente realizada (art.º 404.º, n.º 2 do C.C.M.); e
c. A escritura pública de compra e venda também o não foi;
E consequentemente por ser considerar que a escritura pública de compra
e venda enfermou de vícios, deveria o Mm.º Juiz ter julgado a mesma ineficaz em
relação ao herdeiro da falecida, aqui representado pelo Réu, ora recorrente;
Outro aspecto fundamental na apreciação desta questão prende-se com a
posse titulada, legítima e conhecida da falecida D sobre a dita fracção;
Resultou igualmente provado que a falecida D, ocupava a fracção
referenciada, desde a data da outorga do contrato promessa de compra e venda, lá
exercendo a sua actividade profissional.
E ainda, que por morte desta sucedeu-lhe um único herdeiro, seu filho
menor e que por testamento cerrado a mesma nomeou como seu executor
testamentário o Réu, ora Recorrente A;
Assim, a posse que a mesmo detinha sobre a fracção, em resultado do
contrato-promessa de compra e venda celebrado e pagamento efectuado da totalidade
do preço, transmitiu-se para o seu herdeiro desde a data da sua morte (art.º 406.º, n.º
1 do C.C.M.);
“Havendo sucessão na posse, do herdeiro ou legatário, a posse do de
cujus continua, ipsu jure e automaticamente, no sucessor, (....) E, a posse, em princípio,
não é nova: a posse continua a ser a antiga, com todos os seus caracteres, de boa ou
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má-fé, titulada ou não titulada, pacífica ou violenta.” (Pires de Lima e Antunes Varela,
anotação 3, art.º 1255.º do C.C. e Menezes Cordeiro, A. Posse, 2ª edição, pág. 109).
Vide ainda a título de exemplo o Acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação de Lisboa de 26.11.1992, no âmbito do processo n.º 49236, que nos diz que:
“Por morte do possuidor a posse dele passa para os seus herdeiros e sucessores,
desde o momento do decesso daquele”.
“Por isso, os sucessores dos bens que constituem o acervo da herança são
considerados para todos os efeitos, possuidores daqueles bens independentemente de
qualquer apropriação material desses bens”.
De onde se pode concluir que o Réu, ora Recorrente, à semelhança da
falecida D, ocupa de forma legítima, titulada, pública, ininterrupta e de boa fé a
mencionada fracção (art.º 1184.º, n.º 2 do C.C.M.);
E aquando da outorga da escritura pública de compra e venda a Autora,
ora Recorrida não podia desconhecer, sem culpa, a posse e o direito de propriedade
daí derivado, que o Réu, ora Recorrente, na qualidade de cabeça-de-casal, vinha
exercendo sobre a dita fracção;
Afastando-se assim a presunção derivada do registo, da propriedade da
Autora, ora Recorrida, sobre a fracção;
O art.º 7.º do Código do Registo Predial diz-nos que “O registo definitivo
constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos
termos em que o registo o define”;
Ora tratando-se de uma presunção, a mesma poderá sempre ser ilidida
pelas partes;
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Conforme o estatuído no art.º 1193.º, n.º 1 do Código Civil de Macau, se a
posse for anterior à data do registo, como《in casum》prevalece a presunção fundada
na posse;
Dizendo-nos, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 13.02.2001 que: ”O registo predial tem uma eficácia presuntiva, podendo
verificar-se um conflito entre aquela e a presunção derivada da posse, sendo este
resolvido a favor desta, excepto se houver uma presunção regista anterior ao início de
tal posse, sobrepondo-se, desta sorte, o usucapião ao registo.”;
Ora, no caso vertente, a eficácia presuntiva do registo da aquisição da
Autora, ora Recorrida, é afastada pela presunção derivada da posse do Réu, ora
Recorrente, sendo que o registo apenas prevaleceria se fosse anterior à data dessa
mesma posse;
O que não sucedeu;
“Entre nós, o registo predial tem efeito meramente declarativo e não
constitutivo, pelo que a inscrição do acto no registo não o defende contra os efeitos de
declaração de nulidade, para além de sempre ser possível a prova de não
correspondência à realidade do facto inscrito” (vide Acórdão do Tribunal da Relação
de Lisboa de 18.06.1996);
Pelo exposto, não pode o ora Recorrente conformar-se com o facto do
Mm.º Juiz, se ter limitado a dar como assente “tout court” que pela circunstância do
imóvel ter sido registado a favor da Autora, a mesma é sua proprietária, e que o
Recorrente não ilidiu a presunção derivada desse registo, provando que a Autora não
era proprietária ou demonstrando que é titular de um direito que lhe permite possuir
ou ocupar a coisa reivindicada;
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Sendo antes de concluir que o Réu, ora Recorrente é legítimo possuidor
da fracção em crise, sendo a sua posse muito anterior ao registo da aquisição;
Pelo supra exposto, resulta evidente para o ora Recorrente que, não de
forma alternativa mas antes cumulativa, conseguiu provar ambos os requisitos: que a
Autora, ora Recorrida não é a proprietária da fracção e que os Réus ocupam,
legitimamente, a fracção objecto do litígio;
E mesmo não concedendo, caso V. Exas. doutamente considerem que
apenas um dos requisitos resultou provado, tal é suficiente para obstar à
procedência da acção de reivindicação intentada pela Autora, ora Recorrida;
Assim, por uma ou outra via, entende o ora Recorrente que existia
fundamento para o Mm.º Juiz ter julgado a acção improcedente;
Por todo o exposto, atendendo aos factos dados como assentes, às normas
jurídicas violadas, nuns casos, e ao errado enquadramento legal feito, noutros casos, e
anda à falta de fundamentação por parte do Mm.º Juiz no que respeita à questão da
posse do ora Recorrente, nunca poderia ser julgada procedente a acção intentada pela
Autora, ora Recorrida.
Nestes termos e nos mais de Direito, e com o mui sempre douto suprimento
de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a
decisão recorrida com as inerentes consequências legais.
B contra-alega, formulando as seguintes conclusões:
Toda a alegação do Recorrente assenta no erro radical de querer ver discutidas
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em sede de recurso questões que já foram decididas em sede de despacho saneador;
Efectivamente, em sede de despacho saneador, a fls. 352 e seguintes dos autos,
julgaram-se improcedentes as excepções e rejeitaram-se, por processualmente
inadmissíveis, os pedidos reconvencionais deduzidos pelo Réu, ora Recorrente, em
sede de contestação;
E como o despacho saneador, na parte em que julgou improcedente toda
essa defesa por excepção e reconvenção do Réu, não foi por este impugnado por via
do recurso, fez caso julgado quanto às decisões dessas matérias, Mas mesmo que
assim não fosse.
A procuração que a falecida D outorgou em 07-12-1998 a favor da Autora,
ora Recorrida pouco tem que ver, directamente, com a boa solução e o objecto da
presente lide, pois conforme está provado documentalmente nos autos, a Recorrida
não adquiriu a Fracção sub judice mediante o uso de qualquer procuração, antes a
adquiriu directamente, por compra e venda, à anterior proprietária.
Diga-se, de resto, que o recorrente não chega a concretizar e a extrair
qualquer consequência prática desta parte da sua alegação, não referindo quais as
normas jurídicas violadas, porque razão diz que a procuração é inválida ou que
relevância isso teria para a presente acção;
Mais grave, e salvo o devido respeito, ainda mais desprovida de sentido, é a
alegação contida no final do capitulo “procuração” de que a escritura pública de
compra e venda da Fracção sub judice não foi valida e eficazmente realizada;
A afirmação é tão mais incompreensível quando é certo estar assente por
provado nos autos que a Autora, ora Recorrida, adquiriu o imóvel à anterior
proprietária registada, mediante escritura pública de compra e venda, e que o eu
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direito de propriedade está devidamente registado na CRP;
Mas mais uma vez o Recorrente nada explica ou conclui quanto à invalidade
ou ineficácia desse negócio, não chegando sequer a referir as normas jurídicas
supostamente violadas; Acresce que,
Se é certo e ficou provado que a falecida D exerceu posse sobre a Fracção sub
judice desde 26-08-1993, em virtude de ter sido promitente compradora da mesma,
não menos provado está que em 07-12-1998 a dita D outorgou uma procuração
irrevogável a favor da ora Recorrida na qual a constituiu sua bastante procuradora
para exercer todos os poderes relativamente ao contrato-promessa referente à Fracção,
com a limitação temporal de esses poderes só poderem ser utilizados a partir de
06-12-1999;
Acresce que em 05-07-2000 a Autora adquiriu, por escritura pública de
compra e venda outorgada com a anterior proprietária, o direito de propriedade sobre
a Fracção e que nesse mesmo dia registou o seu direito junto da CRP; Mais.
Está provado nos autos que o Autora comunicou em 23-09-2000 a todos os
ocupantes da Fracção, entre os quais o recorrente, que houvera adquirido o direito de
propriedade sobre a mesma, mais lhes solicitando a sua imediata descoupação;
Provado ficou também que o Réu e ora Recorrente, em resposta a essa missiva,
recusou a entrega da dita fracção, referindo que a estava a ocupar pelo facto de a sua
irmã, a falecida D, a ter anteriormente ocupado;
Ou seja, a partir de 06-12-1999, ou pelo menos a partir de 23-09-2000 – data
em que a Recorrida e proprietária da Fracção comunicou aos ocupantes a sua
oposição à ocupação que estava a ser feita – que não se pode, obviamente, falar de
posse com as características enunciadas pelo Recorrente exercida por esses ocupantes
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da fracção;
Aliás, desde a referida data que a ocupação que estes fazem do dito imóvel se
tem de considerar abusiva e ilegal, tendo a expressa oposição do legítimo
proprietário;
O Recorrente não tem, obviamente, posse nos termos preconizados nas sua
doutas alegações e antes ocupa abusivamente, ilegitimamente e de má-fé a Fracção
sub judice;
De todo o modo, mesmo aceitando, sem conceder, que era verdadeira a
fantasiosa posse a que o Recorrente se arroga, este não alegou nem extraiu qualquer
consequência jurídica da mesma que lhe conferisse algum direito a ocupar
legitimamente a Fracção sub judice;
Quanto às considerações e deambulações do Recorrente tecidas à volta de um
processo de inventário estas em nada abalam o direito de propriedade da Recorrida
sobre a Fracção, nem conferem ou demonstram a existência de qualquer direito (real
ou obrigacional) do Recorrente ou de um terceiro que este representa (?) sobre o
referido imóvel;
A sucessão na posse, a que se refere o Recorrente, sem mais uma vez retirar
qualquer consequ6ecnia jurídica da alegação, é mais um instituto de que este fala
confusamente, salvo o devido respeito, sem qualquer nexo de pertinência para o
presente caso;
É de resto falso, mas também irrelevante para o caso sub judice, que um
terceiro que não é parte nesta lide (o filho da falecida D) tenha sucedido na posse
desta, pois não foi, nem poderia validamente ser, deduzido por este qualquer pedido
reconvencional de aquisição da Fracção de acordo com as regras da usucapião;
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Uma simples leitura da matéria assente no processo bastará para aferir que é
falso que o Recorrente tenha ilidido a presunção de titularidade do direito de
propriedade de que a Recorrida beneficia por força das regras do registo predial;
Da análise dos factos provados resulta inequívoco que a ora Recorrida é a
proprietária registada da loja reivindicada, além do mais por funcionamento da
presunção registral do artigo 7.º do Código de Registo Predial;
Acresce que o Recorrente não logrou no decurso da presente acção ilidir
esta presunção, não provando que ele ou um terceiro são os proprietários ou que o
Fracção a ninguém pertence;
Face à matéria de facto provada é de igual modo incontestável que se logrou
provar nos autos que a fracção reivindicada está ocupada pelos A e C;
Por seu turno, o Recorrente não logrou provar factos impeditivos do efeito
jurídico pretendido pela Autora, e que nessa medida implicassem uma solução
diferente para a presente lide;
Não provou, contra a presunção de propriedade da Recorrida, que a coisa
reivindicada lhe pertence, ou que pertence a outrem ou que não pertence a ninguém;
Não provou que não obstante o direito de propriedade da Recorrida, há uma
relação real ou obrigacional que lhe permite não restituir a coisa reivindicada;
Não provou ser usufrutuário, locatário credor pignoratício ou titular de
direito de retenção sobre a coisa reivindicada.
Em suma, o Recorrido nada provou que possa obstar à procedência das
pretensões trazidas a juízo pela Autora.
Carecem assim de qualquer fundamento ou razoabilidade as criticas
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dirigidas no presente recurso contra decisão posta em crise que fez, antes pelo
contrário, exemplar aplicação da Justiça.
Nesta conformidade, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se
nos seus precisos termos a decisão recorrida.
II – FACTOS
Vêm provados os seguintes factos:
Da Matéria de Facto Assente:
- Sob o artigo matricial 71143 do Concelho de Macau, encontra-se inscrita
em nome da Autora B a fracção autónoma designada por “J”, r/c, do
prédio em propriedade horizontal, com os nºs 412-A a 438 da XXX e
719-A a 745 da XXX, conforme documento de fls. 17 dos autos (alínea A
da Especificação)
- A Autora, através de escritura pública de compre e venda, datada de
5.07.2000, declarou adquirir a fracção autónoma descrita em A) dos factos
assentes a “Sociedade de Investimento e Construção XXX”, que declarou
vendê-la à aqui Autora, conforme consta do documento de fls. 40 a 45 dos
autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea B da Especificação).
- A Autora procedeu, ainda, ao registo daquela aquisição no próprio dia
5.7.2000 junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, mediante a
inscrição nº 16666 do Livro G, conforme documento de fls. 9 a 16 dos
autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea C da Especificação).
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- Entre “Sociedade de Investimento e Construções XXX” e D foi outorgado
a 26.08.1993, o contrato denominado de “contrato de compra e venda de
prédio”, contrato este em que “a parte A vende à parte B e esta adquire a
fracção autónoma designada por loja “J” do XXX que está em curso a
construção, sito na Avenida Dr. XXX ...”, conforme documento da fls. 24
dos autos (tradução em língua portuguesa a fls. 349 dos autos), cujo teor
se dá por reproduzido (alínea D da Especificação).
- O preço da fracção autónoma designada por loja “J” do Edifício “XXX”
foi pago na totalidade pela parte B – D -, na data do antecedente contrato
(alínea E da Especificação).
- Mediante outorgada a 7.12.1998, D declarou constituir sua bastante
procuradora a ora Autora B, a que, com a limitação temporal constante do
úlitmo (...) paragrafo da mesma escritura (“Os poderes conferidos nesta
procuração só poderão ser utilizados a partir de 6 de dezembro de 1999”),
conferiu poderes para exercer quaisquer direitos que para a outorgante
advenham do contrato-promessa acima referida em D) dos factos assentes,
“... nomeadamente o de ceder a sua posição contratual, exigir o
cumprimento da promessa, obter a sua execução específica, exigir e
receber quaisquer indemnizações pelo seu não cumprimento ...”, tudo
conforme documento de fls. 18 a 23 dos autos, cujo teor se dá por
reproduzido (alínea F da Especificação).
- Mais, ainda, declarou a outorgante D naquele escrito de fls. 18 a 23 que
“Ësta procuração é também conferida em benefício da procuradora, nos
termos do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco e do artigo
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mil cento e setenta e cinco, ambos do Código Civil, pelo que não poderá
ser revogada sem consentimento da interessada”, tudo conforme
documento de fls. 18 a 23 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido
(alínea G da Especificação).
- D faleceu a 2.12.1999, em Beijing (documento de fls. 199 a 201 dos autos)
(alínea H da Especificação).
- Pelo testamento cerrado, datado de 23.05.1996, a aludida D, que era
solteira, designou como seu único herdeiro, o seu filho menor E e como
seu executor testamentário o ora Réu, A, conforme certidão judicial de fls.
202/203 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea I da
Especificação).
- A C, de que a falecida D era sócia-gerente, tem como centro da sua
actividade negocial a fracção autónoma referida em A) dos factos assentes,
sendo o Réu A empregado nesta sociedade (alínea J da Especificação).
- A 19.05.2000 foi instaurado pelo MP inventário por óbito de D, sendo que,
segundo consta do dito inventário, o único herdeiro da inventariada será
seu filho E, menor, nascido a 1.07.1989, e ali exercendo as funções de
cabeça de casal o aqui Réu A, tudo conforme certidão judicial junta a fls.
197/198 destes autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea L da
Especificação).
- A Autora comunicou ao Réu A a aquisicão da fracção referida em A) dos
factos assentes, mediante a carta datada de 23.09.2000, conforme consta
de fls, 30/31 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea M da
Especificação).
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- Em resposta a esta carta, o Réu A recusou a entrega da dita fracção,
referindo que estava a ocupar a dita fracção pelo facto de sua irmã D a ter
ocupado, fazendo nela sede de uma sociedade de que era sócia, conforme
carta de fls. 33 e 34 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (alínea N
da Especificação).
- Apesar da celebração da escritura de compra e venda referida em B) dos
factos assentes, a Autora não logrou até ao momento ocupar a fracção ali
referida, encontrando-se a mesma a ser utilizada pelos RR., A e C (alínea
O da Especificação).
***
Da base Instrutória:
- Em 2003 e 2004, a Autora poderia dar a fracção autónoma em causa da
arrendamento pela renda mensal cerca de MOP$8,000.00 (alínea O da
Especificação).
- Desde a data do contrato referido em D) dos factos assentes – 26.08.93 -,
a D usufruiu da fracção “J”, ali exercendo a sua actividade de mediadora
imobiliária, através de empresa C (resposta ao quesito 8º).
- Conservando-a, mantendo nela empregados encarregados da sua guarda e
manutenção (resposta ao quesito 9º).
- O Réu A, na sua qualidade cabeça de casal nos autos de inventário
Pº-CIV-018-00-3, passou a administrar os bens da D dos quais se conta
com a participação social desta última na Empresa C, que continua a
instalar-se na referia fracção (resposta ao quesito 11º).
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- Pela contestação e acompanhamento da presente acção, o Réu A terá de
pagar ao seu Mandatário constituído MOP$50,000.00 (resposta ao quesito
13º).”
III – FUNDAMENTOS
1. Vamos analisar a questão em termos simples.
A A., ora recorrida, B, propôs acção de reivindicação sobre o
andar em causa.
Alegou, para tanto, a propriedade e respectivo registo sobre a
coisa, factos que vêm comprovados.
Contrapôs o R., ora recorrente, A, que essa fracção fazia parte
do acervo hereditário de D, estando na posse desta última, quando do seu
falecimento, ocorrido em 2 de Dezembro de 1999, sendo, então, a mesma
promitente-compradora da aludida fracção autónoma, cujo preço foi pago
na totalidade, quando da assinatura e outorga do contrato-promessa da
compra e venda, em 26/08/1993.
Factos estes que lhe dariam o direito de se opor àquela
peticionada restituição da coisa e concluindo pela ineficácia da compra e
venda realizada entre a Autora, ora Recorrida e a sociedade, em relação ao
herdeiro e ao Réu, ora Recorrente, na qualidade de legal representante
daquele.
Perante este argumento, invocou desde logo a A. que a falecida
promitente-compradora lhe havia conferido uma procuração relativamente
a esta mesma fracção, com carácter irrevogável, com poderes para fazer
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negócio consigo mesmo com a limitação temporal de esses poderes só
poderem ser utilizados a partir de 06-12-1999.
Ao que o R., replica que a procuração já estava caducada.
2. Dentro deste quadro, a A. pediu, no que ao caso interessa, o
reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição da coisa e o R.
pediu a improcedência desse pedido, por provadas as excepções aduzidas,
formulando vários pedidos reconvencionais:
- reconhecimento ao E a qualidade de herdeiro da falecida D,
aqui representado pelo seu representante legal, o ora Réu, A designado
cabeça-de-casal nos autos de inventário obrigatório por óbito da D;
- a restituição da fracção autónoma, aqui reivindicada, ao acervo
hereditário da sucessão aberto por morte daquela falecida; a declaração de
caducidade da procuração, datada de 07-12-1998, assinada por D;
- a ineficácia, face ao representado do ora Réu, da revogação
dos referidos contratos-promessa de compra e venda, na data de 5 de Julho
de 2000;
- a ineficácia, em relação ao representado do Réu, E, da
aquisição das fracções autónomas, nomeadamente daquela a que se
reportam os autos e consequente cancelamento do registo da aquisição.
3. Há uma questão que a recorrida alega e que se prende com o
facto de as questões concernentes aos diversos pedidos reconvencionais
não poderem ser discutidas nesta sede, porquanto os pedidos
reconvencionais não foram admitidos em sede de prolação do despacho
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saneador, despacho esse que se mostra transitado.
Em certa medida tem razão. Na medida em que essas questões
constituam o fundamento dos pedidos reconvencionais.
Já não assim enquanto essas matérias constituam o fundamento
das excepções eventualmente impeditivas do direito alegado pela A.
4. Vejamos então.
A. A. logrou provar, sem margem para quaisquer dúvidas, o
facto pressuposto da reivindicação, ou seja a propriedade sobre a coisa.
Na verdade, dispõe o artigo 1253º do C. Civil:
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou
detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente
restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser
recusada nos casos previstos na lei.”
E o R. logrou provar facto que impeça essa restituição nos
termos previstos no n.º 2 do citado artigo 1235º?
Na reivindicação para que o réu triunfe na acção é necessário
que prove que tem título ou situação legal que justifique a sua posse.
E essas situações serão a alegação do domínio sobre a coisa
(verdadeiro dono) ou da posse oponível ao proprietário, seja ela derivada
de um direito real ou derivada de uma relação contratual a cuja
observância esteja adstrito o autor.
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Pode ainda o réu recusar a entrega alegando direito de retenção,
para além como é evidente, de negar os factos (v.g. negar que o autor não
tem o domínio, que seja o possuidor da coisa demandada, que a coisa que
possui não é a reivindicada), arguir excepções de longo tempo, que o
domínio não pertence ao autor, perecimento da coisa, sem culpa sua,
sendo possuidor de boa-fé, etc. 1
O R. invoca a posse.
Pretende radicá-la na transferência da coisa na sequência de um
contrato-promessa que a falecida D terá efectuado com pagamento integral
do preço.
Só que a A. diz ser a possuidora na medida em que esse direito
lhe pertence, não só porque o comprou, como os direitos derivados
daquele contrato-promessa lhe foram transmitidos por aquela D atrvavés
de uma procuração em que podia realizar actos sobre a dita fracção e a seu
favor.
Foi este o entendimento acolhido na douta sentença recorrida e
que aqui continua a merecer acolhimento.
É verdade que o nosso ordenamento adoptou a doutrina
subjectivista de Savigny, autonomizadora do corpus e do animus , única
forma de distinguir a verdadeira posse dos casos de mera detenção.
E na esteira de autorizada doutrina, tem a Jurisprudência de
Macau acatado a ideia de não ser possível qualificar a priori de posse ou
mera detenção o poder de facto exercido sobre a coisa objecto do contrato
1 - Manuel Salvador, Elementos da Reivindicação, 1958, 216
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prometido entregue antecipadamente, tudo dependendo do animus que
acompanhe esse corpus.2
5. No caso sub judice, no sentido de afastar a licitude da posse
da A. que, realça-se, actuou na requerida compra em nome próprio e não
como procuradora da D, tece o recorrente longas considerações,
reclamando a caducidade da procuração, pedido este que veio a ser
indeferido nos termos já acima apontados.
Bom, desde logo se observa que a questão perde acuidade, na
medida em que a A. não adquiriu a fracção como procuradora da D,
embora estivesse munida de uma procuração em que esta a declarou
constituir sua bastante procuradora, com poderes só utilizáveis a partir de
6 de dezembro de 1999, com poderes para exercer quaisquer direitos que
para a outorgante advenham do contrato-promessa aludido,
nomeadamente o de ceder a sua posição contratual, exigir o cumprimento
da promessa, obter a sua execução específica, exigir e receber quaisquer
indemnizações pelo seu não cumprimento, procuração conferida em
benefício da procuradora, nos termos do n.º 3 do art. 265º e do art. 1175º,
ambos do Código Civil, pelo que não poderia ser revogada sem
consentimento da interessada.
Mas tendo morrido em 2/12/1999 a procuração teria caducado.
Ora do disposto no n.º 3 do artigo 265º do C. Civil vigente ao
tempo da celebração do mandato “se a procuração tiver sido conferida
2 - Ac. do TSI de 17/3/05, proc. 292/2004
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também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada
sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”, reforçado no
regime do mandato em que este é livremente revogável por qualquer das
partes, a não ser em que tenha sido conferido no interesse do mandatário –
artigo 1170º e do artigo 1175º em que “A morte, interdição ou inabilitação
do mandante não faz caducar o mandato quando este tenha sido conferido
também no interesse do mandatário ou de terceiro”, resulta quer a
irrevogabilidade do contrato quer a sua eficácia no post-mortem do
mandante.
Essa irrevogabilidade e não caducidade do mandato no interesse
do mandatário ou no interesse comum resulta ipso jure da constatação de
interesses do acto gestório que se não confinam aos do mandante3, o que
neste caso, no que à fracção prometida comprar respeita é por demais
evidente.
É neste enquadramento que se configura a actuação da A. como
compradora daquela fracção, não tendo tido necessidade de usar da
procuração. Esta legitima tão somente a sua actuação perante a Sociedade
vendedora que tinha prometido vender a outrem e perante aquele mandato
se terá visto livre para vender a quem tinha poderes para transferir os
direitos resultantes de um contrato-promessa anteriormente celebrado.
6. Pelo que, tal como se assinala na douta sentença recorrida, a
caducidade ou não da procuração não tem repercussões directas nos
3 -Manuel Januário Gomes, Em Tema de Revogação do Mandato Civil, 1989,171
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direitos adquiridos pela Autora, já que esta celebrou directamente o
contrato de compra e venda com a legítima vendedora, Companhia de
Investimento e Construção XXX. Agora, porque é que esta companhia, já
tinha prometido vender a fracção à falecida D e veio a vender o imóvel à
Autora, esta que é a verdadeira questão! Para saber o que se passou e
porque assim aconteceu, seriá preciso chamar a referida Companhia.
Por aqui se vê que falece razão ao recorrente ao dizer que se
assentou num facto não provado, qual fosse o de que com essa procuração
se terá revogado o contrato- promessa celebrado.
7. Quanto à posição de que a escritura pública de compra e
venda não foi válida e eficazmente realizada é questão que não merece
qualquer desenvolvimento, face ao que vem comprovado relativamente à
aquisição da fracção e respectivo registo.
Se o que o recorrente pretende fazer abalar é a conduta da
vendedora que havia prometido vender a outrem e vendeu à A., então essa
é outra questão que só em sede de eventual incumprimento contratual
pode ser aquilatada.
8. Vejamos então se posse do R. é boa para que se possa opor à
restituição da coisa.
É verdade que ficou provado que a falecida D exerceu posse
sobre a Fracção sub judice desde 26-08-1993, em virtude de ter sido
promitente compradora da mesma, ali tendo instalado uma Companhia
que continuou no mesmo local após a sua morte.
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Mas não menos provado está que em 07-12-1998 a D outorgou
uma procuração irrevogável a favor da ora Recorrida na qual a constituiu
sua bastante procuradora para exercer todos os poderes relativamente ao
contrato-promessa referente à Fracção, com a limitação temporal de esses
poderes só poderem ser utilizados a partir de 06-12-1999.
Acresce que em 05-07-2000 a Autora adquiriu, por escritura
pública de compra e venda outorgada com a anterior proprietária, o direito
de propriedade sobre a fracção, direito esse que fez registar na
Conservatória.
E o que não deixa de ser muito significativo é o facto de a A. ter
comunicado, em 23-09-2000, a todos os ocupantes da Fracção, entre os
quais o Recorrente, que houvera adquirido o direito de propriedade sobre a
mesma, mais lhes solicitando a sua imediata desocupação.
Provado ficou também que o Réu, ora recorrente, em resposta a
essa missiva, recusou a entrega da dita fracção, referindo que a estava a
ocupar pelo facto de a sua irmã, a falecida D, a ter ocupado.
Em suma, a partir pelo menos, a partir de 23-09-2000, que não
se pode, obviamente, falar de posse exercida por esses ocupantes sobre a
dita fracção, sendo que desde essa data que a ocupação que estes fazem do
dito imóvel é abusiva e ilegal, tendo a expressa oposição do legítimo
proprietário.
9. E com isto estamos a entrar no cerne da questão.
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Como acima se disse e já noutras situações se tem julgado, o
possuidor da coisa prometida comprar, transferida e paga, actuando com o
animus domini, terá tutela dos seu direito contra outro titular que se
arrogue direito que lhe seja hostil.
Assim é de facto.
Só que neste caso a situação diverge daquel’outras acima
elencadas.
Em primeiro lugar, quoad est demonstrandum sempre se teria de
provar aquele animus.
Mas mesmo que este elemento se presumisse a partir da mera
ocupação e desenvolvimento da actividade comercial no local - o que é
pouco, bastando pensar em tantas ocupações a título precário -, o que se verifica é
que a primitiva possuidora com o direito à celebração do contrato
definitivo e com a sua posse tutelada a partir desse contrato, abriu mão da
sua posição e transferiu os seus direitos para a A.
A partir desse momento, a posse que ela e os seus sucessores
passam a exercer deixou de merecer a tutela que o vínculo obrigacional
comportava com alguma projecção em termos de tutela real -
possibilidade de obrigar o promitente vendedor ao contrato definitivo.
Com a celebração daquela procuração a favor e no interesse da
mandatária, incidente sobre a fracção em causa, já não lhe é mais possível,
nem à mandante nem aos seus sucessores fazer cumprir especificamente o
contrato, sem que aquela invoque a defesa dos seus interesses
expressamente conferidos na procuração que detém.
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No fundo, pode dizer-se que foi a própria
promitente-compradora que, com a sua actuação, passou a ocupar a coisa
em nome da mandatária que a partir do momento em que adquire a fracção
a pode reivindicar sobre quem não tenha justo título, como será o caso em
relação aos seus ocupantes.
Perante isto cabe jus ao proprietário da coisa reivindicá-la, pelo
que se confirma o doutamente decidido.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao
recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Macau, 16 de Fevereiro de 2006,
João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong