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    Elmano dArgus

    Uns papeis do Damio

    Lisboa, 1999

    H uns tempos, numa altura em que me preparava para lanar nas bocas do mundo a histriada sua vida, uma espcie de autobriografia recolhida pela minha pena com alguns acrescentos

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    literrios, o Damio das Brteas, j muito velho e alquebrado, com uma surdez galopante aacrescer-lhe cegueira de nascena, ou de feitio, apontou-me dois fardos de papel amarelecido,atados com cordeis, e deu-mos, para que velasse por eles.

    Era apenas uma pequena poro do vasto esplio de memrias com que fora mobilandoa sua casa, atadas em resmas e fardos, e serviam para tudo, como cadeiras, enxergas, muitasvezes para atear as achas no fogo. O resto no sei a quem deu, talvez ao ttere Perdigo, seudilecto amigo.

    A minha parte constava duma grande coleco de sarrabais, alguns entremezes,panfletos sortidos, tudo impresso em oitavo e encadernado em peas de um prego ou dois, ou emflio avulso de vrios padres. E ainda um cento de manuscritos breves, a maior parte epstolas,duas ou trs de amor.

    Deduzi que o gesto do Damio significava um pedido. Para que reorganizasse, para osvindouros, a sua memria dispersa pelos caminhos. Se pudesse folhear este livrito, o Damioalegaria que no importunasse os vindouros com a memria de um pobre cego que os enfadaria.Se assim for, prego-lhe uma partida.

    De acordo com o tempo e os recursos, cada vez mais minguados, presentearei ento oleitor com a edio desta papelada, comeando j com o vaticnio para o ano de 1992,acompanhado dos seus anexos, na ordem por que sairam cozidos no respectivo prego. Espero doleitor, para no me obrigar a gastar mais uma folha, que custa caro, que se concentrepreviamente durante meia hora, para poder imaginar o contexto a que ter que se reportar,

    para abarcar todo o alcance do olhar cego e imvel do Damio sobre a loucura domundo.Este papel foi escrito, j em cima da hora, como era hbito do Damio, durante o

    Outono e Natal de 1991, enquanto cozia, nas dornas, o vinho novo que despejmos durante oano que ento entrou. A nica coisa a que o leitor, se for astuto, no ter acesso ser a esseintransmissvel deleite.

    A no ser que me procure e encontre, o que lhe vai custar. Ento, enquantotagarelarmos, talvez ainda abra uma das garrafas que surripiei e andam na minha trouxa aacrescentar esprito e paladar.

    Elmano.

    O GRO PESCADOR DO MARANHO,

    SARRABAL DE BENCATEL,DAMIO DAS BRTEAS.Natural desta cidade de vora e Provncia de Alentejo e nela peregrino entre as Alcovas

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    e Pavia, caminho de Guadalupe.Doutor em Cincias paraMdicas e Matemticas

    e em Projectos.E Mestre de Gramtica.

    PROGNSTICO PROSOPOTICO,Fabulgico, Jocosrio e Metafrico

    e LunrioPara o Ano de 1992,

    terceiro depois do bissexto,calculado ao meridiano

    de Greenwich,que o mesmo de Lisboa.

    E traz um prlogo aos leitores e advertncia aosdoudos e mais estropiados, para que se no deixem iludir com as abastanas com que os prov o

    estado social; e algumas histrias soltas e desgarradas, para entretenimento dos mais; e umcaptulo de uma cartilha para aprender a ler e a escrever.

    Prlogo ao LEITOR,e serve de advertncia aos doudos e mais estropiados, que abandonaram e vo abandonando asportas das Igrejas e os tneis do metropolitano, patrocinados e aliciados pelas sobras eabastanas do estado social, de que os cegos, que consultaram a assembleia dos planetas, nolhes auguram nem vaticinam uma folga prolongada.

    Cego aquele que no quer ver.

    Serviam-se as magestades, santidades e altezas de variados graus na cor cerlea de seusangue, os mdicos, as parteiras, os sangradores e os juzes, dos prognsticos, profecias eorculos para induzirem os povos na boa mente das suas empresas; fossem uma guerra, um

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    imposto, uma bula, uma terna amputao de um brao, de uma perna e at de uma cabea. Porisso competia-nos a ns, aos cegos, aos doudos e outros estropiados e peregrinos, erguer os olhoscerrados ao azul vazio dos cus para enxergar no colquio permanente e eterno dos astros emseu movimento o que todos os outros no viam.

    Durante sculos fizemos a histria; das coisas imaginrias, verdadeiras. De uma ideia,uma ocorrncia e de um simples e perverso desejo, um programa. Os reis protegeram-nos emtodos os lugares, os papas cumularam-nos de indulgncias e pelos caminhos despejmos osalforges de folhetos e livrinhos e os enchemos de tostes que afogmos no vinho, com as nossasdesgraas.

    Ora, leitor, advirto-te de que andam por a uns senhores, doutores em vrios graus,bem providos de bens e nos partidos, que no so cegos nem doudos, a vaticinar a torto e adireito. Quem quer ganhar umas eleies, vender uma data de papelada, ou mesmo acertar nalotaria, manda fazer uma sondagem. Os senhores doutores assentam-se em frente das suasmquinas providas de belos monitotres, que so as modernas bolas de cristal, pem em colquioum ror de nmeros que substituram os planetas, as estrelas, as constelaes e os signos, jogam eoperam no eficiente teclado com essas nebulosas algbricas, como bem lhes apetece, e exaramum vaticnio seco, radical e definitivo.

    At os cegos e os doudos acorrem a inscrever-se na percentagem mais rotunda. Eporque j nada se chama pelo seu nome, chamam ento carneirada maioria e minoria aturba do insucesso.

    E a ns, cegos, apartaram-nos do resto dos estropiados. Tiraram-nos os doudos e osmendigos, manetas e pernetas, que todos vivem agora sombra e sobra das abastanas doestado social.

    Que investe em induzi-los a participar nos programas da felicidade continental. Como?Ensinando-os, claro. Aos doudos a trabalhar com as mos e aos manetas, com os ps. Aospernetas com a cabea.

    Onde haja um mestre sem profisso, tem logo cem doudos para aprenderem um ofcio.Assim vai o mundo...

    Assim vai, no. Assim ia.Que todo se surpreendeu agora com o sucesso de um vaticnio. antiga, sem nmeros

    nem percentagens.A questo que a Rssia se converteu, por vaticnio de um pastor. L a qu no sei;

    mas que se converteu a alguma coisa, l isso que se converteu.Os pastores no so cegos nem doudos, embora possam ser manetas ou pernetas. Massendo o que so, pertencem c ao nosso bando de peregrinos que se cruzam nos santurios e noscaminhos. O sucesso deles o nosso sucesso.

    Os pastores tambm sabem que as coisas basta que se vaticinem, para que ocorram; ese no ocorrem mesmo medida dos nossos vatcnios, a questo de sermos os primeiros acelebrar.

    E serve este Prlogo, ento, de advertncia aos doudos, aos pernetas e aos manetas. Oscegos ficaram abandonados, esfingicamente serenos no desempenho do seu ofcio; peregrinospelas portas das Igrejas e tneis do metropolitano, pelas esquinas, pelos becos, ss no meio detodos os ajuntamentos, entre uma lamria e uma rabecada l ia um vaticnio, um orculo, umalaracha ou um piropo.

    Acorrem agora a juntarem-se-lhe os pastores, que no sabem j como serenar as suasovelhas, que os lobos rondam por a. Os doudos, os pernetas e manetas e muitos mais peregrinos

    c nos viro comer mo, a disputar paulada um lugar no Rossio, no Cames, ou nasAmoreiras.

    At l vou-me sando com os meus Prognsticos todos os anos e entre eles com outrassadas de faccias, entremezes, histrias e larachas; tudo para advertir os doudos e traz-los aoredil.

    E para ilustrar os meus intentos, sai, a seguir, a histria da vida do Gro Pescador daMusgueira e Sarrabal da Portela; e de como apendeu o seu ofcio com seu mestre, em Barcelonae pelas carreiras de Castela.

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    Tirei sete.- No queres tirar mais uma? V l rapaz, que de graa.Comecei a sentir que estava com boa gente.- Muito obrigado a Vossa Senhoria, mas assim basta.O Barca comeou a esfregar as mos, o rosto a afoguear como se soprassem vida num

    cadver.- Sete! Rapazes, venham ver. Sete! Vezes dez, setenta! Est no papo!Entraram todos de roldo, os mais altos frente e os mais baixos a esfuracarem no

    fundo da bicha.- Eu tambm quero! Eu tambm quero!- Calma que chega para todos. - disse o Barca e comeou a entregar, por ordem de

    chegada, uns envelopes surpresa a toda a gente. Para mim no sobrou; alis j ningum selembrava que eu estava ali. Tirei umas cerejas sucapa e esgueirei-me.

    - O cego?! O cego?! Apanhem-me o cego! J agora que diga um nmero para ototoloto.

    Agarraram-me pelas golas do casaco, ainda me trocaram a camisa, acabada de lavar napriso, por outra mais surrada, deram-me uns coques s para aguar o apetite e enfiaramcomigo de novo na ramona; aonde a cachopa, menos composta e mais chegada aos meusterrenos, choramingava:

    - Ainda por cima me deram uns coques!

    - Que lindas pernas. - disse eu, aproveitando a folga.Quando nos entregaram na priso, mandaram:- Expatriem-nos.- Expatri-los? Por qu? Para aonde?- No queremos c gente dessa. Para Espanha... sei l?No outro dia de manh, acordaram-nos cedo e levaram-nos ao chefe. Tinha acabado de

    se levantar, com os olhos colados pela ramela e fazia a barba; um pateta alegre segurava-lhe nabacia e no espelho.

    - J leram os jornais? Trazem uma sondagem. E uma amnistia. Esto livres.- Livres? Mas eu sou cego, no posso ler os jornais.- Sumam-se! Mas vo para Espanha... vo para Espanha. Ou para o diabo que vos

    carregue! Esto expatriados!Atiraram comnosco para a rua, comeava a chover, vida de cego... e de... Ela

    adivinhou-me o pensamento e abaixou-se para tirar o sapato. Passmos por um perneta e fez-nos uma figa.- Que lindas pernas. - disse ela para para tirar vingana, dele e dos outros.Coque atrs de coque, dixote atrs de dixote, um assobio e l vinha polcia. Vida de

    cego, de perneta e de... Cau-me a muleta no cabelo revolto e de seguida um sapato e um cacete.L comeava a histria.

    Continua no prximo nmero.

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    CONTINUAA HISTRIA DA VIDAdo Gro Pescador do Maranho,neste segundo captulo com o seu exlioem terras de Castela.

    E j acompanhado de uma varina e de umperneta. E junta-se-lhesum doudo.

    - Nem podemos parar para verter guas... caramba! Dizia a moa quase adesfalecer, dando sinais de poder claudicar de repente.

    - No! S paramos quando tiver debaixo da muleta terra de Castela. Fomos exilados,no quero ter mais a ver com essa gente; tudo por causa da esperteza saloia do lunetas.

    Respondeu solcito o perneta, que surpreendia com a diligncia no calcorrear dosmontes e vales. Comandava a caminhada com determinao.

    - Onde que perdeste a perna, atleta?Perguntei para desanuviar a tenso e um contencioso corrosivo, mas discreto, que se

    insinuava entre ele e a rapariga.

    - Foi negligncia.- De algum mdico... com vocao para alveitar... ou para presidir ao projecto vida...- No, foi minha.- Como?- No estudava. Depois tive um projecto, com financiamento a fundo perdido. Em mar

    de percas, perdi o fundo, mais umas casitas e terras que me deixaram os velhos. Perdi a mulher,que lhe subiu tanto dinheiro cabea e meteu-se em aventuras com um safado arquitecto. Notinha remdio seno perder uma perna, uma vista, uma mo, ou os trs como essa lambisgoia. Osujeito que me ensinou isto ia chegando a comissrio... l para Genebra.

    Mas diz l, meu cego de almanaque, onde arranjaste tu as lunetas.Como no aprecio disputas e sou avesso a dizer mal, s por dizer, respondi para

    dissuadir:- No queria ver.

    Quando demos conta, tnhamos entrado por Castela adentro como por terra de mouros.Admirmo-nos de que os odores fossem os mesmos, a alho, a cebola e a vinho carrasco maltraado, os burros continuassem a zurrar malancolicamente abandonados no meio de um

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    batatal, de um vinhedo ou de uma horta, as noras a gemer sob a fora de um bruto qualquer;mas nas esquinas tambm j no havia ningum a pedir nem lamuriar.

    - s tantas, a Europa toda assim; quero dizer, a CEE, at cortina de ferro.Exclamou timidamente, mas com ar judicioso a varina, que descalara os sapatos e

    arregaara a saia para se desenvencilhar.- Isso j no existe, labrega. Agora tudo igual, at muralha da China. S que estes

    sujeitos ganham trs vezes o que ganha um comissrio da polcia na espelunca que deixmospara trs. Vais aprender o que ganhar dinheiro...

    Dizia o perneta imitando o tom professoral do Barca, mirando-a com ar gluto eavaliando-lhe os atributos, como quem faz um vaticnio.

    - V l. no te saiam as contas furadas, minha cegonha expatriada.A canela sau direita muleta e ele cau, rasteirado e desamparado, de traseiro no

    lajeado da calada.- Era preciso isso? S estava a fazer chalaa. Gemeu o coxo, esbugalhado e

    surpreendido com a temeridade da mulher, a refazer-se do susto e ponderar a desvantagem.Ajudei-o a erguer-se, mas repeliu-me rebuado e sacudiu-se com desempeno.

    - L porque fui expatriada com um cego e com um coxo, no penses que preciso daronda para me guardar os costados.

    Comeava a ficar desolado. A coisa ia de m catadura e de feio que voltarmos a serpresos e talvez at expatriados. No ano segundo da era da paz, todos os sujeitos e naes a

    fazerem acordos e pactos, os genros com as sogras, os americanos com os russos, asmultinacionais com os mercieiros e taverneiros, os bancos com os agiotas e penhoristas, oscristos com os mouros e todos com os judeus; s os estropiados continuavam paulada, afazerem figas, partidas e injrias uns aos outros. Estvamos definitivamente fora de contexto; eera preciso empreender o que quer que fosse para inovar o sistema e o modo de vida desta genteao desvario.

    A conjuntura at andava prpria ao sucesso; era urgente aproveitar a onda. Foi entoque apareceu mesmo junto ao nosso bando, sentado num marco quilomtrico a assobiar, com ocabelo muito bem cortado e a barba bem feita, botinha texana de ponta afiada e protectores eum fular de seda estampada a esconder os piolhos do pescoo, um jovem descontrado quemascava pastilha elstica e meneava a cabea como se trauteasse uma cantiga.

    - Estava vossa espera. A praa de touros ali, os Pink vo ser o mximo, logo noite,acol. Hamburgueres ali direita; barbeiro, casino...

    Ia apontando no horizonte longnquo e deserto, como se fizesse a topografia de umagrande metrpole, que ningum mais enxergava. Falava de modo afectado, com um sotaqueafrancesado.

    - Ouve l, papalvo, e quem s tu?Atirou-lhe logo a cachopa.- Ora, sou doudo. Operador turstico e da bolsa, de seguros, promotor de concertos;

    fao projectos para investimentos em programas culturais e desportivos e de ocupao dostempos livres das vivas.

    - Ah! Exclamou ela de olhos abertos e espantadios.Tem um ar conciliador, manias bastante sociveis e tiques que no ho-de incomodar

    muito, pensei eu. Bem vindo...O perneta que arranjou logo desaguisado:- E estavas nossa espera, porqu? Entre tolos e aleijados j somos trs, no vs?- Olha... querem l ver? Que mosca lhe mordeu? Eu s queria ir atrs. E ningum me

    dissuade.Fez um ar amuado mas determinado e virou-lhe as costas. A rapariga tomou-o pelo

    brao e declarou como quem no admite rplicas:- Vamos pelos touros.- J tenho bilhetes; trs. O coxo entra de muleta, com a capa do cego.E a muleta despediu-lhe uma paulada a varar as pernas pelos tornozelos, que havia de

    deitar abaixo mesmo um boi. Afinal ramos sete estropiados, disse para mim, um cego, umperneta, uma cachopa perdida e quatro doudos. Fiz uma arenga, moralista, a apelar concrdia e ao bom trato, cantei uma lenga-lenga qualquer e disse uma adivinha; o doudo foi oque mais ovacionou.

    - Esto a precisar de um esprito positivo.Disse ele, com o mesmo ar estulto com que dissera que nos esperava. Passou a

    expressar-se em mmica, com gestos automatizados mas muito expressivos e a organizar o sarau

    taurino. Que via-se logo que haveria de ser metafrico, com figuras e cenas muito difceis dedecifrar, mas muito ordenado.

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    Continua.

    Nota: No continuou, poque o editor perdeu o rasto ao autor.

    CARTILHA MATERNAL,Instruo Breve e Obrigatria,

    mtodo seguro para os doudos apenderem a ler e a escrever.Dedicada ao Professor Doutor M. F. P.

    Prlogo Breve, e dedicatria.

    SENHOR PROFESSOR,apresento pois a Vossa Senhoria, para que pondere e julgue, este Mtodo Seguro Para EnsinarOs Doudos A Lerem E A Escreverem. No quero com ele suprir as faltas daqueles que mandaensinar na magistral instituio a cujos desgnios preside; nem substituir o ilustre magistrio deVossa Senhoria.

    Mas se a Vossa Senhoria foi dada a subtil astcia de saber dar a cada um a sabedoriaque lhe convm, eu acho que foi mais habilitado para ensinar os meninos, que tm o ouvidomais malevel para a msica e o corpo mais vioso para a ginstica. E como os doudos chegamaos bancos da escola em idade mais madura, necessrio prov-los de um mtodo mais eficaz,para reger os tis, os travesses, os circunflexos e os hfenes. Sem perderem muito tempo com asmetforas e outros ramalhetes da retrica. Porque de uma espcie de antropofagodoudagogiaque se trata.

    E porque para ensinar um perneta a correr preciso primeiro, pelo menos, prov-lo de

    uma prtese; no mnimo de uma muleta.Hoje, como sempre, a Vossa Senhoria dedicado,

    DAMIO.

    Captulo primeiro; sobre a origem da lngua, das palavras e das letras e algumas consideraes

    sobre a doudice; a didctica aplicada s letras e aos doudos.

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    A primeira coisa que se deve saber, para se poder escrever e ler como convm, deonde vm as letras, as palavras e a lngua. E coisa muito rdua.

    Pensar-se-ia ento que aos doudos se deve dispensar de exrccio to violento, como ode saber se tal vocbulo, tal signo, tal inflexo ou mesmo uma linguagem inteira vem do Latimou do Grego, do Semtico ou do Camtico, do Rnico, do Snico, Nipnico, ndico, ou do Ibrico;ou se Arbigo.

    Mas devo advertir que a doudice a habilitao conveniente decifrao destesmistrios das cincias filolgicas, pois a prpria origem da doudice obscura e penumbrenta; etodo o doudo conhece, da sua pacincia clnica, cincias muito afins, como a decifrao dossonhos, a criptografologia e outras artes de descodificao das charadas.

    Todo o doudo deve saber ento que a lngua portuguesa uma mistura do latim com ogrego, o semtico numa proporo discreta de bblico e de rabnico e o arbigo em partes iguaise equidistantes; que posteriormente ainda se enriqueceu com algumas entoaes bantus einterjeies bosqumanes, da Indonsia e da Melansia.

    Mas porque nem todos aceitam esta simetria, que h tantas variedades no falar;porque uns esto mais afeioados ao latim, outros ao semtico, outros ao sortilgio gutural emonosslabo do bosqumane e outros ainda ao tom de rabulice do arbigo. Um puxa para ogrego, outro para o cananeu, congresso traz congresso e a lngua portuguesa parece umadoudice, sem rei nem roque.

    Por isso o que conveniente, porque reduz o problema, convir em que todas as

    lnguas derivam do cananeu bblico, tal qual o falava Moiss, que descende em linha directa doBabilnico antes da diferenciao dos falares.

    E h quem diga que a doudice foi criada ento, porque houve alguns em quem a falano se diferenciou e ficaram a falar todas as lnguas ao mesmo tempo, uma slaba em latim eoutra em fencio, uma consoante arbiga e uma vogal helnica. E h investigaes recentes quecomprovam, sem refutao, que existem algumas moedas hispano-romano-pnico-cananeiasque denunciam estas astcias. Um doudo um monumento filolgico.

    por isto que a arte de saber ler e escrever se deve ensinar aos doudos servindo-nos dedois mtodos, convm saber: o primeiro que aos doudos no se deve dizer que h s umamaneira de escrever, mas que h muitas, tantas quantas as diversidades criativas das suasastcias filolgicas. Por exemplo, a palavra portuguesa docncia, vem de dois verbos latinosdocere e ducere e sei l de quantos outros gregos e fencios; por conseguinte pode escrever-seducncia, docncia e ainda, por equidade, doucncia. Mas poder-se-ia dizer que vem, sem

    atalhos, do lxico grego doxa, que quer dizer a opinio do vulgo, quase aquilo a que chamamoshoje doudice. E ento escrever-se-ia, com toda a legitimidade doxncia. Ou estultcia.E o segundo que aos doudos no se deve sobrecarregar com muita gramtica e o que

    interessa que saibam distinguir um sinal de trnsito, ou o emblema de um partido, de umametfora do Vieira e do p de um verso de um vilancete; uma lrica epstola amorosa, de umapetio ou requerimento e todas estas de uma receita de cozinha ou rol de mercearia. Umpoema, do boletim de voto para as eleies autrquicas e a insgnia dos sociais democratas dados comunistas. Porque a que a porca torce o rabo.

    E que saibam falar por sinais e ler no movimento dos lbios, para poderem coloquearcom os moucos, os gagos e os surdos.

    E quanto caligrafia, de que tratarei j no seguinte captulo, tanto faz que escrevam daesquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de cima para baixo ou de baixo paracima, conforme natureza ou ao jeito de cada um; porque contrariar uma inclinao esttica ainda pior do que emendar um feitio fsico, um p torto ou uma corcunda.

    Continua no prximo nmero e segundo captulo.

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    Captulo segundo e trata do estilo no traar das letras e algarismos, do tamanho das maisculase das minsculas; e porque razo a este assunto se no deve chamar caligrfico.

    Chamava-se antigamente arte de traar as letras a caligrafia; e queles que astraavam, calgrafos. E era uma arte muito estimada e ofcios disputados paulada e bofetes.

    Era a arte que primeiro se ensinava aos meninos. Logo que aprendiam a pronunciarmm, comeavam a rabiscar os mm; quando diziam pap ficavam habilitados a usar trsletras, a saber m, p e a. E davam-se umas noes de tis, circunflexos, graves e agudos, assuntosque podiam entrar logo em conjuno com as primeiras cantorias e pifaradas.

    E era porque ento se investia muito na esttica, na harmonia e no aspecto exterior detodas as coisas. Quero dizer que era muito importante para os pais, os avs e os tios, poderem

    apresentar meninos bem adestrados, com um falar harmnico, uma postura elegante edesempoeirada e capazes de oferecer, a qualquer visita eventual, uma flor com um monumentocaligrfico preso por um cordel ou fita de setim. Os meninos e os cachorrinhos de estimaodisputavam a primazia na ribalta permanente que eram os seres, os casamentos, os baptizados,os bailes de apresentao das raparigas casadoiras e as consoadas.

    De resto, a presena de um doudo, de um ceguinho a incomodar com umas rabecadas,ou a adivinhar o que os circunstantes escondiam nos bolsos, de um menino perneta, ou de umco tinhoso, era sempre um ritual indeclinvel de esconjura, que transmitia a todos a serenasensao do privilgio de uma vida ponderada.

    E caligrafia quer dizer isso mesmo, a beleza, a harmonia e os artefcios no exerccio dotraar das letras e at dos algarismos; cujos critrios so sempre subjectivos e dependem dasinclinaes estticas de cada um. Por isso h uma caligrafia gtica, uma maneirista, umabarroca e at uma abstracta e uma rococ.

    A caligrafia um sinal exterior de distino. E de excluso, porque um canhoto, ummaneta ou outro estropiado, no podem nunca rabiscar com o desempeno de um meninoperfeito, bem nutrido e rubicundo. E h ainda os tremulentos, ou porque so dados a pnicos ensias, ou porque sofrem de alguma enfermidade, como seja aquela a que vulgarmente chamama coreia.

    E hoje se pugna por um ensino mais igualitrio, que desvanea as assimetrias mesmoformais entre os cidados e confira a cada um os meios de se integrarem at nos crculos maisproslitos. E j no se v com bons olhos que um cego, um coxo ou um doudo animem umaromaria, um grupo de beberres numa taberna, ou um concurso de meninas no Casino doEstoril.

    E acresce ainda que essa distino que se conferia aos meninos mais favorecidos, querda natureza, quer de seus pais, lhes custava muitas vezes grandes sacrifcios e agonias; euconheo muitos cavalheiros, hoje muito bem colocados e distintos calgrafos, cujas mos ealguns tiques so bem a marca de muitas barbaridades, que se cometiam para lhes endireitar a

    escrita, florear as maisculas, corrigir a postura e endireitar as costas, prov-los enfim de gestoslargos elegantes e ritmados no escrever, que so sempre sintomas de liberalidade, benevolnciae cortesia no pensar e agir.

    Pensar o leitor que deriva do que disse que o vocbulo caligrafia se deveria substituirpor equigrafia, mormente tendo em ateno aos doudos. Tratar-se-ia de os prover de um meiode se equalizarem a todos os outros cidados, inculcando em todos o gosto por uma traa sbriae uniforme dos caracteres, reduzidos sua mais pristina forma e feitio.

    Bem pelo contrrio. E os que assim pensam, ou por no lhes chegar a mais opensamento, ou por desejarem que assim seja, investem de facto numa iluso. Porque no hcomo a uniformidade para exibir as diferenas e pr cruamente a nu as limitaes e o gnio decada um.

    O sistema que decorre geometricamente de tudo o que expus a anarcografia, que querdizer, mais coisa, menos coisa, a escrita sem mestre. E tenha-se em conta que da escrita sem

    mestre no decorre apenas que cada um escreve conforme ao seu feitio, mas tambm conforme disposio do momento.

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    o sistema mais expressivo de escrita e aproxima-se muito da caligrafia abstracta, ougestual, pelo que no propriamente uma novidade, mas uma reincidncia ou redundncia. Sque agora no mais a esttica que, tirana, dita o critrio das traas, mas o corao e a gana.

    Junte-se a isto que este sistema se intromete ainda com a ortografia, de que tratarei noseguinte captulo e nmero e de um relance imagine-se j um gestualismo estrutural, tanto naescrita como nos falares, que a doutrina sobre que incide todo este mtodo.

    Ficam com este sistema os doudos habilitados a escrever como melhor lhes convenha esem que nada os distinga, com a cor e traa que melhor se ajuste s suas manias, tiques oucrenas, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, de baixo para cima ou decima para baixo, com maisculas, com minsculas ou intercaladas e sortidas, pegadas ou soltase ainda umas por cima das outras, circuncntricas ou secantes. E de tal forma que num caracterse possam identificar muitos, por associao ou decomposio, simples ou mltipla, e poraproximao simblica ou metafrica, de forma a suscitar um grande nmero de contextos esentidos e exercitar mltiplas leituras intertextuais.

    E como regras, mais propriamente sugestes, deixo apenas estas, que as maisculastenham o dobro do tamanho das minsculas; e que os p, os q, os d, os b e letras afins desam ousubam abaixo ou acima de todas as outras dois teros da sua medida. Os algarismos terosempre o dobro do padro das letras e barrem-se os zeros para que se distingam, quandoconvier, dos os.

    Continua no prximo captulo e nmero.

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    Captulo terceiro e trata do que se deve observar no escrever das palavras, arte a que os antigoschamavam ortografia.

    Quase tudo o que dissemos no captulo anterior com respeito caligrafia, se deveentender para a ortografia que a escrita conforme s regras, acordos e tratados. E devem-seentender trs espcies de tratados, acordos ou pactos; uma a dos tratados que os gramticos,mormente os morfologistas e fonologistas fazem entre si e so baseados em conhecimentos ededues rigorosas quanto origem e desenvolvimento das palavras e ao seu encanto musical;outra a dos acordos entre naes ou estados, que deixam sempre abandonados e colricos osdialectos das minorias tnicas; outra a dos pactos entre os grupos e bandos com alguma unidadesocial e lingustica, corporaes, irmandades, partidos e at sindicatos. So estes ltimosresponsveis pela maioria das grias e guetos lingusticos, factores de decomposio e corrupodas lnguas e rus de quase todas as espcies de erros.

    Acrescem ainda aqueles a que chamamos pactos silenciosos, tcitos e sem expressoescrita, de natureza regional, de freguesia, de concelho, de regio autnoma, mas muitas vezess de um bairro ou quarteiro.

    E h ainda uma espcie de incidncia do foro do subconsciente colectivo no erro,ocorrncias universais de rdua explicao sem recorrer a estudos profundos desociolingustica, resdios de predisposies tenazes que mergulham nas tnebras dasmentalidades colectivas, conjunturais ou de sistema. o caso que, para exemplo, sem qualquer

    acordo, tratado ou pacto prvio, todos os alunos e professores das nossas escolas nomeiam o quedantes chamvamos, incorrectamente, frequncias ou exames, textes. Ora texte a palavrafrancesa que significa texto em portugus e o que se pretende dizer teste, do verbo testar quesignifica avaliar ou verificar; mas o que curioso e bizarro que o que em portugus se dizteste, escreve-se em francs da mesmssima maneira, test, sem tirar nem pr.

    O que quero concluir que os erros continuam, na sua maior parte, a constituir normasou regras colectivas ou individuais impostas pela moda, pela ignorncia, ou por reincidncia epertincia num esprito conservador ou, simplesmente, contraditrio e quesilento. Ou pordislexia, que no sequer uma doudice ou feitio, nem mania, mas um defeito da vista que noidentifica os caracteres na sua forma, nem na sua ordem.

    J disse atrs que aos doudos se deve ensinar a escrever as palavras com incidncia noscritrios filolgicos e etimolgicos, que so os mais liberais e menos sujeitos a regras, normas eimposies de significado e sentido. Porque a quantidade quase infindvel de timos de que um

    vocbulo pode derivar ou descender, gera igual amplitude de exploraes de sentidos explcitos,implcitos e mesmo obscuros. a razo porque actualmente abundam as concepes cabalsticasda lngua e subliminares de toda a comunicao, cujos padres se aproximam satisfatoriamentedaquilo que, ainda h alguns anos, se designava como loucura.

    Quase poderia dizer que a conjuntura adequada aos doudos aprenderem a ler e aescrever com sucesso, sendo os intrpetres mais habilitados para executarem por feitio, maniaou outra disposio as reformas que os sbios propem para as mentalidades estticas,cientficas ou literrias.

    O meu conceito de anarcografia serve tambm para substituir o de ortografia, comoreferncia a uma escrita gestual, neste caso para contemplar um gestualismo etimolgico efilolgico, que defino como a habilitao para explorar o mximo sentido e significado de cadapalavra e grupo de letras em conjuno com uma conjuntura, ocorrncia ou estado de esprito;e decidir concomitantemente da forma como a representar em caracteres.

    O que fiz at agora, foi apenas laborar na distino entre erro e anarquia, definindo o

    primeiro como uma forma errada de submisso a outras normas, regras ou condutas, no casoditadas pela moda, ignorncia colectiva ou individual, alinhamento sociopoltico ou profissional,cretinice reincidente, ou mesmo inveja ou esprito vingativo ainda que subconsciente. Ou porenfermidade oftlmica.

    E a segunda como o assumir radical da liberdade de expresso e na comunicao e dano aceitao dos convnios que espartilham a lngua e a escrita; nem das formas de distino eexcluso que o proselitismo social, religioso ou cultural quer fazer incidir sobre todos aquelesque investem ou so obrigados a investir na originalidade e na individualidade; e que bloqueiaos potenciais da filologia e da etimologia, como factores de enriquecimento estrutural e contnuoda expressividade das lnguas, ou outras formas de comunicao.

    O sistema que se usar ento para os doudos aprenderem a escrever, seja o da anarquiagrfica ou anarcografia, que tem significado idntico a etimologia ou filologia sem limites nemcontenes de natureza disciplinar ou contratual. Seria o caso para falar de epietimologia.

    Mas no se confira excessivo valor ao que j tratei; porque a escrita apenas uma,entre as mltiplas formas de comunicar e coloquiar. E hoje em dia tornaram-se muito maisprofcuas a linguagem verbal, visual e at por transmisso directa de pensamento, sem qualquer

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    medium ou suporte formal ou material. Portanto, no prximo captulo e nmero, tratarei dafontica e arte de ler e recitar, da mmica gestual e facial, da linguagem visual com introduo semntica dos cones, das escritas hieroglficas e pictogrficas em geral, hipnotismo etransmisso do pensamento, linguagem telefnica e comunicao telegrfica, sistemas lgicos eanalgicos, colquio por satlite e intergaltico. Do cdigo de Morse, de bandeirinhas e de ummtodo seguro para aprender a ler nos movimentos dos lbios.

    Nota: E no se acabou pelo mesmo motivo de que no se concluu a Histria da Vida do GroPescador.

    JUZOE PROGNSTICO

    PARA O ANO DE 1992,DA CRIAO DO MUNDO DE 5954.

    E FOI TIRADO EM ASSEMBLEIA JUDICIRIAde astrlogos, entre um cego, um doudo e um perneta,

    que custaram a encontrar.E presidiu o cego astrlogo DAMIO DAS BRTEAS,promotor dela e o mais graduado nas mentiras.

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    No Deserto do Maranho e numa tempestuosa noite de Novembro, fustigada pelo ventoe pela chuva que mal nos enxergvamos, mas bem aviados de chourios, po e vinho, reunimosem assembleia, para decidir e vaticinar do ano que entra, o Cego Astrlogo Damio dasBrteas, mais um doudo e um perneta cujos nomes ficaro reservadamente secretos, que chegaum para levar pauladas no caso de o juzo no agradar, que se contentar aos gregos, desfeitiaraos troianos.

    E presidiu-lhe o Cego Astrlogo, promotor dela e o mais graduado nas mentiras, donoda casa e j com a pior das famas. Porque em noite to infortunada se no enxergavam asestrelas nem os planetas, se decidiu fazer o prognstico e juzo por clculo mental e matemtico,segundo o mtodo secreto de que usou Gil Eanes na noite maldita em que dobrou o Cabo dasTormentas, para saber se iria frente, ou no; Fernando Pessoa para adivinhar se os alemesganhavam a guerra e o Barca se vencia os romanos na Lusitnia.

    costume disputarem os astrlogos sobre o dia em que entra o ano, porque da entradadecorre o planeta que lhe preside e o senhoreia. Dizem os judeus que entra em Setembro,princpio do equincio estival e os mouros em Maro que abre o invernal; e muitos matemticoscristos em vinte e dois de Dezembro, na entrada do solestcio. Porm o Sbio Rei Dom Afonso

    o dcimo, muito afeioado s memrias dos romanos e das suas artes e cincias, concordou comOvdio e f-lo entrar em Janeiro como relata Arias Montano. E na Hispnia sempre se seguiueste sistema, atestado em astrlogos to prudentes como Christobal de Canete, AffonsoCastanho, Francisco de Guzmn, Martinz da Veiga, o grande Manuel Gomes Galhano deLourosa, Antnio Pequeno, Cosme Francs e Diego Torres de Villarroel. E ainda o ilustreVieira, D. Joo de Castro e o Eduardo Loureno, o Nuno Rogeiro, o Antnio Mega Ferreira e oFranco Nogueira.

    E fica como sugesto, para a respectiva e autorizada comisso parlamentar, que ocalendrio astrolgico da CEE siga este padro, que o mais europeu pois nos veio com osromanos.

    E disputmos a seguir sobre quem abriria o juzo e porque o ano fosse de Mercrio, ocorredor, ficou encarregue o perneta e assente que seria prosopotico e cantado, para ficarmelhor no ouvido dos tolos.

    Cantou assim:- Tem este ano triste fado e por senhor um criado, que Mercrio o corredor a todos

    bajulador. quele que o domar, ele ter por seu senhor e passa a vida na rua, vai pr Sol e vempr Lua, a fazer o seu recado, sempre muito bem mandado. Triste sina, a sina sua e triste anovai entrar com tal criado, senhor.

    um grande alcoviteiro, na rabulice matreiro e no amor um traidor; faz e desfaz onoivado, nisto anda o ano inteiro e quando j est entalado, a noiva d de presente ao que for oseu senhor. Triste ano vem por fado, se no houver quem se assente no trono deste criado.

    Antes fora eu, perneta, o presidente do ano; adivinha l agora, se ficou em verso ouprosa. O doudo que faa a glosa e o cego toque a corneta e baixe o pano; Eu, vou-me embora.

    E apanhou a deixa o doudo.- Triste ano vem, senhor, que no h quem amamente a fome deste menino. E o doudo

    vai depor, sendo doudo tem mais tino:No haver quem se assente no trono do corredor, porque todos a quem mente, todos o

    querem senhor e no fim do seu domnio lhe cantaro em louvor, pois no h como o fascnio queo tolo quer e sente pelo que, sendo criado, o cavalga por senhor. A cada um, o seu fado.

    Vai entrar em casa alheia, de seu pior inimigo e achar a casa cheia e pronta para aconjura; j l dizia um antigo, que conforme conjuntura Mercrio j Lua Cheia e j o Solao postigo. E aos que l encontrar, a todos quer seduzir, a todos quer convidar para a casa emque luzir.

    Seduz a Vnus pr guerra, e Marte para o amor e quando correr a terra de Jpiter seusenhor, com bordo de peregrino e botas de almocreve, fingir ter muito tino a guardar cartasque leve. E tu no vers o perigo de fiar na sua jura.

    A todos vai querer trar, a todos vai querer jurar e todos vo conspirar para ao seutrono subir; mas quando o trono vazio a todos se exibir, um dir que no tem brio para a rei se

    erigir e outro que no conspira. Aquele que d quem tira.

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    E a noiva h-de trair, na hora com seu senhor, a quem dar seus cuidados, pois na horade sair, no porei honra em penhor nem vos dareis por julgados se varo ou mulher. Ou outraespcie qualquer.

    Com duas caras ou trs, que ter cara ter vergonha, andar sempre ao revs daquiloque tu prevs. O seu ceptro traz peonha, v l tu como te ralas, no ano que est pra vir; e euvou fazer as malas, que o cego entra a seguir e ele quem toca o sino. Sou doudo, mas tenhotino.

    E entrou o cego a decifrar.- Ele doudo, mas tem tino, pois no h quem amamente a fome deste menino e no

    vejo quem se assente no trono deste destino.Capricrnio e Aqurio, do guarida ao Presidente, bom ano para o Mrio dizer

    aquilo que sente e se acaso no sentir bem aquilo que disser, que ningum diga que mente, queest s a presidir. E pior fora a mentira, se estivera a governar.

    Quem governa quem nos tira o que nem temos pra dar, entra o ano em casa alheia ej est a conjurar, encontrou a casa cheia, logo se ps a roubar. Os nascidos em Janeiro, at aosfins de Fevereiro, sejam eles pobres ou ricos, no ho-de verter no Terreiro as guas dos seuspenicos.

    Quando andar o corredor, que de trazer recados, por casas de seu senhor, cuidadocom as mulheres e seus negcios de alcova; ouve aqui, conta acol. Tem tino no que disseres,

    nunca lhe entregues mandados: fingindo que s te louva, por-tos- bem enfeitados e nem sequerto dir. Se achas que tens os Peixes por signo ou Sagitrio, cuida-te bem que no deixes a chavedo teu armrio.

    Os de Novembro ou Abril, maior perigo ho-de correr, com cuidados mais de mil. E osdo Touro ho-de saber, que Vnus vulnervel lisonja e mentira e a balana j no tiramedida que seja estvel. Que o Mercrio, em aperto, nunca teve peso certo.

    Em casa do salafrrio, no maior dos abandonos, mora a virgem descuidada. No lhedou grandes abonos, virtude e ao errio, no est l bem guardada. Vai pr Sol e vai pr Luae no guarda a casa sua. Os de Caranguejo e Leo sero os mais visitados, todavia sabero teros devidos cuidados.

    Trazes os bolsos vazios, mas as noites povoadas de sonhos e alvedrios e havertrovoadas, chuvas e muitos frios. Cuida muito bem da vida e melhor dos teus amores, porque ano de SIDA; se tiveres dias piores, no faas grande alarido e mantm a malta unida, mesmo

    nos grandes calores, porque o ano vai comprido.Vinho pouco e mais traado, todavia o que sobrou do ano que foi passado, j houvequem o levou; pagaram-te adiantado. No fiques pra pasmado, vai meu grande patego; vai ecumpre o teu fado.

    E vai dizer que eu sou cego.

    Este fizemos por graa, que sou cego e chocarreiro e o doudo s faz chalaa; o pernetaque matreiro que sabe que convm, ao avisado e prudente, mas alheio ao ministrio, saber oque fumaa e o que h de ter por srio.

    Da couve, do nabo e grelo e todas as mais novidades, da chuva da neve e gelo, da Lua esuas vaidades, das mars que h de haver e especiais conjunes, parece que no dizemos. Mastudo poders ler se estudares as lies da cartilha que escrevemos; com boa filologia e lendotudo s avessas, a criptografologia dar-te- com que conheas tudo aquilo que prevemos.