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Prólogo da Primeira Parte da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes

Prólogo da Primeira Parte da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes

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Page 1: Prólogo da Primeira Parte da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes

Prólogo da Primeira Parte

da Crónica de D. João I,

de Fernão Lopes

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Prólogo da Primeira Parte1

Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom carrego d’ordenar

estórias, mormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam, e u forom nados

seus antigos avoos, sendo-lhe muito favoravees no recontamento de seus feitos; e

tal favoreza como esta nace de mundanal afeiçom, a qual nom é salvo

conformidade dalgũa cousa ao entendimento do homem. Assi que a terra em que

os homẽes per longo costume e tempo forom criados, geera ũa tal conformidade

antre o seu entendimento e ela, que havendo de julgar algũa sua cousa, assi em

louvor como per contrairo, nunca per eles é dereitamente recontada; porque

louvando-a, dezem sempre mais daquelo que é; e se doutro modo, nom escrevem

suas perdas tam minguadamente como acontecerom.2

1 Fernão Lopes, Crónica de D. João I [apr. crít. de Teresa Amado], Lisboa, Comunicação, 1992, pp. 75-79.2 Se não a louvam, não escrevem toda a extensão das suas falhas.

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Outra cousa geera ainda esta conformidade e natural inclinaçom, segundo

sentença dalgũus, dizendo que o pregoeiro da vida, que é a fame, recebendo

refeiçom pera o corpo, o sangue e spritos gerados de taes viandas tem ũa tal

semelhança3 antre si, que causa esta conformidade. Algũus outros teverom que

esto decia na semente, no tempo da geeraçom; a qual despõe per tal guisa aquelo

que dela é gerado, que lhe fica esta conformidade, tam bem acerca da terra, como

de seus dívidos.

E assi parece que o sentio Tulio, quando veo a dizer: «Nós nom somos nados

a nós mesmos, porque ũa parte de nós tem a terra, e outra os parentes4». E porem

o joizo do homem acerca de tal terra ou pessoas, recontando seus feitos, sempre

çopega.

3 O sangue e o espírito (isto é, a matéria orgânica, corporal, e as faculdades e atividade psíquicas) têm uma tão grande correspondência. «Tem» na 3.ª pes. pl. é frequente em textos da época, sendo portanto homófona e homógrafa da forma da 3.ª pes. sing.4 «… nom somos nados somente pera nós, mas em nossa vida a nossa terra quer que a sirvamos em algũa parte, e parte querem de nós os nossos amigos» (Cícero, Livro dos Ofícios, trad. do inf. D. Pedro, ed. Piel, 1948, p. 18) é uma tradução mais fiel e mais clara. De qualquer modo, no seu contexto original, a frase de Cícero, citada de Platão, refere-se mais ao direito social que a terra e os amigos (e não «os parentes») têm de exigir uma parte de nós mesmos, que à sua possível influência nos nossos juízos, parecendo ser neste sentido, no entanto, que Fernão Lopes a interpreta.

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Esta mundanal afeiçom fez a algũus historiadores, que os feitos de Castela

com os de Portugal escreverom, posto que homeẽs de boa autoridade fossem,

desviar da dereita estrada, e correr per semideiros escusos, por as minguas das

terras de que eram, em certos passos claramente nom serem vistas; e

espicialmente no grande desvairo, que o mui virtuoso Rei da boa memória dom

Joam, cujo regimento e reinado se segue, houve com o nobre e poderoso Rei dom

Joam de Castela, poendo parte de seus boõs feitos fora do lovor que mereciam5, e

ẽadendo em alguũs outros da guisa que nom acontecerom, atrevendo-se a

pubricar esto em vida de taes que lhe forom companheiros, bem sabedores de

todo o contrairo. Nós certamente levando outro modo, posta adeparte toda

afeiçom, que por aazo das ditas razões haver podíamos, nosso desejo foi em esta

obra escrever verdade sem outra mestura, leixando nos boõs aquecimentos todo

fingido louvor, e nuamente mostrar ao poboo quaes quer contrairas cousas da

guisa que aveerom.

5 Não louvando alguns dos seus grandes feitos quanto mereciam.

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E se o Senhor Deos a nós outorgasse o que a alguũs escrevendo nom negou,

convem a saber, em suas obras clara certidom da verdade, sem duvida nom

somente mentir do que sabemos, mas ainda errando, falso nom quiriamos dizer6;

como assi seja que outra cousa nom é errar, salvo cuidar que é verdade aquelo

que é falso. E nós engando per ignorancia7 de velhas scrituras e desvairados

autores, bem podíamos ditando errar; porque screvendo homem do que nom é

certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas

mentira em este volume é muito afastada da nossa vontade. Ó! com quanto

cuidado e diligencia vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguageẽs e

terras; e isso mesmo púbricas escrituras de muitos cartários e outros logares, nas

quaes depois de longas vegilias e grandes trabalhos, mais certidom haver nom

podemos da conteúda8 em esta obra.

6 O nosso desejo era nada dizer de falso, quer por mentira voluntária, quer por ignorância (ou erro involuntário). Fernão Lopes, longe de restringir a sua responsabilidade por qualquer advertência prévia quanto a possíveis erros, reafirma-a, exigindo uma credibilidade absoluta para a totalidade do que escreveu.7 Perseverando no erro por ignorar.8 Não nos foi possível reunir mais provas, maior evidência, do que as que se acham.

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E sendo achado em alguũs livros o contrairo do que ela fala, cuidae que nom

sabedormente, mas errando muito, disserom taes cousas. Se outros per ventuira

em esta cronica buscam fremosura e novidade de palavras, e nom a certidom das

estórias, desprazer-lhe-á de nosso razoado, muito ligeiro a eles d’ouvir, e nom sem

gram trabalho a nós de ordenar.

Mas nós, nom curando de seu juízo, leixados os compostos e afeitados

razoamentos que muito deleitom aqueles que ouvem, ante poemos a simprez

verdade, que a afremosentada falsidade. Nem entendaes que certeficamos cousa,

salvo de muitos aprovada, e per escrituras vestidas de fé9; doutra guisa, ante nos

calariamos, que escrever cousas falsas.

Que logar nos ficaria pera a fremosura e afeitamento das palavras, pois todo

nosso cuidado em isto despeso, nom abasta pera ordenar a nua verdade? Porem

apegando-nos a ela firme, os claros feitos, dignos de grande renembrança, do mui

9 Comprovadas, certificadas.

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famoso Rei dom Joam sendo Meestre, de que guisa matou o Conde Joam

Fernandez, e como o poboo de Lixboa o tomou primeiro por seu regedor e

defensor, e depois outros alguũs do reino, e d’i em deante como reinou e em que

tempo, breve e sãmente contados, poemos em praça na seguinte ordem.