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O que é um professor universitário? Publicado em 12/02/2015 No Brasil, é comum ouvir bizarrices como “O Prof. Fulano reclama de dar aulas demais, mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou seja, há muita confusão sobre quais seriam as reais atribuições de um professor universitário. Como esse é o cargo mais importante na carreira acadêmica, vale a pena dedicar um post inteiro a esclarecer essa questão. É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito entre universidades. Na verdade, há uma enorme variação mesmo entre professores de uma mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se progride verticalmente na carreira: substituto > assistente > adjunto > associado > titular. Aqui não vou tocar em problemas como concursos-gincana, acomodação, estabilidade fácil, isonomia salarial, salário defasado em relação à inflação etc., que merecem outros posts. Vou focar no sentido maior do cargo. Em outros idiomas e culturas, a diferença entre um professor universitário e outros tipos de professor fica clara já no vocabulário. Por exemplo, no inglês, o termo professor se aplica apenas ao professor universitário, enquanto teacher é o professor de escola e lecturer é o docente universitário, geralmente com doutorado, mas sem título de professor. Sim, nos EUA, Inglaterra e outros países, professor, mais do que um cargo, é um título. No alemão também se diferencia o professor universitário através do termo Professor, enquanto quem dá aulas em escolas é umLehrer e quem dá aulas na universidade sem ter o título de professor é um Dozent. Não é uma questão de qual tipo de professor é melhor do que o outro, blablabla. Cada professor tem o seu papel no sistema educacional e todos são importantes. É apenas uma questão de diferenciar as carreiras e títulos, para se definir claramente o que se espera de cada professor. Então o que diferenciaria o professor universitário dos outros? Simples: esse cargo foi inventado para ser ocupado por profissionais que associam pesquisa e ensino. Sim, essas duas atividades são indissociáveis no conceito original de professor universitário. Mas, por que, Marco? Porque espera-se que um professor universitário esteja sempre na vanguarda da sua área. Espera-se que ele atue na formação de profissionais de nível superior, ensinando-lhes não apenas o conhecimento já sedimentado, mas também as novidades e macetes. Para se formar em uma profissão de nível superior, o aluno tem que ser apresentado tanto aos fundamentos quanto à vanguarda. Acima de tudo, espera-se que um professor universitário produza ele mesmo algumas novidades. Sim, um professor universitário tem a obrigação não apenas de transmitir, mas também de produzir conhecimento. E a transmissão de conhecimento se dá principalmente em sala de aula, passando informações consolidadas para os aspiras, e tambémdivulgando descobertas em revistas técnicas indexadas e revisadas por pares.

Professor Universitário

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Educação

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O que é um professor universitário? Publicado em 12/02/2015

No Brasil, é comum ouvir bizarrices como “O Prof. Fulano reclama de dar aulas demais,

mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou seja, há muita confusão sobre quais seriam as

reais atribuições de um professor universitário. Como esse é o cargo mais importante

na carreira acadêmica, vale a pena dedicar um post inteiro a esclarecer essa questão.

É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito entre

universidades. Na verdade, há uma enorme variação mesmo entre professores de uma

mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se progride

verticalmente na carreira: substituto > assistente > adjunto > associado > titular. Aqui não

vou tocar em problemas como concursos-gincana, acomodação, estabilidade fácil, isonomia

salarial, salário defasado em relação à inflação etc., que merecem outros posts. Vou focar

no sentido maior do cargo.

Em outros idiomas e culturas, a diferença entre um professor universitário e outros tipos de

professor fica clara já no vocabulário. Por exemplo, no inglês, o termo professor se aplica

apenas ao professor universitário, enquanto teacher é o professor de escola e lecturer é o

docente universitário, geralmente com doutorado, mas sem título de professor. Sim, nos

EUA, Inglaterra e outros países, professor, mais do que um cargo, é um título. No alemão

também se diferencia o professor universitário através do termo Professor, enquanto quem

dá aulas em escolas é umLehrer e quem dá aulas na universidade sem ter o título de

professor é um Dozent. Não é uma questão de qual tipo de professor é melhor do que o

outro, blablabla. Cada professor tem o seu papel no sistema educacional e todos são

importantes. É apenas uma questão de diferenciar as carreiras e títulos, para se definir

claramente o que se espera de cada professor.

Então o que diferenciaria o professor universitário dos outros? Simples: esse cargo foi

inventado para ser ocupado por profissionais que associam pesquisa e ensino. Sim, essas

duas atividades são indissociáveis no conceito original de professor universitário. Mas, por

que, Marco? Porque espera-se que um professor universitário esteja sempre na vanguarda

da sua área. Espera-se que ele atue na formação de profissionais de nível superior,

ensinando-lhes não apenas o conhecimento já sedimentado, mas também as novidades e

macetes. Para se formar em uma profissão de nível superior, o aluno tem que ser

apresentado tanto aos fundamentos quanto à vanguarda. Acima de tudo, espera-se que um

professor universitário produza ele mesmo algumas novidades. Sim, um professor

universitário tem a obrigação não apenas de transmitir, mas também de

produzir conhecimento. E a transmissão de conhecimento se dá principalmente em sala de

aula, passando informações consolidadas para os aspiras, e tambémdivulgando descobertas

em revistas técnicas indexadas e revisadas por pares.

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Então um professor universitário tem que fazer pesquisa também? Sim, claro! Ninguém se

atualiza tanto em uma área, quanto alguém que precisa disso para fazer as próprias

pesquisas, porque ama a ciência.

And the plot thickens… Pelas leis brasileiras federais e estaduais, a carreia de professor

universitário envolve, em geral, cinco pilares:

� Ensino: coordenação e participação em disciplinas de graduação e pós-graduação,

presenciais ou à distância.

� Pesquisa: investigação científica ou tecnológica para produção de conhecimento. Na

verdade, a área da pesquisa envolve mais um monte de coisas além da investigação e

publicação, como revisão de artigos, editoração de revistas científicas, organização

de congressos, administração de sociedades científicas, consultoria para agências de

fomento, assessoria à imprensa, assessoria política dentro da área em que é perito e

muito mais.

� Orientação: formação de novos cientistas através de estágios e projetos orientados

de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.

� Extensão: assessoria e divulgação de conhecimento científico e técnico para o

público externo à universidade através de consultoria, palestras, cursos, exposições,

museus etc.

� Administração: cargos de chefia em geral, cargos em órgão representativos da

universidade (câmaras, conselhos, congregações), gerenciamento de projetos,

captação de verbas externas, contabilidade, direção de laboratórios, etc.

Dependendo da universidade e do seu regimento interno, espera-se que o professor

universitário envolva-se com no mínimo dois ou três desses pilares. Os melhores

professores acabam se envolvendo com todos. O único pilar obrigatório é o ensino. Só fica

desobrigado parcial ou totalmente de dar aulas quem ocupa altos cargos administrativos,

como chefe de departamento, diretor de instituto, pró-reitor ou reitor. Significa que, na

prática, nem todo professor universitário é obrigado a fazer pesquisa.

Vamos destrinchar um exemplo mais concreto: as universidades federais brasileiras. De

acordo com a lei que rege essas instituições, o professor universitário “padrão” (sem cargo

de chefia ou outras condicionantes) é obrigado a dar de 8 a 12 créditos por semestre. Cada

crédito representa mais ou menos 15 h em sala de aula. Ou seja, o sujeito é obrigado a

passar dentro de sala entre 120 e 180 h por semestre. Um professor dedicado, que de fato

gasta tempo e energia com as aulas, precisa de no mínimo 2 h de preparação (slides,

leituras, material biológico para aulas práticas, preparação de computadores etc.) para cada

1 h em sala. Vamos considerar que uma disciplina obrigatória de graduação tem 4 créditos

(60 h) e costuma ser organizada de forma a ocupar 4 h em sala por semana. Logo, das 40

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h de trabalho semanais determinadas por lei, o professor acaba passando pelo menos

12 h envolvido com a disciplina. Isso, fora as horas gastas com atendimento de alunos e

correção de trabalhos. Assim, a conta pode facilmente chegar a 16 h por semana ocupadas

com cada disciplina e piora na época das provas e entrega de trabalhos, se o professor não

contar com ajudantes. Supondo uma turma com cerca de 60 alunos, imaginem a seriedade

da ralação. E, já que o mínimo são 8 créditos, o que nós, professores, enfrentamos é isso

vezes dois, pelo menos.

Para se ocupar com 2 disciplinas de 4 créditos por semestre, totalizando 8 créditos, e

realmente ministrá-las com qualidade, o professor universitário não poderia se envolver

com mais nada! A quem estamos enganando? A única forma de aliviar essa carga é através

da ajuda de pós-graduandos que atuam como tutores e graduandos que atuam como

monitores. Mas nem todo professor ou toda disciplina contam com o apoio de auxiliares. Os

tutores remunerados conhecidos internacionalmente como “TAs” (teaching assistants),

comuns nos EUA, Alemanha, França e UK, chegaram a ter uma versão brasileira

temporária durante o Reuni. Só que o programa foi planejado para durar apenas cinco anos.

Só para variar, nada é pensado a longo prazo neste país, tudo é paliativo, tudo é jeitinho.

Como alguém pode se dedicar de verdade à pesquisa de ponta tendo sobre os ombros o peso

de uma carga didática massacrante como essa? Como alguém pode fazer extensão e atender

de outras formas o mundo real fora da Academia, sendo obrigado a dar aulas igual a um

burro de carga? Na verdade, como seria possível conciliar qualquer um dos outros quatro

pilares da carreira com um ensino de qualidade em grande quantidade?

O Brasil tem um verdadeiro fetiche pela sala de aula! Em universidades de ponta, a carga

semestral obrigatória do professor não ultrapassa 4 créditos. Na prática, os professores e

alunos passam muito menos tempo em sala, justamente porque se dá mais valor à

independência dos aspiras. O bom aluno do ensino superior gasta a maior parte do seu

tempo estudando por conta própria, sozinho ou em grupo, através de tarefas orientadas ou

leitura espontânea. O momento em sala com o professor na aula teórica

(lecture ou Vorlesung) serve para apresentar ou consolidar o conteúdo principal, receber

orientações, tirar dúvidas e passar tarefas. No Brasil, castramos a individualidade, a

criatividade, a autonomia, a iniciativa e o livre pensamento, porque insistimos em adestrar

os alunos em cativeiro.

Ok, estou divagando. Voltando ao ponto de vista do professor, dá para entender porque

nunca chegaremos ao mesmo nível de qualidade em ensino e pesquisa do primeiro mundo?

Ficou claro porque estamos fadados a enxugar gelo e ficar sempre dois passos atrás dos

nossos colegas mais afortunados? Por favor, nunca mais diga que um professor universitário

brasileiro não pode reclamar de dar aulas demais, porque “tem cargo de professor”. Isso é

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tão estúpido quanto dizer que um professor universitário que tem bolsa de produtividade

está desrespeitando a dedicação exclusiva, porque é também “pesquisador do CNPq”.

Fonte: https://marcoarmello.wordpress.com/2015/02/12/professor/