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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUCSP Carlos Eduardo Borrely Rios Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2013

Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de … · 2017. 2. 22. · livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo. Orientação: Profa. Dra. Lucia Leão

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PONTIFÍCIA  UNIVERSIDADE  CATÓLICA  DE  SÃO  PAULO  –  PUC-­‐SP  

         

Carlos  Eduardo  Borrely  Rios                    

Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo  

                     

MESTRADO  EM  COMUNICAÇÃO  E  SEMIÓTICA    

   

SÃO PAULO 2013

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Carlos  Eduardo  Borrely  Rios                    

Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo  

           

   

MESTRADO  EM  COMUNICAÇÃO  E  SEMIÓTICA        

Dissertação   apresentada   à   Banca  Examinadora  da  Pontifícia  Universidade  Católica   de   São   Paulo,   como   exigência  parcial   para   obtenção   do   título   de  Mestre   em     Comunicação e Semiótica, pela linha de pesquisa Processo de Criação nas Mídias,   sob   a   orientação   da   Profa.  Dra.  Lucia  Isaltina  Clemente  Leão.  

 

SÃO PAULO 2013

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BANCA EXAMINADORA:

 

 

 

 

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AGRADECIMENTOS  

 

 

De  todo  coração  a  minha  Mãe  Sueli  que,  apesar  de  todas  as    turbulências,  sempre  

esteve  ao  meu  lado  em  todos  os  meus  processos.    

Aos  meus  alunos  que  me  motivaram  com  suas  questões.  Em  especial  àqueles  que  

cederam  suas  imagens  para  este  trabalho.  

Aos  amigos  que  ajudaram  direta  e  indiretamente.  

A   minha   orientadora   Lucia   pelo   apoio   e   o   encontro   inesperado   às   vésperas  

destas  conclusões.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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RIOS, Carlos Eduardo Borrely. Processos comunicacionais no contexto de oficinas livres de dança: caminhos para expressão criativa do corpo. Orientação: Profa. Dra. Lucia Leão. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC – SP, São Paulo. 2013.  

RESUMO  

 

 Quais   são   as   características   dos   processos   comunicacionais   que   ocorrem   nas  

relações   professor-­‐aluno   no   contexto   de   oficinas   livres   de   dança?   Como   estes  

procedimentos   podem   gerar   processos   que   propiciem   o   desenvolvimento   de  

caminhos   singulares   de   expressão   dos   participantes?   Como   estimular  

experiências   com  o  próprio   corpo   através  da   técnica  do   sapateado   americano?  

Estas   são  as  questões  que  movem  a  presente  pesquisa.  O  objetivo  principal   foi  

refletir   como   os   processos   criativos   e   comunicacionais,   que   se   estabelecem  no  

contexto  das  oficinas  de  dança,  atuam  na  mediação  da  descoberta  expressiva  do  

movimento.   As   mediações   e   os   processos   criativos   e   cognitivos   foram  

fundamentados  em  teorias  da  comunicação.  Os  autores  adotados  foram  Flusser,  

Santaella  e  Vieira,  entre  outros.  O  conceito  de  corpomídia  de  Katz  e  Greiner,  e  os  

estudos  sobre  imagem  mental  propostos  por  Damásio  complementam  a  base  de  

referência.   A   proposta   envolveu   a   reflexão   e   o   diálogo   com   procedimentos  

criados  por  Klauss  Vianna,  no  desenvolvimento  de  seu  método  de  expressão  pelo  

movimento   corporal.   A   metodologia   compreendeu   a   pesquisa   bibliográfica;  

coleta   e   organização   dos   documentos   referentes   aos   processos   de   criação   em  

oficinas   (diários,   desenhos   e   vídeos);   análises   dos   procedimentos   à   luz   das  

teorias   de   processos   (Salles)   e   memorial   reflexivo   das   atividades   docentes.  

Espera-­‐se  que  essa  pesquisa,  ao  documentar  processos  de  criação  de  oficinas  e  

organizar  reflexões  sobre  as  relações  comunicacionais  vividas  nesses  contextos,  

possa  contribuir  com  os  estudos  da  teoria  do  corpomídia.    

 

 

Palavras-­‐chave:  comunicação;  corpomídia;  processos  de  criação;  dança.  

 

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ABSTRACT  

 

 

What   are   the   characteristics   of   the   communication   process   that   happen  

during   dance  workshops   between   teacher   and   students?   How   can   those  

procedures  generate  process  in  such  a  way  that  everyone  involved  is  able  

to   be   part   of   unique   ways   of   expression?   How   can   we   stimulate   body  

experiences   through   American   tap   dance   techniques?   Those   are   the  

questions   that   build   this   research.   The   principal   objective   was   to   think  

about   how   the   creative   and   communication   processes   work   together  

during   the   mediation   of   an   expressive   movement   discovery.   The  

mediations   and   creative   and   cognitive   processes   are   based   in  

communication   theories.   Some  of   the  authors  used  are  Flusser,   Santaella  

and   Viera.   The   bodymedia   background   by   Katz   and   Greiner,   and   the  

mental   imaged   studies   by   Damásio   improve   the   reference   bases.   The  

proposal  is  to  think  and  converse  with  other  procedures  by  Klaus  Vianna  

who   developed   a   body   expression   based   method.   The   methodology  

includes   bibliographical   research;   collect   and   organization   of   documents  

about   the   creation  during   the  workshops   (diaries,  drawings  and  videos);  

procedures   analysis   through   the   process   theory   view   and   reflexive  

memorial   about   teaching   activities.   We   hope   this   research,   while   we  

document   workshops's   creative   process   and   organize   those   reflections  

about   communication   relations   lived   during   this   context,   can   contribute  

with  the  bodymedia  studies.    

 

 

Keywords:  Communication;  corpomidia;  creative  process;  dance.    

 

 

 

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ÍNDICE  DE  ILUSTRAÇÕES  

 

 

 Figura   1   –   As   alunas   deficientes   visuais   Gisele   Aparecida   e   Fabiana   Croccia  tocando  as  pernas  do  professor  para  codificar  um  passo  de  sapateado  americano.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  fevereiro  2013.  (p.63)    Figura   2   –   As   alunas   deficientes   visuais   Gisele   Aparecida   e   Fabiana   Croccia  tocando   a   coxa  do  professor   para   codificar   um  passo  de   sapateado   americano.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  fevereiro  2013.  (p.64)    Figura  3  –  A  aluna  deficiente  visual  Gisele  Aparecida  tocando  a  canela  e  o  pé  do  professor  para  codificar  um  passo  de  sapateado  americano.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  fevereiro  2013.  (p.64)    Figura  4  –  O  professor  toca  a  perna  da  aluna  Marina  Guimarães  para  reorganizar  as  diretrizes  descritas  oralmente.  Associação  de  Balé  de  Cegos,   fevereiro  2013.  (p.65)    Figura  5  –  O  professor  toca  a  aluna  Marina  Guimarães  com  a  própria  perna  na  busca  de  novas  formas  de  sensibilização  da  informação  corporal.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  fevereiro  2013.  (p.66)    Figura   6   –   Alunas   fazendo   o   primeiro   passo   denominado   shuffle   da   sequência  carryover  do  sapateado  americano.  São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.  (p.69)    Figura   7   –   Alunas   fazendo   o   segundo   passo   denominado   “hop”   da   sequência  carryover  do  sapateado  americano.  São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.  (p.69)    Figura   8   –   Alunas   fazendo   o   terceiro   passo   denominado   step   acrescido   do  movimento   de   rotação   na   sequência   carryover   do   sapateado   americano.   São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.  (p.70)    Figura   9   –   Alunas   liberando   a   perna   esquerda   após   o   término   da   sequência  carryover  do  sapateado  americano.  São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.  (p.70)    Figura  10  –  Tradução  das  músicas  em  forma  de  desenho  feita  pela  aluna  Nayara  Alves   durante   o   exercício   “desenhando   a   música”.   Taboão   da   Serra,   setembro  2009.  (p.71)    Figura   11   –   Tradução   das   músicas   em   forma   de   desenho   feita   pela   aluna  Rosangela  Pereira  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009.  (p.72)    

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Figura  11a  –  Recorte  “Jogando  bola  dentro  de  casa  e  quebrou”  da  Figura  12.  (p.76)    Figura  12  –  Tradução  das  músicas  em  forma  de  desenho  feita  pela  aluna  Thais  Ribeiro  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009.  (p.72)    Figura  12a  –  Recorte  “Bailarinas”  da  Figura  12.  (p.74)    Figura  12b  –  Recorte  “Música  do  Naruto”  da  Figura  12.  (p.75)    Figura  12c  –  Recorte  “Quebra  tudo”  da  Figura  12.  (p.76)    Figura  13  –  Tradução  das  músicas  em  forma  de  desenho  feita  pela  aluna  Thayla  Policarpo  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009.  (p.73)    Figura  13a–  Recorte  “Vidro”  da  Figura  13.  (p.77)    Figura  14  –  Tradução  das  músicas  em  forma  de  desenho  feita  pela  aluna  Pâmela  Nascimento   durante   o   exercício   “desenhando   a   música”.   Taboão   da   Serra,  setembro  2009.  (p.73)    Figura  14a  –  Recorte  “Balé”  da  Figura  14.  (p.75)    Figura  14b  –  Recorte  “Naruto”  da  Figura  14.  (p.75)    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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SUMÁRIO    

 

 

INTRODUÇÃO                                                                                                                                                                                                                                                    10  

 

1.0  -­‐  CAPÍTULO  1  -­‐  Inquietudes                                                                                                                                                                              16  

 

 

2.0  -­‐  CAPÍTULO  2  –  Algumas  definições                                                                                                                                              31  

 

     2.1  -­‐  As  possibilidades  através  das  inquietudes                                                                                                      48  

 

 

3.0  -­‐  CAPÍTULO  3  -­‐  Experiência  e  dança  –  descrição  de  processos  nas  

oficinas  de  Sapateado  Americano                                                                                                                                                                  59  

           

     3.1  -­‐  Associação  de  Balé  de  Cegos  –  o  toque  como  forma  de  aprender  o                                

movimento                                                                                                                                                                                                                                                            62  

 

     3.2  -­‐  SPFC  –  São  Paulo  Futebol  Clube  –  percepção  e  meios  digitais                          66  

 

     3.3  -­‐  Taboão  da  Serra  -­‐    música:  desenho-­‐audição-­‐visualidade  –    

   repertório  sensível  das  crianças.                                                                                                                                                                70  

 

 

CONSIDERAÇÕES  FINAIS                                                                                                                                                                                                        82  

 

 

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS                                                                                                                                                                        86  

 

 

 

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INTRODUÇÃO  

 

 

Outro  dia,  ao   ler  as   frases  do  “Panorama  –  Veja  Essa”,  uma  sessão  de   frases  de  

personalidades   da   revista   Veja,   encontrei   uma   frase   do   bailarino   Mikhail  

Baryshnikov   que   instigou   algumas   das  minhas   questões   enquanto   professor   e  

bailarino   que   há   anos   estavam   instigando   minhas   dificuldades   em   relação   a  

dança   e   ao   processo   de   apreensão   dos  movimentos.   A   frase   dizia:   “Sou   só   um  

instrumento  na  mão  de  outras  pessoas.  Não  tenho  o  gene  da  criação”.  

 

A   partir   desse   pensamento   do   bailarino   russo   Baryshnikov,   várias   questões  

podem   ser   elencadas.   Uma   delas:   não   é   possível   que   um   grande   bailarino,    

mesmo   quando   reproduz   uma   coreografia,   não   está   transformando   esses  

movimentos   –   esses   estímulos   externos   ao   seu   corpo   –   em   uma   obra   de   arte.  

Acreditamos,   pois,   que  nesse  processo  o   artista   consequentemente,     traduz,   de  

certa   maneira,   esses   movimentos   para   seu   corpo.   Que   corpo   e   estímulos   são  

esses  que  se  apropriam  simultaneamente  um  do  outro  e   são   transformados  de  

fato   numa   obra   coreográfica?   Como   acontece   essa   tradução   de   estímulos  

externos   e   de   técnicas   para   o   corpo   que   configura   algo,   e   não   apenas   repete?  

Neste  sentido,  pretende-­‐se  com  este  trabalho,  transportar  estas  questões  para  o  

trabalho   entre   professor   e   aluno   em   oficinas   e   aulas   livres   de   sapateado  

americano  em  academias  de  danças,  academias  de  ginástica  e  oficinas  culturais  

na   cidade   de   São   Paulo   e   Taboão   da   Serra,   as   quais   o   presente   pesquisador  

participou  como  professor.    

 

Os  estudos  de  casos  tratam-­‐se  das  seguintes  instituições,  a  saber,  Associação  de  

Balé  e  Artes  para  Cegos  Fernanda  Bianchini,  Clube  Desportivo  São  Paulo  Futebol  

Clube  e  Prefeitura  Municipal  de  Taboão  da  Serra,  SP.  

 

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Estas  dificuldades  de  apreensão  do  movimento  durante  as  experiências  pessoais  

do   pesquisador   ganharam   forças   para   o   questionamento   científico   a   partir   do  

momento   em   que   nos   deparávamos   durante   os   estudos   em   dança,  

inevitavelmente,  com  uma  série  de  partituras  coreográficas.  Nestas  coreografias,  

surgiram  os     questionamentos:   como   faríamos  para  que   aqueles  movimentos   -­‐  

que   não   caracterizavam     parte   do   repertório   do   corpo   –   pudessem   constituir    

parte   desse   corpo,   comunicar   algo   além   da  mera   repetição?   Como   reler   esses  

estímulos   e   transformá-­‐los   em   algo   que   representasse   não   apenas   mera  

repetição  dos  movimentos  propostos  pelo  coreógrafo?  

 

Posteriormente,   associando     as   experiências   pessoais   do  pesquisador-­‐bailarino  

com   a   urgência   de   novas   maneiras   para   resolver   este   problema   enquanto  

professor   de   dança,   surge   a   necessidade   de   buscar   respostas   para   a   seguinte  

questão:  

 

É  possível  iniciar  um  processo  de  instrumentalização  a  alunos  de  dança  para  que  

estes   se   comuniquem,   através   da   linguagem   do   corpo,   diferentemente   da  

repetição  de  passos  numa  coreografia?  

 

Esta   questão   gerou   dois   desdobramentos   tão   importantes   quanto   o  

questionamento  inicial,    a  saber:  

 

Até  que  ponto  a  percepção  e  apreensão  das  coisas  do  mundo  de  um  determinado  

bailarino,  bem  como  suas  experiências  pessoais,  já  não  carregam  os  movimentos  

e  o  diferencia  dos  outros  corpos  que  dançam  uma  mesma  coreografia?    

 

E,  por  fim,  ao  repetir  determinados  movimentos  de  uma  coreografia,  o  bailarino  

já  imprime  naturalmente  seu  discurso  pessoal  estampado  no  seu  corpo  enquanto  

se  movimenta?  

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Ao   longo   da   experiência   do   processo   de   aprendizado   em   dança   do   presente  

pesquisador  e  observador,  em  algumas  academias  de  dança  das  quais    faz  parte  

do  quadro  de  professores,  percebe-­‐se   frequentemente    que  o   condicionamento  

infinito   e   aparentemente   sem   propósito   pode   causar   várias   frustrações   e  

aumentar  as  dificuldades  dos  alunos.  O  resultado  seria  o  afastamento  gradual  de  

um   possível   artista,   em   decorrência   de   uma   linguagem   ensinada   com   bases  

teóricas  ultrapassadas  que  levam  em  conta  um  modelo  de  movimento  e  técnica  

de  dança  baseado  em  corpos  idealizados.    

 

Muito  se  tem  refletido  e  discutido  em  relação  aos  processos  de  criação  coletivos  

e  colaborativos  nas  áreas  do  teatro  e  dança  contemporânea.  Ou  seja,  procura-­‐se  

compreender   como   todos   os   participantes   e   co-­‐autores   contribuem   nas  

discussões   e   nas   tomadas   de   decisões   durante   o   processo.   Mas   é   difícil  

encontrarmos   bibliografias   que   discutam   a   relação   do   processo   criativo   em  

danças   como   o   sapateado   americano,   assim   como   novas   maneiras   de   se  

comunicar  com  os  alunos,  meios  que  não  se  resumem,  simplesmente,  em  adotar  

metodologias   importadas   mal   aplicadas   aos   bailarinos.   Alguns   autores   que  

observam  a  importância  das  experiências  pessoais  e  do  contexto  dos  bailarinos  

para   apreensão   dos   movimentos,   como   é   o   caso   de   Klauss   Vianna,   serão  

abordados  nos  próximos  capítulos.  

 

É  neste  aspecto  que  este  trabalho  pretende,  a  partir  de  observações  nas  oficinas,    

buscar  maneiras  de  favorecer  o  aprendizado  do  corpo  dentro  dessa  linguagem  e  

incentivar  o  aluno  a  pesquisar   seu  corpo  como  um   futuro  artista  do   sapateado  

americano.    

 

 A   partir   de   documentações   do   processo   criativo   de   oficinas   de   sapateado  

americano,   orientadas   pelo   autor,   trilhar-­‐se-­‐á   caminhos   para   chegar   aos  

objetivos   propostos,   e   observar   como   esta   rede   de   procedimentos   constituiu  

parte   desta   observação   do   corpo   que   dança   e   precede   suas   possibilidades  

através  da  linguagem  da  dança.  

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As  discussões  sobre  dança  moderna,  contemporânea  e  dança  educativa  tem  uma  

vasta   bibliografia   que   variam   desde   classificações   dos   movimentos   até   a  

conceituação  de  dança  como  linguagem  oculta  da  alma  (Martha  Graham).  

 

O   movimento   e   a   funcionalidade   que   este   movimento   pode   trazer   para   o  

cotidiano   dos   seres   humanos   são   pontos   fundamentais   na   pesquisa   de   Rudolf  

Laban   (1990).     O   autor   compara   as   pesquisas   anteriores   de   dança   e   as  

repercussões   dos   movimentos   dos   trabalhadores   nas   fábricas   no   final   da  

revolução   industrial.   A   partir   de   então,   Laban   (1990)   propõe   uma   dança  

educativa   moderna,   a   que   todas   as   crianças   em   fase   estudantil   deveriam   ser  

submetidas  para  dominarem  o  movimento  de  tal  maneira  que  a  aplicação  desses  

movimentos  acontecesse  naturalmente  em  todas  as  atividades  durante  sua  vida.  

 

Alguns  outros  artistas  de  fundamental  importância  tiveram  seus  trabalhos  muito  

discutidos  pela  inovação,  como  Pina  Bausch  que  buscava  o  discurso  do  corpo  que  

dança   e   por   isso,   em   seus   trabalhos   coletivos,   construía   coreografias   baseadas  

nas  histórias  de  vida  de  seus  bailarinos.  

 

No   cenário   brasileiro   temos   importantes   contribuições,   como   Klauss   Vianna  

(2005)  que  propõe  novas  maneiras  do  ensino  do  balé  clássico.    O  autor  propõe  

uma  abordagem  que  leva  em  consideração  os  sentimentos  do  corpo  que  dança  e  

como   isto  pode  ajudar  na  preparação  deste   corpo   se  não   for   ignorado;  propõe  

também  que  a  sala  de  aula  de  dança  é  um  lugar  onde  se  questiona  e  se  participa  

inteiramente  e  não  apenas  repetimos  movimentos  propostos  por  outro  corpo  em  

busca  de  uma  forma  inalcançável.  

 

Todos  estes  autores  têm  em  comum  uma  busca  pelo  discurso  do  movimento,  de  

certa  maneira,  um  discurso  de  oposição  às  danças  mais  tradicionais,  como  o  caso  

do   balé   clássico,   não   às   danças   propriamente   ditas,   mas   à  maneira   como   elas  

foram  ensinadas  e  ainda  hoje  resistem  em  ser  ensinadas.  Além  disso,  os  referidos  

autores  defendem  o  movimento  e  a  expressividade  que  deve  ser  intrínseca  a  ele.  

Este  também  é  um  ponto  em  comum  com  este  trabalho.    

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Os   pontos   que   diferenciam   este   trabalho   dos   outros   autores   citados  

anteriormente,   os   quais   acreditamos   que   poderiam   enriquecer   os   estudos   do  

corpo  nos  dias   atuais   são:   olhar   a  partir   da  percepção  o  processo   coreográfico  

como  parte  de  um  processo  criativo  -­‐  coreografia/apreensão;  e,  por  fim,  o  corpo  

como   possibilidade   de   construção   do   sapateado   e   não   o   corpo   a   serviço   da  

técnica  do  sapateado.    

 

A   percepção   será   a   base   do   olhar   para   o   corpo.   Dessa   forma,   neste   trabalho  

recorre-­‐se  a  autores  como  Lúcia  Santaella(1993),  que  discute  a  percepção  sob  a  

perspectiva   semiótica   de   Charles   Sanders   Pierce.   Cecília   de   Almeida   Salles    

(1998)    discute  a  percepção  no  processo  criativo  relacionando-­‐a  com  as  redes  de  

pensamento   que   se   entrelaçam   durante   o   ato   da   criação.   A   autora   aborda,  

inclusive,   algumas   participações   em   processos   criativos   de   dança.   Essa  

perspectiva  será  base  para  as  questões  do  olhar  sobre  procedimentos  do  corpo.  

Definições  do  corpomídia  apresentadas  por  Christiane  Greiner  (2005)  e  Helena  

Katz   (2005)   iluminam   questões   relativas   aos   movimentos   e   as   apreensões   de  

mundo  inevitavelmente  mediadas  pelo  corpo.  

   

O  estudo  do  corpo  e  de  suas   linguagens,  neste  caso  a  dança,  é   fundamental  em  

qualquer  época  e  qualquer  situação,    porque    rodeado  de  tecnologias  ou  aparatos  

eletrônicos  que  criam  e   recriam  novas  perspectivas  e  olhares  de  mundo  está  o  

corpo.    É  ele  que  recebe  e  se  modifica,    que  cria  e  usufrui  de  toda  e  qualquer  nova  

possibilidade.   É   o   corpo   que   percebe,   interage   e   atua   no   meio   ambiente.   É   o  

corpo  que  gera  o  conteúdo  que  pode  até  ser  finalizado  num  aparato  tecnológico,  

mas  antes  de  qualquer  coisa  este  conteúdo  foi  corpo.  

 

Tendo   em   vista   os   temas   abordados   na   presente   pesquisa,   terá,   o   primeiro  

capítulo,  o  objetivo  de  abordar  questões  relacionadas  aos  processos  criativos  da  

dança  e  como  estes  são  difundidos  em  escolas     livres  e  de   formação  em  dança.  

Visa  ainda  propor  reflexões  relativas  a  expressões  comumente  utilizadas  em  sala  

de  aula  de  dança  como  é  o  caso  dos  termos  “técnica”  e  “metodologia”.  

 

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Por  meio   destas   definições,   um  paralelo   será   traçado,   afim  de   destacar   pontos  

comunicacionais   existentes   entre   os   processos   criativos   e   as   teorias   da  

comunicação.  A  questão  do   corpo  mídia  e  o   trabalho  do  bailarino  e   coreógrafo  

Klauss   Vianna   serão   confrontados   para   elucidar   as   tentativas   deste   autor   na  

busca  pela  complexidade  do  movimento  coreográfico.  Existe  no  aprendizado  da  

dança  uma  separação  entre  técnica  e  corpo,  tema  abordado  por  Neves  (2010)  em  

suas  pesquisas  sobre  a  Técnica  Klauss  Vianna,  a  qual  tenta  retomar  a  técnica  do  

corpo  como  parte  da  linguagem  da  dança  e,  consequentemente,  do  corpo.  

 

Questões  da  complexidade  do  corpo  e  da  dança  serão  discutidas  neste  capítulo,  

objetivando  propor  a  dança  e  sua  apreensão  como  processo  de  comunicação.  

 

No  capítulo  dois  será  discutida  a  questão  relativa  à  dificuldade  de  apreensão  dos  

movimentos   no   trabalho   dos   bailarinos.   Será   traçado   um   paralelo   entre   teoria  

sistêmica    e  as  possibilidades  do  corpo  a  que  cada  ser  vivo  está  possibilitado  a  

perceber,  de  acordo  com  os  aparelhos  perceptivos  que  lhe  são  característicos.    

 

Foram   escolhidos   dois   importantes   coreógrafos   no   cenário   da   dança   para  

abordar  pontos    comuns  e  distintos  em  seus  trabalhos,  comparados  à  abordagem  

proposta   nesta   presente   dissertação.     Por   fim,   discutiremos   uma   importante  

contribuição   sobre   a   Técnica   Klauss   Vianna.   Esta   técnica   desenvolvida   por  

Vianna  apresentou  muitos  pontos  em  comum  com  nosso  processo  e  a  partir  dela  

decidiu-­‐se  fragmentar  nossos  procedimentos  relacionando-­‐os  com  as  instruções  

de  trabalho  propostas  por  Neide  Neves  (2010),  pesquisadora  e  organizadora  dos  

procedimentos  de  Klauss  Vianna.  Assim,  no  capítulo  três  apresentaremos  nossos  

processos  e  procedimentos,  assumindo  como  perspectiva  a  proposta  dos  autores  

supramencionados.    

 

 

 

 

 

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1.0  -­‐  Inquietudes  

 

   

Neste  primeiro  capítulo  o  objetivo  inicial  é  organizar  a  rede  de  pensamentos  que  

envolve  o  trabalho  do  professor  e  do  aluno.  Em  seguida,  definir  papéis  e  termos  

utilizados  no  decorrer  do  trabalho,  que  podem  ajudar  no  entendimento  global  do  

texto.   Por   fim,   problematizar   as   questões   de   uma  maneira   geral   e   construir   o  

pensamento  que   levou  o  autor  a  ponderar  seu   trabalho  na   tarefa  de  difundir  o  

sapateado  americano  em  cursos  e  oficinas  informais  de  dança.  

 

No  dicionário  crítico  de  política  cultural,  Coelho  (2007)  define  o   termo  “oficina  

cultural”   como   o   lugar   ou   atividade   que   tem   como   objetivo   difundir   ou  

disseminar  informações  para  públicos  profissionais  ou  não  que  leve  à  criação  de  

uma  obra  cultural,  mas  que  não  necessariamente  tenha  uma  obra  cultural  como  

produto  final.  

 O   termo   oficina   cultural   é   de   uso   relativamente   recente.   Foi   antecedido   por   dois  

outros,   mais   tradicionais,   ateliê   e   curso,   e   como   estes   representam   o   espírito   de  

uma   época.   Se   ateliê   era   um   termo   ligado   a   um  momento   em  que   o   artista   como  

criador  autônomo,   isolado  e   sem  maiores  preocupações  ou   responsabilidades  que  

não  sua  própria  arte,  era  visto  de  modo  especial  e  privilegiado.  Curso   já  é  palavra  

vinculada   a   um   tempo   em   que   a   ideia   da   educação   se   tornou   pedra   de   toque   -­‐  

inclusive  a  educação  para  a  cultura  e  para  a  arte  e  pela  cultura  e  pela  arte.  Com  a  

palavra   curso   não   se   estava  mais   no  momento   em   que   o   artista   apenas   aceitava  

mostrar   sua   técnica   a   estudantes   que   se   limitavam  a   observar   o  modo  do  mestre  

(como   Volpi,   que   recebia   estudantes   desde   que   se   comprometessem   a   olhar   sem  

perguntar,   quer   dizer,   sem   desconcentrar   o   artista   cujo   objetivo   central   era  

produzir  e  não  ensinar),  mas  num  outro  instante  no  qual  prevalecia  a  noção  de  que  

cultura   e   arte   eram   passíveis   de   um   ensino   segundo   procedimentos   analíticos  

determinados  e  ministrado  não  mais  necessariamente  por  um  artista  reconhecido,  

porém   por   qualquer   um   que   conhecesse   o   como   fazer   embora   ele   mesmo   não   o  

fizesse  ou  não  o  fizesse  de  modo  destacado:  o  objetivo  central  deste  profissional  não  

era   mais   produzir   uma   obra   mas   transmitir   um   conhecimento   sobre   como   fazer  

uma  obra.  Uma  modificação  considerável  (COELHO,  1997:208).  

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Esta  transição  considerável  do  objetivo  de  produzir  uma  obra  para  transmitir  um  

conhecimento  sobre  como  fazer  uma  obra  é  muito  próximo  do  que  se  pretende  

neste   trabalho.   Coelho   (1997)   aponta   que   a   utilização   do   termo   “oficina”   é  

recente   e   tomou   o   lugar   do   termo   “curso”.   É   a   tradução  mais   próxima   do   que  

seriam  os  workshops  no  mundo  anglo  saxão,  que  visam  ao  intercâmbio  de  ideias  

e   conhecimentos   de   técnicas   e   habilidades   desenvolvidas.   Há   ainda   algumas  

divisões  de  oficinas  culturais  e,  neste  caso  específico,  temos  as  oficinas  descritas  

como  resultado  de  políticas  culturais  propostas  por  departamentos  de  cultura  e  

educação  da  cidade  de  Taboão  da  Serra.    

 

Dadas   estas   condições,   problematizam-­‐se   os   objetivos   e   dificuldades   de   tais  

condições:  estas  oficinas  foram  direcionadas  a  públicos  de  comunidades  de  baixa  

renda  dentro  das  escolas  municipais  da  cidade  de  Taboão  da  Serra,  durante  um  

período  de  oito  meses.  

 

Para  muitos  destes  alunos,  este   foi  o  primeiro  contato  com  a  dança.    Apesar  de  

todas   as   questões   políticas   envolvidas,   este   projeto   representava   para   muitas  

crianças   uma   das   poucas   oportunidades   de   ter   contato   com   a   linguagem   da  

dança,  devido  às  dificuldades  financeiras  e  o  distanciamento  dos  grandes  centros  

culturais.  

 

Outro  problema  bastante  recorrente,  e  que  caracteriza  os  resultados  das  oficinas,  

é   a   volatilidade   dos   alunos.   Há   alguns   alunos   que   estão   sempre   presentes,  

enquanto   a   grande   maioria   falta   com   frequência.   Outros   iniciam   no   meio   do  

período,   direcionando   o   trabalho   para   um   objetivo   diário:   propostas   que  

começam   e   terminam  no  mesmo   dia.   Outro   fator   importantíssimo   é   o   número  

mínimo   de   alunos   na   sala   de   aula.   Este     fator   é   o   que   mais   dificulta   a   visão  

individualizada   do   corpo   dos   alunos,   pois   não   há   tempo   suficiente   para   uma  

atenção   individual   constante,   direcionando   as   intenções   para   a   totalidade   do  

grupo.   Para   que   a   oficina   tivesse   continuidade   era   necessário   um   número  

mínimo   de   doze   alunos.   As   salas   utilizadas   eram   pequenas   e   com   pouca   ou  

nenhuma  infra  estrutura  necessária  para  aula  de  dança.  

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Nos  outros  casos  relatados  no  terceiro  capítulo,  da  Associação  de  Balé  de  Cegos  e  

do   São   Paulo   Futebol   Clube,   a   situação   é   bastante   diferente,   porque   a   infra  

estrutura   e   o   espaço   das   salas   de   aula   são   adequados   e   diferente   das   oficinas  

culturais  da  Prefeitura.    

 

O  número  mínimo  de  alunos  mostrou-­‐se  uma  questão   relevante  apenas  para  o  

Clube.  Vale  salientar  ainda  que  o  Clube   teve  uma  história  muito  representativa  

do   sapateado   americano   nos   anos   90,   participando   de   concursos,   festivais   e  

competições  de  dança,  sendo,  eventualmente,  ganhador  de  alguns  deles.  

 

Estas   condições   de   trabalho   serão   demonstradas   no   terceiro   capítulo,   quando  

será  apresentada    a  descrição  de  uma  prática  de  trabalho  para  cada  caso.  

 

A   outra   proposta   deste   capítulo   é   organizar   o   pensamento   para   entender   o  

porquê   das   escolhas   dos   temas   abordados.   Neste   sentido,   observa-­‐se   que   o  

trabalho   da   dança   depende   de   uma   série   de   constituintes   que   formam   o  

movimento   do   corpo   e   que   todas   estas   características   são   de   fundamental  

importância  no  trabalho  de  aprendizado  contínuo  do  movimento  e  da  linguagem  

do  sapateado  americano  ou  de  qualquer  outra  dança.  

 

O  desenvolvimento  do  potencial  expressivo  dos  movimentos  corporais  do  aluno  

passa   por   inúmeros   processos   comunicacionais,   cognitivos,   políticos,   sociais   e  

biológicos  que  imprimem  neste  corpo  a  característica  que  só  a  ele  pertence.  Além  

disso,  depende  de  uma  série  de  fatores  para  que  esta  apreensão  do  movimento  

da  dança  em  questão  seja  consciente  e  eficiente  no  propósito  a  que  se  destina:  

seja   na   formação   de   bailarinos   profissionais,   seja   em   caráter   recreativo,   seja  

como   parte   de   programas   culturais   para   levar   diferentes   linguagens   para  

comunidades  carentes.  

 

   O  próprio  corpo  resulta  de  contínuas  negociações  de  informações  com  o  ambiente  e  

carrega  esse  seu  modo  de  existir  para  outras   instâncias  de  seu  funcionamento.  Ou  

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seja,   a   ação   criativa   de   um   corpo   no   mundo   reproduz   os   procedimentos   que   o  

engendram  como  uma  porta  vai-­‐vem,  responsável  por  promover  e  romper  contatos  

(GREINER  e  KATZ,  2001:94).  

 

A   experiência   vivida  por   alguém   inevitavelmente   interfere   no  movimento   e   no  

gesto   da   dança   produzido   e   na   maneira   como   este   processo   de   apreensão  

acontece   no   decorrer   do   aprendizado   dos   passos   formalizados.   Todo   corpo  

evidencia  uma  ou  várias  qualidades  de  si  mesmo  nos  movimentos  codificados  do  

sapateado   americano   e   em   qualquer   outra   prática   de   dança.   Ao   continuar  

estudando   passos   e   combinações   de   passos,   estas   constituintes   do   corpo,   que  

passou   pela   experiência   de   se   relacionar   com   o  meio   ambiente   em  que   estava  

inserido,   estampam-­‐se   automaticamente   nos   movimentos   e   enriquecem   a  

experiência   da   dança   à   qual   este   corpo   é   submetido.   Por   isso,   como   qualquer  

outra  prática  de  estudo,  a  dança  demanda  um  processo  contínuo  e  interminável  

de  experimentações,  estímulos,  treinamentos  musculares,  práticas  criativas  e  de  

percepção  corporal  em  diversos  níveis.    Todas  estas  constituintes  integradas  ao  

discurso   pessoal   do   artista   e   do   discurso   geral   da   obra   coreográfica   formam  a  

arte   do   sapateado   e   do   artista   sapateador.   É   evidente   que   nessas   oficinas   e  

cursos   livres  de  danças,   lugares  de  educação   informal,   o  objetivo  não  é   formar  

bailarinos,  mas  fomentar  um  possível  pesquisador  do  corpo,  dar  alguma  vivência  

daquilo  que  poderia  ser  uma  futura  profissão  que  demanda  todas  estas  questões  

já  mencionadas  anteriormente.  O  objetivo  dentro  destas  aulas  é  tentar  subsidiar  

técnicas   e   exercícios,   incentivar   o   corpo   que   principia   um   treinamento   a  

contemplar   autonomia.     Possibilitando   que   durante   esta   experiência,   o   aluno  

perceba  a  estrutura  do  próprio  corpo  se  relacionando  com  as   formalizações  do  

sapateado  num  contínuo  construir  da  dança.  Mesmo  que  este  aluno  não  se  torne  

um  sapateador,  ele  precisa  passar  por  estas  escolhas  corpóreas  de  uma  maneira  

crítica  e  consciente  daquilo  que  se  propõe  a  fazer.  

 Cada  tipo  de  aprendizado  traz  ao  corpo  uma  rede  particular  de  conexões.  Quando  se  

aprende  um  movimento,  aprende-­‐se  junto  o  que  vem  antes  e  o  que  vem  depois  dele.  

O   corpo   se   habitua   a   conectá-­‐los.   A   presença   de   um   anuncia   a   possibilidade   de  

presença  dos  outros  (GREINER  e  KATZ,  2001:94).  

 

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Repetir,  nesta  medida,  já  agrega  as  experiências  como  habilidades.  

 

Greiner   e   Katz   (idem),   destacam   que   tudo   o   que   surge   no   mundo   quer  

permanecer  e,  desta  maneira  luta  para  ser  capaz  de  produzir  continuidade.    

 O  desejo  de  permanecer,  que  leva  à  necessidade  de  fazer  outro  a  partir  de  si  mesmo,  

pode  se  realizar  porque  no  mundo  em  que  vivemos  as  informações  tendem  a  operar  

dentro  de  um  processo  permanente  de  comunicação  e,  nesse  movimento  de  trocas  

constantes,   enquanto   se  modificam,   as   informações   vão   também   transformando  o  

meio  (GREINER  e  KATZ  ,2001:97-­‐98).  

 

A  necessidade  que  temos  de  permanecer  é  o  que  nos  move  para  a  procriação  e  

para  a  criação  em  todos  os  sentidos.  No  conceito  de  comunicação  desenvolvido  

por   Flusser   (2007),   isso   se   traduz   como   uma   necessidade   de   dar   sentido   à  

existência.   Para   Flusser   (idem),   existem   dois   tipos   de   processos  

comunicacionais:   o   discursivo   e   o   dialógico.   O   discursivo   tem   como   meta   o  

registro  e  a  manutenção  de  conhecimentos  prévios.  Na  comunicação  discursiva  

apenas   um   dos   polos   tem   espaço   para   se   expressar   enquanto   que   os   demais  

polos   são   ouvintes   que   recebem   os   conteúdos.   A   comunicação   dialógica   é   um  

processo  que  envolve   trocas  entre  os  participantes  e  se  caracteriza  por  ser  um  

tipo  de  mediação    que  se  estabelece  a  partir  de  diálogos  e  produz  conhecimento.  

Nas  oficinas  que  iremos  discutir,  a  comunicação  será  entendida  como  dialógica.    

 

Retomando   a   ideia   de  permanência   de  Katz   e  Greiner,   é   possível   associar   esse  

desejo  ao  sonho  de  transcendência,   ir  além  dos   limites  do  corpo  e  estampar  no  

mundo  algo  que  está  além  da  nossa  matéria  biológica.  Este  desejo  começa  a  ser  

fomentado  a  partir  do  momento  em  que  o  aluno  cria  uma  relação  afetiva  com  a  

linguagem   a   que   procura   conhecer.   Sem   este   vínculo   não   há   vontade   de  

descoberta,   consequentemente   não   há   esforço   para   permanecer   enquanto  

produtor   daquela   linguagem.  Neste   sentido,   os   papéis   do   professor   e   do   aluno  

começam   a   se   confundir,   pois   sugerem   que   a   interligação   que   esta   relação  

alcança  vai  além  de  um  expositor  de  informações  e  um  receptor  e  reprodutor  de  

conceitos.  É  necessário  teorizar  os  conceitos  de  produção  de  conteúdos  da  dança  

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como  uma  ciência  que  tem  metodologia  e  percorre  um  caminho  em  busca  de  um  

objetivo  que  se  constrói  no  corpo.  

 Teorizar   esse   conhecimento   -­‐   em   nosso   caso,   das   artes   do   corpo   -­‐   é   de   suma  

importância,   especialmente   para   artistas-­‐educadores,   que   precisam   trilhar   um  

caminho   no   qual   liberdade   e   vigilância   (talvez   seja   melhor   pensar   em   cuidado)  

devem  estar  juntas  quando  se  trata  do  desenvolvimento  de  processos  formativos  de  

gerações   futuras,   aos   quais   a   reflexão   crítica,   a   fundamentação   e   a   sistematização  

permitem   outros   modos   de   apropriação   e   multiplicação   do   conhecimento   do/no  

corpo,  por  exemplo,  em  discursos,  livros  e  textos  que  necessitam  caminhos  mundo  

afora  sem  o  corpo  de  seus  criadores  (COSTAS,  2011:166).  

 

De  acordo  com  a  autora,  um  dos  desafios  permanentes  para  o  artista  de  dança  é  

tomar  a  sensibilidade  para  si.  A  partir  de  experimentos    e  experiências  com  seus  

alunos,   ela   concluiu   que   esta   sensibilidade   pode   ser   aprendida.   Nesta   medida  

quer-­‐se  observar  que  o  ser  humano  nasce  com  as  possibilidades  disponíveis  em  

seus   aparatos   sensórios,   responsáveis   por   perceber   o   mundo.   Porém,    

sensibilizar-­‐se,   ou   seja,   tornar-­‐se   receptivo   a   receber   informações   que   chegam  

ou   as   que   já   estão   presentes   no   corpo   é   tornar-­‐se   sensível   a   estes   estímulos.  

Ensinar  a  sentir  é,  consequentemente,  uma  função  do  professor  de  dança,  pois  é  

através   de   exercícios   e   dinâmicas   direcionadas   por   ele   que   observações   e  

experiências   relevantes   às   diferentes   modalidades   sensoriais   são   geradas.      

Aprender  a  sentir,    estar  receptivo  e  deixar-­‐se  afetar  pelos  estímulos  é  a  função  

do   aluno,   mas   requer   treinamento.   A   educação   somática   aparece   na   cena   da  

dança  como  uma  ferramenta  de  produção  do  pensamento  do  corpo  que  incentiva  

o  saber  sentir  e  estimula  a  expressividade.  

 

Freire   (1981),   ao   refletir   a   respeito   do   ato   crítico   de   estudar   aponta   o   aluno  

como   sujeito   de   uma   ação   frente   ao   texto,   podemos   complementar   que,   assim  

como  qualquer  estudante,  o  aluno  de  dança  é  também  um  pesquisador  crítico  e  

sua   ação   acontece  perante   ao   corpo.   Isso  permite   traçar     um  paralelo     entre   o  

estudo   do   texto   e   o   estudo   do   movimento.   Para   Freire   (idem),   quem   estuda  

precisa   assumir   um   papel   crítico   fundamental   de   sujeito   da   ação   e   não   deve,  

apenas,    “magnetizar-­‐se”  pela  palavra  do  autor.  É  a  partir  do  contexto  de  ideais  

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que  é   traçado  no   texto  que  o  aluno  constrói   seu  próprio  contexto,   constrói   seu  

próprio   discurso.   O   estudante   crítico   não   pode   memorizar   as   afirmações   do  

autor   para   repeti-­‐las.   É   necessário   buscar   as   relações   com   os   conteúdos   de  

outras   dimensões   para   inventar   o   conhecimento.   Adotando   uma   visão   crítica,  

aquele   que   estuda   apropria-­‐se   da   significação   profunda   do   objeto   estudado,  

porque  se  sente  desafiado  por  ele.  

 

Desta  maneira,  pode-­‐se  relacionar  os  objetivos  de  quem  pesquisa  com  o  objetivo  

do   determinado   trecho   de   estudo,   para   que   o   conteúdo   estudado   se   torne  

disponível  às  possibilidades  que  ele  mesmo  oferece.  Estudar  seriamente  implica    

ser   este   sujeito   crítico,   predisposto   a   descobertas   em   um   constante   estado   de  

inquietação.  Ou,  como  defende  Freire  (1981:9),  “  (...)o  ato  de  estudar,  no  fundo,  é  

uma  atitude  em  frente  ao  mundo.”    

 

Ao  estudar  é  necessário  ter  uma  reação  de  diálogo  com  o  autor  e  com  a  obra  que  

esta   sendo   estudada   e   esta   relação   depende   da   sensibilidade   e   percepção   das  

constituintes  históricas,  sociais  e  ideológicas  deste  autor.  Este  ato  não  se  resume  

em   consumir   ideias,   mas   corresponde   a   criar   e   recriá-­‐las.   Dessa   forma,   serão  

discutidas,   nos   próximos   capítulos,   questões   de   percepção   dos   sentidos,   para  

evidenciar   a   importância  no  papel  de  qualificar  o  movimento   corporal  de   cada  

indivíduo,   ou   seja,   como   estas   questões   envolvem   e   direcionam   o   trajeto   no  

processo  criativo  de  cada  um.  

 Não  haveria  cultura  nem  história  sem  inovação,  sem  criatividade,  sem  curiosidade,  

sem   liberdade   sendo   exercida   ou   sem   liberdade   pela   qual,   sendo   negada,   se   luta.  

Não  haveria  cultura  nem  história  sem  risco,  assumido  ou  não,  quer  dizer,   risco  de  

que  o  sujeito  que  o  corre  se  acha  mais  ou  menos  consciente.  Posso  não  saber  agora  

que  riscos  corro,  mas  sei  que,  como  presença  no  mundo,  corro  risco.  E    o  risco  é  um  

ingrediente  necessário  à  mobilidade  sem  a  qual  não  há  cultura  nem  história,  daí  a  

importância   de   uma   educação   que,   em   lugar   de   procurar   negar   o   risco,   estimule  

mulheres   e  homens  a   assumi-­‐lo.  É   assumindo  o   risco,   sua   inevitabilidade,  que  me  

preparo   ou  me   torno   apto   a   assumir   este   risco   que  me   desafia   agora   e   a   que  me  

devo   responder.   É   fundamental   que   eu   saiba   não   haver   existência   humana   sem  

risco,   de   maior   ou   de   menor   perigo.   Enquanto   objetividade   o   risco   implica   a  

subjetividade   de   quem   o   corre.   Neste   sentido   é   que,   primeiro,   devo   saber   que   a  

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condição   de   existentes   nos   submete   a   riscos;   segundo,   devo   lucidamente   ir  

conhecendo  e  reconhecendo  o  risco  que  corro  ou  que  posso  vir  a  correr  para  poder  

conseguir  um  eficaz  desempenho  na  minha  relação  com  ele  (FREIRE  ,  2000:16).  

 

 

O  estudante  “domesticado”,  a  quem  Freire  (1981)  se  refere,  é  aquele  que  se  deixa  

invadir  pela  palavra  do  texto  de  estudo  como  se   fosse  uma  vasilha  pronta  para  

receber  informação,    e  se  assemelha  muito  com  a  visão  de  corpo  recipiente  que  

acreditou-­‐se  por  muito  tempo  ocorrer.  

 

Novas   teorias   observam   que   todas   as   informações   a   cerca   do   corpo   e   de   seu  

ambiente  influenciam  ambos  os  contextos  transformando-­‐os.  Uma  dessas  teorias  

diz   respeito   a   do   corpomídia,   a   qual   acredita-­‐se   comungar   com   as   ideias  

propostas  neste   trabalho.  O  ponto   fundamental  desta  discussão  é  a  questão  do  

quão   consciente   são   estas   interações   para   o   corpo   daquele   que   dança,   pois   é  

indiscutível   que   alguma   transformação   aconteça.   Outro   aspecto   igualmente  

importante  diz  respeito    ao  “como”  ela  é  utilizada  a  favor  do  discurso  do  corpo.  

Essa,  portanto,  é  a  grande  questão  do  bailarino,  do  ator  ou  de  qualquer  um  que  

utilize  o  corpo  como  instrumento  de  comunicação.  O  estudante  crítico  é  aquele  

que   recebe   a   informação   e   se   apropria   dela   de   tal   forma   que   a   organiza   com  

todas   as   informações   nele   já   existentes   e   reformula   estas   novas   realidades   a  

serviço  das  suas  questões  individuais.  

 

Assim  como  no  caso  do  texto,  para  se  estudar  melhor  o  movimento  do  corpo  é  

necessário   observá-­‐lo   com   uma   visão   global   da   totalidade   do   movimento,   ou  

coreografia,   possibilitando   assim   uma   retomada   para   as   delimitações   das  

questões   parciais   do   livro   ou   da   coreografia.   Ao   percorrer   a   trajetória,   o  

estudante   crítico   desperta   para   momentos   de   reflexão   em   que   a   própria  

temática,     presente   no   objeto   estudado,   recorra   também   no   discurso   próprio.  

Sendo   assim,   utilizando   do   mesmo   princípio,   reorganiza-­‐se   esta   maneira   de  

estudar   para   a   sala   de   aula   e   procura-­‐se   optar   por   exercícios   e   dinâmicas   que  

incentivem  a  pesquisa  corporal,  ao  invés  da  cópia  de  movimentos  propostos  pelo  

professor.  

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Katz   (1998)   aborda   uma   série   de   aspectos   muito   importantes   para   o  

entendimento  deste  trabalho,  os  quais  justificam  muitas  das  escolhas  propostas  

nos  próximos  capítulos.    

 

De   acordo   com   Katz   e   Greiner   (2001),   os   estudos   do   corpo   nos   últimos   vinte  

anos   têm   ganhado   uma   nova   configuração   a   partir   dos   cruzamentos   inter-­‐

teóricos.  Estas  relações  corpo  e  ambiente    configuram  os  processos  cognitivos  do  

corpo  e  interferem  no  desenvolvimento  da  dança.  

 

Para   Katz   (1998),   as   ciências   são   saberes   que   se   relacionam   entre   si.   Sendo  

assim,  para  olhar  a  dança  e  o  corpo  que  dança  não  se  pode  negar  esta  correlação    

nem   os   conhecimentos   desenvolvidos   em   outras   áreas,   como   a   biologia,  

medicina,   sociologia,   antropologia,   psicologia,   semiótica,   vertentes   das   ciências  

cognitiva  e  estética.  É  através  deste  olhar  correlacionado  que  se  promove  novas  

percepções,   a   fim   de   discutir   velhos   problemas.   Neste   sentido,   uma   ciência  

alimenta   a   outra   com   novas   possibilidades   de   resolver   problemas   a   partir   de  

recentes  descobertas.  Anos  de  evolução  e  desenvolvimentos  da  espécie  humana  

e   das   ciências   entram   em   negociação   com   o   meio   ambiente   e   resultam   nos  

nossos   movimentos   e   adaptações   em   relação   ao  mundo.   Assim,   uma   gama   de  

aspectos   influenciam   o   aprendizado   e   a   dança   que   é   praticada  

contemporaneamente.    

 

Damásio  (2010)  propõe  que  os  movimentos  que  acontecem  nos  braços  e  pernas,  

antes  de   serem  movimentos   já   existem  na  mente  em   forma  de  mapas  mentais.  

Katz  (1998)  estende  essa  noção  para  o  corpo  do  bailarino  e  aponta  que  a  dança,  

antes  de  estar  no  corpo,  existe  como  mapa  no  cérebro  e  vai  além,  indicando  que  

todas  as  ciências  que  tratam  o  movimento  devem  fazer  parte  do  estudo  daqueles  

que  tratam  com  dança.  

 

E,   podemos   nos   perguntar,     qual   o   papel   do   professor   nestes   contextos?   Para  

Ranciére  (2002),  a  tarefa  do  mestre  vai  muito  além  da  mera  transmissão  de  seus  

conhecimentos   para   os   alunos.   Não   se   trata   de   simplesmente   bombardear   os  

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alunos   com   informações   para   que   estes   sejam   capazes   de   repetir  

mecanicamente.    O  mestre  deve  propor  e  organizar  caminhos  para  que  o  aluno  

distinga   o   princípio   da   consequência.   O   princípio   é   o   ponto   de   partida   e   a  

consequência  é  aonde  ele  quer  chegar  com  aquela  informação  transformada.  

 

Sobre   esta   questão   de   bombardeio   com   informações,   um   paralelo   pode   ser  

traçado   na   medida   que   professores   lançam   movimentos   de   dança   para   seus  

alunos   tentarem   repetir   o   mais   fidedignamente   possível,   sem   considerar   o  

desenvolvimento  deste  movimento  no  corpo  de  cada  aluno.  

 Em   uma   aula   de   dança   tradicional,   copiar   o   movimento   do   professor   é   o   modo  

predominante   de   aprendizagem.   Frequentemente,   o   objetivo   é   copiar   seus  

movimentos  o  mais  precisamente  possível  (FORTIN  e  LONG,  2003:21).  

 

Fortin  e  Long  (2003)  observam  que  este  procedimento  de  copiar  os  movimentos  

do  professor  o  mais  precisamente  possível   é  um  caminho  há  muito   vivenciado  

por  bailarinos  e  professores  ao  longo  dos  anos.  O  advento  da  educação  somática  

e  as  constantes  discussões  em  melhoria  dos  processos  de  aprendizado  da  dança  

têm  discutido  em  função  de  trazer  melhorias  a  estes  procedimentos.  

 

Fortin  (2011)  defende  também  que  o  discurso  dominante  dos  corpos  dos  artistas  

de   dança   profissionais   tende   a   ser   aquele   que   promove   o   corpo   idealizado,   no  

qual   prevalecem   critérios   de   magreza,   virtuosidade,   devoção   e   aceitação  

silenciosa  das  dores  e  lesões.    O  autor  baseou-­‐se  em  entrevistas  com  coreógrafos,  

intérpretes   e   dançarinos   pré-­‐profissionais   de   Montreal   para   definir   este  

comportamento   como  o  discurso  artístico  dominante  na  aérea  de  dança.  Neste  

comportamento  predomina-­‐se  a   importância  da  obra  artística  e  ultrapassam-­‐se  

os  limites  físicos  e  psicológicos  do  artista.  

 

Em  contrapartida,  Fortin  (2011)  indica  que  a  educação  somática,  que  baseando-­‐

se  na  experiência  do  “eu”    percorre  caminhos  que  tem  como  objetivo  melhorar  a  

técnica,   desenvolver   as   capacidades   expressivas   e   evitar   possíveis   lesões,  

aparecem   frequentemente   no   cenário   da   dança   de   uma  maneira   tímida   e   sob  

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críticas,   por   abafar   o   autoritarismo   qu     as   práticas   institucionalizadas   pelos  

meios   profissionais   e   pré-­‐profissionais   aplicam   até   hoje,   valorizando   corpos  

dóceis   que   são   treinados   para   uma   imagem   estética   que   não   leva   em  

consideração  o  bem  estar  dos  bailarinos.  

 

Observa-­‐se   então   que   este   funcionamento   e   atitude   são   instaurados   desde   a  

formação  dos  alunos  que  pretendem  ou  não  se  profissionalizar  como  artistas  de  

dança.    Salles   (1998),   como  relataremos  nos  próximos  capítulos,   indica  que,  ao  

observar   o   processo   criativo   de   uma   companhia   de   dança   de   São   Paulo,   os  

bailarinos   apresentaram   dificuldades   em   trilhar   caminhos   diferentes   daqueles  

que   o   corpo   já   conhecia,   limitando-­‐os   aos  movimentos   restritos   ao   repertório  

corporal  e  evitando  arriscar-­‐se  em  movimentos  não  vivenciados.  

 

Neste   sentido,  um  aspecto   importante  da  educação   somática,  que   influencia  na    

quebra  de  paradigmas  e  de  processos  lineares  de  aprendizado,  é  o  fato  de  alguns  

direcionamentos   parecerem   contraditórios   no   sentido   que   trabalham   o  

relaxamento   para   a   descoberta   da   força,   movimentos   lentos   em   busca   dos  

rápidos  etc.  

 

Sob  esta  perspectiva,  o  autoritarismo  e  a  autoridade  do  professor  que  permeiam  

o  discurso  dominante  da  dança  desde  sua  instauração  formal  vai  dando  lugar  a  

um  professor  que  direciona  seus  alunos  a  caminhos  singulares  de  observação  do  

seu   próprio   corpo   e   não   impõe   sequências   de  movimentos   que,   às   vezes,   não  

dialogam  com  o  corpo  do  aluno.  

 

Sobre  as  repetições  de  movimentos  frequentemente  propostas  em  metodologias  

tradicionais,  baseadas  no  discurso  dominante,  Fortin  (2011)  observa:    

 Nas   inúmeras   oficinas   das   quais   participamos   nos   primeiros   três   dias,   estivemos  

talvez   em   contato   com  hábitos  muito   ancorados   em  nós   e   resistentes   à  mudança.  

Faz-­‐se   dispensável   dizer:   todo   hábito   perceptivo   também   é   um   hábito  motor.   Os  

hábitos,   quando   protegem   de   esquemas   familiares   limitantes,   tornam-­‐se  

infelizmente   armaduras   que   impedem   novas   experiências   de   vida.   Na   educação  

somática,   uma   vez   que   os   hábitos   sejam   reconhecidos,   eles   serão   explorados   por  

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múltiplas   variações,   e,   aos   poucos,   se   a   pessoa   se   sentir   em   segurança   para   tal,  

novas   percepções,   novos   comportamentos   e   novos   pensamentos   poderão   ser  

integrados   ao   cotidiano   do   indivíduo,   o   que   de   maneira   inevitável   alimentará   o  

trabalho  de  criação  do  artista  (FORTIN,  2011:33).  

 

 

Soter   (1998)   indica   que   o  maitre  de  dança   (figura  mitológica   do   bailarino   que  

torna-­‐se   professor)   gradativamente   é   substituído   pelo   professor   de   dança  

formado  em  escolas  e  universidades,  pois  nesta  nova  visão  de  dança  dominar  a  

arte   não   significa   que   necessariamente   se   tenha   a   capacidade   de   transmitir   as  

informações   de   dança.   Por   outro   lado,   é   esta   experiência   de   viver   a   prática  

cotidiana  da  dança  que  constrói  a  capacidade  de  ensinar.  “É  no  cruzamento  entre  

conhecimentos  teóricos,  prática  sólida  e  reflexão  sobre  esta  prática,  que  o  ‘saber-­‐

fazer’   se   ‘molda’   em   ‘saber-­‐aprender’   para,   enfim,   se   transformar   em   ‘saber-­‐

ensinar’”  (SOTER  ,1998:  143-­‐144).  

 

De  maneira  geral,  a  educação  somática  é  uma  ciência  teórico–prática  que  aborda  

o  movimento  do  corpo  através  da  consciência  e  das  experiências  relativas  a  ele.  

O  corpo  enquanto  experiência  é  um  dos  pontos  fundamentais  desta  ciência,  e  o  

professor    que  aplica  a  educação  somática  como  forma  de  aprendizado  utiliza-­‐se  

de   estratégias   pedagógicas   que   levam   em   consideração   a   percepção,   o  

aprendizado  pela  vivência  e  a  sensibilização.  

   

A   educação   somática   pode   beneficiar   as   danças   fundamentalmente   em   três  

elementos   principais:   ampliação   da   capacidade   expressiva,   otimização  

progressiva  da  técnica  do  dançarino  e  a  prevenção  de  lesões.      

No  contexto  da  aula  de  educação  somática,  mais  importante  do  que  o  fim,  do  que  o  

resultado  formal  do  movimento,  é  o  processo,  o  percurso  do  gesto.  Portanto,  o  como  

se  torna  prioritário  (SOTER  ,  1998:144).  

 

O   percurso   é   o   ponto   fundamental   do   processo   de   aprendizado   na   educação  

somática,   logo,   a   sensibilidade   de   entender   o   caminho   que   o   aluno   pode  

percorrer   e   desenvolver   dinâmicas   que   ajudem   nesta   trajetória   singular   é   de  

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fundamental   importância   para   o   professor.   Neste   sentido,   a   proposta   deste  

trabalho   dialoga   com   as   ideias   defendidas   por   Fortin   e   Long   (2003)   quando  

abordam  a  questão  do  professor  “facilitador”:  

 (...)o   facilitador   de   uma   experiência   educacional   deve   desenvolver   uma  

compreensão  das  necessidades,  das  atitudes  e  dos  pontos  de  partida  dos  alunos.  Do  

mesmo  modo,  deve  criar  oportunidades  de  interações  entre  o  conhecimento  prévio  

e   a   experiência,   permitindo   a   emergência   de   múltiplos   modos   de   conhecimento  

(FORTIN  e  LONG,  2003:20).  

 

Nesta  medida,  cabe  ao  professor  identificar  possíveis  conexões  entre  o  material  

apresentado   pelo   aluno   e   as   novas   informações   que   ele   pretende   relacionar.  

Freire   (1981)   também   aponta   para   a   mesma   direção,   quando   defende   que   o  

estudante  crítico   relaciona  as   suas  questões  ao  objeto  de  estudo.  Aqui,   cabe  ao  

professor   identificar   os   pontos   de   contatos   iniciais   por   se   tratar   de  

particularidades  muitas  vezes  subjetivas.  

 

Repetir   desatentamente  ou   sem  uma   consciência   geral   das  particularidades  do  

movimento  pode  gerar  sequências  coreográficas  mecânicas,  movimentos  que  se  

resumem  ao  ato  de  mover-­‐se  e  não  carregam  este  fenômeno  da  carga  expressiva  

que   ele   pode   conter.   Sob   este   ponto   de   vista,   faz-­‐se   necessário   distinguir  

“movimento”  de  “gesto”.  

 

Sobre   a   capacidade   expressiva   do   gesto,   Godard   (2011)   faz   as   seguintes  

observações:    

A  percepção  de  um  gesto  se  dá  de  forma  global  e  dificilmente  permite  que  o  ator  ou  

observador  distinga  os  elementos  e  as  etapas  que  fundam  a  carga  expressiva  desse  

gesto.  Cada  indivíduo,  cada  grupo  social,  em  ressonância  com  seu  ambiente,  cria  e  é  

submetido   a   mitologias   do   corpo   em   movimento   que   constroem   quadros   de  

referências   variáveis  da  percepção.  Conscientes  ou  não  estes  quadros   são   sempre  

ativos  (GODARD,  2001:11).  

 

Perceber  o  gesto  é  um  quadro  de  referências  que  aquele  que  o  promove  é  ativo  

em   sua   construção.   Porém,   dificilmente   possibilita   que   tanto   quem   observa  

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quanto  quem  atua  neste  gesto  distinga  a  carga  expressiva  das  etapas  deste  gesto.  

Este   indivíduo,  que  em  seu  grupo  social  relaciona-­‐se  com  seu  meio  ambiente,  é  

submetido  a  uma  “mitologia  pessoal”  do  gesto.  É  na  dança  que  se  apresentam  as  

afrontas  das  questões  culturais  do  passar  do  tempo  até  as  danças  codificadas  há  

séculos,    como  no  caso  do  balé  clássico  que  não  escapam  de  serem  produzidas  e  

percebidas  de  maneiras  muito  distintas  de  uma  época  para  outra.  É  exatamente  o  

que   acontece   com   o   sapateado   americano   que   conserva  movimentos   e   passos  

codificados,  mas  se  apresentam  com  as  características  da  época  e  dos  corpos  que  

a  produzem.  

 

De   acordo   com   Godard   (2001),   a   figura   ou   forma   do   gesto   não   nos   ajuda   a  

entender  ou  compreender  a  dinâmica  de  execução,  tão  pouco  a  percepção  deste  

gesto   pelo   bailarino   ou   pelo   espectador.   Esta   dificuldade   acaba   por   formar  

tendências  dos  estudos  de  dança  relativos  a  épocas  históricas,  escolhas  estéticas  ,  

ou  seja,  delimitam  bem  o  contexto  externo  do  campo  e  acabam  por  dissociá-­‐los  

dos  limites  internos  e  da  dinâmica  interior  do  gesto.  

 

Dessa  forma,  o  autor  distingue  movimento  e  gesto:    

Movimento   é   aqui   compreendido   como   um   fenômeno   que   descreve   os  

deslocamentos   estritos   dos   diferentes   segmentos   do   corpo   no   espaço,   do  mesmo  

modo  que  uma  máquina  produz  movimento.  Já  gesto  se  inscreve  na  distância  entre  

esse  movimento   e   a   tela  de   fundo   tônico-­‐gravitacional  do   individuo,   isto   é,   o  pré-­‐

movimento  em  todas  as  suas  dimensões  afetivas  e  projetivas.  É  exatamente  aí  que  

reside  a  expressividade  do  gesto  humano,  expressividade  que  a  máquina  não  possui  

(GODARD,  2001:17).  

 

 

Nesta  medida,  a  presente  dissertação  de  mestrado  se  distancia  de  outros  estudos  

que  focam  em  questões  históricas  e  estéticas,  às  vezes,  até  mesmo  das  questões  

técnicas   do   sapateado   americano.   Tal   distanciamento   parte   em   busca   de   um  

olhar   reflexivo   que   compreenda   os   intrincados   caminhos   dos   processos  

comunicacionais  e  dos  diálogos,  que  atuam  na  construção  de  uma  expressividade  

do   gesto  de  dançar.   Está   caracterizado   aqui   uma  busca  pela   construção  de  um  

pensamento  do  corpo,  uma  construção  de  espaços  dialógicos,  como  diria  Flusser  

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(2007),    que  abriguem    as  complexidades  de  cada  aluno,  a  técnica  da  dança  e  a  

sensibilidade  do  professor.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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2.0  –  Algumas  definições  

 

 

Toda   arte   está   submetida   a   regras   e   metodologias   que   a   constroem   e  

possibilitam  sua  comunicabilidade.  A  arte  do  Ballet  Clássico,  ao  passar  dos  anos  

em  que  se  estruturou,  construiu  bases  sólidas  de  formalização  de  seus  passos  e  

movimentos,   o  que   é   apresentado  para  os   estudantes   como  a   técnica  do  Ballet  

Clássico.  

 A   palavra   arte   vem   do   latin   “ars”   que   corresponde   ao   termo   “techne”,   técnica,  

significando   o   que   é   ordenado   ou   toda   espécie   de   atividade   humana   submetida   a  

regras.  (CHAUÍ,  2000:405)    

 

Na  dança  isto  também  não  é  diferente,  principalmente  quando  se  trata  de  danças  

em  que  a  forma,  a  estrutura,  e  a  técnica,  são  formalizadas.  O  ballet  desenvolveu,  

ao   longo   de   sua   estruturação   enquanto   linguagem,   um   conjunto   de   regras   que  

compõe   sua   estrutura   enquanto   ballet   clássico,   por   exemplo:   a  pirouette  será  

sempre  igual,  independente  do  país  ou  escola  que  a  execute;  evidentemente  que  

há   alguma   pequena   variação   de   posicionamento   de   braço   e   pernas,   porém,  

estruturalmente,   a   técnica   de   fazê-­‐la   será   sempre   a   mesma.   No   sapateado  

americano,   por   exemplo,   o  step  é   um   passo   para   qualquer   direção   com  

transferência   total   do   peso   de   uma   perna   para   outra.   O  step,   no   caso   do  

sapateado   americano,   deve   ser   o  mesmo   aqui   ou   em   qualquer   outra   parte   do  

mundo.  

 

O   problema   não   está   presente   na   formalização   de   técnicas,   movimentos   e  

metodologia,   ele   aparece   quando   a   arte   da   dança   se   transpõe   a   servir   uma  

automatização   de   formas   e   repetições   de   movimentos   propostos   por   estas  

metodologias  que  acabam  por  distanciar  o  corpo  da  técnica.    

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Com  a  melhoria  nas  pesquisas  médicas,  os  treinamentos  físicos  para  esportistas  

e   bailarinos,   cada   vez   mais   efetivo,   a   seleção   dos   integrantes   das   grandes  

companhias   de   danças   é     baseado   em   modelos   de   corpos   que   serão,  

supostamente,   aptos   para   a   realização   do  movimento   proposto   pela   dança   em  

questão.  Para   fazer  parte  do  Royal  Academy  of  Dance  na   Inglaterra,  meninas  e  

meninos   a   partir   de   sete   anos   passam  por   rigorosos   testes   de   seleção   que   são  

baseados   principalmente   num   corpo   adequado   para   a   forma   do   ballet.   Este  

“corpo  possível”,  não  é  o  corpo  do    bailarino,  mas  sim    o  corpo  da  forma  ou,  pelo  

menos,  um  corpo  que  possibilite  a  forma.    

 

Desta  maneira,  a  dança  acaba  por  contaminar-­‐se  por  uma  dúvida:  é  o  ballet  que  

padroniza   o   corpo  ou   são   os   corpos  padronizados  que   compõem  a   imagem  do  

ballet?    A  dúvida  ganha  proporções  e,  em  um  senso  comum,  alguns  institutos  de  

dança   e   escolas   espalhadas   pelo   mundo   optam   por   seguir   um   modelo   destas  

instituições  importantes  do  ballet  clássico  e  acabam  por  praticar  esta  automação  

e   padronização   do   corpo   do   bailarino,   às   vezes   sem   fundamentos,   por   uma  

definição   estética   apenas.   Esta   é   uma   questão   que   pode   e   é   discutida   por  

inúmeras  vertentes,  mas  não  vem  ao  caso  neste   trabalho.  O   fato  que  queremos  

ressaltar  é  que  não  escapamos  da  questão  mimética  da  dança.  Mais  cedo  ou  mais  

tarde  o  “faça  como  eu  faço”  aparecerá  e,  deve-­‐se   fazê-­‐lo  o  mais  próximo  ao  que  

alguém  algum  dia  já  o  fez  ,  só  assim  seu  movimento  dentro  da  “suposta”  técnica  

estará  certo.  

   

 Ao  estudarmos  a  dança  são  difundidas  algumas  terminologias,  utilizadas  em  um  senso  comum  com  significados  obscuros,  e,  às  vezes,  muito  cristalizadas,  a  ponto  

de  se  perderem  na  própria  indefinição  do  seu  significado.  Este  é  o  clássico  caso  

da   palavra   ‘’técnica”   que   muitas   vezes   tem   a   sua   aplicação   de   uma   maneira  

desmedida  e  pouco  definida,  desprendida  de  uma  funcionalidade  real.      

Técnicas  são  dispositivos  que  promovem  diferenças  nos  corpos.  São  operadores  de  

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comunicação   do   corpo   com   o   ambiente.   Agem   por   contaminação,   promovendo  

comunicação   entre   as   novas   informações   e   as   já   existentes   no   sistema   corpo,   em  

processos  adaptativos.  

As  diferenças  entre  as  diversas  técnicas  de  dança  podem  ser  olhadas  deste  mesmo  

ponto  de  vista.  Algumas  reconhecem  os  processos  de  comunicação  no  corpo  e  com  o  

ambiente   e   buscam   estratégias   para   trabalhar   a   capacidade   de   compreender,  

realizar  e  utilizar  estes  mecanismos.  Outras  se  definem  pela   intenção  de  moldar  o  

corpo  de  acordo  com  determinadas  formas  e   linguagens  estéticas  e  não  fazem  uso  

intencional   destes   processos   de   geração   de   subjetivação   e   comunicação   (NEVES,  

2010:113,114).  

 

Como   observa  Neves   (2010),   uma   das   pesquisadoras   que   organizou   o  método  

Klauss  Vianna  no  Brasil,  compreender  as  palavras  “técnica”  e  “método”  é  a  base  

para   um   o   desenvolvimento   e   estudo   de   metodologias   na   área   de   dança   no  

cenário  brasileiro.  

 

Atualmente   a   dificuldade   observada  nas   pesquisas   sobre   técnica   de   dança   tem  

sido  primordialmente   a   separação  da   técnica   e  o   corpo   como  duas   instituições  

separadas.  Mesmo  percebendo  que   técnica  e  corpo  são  pontos  constituintes  da  

linguagem   da   dança,   inevitavelmente   inseparáveis,   as   abordagens   tendenciam  

um  direcionamento  que  separa  corpo  e  técnica,    evidencia  Neves  (2010).  

 

Esta  separação  das  constituintes  que  se  observa  no  ensino  da  dança,  no  que  diz  

respeito  a  técnica  e  corpo,  tem  um  possível  histórico  baseado  em  nossas  próprias  

experiências   de   educação   em   todos   os   níveis.   Esta   linha   de   pensamento  

discursivo,   constituída   desde   nossa   formação   escolar,   em   que   as   ciências   são  

separadas,  concorrem  para  que  as  relações  obedeçam  sequências  cartesianas,  de  

ordem   que   acabam   por   simplificar   a   complexidade   em   que   as   questões   do  

mundo  estão  imersas.  

 

Katz  (2005)  observa  o  “corpo  que  dança”  como  “corpo  da  dualidade”.  O  corpo  –  

máquina,  aquele  que  é  o  corpo  da  física  clássica,  simétrico  e  preciso  o  qual  todas  

as  leis  da  física  agem  de  maneira  regular;  e  o  corpo  biológico  que  se  constitui  da  

instabilidade   do   caos.   Estes   dois   modelos,   mundo-­‐máquina   e   mundo   causal,   é  

que   constitui   o   corpo   que   dança.   Corpo   este   que   é   construído   em   eventos  

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contínuos  que  formam  uma  unidade  de  corpo  que  se  manifesta  em  si  mesmo.  A  

dança,  à  qual  se  remete,  é  a  dança  que  vive  na  tensão  dualidade  lei/evento.  É  esta  

dança  que  abordaremos  aqui  também,  a  dança  como  conjunto  de  acontecimentos  

num   corpo   onde   as   questões   do   homem   estão   presentes   e   se  moldam   em   sua  

carne  e  movimentos.  O  corpo  é  o  lugar  do  trânsito  entre  a  cultura  e  a  natureza,  

entre  o  biológico  e  o  físico,  entre  a  ordem  da  técnica  e  o  caos  da  criação.  Logo,  a  

dança,   precisa   ser   vista   com   toda   complexidade   que   lhe   é   natural   e   não   de  

maneira  segmentada,  discursiva  e  cartesiana.  

 

Em   seu   artigo   “Complexidade   e   Conhecimento   Científico”   Vieira   (2006)   aborda,  

entre   outras   questões,   como   nosso   século   propõe   problemas   mais   complexos  

para  criar   ferramentas,  a   fim  de  resolver  as  questões  relacionadas  a  esta  época  

que  tem  como  característica  a  crescente  complexidade.  É  também  uma  realidade  

da   apreensão   da   linguagem   da   dança   criar   novos   caminhos   para   transitar   por  

esta  complexidade  que  o  corpo  e  sua  relação  com  o  mundo  apresenta.  

 

Em   contraposição,   estamos   imersos   neste   mundo   complexo   com   um  

conhecimento   clássico   e   discursivo   que   não   alcança   esta   rede   de   problemas,  

caraterística   dos   sistemas   abertos.   Esta   nossa   dificuldade   de   lidar   com   a  

dinâmica  dos   sistemas  abertos  do  mundo  pode   ser  um  condicionamento  que  é  

sustentado   pela   construção   do   conhecimento,   já   que   o   sistema   cultural   e   o  

sistema  educacional  tem  fundamental  importância  no  que  se  refere  a  garantir  a  

permanência  dos  demais   sistemas  humanos,   ou   seja,   nas  questões  de  produzir  

material   humano,   informações   características   da   mente   do   homo   sapiens  

sapiens.  

 

Para  se  adequar  ao  meio  ambiente  do  qual  faz  parte,  o  sistema  necessita  criar  um  

estoque   de   informação   que   ajude   a   elaborar   este   meio   ambiente,   a   fim   de  

permanecer  num  contexto  de  informações.  

 

A   dificuldade     encontrada   nos   sistemas   de   ensino   e   culturais   é   como   esta  

informação  é  elaborada,  qual  é  a  qualidade  desta   informação  disponível  para  a  

apreensão  do  sistema  e  como  esta  informação  o  influencia.  

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Faremos   agora   uma   breve   revisão   da   teoria   geral   dos   sistemas   proposta   por  

Vieira  (2006),  com  o  objetivo  de,  posteriormente,  adotar  essas  considerações  no  

pensamento  a   respeito  do  corpo  que  dança.   Segundo  Vieira,  para  que  o   sujeito  

consiga  permanecer  no  espaço  e   tempo  no  qual   está   inserido  é  necessário  que  

ele  possua  algumas  habilidades:  

 

• Sensibilidade   –   acolhimento   –   a   capacidade   de   estruturação   do  

fluxo  de   informação  do  sistema  para  que  este  seja  hábil  de  reagir  

conforme   necessário   às   variações   ou   diferenças   presentes   no  

ambiente  e  no  próprio  sistema  aberto.  

 

• Função   memória   –   a   capacidade   de   armazenar   informações   em  

forma  codificada,   relacionando   com  suas  experiências  passadas  e  

presentes.  

 

• Elaboração  –  a  capacidade  de  utilizar  as  informações  armazenadas  

para   resolver   questões   relacionadas   às   novas   informações   e  

experiências,  habilitando-­‐o  para  permanecer  e  sobreviver.  

 

A  apropriação  de  uma  determinada  técnica  caracteriza  o  momento  em  que  corpo  

e  mente   se   comunicam.   Estas   adaptações   que   o   corpo   pratica   relacionando   as  

novas   informações   com   as   presentes,   assim   como   as   constituintes   do   meio  

ambiente   em   que   está   inserido,   acontecem   da   seguinte   maneira,   quando  

observamos   através   de   uma   visão   sistêmica:   Além   desta   comunicação   entre  

corpo  e  mente,  o  sujeito,  a   fim  de  se  comunicar  através  da   linguagem,  deve  ser  

sensível   para   reagir   através   do   estímulo   proposto   pela   linguagem   em  questão.  

Sensível   a   este   estímulo,   o   sujeito   abriga   esta   experiência,   codificando–a   com  

suas   informações   adquiridas   em   outros   momentos   passados   e   presente.   Este  

ciclo   em   que   a   informação   age   e   interage   com   o   sujeito   o   capacita   a   elaborar  

todas   as   informações   apreendidas   de   tal   maneira   que   ele   adquira   autonomia  

para  transitar  entre  técnica,  movimento  e  linguagem  através  do  corpo.    

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Berthoz  propõe  um  esquema  segundo  o  qual  o  cérebro  trata  o  movimento  segundo  

dois  modos,  um  conservador,  que  funciona  continuamente  como  um  sistema  cativo  

e  outro,  projetivo,  mais  recente  na  evolução,  que  simula  o  movimento  para  predizer  

suas  consequências  e  escolher  a  melhor  estratégia  de  ação  no  momento.  O  cérebro  

não   calcula   mas   simula   para   encontrar   novas   soluções   adaptativas.   No   primeiro  

modo,  o  cérebro  funciona  como  um  controlador  e  no  segundo,  como  um  simulador.  

 

O  funcionamento  do  cérebro  segundo  este  esquema  permite  compreender  como,  a  

partir   de   possibilidades   de   movimento   já   existentes,   o   corpo   simula   novas  

combinações,  além  de  garantir  a  recuperação  do  que  se  tornou  estável.  O  modo  de  

simulação  funciona  segundo  a  qualidade  de  predição  do  cérebro  no  tratamento  do  

movimento,  conferindo  à  percepção  o  seu  caráter  de  ação  simulada  e  permitindo  a  

adaptação  às  circunstâncias  presentes  na  ação.  Isto  permite  compreender  o  espaço  

da   criação   como   reorganização   ou   recombinação   dos   fatores   que   constituem   o  

movimento  –  motores,  sensoriais  e  cognitivos  -­‐  na  comunicação  com  os  ambientes  

externo  e  interno,  no  presente.    

 

A   dinâmica   própria   da   percepção   e   seu   aspecto   de   adaptabilidade   evidenciam   o  

aspecto  dinâmico  e  relacional  da  criação  de  movimentos.  Sendo  assim,  o  novo  não  

deve   ser   confundido   com  novidade,  mas   uma   nova   organização   num  processo   de  

contaminação  com  o  ambiente  (NEVES,  2010:96-­‐97).  

 

 

Pode-­‐se   observar   na   proposição   de   Berthoz   apontada   por   Neves   que   o  

funcionamento   do   cérebro   possui   um   esquema   similar   à   sistematização   das  

informações  na  teoria  geral  dos  sistemas.  Para  ter  autonomia  é  necessário  que  o  

cérebro   reconheça   as   informações   apreendidas,   relacionando-­‐as   com   as  

informações  que  lá  estão  para  compor  uma  simulação  do  movimento,  adaptada  

às  circunstâncias  presentes  neste  possível  movimento.  

 

Nesta   medida,   este   estudo   pretende   direcionar   a   atenção   para   o   corpo,  

corpomídia  da  linguagem  da  dança,  de  forma  a  buscar  uma  melhor  compreensão  

entre  as  relações  corpo  e  técnica,  construindo  uma  visão  de  técnica  que  não  seja  

estagnada   como   usualmente   ouvimos   nas   salas   de   aulas   de   dança,   mas  

contemple   a   complexidade   das   relações   em   que   o   corpo   e   a   técnica   estão  

inseridas,  levando  em  consideração  meio  ambiente  e  experiências  adquiridas,  de  

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modo   que   se   amplie   as   possibilidades   deste   corpo   para   além   de   movimentos  

mecânicos  e  reproduções  de  passos.    

 

Neves  (2006)  discute    como  a  técnica,  durante  o  aprendizado  de  dança,  pode  ser  

comumente  deparada  como  artefato  afastando  ainda  mais  a  técnica  do  corpo.  

 Mesmo   compreendendo   que   a   definição   de   artefato   cognitivo   não   se   restringe   a  

objetos  externos  ao  corpo  uma  vez  que  inclui  a  linguagem,  definir  técnica  de  dança  

como   um   artefato   envolve   o   risco   de   mantê-­‐la   fora   do   corpo.   A   proposta   de  

funcionamento  deste  artefato  em  looping  causal  implica  em  um  entrelaçamento  não  

linear  entre  artefato/técnica  e  corpo,  que  os  modifica,  mas  ainda  assim  faz  pensar  

em   uma   distância   entre   ambos,   devido   à   carga   metafórica   presente   no   termo  

‘artefato’.  A  técnica  como  artefato  cognitivo,  a  despeito  da  explicação  de  Clark,  corre  

o   risco   de   ser   compreendida   como   material   não-­‐biológico   acoplado   ao   corpo,  

sugerindo  uma  confirmação  do  estereótipo   tradicional,  na  dança,  da   técnica   como  

algo  que  se  coloca  no  corpo  e  do  qual  se  lança  mão  quando  necessário,  numa  visão  

utilitária,   como   se   esta   fosse   uma   ferramenta   e   o   corpo   um   recipiente   (NEVES,    

2010:23  24)  

 

Sob  este  ponto  de  vista  propõe-­‐se  fazer  um  paralelo  da  teoria  geral  dos  sistemas  

com  a  teoria  dos  processos  criativos,  com  enfoque  do  método  científico  aplicado  

ao  conhecimento  do  corpo  na  linguagem  da  dança,  com  a  finalidade  de  visualizar  

como   todo   este   sistema   educativo,   baseado   na   educação   discursiva   à   qual  

estamos   inseridos,   influencia  nesta  dificuldade  de  perceber  outras  maneiras  de  

conhecimentos   corporais   e   de   movimentos.   E   como   este   conhecimento  

discursivo   está   presente   dentro   da   forma   de   ensino   nas   quais   as   danças   são  

ensinadas   em   grande   parte   das   escolas,   diminuindo   a   complexidade   e  

segmentando  técnica  e  corpo.  

 

Na  busca  por  encontrar  metodologias  que  incentivem  a  expressividade  do  corpo  

e  a  apropriação  da  técnica  este  trabalho  foi  em  busca  de  pontos  de  contatos  com  

o  trabalho  do  pesquisador,  coreógrafo  e  bailarino  Klauss  Vianna.  

 

O  processo  de  apreensão  da  dança,  para  Klauss  Vianna  (2005),  depende  de  uma  

desestruturação  do  corpo.  Segundo  Viana,  existe  uma  tendência  de  se  acomodar  

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dentro   dos   padrões   em   que   somos   criados   e   acabamos   por   deixar   o   corpo  

adormecido.  Para  que  o  corpo  saia  desse  estado  de  entorpecimento,  é  necessário  

desestruturar   o   corpo   através   de   estímulos   incomuns,   ou   seja,   exercícios   que    

trabalhem   com   a   relação   corpo   e   mente.     Através   da   prática   desse   tipo   de  

exercício,   é   possível   que   a   percepção  do  próprio   corpo   se   altere   e   se   expanda.  

Nesse  sentido,  o  método  de  Vianna  tem  por  objetivo  estimular  as  relações  corpo  

e  mente  e,  com  isso,  a  percepção  do  corpo  é  expandida  para  uma  descoberta  de  

novos  caminhos.    

 

Para   Klauss   (2005),   a   sala   de   aula   deve   ser   um   ambiente   de   questionamento,  

discussão  e  interação,  diferentemente  de  como  estamos  acostumados  a  observar  

na   tradicional   escola  de  dança,   onde  a   repetição  de   formas   costuma  acontecer,  

principalmente  no  ensino  do  Ballet  Clássico.  O   autor   argumenta  que  processos  

de   treinamento   com   uma   disciplina   militar   resultam   na   anulação   da  

individualidade.  

 Klauss  inaugurou  no  Brasil  uma  nova  maneira  de  ver  o  corpo  e  o  corpo  cênico  com  

base  em  um  determinado  modo  de  entendimento  do  funcionamento  do  corpo,  com  

o  objetivo  de  desenvolver  as  possibilidades  de  comunicação    (NEVES,  2010:25)  

 

Para   Vianna   (2005),  mesmo   em   contextos   em   que   corpos   trabalham   a  mesma  

coreografia  eles   comunicam   individualmente:   “(...)o   corpo  de  baile   tem  que  ser  

constituído   por   pessoas   completamente   diferentes,   para   que   os   gestos   saiam  

semelhantes;  a  intenção  é  o  que  importa.”  (Vianna  2005:32)  

 

O   corpo   de   baile   no   balé   clássico   é   formado   por   bailarinos   que,   geralmente,  

repetem   uma   coreografia   simultaneamente,   formando   uma   fila   ao   fundo   ou  

grupos  no  palco  que  se  movimentam  praticamente  juntos.  Neste  sentido,  Vianna  

(2005)   direciona   os   artistas   para   a   sua   intenção   pessoal   do   movimento,  

transcendendo  a  repetição.    

Movimentos   nunca   são   reproduções   exatas   mesmo   que   aprendidos   previamente.  

Não   há   repetição   possível,   uma   vez   que,   como   nos   ensina   o   neurologista   Gerald  

Edelman  (2001),  as  conexões  em  rede  entre  neurônios  acionadas  para  a  execução  

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de  um  movimento  nunca  são  exatamente  as  mesmas  (NEVES,  2010:24).  

 

Dançar  é   “estar   inteiro”,   o  que  quer  dizer  que  não   se  pode   ignorar  as  próprias  

emoções   e   as   experiências   que   trago   no   meu   interior   enquanto   danço   ou  

enquanto  estou  na  sala  de  aula.  O  aluno  não  pode  estar  anestesiado  enquanto  faz  

(repete)  um  exercício  como  um  operário  numa  linha  de  montagem.  Ficar  sempre  

no  mesmo   lugar,  ouvir   sempre  as  mesmas  músicas,   repetir   sempre  os  mesmos  

passos  são  constantes  que,  de  tão  constantes,  se  regularizam,  tornam-­‐se  hábitos.  

 

É   preciso   vivenciar   os   movimentos   muitas   e   muitas   vezes,   mas   vivenciar   é  

diferente   de   repetir.   A   repetição   é   necessária   se   ela   for   acompanhada   de  

consciência   e   sensibilidade,   de   tal   forma   que   o   gesto   amadureça   e   torne   a   ser  

próprio.   Repetir   o   movimento   em   sala   de   aula   deveria   levar   à   observação   de  

nossas   dificuldades.   Os   bailarinos   precisam   colocar   suas   personalidades   a  

serviço   da   dança.   “Cada   um   deve   usar   sua   musculatura   dentro   do   processo  

próprio,   seguindo  uma  estrutura  de  movimentos  propostos  por  mim,  mas   cuja  

utilização  é  pessoal.”  (Vianna  2005:82)  

 

Sobre   a   questão   professor/aluno,   coreógrafo/bailarino   Vianna   (2005)   acredita  

que   o   aluno,   a   partir   do   momento   em   que   se   dispõe   a   aprender   a   técnica   da  

dança,   e   o   professor   não   têm   competência   para   se   comunicar   e   conseguir  

objetivar   seu   trabalho:     o   problema   é   exclusivamente   do   professor   e   não   do  

aluno.  A   tentativa  do   trabalho  do  professor  deve   ser   recuperar  a  percepção  da  

totalidade  do  corpo  e  tornar  os  gestos  mecanizados  pelas  práticas  do  cotidiano  

em  movimentos  conscientes.  

 

O  balé   clássico  pressupõe  um  modelo   rígido,   composto  por  um   ideal   estético  e  

uma  disciplina   cotidiana   capaz  de  produzir   apuramento   técnico.  Assim,  muitos  

alunos  se  submetem  a  um  massacre  físico  e  psicológico  em  busca  da  forma  ideal.  

Deveríamos   fazer   exatamente  o   contrário:  partir  do   corpo  que   temos  e  não  do  

modelo.   Assim,   com   disciplina   e   organização,   moldamos   um   ideal   próprio,   a  

partir  do  nosso  próprio  corpo.  Nesse  sentido,  (Vianna  2005:73)  defende  que  “a  

técnica  na  dança  tem  apenas  uma  finalidade:  preparar  o  corpo  para  responder  à  

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exigência    do  espírito  artístico”.  

 

Vianna   (2005)  ainda  defende  que  o   trabalho  coreográfico   só   resultará  em  uma  

criação   original   se   fugirmos   da   repetição   mecânica   das   formas   vazias   e   pré  

fabricadas   e   utilizarmos   a   técnica   como   meio   e   não   fim;   “a   técnica   só   tem  

utilidade   quando   se   transforma   em   uma   segunda   natureza   do   artista”   (Vianna  

2005:73).  

 

É   preciso   chegar   ao   ponto   em   que   o   aprendizado   se   torne   um   hábito   e   que   a  

naturalidade  do  gesto  transcenda  os  limites  do  próprio  aprendizado.  A  partir  da  

observação   e   percepção   dos   movimentos   elementares   Vianna   (2005)   procura  

criar   um   código   com   o   corpo   para   começar   a   sensibilizar   as   partes   mortas   e  

liberar  articulações.  

 

Observa-­‐se   que   a   percepção   é   o   ponto   fundamental   para   a   criação   dessas  

informações   e   possibilidades   do   corpo.   Quanto   maior   a   gama   de   experiências  

relativas  ao  movimento,  exigido  pela  dança  em  questão,  maior  a  possibilidade  do  

corpo  se  identificar  e  organizá-­‐lo  de  maneira  mais  natural.  

 

Na  visão  do  neurocientista  Damásio  (2010),  essas  questões  se  relacionam  com  a  

ideia   de  "sentimentos   de   conhecimento".   Na   visão   do   autor,   esses   sentimentos    

estabelecem  uma  relação  de  distinção  entre  o  eu  e  o  não-­‐eu.  O  fato  da  percepção  

gerar  emoções     e   sentimentos   permite   que   a   mente   tenha   conhecimentos  

dos  domínios  que   lhe  são  próprios   (corpo,   mente,   experiências,  

estados  físicos,  sensações  etc).    Consequentemente,    essa  percepção  faz  com  que  

este   corpo    se   aproprie   ou  não  destas  experiências,     separando   aquilo   que   lhe  

interessa  e  construindo  seu  eu  através  da  experiência  apropriada.  Quando  neste  

fluxo   mental   surgem  conteúdos  relativos   a   esta  apropriação,   a   este   eu,  

a  consequência  é   a  criação  de   marcadores   que   se   unem   ao   fluxo   em   forma   de  

imagem   justaposta:   a   imagem   que   a   desencadeou,   num   ciclo   interminável  

de  criação  de  imagens  a  partir  das  imagens  já  criadas.  

 

 

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 2.1  –  Rede  de  Percepções  

   

 

Neste   momento   vamos   propor   uma   rede   de   relações   entre   os   conceitos   de  

percepção,   processo   criativo   e   experimentação,     a   fim   de   subsidiar   nosso  

raciocínio,  bem  como  contrastar  nossa  visão  particular  com  a  dos  demais  autores  

pesquisados.  Pretende-­‐se  discutir  neste  trabalho  como  o  processo  de  apreensão  

e  apropriação  do  movimento  técnico  transcende  vários  níveis  de  conhecimento,  

permeia   entre   linguagens   próprias   e   se   apropria   de   outras.   E,   também,   como  

estas  relações  entre  alunos  e  professores,  estão  imersas  de  possibilidades  e  tem  

na   comunicação   um   viés   de   observação   que   nos   parece   indissociável.   A  

experiência  da  dança  é  um  processo  comunicacional  em  que,  para  os  envolvidos  

no  processo  criativo,  tudo  é  mediado  pelo  próprio  corpo  e  pelas  linguagens  que  

traduzem  sensações,  experiências,   textos  em  movimentos.  Movimentos  que  são  

linguagem  deste  corpo  que  o  produz  e  que  chega  ao  outro  corpo  que  assiste  e  se  

transforma   simplesmente   pelo   fato   de   reconhecê-­‐lo   como   corpo   humano,   de  

percebê-­‐lo  em  outro  tipo  de  processo  comunicativo:  o  momento  da  apresentação    

coreográfica.  

 

O  corpo  participa  de  todas  as  experiências  do  homem.  É  através  do  corpo  que  ele  

se  relaciona  com  o  mundo,   transformando-­‐o.  Essas  experiências  sócio-­‐culturais  

são   impressas   ao   longo   das   gerações   e   das   experimentações   inerentes   ao   ser  

desde   seu   surgimento.   Consequentemente,   tais   impressões   estão   presentes   na  

totalidade   deste   ser   que   as   carrega   e   apresenta   estampada   nos   seus   gestos,  

movimentos,  escolhas,  entre  outros.  

 

Os   olhos,   ouvidos,   nariz,   boca   e   pele   são   modos   de   exploração,   investigação   e  

orientação,   modos   de   atenção   a   tudo   que   é   constante   na   estimulação   mutável,  

capazes  de  isolar  a  informação  pertinente.  Longe  de  serem  mutuamente  exclusivos,  

sobrepõem-­‐se   e,   na   maior   parte   das   vezes,   estão   focados   no   mesmo   tipo   de  

informação,   isto  é,  a  mesma  informação  pode  ser  captada  por  uma  combinação  de  

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sistemas  perceptivos  trabalhando  juntos  (GIBSON,  2004:  128).  

 

Como   propõe   Gibson   (2004),   podemos   entender   que   a   exploração   do   homem  

está  diretamente   relacionada   às   suas   experiências   sensoriais.  O   corpo   interage  

com   estas   informações   através   de   um  meio   físico,   seja   ele   o   ouvido,   o   nariz,   a  

língua,   a   pele   ou   o   olho.   Em   seguida,   transforma-­‐as   em   impulso   elétrico   que  

chega  ao  cérebro  e,  por  sua  vez,  é  traduzido  em  experiência  sensória  inteligível.    

 

Este   processo   perceptivo   é   uma   via   de   mão   dupla,   em   que   as   informações   se  

entrelaçam   por   meio   de     uma   complexa   rede   que   envolve   o   corpo,   o   meio  

biológico  e  o  meio  social  em  que  o  homem  está  inserido.  O  corpo  não  consegue  

isolar   um   sentido   e   perceber   apenas   o   som,   por   exemplo,   mas   sim   captar   a  

informação,   utilizando   toda   sua   combinação   de   meios   perceptivos,   para  

selecionar  a  informação  que  lhe  é  pertinente.  Esta  informação  é  processada  por  

um  corpo  que  passou  por  outras  experiências  sensórias  durante   toda  sua  vida.  

Consequentemente,   esta   tradução   de   informação   não   será   exatamente   igual   à  

outra,  mesmo  que  a   informação   inicial   seja  a  mesma.    Em  outras  palavras,   isto  

significa:  se  eu  cheiro  uma  mesma  maçã  duas  vezes  ela  já  não  é  exatamente  igual,  

se   eu   como   um   chocolate   (do   mesmo   lote,   fabricado   no   mesmo   dia)   em  

momentos     distintos,   ele   terá   gostos   diferentes,   porque   esta  máquina   sensória  

humana   não   é   precisa.   Ela   depende   de   constantes   físicas   e   químicas   que   a  

regulam  de  maneira  cruel.    

 

Para  o  bailarino  e  o  coreógrafo,  perceber  o  próprio  corpo  e  o  corpo  do  outro  é  o  

ponto   inicial   do   seu   trabalho.   Olhar   e   apreender   os   movimentos   que   serão  

utilizados   no   processo   coreográfico,   nesta   medida,   significa   que   todas   estas  

constituintes,  que  tendenciam  a  percepção,  devem  ser  levadas  em  consideração  e  

assumidas   no   trabalho   coreográfico.   Isto   significa   que,   inevitavelmente,   estas  

percepções  do  movimento  pelo  corpo  do  outro  sofrem,  durante  este  processo  de  

apreensão,   uma   série   de   influências,   perdas   e   ganhos   pela   própria   natureza  

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tradutória   deste   processo   e,   ainda,   que   estas   constituintes   adquiridas  

naturalmente   podem   caracterizar   este   movimento   “carregado”   como   parte   do  

discurso  deste  corpo  que  a  produz.  

 

A  percepção  é  relativa  à  mudança  e  está  diretamente  relacionada  às  experiências  

e   sensibilidade   do   corpo   que   a   contempla.   A   percepção   é   a   tradução   das  

informações  recebidas  pelos  sistemas  perceptivos  em  experiências  sensoriais.    

 

Para  Damásio   (2010),  perceber   é  o   resultado  das  possibilidades  que  o   cérebro  

tem   de   criar   imagens   mentais.     Estas   imagens   mentais   estão   diretamente  

relacionadas  à  percepção,   independentemente  se  esta   imagem  é  visual,   sonora,  

tátil  etc.  Ela  sempre  será,  no  cérebro,  um  mapeamento  mental.  

 

Consequentemente  toda  experiência  do  homem  é  uma  experiência  mediada  pelo  

corpo.  O  conceito  de  corpomídia  descrito  por  Greiner  e  Katz  (2005)  corresponde  

à  noção  de  mídia  de   si  mesmo,   onde  o   corpo   é  um  meio   em  que   a   informação  

entra  e  se  relaciona  com  as  que  já  estão.  A  mídia  a  que  ele  se  refere  é  a  que  diz  

respeito  ao  processo  evolutivo  de  selecionar  informações  para  a  constituição  do  

próprio   corpo.   Nesta   medida,   observar   um   acontecimento   é   participar   com   o  

corpo   daquele   acontecimento;   participar   deste   acontecimento   é   transformar   o  

seu  corpo  em  outro  corpo,  um  corpo  carregado  deste  novo  acontecimento.  

 

Katz   (2005)   sugere  que  o   corpo   indica   a   transitividade  no   lugar.  Todo   corpo  é  

corpomídia   de   si   mesmo,   sendo   corpomídia   daquele   estado   momentâneo,  

juntamente  com  todas  as   informações  colecionadas  por  ele  e  que  o  constitui.  A  

noção  de  mídia   empregada   aqui   é   a   de   que   a   informação   que   fica   no   corpo   se  

torna   corpo.   Essa   visão   é   diferente   da   teoria   de   corpo-­‐máquina,   em   que     a  

informação   entra,   é   processada   e   devolvida   apenas.   A   mídia   do   corpomídia  

identifica   um   estado   do   corpo   sendo   o   corpo   mídia   do   próprio   estado.   Todo  

histórico  de  informações  que  foram  apreendidas  pelo  corpo,  e  que  o  constituem,  

são   apresentadas   através   dele   mesmo   naquele   exato   momento.   Dessa   forma,  

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novas   informações  entram  em   interação  com  as  que  ali   já  estão,   criando  novas  

relações  e,  com  isso,  nova  mediação  do  corpo  através  dele  mesmo.  Na  presente  

pesquisa,  pretende-­‐se  investigar  o  corpo  no  processo  coreográfico,  a  partir  deste  

conceito  de  corpomídia  desenvolvido  por  Greiner  (2005)  e  Katz  (2005).  

 

Este   trabalho   também   recorre   aos   fundamentos   teóricos   propostos   por   Pierce  

com  a   finalidade  de  discutir  questões  que  abordam  a   interação.  Na  visão  deste  

autor,   aquilo   que   percebemos   é   algo   que   impositivamente   insiste   em   aparecer  

para  nós.  Não  é  algo  que  é  criado  pela  nossa  mente.  É  a  partir  de  algo  que  está  

fora   de   nosso   corpo   e   que   se   força   sobre   nós   que   voltamos   nosso   olhar  

(adotamos  a  partir  de  agora  o  olhar  como  a  conciliação  de  todos  os  sentidos  do  

corpo,   não   limitando-­‐o   apenas   a   visão),     e   percebemos   àquele   objeto.   A   partir  

deste   ponto,   neste   ato   perceptivo,   em   que   o   olhar   se   volta   para   o   objeto  

começamos  um   julgamento  de  percepção,   este  nada  mais   é  que  uma  mediação  

daquilo   que   representa   este   objeto   e,   nesta   mediação   é   onde   ocorrerão   as  

inferências   lógicas   deste   processo.   Ocorrerão   esquemas   mentais   e  

interpretativos   se   relacionando   com   essas   mediações   do   objeto   e   que  

caracterizarão  os  juízos  perceptivos.    

 

Evidentemente   todas  as  etapas  aqui  descritas  estão  presentes  em  um  contínuo  

inconsciente  que  vai  acontecendo  conforme  estamos  presentes  neste  estado  de  

apreensão.    

 

Para  que  sejamos  capazes  de  traduzir  este  objeto    em  julgamentos,  estes  tem  que  

ser  reconhecidos  de  alguma  experiência  anterior.  Este   fluxo  mental  aproxima  o  

que  está   fora   aos  demais   julgamentos  perceptivos  que   fazemos,   e  para  que  ele  

não  seja  rejeitado  é  necessário  ser  reconhecido  neste  contexto  interpretativo  em  

que  ele  interpreta  e  ao  mesmo  tempo  é  produzido.    

 

Chega-­‐se  ao  um  ponto  em  que  a  percepção  é  o  ponto  fundamental  para  a  criação  

dessas   informações   e   possibilidades   do   corpo.   Quanto   maior   a   gama   de  

experiências   relativas   ao   movimento   exigido   pela   dança   em   questão,   maior   a  

possibilidade  do  corpo  se  identificar  e  organizá-­‐lo  de  maneira  mais  natural.  

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Sob  este  aspecto,  observa  Katz  (2005)  em  relação  às  experiências  do  corpo  e  à  

repetição  do  movimento:  

 Quem   observa   o   corpo,   percebe   que   nele   ocorrem   tanto   os   aprimoramentos  

graduais  quanto  emergenciais.  Qualquer  pessoa  que  tenha  experimentado  praticar  

tecnicamente   com   o   corpo   -­‐   seja   dançando,   pulando   corda,   andando   de   bicicleta,  

jogando   bola,   etc   -­‐   já   sentiu   as   duas   formas   de   ocorrência.   A   habilidade   que   se  

repete   melhora   gradualmente   através   do   treinamento   que   burila   o   exercício.   No  

entanto,   eventualmente,   interrompem   novas   circuitações   que   surpreendem   o  

controle.  Como  se  o  corpo  desenvolvesse  uma  solução  inteligente  não  prevista  pela  

consciência.  

Isto  ocorre,  muito  provavelmente,  porque  um  processo  de  repetição  não  se  dá  sem  

minúsculas  diferenças,  a   certa  altura  produz  uma  diferença  que  se  nota.  As  várias  

qualidades  de  informação  que  um  corpo  produz  e  abriga  não  são  compartimentadas  

e  estanques,  mas  se  comunicam  e  se  relacionam.  Assim,  um  processo  de  repetição,  

também   está   modificando   todo   o   resto,   que   não   está   sendo   especificamente  

repetido  (KATZ,  2005:38).  

 

 

Para   Damásio   (2010),     os   sentimentos   que   estabelecem  

uma  relação  de  distinção  entre   o   eu   e   o  não-­‐eu   são  "sentimentos   de  

conhecimento".   O   que   permite   que   a   mente   tenha   conhecimentos  

dos  domínios  que   lhe  são  próprios   (corpo,   mente,   experiências,  

estados  físicos,     sensações  )   é   o   fato   da  percepção  fazer   gerar  emoções  e  

sentimentos,   o   que   faz   com   que   este   corpo    se   aproprie  

ou  não  destas  experiências,  separando  aquilo  que  lhe  interessa  e  construindo  seu  

eu  através  da   experiência   apropriada.   Quando   neste   fluxo   mental  

surgem  conteúdos  relativos   a   esta  apropriação,   a   este   eu,   a  consequência  é  

a  criação  de  marcadores  que  se  unem  ao  fluxo,  em  forma  de  imagem  justaposta  

àquela   que     a   desencadeou,   num   ciclo   interminável   de  criação  de   imagens,   a  

partir  das  imagens  já  criadas.  

 

Os  processos  de   interpretação  e  organização  desta   informação  são  integrados  e  

seguem   uma   rede   de   acontecimentos   mentais   num   processo   sígnico   ou   de  

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semiose,   em  que  a   capacidade  de  operar  e  perceber  ou  vice-­‐versa  determinam  

um   ao   outro.   As   experiências  são  carregadas   de   outras   experiências.  

As  percepções  são  construídas  através  de  outras  percepções,    num  ciclo  sem  fim  

de  informações  que    se   relacionam   inevitavelmente   e   surgem   a   partir   uma   das  

outras.  

 

 

A  definição  do   “eu  material”,   o   eu   enquanto  objeto  para  Damásio   (2010)   é:   um  

agrupamento  dinâmico  de   processos   neurais   integrados,   centrado  

na  representação  do   corpo   vivo,   que   encontra  expressão  num   agrupamento  

dinâmico  de  processos  mentais  integrados.    

 

 Refiro-­‐me  ao  termo  imagens  como  padrões  mentais  com  uma  estrutura  construída  

com   os   sinais   provenientes   de   cada   uma   das   modalidades   sensoriais   -­‐   visual,  

auditiva,  olfativa,  gustatória  e   sômato-­‐sensitiva.  A  modalidade  sômato-­‐sensitiva   (a  

palavra   provém   do   grego   sôma,   que   significa   'corpo’   inclui   várias   formas   de  

percepção:   tato,   temperatura,   dor,   e   muscular,   visceral   e   vestibular.   A   palavra  

imagem  não  se  refere  apenas  a  imagem  'visual',  e  também  não  há  nada  de  estático  

nas  imagens...  As  imagens  de  todas  as  modalidades  'retratam'  processos  e  entidades  

de   todos   os   tipos,   concretos   e   abstratos.   As   imagens   também   'retratam'   as  

propriedades   físicas   das   entidades   e,   às   vezes   imprecisamente,   às   vezes   não,   as  

relações   espaciais   e   temporais   entre   entidades,   bem   como   as   ações   destas.   Em  

suma,  o  processo  que  chegamos  a  conhecer  como  mente  quando   imagens  mentais  

se  tornam  nossas,  como  resultado  da  consciência,  é  um  fluxo  contínuo  de  imagens,  e  

muitas  delas  se  revelam   logicamente   inter-­‐relacionadas.  O   fluxo  avança  no   tempo,  

rápido  ou  lento,  ordenadamente  ou  aos  trambolhões,  e  às  vezes  segue  não  uma,  mas  

várias   seqüências.   Às   vezes   as   seqüências   são   concorrentes,   outras   vezes  

convergentes   e   divergentes,   ou   ainda   sobrepostas.   Pensamento   é   uma   palavra  

aceitável  para  denotar  esse  fluxo  de  imagens  (DAMÁSIO,    2000:  402-­‐403).  

 

O   que   estamos   tentando   fazer   aqui   é   evidenciar   através   destas   teorias   da  

percepção   as   possibilidades   que   o   corpo   tem   naturalmente   de   traduzir   e  

produzir  conteúdos.  Podemos  observar  em  ambas  teorias  descritas  acima  que  a  

questão   da   informação   já   experienciada   pelo   corpo   tem   fundamental  

importância   na   construção   de   novas   informações   para   este   corpo,   pois   ela  

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direciona   o   olhar   e   estabelece   relações.   Mais   adiante   veremos   que,   de   acordo  

com  a   teoria  de  Salles   (1998)  e  dos  processos  de  criação,  a  maneira  como    são  

estabelecidas   essas   redes   de   informação   durante   a   produção   artística   é   que  

indicam  a  tendência  e  a  individualidade  de  cada  artista.    

 

Neste   trabalho,   esta   questão   da   individualidade   presente   no   movimento   do  

corpo   é   o   ponto   que   interliga   estas   teorias   num   interesse   em   comum.   Tal  

questão,   leva-­‐nos   a   questionamentos   do   tipo:   como   estas   traduções   aparecem  

para   o   coreógrafo   durante   o   processo   de   apreensão   da   coreografia?   Como  

trilhamos   um   caminho   que   possa   gerar   um   reconhecimento   para   o   aluno,   de  

modo    que  a  técnica  não  seja  rejeitada  logo  no  início  e  que  o  processo  possibilite  

a  vazão  de   informações  e  não  crie   frustrações,  devido  à  própria  potencialidade  

falível,  que  é  da  natureza  do  processo  de  percepção?  

 

Tentaremos   demonstrar   como   fizemos   para   que,   durante   as   oficinas   de  

sapateado   americano,   a   utilização   de   procedimentos   priorizassem   as  

possibilidades   do   corpo   dos   bailarinos,   independentemente   da   quantidade   de  

informação   técnica   apreendida.   O   que   podemos   observar   nestas   teorias   é   que  

elas   concordam   que   perceber   é   um   processo   contínuo   em   que   dificilmente  

vamos   achar   um   início,   um   meio   e   um   fim.   É   um   ciclo   de   assimilações.   Uma  

experiência   em   que   as   informações   chegam   por   todos   os   lados,   produzindo  

conteúdos.  Utilizar  estes  conteúdos  no  processo  criativo  da  dança,  ou  moldar  as  

possibilidades  que  o  corpo  já  apresenta  em  possibilidades  dentro  da  linguagem  

técnica  envolvida  é  um  caminho  menos  árduo  e  traumático  que  pode  facilitar  aos  

envolvidos  uma  trilha  comum  aos  objetivos  finais.  Olhar  o  aluno  como  um  artista  

em  potencial  é  uma  das  bases  do  trabalho.  A  tentativa  aqui  é  fazer  com  que  este  

aluno   possa   ter   acesso   a   ferramentas   que   o   ajudem   na   investigação   do   seu  

próprio  movimento.  

 

 

 

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2.2  As  possibilidades  através  das  inquietudes  

 

 

 

 

Salles  (2008)  em  sua  apresentação  sobre  o  processo  de  criação  de  “Todos  os  12”,  

da   extinta   Companhia   2   do   Balé   da   Cidade   de   São   Paulo,   faz   importantes  

observações,   as   quais   se  mostram   relevantes   a   este   trabalho.   A   autora   aponta  

questões  sobre  o  papel  do  crítico,  como  parte  do  processo  das  redes  de  criação.  

Salles   (2008)   esclarece   ainda   que,   por   se   tratar   de   um   projeto   de   um   órgão  

público,  havia  uma  constante  discussão   sobre  o   comprometimento  de   todos,   já  

que   o   percurso   era   direcionado   por   uma   proposta   que   sustentava   uma   forte  

vertente   ética.   A   seguir,   a   autora   menciona   um   trecho   da   discussão   proposta  

pelas   diretoras   da   Companhia,   que   ilustra   bem   a   preocupação   em   torno   dessa  

questão:   "(...)no   seu   entendimento,   que   outras   ações   semelhantes   a   essa   é  

possível   esperar   de   uma   companhia   oficial   de   dança,   que   entende   seu   papel  

político  no  cenário  nacional  da  dança?"  (Salles  2008:  84)  

 

 

Estes   questionamentos,   com   o   objetivo   de   levar   ao     comprometimento,   eram  

fundamentais   para   a   proposta   estética   do   projeto,   cujo   propósito   era   romper  

modelos  de  atuação  dos  bailarinos  ou,   segundo  Salles   (2008:  85)   “romper  com  

uma  matriz  codificada  ou  um  corpo  com  memória  cristalizada.”  

 

Fundamentalmente  o  projeto  tinha  a  proposta  de  abalar  os  moldes  e  a  tradição  

vivenciados  pelos  corpos  dos  bailarinos,  através  de  diálogos  múltiplos.  Isso  nos  

leva   a   crer   que   ainda   hoje   uma   companhia   importante   do   cenário   paulista   de  

dança,   fomentada   por   verba   pública,   enfrentando   dificuldades   para   que   os  

bailarinos   se   apropriem   de   diferentes   qualidades   de   movimentos,     como   diz  

Salles   (2008:84)   “apropriar-­‐se   de   seu   corpo   sem   as   máscaras   e   incertezas   do  

conhecido”.  É  evidente  que  os  bailarinos  vivenciam  uma  dificuldade  durante  seu  

trabalho   como   artista.     Tal   dificuldade   pode   ter   sido   proporcionada   por   um  

treinamento   corporal   “cristalizador”,   de   tradições   que   assumem   tamanha  

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importância,   a   ponto   de   calar   o   discurso   corporal   do   artista   que   representa   o  

movimento.  

 

Outra   questão   abordada   pelas   diretoras   da   Companhia   de  Dança   da   cidade   de  

São  Paulo  era  “que  dança  o  meu  corpo  dança?”.    Na  perspectiva  de  Salles  (2008),  

os   propósitos   deste   projeto   chegavam   a   abalar   estruturas   supostamente  

inquestionáveis,  como  a  tradição  das  aulas  e  ensaios.  Dentro  de  uma  companhia  

de   dança   contemporânea,   em     busca   de   linguagens,   movimentos   e   discursos  

novos,  um  projeto  dessa  magnitude  significa    abalar  estruturas  rígidas.    

 

Neste   presente   trabalho,   assumimos   a   perspectiva   de   que   abordagens  

estruturalmente   rígidas   acabam   por   abafar   qualquer   questão   discursiva   que   o  

bailarino  possa  ter,  e  mais,  treina  desde  sua  formação  inicial  o  artista  bailarino  a  

não   ter   um   discurso   pessoal   para   ceder   seu   corpo   ao   movimento   técnico,   ao  

movimento   coreográfico   perfeitamente   reproduzido.   Assim   como   também  

observa   Salles   na   emergência   de   abalo   a   estas   estruturas   no   trabalho   da  

Companhia  2.  

 

Chega-­‐se,   então,     a   um  dos   pontos   relevantes   desta   pesquisa:   o   problema   e   as  

dificuldades   que   se   apresentam   no   trabalho   de   apropriação   dos   movimentos,  

mesmo   em   bailarinos   profissionais,   gerados   principalmente   pelas   estruturas  

inquestionáveis  de  aulas  e  dissociação  do  ensaio  e  a  apresentação.  Sendo  assim,  

podemos  tentar  olhar  o  treinamento  dos  bailarinos  durante  sua  formação,  ou  no  

nosso  caso,  em  oficinas  de  dança,  onde  possivelmente  encontraremos  bailarinos  

em  potencial?  

 

Acredita-­‐se   que   sob   o   ponto   de   vista   da   comunicação,   com   suas   inúmeras  

pesquisas   relacionadas   à   cognição,   percepção   e   teorias  do   conhecimento,   estas  

questões  de  “sentir”  o  movimento,  aparentemente  metafísicas,  possam  encontrar  

conceituações   teóricas   mais   palpáveis   e   emergirem   do  mundo   do   inexplicável  

para  uma  estruturação  científica,  que  explique  e  possibilite  soluções  e  reflexões  

aos  artistas.    

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Propor  um  paralelo  com    a  teoria  dos  sistemas  parece  ser  um  bom  princípio.  Este  

paralelo   servirá   como   uma   catapulta   para   o   que   vem   a   seguir:   a   discussão   da  

teoria  dos  processos  de  criação  em  dança.  

 

Em  seu  artigo     “A   teoria  de  Umwelt  de   Jakob  Von  Uexkull”,  Thure  Von  Uexkull    

(2004),   explica   como   funciona   as   delimitações   das   possibilidades   e  

impossibilidades   de   cada   ser   vivo,   diretamente   relacionadas   com   seu   aparato  

perceptivo-­‐operacional.   Este   grande   conceito   é   chamado   de   “Umwelt”   e   tem  

como  premissa  epistemológica  uma  visão  sistêmica  de  mundo,  isto  é,  o  processo  

vital  é  entendido  como  um  sistema  círculo-­‐funcional  coerente,  em  que  código  e  

contexto,   sujeito   e   objeto   são   elementos   de   um   todo   maior   que   tendem   a   se  

relacionar   de   tal  maneira   funcional   para   que   o   ser   biológico   se   adapte   ao   seu  

meio   e   consiga   sobreviver.   Neste   aspecto,   ambos   fazem   parte   de   um   sistema  

aberto,   porque   interagem   com  o   seu  meio   ambiente   e   entre   si.   Observar   estes  

sistemas   significa   participar   deste   sistema.   Tais   interações   entre   observador   e  

sistema   observado   geram   uma   mudança   no   contexto   em   que   se   apresentam.  

Neste  trabalho,  é  por  esta  abordagem  que  recai  o  olhar  sobre  a  dança  na  sala  de  

aula  de  sapateado  americano.  Observar  o  aluno  para  entender  os  processos  que  

seu   corpo   encaminha   em   direção   à   apreensão   do   movimento   e   pensar   em  

propostas  para  direcioná-­‐lo  para  o  objetivo  do  professor.  Este  “Unwelt”  da  dança  

é  a  forma  que  o  corpo  encontra  para  se  adaptar  e  permanecer  em  uma  estrutura  

(sistema)  que  lhe  causa  algum  sentido  vital  de  permanência.  

 

De  acordo  com  Uexküll  (2004),  cada  espécie  tem  atividades  receptoras  e  efetoras  

específicas,  é  isto  que  regula  cada  uma  das  interações  entre  objetos  e  sujeitos.  A  

percepção  e  a  operação  são  o  que  definem  estas  capacidades  específicas  de  cada  

espécie.  Cita-­‐se  como  exemplo  o  morcego,  que  emite  ultra  sons  e  tem  receptores  

que  o   fazem   ter   a   capacidade  de   se  movimentar   sem  necessidade  da   visão.  Há  

também  os  gatos,  que  ao  cair  de  determinada  altura  tem  a  capacidade  de  girar  o  

corpo,  a   fim  de  direcionar  suas  patas  adaptadas  ao   impacto  em  direção  ao  solo  

etc.  

 

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Esta  relação  do  corpo  com  seu  meio  ambiente  é  o  que  vai  determinar  os  limites  

de   suas   possibilidades,   assim   como   o   “Umwelt”   determina   as   possibilidades  

perceptivas  dos  seres  vivos.  Nesta  medida,  observar-­‐se-­‐á  processos  criativos  de  

alguns  coreógrafos  e  pensadores  da  dança,  para  que  os  pontos  em  comum  com  

seus   trabalhos   possam   objetivar   a   busca   pelo   aumento   da   gama   de  

possibilidades  em  relação  ao  corpo  que  dança.  

 

Vieira  (2006)   faz   importantes  relações  para  esta  discussão  a  partir  do  trabalho  

de  Laban.  Observa-­‐se    que  a  gramática  de  mundo,  que  condiciona  a  existência  do  

“Umwelt”  humano,  depende  da  evolução  e  das  internalizações  que  o  nosso  corpo  

faz,  de  um  modo  perceptivo  mediado  da  realidade  de  mundo,  operada  pelas  leis  

físicas.  

 Além   dessa   possibilidade,   Laban   também   nos   fala   da   dança   como   sistema   aberto  

para  um  meio  ambiente  que  além  de   físico  é   também  cultural.  E  de   fato,  podemos  

cogitar  acerca  de  um  Umwelt  não  só  físico-­‐químico-­‐biológico,  mas  também  cultural,  

uma   condição   que   cremos   não   antevista   por   Uexkull,   mas   cada   vez   mais  

estabelecida   na   Etologia   e   Biosemiótica;   uma   interface   onde,   além   de   códigos  

poderosos,   como   genético   ou   imunológico,   temos   aqueles   culturais   (VIEIRA,  

2006:122).  

 

De   acordo   com   Vieira   (2006)   Laban   percebe   a   sutileza   dos   sistemas   de  

movimentos  que  conectam  o  observador  e  o  observado  em  leis  sistêmicas.  

 É  através  do  Umwelt  que  vivenciamos  essa   realidade  parcial,  mas  nosso  Universo  

particular  teve  raízes  reais  em  leis  reais.  O  dançarino  tem  limitações  físicas  em  seus  

movimentos  e  posturas,  que  dependem  do  campo  gravitacional  da  Terra  e  da  noção  

de   equilíbrio:   sabemos   que   este   é   regido   pelo   sistema   de   labirinto,  em   nossos  

ouvidos,  que  nada  mais  é  que  um  "medidor  de  nível",  como  projetado  pelos  nossos  

tecnólogos.  "A  bolha  de  nível"  não  é  invenção  humana,  é  a  tomada  da  consciência  de  

um  processo   de   internalização,  muito   primitivo,   de   leis   reais   do  mundo   físico;   da  

mesma  forma,  sabemos  que  "ver"  é  o  resultado  de  uma  complicada  transição  entre  

a   realidade   e   nosso   cérebro,   por   meio   de   uma   cadeia   elaborada   de   semioses  

(VIEIRA,  2006:122).  

 

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Como   se   pode   notar,   na   perspectiva   do   autor   a   arte   representa   a   maneira   de  

permanecer   num   sistema   que   favorece   a   aquisição   de   conhecimentos.   Pode-­‐se  

confirmar  tal  perspectiva  quando  este  se  refere  à  memória  primitiva,  o  processo  

de   interação   real   entre   o   sistema   e   o   seu  meio   ambiente,   que   se   esforça   para  

harmonizar-­‐se,   por   meio   de   mapas   e   internalizações   de   experiências   que   se  

relacionam  o  tempo  todo  no  corpo  que  dança.  

 

Laban   (1990)   propõe   uma   dança   educativa   moderna,   que   deve   ser  

disponibilizada   a   todos   os   alunos  durante   os   anos   escolares,   para   que  desde   o  

ensino  fundamental  haja  também  uma  apreciação  do  movimento,  pois,  para  ele,  a  

felicidade  futura  depende  de  uma  vida  de  movimento  intenso.  

 

Em  seus  escritos   sobre  a  dança  educativa  moderna,   o   autor   ainda  propõe  uma  

nova   concepção  dos   elementos  do  movimento.   Este   conceito  principal   de  nova  

dança  tem  por  base  a  ideia  de  que  as  ações,  em  qualquer  atividade  humana,  seja  

ela   na   dança   ou   nas   atividades   cotidianas,   se   constituem  por   uma   sucessão   de  

movimentos,   onde   um   esforço   específico   do   sujeito   acentua   cada   uma   dessas  

ações.  

 

De   acordo   com  Laban   (1990),   esta   diferenciação   do   esforço   específico   da   ação  

acontece  porque   fatores  do  movimento  como  peso,  espaço,   tempo,   fluxo  e   toda  

uma   combinação   de   elementos   de   esforço   são   constituintes   das   ações   das  

pessoas  quando  se  movem.  

 

A  arte  do  movimento  é  aquela  que  se  utiliza  no  palco,  seja  como  balé  ou  qualquer  

outra  dança,   no   teatro   e   todos  os   tipos  de   eventos   em  que   a   atuação  do   corpo  

está   envolvida,   como   também   as   danças   sociais,   bailes   campestres,   jogos   etc.  

Além  de   estar   presente   também  em   cerimônias   e   rituais,   nos   comportamentos  

das  atividades  cotidianas  na  escola.  

 

A  técnica  do  movimento  para  Laban  (1990)  tem  diversos  aspectos:    um  deles  é  o  

domínio   do   movimento   específico   e   individual.   Isto   recorre,   principalmente,  

sobre  a   técnica   tradicional  para  determinados  estilos  de  dança.   Isto  quer  dizer  

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(no  entendimento  do  autor)  que  cada  movimento  é  uma  parte  isolada  da  dança  e  

deve  ser  apreendido  baseado  em  um  modelo  fora  do  corpo  que  o  realiza:  quanto  

maior  a  aproximação    do  movimento  técnico  modelo,  melhor  a  técnica.  

 

Esta   nova   proposta   de   dança   moderna   e   cênica   estimula   o   domínio   do  

movimento  em  todos  os  aspectos  corporais  e  mentais.  A  grande  diferença  entre  

as   danças   tradicionais   e   a   dança  moderna   é   que   as   tradicionais   são   formadas  

basicamente  por  passos  e  a  dança  moderna  se  vale  do  fluxo  do  movimento  que  

acontece   e   se   estende   por   todas   as   articulações   do   corpo.   O   estudo   da   dança  

moderna   pretende   compreender   e   praticar   o   princípio   do   movimento   e   seus  

elementos,   ao   invés   de   estudar   cada  movimento,   o   que   seria   impossível   neste  

caso,   já  que   esta  dança   tem  a  possibilidade  de   abranger  o   fluxo  de  movimento  

humano  e  suas  infinitas  variações  de  passos  e  posturas.  

 Nas  escolas  onde  se  fomenta  a  educação  artística,  o  que  se  procura  não  é  a  perfeição  

ou   a   criação   e   execução   de   danças   sensacionais,   mas   o   efeito   benéfico   que   a  

atividade  criativa  da  dança  tem  sobre  o  aluno.  A  questão  referente  à  apresentação  

de  danças  nas  escolas  deve  ser  abordada,  portanto,  com  extrema  delicadeza  e   ter-­‐

se-­‐á   que   seguir   ideias   e   procedimentos   definidos,   que   devem   ser   analisados  

detalhadamente.   O   instrumento   que   se   pode   oferecer   ao   educador   na   dança  

moderna   é   a   perspectiva   universal   sobre   os   princípios   do   movimento   (LABAN,  

1990:18).  

 

 

A   prática   desta   nova   técnica   busca   reforçar   o   impulso   nato   de   realizar  

movimentos   similares   aos   das   danças   e   incentivar   as   faculdades   naturais   e  

individuais   de   expressão.   Para   isto,   é   necessário   tomar   conhecimento   de  

princípios  que  governam  o  movimento,  bem  como  manter  a  espontaneidade  do  

movimento  e  mantê-­‐la  viva,  fomentando    a  expressão  artística,  para  que  o  aluno  

seja   mais   expressivo   e   criativo   e,   futuramente,   possa   representar   danças  

adequadas   aos   seus   dons   naturais,     de   acordo   com   seu   desenvolvimento.   Esta  

nova  técnica  também  pretende  integrar  o  conhecimento  intelectual  à  habilidade  

criativa.  

 

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Há   alguns   pontos   observados   por   Laban   (1990)   que   dialogam   com   a   proposta  

deste   trabalho   e   outros   não.   A   questão   do   modelo   fora   do   corpo   ainda   está  

presente   nos   escritos   de   Laban,   e   por   este  motivo   tentar-­‐se-­‐á   um  diálogo   com  

outros  pesquisadores  do  movimento,  principalmente  os  que  partem  do  princípio  

de  que  o  corpo  é  o  próprio  subsídio  para  o  seu  movimento.    

 

De  acordo  com  a  sistematização  proposta  por  Neves  (2010),  a  partir  do  trabalho  

de    Vianna  (2005),  observa-­‐se  uma  rede  de  relações  e  pontos  em  comum  com  as  

observações  e  com  o  trabalho  desenvolvido  nas  aulas  de  sapateado  Americano,  

durante  o  processo  de  apreensão  do  movimento.  Tais  observações,  em  paralelo  à  

sistematização,     vão   servir   de   subsídio   para   embasar   os   procedimentos   e  

processos  propostos  para  obtenção  de  um  objetivo:  o  movimento  como  forma  de  

conhecimento   e   não   como   repetição   da   forma.   Neste   sentido,     tomar-­‐se-­‐á  

emprestado  alguns  princípios  de  instrução  da  Técnica  Klauss  Vianna  para  traçar  

um  rumo  em  comum  com  os  exercícios  propostos  durante  as  aulas  em  questão.  

 

É   comum,   nas   salas   de   aulas   de   dança,   observar   certa   obsessão   desmedida   no  

que   diz   respeito   à   aplicação   da   força   muscular.   É   uma   constante   ouvir-­‐se:  

“prenda  o  abdômen!”,  “estique  a  perna”,  como  se  essas  diretrizes  fizessem  algum  

tipo   de   efeito   na   totalidade   do   movimento.   Pode   até   ser   que   um   corpo,  

plenamente   consciente   daquilo   que   esteja   fazendo,   consiga   transportar   tais  

diretrizes  para  o  movimento  que  vem  a  seguir.  Porém,  esta  diretriz  funciona  para  

um  pequeno  momento  durante  o  movimento.  Por  ser  tão  constante  nas  aulas,  ela  

se   apresentará   constantemente   no   corpo   e,   consequentemente,     enrijecerá   o  

gesto.    

 Os  procedimentos  e  instruções  de  uma  técnica  são  inseparáveis  de  um  pensamento  

e   uma   compreensão   do   corpo   e   sua   expressão   assim   como   de   uma   estética.   A  

Técnica   Klauss   Vianna   pesquisa   instruções   para   o   desbloqueio   das   tensões  

musculares   e   articulares   que   permitem   colocar   o   corpomente   em   um   estado   de  

maior   disponibilidade   para   o   uso   dos   recursos   expressivos   de   cada   indivíduo.   As  

instruções   trabalhadas  para  o  desbloqueio   também  são  utilizadas  para  provocar  e  

servir   de   caminho   para   a   exploração,   pesquisa   e   criação   de  movimentos.   Todo   o  

trabalho  está  embasado  e  utiliza  o  modo  de  funcionamento  do  corpo,  valorizando  e  

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salientando  a  relação  corpo-­‐ambiente  (NEVES,  2011:  33).  

 

A   aplicação   da   técnica   é   um   fluxo   de   tensão   e   relaxamento   muscular   em  

comunicação  com  o  meio  ambiente  em  que  se  apresenta.  A  intenção  do  bailarino,  

como  pensador  daquele  movimento,  é  a  busca  de  uma  forma  externa,  através  da  

potencialidade   interna   do   corpo   que   a   produz.   Neste   sentido,   observamos   na  

descrição  de  Neves   (2010),   sobre  a  Técnica  Klauss  Vianna,   importantes  pontos  

de  contato:  

 

Observa-­‐se   neste   trecho   a   importância   ao  movimento   consciente   proposto   por  

Vianna   (2005),   a   forma   “fria”  a  qual   ele   se   refere  é  aquela   forma  pela   forma,   a  

repetição  sem  fim  e  inconsciente.    

Quando  uma  técnica  artística  não  tem  um  sentido  utilitário,  se  não  me  amadurece  

nem  me  faz  crescer,  se  não  me  livra  de  todos  os  falsos  conceitos  que  me  são  jogados  

desde   a   infância,   se   não   facilita  meu   caminho   em  direção   ao   autoconhecimento   –  

então   não   faço   arte,  mas   apenas   um   arremedo   de   arte....Conheço   apenas   a   forma,  

que   é   fria,   estática   e   repetitiva   e   nunca   me   aventuro   na   grande   viagem   do  

movimento,   que   é   vida   e   sempre   tenta   nos   tirar   do   ciclo   neurótico   da   repetição  

(VIANNA,  2005:72).  

 

O  trabalho  de  sistematização  da  Técnica  Klauss  Vianna  foi  iniciado  em  1984  por  

Neide   Neves   e   Rainer   Vianna,   a   partir   da   vivência   prática   com   Klauss   Vianna.  

Neves  (2010)  enuncia  da  seguinte  maneira  as  instruções  trabalhadas  na  Técnica  

Klauss  Vianna:  

 

•  Dança  é  vida  

 

A  dança  é  um  modo  de  permanecer,  de  existir  enquanto  ser  humano  cultural.  O  

corpo   só   dança   enquanto   vive.   A   dança   acontece   desde   os   processos  

comunicacionais  que  envolvem  os  neurônios  e  os  sistemas  internos  do  corpo  até  

a  sua  forma  maior  que  é  o  movimento.  A  dança  é  a  especialização  do  movimento  

a   fim   de   se   comunicar   enquanto   necessidade   do   ser,   nem   que   seja   uma  mera  

questão  estética.  

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•   Cada  um  possui  a  sua  dança  

 

Cada  um  é  dono  de  seu  próprio  movimento.  Este  movimento  é  carregado  de  suas  

experiências   e   histórias   estampadas   no   corpo   e   consequentemente   no  

movimento.  

 

 

•   A  dança  está  dentro  de  cada  um,  não  deve  ser  buscada  fora,  na  cópia  de  

atitudes  e  passos.  

 

Todos  têm  uma  potencialidade  dentro  de  si  para  se  movimentar  como  dança.  O  

professor  deve   ter  a  percepção  e   sensibilidade  de  conseguir  orientar  o  aluno  a  

manifestar  esta  potência  de  acordo  com  a  dança  à  qual  ele  se  propõe  a  aprender.  

A   dança   não   está   lá   e   sim   a   potência   para   ela   acontecer,   ela   precisa   de   novas  

informações  para  ser  combinada  e  adequada  à  linguagem.  

 

•  O  que  conduz  à  dança  não  é  decorar  passos,   formas,  mas  aprender  caminhos  

para  a  criação  de  movimentos.  

 

O  caminho  que  a  dança  deve  percorrer  é  o  caminho  de  dentro  para  fora  e  não  o  

reverso.  Não  se  deve  decorar  passos  e  formas  e  sim  entender  como  o  movimento  

acontece.  Entender  com  o  pensar  do  corpo  é  o  que  gerará  autonomia  no  trabalho  

corporal  e  no  processo  de  criação  através  da  dança.  

 

 

•   Não  há  separação  corpo  mente  –  a  mente  é  encarnada:  

 

Os   movimentos   acontecem   a   partir   de   uma   rede   de   conexões   neurais   que  

envolvem   o   sistema   nervoso   e   o   sistema   sensório   motor.   Nesta   relação   entre  

sistemas,  o  corpo  aciona  função  memória,  pensamentos,  sensações  e  emoções,  o  

que  caracteriza  o  movimento  individual  de  cada  corpo  na  dança.  

 

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•   O   autoconhecimento   e   o   autodomínio   são   necessários   para   a   expressão  

pelo  movimento:  

 

Para   se   comunicar   através   do   movimento   é   necessário   dominar   o   corpo   e  

entender   como   este   se   organiza.   É   através   do   autoconhecimento   e   do  

autodomínio   que   o   corpo   se   formaliza   dentro   da   dança   por   meio   da   qual  

pretende  se  comunicar.  

 

•   A  forma  deve  ser  resultado  do  autoconhecimento  e  não  o  inverso:  

 O   que   deve   guiar   o   aprendizado   do   movimento   não   deve   ser   a   busca   da   forma  

pronta,   codificada   e   sim   a  maneira   como  o  movimento   se   constrói.   A   partir   desta  

construção,   que   envolve   todos   os   aspectos   do   movimento   -­‐   motor,   sensorial,  

cognitivo,   emocional   -­‐   chega-­‐se   a   formas   ou   linguagens   estéticas   em   que   todo   o  

corpo  está  conectado  e  se  expressa  a  partir  de  diferentes  dinâmicas.  É   importante  

entender  que  não  há  uma  ordem  temporal  de  acontecimentos,  em  que  a  forma,  ou  

uma   linguagem   pessoal,   seria   o   resultado   do   autoconhecimento,   de   forma   linear.  

Não   se   trata   de   relação   causa-­‐efeito.   Como   todo   o   funcionamento   corporal,   os  

processos   são   complexos,   enredados   e   se   dão   ao   longo   do   tempo,   no   trabalho  

evolutivo  do  dançarino  (NEVES,  2010:38  -­‐39).  

 

•   A  atenção  é  necessária  para  o  autoconhecimento:  

 

Para   que   o   corpo   se   autoconheça   é   necessário   focar   a   atenção   durante   todo   o  

percurso  do  trabalho.  Parece  uma  observação  óbvia,  porém  nosso  olhar  sobre  o  

corpo   é   adormecido,   observa-­‐se   em   grande   parte   dos   alunos   uma   inércia,   a  

repetição  inconsciente  do  movimento.  

 

•   A  repetição  deve  ser  consciente  e  sensível:  

 

Para   Klauss   (2005)   não   é   possível   repetir   um   movimento.   Mesmo   quando   se  

tenta  reproduzir  um  movimento  novamente,  este  já  apresenta  um  novo  agregado  

de  informações.  O  problema  acontece  quando  nos  movimentamos  sem  atenção  e  

acabamos   por   repetir   automaticamente   o   movimento   de   maneira   desatenta,  

desconectando   o   corpo   do    momento.   O   estado   de   atenção,   ao   se  movimentar  

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conscientemente,   faz   com  que  percebamos  as  novas   informações   agregadas  do  

ambiente  e  do  movimento  do  corpo,  no  momento  em  que  este  acontece.  

 

•   A  busca  do  novo:  

 

Ao  perceber  as  novas  informações  do  movimento,  novas  relações  são  percebidas  

e   geradas   como,  por  exemplo,   sensações,   sentimentos  e   intenções.  O  novo  está  

em  como  as  memas  informações  se  reorganizam  com  o  que  já  está  presente  no  

corpo.    

 

Além   destes   direcionamentos,   outros   são   enumerados   no   trabalho   de   Neves  

(2010).   Porém,   não   serão   discutidos   no   presente   trabalho.   A   seguir   os   tópicos  

para  conhecimento:  

 

•   O   direcionamento   ativo   do   peso   nos   apoios   do   corpo   gera   economia   de  

esforço,  espaços  internos  e  presença;    

•   Na   presença   de   apoios   ativos,   estão   presentes   no   movimento   três   aspectos:  

sustentação,  resistência  e  projeção;  

 

•   O  movimento  nasce  das  oposições;  

 

•   O  alinhamento  ósseo  é  feito  a  partir  do  acionamento  ativo  dos  apoios.  

 

 

 

 

 

 

 

 

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3.0   -­‐  Experiência  e  dança  –  descrição  de  processos  nas  oficinas  

de  Sapateado  Americano  

 

 

   

O   objetivo   deste   terceiro   capítulo   é   discutir   as   percepções   relacionadas   à  

aplicação  de  alguns  exercícios  propostos  pelo  professor  pesquisador  durante  as  

aulas   livres  de  sapateado  americano  em  oficinas  ou  aulas  regulares.  Três  casos  

diferentes   serão   abordados,   em   cada   um   deles   será   observado   um   exercício  

diferente  os  quais  acreditou-­‐se  ajudar  na  pesquisa  dos  movimentos,  levando  em  

consideração    questões  como:  a  utilização  de  diferentes  modalidades  sensoriais  

utilizados   para   o  mesmo   propósito;   observação   através   de  meios   digitais   e   as  

peculiaridades  de  cada  aluno.  

 

É  importante  salientar  que  os  exercícios  estavam  presentes  no  contexto  de  aulas  

e  estavam  conectados  a  outras  dinâmicas  já  vivenciadas  durantes  as  aulas.  Toda  

a  construção  de  conhecimento  do  movimento  é  parte  de  um  processo  contínuo  

interminável   que   se   funde   e   depende   da   prática   e   da   observação.   Este  

treinamento   consciente  da  pessoa  que  dança   tem  o  movimento   como  pesquisa  

do   corpo   e   precisa   favorecer   o   autoconhecimento,   utilizando-­‐se   das  

possibilidades  sensórias  e  motoras  possíveis.  

 

Os  exercícios  propostos  serão  apresentados  a  seguir.  É  importante  lembrar  que  

esses  exercícios  foram  recortados  de  seus  contextos  de  acordo  com  os  objetivos  

da   presente   pesquisa.   Acredita-­‐se   que,   através   dessas   descrições,   seja   possível  

observar  as  relações  que  os  corpos  estabeleceram  com  o  ambiente,    a  mente  e  o  

corpo.  

   

Os  exercícios  propostos  serão  apresentados  a  seguir.  É  importante  lembrar  que  

esses  exercícios  foram  recortados  de  seus  contextos  de  acordo  com  os  objetivos  

da   presente   pesquisa.   Acredita-­‐se   que,   através   dessas   descrições,   seja   possível  

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observar  as  relações  que  os  corpos  estabeleceram  com  o  ambiente,    a  mente  e  o  

corpo.  

   

A   ideia   não   é   apenas   olhar   os   processos   e   refletir   sobre   seus   elementos  

constituintes,   mas   observar   pontos   recorrentes   em   diferentes   processos   que,  

particularmente,   chamaram   a   atenção   e   definiram   o   trabalho   do   professor,  

compartilhar   experiências   que,   naqueles   momentos,   fizeram   com   que   o  

direcionamento  do  grupo  seguisse  por  este  ou  aquele  caminho,  afinal  é  inevitável  

que   nossas   escolhas   naquele   momento   levaram   nossa   coreografia   para   um  

determinado   destino.   Caso   escolhêssemos   outros   caminhos,   provavelmente  

teríamos  outros  destinos.  

 

É   muito   claro   que   cada   aluno   é   único,   singular   e   que   cada   corpo   tem   suas  

peculiaridades.   O   corpo   de   alunos   em   oficinas   livres   de   dança   são  

completamente  diferentes  dos  corpos  dos  artistas  bailarinos  na  cena  paulista  de  

dança,  por  exemplo.  O  objetivo  da  aula  é  cultivar  a  pesquisa  do  corpo  através  de  

estímulos  propostos  pelo  professor  em  qualquer  situação,  ou  seja,  olhar  o  aluno  

e  perceber  que  ali  está  o  material  que  deve  ser  pesquisado  e  não  um  objeto  a  ser  

moldado,  afinal,  o  corpo  não  é  um  barro  que  se  molda  ou  um  diamante  bruto  a  

ser   lapidado.   O   corpo   do   aluno,   em   seu   potencial   expressivo,   é   o   corpo   do  

possível  futuro  artista,  e  percebê-­‐lo  é,  de  certa  maneira,  estimular  este  artista  a  

reconhecer  seu  próprio  corpo  em  seu  contexto.  É  dar  ferramentas  para  que  este  

corpo   possa   se   comunicar   de   um   modo   mais   efetivo   em   seu   propósito.   É  

valorizar  suas  questões  pessoais  e  instrumentalizar  este  aluno  na  percepção  do  

próprio   e   dos   corpos   em  movimento  dos  demais   colegas.   Estimular   este   corpo  

para   que   ele   tenha   uma   autoridade   discursiva   é   aproximar   os   alunos   dos  

procedimentos  geradores  das   ações.  Neste   contexto,  que   “experiência”   é   esta   a  

qual  nos  referimos?  

 

A   experiência   a  qual  nos   atentamos  é   aquela  que  Bondía   (2002)   apresenta   em  

seu  artigo  sobre  o  saber  e  o  saber  de  experiência.    

 

De   acordo   com   o   autor,   para   que   a   experiência   gere   o   saber   é   necessário  

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diferenciá-­‐la   do   experimento,   assim   como   tentamos   diferenciar   a   repetição  

mecânica   e   a   repetição   consciente.   O   experimento/repetição   mecânica   é  

repetível,   gera   desatenção   porque   carrega   algo   previsível.   Ele   procura   a  

homogeneidade  entre  os  sujeitos.  Já  a  experiência/movimento  consciente  busca  

a  pluralidade  do  ato,  produz  diferença.  Ela  carrega  uma  dimensão  de  incerteza  e  

desconhecido.  

 

A  experiência  exige  um  foco  de  atenção  e  consciência.    

 A   experiência   (...)   requer   parar   para   pensar,   parar   para   olhar,   parar   para  

escutar,   pensar  mais   devagar,   olhar  mais   devagar,   e   escutar  mais   devagar,  

parar  para  sentir,  sentir  mais  devagar,  demorar-­‐se  nos  detalhes,  suspender  a  

opinião,   suspender  o   juízo,   suspender  a  vontade,   suspender  o  automatismo  

da  ação,   cultivar  a  atenção  e  a  delicadeza,  abrir  os  olhos  e  os  ouvidos,   falar  

sobre  o  que  nos  acontece,  aprender  a  lentidão,  escutar  aos  outros,  cultivar  a  

arte   do   encontro,   calar   muito,   ter   paciência   e   dar-­‐se   tempo   e   espaço    

(BONDÍA,  2002:24).    

O  que  se  pretende  ressaltar    é  que  o  sujeito  da  experiência  precisa  estar  aberto  a  

sua   própria   transformação,   as   experiências   desatentas   geram   conhecimentos  

inconscientes,  porém,  no  caso  da  dança,  a  busca  é  a  sensibilidade  consciente.  É  

claro  que   todo  contexto  em  que  o  corpo  está   inserido  participa  ativamente  das  

mudanças  do  tempo,  do  espaço  e  do  próprio  corpo.  Porém,  para  a  dança  e  para  

que   se   comunique   e   se   atente   ao   gesto   é   necessária   a   reflexão.   É   esta   a  

experiência  que  se  busca  na  sala  de  aula.  

 

Bondía   (2002)   ainda   aponta   que   esta   experiência   é   carregada  de   paixão   e   isto  

pode-­‐se   referir   a   muitas   coisas,   como   um   sofrimento   passivo,   uma   liberdade  

dependente,   uma   tensão   insatisfeita,   uma   autonomia   vinculada.   Na   concepção  

desse   autor,   “O   saber   da   experiência   se   dá  na   relação   entre   o   conhecimento   e   a  

vida  humana”      (BONDÍA,  2002:26).  

 

Este  sujeito  da  experiência,  sujeito  passional,  constrói  o  seu  saber  e  tem  sua  força  

em   forma   de   práxis.   Esta   experiência,   por   sua   vez,   funda   uma   ordem   ética   e  

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epistemológica.  A  importância  da  experiência  está  em  como  ela  vai  construindo  

as   peculiaridades   e   a   personalidade   do   indivíduo.   Sendo   assim,   ela   é  

exclusivamente  do  sujeito  que  as  carrega.  

 

 

 

 

3.1   -­‐   Associação   de   Balé   de   Cegos   –   o   toque   como   forma   de   aprender   o  

movimento  

 

 

A  Associação  de  Balé  de  Cegos  foi  fundada  em    1995  e  tem  como  objetivo  formar  

uma   companhia  de  dança.   Esta   associação  oferece   gratuitamente   aulas  de  balé  

clássico,  dança  de  salão  e  outras  danças  para  deficientes  de  todas  as  idades.  Nos  

últimos   dois   anos   tive   a   oportunidade   de   instaurar   o   programa   de   sapateado  

americano  para  deficientes  visuais  na  associação.  

 

A   primeira   turma   formada   no   início   do   ano   de   2010   era   composta   por   duas  

alunas,  uma  com  baixa  visão  e  outra  com  cinco  a  sete  por  cento  da  vista  em  um  

olho.   No   decorrer   dos   meses   outros   alunos   entraram   na   turma.   Atualmente,  

desde  o  inicio  do  ano  letivo  de  2013  até  fevereiro,  temos  seis  integrantes,  entre  

cegos   e   baixa   visão.   As   aulas   são   ministradas   duas   vezes   por   semana,   com    

duração  de  uma  hora  cada.  

 

As  aulas  são  constituem-­‐se  em  um  período  inicial  de  aquecimento,  que  dura  em  

torno   de   quinze  minutos,   em   que   preparamos   a  musculatura   para   a   demanda  

necessária  ao  sapateado  americano.  Os  exercícios  são  formados  por  variações  do  

mesmo  passo,  propondo  diferentes   combinações   rítmicas.   Seguindo  o  percurso  

das   aulas,   fazemos   diversas   dinâmicas   individuais   e   em   grupo   para   percepção  

espacial   e   apropriação   dos  movimentos.   Ao   final,     a   aula   é   composta   por   uma  

combinação  coreográfica  de  passos.  

 

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A   maior   dificuldade   no   ensino   de   dança   para   o   deficiente   visual   consiste   na  

elaboração  de  um  procedimento  que  possibilite  a  mímese  do  movimento.  Neste  

caso  o  aprendizado  é  feito  principalmente  através  do  toque.  É  através  do  tocar  o  

corpo   do   professor     que   os   alunos   deficientes   percebem   o   posicionamento   do  

próprio   corpo   para   a   construção   do   movimento.   Por   exemplo,   para   entender  

como  é   feito  o  movimento  denominado  shuffle,  o  aluno  deve   tocar  em  todos  as  

partes  do  corpo  em  que  o  passo  está  envolvido,  criando  uma  imagem  mental  da  

totalidade  do  movimento,  como  observa-­‐se  nas  figuras  1,  2,  3,  4  e  5:  

 

Na   Figura   1,   observa-­‐se   uma   aluna   cega   tocando   a   perna   do   professor   com   o  

objetivo  de  codificar  o  passo,   criando  uma   imagem  mental  que  corresponda  ao  

movimento  do  sapateado  americano.  

 

 Figura  1  –  As  alunas  deficientes  visuais  Gisele  Aparecida  e  Fabiana  Croccia   tocando  as  pernas   do   professor   para   codificar   um   passo   de   sapateado   americano.   Associação   de  Balé  de  Cegos,  Setembro  2012.    

 

O  professor  repete  o  movimento  dizendo  o  nome  do  passo  e  a  aluna  vai  tocando  

em   toda   a   perna   do   professor   até   chegar   no   pé   onde   acontece   o   shuffle,   como  

podemos  observar  na  Figura  2.  

 

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 Figura   2   –   As   alunas   deficientes   visuais   Gisele  Aparecida   e   Fabiana   Croccia   tocando   a  coxa  do  professor  para  codificar  um  passo  de  sapateado  americano.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  setembro  2012.    

Durante  o  toque  o  professor  descreve  a  qualidade  de  movimento  de  acordo  com  

a  musculatura  que  está  sendo  tocada.  Por  exemplo:  o  ponto  inicial  do  movimento  

é  realizado  a  partir  da  musculatura  da  coxa.  Conforme  o  aluno  escorrega  a  mão  

pela  perna  em  direção  ao  joelho,  as  coordenadas  são  relaxar  toda  a  musculatura  

que  não  seja  da  coxa  para  evitar  tensões  na  musculatura  do  resto  da  perna  e  dos  

pés.  Observamos  esta  sequência  de  toques  nas  figuras  2  e  3.  

 

 

 Figura   3   –   A   aluna   deficiente   visual   Gisele   Aparecida   tocando   a   canela   e   o   pé   do  professor  para  codificar  um  passo  de  sapateado  americano.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  setembro  2012.    

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Depois   de   “sentir”   o  movimento,   o   aluno   tenta  mimetizar   aquilo   que   entendeu  

em  seu  próprio  corpo.  Só  então  são  direcionadas  as  orientações  orais  mais  uma  

vez,  muito  parecidas  com  as  que  aconteceram  durante  o  toque.  

 

O  terceiro  momento  do  entendimento  do  movimento  é  o  toque  do  professor  no  

corpo  do  aluno.  É  neste  momento  que  o  toque  do  professor  afina  o  entendimento  

corporal   do   aluno,   dialogando   com   a   intenção   do   aluno   ao   desenvolver  

determinado   movimento   e   descrevendo   o   que   está   acontecendo,   para   assim  

chegar  a    um  consenso  sobre  eventuais  tentativas  e  potenciais  realizações,  como  

podemos  observar  nas  Figuras  4  e  5.  

 

Todos   estes   procedimentos   visam   a   uma   futura   construção   da   técnica   do  

sapateado.   Estes   movimentos   iniciais   são   encarados   como   um   caminho   para  

chegar  à  técnica  consciente.  

 

 

 Figura   4   –   O   professor   toca   a   perna   da   aluna   Marina   Guimarães   para   reorganizar   as  diretrizes  descritas  oralmente.  Associação  de  Balé  de  Cegos,  fevereiro  2013.    

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 Figura  5  –  O  professor  toca  a  aluna  Marina  Guimarães  com  a  própria  perna  na  busca  de  novas   formas   de   sensibilização   da   informação   corporal.   Associação   de   Balé   de   Cegos,  fevereiro  2013.    

 

 

 

3.2  –  SPFC  –  São  Paulo  Futebol  Clube  –  percepção  e  meios  digitais  

 

 

No  ano  de  2012  este  professor-­‐pesquisador   foi     convidado  para  substituir  uma  

professora  de  sapateado  americano  no  Clube  Desportivo  São  Paulo  Futebol  Clube,  

localizado   na   Cidade   de   São   Paulo,   no   bairro   do   Morumbi.   Para   ter   acesso   às  

aulas  os  alunos  precisam  ser  sócios  do  clube,  sendo  que  a  grande  maioria  mora  

nas  redondezas  do  bairro.  A  classe  relatada  era   formada  por  adultos  de   idades  

variadas.  

 

O  interessante  neste  caso  de  estudo  é  exatamente  o  fato  de  ter  que  dar  aula  para  

alunos  que  já  tinham  feito  alguns  anos  de  treinamento  do  sapateado  americano  

com   outro   professor.   Alguns   dos   alunos   já   estavam   praticando   o   sapateado  

americano  há  mais  de  cinco  anos  com  a  antiga  professora  do  clube.  Vale  salientar  

também  que  muitos  dos  alunos  já  haviam  participado  de  aulas  de  outras  técnicas  

de   dança,   formando   um   grupo   bastante   heterogêneo   de   idades   e   experiências  

anteriores  em  dança.  

 

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Propusemos   que   as   aulas   fossem   realizadas   com   objetivo   recreativo   e   com   a  

intenção   de   apresentarmos   coreografias   em   espetáculos   e   festivais   livres   de  

dança.   Logo,   nosso   objetivo   era   aumentar   o   repertório   coreográfico   e   as  

habilidades  de  improviso.  

 

Durante   as   primeiras   aulas   constatamos   que   uma   das   grandes   dificuldades   da  

turma  era  a  de  se  adaptar  aos  novos  direcionamentos  propostos  pelo  professor.  

Se  era  proposta  uma  sequência  básica  de  passos,   com  um  compasso  de  música  

diferente   das   que   eles   já   conheciam,   a   memorização   e   o   desenvolvimento   da  

mesma  só  era  possível  se  repetíssemos  muitas  vezes  a  sequência.  Além  disso,  os  

alunos   só   se   sentiam   confortáveis   se   o   professor   os   acompanhasse,   fazendo   a  

sequência  na  frente  deles  para  que  pudessem  copiar.  

 

Percebemos   que   a   urgência   nesta   turma   era   o   trabalho   relativo   à   autonomia,  

criatividade  e  percepção  de  movimentos.  Escolhi  para  observar,  neste  presente  

trabalho,   alguns   exercícios   propostos   para   esta   turma   em   que   se   fez   uso   de    

mídias  digitais.  Doravante,  este  exercício  será  denominado  de  “o  olhar  através  do  

vídeo”.  O  exercício  citado   foi  proposto  com  as  seguintes  orientações:  dada  uma  

determinada   sequência   básica,   e   de   no   máximo   um   compasso   de   música,   os  

alunos   eram   direcionados   a   repetir   ininterruptamente   esta   sequência   em   uma  

determinada   música.   Enquanto   repetiam   a   sequência,   o   professor   gravava   a  

execução  com  uma  filmadora.  Após  estes  procedimentos  foi  proposto  um  círculo  

de   discussões.   Durante   a   primeira   exibição   do   vídeo,   as     observações   foram  

pontuadas   pelo   professor-­‐pesquisador.     A   partir   da   segunda   exibição,     as  

observações  ressaltadas  partiram  dos  alunos.  

 

Ao   anunciar   que   o   exercício   seria   gravado,   alguns   alunos   demonstraram   certa  

apreensão  e  uma  leve  resistência  em  relação  ao  processo.  Após  explicar  que  esta  

ação   seria   para   propósitos   didáticos   e   observatórios,   os   ânimos   se   acalmaram.  

Mesmo  assim,    ainda  percebia-­‐se,  por  parte  de  alguns  alunos,  uma  relutância  em  

observar  a  própria  imagem  no  vídeo.  

 

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Observou-­‐se  ao  longo  das  aulas  que  os  adultos  têm  uma  exigência  maior  sobre  o  

que   estão   fazendo.   Em   outras   palavras,     eles   lutam   consigo   mesmos   para  

organizar   a   dialética   certo-­‐errado   do   movimento,   baseado   em   experiências  

anteriores  ou  referências  de  movimentos  de  outros  corpos  dançando  sapateado  

americano.    

 

A  grande  questão  das  aulas  é  como  o  movimento  do  aluno  vai  se  organizando  e  

se   desenvolvendo   enquanto   técnica   de   sapateado   a   partir   dos   exercícios  

propostos.  Como  a  maior  parte  dos  alunos  não  consegue  aceitar  este   tempo  de  

desenvolvimento  e  continuidade  que  exige  a  construção  do  movimento,    nota-­‐se  

uma   preocupação   voltada     apenas   para     o   resultado   imediato,   a   partir   de   um  

movimento  vivido  pela  primeira  vez.  

 

Estas   discussões   em   torno   do   vídeo   apresentado   geraram   comentários   como:  

“achei  que  fosse  pior!”;  “olha,  estamos  conseguindo  uma  certa  uniformidade”;  “os  

sons  estão  melhores”.  

 

Apesar   da   dificuldade   de   observar   seu   próprio   corpo,   os   alunos,   depois   de  

algumas   exibições   do   vídeo,   começavam   a   perceber   questões   mais   refinadas,  

como   posicionamento   de   pernas   e   pés,   expressões   faciais,   tensões   em   alguma    

parte   do   corpo   na   qual   não   era   exigida   tanta   força.   A   diferença   entre   este  

exercício  e  qualquer  outro,    em  que  se  repete  várias  vezes  a  mesma  sequência,  é  

exatamente  este  olhar  para  o  corpo.  Diferente  da  aula  clássica,  na  qual  o  objetivo  

é   a   própria   repetição,   neste   caso   o   vídeo   apresenta   para   o   aluno   uma  

representação   daquilo   que   ele   está   fazendo,     aproximando-­‐o   do   seu   próprio  

corpo  e    distanciando-­‐o  do  corpo  referencial  do  professor.  

 

Nas   imagens   abaixo,   observa-­‐se   a   sequência  de  passos   shuffle,  hop,  step.   Esta   é  

uma   combinação   clássica   do   sapateado   americano   denominada   “carryover”.   O    

carryover  é  composto    por  um  shuffle  com  a  perna  direita  (por  exemplo),  seguido  

de   um   “hop”   com   a   perna   oposta   ao   shuffle.     Termina-­‐se   com   um   step   com   a  

mesma   perna   no   shuffle,   liberando   assim   a   perna   esquerda   (neste   caso).   O  

movimento  é   feito   avançando  para   a   frente.  Neste   exercício   foram  adicionados  

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outros  três  novos  elementos  na  terceira  repetição  do  carryover,  sendo  dois  steps  

a  mais  e  um  giro,  formando  a  seguinte  sequência:  

 

Shuffle,  hop,  step;  

Shuffle,  hop,  step;  

Shuffle,  hop,  step,  step,  step.  

Estes  últimos  três  steps  foram  feitos  girando  o  corpo  num  movimento  de  rotação  

(em  torno  de  si  mesmo).  

 

 

 Figura  6  –  Alunas  fazendo  o  primeiro  passo  denominado  shuffle  da  sequência  carryover  do  sapateado  americano.  São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.    

 

 Figura  7  –  Alunas  fazendo  o  segundo  passo  denominado  hop  da  sequência  carryover  do  sapateado  americano.  São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.    

 

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 Figura  8  –  Alunas  fazendo  o  terceiro  passo  denominado  step  acrescido  do  movimento  de  rotação   na   sequência   carryover   do   sapateado   americano.   São   Paulo   Futebol   Clube,  agosto  2012.    

 

 Figura  9  –  Alunas  liberando  a  perna  esquerda  após  o  término  da  sequência  carryover  do  sapateado  americano.  São  Paulo  Futebol  Clube,  agosto  2012.    

 

 

3.3  -­‐  Taboão  da  Serra  -­‐    música:  desenho-­‐audição-­‐visualidade  –  repertório  

sensível  das  crianças.  

 

 

Acredita-­‐se  que  um  exercício  que  ajudaria  na  observação  das  possibilidades  das  

crianças   de  mimetizar   as   sensações   é   o   exercício   “desenhando   a  música”.   Este  

exercício   foi   aplicado   numa   turma   com   integrantes   entre   sete   e   doze   anos   de  

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idade  que  estavam  tendo  o  primeiro  contato  com  a  dança.  Um  ou  outro  já  havia  

feito  anteriormente  alguma  aula  de  dança  em  oficinas  propostas  pela  prefeitura.  

 

O  exercício  “desenhando  a  música”  consiste  em  sentar  em  roda  na  sala  de  aula  e  

ouvir   a   música.   Enquanto   ouve   a   música,   o   aluno   desenha   imagens   que   esta  

música  possa  representar  para  ele.    

 

Depois  de   fazer  aquecimentos  relacionados  ao  sapateado,  pediu-­‐se  para  que  os  

alunos   sentassem   em   roda.   Uma   folha   de   papel   sulfite   foi   entregue   para   cada  

aluno  e   as   seguintes   coordenadas   foram  dadas:  dividam  a   folha   sulfite   em   três  

partes;   três   músicas   serão   tocadas   e   vocês   irão   desenhar   em   um   dos   espaços  

qualquer  coisa  que  passar  na  cabeça  de  vocês  quando  escutarem  esta  música.  

Nas   Figuras   10,   11,   12   13   e   14   abaixo   observa-­‐se   alguns   dos   desenhos   dos  

alunos:  

 

 

 Figura  10  –  Tradução  das  músicas  em  forma  de  desenho  feita  pela  aluna  Nayara  Alves  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009.

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 Figura   11   –   Tradução   das   músicas   em   forma   de   desenho   feita   pela   aluna   Rosangela  Pereira  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009.    

 Figura  12  –  Tradução  das  músicas  em  forma  de  desenho  feita  pela  aluna  Thais  Ribeiro  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009.      

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 Figura   13   –   Tradução   das   músicas   em   forma   de   desenho   feita   pela   aluna   Thayla  Policarpo  durante  o  exercício  “desenhando  a  música”.  Taboão  da  Serra,  setembro  2009  

 

 Figura   14   –   Tradução   das   músicas   em   forma   de   desenho   feita   pela   aluna   Pâmela  Nascimento   durante   o   exercício   “desenhando   a   música”.   Taboão   da   Serra,   setembro  2009.    

 

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As  três  músicas  escolhidas  para  o  exercício  foram:  

 

A. The  Nutcracker,  Op.  71  -­‐  Pas  De  Deux-­‐  Tchaikovsky.  

 

Por   ser   uma   música   clássica   bastante   difundida   em   desenhos   e   programas  

voltados  para  o  público   infantil,     esta  música   foi   escolhida   com  o  propósito  de  

causar  algum  tipo  de  reconhecimento  dos  alunos.  

 

B. Música  de  abertura  do  desenho  Naruto.  

 

Esta  música  foi  escolhida  por  ser  parte  de  um  desenho  infantil  muito  popular  na  

época  com  o  propósito  de  causar  um  reconhecimento  imediato.  

 

C. Trashin'  the  Camp  –  música  do  filme  Tarzan-­‐  Phill  Collins.  

 

Esta   música   foi   escolhida   por   ser   parte   de   um   filme   infantil   razoavelmente  

difundido  e  por  ter  sons  que  podem  ser  facilmente  reconhecidos.  

 

A  primeira  música    tocada  foi  um  clássico  bastante  recorrente  por  ser  usado  em  

desenhos  e  filmes  relacionados  a  natal  e  balé.  Além  disso,     trata-­‐se  de  um  tema  

muito  conhecido,  por  se  tratar  de  uma  música  presente  em  um  balé  de  repertório  

direcionado  ao  público   infantil  com  tema  natalino.  Observa-­‐se  nos  recortes  das  

Figuras   12   e   14   que   alguns   dos   alunos   indicaram   em   seus   desenhos  

representações  de  bailarinas  e  cenas  relacionadas  a  dança.  

 

 Figura  12a  –  Recorte  “Bailarinas”  da  Figura  12  

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 Figura  14a  –  Recorte  “Balé”  da  Figura  14.        É  possível  identificar  que  alguns  dos  alunos  conheciam  a  música  de  abertura  do  

desenho  Naruto,  pois  fica  claro  com  as  citações  do  nome  e  dos  desenhos  que  se  

parecem  muito   com   o   personagem   em   questão   apresentados   nos   recortes   das  

Figuras  12  e  14.  

 

 

 Figura  12b  –  Recorte  “Música  do  Naruto”  da  Figura  12.    

 

 Figura  14b  –  Recorte  “Naruto”  da  Figura  14.    

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Já  a  terceira  música  tocada  é  de  um  filme  dos  estúdios  Walt  Disney  que  conta  a  

história  do  Tarzan.  Em  um  determinado  momento  do   filme,  no  qual  a  música  é  

usada  como  trilha  sonora,  os  macacos  da   floresta   invadem  o  acampamento  dos  

humanos   e     fazem   uma   grande   bagunça,   quebrando   instrumentos,   copos   etc.  

Podemos   perceber   que   alguns   alunos   reconhecem   a   trilha   sonora   e   outros  

identificaram   os   sons   de   bagunça,     de   briga   e   confusão   como   demonstra   os  

recortes  das  Figuras  11,  12  e  13.  

 

 Figura  11a  –  Recorte  “Jogando  bola  dentro  de  casa  e  quebrou”  da  Figura  12.    

 

 Figura  12c  –  Recorte  “Quebra  tudo”  da  Figura  12.  

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 Figura  13a–  Recorte  “Vidro”  da  Figura  13.    

 

Estas   observações   feitas   pelos   alunos   são   fundamentais,   porque   compõem   o  

imaginário  relativo  àquela  música  e  são  carregadas  de   intenções  e  expectativas  

que   subjetivam   todo   trabalho   relacionado   àquela   determinada   música,   isto   é,    

caso   alguma   delas   fossem   eleitas   para   uma   coreografia,   estes   registros   seriam  

um  rico  ponto  de  partida,  cheio  de  possibilidades   já   fomentadas  pelos  próprios  

alunos.  

 

O   exercício   também   serviu   para   incentivar   o   aluno   na   investigação   sonora,  

fazendo  com  que  ele   refletisse  por  alguns  momentos   sobre  o  que  ouve  e   como  

consegue  transportar  para  um  outro  meio  de  comunicação,  como  o  desenho,  por  

exemplo.  Esta  reflexão    é  uma  maneira  de  exercitar  a  tradução  dos  sentidos  em  

alguma   mensagem   registrável.   O   papel   do   professor   aqui   é   oferecer   meios  

possíveis  para  a  pesquisa  do  próprio  corpo,  voltar  o  olhar  para  seus  sentidos  e  

usar  estes  para  a  criação  da  mensagem  artística.  Este  é  o  treinamento  sensível  e  

crítico   o   qual   nos   referimos   nos   capítulos   anteriores   apontados   por   Costas  

(2011)  e  Freire  (1981)  respectivamente.  

 

Em  um  outro  momento  das  oficinas  livres  de  sapateado  americano  na  prefeitura  

Municipal  de  Taboão  da  Serra  ocorreu  o  seguinte  fato.  Lembro  com  riquezas  de  

detalhes  porque  pude  observar  importantes  questões  relativas  ao  olhar  voltado  

para  o  próprio  corpo  e  a  motivação  necessária  para  a  pesquisa  corporal.  

 

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Uma   de   minhas   alunas   que   tinha   grande   dificuldade   de   assimilação   dos  

movimentos  propostos  vivia  dizendo  para  mim:  “-­‐  Eu  não  consigo!”  E  seguida  da  

frase   ela   sempre   desistia   de   tentar   fazer   o   movimento.   A   aluna   percebia   uma  

diferença  na  apreensão  do  movimento  por  ela  e  pelos  outros  alunos.  

 

Quando  me  deparava  com  este  comportamento  eu  sempre  a  incentivava:  “Claro  

que  você  consegue,  a  gente  só  consegue  se  continuar  tentando!”    depois  de  falar  

com   ela   procurava   buscar   diferentes   caminhos   e   estímulos   para   que   aquele  

movimento  proposto  acontecesse.  

 

Em   todas   as   aulas   a   aluna   apresentava   certa     dificuldade   em   algum   novo  

movimento.   Um   dia   esta   mesma   aluna   escutou   outro   companheiro   de   classe  

dizer:  “-­‐  Eu  não  consigo!”  E  eu  respondi:  “-­‐  Você  consegue!”  E  ela  imediatamente  

completou  minha   frase:   “-­‐   É   verdade,   outro   dia   eu   estava   brincando   com  meu  

irmãozinho   e   ele   não   conseguia   fazer   direito   uma   coisa   que   o   jogo   pedia   e   eu  

disse  para  ele:   -­‐  Você  consegue,   é   só   tentar  e   tentar  mais  uma  vez.  E  então  ele  

conseguiu.”  

 

O  que  me   chamou  atenção  neste   relato  não  é  o   apelo  positivista  que  ele  possa  

carregar,  mas   sim   como   o   olhar   para   as   próprias   possibilidades   e   dificuldades  

tem   fundamental   importância   no   processo   comunicativo   entre   o   corpo   e   o  

movimento;   tal   qual   o   processo   que   compreende   a   relação   entre   corpos.   Esta  

aluna   conseguiu   observar   suas   próprias   dificuldades   e,   de   alguma   maneira,  

organizou   o   seu   corpo   e   seu   raciocino   de   tal   forma   que   o   objetivo   dela   fosse  

alcançado.  Tal  processo,  provavelmente,    proporcionou-­‐lhe  algum  sucesso,  pois  

ao  provar   este   caminho  de  pesquisa   e   descoberta   ela   sentiu-­‐se   confortável   em  

compartilhar   esta   experiência   com   o   irmão   em   um   contexto   completamente  

diferente,   e   com   o   colega   de   classe   em   uma   situação   parecida   com   a   que   ela  

vivenciou.  

 

Em   casos   como   o   relatado,     é   importante   incentivar   a   pesquisa   corporal   e   o  

processo,   do   qual   se   participa   no   decorrer   da   aula,   evitando   dicotomias   que  

visam   apenas   estabelecer     o   certo   ou     o   errado.   Demonstrações   de   frustração  

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perante   o   aluno   que   enfrenta   uma   grande   dificuldade   também   são  

desanimadoras   e   podem   levar   à   desistência   do  mesmo.   Incentivar   o   processo,  

neste   sentido,   é   dar   maior   valor   ao   movimento   do   aprendizado   em   vez   da  

simples   valorização   do   movimento   final.   O   processo   de   construção   da   técnica  

pode  demorar  anos  e  visualizar  este  ponto   longínquo  de  alcance  como  o  único  

objetivo.   Isso   pode   representar     uma   frustrante   experiência   para   a   trajetória  

rumo   ao   impossível,   pois   o   referencial   estará   sempre   fora   do   corpo   que   está  

aprendendo.  

 

Outro  exercício  que  se  costuma  utilizar  bastante  em  nossos  processos  é  a  roda  de  

habilidades/improviso.   Nos   casos   de   primeiro   contato   com   alunos   crianças   e  

pré-­‐adolescentes   faz-­‐se   o   exercício   de   modo   livre   e   descompromissado   com  

qualquer  técnica  de  dança,  para  observar  o  repertório  de  movimentos  do  aluno.  

Já   nos   casos   de   adultos   e   adolescentes   que   já   tiveram   algum   contato   com   o  

sapateado   americano,   utilizamos   a   roda  de   improviso   em  que   se     propõe   criar  

sequências  coreográficas  no  centro  da  roda.  

 

O   exercício   chamado   de   “roda   das   habilidades”   é   simples   e   tem   o   caráter   de  

reconhecimento.   Neste   exercício   fazemos   uma   roda   e   o   professor   propõe   que  

uma  pessoa  entre  no  meio  da  roda  e  dance  como  quiser  uma  música  previamente  

escolhida.    O  professor  pode  não  conhecer  os  alunos  ainda.  A  timidez  e  a  ressalva  

do  aluno  em  entrar  na  roda  é  grande.  Para  que  isto  não  atrapalhe  o  processo,  as  

músicas   escolhidas   são   sempre   atuais   e   de   grande   aceitação   no   momento  

(tocadas  frequentemente  nas  rádios  e  televisão).  Caso  ninguém  entre  na  roda,  o  

professor   entra   e   faz   movimentos   engraçados   e   divertidos   para   descontrair   e  

assim   libertar   gradativamente   os   alunos   de   seu   próprio   julgamento.   Caso   isto  

também  não  funcione,  utilizamos  o  exercício  de  siga  o  mestre,  para  que  cada  um  

proponha  algum  movimento  corporal.  Aos  poucos  os  alunos  entram  um  a  um  e  

mostram  os  movimentos  que  lhes  são  familiares.  Aqueles  que  não  entram  ficam  

para   o   final.   O   professor,   percebendo   que   alguns   ficaram   de   fora,   propõe   a  

entrada   em   duplas   ou   trios   até   que   todos   tenham   contribuído   para   a   roda   de  

habilidades.  Este  exercício  é  dado  no  primeiro  dia  de  aula  e  repetido  sempre    em  

algum  momento  de   cada   aula.  No   caso  dos   adultos   e   adolescentes   da   “roda  de  

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improviso”,  costuma-­‐se  aplicar  o  exercício  depois  que  alunos  e  professor  tenham  

uma   certa   intimidade,   após   alguns   meses   de   trabalho   em   que   questões   como  

improvisação  e  exposição  individual  já  tenham  sido  abordadas.  

 

Em  ambos  os  casos  a  intenção  é  ir  além  da  coreografia.  Durante  este  exercício  os  

alunos   improvisam   com   movimentos   e   propostas   de   dança   as   quais   eles   já  

experimentaram   no   corpo   em   algum   outro  momento.   Estes  movimentos   farão  

parte  do  aprendizado  de  pelo  menos  duas  formas  diferentes.    

 

A   primeira   é   compor   uma  parte   do   esquema   coreográfico   da   turma,   ou   seja,   o  

professor   não   cria   movimentos   que   serão     repetidos,   mas   organiza   os  

movimentos  propostos  pelos  alunos  como  uma  coreografia.    

 

A   segunda   maneira   é   que,   a   partir   destes   movimentos   descompromissados   e  

orgânicos   daquele   corpo   o   professor   pode   identificar   similaridades   com   os  

movimentos  da  técnica  do  sapateado  americano  para  direcionar  este  movimento  

em  repertório  técnico.  A  apreensão  da  técnica  acontece  de  maneira  inversa.  É  a  

partir  do  movimento  que  já  está  lá  que  se  constrói  o  movimento  que  pode  vir  a  

ser,   isto   é,   o   movimento   apresentado   se   parece   de   alguma   forma   com   o  

movimento   técnico   do   sapateado.   Então,   estimula-­‐se   a   construção  da   técnica   a  

partir  desse  estímulo  que  o  aluno  dá  ao  professor.    

 

Este  exercício  gerou  uma  maneira  de  criar  contatos  a  partir  dos  movimentos  do  

cotidiano.  Às  vezes  para  o  aluno  é  mais  simples  entender  através  de  associações  

do   que   copiar   um   movimento   do   corpo   do   professor.   Por   exemplo,   para   um  

mesmo   movimento   utilizam-­‐se   exercícios   e   diferentes   formas   de   associação  

visando  a  um  mesmo  objetivo.  No  sapateado  é  necessário  que  o  peso  do  corpo  

seja  distribuído  na  meia  ponta  (tarsos  e  metatarsos),  praticamente  sem  apoiar  os  

calcanhares  no  chão.  A  ideia  de  andar  de  “salto  alto”  com  o  salto  quebrado  parece  

ser  mais  próxima  do  cotidiano  que  a  ideia  de  “distribuir  o  peso  do  corpo  sobre  os  

tarsos  e  metatarsos”.  

 

O   principal   objetivo   desde   exercício   para   o   professor   é   visualizar   nos  

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participantes  da  oficina  possibilidades  de  utilização  do  material  que  eles  trazem  

para   a   sala   de   aula.   Utilizar   os  movimentos   que   eles   aprendem   no   dia   a   dia   e  

montar   uma   coreografia   a   partir   destes   movimentos   propostos   pelos   alunos.    

Para  o  professor  é  importante  observar  todos  os  alunos  durante  todo  o  exercício,  

pois  muitos  movimentos  interessantes  e  peculiaridades  dos  alunos  são  expostas  

principalmente   durante   o  momento   antes   de   entrar   no  meio   da   roda.   É   neste  

momento   que   o   aluno   testa   algum  movimento,   observa   o   aluno   no   centro   da  

roda,   procura   ser   inovador   ou   engraçado,   ou   tenta   perder   a   timidez   e   criar  

coragem  para  entrar  na  roda,    empolga-­‐se  com  algum  movimento  inesperado  ou  

grandioso   do   aluno   que   está   dançando.   É   um   momento   de   conflito,   tensão    

interna  e  pesquisa  para  o  aluno.  

 

Tais  exercícios  têm  como  objetivo  estimular  no  aluno  o  processo  de  criação,  para  

que  a  obra  final  faça  parte  de  todo  seu  contexto  e  que  a  construção  dela  seja  feita  

de  maneira  investigativa  por  ele.  É  importante  que  a  criação  da  obra  deste  aluno  

apresente   um   caráter   de   investigação   própria   e   incentive   um   futuro   artista   na  

linguagem  da  dança.  

A   maior   busca   pessoal   deste   autor,   enquanto   professor,   é   de   fato   oferecer  

possibilidades   de   caminhos   para   o   aluno,   fazer   com   que   ele   descubra  

ferramentas   que   podem   ajudá-­‐lo   em   seu   processo   de   criação.   É   evidente   que    

para  alguns  deles  determinados  procedimentos  funcionam  de  uma  maneira  mais  

efetiva  que  para  outros.  Porém,  durante  as  aulas  faz-­‐se  necessário  permear  pela  

mais  variada  gama  de  exercícios  com  diferentes  funcionalidades,  para  que  cada  

aluno   possa   descobrir   as   ferramentas   de   criação   que   serão  mais   efetivas   para  

cada   objetivo.   A   ideia   de   deixar   de   ser   um   operário   da   ação   que   repete   o  

movimento  não  é  o  que  acredito  fazer  parte  do  processo  de  dança.  Estar  inserido  

num  contexto  e  possibilitar  que  este  ator  da  ação  participe,  interaja  e  modifique  

este   processo   significa     criar   discursos   e   permear   a   linguagem,   influenciando  

diretamente  na  produção,  confundindo  os  papéis  do  professor  e  do  aluno.    

 

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CONSIDERAÇÕES  FINAIS  

 

 

   

No  decorrer  deste    trabalho  uma  série  de  autores  foram  chamados  para  dialogar  

com  as  ideias  aqui  propostas.  A  partir  dos  encontros  com  os  autores  estudados,  

procurou-­‐se   tecer   uma   reflexão   a   respeito   dos   processos   comunicacionais   no  

contexto  das  oficinas  de  dança  na  busca  de  caminhos  singulares  para  a  expressão  

criativa  do  corpo.  

 

Foi  possível    constatar  que  as  pesquisas  em  dança  e  corpo  tem  proposto  relações  

com  diferentes  ciências  nos  últimos  anos,  como  propõe  os  autores  Costas,  Fortin,  

Greiner,  Godard,  Katz,  Long  e  Soter.  Questões  que  envolvem  o  conhecimento  do  

corpo  e  a  linguagem  da  dança  têm  sido  exploradas  de  maneira  cada  vez  mais  rica,  

discutindo  pontos  de   contatos   com  outras   ciências  que  antes  eram  dissociados  

dos  trabalhos  relativos  ao  corpo  como  apontam  Greiner  e  Katz.    

 

Pode-­‐se  observar  que  esta  interdisciplinaridade,  à  qual    os  fenômenos  humanos  

estão  inseridos,  vem  compor  e  explicar  os  fenômenos  que  antes  eram  tidos  como  

subjetivos   e   separados   da   fisicalidade.   Caem   por   terra   antigos   procedimentos  

sobre  o  ensino  da  dança,  como  a  repetição  desatenta  de  passos  de  uma  técnica  

específica,   o   sofrimento   silencioso   em   função   da   arte,   o   corpo   dócil   e   apático  

pronto   para   repetir   sequências   de   movimentos   de   um   coreógrafo.   Ganham  

espaço   as   ciências  que   tratam  o   corpo   e   a  dança   como  uma   rede  de  processos  

sensíveis,  que  podem  ser  treinados  e  aprendidos  em  função  da  linguagem  que  se  

pretende  desenvolver.  

 

Hoje   existe   uma   tendência   positiva   que   discute   física,   biologia,   semiótica,  

cognição,  neurociência,  psicologia,   sociologia  ao   tratar  de  assuntos   relativos  ao  

corpo,  porque  todo  processo  comunicacional  em  que  o  homem  está  inserido  faz  

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parte  de  uma  rede  de  fenômenos  que  traz  consigo  toda  gama  de  conexões  com  o  

meio  ambiente  no  qual  se  habita.  

 

Nesta  medida,  é  indissociável  perceber  a  potencialidade  das  experiências  vividas  

como   fonte   de   material   para   a   construção   da   linguagem   da   dança,   pois   toda  

experiência  que  o  corpo  vivencia  se  torna  corpo  e  interage  com  as  experiências  

que  ali  estão  para  criar  novas  informações.  

 

O   saber   da   experiência   é   aquele   que   procura   o   conhecimento   a   partir   das  

descobertas  pessoais  dentro  do  contexto  pesquisado.  Este  saber  da  experiência  

no   qual   nos   detemos   é   um   saber   sensível   que   tem   um   grau   de   consciência   e  

atenção.  Esta  sensibilidade  consciente  faz  parte  do  trabalho  do  professor  e  esta  

relação  professor  aluno  é  o  que  subsidia    a  experiência  criativa  para  um  caminho  

de  pesquisa  e  consciência.    

 

Como   aponta   Costas   (2011),   aprender   algo   depende  de   uma   rede  de   conexões  

importantes  que  geram  relações  e  agregam  estas  novas  experiências  ao  discurso  

daquele   que   aprende.   E,   podemos   complementar   afirmando   que   este   discurso  

precisa   estar   presente   na   ânsia   de   aprender   do   aluno,   para   que   o   desejo   de  

aprender  possibilite  que  as  relações  aconteçam.  

 

O  trabalho  do  professor  precisa  incitar  neste  aluno  direcionamentos  para  que  ele  

tenha  autonomia  e  perceba  nas  suas  próprias  descobertas  maneiras  de  construir  

novas  informações.  

 

Não  é  possível  limitar  o  aprendizado  da  dança  a  uma  visão  dualista  de  certo  ou  

errado  e,  durante  a  aula,  evitar  estes  conceitos,  pois  tudo  está  sendo  construído  

em  um  processo  contínuo  de  organização  das  informações  do  corpo.  

 

As   hipóteses   aqui   levantadas   foram   confirmadas.   O   corpo   tem   suas  

peculiaridades   e   toda   história   desse   ser   do   corpo   se   apresenta   estampada   e  

presente   em   sua   matéria.   É   inevitável   que   este   corpo   apresente   o   potencial    

discursivo  de  questões  que  estão  implícitas  no  ser,  mas  quando  a  busca  da  forma,  

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através  da  cópia  de  movimentos,   sobressai  à  expressividade  do  movimento,  do  

gesto,   o   potencial   interno   é   abafado   por   uma   arbitrariedade   violenta   que   gera  

neste  corpo  uma  tensão,  um  sufocamento,  uma  morte   lenta  e  cruel.  A  morte  da  

individualidade   e   da   expressividade   do   movimento   que   todo   corpo   tem   em  

potencial.  O  que  faz  o  diferencial  dos  grandes  bailarinos  é  a  capacidade  que  eles  

têm  de  se  apropriar  com  sensibilidade  e  consciência  daquilo  que  fazem.    

   

Quando   o   bailarino   percebe   que   a   potencialidade   do   seu   discurso   está   dentro  

dele,  as  possibilidades  se  multiplicam.  Ao  passo    que,  de  forma  contrária,  caso  ele  

se   limite   na   busca   da   repetição   de   modelos   e   de   formas   externas,   o   corpo   se  

estabelece     no   estático.   Este   cultivo   à   repetição   de   modelos   estáticos   nasce  

durante  a  formação  deste  futuro  bailarino  na  sala  de  aula,  na  oficina  e  qualquer  

lugar   que   ele   passe   que  não   tenha   como  base   um   sistema  de   ensino  dialógico.  

Sob   este   aspecto   o   professor   é   o   mediador   destes   processos   que   buscam   a  

singularidade  do  aluno  incentivando  a  utilizar  suas  experiências  como  ponto  de  

partida  para  a  construção  da  linguagem  da  dança.    

 

Sacks   (2010)   observa,   em   seus   relatos   sobre   doenças   neurológicas,   que   o   ser  

humano   ao   se   deparar   com   uma   falha   em   determinada   modalidade   sensorial  

como  a  visão,  por  exemplo,   imediatamente  seu  corpo  se  organiza  de  uma  nova  

maneira,  criando  novas  conexões  a  fim  de  substituir  o  sentido  afetado,  para  que  

o   corpo   consiga   ganhar   uma   nova   autonomia,   mesmo   estando   defasado   em  

relação  ao  que  era.  São  estas  situações  de  “risco”  que  desestabilizam  os  sentidos  

e   provocam   mudanças   e   novas   percepções   através   da   busca   de   novas  

possibilidades,  utilizando  outras  ferramentas.  É  neste  sentido  que  metodologias  

de   aprendizado   que   padronizam   corpos,   exercícios,   músicas   e   elementos   da  

dança   podem   ao   longo   de   sua   aplicação   gerar   um   estado   de   apatia   em   que   o  

hábito   de   fazer   sempre   o  mesmo   desestimulam   a   atenção     e   a   consciência   do  

movimento.  

 

Nestes   casos   relatados   observamos   procedimentos   de   processos   e   relatos   das  

experiências  vividas  em  cada  um  dos  contextos.  Os  exercícios  propostos  tiveram  

o   objetivo   de   abarcar   toda   esta   rede   de   conexões,   as   quais   propusemos   no  

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decorrer  deste  trabalho.  No  ponto  de  vista  do  autor,  as  questões  pessoais  de  cada  

aluno   são   os   materiais   mais   importantes   na   apreensão   dos   movimentos,   pois  

direcionam  o  corpo  para  um  discurso  que   transcende  a   técnica  da  dança.  Além  

disso,  é  importante  que  as  oficinas  criem  espaços  de  diálogos  e,  assumindo  uma  

busca  por  processos  comunicacionais  dialógicos,  como  diria  Flusser,  estimule  a  

produção   de   conhecimento.   Portanto,   discutir   o   sapateado   americano,   o   balé  

clássico   ou   a   dança   contemporânea   passa   a   ser   um   pretexto   para   teorizar   os  

fenômenos  que  envolvem  os  processos  de  dança  e  apreensão  dos  movimentos.  

Cada   caso,   com   a   sua   especificidade,   deve   inserir   o   aluno-­‐pesquisador   no  

contexto   em   que     pretende   se   aprofundar   e   subsidiar  maneiras   de   autonomia,  

para   este   aluno   permear   por   entre   a   linguagem,   imprimindo   seu   próprio  

discurso,    distanciando-­‐se  dos  modelos  a  serem  seguidos.  

 

Quando   passamos   pela   experiência   de   participar   de   uma   oficina   de   dança,   na  

maioria  das  vezes,  nos  colocamos  numa  posição  de  receptor  das  informações  ali  

trazidas   pelo   professor,   propomos   aqui   um   caminho   cíclico   em   que   todos   os  

participantes   contribuem   de   alguma   maneira   no   desenvolvimento   destas  

oficinas  e  ao  observar  as  questões   trabalhadas  durante  o  processo,  o  professor  

pôde  perceber  novas  problemáticas  e  novas  possibilidades  para  futuras  oficinas.    

 

As   respostas   corporais   dos   alunos   relativas   aos   estímulos   propostos   vem  

confirmar   as   questões   tratadas   na   teoria   do   corpomídia,   comprovando   que   as  

experiências   vividas   anteriormente   fazem   parte   daquele   corpo   e,   quando   se  

comunicam   com   novas   informações,   tecem   uma   rede   de   relações   que   se  

transformam  em  corpo.  Aquele  corpo  que  sapateia  não  é  um  corpo  em  função  da  

técnica  do  sapateado  aquele  corpo  é  o  próprio  sapateado  naquela  circunstância.  

 

Neste  sentido  as  oficinas  são  um  lugar  de  pesquisa  e  produção  de  conhecimento  

muito   diversificado   porque   unem   pessoas   de   locais   e   circunstâncias   variadas.  

Esta   rede   de   experiências   é   um  material  muito   importante   nestas   relações   e   a  

reflexão  proposta  neste  trabalho  é  fundamental  na  construção  de  novas  oficinas.  

 

 

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