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1 Projeto “Cinema, negritude e infâncias: ver, experimentar, aprender e reconhecer a cultura africana e afrobrasileira como ensino fundamental” 1 . Rosilene da Conceição Cordeiro 2 PPGCLC/UNAMA Viviane do Socorro da Silva Mota 3 SEMEC-Belém/PA Resumo O trabalho apresenta ações desenvolvidas no projeto artístico-pedagógico, de natureza interdisciplinar, tendo por público-alvo crianças do 3º ano do Ensino Fundamental, envolvendo diálogos entre Arte (cinema, teatro e artes visuais), Literatura e Letramento, em andamento na EMEF Maria Madalena Corrêa Raad, no Distrito de Icoaraci- Belém/Pará, no ano de 2016. Tem por critério primeiro pontuar a diversidade presente no universo amazônico nortista que nos representa desde a nossa origem, surgindo no sentido de fortalecer as identidades presentes nas infâncias da nossa região, infâncias essas frequentadoras de escolas. O enfoque na diversidade sociocultural se dá em face do desconhecimento dessas matrizes étnico-raciais, por grande parte da população negra e afrodescendente, aprofundado por práticas de discriminação e racismo, o que vem criando e acentuando diferenças geradoras de profundas desigualdades sociais não mais admitidas em contexto sociocultural contemporâneo. Vinte e seis crianças em contextos de pobreza e outras inúmeras vulnerabilidades sociais derivadas tem na participação desse projeto a oportunidade de se verem e reconhecerem como crianças de direitos, sujeitos criativos, solidários e colaborativos tendo em vista o reconhecimento de suas matrizes étnicas nele contempladas por meio da arte. E o cinema mediando esse novo olhar sobre si, sobre e com outro. Palavras-chave: Infância afrobrasileira educação escolar - cinema 1 “Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA”. 2 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura. Especialista em estudos contemporâneos do corpo (ICA/UFPA). Professora na SEMEC- Belém/PA. e especialista educacional na SEDUC-PA. Arte educadora e atriz com pesquisa no âmbito de corpo e performances contemporâneas nas religiões de matriz afroindígena na Amazônia. 3 Professora regente de Educação Geral na SEMECBelém/PA, docente da turma de 3º ANO do ensino fundamental na qual se desenvolve o projeto no ano de 2016.

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Projeto “Cinema, negritude e infâncias: ver, experimentar, aprender e reconhecer

a cultura africana e afrobrasileira como ensino fundamental”1.

Rosilene da Conceição Cordeiro 2

PPGCLC/UNAMA

Viviane do Socorro da Silva Mota 3

SEMEC-Belém/PA

Resumo

O trabalho apresenta ações desenvolvidas no projeto artístico-pedagógico, de natureza

interdisciplinar, tendo por público-alvo crianças do 3º ano do Ensino Fundamental,

envolvendo diálogos entre Arte (cinema, teatro e artes visuais), Literatura e

Letramento, em andamento na EMEF Maria Madalena Corrêa Raad, no Distrito de

Icoaraci- Belém/Pará, no ano de 2016. Tem por critério primeiro pontuar a diversidade

presente no universo amazônico nortista que nos representa desde a nossa origem,

surgindo no sentido de fortalecer as identidades presentes nas infâncias da nossa região,

infâncias essas frequentadoras de escolas. O enfoque na diversidade sociocultural se dá

em face do desconhecimento dessas matrizes étnico-raciais, por grande parte da

população negra e afrodescendente, aprofundado por práticas de discriminação e

racismo, o que vem criando e acentuando diferenças geradoras de profundas

desigualdades sociais não mais admitidas em contexto sociocultural contemporâneo.

Vinte e seis crianças em contextos de pobreza e outras inúmeras vulnerabilidades

sociais derivadas tem na participação desse projeto a oportunidade de se verem e

reconhecerem como crianças de direitos, sujeitos criativos, solidários e colaborativos

tendo em vista o reconhecimento de suas matrizes étnicas nele contempladas por meio

da arte. E o cinema mediando esse novo olhar sobre si, sobre e com outro.

Palavras-chave: Infância afrobrasileira – educação escolar - cinema

1 “Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica,

realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA”. 2 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura.

Especialista em estudos contemporâneos do corpo (ICA/UFPA). Professora na SEMEC-

Belém/PA. e especialista educacional na SEDUC-PA. Arte educadora e atriz com pesquisa no

âmbito de corpo e performances contemporâneas nas religiões de matriz afroindígena na

Amazônia.

3 Professora regente de Educação Geral na SEMEC–Belém/PA, docente da turma de 3º ANO do

ensino fundamental na qual se desenvolve o projeto no ano de 2016.

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1. Uma educação singular, para Infâncias plurais: algumas palavras a guisa de

uma abertura não explicativa

Assim como precisamos elevar o termo Amazônia ao plural, dado seu diâmetro

territorial, sua polivalência cultural e o alcance de seus inúmeros rincões ainda não

explorados e catalogados entre sujeitos, espaços e relações díspares; do mesmo modo se

torna totalmente incorreto resumir as infâncias desse país-continente, distintas e

múltiplas, distribuídas nesse imenso território sócio-geográfico, cultural e linguístico ao

termo de unidade. Criança brasileira é uma expressão muito grande ao mesmo tempo

que vaga demais não contemplando nossas infâncias em suas particularidades,

carências, desejos e belezuras.

Alunos do 3º Ano do EF da EMEF Madalena Raad em visitação à exposição Nós

de Aruanda – Artistas de Terreiro 2016. (Fotografia: Rosilene Cordeiro)

Então porque aceitar uma escola para todos que não acolhe a esse “todo” em

suas necessidades e particularidades? Como ser criança singular, com crianças plurais

numa escola com um currículo concentrado na unidade, eucêntrico, fabricante de

infâncias baseado em matrizes distorcidas do seu original? A criança negra e

afrodescendente tem lugar garantido nessa escola “para todos”? Que qualidade é essa a

qual nos referimos e em que proporção ela as atinge?

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De acordo com Lima (2006) o sentimento de infância, a ideia que se tem dela, as

representações de infância, todos esses fenômenos psicossociais surgiram na civilização

muito vagarosamente e ligado a diferentes motivos, em diferentes épocas e contextos

históricos definidos. Essa visão sobre a infância, como um período específico pelo qual

todos passam é uma construção definida na atualidade no entanto a questão de que

todos os indivíduos nascem e serão crianças até um determinado período, independente

da condição vivida, é inegável.

Daí a necessidade de compreendermos esse momento primoroso da existência

humana como algo que precisa ser usufruído da melhor maneira e potencializado para

uma aprendizagem significativa voltada para o reconhecimento de si, do outro, da

valorização da vida, dos valores éticos e morais para as relações afetivas na sua forma

mais humana e colaborativa possível.

Mas como as crianças falam de si? Como se veem?Como sentem e falam do

ambiente onde ? E como vivem esses ambientes? Qual a relação que tem e como

entendem essa relação com os adultos com que se relacionam? Como aprendem? Pelo

que tem interesse? Qual sua visão de escola? O que as crianças têm a nos ensinar? Essas

aão algumas das inúmeras questões que apresentam respostas parciais nos diferentes

tempos, espaços e contextos pesquisados, tendo em vista o universo múltiplo e

surpreendentemente ímpar que cada criança traz consigo à escola.

Um olha sobre essas diferenças é imprescindível em se tratando da educação de

crianças, e passar por cima dessa rica diversidade é algo letal, tanto a imagem pessoal

que essa criança desenvolve sobre si ao longo do seu desenvolvimento, como nega a

pluralidade existente, retendo a possibilidade de enxergar o outro como ele realmente é.

Com base no primeiro caderno de textos, Saberes e fazeres do Programa a Cor

da Cultura4 - Modos de Ver viver , em sociedade implica a necessidade de uma postura

nova em relação às diferenças existentes “Mas e quando as diferenças não são

perceptíveis? [...] o que ocorre quando, em vez de reconhecê-las (e valorizá-las),

4 A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma

parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan - Centro de Informação e Documentação do Artista

Negro, o MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir - Secretaria de políticas de promoção da

igualdade racial. Disponível em www.acordacultura.org.br/

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Contação da história da África contida livro de pano. Galeria Theodoro Braga,

abril 2016. (Fotografia Rosilene cordeiro)

passamos ao largo e assumimos o posicionamento de quem prefere fingir que elas não

existem?”(p.11) e ainda,

Não deixar que as diferenças se revelem é negar uma possibilidade

essencial para a transformação da sociedade, pois a partir dessa

percepção, reformulamos nosso modo de ver as coisas do mundo e,

por consequência, o próprio mundo. (p. 11)

As crianças entendidas por essa diversidade absorvem o mundo, associam

palavras, gestos e comportamentos; ouvem, falam, tocam, interpretam os fatos, as

pessoas e os acontecimentos conforme sua peculiaridade infantil e daí vai aprendendo:

relacionando-se com esses conhecimentos e saberes trocados, apreendidos de tal modo,

assimilados de tal forma por fazerem parte de seu cotidiano imediato, mediado pelas

linguagens e comportamentos dos adultos de sua época. As crianças aprendem pelos

sentidos.

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Ao imaginarmos a criança na Amazônia imediatamente somos levados à

necessidade de entendê-las em relação ao conjunto de fatores que interferem e

interagem em suas aprendizagens ligados ao universo dessas relações que as crianças

mantém entre si, com os adultos que as cercam nesse conglomerado de fenômenos

naturais, emocionais, afetivos, religiosos. Políticos, culturais que ocorrem em suas

práticas sociáveis e educativas, formais e cotidianas.

Nessa visão de uma criança contextualizada, situada numa sociedade, num

espaço e num tempo específico, sem perder de vista a relação com a história geral sobre

o desenvolvimento biocognitivo e sociocultural; dessa infância em relação, em que ela

se situa como sujeito de direitos, temos um universo multifacetado de saberes por

descobrir, de conhecimentos ainda por desvendar, sistematizar teoricamente.

Conceber uma escola de caráter universalista, longe de considerar tais diferenças

socioculturais inviabiliza qualquer projeto voltado à implementação do sentimento de

diversidade que deve animar nossa convivência social. E disto tem se ocupado a

educação brasileira neste último século em que tem procurado conhecer e reconhecer as

faces desses pequenos que formam o corpo discente representante salutar da escola

pública brasileira, sobretudo nessa miscelânea que é a Amazônia. Esse grupo de

crianças da primeira etapa do ensino fundamental brasileiro que precisa ser visto como

realmente se apresentam sem estereótipos degradantes que nada acrescentam aos

princípios de uma educação voltada à cidadania e a inclusão social de todas elas.

Conceitos como beleza, mal, bom, rico, pobre, sujo, bonito, feio são

construídos desde o início do aprendizado escolar, geralmente, de

acordo com os ensinamentos repassados. Nesse aspecto, compete ao

professor compreender o sentido didático da realização de

determinadas atividades educativas envolvendo, em larga escala,

todos os educandos no processo de formação de valores de sua

identidade étnica. (FEITOSA, 2015, p .29)

Qualquer desejo de trabalhar nessa direção precisa contemplar, antes, a

identificação de quem estamos falando e como estamos nos referindo a esses sujeitos

sociais, atores em desenvolvimento

2. Quem são elas, as nossas crianças do 3º Ano da EMEF Madalena Raad,

protagonistas em ação?

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O trabalho aqui exposto privilegiou a socialização das ações deste projeto

artístico-pedagógico, de natureza interdisciplinar, desenvolvido na Escola Municipal de

Ensino Fundamental Maria Madalena Corrêa Raad, tendo por público-alvo crianças do

3º ano do Ensino Fundamental, ao todo 26 crianças, em sua maioria moradoras do

Bairro do Paracuri I e II, uma área periférica do Distrito de Icoaraci, no município de

Belém onde a escola pública municipal está situada há 24 anos.

Envolveu uma metodologia baseada em atividades lúdicas entre projeções de

filmes, rodas de conversa, rodas de leitura, atividades plásticas de desenho, pintura,

recorte, colagem para composição de um portfólio individual por aluno/a ao longo do

projeto. Somamos a essas atividades momentos de sensibilização sonora por meio de

músicas do universo afro e afins, jogos teatrais, exploração do universo sonoro com

objetos cotidianos e instrumentais da cultura africana e afrobrasileira e uma visita

monitorada a uma galeria de arte onde os alunos entraram em contato com as obras de

artistas negros e afrodescendentes, entre eles babalorixás e ialorixás (lideranças

religiosas do Candomblé afetivamente chamados pais e mães, ou zeladores de santo).

Tal circuito artístico foi proporcionado para que as crianças entrassem em

contato com o universo da cultura da África e de suas influências socioculturais na

formação e ainda presentes na tradição da sociedade brasileiras, para então começarem

a construir um olhar sobre tais conteúdos e temas abordados no seu universo particular:

família, escola.

Ao término os alunos serão motivados a escolherem temas trabalhados ao

longo do projeto e, igualmente, partindo de um dos filmes assistidos do acervo

videográfico proposto (também escolhido por eles) produzirmos um reconto de história

que seria organizado na forma de roteiro cinematográfico para ser filmado tendo neles,

as crianças participantes do projeto, o elenco em questão. O filme criado pela turma

depois de filmado deverá ser exibido à comunidade escolar no mês de novembro, por

ocasião da Semana de Consciência Negra (comemoração presente oficialmente no

calendário escolar ). No mesmo momento apresentaremos um varal com fotos e a

exposição dos portfólios individuais para apreciação de todos: comunidade escolar, os

seus familiares e convidados presentes ao evento.

Nosso objetivo com tal trajeto é compreender como a criança se vê dentro

desse contexto, tentando identificar sua experiência anterior ao projeto e se essas

identificações sofreram algum tipo de alteração no decorrer dele. Procurando identificar

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como a arte contribuiu para essas alterações. Tal observação se daria, tanto pela

educadora geral que estaria em contato diário com eles observando as possíveis

modificações no vocabulário, os discursos, as práticas de brincadeiras e convivência

diárias entre elas, como pela arte educadora nas diferentes atividades distribuídas nas

etapas formativas pensadas para esse fim.

A relação interdisciplinar envolveu diálogos entre os campos da Arte (cinema,

teatro e artes visuais), Literatura e Letramento, tendo por critério importante estabelecer

aproximações entre esses campos de conhecimento, compreendendo a arte como

altamente interativa e potencialmente mediadora de múltiplas aprendizagens no âmbito

da educação de crianças numa perspectiva para a diversidade.

Identificar a diversidade presente na vida dessas crianças que vivem na

Amazônia, sendo impactadas por este contexto educativo que nos representa desde a

nossa origem, procurando destacá-lo no sentido de fortalecer as identidades presentes

nas infâncias de nossa região. O enfoque na diversidade cultural se deu em face de

desconhecimento dessas matrizes étnico-raciais, por grande parte da população,

aprofundado por práticas de discriminação e racismo o que vem criando e acentuando

diferenças grotescas, geradoras de desigualdades sociais não mais admitidas em

contexto sociocultural contemporâneo.

Vinte e seis crianças em contextos de pobreza e outras inúmeras

vulnerabilidades sociais derivadas tem, por ocasião da participação nesse projeto, a

oportunidade de se reconhecerem como crianças de direitos, bonitas, inteligentes,

sujeitos criativos, solidários e colaborativos tendo em vista o reconhecimento de sua

matrizes étnicas nele contempladas e valorizadas.

Um momento expressivo por oportunizar a legitimação de ações que visem

atender as orientações didático-pedagógicas contidas na LDB Nº 9394/96, que prevê

um currículo que atenda a variedade cultural brasileira o que valida o surgimento e

consolidação dos dispositivos da Lei Nº 10.639/03, alterada pela Lei nº 11.645/2008 a

qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo

oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira

e indígena”. Orientações legais que precisam ser implementadas e monitoradas para que

sejam garantidas pelas instituições de ensino, o que implica a necessidade de abordar a

temática em questão no ensino de todas as disciplinas do currículo da educação básica

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brasileira, incluindo o ensino fundamental e médio nas escolas públicas e particulares

em todo o território nacional.

3. Conhecer, para reconhecer e reconhecer-se: a África está no meio de nós

Alunos acompanhando o vídeo “Menina do cabelo crespo”. Galeria

Theodoro Braga. Abril 2016 (Fotografia: Rosilene Cordeiro)

Como educadoras de crianças há duas décadas, sempre foi nosso desejo

trabalhar com o ensino da cultura africana e afrobrasileira na escola. Sonho antigo, do

qual derivam alguns tímidos projetos que visam dar visibilidade à Lei 10.639/03 na

educação escolar das crianças com que atuamos no ensino fundamental menor nos

últimos três anos na Secretaria de Educação do Município de Belém.

Uma vez que a secretaria não dispõe, em seu currículo formal de um programa

direcionado, nem de orientações mais sistematizada que viabilizem, via rede

municipal, a implementação e acompanhamento de tais projetos e, por entendermos que

a semana de consciência negra, amplamente comemorada no mês de novembro nas

escolas em todo território nacional, só tem sentido se for resultante de um grandiosos

empreendimento formativo desenvolvido no decorrer de todo ano letivo; desde o ano de

2014, propusemos à EMEF Maria Madalena Corrêa Raad, situada no bairro da Agulha

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em Icoaraci- Belém/PA, o projeto de intervenção artístico-cultural intitulado, naquele

ano, “Mama África, a nossa mãe!” no qual objetivávamos desenvolver ações

pedagógicas em total interação com as temáticas concernentes a apresentação de

atividades que dessem visibilidade a essas práticas orientadas pelos dispositivos legais

em questão5.

Assim, o presente projeto de intervenção “Cinema e negritude na infância: ver,

sentir, experimentar, aprender e viver cultura africana e afrobrasileira na escola com

crianças do 3º Ano do Ensino Fundamental”, nasce e continuidade a esse desejo, com

vistas a oportunizar a legitimação de ações que atendam as orientações didático-

pedagógicas contidas na LDB Nº 9394/96, propondo um currículo atravessado pela

temática afrobrasileira e africana em sete meses de trabalho efetivo ( o trabalho foi

desenvolvido nos meses de abril a novembro de 2016, exceto no mês de julho, as férias

escolares). As ações implementadas buscaram atender a variedade cultural brasileira o

que valida o surgimento e consolidação dos dispositivos legais os quais determinam a

obrigatoriedade da temática “história e cultura afrobrasileira” no currículo oficial da

rede de ensino fundamental e médio, nas escolas públicas e particulares em todo o

território brasileiro6.

E aqui destacamos, que não estamos a falar apenas de obrigatoriedade como um

legado, mas sobretudo da reparação de direitos subtraídos, da dignidade devida às

populações negras e seus descendentes desatendidas em direitos por mais de cinco

séculos. Nos referimos à reparação, compensação esta que deve dar conta que as

crianças tenham acesso, imediato e pleno às histórias dos povos africanos e suas

descendências , total e livre acesso a seus acúmulos culturais. Que tenham a

5 O projeto desenvolvido pela professora Rosilene Cordeiro (regent de uma turma de 5º Ano, no

ano de 2014) foi objeto de estudo de um Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade do

Estado do Pará (UEPA) de autoria de Dayse Michelle Feitosa, que se propôs investigar causas

do preconceito racial em relação à cultura afro, existente na sociedade brasileira desde os

primórdios da colonização. Objetivou explicar de que forma o racismo é abordado nas práticas

educativas de uma turma do 5° ano/9 de uma escola pública à luz da Lei n° 10.639, de 9 de

janeiro de 2003, que tornou obrigatória a inclusão da temática história e cultura afro-brasileira

no currículo oficial da rede de ensino.

6Leia-se mais especificamente na Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, Lei Nº

9394/96, MEC, 1996.

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oportunidade de se enxergarem crianças exatamente como são: negras,

afrodescendentes, afroindígenas, como sujeitos individuais, diferentes uns dos outros,

como crianças de valores, alegres, que vivem a sua vida de forma espontânea e feliz por

serem exatamente como são; e que possuem direitos sociais, garantias legais e devem

ter acessos iguais na forma de viverem, aprenderem, ensinarem, expressarem e

manifestarem a sua infância de acordo com sua cultura, com as expressões e identidades

de sua comunidade, de viverem seus cultos e afetos, de diferentes formas e em

diferentes contextos, sem terem que sofrer por isso; sem que isso represente um

confronto direto com outras formas de vida, sentimentos, pensamentos divergentes ou

práticas destoantes. E que a intolerância nesses casos seja combatida com veemência e

sem tréguas

São bem vindas, nesses casos, todas as condutas e práticas que sinalizem a

existência e a valorização dessa variedade tão benéfica à sociocultural étnica brasileira.

A aceitação e consolidação do diverso, do múltiplo e do plural pelo qual devemos ser

apresentados, identificados e reconhecidos no mundo inteiro, a começar pelas nossas

comunidades imediatas: família, escola, vizinhança...onde quer que estejamos. E sobre

isso a Lei brasileira tratou de demarcar condignamente a escola como agência

fundamental responsável por tal formação de forma sistêmica:

Art. 26-A .Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,

oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e

Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo

incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos

negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da

sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas

social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira

serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial

nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

[...]

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como

‗Dia Nacional da Consciência Negra‘(BRASIL, 2003, Seção 1, p. 1).

Este foi, portanto, um projeto pensado para que os alunos tivessem acesso a

encontros mediados pela arte fílmica em relação com as demais linguagens previstas no

processo, oportunizando e fortalecendo a visibilidade da identificação e do

reconhecimento das crianças participantes do mesmo de forma a valorizá-las, gerando a

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relação de pertencimento necessária para que a interação sociocultural se efetive na

escola de forma igualitária e para todos, indistintamente.

A ideia de trabalhar com filmes que abordassem questões de organização social,

costumes, gêneros, linguagens, expressões artísticas e religiosas, cultura, trabalho,

produção econômica, entre outras, pensados para o atendimento da faixa etária entre 8 e

9 anos, não foi despretenciosa. Esse grupo de crianças foi escolhido por se

concentrarem num momento formativo bastante expressivo e específico de sua

formação escolar, pois além de se encontram numa turma que está no 3º Ano do EF,

finalizante do período de alfabetização, processo de aquisição da linguagem oral e

escrita escolar, ou seja um processo formal, institucionalizado - o processo de

alfabetização previsto pela atual LDB 9394/96 se dá em três anos e, portanto, fechando

o Ciclo I dos ciclos de aprendizagens escolar , na perspectiva como hoje as turmas são

teoricamente pensadas e organizadas segundo as Diretrizes Curriculares do Ensino

Fundamental na SEMEC Belém-PA.

A SEMEC-Belém dispõe de um documento regido para o atendimento das

necessidades específicas dessa etapa de formação e no qual lemos que “a criança e seu

ambiente (ambos estruturalmente organizados) não são nem estáticos, nem imutáveis,

mas estão em permanente transformação, tanto microgeneticamente, quanto

ontogeneticamente”. (SEMEC. DCE Ciclos I e II, 2012)

Desse modo, o desenvolvimento da criança é definido no contexto de suas

relações com o ambiente cultural e fisicamente estruturado em que suas ações sobre o

ambiente são conduzidas pelo outro”. ( DCE Ciclos I e II, Rede Municipal de

Educação de Belém, 2012); e ainda “[...] esta compreensão do Desenvolvimento

Humano enfatiza que a educação se faz na articulação de uma multiplicidade de

processos formadores dentro e fora da escola, internos e externos ao indivíduo, através

dos quais, nós nos constituímos, socializamos, aprendemos; tornamo-nos sociais,

culturais e humanos.” Um projeto que vem ao encontro de contribuir com a formação

integral em Ciclos de Formação sendo esta a orientação dos dispositivos legais que

traçam e delineiam a formação e aplicação dos currículos da educação básica em todo

território nacional. A formação em Ciclos, assim

são pensados como uma forma de organizar os processos educativos,

considerando as temporalidades do Desenvolvimento Humano com

suas especificidades e exigências. Seu eixo estruturante são as idades

da vida, a formação humana em seus tempos-ciclos da infância, da

adolescência, da juventude e da idade adulta. Os Ciclos de Formação

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não podem, portanto, ser visualizados no intuito de acabar com a

retenção, acelerar o fluxo, ou acabar com a defasagem idade-série em

nome do respeito à diversidade de ritmos de aprendizagem, com

processos mais leves de avaliação contínua, ao longo do ciclo”

(adaptado de ARROYO, 1999, p. 10)

E considerando a importância da mediação docente na aquisição do aluno nesta

fase do desenvolvimento de sua intelectualidade, refletimos com Vygotsky (1987)7,

importante estudioso do desenvolvimento intelectual infantil, o qual discorre sobre

diferentes áreas de um campo (zona) que canalizam o desenvolvimento de um

organismo. Para o estudioso, estabelece-se, assim, três tipos de zonas. A zona de

movimento livre (ZML), a zona das ações promovidas (ZAP) e a zona de

desenvolvimento proximal (ZDP). A zona de ação promovida (ZAP) é caracterizada

pela promoção de aquisições de novas habilidades, ou seja, envolve um conjunto de

atividades, objetos ou áreas do ambiente onde as ações da criança são promovidas, e que

os outros devem se envolver, direcionando a criança para aqueles objetos ou atividades

que consideram fundamentais para o seu desenvolvimento. Ela é, assim, uma zona

inclusiva, marcada pelo esforço dirigido das pessoas em torno da criança para orientar

suas ações numa direção.

E como nossa atuação se dá no campo específico dessa zona em que ocorrem os

estímulos à aprendizagens que os alunos vão assimilando no decorrer de seu processo

formativo escolar é que entendemos o papel da arte como fundamental e intransferível,

daí o fato da ludicidade permear todas as ações pretendidas. Portanto

[...] é na escola, mas não só nela, que “se pode ajudar a desconstruir

mentalidades, posturas e comportamentos que atingem a alteridade

com preconceito e discriminação”. Pode-se acrescentar que é na

escola, mas não só nela, que se pode ajudar a formar crianças e jovens

cuja autoestima lhes propicie o respeito por si próprios e pelos outros

com os quais se relacionam, condição necessária para o cumprimento

de seus deveres e para a luta por seus direitos como cidadãos de nosso

país e do mundo contemporâneo. (CURY, 2005, p. 30)

4. Sobre o Cinema e a Educação: crianças, encontros e encantos possíveis e

desejáveis

7 VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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Quando os irmãos Lumière, inventores do cinematógrafo, projetaram “L’Arrivée

d’un Train à La Ciotat” para uma plateia de trinta e três pessoas pasmas, no “Grand

Café”, em Paris (segundo sites de pesquisa, a primeira exibição pública de cinema que

ocorreu em 28 de dezembro de 1895), nem se imaginava que o cinema pudesse, em

pleno século XXI, ter encontrado um tempo promissor de avanço tecnológico e profusa

adesão popular. Provavelmente não tivessem consciência, ainda, de que estavam

criando um meio de expressão tão importante e posteriormente tão bem aceito nas

sociedades contemporâneas. Chegaram a dizer que sua invenção não tinha o menor

futuro como espetáculo, porém, ainda no fim do século XIX, Georges Méliès, um

ilusionista francês, percebeu que ele poderia ser um veículo capaz de tornar real a

imaginação8.

Criar o cinema permitiu vê-lo atravessar diversas transformações técnicas,

estéticas, ideológicas, formais, estilísticas, relacionais e de conteúdo, para citar apenas

algumas das inúmeras mudanças sofridas. A cada uma destas mutações correspondeu

não apenas uma forma de se fazer, como também diferentes formas de se pensar o

cinema, de localizá-lo nos tempos, espaços e diferentes contextos socioculturais no qual

ele se apresenta. Contribuiu, sobretudo, na relação de usos que podemos fazer dele, das

experimentações e apropriações de tal recurso como metodologia didática à disposição

do ensino e a serviço das aprendizagens desejadas nos muitos temas que o circundam.

Mas, por certo, o que é importante refletir aqui é o fato de que ao falarmos a

palavra cinema, podemos estar nos referindo tanto ao filme propriamente dito, quanto a

uma indústria, ou mesmo a um lugar de encontro físico e social. E que ao falarmos de

cinema voltado as infâncias, mais surpresos ficaremos, se considerarmos que nessa fase

de desenvolvimento este opera bastante favorável quanto a interação que promove,

reduzindo barreiras, como valiosa linguagem artística que é e pode vir a ser.

Infelizmente as práticas pedagógicas escolares ainda não identificaram a

potência dessa mídia, no entanto alguns programas e projetos específicos nas áreas de

conhecimento tem lançado mão da extraordinária capacidade do cinema envolver

8 Disponível em http://lounge.obviousmag.org/bibliotela/2014/03/ha-119-anos-os-irmaos-lumiere-

exibiram-o-primeiro-filme-ao-grande-publico-dando-inicio-a-magia-do-ci.html, acessado em 10/10/16

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crianças, adolescentes, jovens e adultos com tanta força ao ponto de gerar uma

interação que pode (e deve) ser revertida em aprendizagens de vida e para a melhoria de

vida de tais populações..

No projeto em questão o cinema aqui é proposto como mediação pedagógica.

Entre ver, comentar, reescrever uma história que se viu ou ouviu em cinema, para a

criança tem um valor indescritível. Posto que este se encontra no campo da visualidade,

das imagens em movimento, a celebração da alegria, do reconhecimento de si nos

personagens e enredos; musicas são incorporadas ao acervo sonoro das crianças, outras

imagens e ramificações surgem dando lugar a uma criatividade pulsante que não ‘pára

quieta’.

5. Ver, ouvir, tocar, sentir e fazer: os caminhos metodológicos do projeto

Todo objetivo pretendido precisa ser comungado com um “jeito de fazer”, a

forma que irá propiciar todo sentido em se tratando do encaminhamento das ações

previstas. Deste modo, procuramos desenvolver atividades simples, curtas, prazerosas e

com alto teor de interatividade possível a fim de envolver os alunos de forma efetiva no

mesmo gerando apropriação e autonomia dos mesmos sem quaisquer constrangimento

( aquele sentimento do “ nosso projeto” , pensado e operado por nós coletivamente).

Sempre depois de uma sessão de filme mensal, seguia-se duas atividades no mesmo dia

e as outras eram distribuídas nas aulas com a professora de educação geral, seguindo o

rol de atividades propostas no projeto.

Tão logo, distribuímos o trabalho que constou, previamente, de seleção dos

livros paradidáticos junto a biblioteca da escola9, uma biblioteca ampliada para outros

tipos de leitura...a leitura de mundo pelo mundo de recursos metodológicos

apresentados procedemos a multiutilização do espaço. Era muito importante ver aquele

espaço de biblioteca virando sala de leitura, roda de música, sala de corpo; um espaço

em movimento comungado. E daí os relatos que seguem vindos pela voz da professora

Viviane Mota, regente da turma, não poderiam ser outros.

9 A presença do espaço biblioteca foi fundamental para o desenvolvimento das sessões fílmicas já que a

escola não dispõe de um espaço mais apropriado. Incluímos as atividades do projeto à programação anual

da biblioteca da escola junto ao SISMUB, tendo na professora responsável pelo turno da manhã, Priscila

de Oliveira Ramos uma parceria especial cuidando para que juntos tivéssemos o êxito desejado.

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E vem do filósofo Rubem Alves, por meio da educadora, o pensamento que

nos ajuda a cavalgar algumas reflexões, todas elas salutares porque nos ajudam a

redefinir ações, rever condutas e buscar com mais clareza a voz de nossos pequenos-

grandes protagonistas:

Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com

partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais

gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música. Aí,

encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe

ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco

linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas

ferramentas para a produção da beleza musical. A experiência da

beleza tem de vir antes. (Rubem Alves.

http://cantandoarte.blogspot.com )

Segundo Feitosa (2015) é interessante destacar a preocupação de haver um dia

especial dedicado à discussão da consciência negra como forma de chamar a atenção à

história e cultura negra, relegadas e discriminadas, muitas e sucessivas vezes, pela própria

escola. No entanto, segundo a autora, deve ser ressaltado como fato lamentável quando um

professor não trabalha a temática, ou, apenas a trabalha por obrigação para preencher o

diário e o tempo, pois, infelizmente, ainda é muito comum atitudes pedagógicas que

abordem as questões raciais apenas nos dias comemorativos, ou quando em sala de aula, há

muitos casos de preconceito de cor entre alunos ( p. 27). Daí a necessidade de apresentar ás

nossas crianças a importância de suas presenças nessa diversidade hoje compreendida como

fundamental ao entendimento do Brasil como um país carregado de belezas étnico-raciais

que precisar ser conhecidas e admiradas sem ressalva, todos os dias, em todos os

territórios..

É exatamente dessa forma que o Projeto Cinema, negritude e infâncias: ver,

experimentar, aprender e reconhecer a cultura africana e afrobrasileira como ensino

fundamental entrou na rotina de minha sala de aula, pois a cada sessão de vídeo, a cada

instrumento ou objeto introduzido nas vivências, via as crianças e a mim mesma

mudando o modo de nos perceber e perceber os outros. Fato esse exemplificado na fala

da aluna Bianca Dalva:

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“Professora, antes eu não gostava do meu cabelo, era feio! Agora eu

sei que é bonito!”

Assim, fica claro que o projeto contribuiu muito com meu trabalho cotidiano de

professora regente na turma de 3º Ano, neste ano de 2016, pois a aceitação dos alunos

de si e dos outros deu um “UP” na sua autoestima, o que consequentemente levou os

alunos a sentirem-se mais confiantes e capazes de aprender. Respeitando as diferenças

dos outros e de si, percebendo a beleza como característica mais profunda e não só algo

superficial. Isso ficou claro na fala da aluna Giselly Leão, ao se expressar com muita

segurança:

“bonito é ser educado, respeitar as pessoas e ter caráter.”

A conclusão a que chego, é que o trabalho pautado no planejamento diário,

aliado ao projeto interdisciplinar tem criado uma atmosfera de grande aprendizado em

via de mão dupla, ou seja, tanto ensino como tenho aprendido muito.

Outro ponto muito significativo e positivo foi a utilização de ambiente

extraclasse, possibilitando ao aluno uma vivência única, em espaços com grande

potencial de aprendizado, onde os alunos puderam ver e sentir nossas manifestações

culturais de uma forma pouco exploradas na escola.

O projeto valoriza de forma simples e bonita nossa cultura afro-brasileira,

oferecendo base ao meu trabalho no trato dos temas relacionados a cultura afro, visto

que a escola, em sua essência, mostra-se recheada de pré-conceitos e pré-modelos

difíceis de ser eliminados, mesmo quando se trata de professores. O trabalho ajudou-me

a conhecer melhor o assunto e sabê-lo tratar de forma mais simplificada e livre das

amarras do preconceito, que infelizmente quer queiramos ou não, acabamos

protagonizando de forma consciente ou não, seja pelo medo ou receio de tratar o

assunto, seja pela falta de conhecimento do mesmo.

Reavivar a linguagem e a História, contra o esquecimento e o

obscurecimento de segmentos sociais desfavorecidos ou minoritários

(como as crianças, por exemplo) implica em que o passado e o

presente sejam considerados numa perspectiva crítica, tendo em vista

reconstruir o futuro. Esta perspectiva se concretiza em práticas que se

comprometem com a transmissão e produção do conhecimento e da

cultura e com a cidadania. (Subsídios para Diretrizes Curriculares Nacionais Específicas da Educação Básica. MEC. 2009, p. 35)

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Sabemos dos desafios que nos cercam, sobretudo por conta dessa sensação de que

ainda estamos no começo de tudo, por conta das resistências pessoais de grupos sociais

discriminatórios, políticas publicas de educação que não foram estabelecidas, nem leis que tem

seu cumprimento efetivado. Mas diante nós compreendemos a oportunidade de desenvolver

esse outro olhar, novas reflexões e posturas ante esse cenário excludente no qual a maioria de

nossas crianças estão submersas, tendo em vista que para usufruirmos de um novo contexto

social mais inclusivo para nossos alunos precisamos, antes, compreender que

Em primeiro lugar, é fundamental formar-se, atualizar-se nos temas e

não partir do pouco que se sabe para ocupar um lugar que nunca

esteve ocupado. Temos a responsabilidade de tratar com muito

profissionalismo esses conteúdos. Devemos estudar, procurar leituras

específicas e, sempre que possível, capacitar-nos em cursos e em

discussões acadêmicas. Nossas precárias condições de trabalho e de

vida não podem justificar uma ausência de esforço nesse sentido-

estamos falando da reescrita de uma história que nos foi negada,

estamos lidando com a base de uma identidade que está para ser

reconstruída. O que está em jogo é mais do que a nossa competência –

é o nosso compromisso. (Projeto a Cor da Cultura. Modos de Ver. v 1.

2006. p. 46-47)

6. O olhar docente sobre a mediação pedagógica: implicações e reflexões

A diferença nos marca desde nossa origem como populações brasileiras: povos

nativos que habitavam o Brasil há milhares de anos foram surpreendidos pela chagada

de brancos europeus que trouxeram na “bagagem” povos negros escravizados, trazidos

com eles como mercadoria barata e meramente produtiva e, tão logo sugada e usurpada,

descartável. Uma diferença étnica expressiva e latente que teria tudo para ser rica e

salutar, não fosse a forma como se deu esse contato triste e vergonhoso que marca

negativamente a nossa cultura ancestre. O fato é que essa história produziu um fosso de

miséria e exclusão em 516 anos de proliferação do ocultamento das reias condições em

que esses entes passados foram massacrados e os danos sociais profundos e irreversíveis

que as populações negras e afrodescendentes herdaram de tal chacina ética, moral e

memória das inúmeras culturas atingidas.

O fato é que, com o passar dos tempos, essa diversidade continua se

apresentando e acentuando muitas vezes de forma desigual, pois ainda há uma

prevalência cultural de predomínio branco que invalida ou inferioriza as demais

manifestações e expressões que não a referendem. E nesse interin as inúmeras

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populações entre indígenas e negras, bem como todos aqueles que deles descendem

galgam um ‘posto’ de segundo plano, postura na maioria das vezes reforçada por uma

literatura que ainda privilegia alguns tipos de saberes e conhecimentos em detrimento de

outros.

Muito ainda há que ser feito na sociedade, e a escola tem um papel marcante

nessa tarefa posto que

A escola precisa se organizar para demonstrar a todos a importância

da pluralidade racial na sociedade. Os educadores devem contemplar a

discussão da diversidade racial da sociedade; discutir os problemas

sociais e as diferentes proporções em que atigem os grupos raciais.

(Elliane Cavalleiro – Projeto A cor da Cultura – Caderno 1)

O trabalho com as crianças nos encoraja a continuar buscando alternativas.

Acompanhá-las na curiosidade, no desejo de conhecer os temas estudados, ao

arregalarem os olhos ao ver uma imagem, ao perceberem um som, ao experimentarem

pela primeira vez um espaço de galeria são indicativos de que estamos ainda

começando. Sabemos que não á uma fórmula, nem uma única forma de atingir essa

desigualdade, mas o conhecimento continua sendo a arma mais poderosa que temos e

com ela devemos nos munir contra as batalhas diárias da ignorância social, da

intolerância, da discriminação, do racismo, das correntes que nos impedem de avançar

como povos livres, criados para a liberdade e para a convivência fraterna, solidária, com

as diferenças.

Um passo decisivo nessa direção foi este trabalho que nos ajuda a identificar os

fatores, criar condições conjuntas de fortalecer a comunidade escolar a se posicionar

diante do quadro de invisibilidade das culturas afrobrasileira e africana na escola,

assumindo o seu compromisso de uma educação pública, ampla, laica, promotora da

dignidade humana e da valorização das populações a margem do currículo escolar.

Porque racismo, discriminação e intolerância étnico-racial tem personagens, endereços,

estão localizadas e nãopodem ter livre acesso ao espaço escolar por ser matéria do dia,

pauta permanente, agenda obrigatória, combatida nos lares, nas igrejas, templos e

terreiros. E não pode ser admitida nem como brincadeira, nem com a invisibilidade com

quem vem sendo tratada por séculos. E para isso a arte está no mundo: para nos ajudar a

rever nossas origens, valorizando-as e aproximando-os uns dos outros com o melhor

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que cada um tem e pode agregar nessa imensa colcha de retalhos que é a sociedade

caminhante.

Livros literários utilizados nas rodas de leitura do projeto

ABOUET, Marguerite. Aya de Yopougon. 2012

BADOE, Adwoa. Histórias de Ananse. Ilustrações Baba Wagué Diakité. - Tradução de

Marcelo Pen. São Paulo: Edições SM, 2006. – (Cantos do mundo)

CUNHA, Carolina. Mestre gato e comadre onça. Uma história de capoeira. Reconto e

ilustração Carolina Cunha. – São Paulo: Edições SM, 2011

ROSA, Sonia. Capoeira. Ilustração Rosinha Campos – 2ª Ed. –Rio de Janeiro: Platas, 2009

__________. Jongo. Ilustração Rosinha Campos – 2ª Ed. –Rio de Janeiro: Platas, 2009

__________. O tabuleiro da baiana. Ilustração Rosinha Campos – 2ª Ed. –Rio de Janeiro:

Platas, 2009

PHILIP, Neil. Volta ao mundo em 52 histórias. Ilustrações: Nilesh Mistry; Trad. Hildegard

Feist. 1998.

L’ HOMME. Erik. Contos de um reino perdido. Ilustrações François Plase. Trad. Maria Luiza

X. de A. Borges. – São Paulo: Edições SM, 2008. – (Cantos do mundo)

MARTINS, Maria Luisa Soriano. Contos árabes para jovens de todos os lugares. Ilustrações

de Marcelo Bicalho. Belo Horizonte, MG: Alis editora/ Algazarra editoprial, 2002.

CONY, Carlos Heitor. As melhores histórias das mil e uma noites. (Textos em português de

Carlos Heitor Cony) – 2. Ed. – Rio de janeiro: Edigraf Ltda. 2012.

NAVARRO, Adriana de Almeida. Valores para crianças através da literatura infantil. Vol 1

e 3.

NIVOLA, Claire A. Plantando as árvores do Quênia: a história de Wangari Maathai. Trad. Isa

Mesquita. – São Paulo: Comboio de Corda, 2010

ZIRALDO. O menino marron. 25ª Ed. – São Paulo: Melhoramentos, 1986

FERREIRA, Felipe. A escola do cachorro sambista. Texto Felipe ferreira; Ilustrações mariana

Massarani. – 1. Ed. – São Paulo: Ática, 2012.

MASSARANI, Mariana. ABC Curumim já sabe ler. (Org.) Bia Hetzel e Silvia Negreiros.2008

__________________. Salão Jaqueline. Textos e ilustrações Mariana Massarani. – Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2009

HETZEL. Beatriz Bozano. Berimbau mandou te chamar. Ilustrações Mariana Massarani. –

Rio de Janeiro: Manati, 2008

HETZEL, Bia. Bagunça no mar. Ilustrações Mariana Massarani. – Rio de janeiro: Manati,

2012

OLE Cuti. A pelada peluda no largo da bola. Ano

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SELLIER, de Marie. A África meu pequeno Chaka. Companhia das Letrinhas, 2006

MARTÉ. Krokô e Galinhola, um conto africano. Maté textos e ilustrações. – São Paulo:

BRINQUE-BOOK, 2008.

DIELTIENS, Kristien. Meu nome é Pomme. Ilustrações Stefanie de Graef. Trad. Cristiano

Zwisele do Amaral. – São Paulo: Edições SM, 2010.

PETTY, Kate. Brincadeiras. Tradução Rodrigo Villela. – São Paulo: Comboio de Corda, 2008

LÓPEZ, Merce. O menino que comia lagartos. Ilustrações da autora; tradução Pádua

Fernandes. – São Paulo: Edições SM, 2011

COELHO, Cristina. Joãozinho e Maria. Adaptação Ronaldo Simões coelho e Cristina

Agostinho; Ilustrações Walter Lara.- Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013

OLIVEIRA, Kissam de. Omo-oba: histórias de princesas. Ilustrado por Josias marinho. –

Belo Horizonte: Mazza edições, 2009

DALY, Niki. O que tem na panela, Jamela?. Ilustrações do autor; tradução Luciano machado.

– São Paulo: Edições SM, 2006

LIMA, Heloísa Pires. Lendas da África Moderna. Ilustrações Denise nascimento. – 1ª Ed –

São Paulo: Elementar, 2010

BARBOSA, Rogério Andrade. Pigmeus, os defensores da floresta. Ilustrações Maurício

negro. – São Paulo. – Farol Literário, 2011

ROBATTO, Sonia. A menina sem jeito. 2011

CUTÍ. A pelada peluda no largo da bola. Ilustrações de Edu Andrade. – São Paulo: Editora

do Brasil, 1988.

Referências fílmicas utilizadas nas sessões de filme no projeto

(Fundação Cultural Palmares. Projeto A Cor da Cultura. Coleção Livros Animados DVDs 1,

2, 3. )

1. Os Ibejis e o Carnaval

2. Adamastor, o pangaré.

3. Obax/ Menino de Argila.

4. Koumba e o tambor diambê

5. Amenina e o tambor

6. A lenda do Saci-pererê em cordel/ Cadarços desamarrados

7. Pode me chamar Nadí.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Sites consultados

http://fundamentoseducacaoinfantil.blogspot.com.br/p/conceito-de-infancia.html

https://cinemahistoriaeducacao.wordpress.com/cinema-e-educacao/sobre-cinema-e-

educacao/linguagem-cinematografica/

http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf

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http://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/para-que-serve-a-linguagemdo-cinema/

Livros

ARROYO, Miguel G. Ciclos de desenvolvimento humano e formação de educadores.

In: Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 20, n. 68, p. 143-162, dez. 1999.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo>. Acesso em 04/11/2009

BELÉM.Pressupostos dos ciclos de formação. In: Diretrizes curriculares do ensino

fundamental Ciclos I e II da rede municipal de educação de Belém (RMEB).

Belém: Secretaria Municipal de Educação, 2012

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Subsídios para

Diretrizes Curriculares Nacionais Específicas da Educação Básica. Brasília: 2009

CAVALLEIRO. Eliane. Valores civilizatórios: dimensões históricas para uma educação

antirracista. In: Orientações e ações para a educação das relações étnicorraciais.

Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade, 2006

CURY, Carlos Roberto J. Políticas inclusivas e compensatórias na Educação Básica.

São Paulo: Cadernos de Pesquisa v. 35, n. 124, p. 11-32, 2005

FEITOSA, Dayse Michelle Pereira. A Lei nº 10.639/2003: o caso de uma turma de

Ensino Fundamental em Belém (PA). Dayse Michelle Pereira Feitosa; orientadora, Ana

D‘Arc Martins de Azevedo. — 2015. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) -

Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação, Departamento

de Filosofia e Ciências Sociais, Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia, Belém,

2015.

Saberes e fazeres, v. 1: Modos de Ver / Coordenação do projeto Ana Paula Brandão. –

Rio de Janeiro: Fundação Roberto marinho, 2006.

_______________, v 3: Modos de Interagir. Coordenação do projeto Ana Paula

Brandão. – Rio de Janeiro: Fundação Roberto marinho, 2006.