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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na …Contexto da morte na região durante a pré-história recente O espaço que hoje abrange a região de Alvaiázere, durante a

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

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Práticas Funeráriase Atitudes perante a Morte

na Região Centro

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Título: Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro.Da Pré-História ao Presente: Arqueologia, História, Arte e Antropologia

Autor: Vários

Concepção e arranjo da capa: Gonçalo Fernandes

Edição:Junta de Freguesia de Maçãs de Dona MariaAl-Baiäz – Associação de Defesa do Património

Colecção: História & Memória – 5

© para a produçãoHora de Ler, Unipessoal Lda.Urbanização Vale da CabritaRua Dr. Arnaldo Cardoso e Cunha, 37 - r/c Esq.2410-270 LEIRIA - PORTUGALE-mail: [email protected]: 966739440

Revisão e coordenação editorial: Hora de lerMontagem e concepção gráfica: Hora de lerImpressão: PaçoPrint - Artes Gráficas, Lda.

1.ª edição: Junho 2019

Edição 1020/19Depósito Legal:ISBN: 978-989-54385-7-0Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

APOIO:Câmara

Municipalde Alvaiázere

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LEIRIA2019

Comunicações do colóquio realizadoem Maçãs de Dona Maria (Alvaiázere),nos dias 22 e 23 de Setembro de 2018

Práticas Funeráriase Atitudes perante a Morte

na Região Centro

Da Pré-História ao Presente: Arqueologia,História, Arte e Antropologia

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No âmbito mais vasto de um plano de preservação e musealização doCemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria, a Junta de Freguesia, em colabo-ração com a Al-Baiäz – Associação de Defesa do Património, decidiu-se apromover o Colóquio “Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Re-gião Centro, da Pré-História ao Presente: Arqueologia, História, Arte e Antro-pologia”.

Com esta iniciativa, pretendeu-se:

a) Reunir um grupo alargado de investigadores à volta do estudo daspráticas funerárias e das atitudes perante a morte; e

b) Sensibilizar a comunidade local para a importância da preservação doseu património funerário.

A partir deste evento intentar-se-á criar um espaço permanente de abor-dagem desta temática na vila de Maçãs de Dona Maria, realizando colóquiosbienais ou trienais e editando uma publicação periódica que permita divulgaros conhecimentos adquiridos.

Cronologicamente, este primeiro colóquio abrange o vastíssimo períodoque se estende desde as primeiras manifestações funerárias pré-históricasaté aos dias de hoje.

Salvo comunicações acerca de experiências museológicas de cemitéri-os ou sobre turismo funerário, este primeiro colóquio restringiu-se, geografi-camente, à região centro de Portugal, incluindo-se aqui os distritos de Aveiro,Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Leiria, Lisboa, Santarém e Viseu.

Tematicamente, incluem-se neste Colóquio comunicações relativas a di-versos ramos do saber, como a Arqueologia, a História, a História da Arte, aAntropologia e outros afins.

O Presidente da Junta de FreguesiaEduardo Laranjeira Craveiro

Apresentação

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COLÓQUIO

Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centroda Pré-História ao Presente: Arqueologia, História, Arte e Antropologia

Maçãs de Dona Maria (Alvaiázere), 22 e 23 de Setembro de 2018

Organização

a) Coordenação científica:Prof. Doutor Saul António Gomes

b) Coordenação executiva:Junta de Freguesia de Maçãs de Dona Maria

c) Colaboração:Al-Baiaz – Associação de Defesa do Património

d) Apoio:Câmara Municipal de Alvaiázere

e) Comissão Executiva:Eduardo Laranjeira Craveiro (Presidente da Junta)Carlos Laranjeira CraveiroMário Rui Simões Rodrigues

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Programa

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Resumo

Quando falamos de morte, de acordo com a nossa religião e sentimentos,enquadramos os rituais num processo de replicação tradicional dos atos em-preendidos pelos nossos antepassados, passando de geração em geração,as crenças e comportamentos de culto.

Na verdade, a morte sempre foi compreendida como algo absolutamenteinevitável. Essa consciência levou a que na nossa evolução humana, desde oHomem de Neandertal, se tenham começado a cultuar e a desenvolver com-portamentos simbólicos, como os primeiros enterramentos. Estes aparecemassociados com os primeiros atos de oferenda, onde depunham alimentos,objetos e flores junto com o morto e o tapavam cuidadosamente, usando asgrutas ou abrigos como locais preferenciais1.

Estes atos foram-se desenvolvendo e complexificando em diferentes ritu-ais religiosos, culminando no período do Neolítico com a construção das pri-meiras arquiteturas feitas em pedra.

Neste artigo iremos abordar os vestígios arqueológicos que retratam oscomportamentos no que se refere à morte, sobretudo no âmbito do fenómenodo megalitismo, destacando os atos que foram registados entre o Neolítico e aIdade do Bronze, isto é entre o IV.º e o II.º milénio a.C., na região em que seintegra Alvaiázere. Para além dos cultos observados no interior destes monu-mentos, focaremos também, em continuidade do que tradicionalmente se no-

* Instituto Politécnico de Tomar; Centro de Geociências Univ. Coimbra (FCT); LABACPS (IPT);[email protected]À exceção do Mesolítico em que o registo foi diferente aproximando estas práticas às zonas dehabitat.

COMPORTAMENTOS SIMBÓLICOS E DEPOSIÇÕESFUNERÁRIAS NA PRÉ-HISTÓRIA RECENTE,

NA REGIÃO DE ALVAIÁZERE

ALEXANDRA FIGUEIREDO*

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tava, as deposições praticadas no interior das cavidades, focando a únicacavidade conhecida em Alvaiázere: o sítio do Algar da Água.

1. O megalitismo como prática durante a Pré-história

Antes de começarmos a falar nos vestígios observados no concelho deAlvaiázere é importante compreender em que consiste o que a comunidadearqueológica designa de megalitismo. Os seus conceitos englobam caracte-rísticas que os descrevem como monumentos arquitetónicos construídos comgrandes pedras. No entanto, a utilização do termo é uma «convenção dosarqueólogos» (JORGE, 2003, p. 401) e tem abrangido diversas manifestações,constituindo várias faces de uma realidade que passa essencialmente peloato e pelo modo como se encara o espaço (INGOLD, 1993; BRADLEY, 1998;SCARRE, 2002).

À medida que foi usado, foi abarcando todo um conjunto de formas estru-turais com ou sem os grandes monólitos que o caracteriza. Para além disso,os “dólmens”, os “tholoi”, as cistas, os “cairns”, as galerias cobertas, os“hipogeus” ou as grutas naturais, referindo só os mais característicos doscontextos sepulcrais, não devem ter sido as formas estruturais mais comuns(JORGE, 2003, p. 397), mas as mais visíveis ou preservadas. A somar a estasevidências observamos diferentes monumentos com estruturas atípicas e sema presença de grandes monólitos, como é o caso do Monumento de Colos,localizado em Abrantes (GASPAR e BAPTISTA, 2001) ou do o Monumento 5 daJogada (CRUZ, 2004). Também a noção relativa da importância das formaçõesrochosas naturais para as populações pré-históricas tem sido apontada portoda a Europa, verificando-se situações de associação, não havendo distin-ção na perceção entre «o que é natural e o que é cultural» (BRADLEY,1998).

A diversidade arquitetónica megalítica alarga-se ainda às possibilidadesde conjugação estrutural, observando-se monumentos simples, fechados ouabertos; outros com câmara e corredor, como é o caso da Anta I e II de Rego daMurta (Alvaiázere); outros com paredes constituídas por lajes, em associaçãocom telhados de falsa cúpula; monumentos com átrio bem delimitado, como oRego da Murta II (Alvaiázere); alguns apresentam anel periférico, onde desta-camos a Anta I de Val da Laje, Tomar (OOSTERBEEK et al., 1992); outros aindaadossam estruturas perecíveis (postes de madeira ou adobe), como se verifi-ca na Anta I de Rego da Murta.

Coloca-se, também, a questão, cada vez mais pertinente da existênciade outros cultos ou rituais de deposição, visto estes enterramentos (corres-

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pondentes maioritariamente ao apogeu do megalitismo) só se consideraremcomo coletivos pelas sucessivas deposições que neles foram realizadas enão por receberem a totalidade dos elementos que integrava a sociedade. Aseletividade dos indivíduos, seja por questões sociais ou simbólicas, é umacaracterística que parece estar inerente a estes sepulcros desde o início dofenómeno; vejam-se, por exemplo: os monumentos protomegalíticosalentejanos, considerados como sendo as estruturas do advento do megalitismo(SILVA e SOARES, 2000), onde se observam maioritariamente enterramentosindividuais; ou ainda as deposições mais antigas das grutas do Nabão, comose verifica por exemplo na Gruta do Caldeirão (ZILHÃO, 1992), na Gruta da N.ªSr.ª das Lapas (OOSTERBEEK, 1993a) ou na gruta do Cadaval, e que a partir doIV/III.º milénio registam ou cedem lugar a enterramentos coletivos como seobserva na Gruta do Cadaval (idem, 1987), na Gruta dos Ossos (ibidem, 1993b)ou Morgado Superior.

Desta forma, fora deste registo, deve-se ponderar que a grande maioriados indivíduos seria sepultada em estruturas invisíveis, atualmente ainda nãoreconhecidas (JORGE, 2003) e provavelmente sob outro tipo de rituais, tambémeles impercetíveis. Tal pressuposto foi considerado para a Anta II de Rego daMurta, uma vez que, associado aos vestígios artefatuais e osteológicos, ob-servamos a deposição de um sedimento proveniente de outro local, nãoregistado na zona externa ao monumento, que poderá provir do local deenterramento inicial antes da deposição dos vestígios em ossários, no interiordo monumento.

Alguns conjuntos artefatuais de algumas grutas são relativamente seme-lhantes aos exumados em alguns monumentos megalíticos. Tal é visível noscontextos de Torres Novas e Alcanena, caso de Lapa da Galinha, da Grutados Carrascos ou da Necrópole das Lapas (GONÇALVES, 1978) e agora, após oestudo do Complexo Megalítico de Rego da Murta, também nos contextos dascavidades do Nabão, como é o caso do Algar da Água e da Gruta dos Ossos(FIGUEIREDO, 2006; 2010; 2017).

Assim, a partir do V.º milénio a.C., assiste-se a uma verdadeira alteraçãona arquitetura. Aquilo que tinha sido um estilo perecível de construir, em quese integravam elementos naturais que dificilmente se distinguem do resto dapaisagem, dá lugar a elementos monumentais construídos com grandes blo-cos líticos e normalmente localizados em zonas de grande controlo visual,próximos de grandes rios, ou implantados em zonas de seguimento de anti-gas vias (JIMENÉZ, 2000). Este último pressuposto é também defendido pornós, para o Alto Ribatejo (FIGUEIREDO, 2006), sobretudo para um período mais

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-história recente,na região de Alvaiázere

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tardio, visível pela localização das mamoinhas (cistas) que vão desde Martinchela Água das Casas, em Abrantes, percorrendo um antigo caminho, de que seregistaram alguns troços ou ainda da posição estratégica do Complexo Megalíticode Rego da Murta, situado na zona ótima e central de movimentação populacionale de transumância do Alto Nabão (FIGUEIREDO, 2006; 2017).

São, por isso, os primeiros vestígios de uma modificação da paisagem,feita com elementos que ao mesmo tempo são retirados e reintegrados noespaço, tratando-se de um processo de transformação do meio, envolvendoalterações nas práticas rituais e associando estes novos impulsos às antigasações dos seus ancestrais. Estes novos atos representam uma mudança depensamento (HODDER, 1990), que não se encerra somente na religiosidade,mas que transparece nos primeiros sinais de uma comunidade que começa aalterar o seu “entorno”, enchendo-o de novos significados, materializados ematos simbólicos e relativamente duradouros, com vista à obtenção de determi-nados objetivos com implicações concretas no quotidiano destas populações.

2. Contexto da morte na região durante a pré-história recente

O espaço que hoje abrange a região de Alvaiázere, durante a pré-histó-ria recente, entre o IV.º e o II.º milénio a.C., acolhia uma comunidade enraizadaem tradições culturais dos seus antepassados. Deste período, dos diferentessítios que foram reconhecidos e identificados, iremos destacar o sítio de Algarda Água e o Complexo Megalítico de Rego da Murta (figura 1). Nestes doislocais foram reconhecidos vestígios de culto associados à morte.

O Complexo Megalítico de Rego da Murta2 localiza-se na freguesia dePussos São Pedro. Os monumentos que o compõem reconhecem-se essenci-almente na margem direita da ribeira da Murta, sendo que também foramobservados vestígios materiais pré-históricos descontextualizados na mar-gem esquerda, próximo à zona da Farroeira.

Nesta região, ainda que haja referências a outros monumentosmegalíticos, como é o caso da anta I e II de Penedos Altos e Cabreira (FIGUEIREDO,2006, vol. 2, pp. 339-341), não foram confirmados nos diferentes trabalhos deprospeção realizados.

Em redor desta zona observam-se vestígios de ocupação, nomeada-mente de habitats, registando-se em alguns casos fortificações. Destacamos

2 A comunidade local conhece a Anta I e II por Antas do Ramalhal. A denominação correta é Antas deRego da Murta, forma como estão inscritas na Direção Geral do Património Cultural.

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o sítio Castelo da Loureira (FIGUEIREDO et al., 2014a) (figura 1), a cerca de 2kmdo complexo, com presença de uma ocupação que se prolongou até à Idadedo Ferro. Um pouco mais a norte registamos ainda o habitat muralhado deSobral Chão (FIGUEIREDO, 2006, vol. 1), também ele com vestígios pré-históri-cos, bem como o povoado da Serra de Alvaiázere (FÉLIX, 2014) (figura 1). Apoucos metros do habitat da serra encontra-se a cavidade do Algar da Água,na freguesia de Alvaiázere. Trata-se de uma cavidade com vestígios de ocu-pação e culto que se prolongam da Pré-história à Época Medieval. As paredesda cavidade registam ainda pinturas e gravuras de arte rupestre.

2.1. Complexo Megalítico de Rego da Murta: Anta I e II de Rego da Murta

O Complexo Megalítico de Rego da Murta é composto por um conjuntode 14 sítios diversificados, integrando dois dolmens, sete menires e outrosmonumentos atípicos, como o local III, X e XIII, num espaço de quase 1km2

(figura 2). O sítio Covinhas I é uma laje com vestígios de arte rupestre caracte-rística da Idade do Bronze e o sítio da Farroeira é um local já destruído. Todos

Figura 1 – Concelho de Alvaiázere com os sítios arqueológicos mais conhecidos. Da pré-história,destacam-se os sítios do Complexo Megalítico, Castelo da Loureira, Algar da Água e Castro da

serra de Alvaiázere

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-história recente,na região de Alvaiázere

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os atos reconhecidos até ao momento, que apresentam em associação vestí-gios osteológicos, concentram-se na Anta I e II de Rego da Murta, que segui-damente aprofundamos.

A Anta I e II são monumentos dolménicos, isto é, estruturas edificadascom grandes lajes. O topo das lajes seria coberto por uma grande tampa queperfaria o teto e posteriormente revestido por uma mamoa de terra que tapariatodo o monumento. O acesso ao monumento dar-se-ia pela entrada, que po-deria ter uma porta, também feita em laje.

A Anta I apresenta câmara e corredor diferenciado, sendo uma das pare-des do corredor composta por lajes e outra por uma possível reutilização deum menir e um grande buraco de poste, que auxiliaria na sustentação do tetodo corredor (figura 3).

A Anta II é do tipo “allée covert”, com os esteios sobrepostos, havendouma continuidade entre a câmara e o corredor. No exterior, apresenta umcontraforte e estruturas adossadas, nomeadamente um átrio de entrada (figu-ra 4). No interior ostenta um lajeado na base da câmara. Esta construção teráocorrido após uma limpeza do monumento desenvolvida no final do Neolítico,distinguindo dois momentos importantes no tipo de deposição. Ainda que não

Figura 2 – Estruturas identificadas na área que integra o Complexo Megalítico de Rego da Murta

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tenhamos dados que nos confirmem que tipo de ritual seria realizado no perí-odo antes da limpeza do monumento, é percetível que, a determinada altura,os nossos antepassados sentiram necessidade de proceder a remodelações

Figura 3 – Anta I de Rego da Murta. Informação arqueográfica com todas as estruturas reconheci-das e fotografia depois da conservação do monumento

Figura 4 – Anta II de Rego da Murta. Informação arqueográfica com todas as estruturas reconheci-das e fotografia depois da conservação do monumento

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-história recente,na região de Alvaiázere

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no interior do monumento, levando a extrair todas as antigas deposições quetinham sido realizadas na câmara e a construir uma plataforma de lajes nabase da câmara, que posteriormente viria a receber as novas deposições, noCalcolítico.

Estes atos de preservação permitiam a continuação dos cultos e rituaisao longo do tempo, garantindo a sustentação das estruturas durante quasedois mil anos, como é possível observar pelas datações aferidas, associandosempre deposições humanas. Uma destas manutenções foi também reco-nhecida na Anta I de Rego da Murta. Neste caso na parede do corredor dolado esquerdo, onde se verificou na última laje, junto à câmara, uma recons-trução em murete, após a queda desta no Neolítico final – cronologia aferiapela datação registada no nível que ela condenava (tabela 1 – beta 189998)e dos vestígios e deposições observados sobre a mesma (tabela 1 – beta190002), isto é entre 3370-2940 e 3100-2900 a.C. (FIGUEIREDO, 2006, vol. 1).

Analisando os dados seguintes (tabela 1 e quadro 1) que demostram asdatações absolutas observadas nos dois monumentos, verificamos que pode-mos dividir a ocupação em 3 fases distintas, sendo a primeira contemporânea.

Tabela 1 – Datações absolutas das deposições registadas nos monumentos megalíticos de Regoda Murta

Na Anta I de Rego da Murta, devido ao seu estado pouco conservado ecomposição remexida, não foi possível detetar grandes diferenças nos con-textos, distinguindo-se, somente, o contexto crono-cultural, entre o Neolíticofinal/Calcolítico inicial, presente sobretudo na câmara (quadro 1, fase 1a e1b), e a Idade do Bronze inicial, bem evidente no corredor (fase 3).

No que respeita a esta situação, registamos inumações e incenerações,sendo que uma das incenerações foi registada na base da Anta I, por baixo de

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um dos esteios da câmara, bem no centro da área que ocupa o monumento (tabela1 – Beta 190003, 3330-2900 a.C.). Outras são observáveis esporadicamente, sem,contudo, se revelar como um contexto, único e selado, bem evidente.

Na Anta II, durante o Neolítico, com uma datação semelhante ao primeiroperíodo da fase mais antiga da Anta I, registamos a presença de vestígios,mas em que os dados são muito ténues, por, pressupostamente, terem sidolimpos antes das primeiras deposições calcolíticas e construção do lajeadode base da câmara. Após esta fase, durante o Calcolítico inicial/médio, pode-remos considerar um segundo período de ocupação do Complexo, neste caso,deposto em fossas. Conjuntamente com os vestígios osteológicos, terão sidodepositadas terras e materiais provenientes de outros locais (contextos primá-rios), aqui associados às inumações desarticuladas, em deposiçãodescontextualizada. A estes atos também terão sido associados novos bensvotivos ou provenientes das ações de culto empreendidas no ritual, em con-texto primário. A fossa seria depois coroada com os ossos mais longos e eviden-tes, como é o caso das calotes cranianas, bem como com os dos vasos cerâmicosusados durante o ritual, em associação aos materiais transladados. Estes vasosaparecem maioritariamente emborcados, num ritual de condenação.

Quadro 1 – Divisão Cronológica ocupacional da Anta I e II de Rego da Murta numa macro-escala

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-história recente,na região de Alvaiázere

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Estas estruturas, abertas no sedimento reutilizado de outras deposições,acabariam por criar aglomerados de atos ritualísticos. Nesta altura, as primei-ras lajes de teto, que poderiam servir como tampa do monumento, teriam sido,inutilizadas, adossando-se, sucessivamente, deposições em fossa, atravésda escavação das anteriores e novas deposições, com novas condenaçõespétreas. Esta organização não é observada na Anta I de Rego da Murta, ondevamos encontrar, na fase seguinte, inumações (quadro 1, fase 3) que acredi-tamos também serem em deposição secundária, mas sem apresentarem con-denação ou ordenação aparente. Neste monumento, consideramos que a tam-pa ainda existiria, não tendo sofrido deposições de topo, como na Anta II, con-centrando uma grande quantidade de vestígios entre o corredor e a câmara.

Associados aos vestígios osteológicos, foram depositados diversosartefactos, fauna e flora. Entre os animais depositados, registamos, em asso-ciação com os períodos mais antigos, animais essencialmente de caça, tendosido introduzidos animais domésticos, com grande expressão nas fossas doCalcolítico, nomeadamente os ovicaprinos, suínos e bovinos. A Anta I apre-senta, ainda, a deposição de vestígios de osso de cão.

Os artefactos observados na Anta I e II revelam uma grande diversida-de morfotecnológica, verificando-se, no caso das cerâmicas, algumas de-coradas com incisões e impressões características dos contextosmegalíticos. Alguns dos fragmentos apresentam vestígios de adição de so-luções aquosas avermelhadas ou alaranjadas. Ao contrário da Anta II, aAnta I registou um número bastante elevado de lascas, lâminas e lamelas esomente trinta e três pontas de seta, que atingiu, nesta tipologia de materi-ais as quase duas centenas na Anta II. Na Anta I, a maioria dos elementosem sílex, à exceção das pontas de seta, foi construída em chert, de possívelproveniência do Norte, da serra de Sicó, que também é minoritário em qua-se todos os contextos da Anta II, onde o sílex é aparentemente de qualidademais apurada, possivelmente proveniente do sul, da zona de Rio Maior.Também o número de artefactos polidos é relativamente reduzido, se com-parando com os quarenta e seis elementos observados na Anta II. Dosobjetos de adorno, simbólicos ou em osso, destacamos, na Anta I, a presen-ça de dois pendentes, quarenta contas de colar, três dentes de javali perfu-rados e um botão, em osso, com perfuração em V, típico dos contextos docampaniforme. Esta situação contrasta claramente com o número de contasde colar recuperadas na Anta II, atingindo um valor superior a duzentas ecinquenta. Da Anta II exumaram-se ainda três botões em laço e diversasalabardas, registo este inexistente na Anta I.

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Em termos gerais, quer na Anta I, quer na Anta II, os vestígios osteológicosapresentam um número mínimo muito semelhante, rondando a meia centena.

2.2. O Algar da Água

O Algar da Água situa-se na vertente noroeste da serra de Alvaiázere. Acavidade tem cerca de 130 m2, cujo comprimento em sua maior extensão temcerca de 20m e de largura 10m. A entrada é feita por uma pequena vertente,aberta à superfície do solo, com quase 5m de altura, ficando ao mesmo níveldo teto e da zona que possui o orifício que a ilumina naturalmente (figura 5).

Figura 5 – Vista interna da entrada do Algar da Água. Na direção norte, o acesso à sala principal(esquerda) ao corredor norte (direita) e a abertura do teto (topo)

Na primeira visita ao local, foi possível identificar, além de possíveis es-truturas no solo, a presença de pinturas e gravuras rupestres (figura 6), cujatemática se integra no período pré e proto-histórico (IFIGUEIREDO et al., 2014b),

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-história recente,na região de Alvaiázere

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ao lado de uma possível inscrição pré-clássica e diversas gravuras mais re-centes.

Figura 6 – Localização dos painéis de arte rupestre no Algar da Água

O trabalho de escavação revelou a presença de dois períodos de ocupa-ção: um da Época Clássica/Medieval e outro com características Pré/Proto-históricas. A análise diacrónica expôs um conjunto de diversos contextos deocupação, onde se destaca a presença de lareiras da Idade do Ferro e daÉpoca Romana, uma deposição de parte de um Cervus Elaphus e ossoshumanos, datados da Idade do Bronze (tabela 2).

Tabela 2 – Datações absolutas registadas no Algar da Água

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Atendendo à temática a tratar neste artigo, somente é relevante tratarmosdos dados que o registo arqueográfico permite associar à morte, sendo que,no entanto, a informação, para já, é muito parca. Ainda que tenhamos provasde deposições humanas, pela exumação de um pequeno fragmento demandibula (Beta500319-UE6), não identificamos, até ao momento, o local dedeposição. A unidade em que o vestígio foi observado conserva em si a pre-sença de artefactos macrolíticos, a par de fragmentos de lâminas e lamelasem chert e uma variedade cerâmica de formas abertas e superfície alisada.Registamos ainda alguns vasos impressos (Figura 7).

Figura 7 – Artefatos registados na UE6 e 7. Macrolíticos e cerâmica impressa

3. Considerações finais

Olhando para Alvaiázere verificamos que os cultos à morte estão relaci-onados com ocupações em grutas e com a construção e utilização de monu-mentos megalíticos. Na fase em que os mesmos se revelam como contempo-râneos, observamos grandes analogias entre os contextos e rituais do Com-plexo Megalítico de Rego da Murta e os vestígios registados nas cavidades doNabão (considerando também Algar da Água e Ave Casta). Desta forma, apopulação que habitava esta região, ainda que necessariamente com tradi-ções de associação de culto no interior das grutas, como se registam com osdepósitos mais antigos, adotaram a prática megalítica, sem contudo deixaremtotalmente de desenvolver enterramentos nas grutas, como se observam pe-las datações do Algar da Água ou Ave Casta (MATEUS e Queiroz, 1984).

Desta forma, ainda que consideremos que não podemos fasear a pré-históriaem patamares generalizados, uma vez que a dinâmica dos atos e dos comportamen-tos revela, na maior parte das vezes, recuos e avanços nas tendências e modaspraticadas, mas para uma melhor exposição e compreensão dos cultos e rituais nestaregião, apontamos o seguinte possível quadro cultural que descrevemos.

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-história recente,na região de Alvaiázere

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Até sensivelmente 4000 a.C., observamos ocupações visíveis essencial-mente em grutas, com deposições primárias e individuais. Em alguns casos,como na Gruta do Cadaval registam-se datações em que é notória a presençade enterramentos individuais (43354170 e 40453820 cal BC 1s) a par decoletivos (42303800 cal BC 1s) (ALMEIDA et al., 2015).

Próximo deste período, registou-se uma profunda alteração no tipo deritual de deposição, passando-se à prática de deposições coletivas emossários. Tal situação começou por ser observável na prossecução dos atosdentro destes mesmos locais, como foi o caso da Gruta dos Ossos.

Também, por esta altura, se construíram os primeiros monumentosdolménicos. Os usos destas edificações não implicaram o abandono das ca-vidades; antes pelo contrário, em quase todas se vai observar uma continua-ção da ocupação, mais ou menos pontual.

Após este período, observam-se alterações no interior de alguns monu-mentos, como a construção do lajeado para dar lugar a novas deposições,todas elas já sob a forma de ossários, com pretensões de ligação dos espaçosaos antepassados da região, mas sem uma conexão social individual, comopoderia ocorrer nos períodos anteriores. Esta fase é mais visível na Anta II deRego da Murta e nas últimas deposições da Gruta dos Ossos (por volta dos3300 a. C.).

Juntamente com os ossários, na Anta II foram depositados sedimentosexternos (bem visível nas análises sedimentológicas), do seu possível localde deposição primário, bem como alguns materiais provenientes desses mes-mos contextos (observando-se todos muito fraturados). A par com este ritualde transladação, observava-se a deposição de novos bens, como é o caso devasos inteiros, recolhidos do topo destas deposições, normalmente emborca-dos, coroando as fossas. Como ritual de fecho da estrutura, eram colocadaspedras, construindo uma pequena couraça sobre o depósito. Tal situação évisível na Gruta dos Ossos e em várias fossas na Anta II de Rego da Murta.

Já no final do Calcolítico, inícios da Idade do Bronze, isto é, rondando os2000 a.C., as deposições, no Complexo Megalítico de Rego da Murta, passama ter lugar novamente na Anta I de Rego da Murta e deixam de ser praticadasna Anta II. Contudo, estas, ainda que contínua na possível prática de deposi-ções, pela descontextualização e amontoados ósseos observados, não reve-laram as referidas condenações pétreas. Sobre este assunto, é importantenotar que a Anta I, ainda que alguns contextos tenham sido observados in situ,encontrava-se muito remexida pelas constantes violações que a mesma so-freu, sendo estas conclusões meramente aparentes.

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A par destas deposições mantém-se o registo de deposições nas cavida-des, nomeadamente no Algar da Água, prolongando-se até, pelo menos aoBronze médio (AMS – dente humano – 1526-1417 cal BC).

Os vestígios presentes nos dólmens do complexo mostraram ainda umagrande rede de trocas comerciais e contactos com outros grupos, não só pelapresença de matérias-primas alógenas, a exemplo as diferentes matérias-primas de algumas contas de colar e pendentes (THOMAS, 2014), como tam-bém pelo próprio registo de isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr) dos indivíduosenterrados (WATERMAN et al., 2013, pp. 196-197). Estes dados revelam a pre-sença de migrações, numa percentagem bastante significativa, pelo menos20% para a Anta I e 27% para a Anta II, de indivíduos que só terão chegado aAlvaiázere já em fase adulta e ali foram depositados a par dos indivíduoslocais.

Estas constatações, em conjunto com as analogias apontadas, sãoreveladoras de uma paisagem social interconectada, com fortes ligações coma zona da Estremadura (WATERMAN et al., 2013; THOMAS, 2014) e Tejo, e compouca ou ténue diferenciação cultural, pelo menos à escala regional. Comohipótese explicativa, estes indivíduos poderiam crescer noutras paisagens,como na zona do Tejo ou em Ferreira do Zêzere, junto ao rio e depois afluírema esta região, por casamento, trocas sociais, ou outros pactos, integrando-senos grupos aqui residentes e incorporando as suas preocupações, comporta-mentos e praxis, mas também trazendo novidades e influências da sua famíliaoriginal.

Um outro ponto que queremos salientar é que não devemos encararestes sítios como simples locais de culto ou necrópoles. Na realidade estesespaços encontravam-se interconectados com todos os outros lugares, fazen-do parte de um complexo de significados que interfeririam na vivência diáriadestas comunidades. A consideração deste ponto permite compreender, logoà partida, que, acompanhando a mudança arquitetural, registou-se uma mu-dança conceptual na forma como se encara o morto e o espaço que esteocupa e provavelmente do papel que estas práticas vão conter nestas paisa-gens. Os atos que se verificavam nestes monumentos teriam uma grandecarga simbólica, transcendendo o mero espaço arquitetónico, fornecendo sig-nificativas conotações ao espaço envolvente, monumentalizando-o e organi-zando a própria paisagem (INGOLD, 1993; BRADLEY, 1998; SCARRE, 2002).

Estas diferenças da conceção do espaço, acentuada pelo esforço e tipode rituais observados e marcada, em alguns sítios, pela associação de restososteológicos humanos, levam a relacioná-los com uma linguagem que se

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

estabelece a dois níveis: o de coesão «que permite a cada um reconhecer-semembro do grupo e a ele ligado por compromissos permanentes» (SILVA eSOARES, 2000, p. 131) e o de interação, determinando regras e limites com aspopulações com que contactam, marcando a paisagem, estabelecendo laçoscom os antepassados e com o espaço que estes ocupam (BRADLEY, 1998).Surge conjugando diversas influências das sociedades que os adotam, sejamelas materiais, estruturais ou simbólicas. É neste jogo do antigo e do novohabitus, do natural e artificial, da marcação e ocultação, que se vai afirmandoem novas ações sociais, criando os primeiros monumentos de intençãoduradoira a par da continuidade de práticas dentro de cavidades.

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AS INSCRIÇÕES FUNERÁRIAS ROMANASCOMO LUGARES DE MEMÓRIA

ANA PAULA RAMOS FERREIRA*

* Doutora em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Professora .

Em Portugal parece existir uma preponderância do localismo identitário,ou seja, os indivíduos identificam-se com a terra onde moram e, acrescentaria,penso que sem grande risco de engano, onde nasceram. No entanto, o patri-mónio parece, cada vez mais, ser um mero cenário para consumo turístico.Efetivamente, a “patrimonialização” pode ter o efeito inverso do pretendido esignificar a morte de uma identidade, pois os interesses económicos levam aconsiderar o património uma forma de entretenimento para promoção turísti-ca. Como refere A. Desvallées (2003, p. 54), em relação aos museus, «permi-tiu-se que os mercadores entrassem no templo», transformando-os em «su-permercados do objeto patrimonial». Parece que a defesa do património sóexiste em função da sua visibilidade em relação ao exterior; só o turismodignifica o espaço patrimonial. Mas o património, nomeadamente o arqueoló-gico, é renovação da memória nacional; e o desenvolvimento descentralizadode ações de preservação patrimonial permite a multiplicidade de experiênci-as cívicas e culturais.

De acordo com a Convenção para a Protecção do Património Mundial,Cultural e Natural (UNESCO, 1972), as ações de preservação e conservaçãodo património devem ser acompanhadas por programas educativos, de formaa integrá-lo num processo cultural que lhe dê significância para a populaçãolocal. A sociedade em geral remete para o Estado as ações de salvaguarda ede valorização do património, aspeto em que se revela a ausência de sentidocívico do indivíduo, ao não assumir o princípio constitucional que refere que«todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar,defender e valorizar o património» (art.º 78 da Constituição da RepúblicaPortuguesa). O património arqueológico, mais do que qualquer outro, exige asensibilidade, responsabilidade e mobilização da comunidade na sua identi-ficação e proteção. A população deve ser o sujeito da recuperação patrimonial

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e da construção identitária. Para mais, sabendo que o património é muitosensível às ameaças da vida moderna, que tornam inevitável a realização deintervenções profundas na paisagem, afetando com frequência a integridadedo «arquivo da terra» (cf. MARTINS 2012). É por isso que tanto me apraz estainiciativa de um colóquio sobre práticas funerárias e atitudes perante a mortena Região Centro, no âmbito de um plano de preservação e musealização doCemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria.

O património arqueológico, em particular, dá-nos a dimensão tangível dopassado e tem o fascínio de nos sobreviver. Dentro deste património, o epigráficotem potencialidades maiores, porque testemunho da importância da escrita,como registo de memória, para as gentes de outros tempos. A epígrafe funeráriaé o suporte físico da recordação, é um lugar de memória: o suporte da últimahomenagem ao indivíduo. No mundo romano a maior parte dos rituais funeráriosdecorria em espaço próprio: a necrópole. Aí a sepultura convertia-se num espa-ço sagrado e inviolável, onde o epitáfio é o corolário de uma vida.

As epígrafes são mensagens visuais, muitas vezes contidas no próprioambiente urbano contemporâneo, carregadas de informação. Senão vejamosa toponímia, as placas comemorativas, as placas indicativas de «Aqui viveu…».A epígrafe veicula uma mensagem sintética em que «para além do que estáexplícito, interessa muito o que se mantém implícito» (ENCARNAÇÃO, 2003, p.100). Permite, então, fazer a distinção entre a natureza intencional e a nãointencional de uma fonte: o que é que esta fonte nos quer dizer? E o que é queesta fonte nos pode dizer, sem que jamais tenha tido a intenção de fazê-lo? Asinscrições abarcam todos os domínios do social: manifestações religiosas,relações familiares, elites sociais, os grafitos… E não é só o texto, mas a formados monumentos e a sua decoração que podem ser estudados. Pois oepigrafista tem de saber decifrar o texto de uma inscrição, mas também devefazer uma «cuidadosa análise do suporte» e ainda «o estudo de cada palavrae a integração do monumento no contexto espacial e cronológico» em que foipensado (ENCARNAÇÃO, 2011, p 185).

A epígrafe, como todo o património arqueológico, permite-nos chegar aohomem comum, nomeadamente através das inscrições funerárias. Podemos,assim, construir uma imagem do passado dessas comunidades: não o passa-do, mas uma imagem, desmistificando que o arqueólogo trabalha com osmortos, pois são esses materiais que permitem compreender a vida presente.

Por outro lado, leva-nos a olhar para um mundo presente em todos ostempos e espaços, mas que, alguns, procuram repudiar: os cemitérios. Veja-se, aliás, como alguns cemitérios se tornaram atrações turísticas: por exem-

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plo, os mortos ilustres que possui o cemitério do Père-Lachaise, em Paris,como Jim Morrison, faz dele passagem obrigatória a quem visita a capitalfrancesa. Os epitáfios, hoje, como ontem, dão-nos informações preciosas so-bre as atitudes do Homem perante a morte, pois no epitáfio não consta apenasa identificação do defunto, mas também a do(s) dedicante(s) e a mensagemque tornará eterna a sua memória.

É possível igualmente estudar exemplos de aculturação com processossemelhantes aos atuais, por exemplo quando se trata de passar a escrito umnome indígena de que o Romano nunca ouviu falar ou, pelo contrário, umaexpressão latina recentemente aprendida; até porque a adoção de modos devida faz-se mais rapidamente que a correta expressão falada e escrita1.

Assim, o estudo da onomástica permite verificar que, como agora, o nomeromano tem uma regra: atualmente temos o nome próprio e os de família;assim era com os Romanos. Agora, como dantes, a escolha dos nomes própri-os pode ser influência de modas, consoante o estrato social: nomes comoFrancisca ou Jacinta, desprezados há uns anos entre as elites, porque popu-lares, são agora uma escolha “socialmente bem”. Tal como agora se a deter-minadas elites correspondem nomes em que os apelidos se multiplicam, ou-tros se identificam de forma bem mais singela.

O nome romano tem uma regra: geralmente são três. O primeiro, quasesempre em sigla, é o praenomen, com mero valor de sintoma de época; osegundo, o nomen, é o nome de família; e o terceiro é o nome próprio de cadaindivíduo, deveras interessante porque se atribui de acordo com modas, etnia,características físicas ou mentais do indivíduo ou ainda a origem geográfica. Aforma de identificação permite então explicar, ou melhor, detetar a condiçãosocial do indivíduo: por exemplo, um antigo escravo, um indígena ou um cida-dão romano de pleno direito.

Entre os Romanos, tão viva era a certeza da morte como a crença nasobrevivência do Homem na sepultura, daí a presença, geralmente em sigla,da fórmula Sit Tibi Terra Levis («Que a Terra Te Seja Leve»), a lembrar perma-nentemente que o defunto ali está, neste desejo que os vivos lhe vão transmi-tindo. Outras fórmulas comuns, geralmente também em siglas, nos epitáfiosou nas inscrições são: Hic Situs Est («Aqui jaz»), Faciendum Curavit («Man-dou fazer»), De Suo Dono Dedit («Ofereceu a expensas suas») e ainda AnimoLibens Votum Solvit («Cumpriu o Voto de Livre Vontade»).

1 Questão para a qual José d’Encarnação já chamou a atenção várias vezes, devido às variantesgráficas de um antropónimo ou teónimo. Veja-se, a título de exemplo, ENCARNAÇÃO, 2005.

As inscrições funerárias romanas como lugares de memória

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

A própria utilização de siglas e abreviaturas aguça a curiosidade da des-coberta: o seu uso significa que, à época, se conhecia o seu significado. O usodos nexos, também hoje comum, far-se-ia por necessidade de enquadramentodo texto no espaço disponível ou sintoma de moda.

A tipologia do monumento, as suas dimensões e o material de que é feitopermitem inferências económicas e sociais. Por exemplo, entre os monumen-tos funerários, a estela é eminentemente rural e a ara ou a placa são caracte-rísticas de contexto predominantemente urbano. O material do monumentopode também ser alvo de análise: o material usado era geralmente caracterís-tico da região, portanto uma inscrição numa pedra exógena pode significarpoder económico.

A decoração poderá, igualmente, ser objeto de informação: desde a quedá a ideia de permanente decoração floral no monumento funerário à quepode ter simbologia local pré-romana.

Vejamos alguns exemplos concretos, tendo presente que não é meuobjetivo discutir reconstituições e traduções ou inferir da importância dos tex-tos epigráficos na investigação relativa à presença romana no nosso território,mas tão só selecionar um conjunto de epígrafes passíveis de ilustrar as afir-mações anteriores. O campo de possibilidades é vasto, pelo que optei porexemplos acessíveis, que oferecessem vários ângulos de descoberta. Poroutro lado, considerei, essencialmente, inscrições funerárias achadas no ter-ritório atualmente português.

Começo por uma árula de mármore branco (IRCP, n.º 385), provenientede Évora e atualmente no Museu de Évora (cf. Estampa I, 1):

D(is) . M(anibus) . S(acrum) . / IVL(ia) / NORBANA / EMER(itensis) .

AN(norum) / 5 XXXV (triginta quinque) . H(ic) . S(ita) / E(st) S(it) T(ibi) T(erra)L(evis) . FVN/DANVS . VXO(ri) / P(ientissimae vel piissimae) . F(aciendum) .

C(uravit) .ou seja,«Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Júlia Norbana, natural de

Emerita, de 35 anos. Que a terra te seja leve. Fundano mandou fazer (estemonumento) à esposa modelo de piedade».

Sendo uma inscrição funerária, dever-se-ia começar por explicar o senti-do da consagração aos deuses Manes: a entrega do local a estas divindades,que o protegeriam de eventuais profanações. Em termos onomásticos, verifi-ca-se que a identificação feminina à maneira romana não incluía praenomen.De evidenciar também a indicação da origo, que permite discutir movimentospopulacionais e, neste caso concreto, nos diz que «Júlia Norbana» não foi

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sepultada no local de naturalidade2.Por outro lado, a possibilidade de incursão na vida privada: são os paren-

tes próximos, neste caso o marido, que garantem a homenagem à defunta.Homenagem esta que não dispensa o elogio «modelo de piedade» que, sin-cero ou estereotipado, apaziguava o defunto, evitando que este interferisseno mundo dos vivos, dada a crença dos Romanos na vida após a morte. Daítambém o voto, no presente e em sigla, de que a «terra te seja leve»,relembrando a sua presença num diálogo constante com os transeuntes.

A forma do monumento é vestígio da aculturação romana entre os indíge-nas da Península, tal como a sua decoração. A ara ostenta em relevo, do ladoesquerdo, um jarro com pé e, do lado direito, a pátera com umbo saliente: objetosimprescindíveis nas abluções rituais, perpetuando o ato purificativo do defunto.

Se compararmos a inscrição anterior com a seguinte (FERREIRA, 2004, n.º216), proveniente da freguesia de Parada (Almeida, Guarda), as diferençasde estrato e contexto social são facilmente identificáveis (cf. Estampa I, 2):

TALABVS / CAENONI (sic) / F(ilius) . HIC . STIT/VS (sic) . ESTou seja,«Aqui jaz Talabo, filho de Cenão».A identificação com um só nome e filiação, ambos antropónimos indíge-

nas, revela, portanto, tratar-se de um indígena. É, por outro lado, um epitáfiomuito simples gravado sobre uma placa de granito, que revela ainda umaincipiente aculturação, visível na indicação da fórmula «Hic Situs Est» porextenso e na incorreta grafia de «Stitus» em vez de Situs, bem como, provavel-mente, «Caenoni» em vez de Caenonis: eventuais erros de oralidade, repro-duzidos pelo lapicida.

Interessantes são também as inscrições onde as formas de saudaçãooral são utilizadas nos epitáfios, mantendo o diálogo entre mortos e vivos,como o exemplo (FERREIRA, 2004, n.º 58) que se segue, de Idanha-a-Velha (cf.Estampa I, 3):

CEIONIVS RVFINI F(ilius) / AN(norum) XXV (quinque et viginti) H(ic) S(itus). E(st) . S(it) . T(ibi) . T(erra) . L(evis) / TV . QVI . LEGIS . AVE . QVI / PERLEGISTI. VALE

ou seja,«Aqui jaz Ceiónio, filho de Rufino, de 25 anos. Que a terra te seja leve.

Olá, tu que lês! Já leste, passa bem!».

2 Cf. a este propósito, ENCARNAÇÃO, 2004, que trata do caráter excecional que revestia aindicação da origo nos epitáfios ao tempo dos romanos.

As inscrições funerárias romanas como lugares de memória

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

No epitáfio deste indígena consta uma saudação: o defunto, depois desaudar o transeunte, despede-se dos que leram, com nova saudação (Cf.FERREIRA, 1996). Mais uma indicação da crença dos Romanos na vida nasepultura.

Epitáfios há que nos permitem a incursão na intimidade do passado, dosindivíduos que viveram de forma semelhante à nossa. Vejamos o texto deduas árulas funerárias (cf. Estampa II, 4 e II, 5): o de uma escrava (IRCP, n.º42), proveniente da Quinta de Marim (Olhão) e o de uma criança (IRCP, n.º68), proveniente de Lagos.

O primeiro:D(is) (hedera) M(anibus) (hedera) S(acrum) / CALEMERA (hedera) / VIX(it)

(hedera) ANN(is) (hedera) XXVIIII (novem et viginti) / MENS(ibus) (hedera)VIIII (novem) (hedera) D(iebus) (hedera) X (decem) / 5 H(ic) (hedera) S(ita)(hedera) E(st) (hedera) S(it) (hedera) T(ibi) (hedera) T(erra) (hedera) L(evis)(hedera)

ou seja,«Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Calemera. Viveu 29 anos, 9

meses e 10 dias. Que a terra te seja leve».E o segundo:DIS (hedera) MAN(ibus) / LVPA . AN(norum) / II (duorum) . M(ensium) . X

(decem) . D(ierum) . XV (quindecim)ou seja,«Aos deuses Manes. Lupa, de 2 anos, 10 meses e 15 dias».Em ambos, a destacar a ternura e o pesar: a indicação exata da idade da

morte a marcar o tempo exato de convívio até à perda do ente querido. Emambos os casos, a ausência de dedicante: se, no segundo, facilmente seadivinha que seriam os pais, desgostosos de tão precoce perda, no primeiropoder-se-iam discutir várias possibilidades. A identificação com um único nome,o cognomen «Calemera», cuja origem etimológica é grega, denota a condi-ção de escrava da defunta. Quem seria então o dedicante? De certeza alguémcom quem mantinha relação muito próxima, provavelmente amorosa, masque, dada a condição servil, não podia ser legalmente assumida.

Epitáfio simples (cf. Estampa II, 6) é igualmente o de uma placa de grani-to (FERREIRA, 2004 n.º 218) proveniente de Casal-Vasco (Fornos de Algodres):

LOBAENVS . / MANI (filius) . ANNO(rum) / VII (septem) . PATER . F(ilio) .

F(aciendum) C(uravit)ou seja,«Lobeno, de Mano, de 7 anos. O pai mandou fazer».

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Este epitáfio permite abordar questões, já referidas anteriormente, como aorigem indígena do defunto pela identificação apenas com cognome epatronímico, ambos aparentemente de origem indígena, a indicação exata daidade da morte (e não arredondada por lustros, como era comum) a marcar a dorda perda, a presença de fórmula final em sigla e ainda a questão da indicação dafiliação subentendida: como atualmente ainda acontece, em particular no mun-do rural, a identificação do “João da Celeste” é suficiente para se saber de quemse trata, seja a mãe ou a mulher (Cf. ENCARNAÇÃO, 2000, pp. 97-98).

O epitáfio seguinte (FERREIRA, 2004, n.º 84), um bloco de granito achadoem Idanha-a-Velha, poderia ser objeto de estudo para provar a mobilidadesocial no mundo romano (cf. Estampa III, 7):

MARCIA PAVLLINAE LIB(erta) / CELERINA AN(norum) XVI (sedecim) /MARCIA PAVLLINAE LIB(erta) / VERECVNDA AN(norum) XXXII (trigintaduorum) / 5 TANGINA PAVLLI LIB(erta) / H(ic) S(iti) S(unt) S(it) V(obis) T(erra)L(evis)

ou seja,«Aqui jazem Márcia Celerina, liberta de Paulina, de 16 anos; Márcia

Verecunda, liberta de Paulina, de 32 anos. Tangina, liberta de Paulo. Que aterra vos seja leve».

O texto confirma os mecanismos de ascensão social, também na Lusitânia,através da libertação: três mulheres escravas que se tornam livres através damanumissão. Também a possibilidade de abordagem ao papel social desem-penhado pela mulher: aqui Paulina, a patrona com provável relevo social naregião. Tratar-se-ia, com certeza, de Márcia Paulina, uma vez que é esse ogentilício das duas libertas: terão adquirido este nomen da sua patrona. Pos-sível ainda questionar o motivo para um epitáfio comum: O que as uniria paraalém da antiga vida de escravidão? Seriam irmãs? Teriam morrido em cir-cunstâncias semelhantes? E que relação teriam com «Tangina», a prováveldedicante, já que em relação a esta não se indica a idade? A inscrição funerá-ria permite, assim, fazer uma outra inferência à sociedade no tempo dos Ro-manos: conhecer as famílias mais influentes de uma região3.

As inscrições funerárias latinas não são fontes a menosprezar, porqueefetivamente “as pedras falam”. Saibamos nós lê-las!

3 Veja-se o artigo de José d’Encarnação (2003) onde o autor, a partir de um conjunto de epígrafes,apresenta considerações sobre a textura social da Balsa romana ou um outro (2011a) onde o autor,a partir de placas epigrafadas da Igreja da Misericórdia, na Guarda, procura demonstrar como estasconstituem valiosa fonte para o estudo da história local, nomeadamente o papel que os indivíduosnelas mencionados desempenharam, no seu tempo, na cidade.

As inscrições funerárias romanas como lugares de memória

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Bibliografia

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ENCARNAÇÃO, José d’ – Inscrições Romanas do Conventus Pacensis: subsídios parao estudo da romanização, Coimbra, Universidade, Faculdade de Letras, Institutode Arqueologia, 1984. (= IRCP)

ENCARNAÇÃO, José d’ – «A epígrafe latina como elemento didáctico (IX)», in Boletim deEstudos Clássicos, 34 (2000), pp. 97-101.

ENCARNAÇÃO, José d’ – «Quão importantes eram as gentes!...», in Tavira. Território ePoder. Lisboa, Câmara Municipal de Tavira e Museu Nacional de Arqueologia,2003, pp. 95-104.

ENCARNAÇÃO, José d’ – «A epígrafe latina como elemento didáctico (XV)», in Boletimde Estudos Clássicos, 41 (2004), pp. 43-47.

ENCARNAÇÃO, José d’ – «Onomástica, monumento e contexto», in Paleohispanica, 5(2005) (Actas del IX Colóquio sobre Lenguas y Culturas Paleohispánicas [Barce-lona, 20-24 de octubre de 2005]), pp. 767-774.

ENCARNAÇÃO, José d’ – «Etnografia e Epigrafia em Diálogo», in Praça Velha – RevistaCultural da Cidade da Guarda, Ano XIII, n.º 30 (2011), 1ª série, pp. 184-192.

ENCARNAÇÃO, José d’ – «As placas epigrafadas da igreja da Misericórdia, na Guarda»,in Praça Velha. Revista Cultural da Cidade da Guarda, Ano XIII, n.º 29 (2011a), 1.ªsérie, pp. 278-292.

FERREIRA, Ana Paula Ramos – «As saudações do Além entre os Romanos»,Conimbriga, Volume XXXV (1996), pp. 107-127.

FERREIRA, Ana Paula Ramos – Epigrafia funerária romana da Beira Interior: inovaçãoou continuidade?, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2004.

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UNESCO – Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural,1972.

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Anexo – Estampas

Estampa I

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Estampa II

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Estampa III

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POR AQUI ANDARAM/ENTERRARAM MOUROS:AS NECRÓPOLES ISLÂMICAS NA REGIÃO CENTRO

ANA RAQUEL GONZAGA*

* Mestra em Arqueologia

Tendencialmente e equivocamente circunscreve-se o mundo do Al-Andalus à região Sul do território actualmente português. Contudo, caminhan-do um pouco mais para norte, nomeadamente à região Centro, a Arqueologiatem revelado testemunhos dessa mesma cultura que vão para além dos impo-nentes castelos.

Entre fontes documentais, dados toponímicos e escavações arqueológi-cas, identificam-se gestos mortuários muito próprios do mundo funerário islâmicoem pontos ligeiramente mais afastados, incluindo Viseu, Coimbra e Santarém.

A identificação destas materialidades tornou-se possível devido às parti-cularidades e características das práticas funerárias, não tanto estipuladas nolivro sagrado dos muçulmanos – o Alcorão – mas antes codificadas pelo pro-feta Mohammed. Este, enquanto vivo, formulou normas de inumação muitosingulares, que ainda hoje são praticadas pelos fiéis do crescente: enterrar osmortos em decúbito lateral direito1, com o corpo e a face voltados em direcçãoà cidade sagrada de Meca que, no contexto peninsular, esta orientaçãocorresponde a um eixo sudoeste-nordeste (a cabeça era colocada na extremi-dade sudoeste e os pés a nordeste) (fig.1) (LÓPEZ QUIROGA, 2010, p. 282; MAZZOLI-GUINTARD, 1996, p. 66).

1 Para os que não são especializados na área, este termo significa que os defuntos eram enterradosde lado, apoiados sobre o seu braço direito (vide fig.1).

Fig. 1 – Exemplo de umainumação islâmica dentro

dos cânones de enterramentoislâmicos (Matias, 2009a, p. 653)

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Embora estes aspectos sejam os irrefutáveis e inconfundíveis do mun-do funerário islâmico, existem outras directrizes, igualmente determinantes,relacionadas com a igualdade na morte. Por outras palavras, para além daposição final de inumação, os enterramentos muçulmanos caracterizam-sepela ausência de ostentação e aparato nos seus sepulcros. Deveriam, por-tanto, ser colocados no interior de um simples covacho, escavado no solonatural, sem qualquer tipo de estruturação ou monumentalidade, sem cai-xão e sem espólio funerário (LÓPEZ QUIROGA, 2010, pp. 281-283).

Todavia, embora estejamos perante uma admirável ideologia que pre-ga a simplicidade e a paridade até na morte, proclamando a concepção deque nascemos sem nada e nada levamos quando partimos, no âmbito ar-queológico esta situação gera alguns problemas. Infelizmente, a ausênciade evidências materiais, para além do espólio osteológico, impossibilita umdevido enquadramento cronológico de entre os cerca de cinco séculos dedomínio islâmico no nosso território.

Muitas outras normas foram ditadas para aqueles que inumam osseus mortos, desde o tratamento dos corpos dos falecidos, aos procedi-mentos e recitações fúnebres. Contudo, para o registo arqueológico, deentre os demais aspectos, destaca-se igualmente a diferenciação entreo mundo dos vivos e dos mortos; isto é, a implantação das necrópolesem locais iminentemente afastados dos núcleos habitacionais. Emsuma, os vivos não deviam coexistir com os mortos (TORRES BALBÁS,1970, p. 235).

Assim, através destes três grandes critérios – a tão peculiar posição deinumação, a ausência de materialidades sepulcrais, e os locais de excelên-cia para enterrar os mortos – protagonizados na doutrina islâmica, desven-dam-se, paulatinamente, os espaços funerários dentro dos actuais limitesgeográficos de Portugal.

Até à data, foi-me possível compilar – entre referências documentais,orais e necrópoles efectivamente escavadas – noventa evidências funerári-as. Todavia, e infelizmente, os testemunhos, entre o Douro e o Tejo, resu-mem-se apenas a vinte (fig. 2).

Quando exploramos esta região, que, de facto, teve uma ocupaçãoislâmica menos duradoura, os dados tornam-se mais difusos e ambíguos,sendo, por vezes, a sua identificação uma tarefa desafiante. E, para con-tornar esta situação, foi necessário analisar outros elementos para alémdos três critérios citados acima, designadamente aspectos mais discretose subtis.

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Nomeadamente para o distrito de Viseu, as evidências resumem-se a umsimples topónimo designado Almacave, materializado numa das grandes ar-térias da cidade de Lamego, na igreja paroquial, e também numa das suasantigas freguesias. Este topónimo, muito provavelmente, será uma derivaçãodialéctica da palavra árabe al-maqbara (LOPES, 1968, p. 164; MACHADO, 1993,p. 101; PINTO, 2004, pp. 59 e 92) que significa cemitério e, como tal, pode tratar-se de um testemunho indirecto para a necrópole da cidade.

Fig. 2 – Mapa com a implantação de todas as evidências funerárias islâmicas (toponímicas,documentais, orais e arqueológicas) identificadas até à data

Para além desta pequena conjectura, outras surgem quando caminha-mos ligeiramente mais para sul e nos aproximamos da cidade de Coimbra.Aqui, mais uma vez, até à data, não existem referências directas de vestígiosfunerários islâmicos, subsistindo-se apenas uma pressuposição muito hipoté-tica da localização do almocavar da cidade2 e uma singela referência ao sítiode Montes Claros como local de inumação após a Reconquista da cidade erespectivo afastamento desta comunidade extramuros (CORREIA, 1946, p. 374).

Ainda dentro do actual distrito de Coimbra, na antiga cidade deConímbriga, na então designada Madinat Qubdiyaysa durante o domínioislâmico, é o local mais a norte de Portugal onde foram identificados,efectivamente, enterramentos islâmicos. E, embora estes esqueletos tenham

2 Através da conjugação de uma série de dados documentais e topográficos, vide GONZAGA, 2018, pp.23, 126 e 127.

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sido escavados numa época recuada, numa fase muito embrionária da Ar-queologia na qual os seus registos apresentam muitas lacunas, pela típicaposição de inumação, garantidamente oito enterramentos são de índoleislâmica (ALARCÃO e ÉTIENNE, 1977, p. 169).

Fig. 3 – Registo das inumações islâmicas identificadas em Conímbriga(Alarcão e Étienne, 1997, planche XCVI)

Sem mais a acrescentar, infelizmente, assim se sumarizam os testemu-nhos funerários islâmicos entre o Douro e o Mondego. Embora estejamosperante uma ampla região territorial, por entre conjecturas e um único almocavar3

concretamente escavado, reúne-se, até à data, apenas quatro modestas refe-rências sepulcrais.

Nada obstante, comparativamente com esta vasta área do nosso territó-rio, ao avançarmos um pouco mais para sul, observamos que a antiga cidadede Shantarin era composta por um número considerável e excepcional dealmocavares. Curiosamente, aqui foram identificados cinco núcleos funerári-os, de variáveis dimensões e com interessantes particularidades.

Sem querer exceder-me na descrição destas necrópoles (pois por certoestas são detentoras de abundantes dados arqueológicos e antropológicos)

3 Tal como explicado anteriormente, almocavar deriva da palavra árabe al-maqbara, que significa cemitério.

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tentarei, nas linhas que se seguem, sintetizar da melhor forma os aspectosmais fulcrais e singulares destes arqueossítios.

Comecemos pelo almocavar certamente mais antigo de Santarém – anecrópole do Alporão. Implantado na actual Avenida 5 de Outubro, relativa-mente perto da antiga alcáçova da cidade, trata-se de uma necrópole deconsideráveis dimensões. As escavações arqueológicas aqui efectuadas ates-taram uma densa ocupação e utilização deste espaço cemiterial durante vári-os séculos4, no qual os enterramentos islâmicos se sobrepuseram a sepulcrosmais antigos paleocristãos. Aqui se contrastaram os cânones de inumaçãodas duas religiões do livro: a posição em decúbito dorsal e a orientação oeste-este5 para os cristãos; e o decúbito lateral direito e orientação sudoeste-nor-deste para os muçulmanos (fig.5, p. seg.). Embora, sem descurar dacategorização dos contextos funerários, dentro do seio dos enterramentos

Fig. 4 – Localização dos núcleos funerários de Santarém: n.º 1 enterramentos na alcáçova; n.º 2Alporão; n.º 3 R. Capelo e Ivens; n.º 4 Travessa das Capuchas; n.º 5 Largo Cândido dos Reis

(Carta Militar de Portugal, folha 353, ano 1971)

4 Tal como indicado anteriormente, devido à ausência de espólio, dificilmente se podem atribuircronologias. No entanto, através da leitura sequencial da utilização do espaço, sabemos que o Alporãopassou a albergar silos entre os séculos XI-XII e, logicamente, deixou de ser usado como local desepultamento, pelo menos, desde essa centúria.5 Ou seja, os inumados estavam deitados de costas e voltados para nascente.

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islâmicos, identificaram-se pontuais desfasamentos das suas normas deinumação (LIBERATO, 2011, pp. 12-14; LIBERATO, 2012).

Assim como a necrópole do Alporão, o almocavar escavado no actualLargo Cândido dos Reis diferencia-se dos restantes núcleos funerários pelasua extensão. Este espaço cemiterial enquadra-se dentro dos ditamescorânicos – implanta-se extramuros, junto a uma das principais vias de aces-so e próximo de uma das portas da cidade, mas extravia-se apenas numapequena particularidade: dois dos inumados identificados faziam-se acompa-nhar de espólio funerário. Esta favorável casualidade permitiu enquadrar autilização da necrópole pelo menos durante os séculos XI e XII. Também foipossível atestar o término deste local como almocavar islâmico a partir doséculo XIII, uma vez que, a partir dessa centúria, neste espaço passaram-se ainumar cristãos (MATIAS, 2009a, pp. 644-647; MATIAS, 2009b, pp. 671-673).

De forma muito resumida, foram identificados mais três núcleos funerári-os em Santarém de dimensões muito reduzidas: na Rua Capelo e Ivens/Tra-vessa de Froes6, com término anterior ao séc. XIII; na Travessa das Capuchas,onde se recolheu, in situ, no interior de uma sepultura, um botão do século IX/X (BOAVIDA et al., 2013, p. 937); e, alegadamente, dois enterramentos naalcáçova de Santarém (RODRIGUES, 2013, p. 2).

Após a sistematização dos testemunhos funerários da antiga Shantarîn,dentro da região entre o Douro e o Tejo, resta-nos abordar as evidências no

Fig. 5 – Exemplo de um enterramento islâmico que se sobrepõe a uma sepultura paleocristã(Liberato, 2012)

6 Algumas das suas sepulturas foram sujeitas, curiosamente, à acção do fogo. Aos interessados, video relatório de escavação da mesma (LIBERATO e SANTOS, 2017a).

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actual distrito de Lisboa. Aqui, sem grandes surpresas, a identificação dealmocavares multiplica-se substancialmente e, até à data, foi-me possívelinventariar onze testemunhos.

Dentro do seio urbano de Lisboa, existem duas necrópoles de considerá-veis dimensões – a designada Calçadinha do Tijolo e a necrópole da Rua dosLagares –, ambas implantadas extramuros e em pontos opostos da cidade.Singularmente, também foram identificados quatro enterramentos que se en-quadram nos cânones de sepultamento, dentro do perímetro urbano, na zonado castelo, nomeadamente na Rua Espírito Santo (fig. 6) (ALEMÃO, 2016; GASPAR

e GOMES, 1997, pp. 8, 9 e 22; FILIPE, 2011, p. 36; FILIPE, 2005, pp. 4 e 10).

Fig. 6 – Localização dos almocavares da cidade de Lisboa (10. Calçadinha do Tijolo; 11. Rua dosLagares; 12. Palácio das Cozinhas e Rua Espírito Santo) (Carta Militar de Portugal, folha 431, ano

1971)

Nos arredores de Lisboa, deparamo-nos com pontuais almocavares, as-sociados a respectivos núcleos habitacionais rurais, dispersos nos concelhosde Sintra – onde se identificou a necrópole do Telhal, da Tapada do Inhaca e

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o inumado do Ribat do Alto da Vigia – e em Cascais – onde se escavou anecrópole do Arneiro e do Rossio Pelado7.

Após sintetizadas as ocorrências funerárias directas e indirectas, na áreageográfica em questão, estamos, assim, perante um considerável universo dedados que, em amplo espectro, nos podem revelar diversos aspectos interes-santes.

Através da leitura das singularidades deste mundo funerário, nomeada-mente a implantação das necrópoles e a tão particular disposição dos seusmortos, podemos observar pertinentes questões fora da esfera antropológicae dos dados paleodemográficos.

A nível macro-espacial, analisando a distribuição e os locais de eleiçãopara inumar os defuntos, especialmente no que toca aos contextos urbanos, épossível, de certa forma, compreender a evolução e crescimento urbano decada cidade. A título de exemplo, ponderemos, em primeiro lugar, sobre ametrópole de Lisboa, cuja explicação para a localização das suas necrópolesé relativamente linear.

Como podemos observar no mapa da cidade (fig. 6) e tal como expostoanteriormente, foram identificadas duas necrópoles extramuros e inumaçõesinvulgarmente no interior do perímetro amuralhado. Graças ao auxílio dasfontes documentais, sabemos que os dois grandes cemitérios de Lisboa nãosão contemporâneos, sendo a Calçadinha do Tijolo a primeira necrópole ver-dadeiramente islâmica, caindo em desuso após a Reconquista da cidade em1147 (DOMINGUES, 1997, p. 120). Após esta data, os muçulmanos que perma-neceram em Lisboa foram extraviados para a zona da Mouraria (a norte dacidade), onde criaram o seu próprio bairro que era provido de um espaço deinumação – a necrópole da Rua dos Lagares –, que manteve a sua utilizaçãoaté à expulsão efectiva dos mouros decretada por D. Manuel I no século XV(OLIVEIRA MARQUES, 1981, p. 24; TRINDADE, 2013, p. 555).

A mesma realidade é constatada na cidade de Coimbra que, embora oprimeiro almocavar islâmico esteja num enredo de hipóteses e especulações,através das referências documentais podemos reconhecer, de igual forma,uma lógica sequencial de implantação de cemitérios. Provavelmente existiriaum almocavar durante o domínio islâmico na encosta de S. Bento/JardimBotânico e, à semelhança de Lisboa, terá sido desactivado após a Reconquis-ta da cidade, passando a existir a necrópole mourisca das comunidades en-tão extraviadas em Montes Claros.

7 Para mais detalhes vide GONZAGA, 2018, pp. 36, 38 e 39.

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Relativamente a Santarém, a problemática que encerra a recriação dacidade medieval de Shantarîn e a ordem de sucessão para a implantação dosseus cemitérios é um pouco mais complexa e ainda se encontra em estudo.

Alguns investigadores, perante uma pluralidade de núcleos funerários,sustêm-se, de igual modo, na lógica sequencial e diacrónica para a implanta-ção de almocavares, desde a necrópole mais antiga e mais central, para ocemitério mais afastado da cidade e, teoricamente, mais recente (fig. 7). Ouseja, resumidamente, neste âmbito, o almocavar do Alporão, localizado rela-tivamente perto da alcáçova da cidade, e com uma utilização comprovadamentemais recuada, corresponderia à primeira necrópole islâmica da cidade, dan-do lugar aos núcleos funerários da Rua Capelo e Ivens e da Travessa dasCapuchas; sendo estes desactivados para culminar no almocavar do LargoCândido dos Reis (LIBERATO e SANTOS, 2017b, pp. 1377-1379).

Fig. 7 – Representação de uma das hipóteses para a lógica de implantação dos almocavares deSantarém

Todavia, ademais do excepcional número de necrópoles identificado,Santarém também é detentora de outra feliz singularidade dentro da esferafunerária islâmica: a presença de espólio funerário in situ. E, como tal, a exis-tência destes materiais confere-nos enquadramentos cronológicos que, com-parativamente, a larga maioria dos almocavares não tem esta casualidade.Desta forma, creio que não nos devemos descurar deste tipo de informação eutilizá-la para nossa benesse.

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Ao que tudo indica, na minha modesta opinião, o enquadramento crono-lógico do espólio funerário, juntamente com as leituras estratigráficas destesarqueossítios, demonstram uma certa contemporaneidade na utilização des-tes espaços como locais de inumação. Isto é, a necrópole do Alporão (certa-mente a mais antiga, com continuidade ocupacional paleocristã) é amortizadaentre os séculos X e XII; na Travessa das Capuchas temos um enquadramentoentre o século IX e X; na R. Capelo e Ivens é provável que seja anterior aoprocesso de Reconquista; e a necrópole do Largo Cândido dos Reis foi ocu-pada, pelo menos desde o século XI e reutilizada por inumações cristãs noséculo XII (BOAVIDA, CASIMIRO e SILVA, 2013, p. 939; LIBERATO e SANTOS, 2017b, p.1378; MATIAS, 2009a, p. 646).

Certamente, se tal for resolução para esta conjectura, estamos peranteum caso invulgar a nível urbanístico, que merece mais leituras e análises paradescodificar este panorama. Sem mais a acrescentar, esperemos futuroscontributos para a interpretação e recriação da morfologia urbana de Shantarîn.

Outro aspecto essencial e aliciante que merecia ser explorado está rela-cionado com a compreensão da introdução e fixação do culto islâmico nonosso território, através da análise dos gestos funerários de cada almocavarescavado. Uma vez que a região centro do País, principalmente as zonasmais autónomas de Coimbra e Santarém, tinha grande influência cristã e ofenómeno de islamização fora bastante moroso, seria, portanto, a área geo-gráfica de excelência para elaborar este tipo de análise.

Seria interessante verificar, dentro destes rituais tão meticulosos, pontuaisdiscrepâncias, nomeadamente na posição e/ou orientação final de sepultamen-to, de forma determinar os pressupostos ideológicos destas comunidades.

Este tipo de leituras não é de todo novidade para os investigadores espa-nhóis que, por exemplo, nas necrópoles de Mérida e na de Jaen8, nas váriasfases de utilização, registaram que as inumações mais antigas (entre os sécu-los VIII e IX) demonstram flutuações entre as normas cristãs e islâmicas, no-meadamente indivíduos em decúbito lateral direito, orientados a oeste-este, evice-versa. Só nas fases subsequentes, a partir do século X, é que a posiçãoem decúbito lateral direito e a orientação canónica é uniformizada por todosos defuntos.

Todavia, e infelizmente, em Portugal, e em particular para as necrópolesmais antigas no centro do País, existe uma considerável ausência de dados

8 ALBA, 2002; ALBA, 2011; BARRIENTOS VERA, 2001, pp. 19-21; CASTILLO ARMENTEROS et al., 2011, pp. 287e 288; SERANO PEÑA e CASTILLO ARMENTEROS, 2000, pp. 99-102.

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neste âmbito e principalmente de uma planta criteriosa do espaço funerário eda diferenciação estratigráfica das diferentes fases de utilização do mesmo.Assim, a análise da introdução deste novo culto no nosso território e respecti-vas conjecturas torna-se uma tarefa bastante intricada.

Ademais destas vicissitudes, existem outras limitações que não permi-tem aprofundar tantos outros aspectos, em particular as escassas evidênciasna região em questão, principalmente mais a norte, nos distritos entre o Douroe o Mondego. Por certo, esta vaga de testemunhos não é panorama de umterritório sem ocorrências; é, na verdade, uma ilusória sensação de vazio,talvez fruto da pouca familiaridade com este tipo de contextos arqueológicos.E, neste sentido, apelo aos investigadores para uma maior sensibilidade paracom estes arqueossítios.

Não obstante estas restrições, embora se trate de um estudo embrionárioe preliminar, creio que, com apenas um pequeno conjunto de vinte testemu-nhos na região centro, foi possível confirmar os padrões de implantação topo-gráficos dos almocavares e compreender as dinâmicas e evoluções das cida-des entre o Douro e o Tejo. Conquanto, espero que este estudo tenha dadoum primeiro passo na compreensão do mundo funerário nesta área geográfi-ca e que, futuramente, outros investigadores dêem continuidade ao mesmo econcedam novos contributos.

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

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A NECRÓPOLE DA IGREJA DE SANTA MARIA DAALCÁÇOVA DO CASTELO DE MONTEMOR-O-VELHO:

OS ENTERRAMENTOS DE NÃO ADULTOS

ANA MARIA SILVA*FLÁVIO IMPERIAL**

1. Introdução

Os restos ósseos humanos constituem um depósito das mais variadasinformações de um indivíduo: sexo, idade à morte, dieta, estado de saúde,períodos de stresse fisiológico, crescimento, hábitos culturais, entre outros. Aoestudá-los, conseguimos aceder a estas informações e, deste modo, acederàs sociedades que nos antecederam.

Em Maio de 2018, ao abrigo de um protocolo de colaboração entre oDepartamento de Ciências da Vida e a Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, decorreu a 1.ª Campanha de Escavação da Necrópole da Igreja deSanta Maria da Alcáçova do Castelo de Montemor-o-Velho (CMMV). De acor-do com documentação histórica, esta recebeu enterramentos até 1811, depessoas residentes a norte de Montemor-o-Velho, nomeadamente do Moinhoda Mata e zonas circundantes. Esta necrópole, que até ao momento revelou17 esqueletos não adultos, antecedeu o Cemitério Municipal, fundado nasegunda metade do século XIX.

A presente amostra, constituída por esqueletos de crianças, possibilitaum estudo mais exaustivo desta faixa da população. A sua análise revela-nosinformações de ordem física da sua curta vida, dos factores sociais, culturais eeconómicos que os expuseram a traumas, doenças e períodos de stressefisiológico.

* Laboratório de Pré-história, CIAS, Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra;UNIARQ – WAPS. Centro de Arqueologia, Universidade de Lisboa; (CEF) – Departamento Ciênciasda Vida, Universidade de Coimbra.** Arqueólogo da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho.

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

O objectivo deste trabalho é documentar as práticas funerárias de nãoadultos, nos finais do século XVIII. Será estabelecido o perfil demográficodestes indivíduos, complementado com a análise paleopatológica e dos indi-cadores de stresse fisiológico.

2. Metodologia

Para aceder ao perfil biológico destes indivíduos, a estimativa da idade àmorte recorreu ao esquema da calcificação dentária segundo Alqhatani et al.(2010), e ao comprimento dos ossos longos segundo Stloukal e Hánákova(1978), para além das recomendações de Scheuer e Black (2002). Todos osrestos ósseos e dentários foram observados com auxílio de uma lupa, comvista à detecção de sinais de patologias. Estas foram devidamente documen-tadas e, sempre que possível, referido o respectivo diagnóstico.

3. Resultados: Das práticas funerárias ao perfil biológicoe patológico destes indivíduos

Os enterramentos encontravam-se relativamente bem preservados, ain-da que em vários tenham sido observadas perturbações post-deposicionais,provavelmente relacionadas com diversos factores tafonómicos, tais como, aacção da fauna, da flora e antrópica anterior à presente intervenção.

A recuperação deste espólio ósseo humano permite-nos aceder a algumasdas práticas funerárias destas comunidades humanas para com as crianças quefaleciam. Com excepção de um indivíduo, em todos os restantes há evidênciasde a inumação ter sido em caixão. Foi no esqueleto 16 que melhor se preservouo caixão, tendo sido possível confirmar que este era antropomórfico (acompa-nha o contorno do corpo), sendo mais largo no topo, estreitando em direcção aospés (Fig. 1). Neste caso, também foi possível confirmar que o seu interior eraforrado. Na maioria foram recuperados alfinetes que podem ter sido utilizadosquer na mortalha, quer para fixar o forro do caixão (Fig. 2).

Em seis indivíduos foi recuperado, pelo menos, um botão, geralmente nazona do tórax. No esqueleto 4, junto ao pé esquerdo, foram encontrados res-tos sugestivos de um calçado. Vestígios de cal foram detectados junto a 2esqueletos. Os esqueletos foram depositados com a orientação O-E, exceptotrês, com SO-NE, provavelmente reflexo de um melhor aproveitamento doespaço disponível. Os dados da antropologia funerária estão sintetizados natabela que se segue.

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Figura 1 – Enterramento 16 da Necrópole de CMMV, onde é visível o caixão antropomórfico.

Figura 2 – Espólio recuperado junto aos enterramentos de não adultos da Necrópole de CMMV.

A Necrópole da Igreja de Alcáçova do Castelo de Montemor-o-Velho: os enterramentosde não adultos

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Os indivíduos recuperados são muito jovens, predominado os que fale-ceram com menos de 12 meses de idade. O mais velho desta amostra teráfalecido com uma idade próxima dos 7,5 anos (Fig. 3). Estes dados confirmama elevada mortalidade infantil documentada para o período histórico em queviveram estas crianças.

Tabela 1 – Síntese dos dados de antropologia funerária dos esqueletosrecuperados da Necrópole CMMV.

Figura 3 – Perfil etário da amostra de não adultos analisada da Necrópole CMMV.

Esta amostra sobressai porque todos os indivíduos revelam sinais depatologia infecciosa, de magnitude variável. Estas evidências foram observa-das ao nível dos ossos cranianos e em vários ossos longos. Por vezes, registou-se deposição de osso novo, confirmando que as lesões se encontravam activas

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no momento da morte do indivíduo. Entre estas, destacam-se as lesõesdestrutivas e deposição de osso novo no osso temporal direito (Figura 4)observada no esqueleto 15, uma criança que faleceu com 5 a 6 meses.

Foram, ainda, observados outros tipos de patologias. Um dos esquele-tos, n.º 15, para além dos sinais de patologia infecciosa severa ao nível docrânio, apresentava, ainda, uma curvatura atípica das diáfises dos fémures edas tíbias, particularmente dos primeiros. É difícil atribuir uma etiologia a estasalterações, mas uma origem congénita ou metabólica é muito plausível. Oesqueleto 5 apresenta uma assimetria do comprimento dos ossos do membrosuperior (Figura 5), para além de um possível trauma (fractura) já em fase deremodelação, no ramo ísquion-púbis do coxal esquerdo.

Figura 4 – Sinais de infecção activa no osso temporal direito do esqueleto 15,exumado da Necrópole CMMV.

Figura 5 – Assimetria docomprimento dos úmeros e doscúbitos, observada no indivíduo 5,exumado da Necrópole CMMV.

A Necrópole da Igreja de Alcáçova do Castelo de Montemor-o-Velho: os enterramentosde não adultos

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Este indivíduo apresenta, ainda, lesões de cribra orbitalia no tecto dasórbitas, alterações essas atribuídas a indicadores de stresse fisiológico espe-cífico (Figura 6). Outro indivíduo (n.º 12) apresenta hiperostose porótica emvários ossos da abóbada craniana, o que constitui outra manifestação destesindicadores. A causa mais frequentemente apontada para estas alterações éa anemia.

Em três indivíduos, os restos dentários revelam hipoplasias do esmaltedentário, um indicador de stresse fisiológico não específico. Confirmam, as-sim, que estes indivíduos passaram por um período de stresse fisiológico, porexemplo, um período de doença prolongada e/ou fome, antes dos 4,5 meses,e que conseguiram recuperar deste.

Um dos aspectos mais inespera-dos foi a observação de lesões cário-génicas em dois indivíduos. Os esque-letos 4 (idade à morte: 12 meses; Figura7) e 7 (idade à morte: ±3 anos) apresen-tavam cáries interproximais em, respec-tivamente, os dois incisivos centrais su-periores decíduos e nos 4 incisivos su-periores decíduos. Lesões cariogénicas

Figura 6 – Sinais de cribra orbitalia (porosidade) na órbita esquerda do esqueleto 5,exumado da Necrópole CMMV.

Figura 7 – Lesões cariogénicas nas regiõesinterproximais dos incisivos centrais superioresdecíduos, do esqueleto 4 da Necrópole CMMV.

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ocorrem raramente em incisivos, particularmente em dentes decíduos. Umapesquisa documental permite sugerir que estas sejam consequência de umaprática cultural, concretamente do uso de líquidos açucarados em biberões e/ou chupetas de pano.

Considerações finais

O presente trabalho documenta uma primeira análise dos restos ósseosrecuperados durante a 1.ª intervenção na Necrópole da Igreja de Santa Mariada Alcáçova do Castelo de Montemor-o-Velho. Esta permitiu a recuperaçãode 17 esqueletos pertencentes a não adultos, desde um/dois meses até cercade 7,5 anos. Ainda que predominantemente através de evidências indirectas,a maioria terá sido inumada em caixão. Os vestígios recuperados sugerem,ainda, que os caixões possuíam um forro interno. Em vários esqueletos, parti-cularmente nos mais novos, a presença de alfinetes e de “fios metálicos”sugere a deposição com algum tipo de mortalha. De referir, ainda, a presençade botões na zona torácica, em vários esqueletos, para além de calçado numesqueleto.

Em termos biológicos, esta colecção sobressaí pelas patologias obser-vadas. Todos os indivíduos revelam sinais de patologia infecciosa, de magni-tude variável. As alterações observadas ao nível do crânio permitem sugerirdiagnósticos mais complexos, que serão investigados numa análise laboratorialmais aprofundada. Vários indicadores confirmam que estes indivíduos estive-ram sujeitos a períodos complicados durante as suas vidas, desde os sinaisde patologia infecciosa, alguns dos quais com características de cronicidade,de indicadores de stresse específicos (cribra orbitalia e hiperostose porótica)e não específicos (hipoplasias do esmalte dentário). Em dois indivíduos, asalterações observadas nos ossos longos podem ter uma origem congénita.Um trauma antigo, provavelmente uma fractura antiga já em fase de remode-lação, foi observado no indivíduo mais velho da colecção. A presença de doisindivíduos com lesões cariogénicas na dentição decídua, concretamente nosincisivos superiores, parece ser reflexo de uma prática cultural, concretamen-te do uso de biberão ou de chupetas de pano embebidas em líquidos açuca-rados.

Em suma, a análise deste espólio ósseo humano enriqueceu o nossoconhecimento sobre a sociedade portuguesa da região de Montemor-o-Velhodos finais do século XVIII, concretamente dos aspectos demográficos e dasdoenças de que padeceram as suas crianças.

A Necrópole da Igreja de Alcáçova do Castelo de Montemor-o-Velho: os enterramentosde não adultos

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

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ALTO DO CALVÁRIO, MIRANDA DO CORVO:UMA NECRÓPOLE COM ONZE SÉCULOS

VERA SANTOS*

* Arqueóloga

1. Introdução

Os trabalhos arqueológicos1 no Alto do Calvário tiveram início em 2011,no local onde outrora se erguia o Castelo de Miranda do Corvo. A par dafunção defensiva, o local teve, também, uma função ritual. E, talvez porqueesta função ainda perdura, ou porque os vestígios da fortificação são ténues,é este papel que se destaca. Nos cerca de 115 m2 escavados, entre 2011 e2017, foram identificadas 75 sepulturas, das quais 41 são escavadas na ro-cha. Destas, 35 são medievais, e farão parte de um conjunto cuja dimensãoreal está, ainda, por apurar.

2. Enquadramento

O cabeço designado Alto do Calvário está situado no centro da vila deMiranda do Corvo, sede de concelho do distrito de Coimbra. Ali se encontravaimplantada a estrutura defensiva da vila, que surge na documentação desdefinais do séc. X. Contudo, apesar de ter sido uma peça importante na linha dedefesa da cidade de Coimbra, durante e após a ‘reconquista’ daquela cidade,pouco se sabe sobre a sua história. À superfície, apenas duas estruturasmedievais resistiram à passagem do tempo: a cisterna, algibe do séc. XIII, euma torre de muralha, hoje sineira.

1 A intervenção arqueológica realizou-se a pedido do Município de Miranda do Corvo, aquando arequalificação urbanística do sítio, no âmbito da Rede dos Castelos e Muralhas Medievais doMondego. Os trabalhos consubstanciaram-se na realização de sondagens de diagnóstico e no acom-panhamento arqueológico das obras de reabilitação do local. Além da signatária, fizeram parte daequipa de arqueologia Mafalda Ramos e Jacinta Costa. A equipa contou com a consultadoria científicada Doutora Helena Catarino. Os trabalhos de Antropologia estiveram a cargo de Flávio Simões.

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

A par da função defensiva, o Calvário apresenta-se, também, como umlocal de culto antigo. Com o passar do tempo, o sítio perdeu o seu carácterdefensivo, permanecendo apenas a função ritual. É aqui que vamos encontrara Igreja Matriz, documentada desde o séc. XII, e o Cemitério Municipal, funda-do nos anos de 1870, e que veio perpetuar uma secular tradição deenterramentos no local.

Fig. 1 – Localização de Miranda doCorvo no mapa da Península Ibérica.

Fig. 2 – Aspecto actualda Torre Sineira e Cisterna.

Fig. 3 – A Igreja Matriz, no início doséc. XX (imagem extraída de http://www.freguesiademirandadocorvo.pt/

mapa-interactivo).

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3. Resultados3.1. Os enterramentos mais antigos

Os enterramentos mais antigos identificados durante a intervenção arque-ológica localizam-se no Largo do Calvário. Trata-se de um nível sepulcral datáveldos séculos X-XII, composto por 5 covachos com orientação SO-NE, definidospor muretes de pedra e cobertos por montículos irregulares de inertes.

Fig. 4 – Ortofotomapa do Alto do Calvário, de onde se destaca o cemitério actual.

Fig. 5 – Conjunto de sepulturas dos séc. X-XII. No topo, vestígios do possível edifício religioso.

Alto do Calvário, Miranda do Corvo: uma necrópole com onze séculos

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Visto que não foi possível escavareste contexto, não foi possível estabele-cer a relação destas sepulturas com oedifício aqui identificado e que supomosde carácter religioso. A estrutura, datávelda Alta Idade Média se considerarmos oseu aparelho e os 2 fragmentos de can-cela de iconóstase do séc. VIII-IX exuma-dos do local, é um dos vestígios maisantigos identificados em todo o cabeço.

A interrupção dos trabalhos não permitiu averiguar se se trata de umanecrópole relacionada com o possível edifício religioso ou se apenas veioperpetuar a memória de um espaço sacralizado, após o abandono daquele.As sepulturas não foram escavadas e os indivíduos não foram exumados.

Após o abandono daquele nível sepulcral, a tradição de sepultamento foiretomada mais tarde, pois foi identificado um segundo grupo de sepulturas me-dievais, datadas dos séculos XII-XIII. Estes sepulcros também se encontravamorientados SO-NE, e os indivíduos poderão estar enterrados de acordo com oritual islâmico, ou, pelo menos, sob sua influência, já que dos 4 indivíduos escava-dos, apenas dois se encontravam indubitavelmente em decúbito lateral direito.

Fig. 6 – Fragmentos de iconóstasedatada do séc. VIII-IX.

Fig. 7 – Indivíduo adulto enterrado em decúbito lateral direito.

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O facto de nos encontrarmos numa zona onde a coexistência do Islão edo Cristianismo foi uma realidade, impede-nos de afirmar que estamos peran-te fiéis de qualquer uma das religiões. Podemos, porém, confirmar que estaárea sepulcral é coetânea da utilização das sepulturas escavadas na rocha,identificadas na zona Este do cabeço, noutras sondagens. Estaremos, defacto, perante cultos diferentes? Ou perante indivíduos de estatuto social dis-tinto? Ou, até mesmo, com gostos pessoais diferentes, optando uns por sepul-cros rupestres, e outros por covachos?

A tradição de sepultamentos neste espaço manteve-se, já que aqui tam-bém foram identificadas 8 sepulturas da Época Moderna (séc. XVI-XVII).

3.2. A necrópole rupestre medieval

Como já foi referido, na zona Este do cabeço foi identificada uma necró-pole de sepulturas escavadas na rocha, cuja dimensão real está, ainda, porapurar. Ao todo, foram identificados 35sepulcros rupestres medievais em 5sondagens realizadas junto às actuaisSineira e Matriz. A necrópole estender-se-ia, pelo menos, desde a meia en-costa, em direcção a Sul e a SE. A pen-dente do cabeço foi vencida com a es-cavação de plataformas, uma espéciede socalcos que ainda hoje se encon-tram fossilizados no local.

Com o decorrer dos trabalhos, ve-rificou-se que a área a meia encosta,onde posteriormente foi construída aantiga torre de muralha, seria a zonadedicada ao enterramento das crianças.Contudo, a remodelação do espaço for-tificado, durante a Baixa Idade Média,levou ao abandono desta área sepul-cral. Este abandono levou a uma me-lhor preservação destes túmulos, secomparados com os identificados juntoà Matriz. Nesta área, dada a longa efrequente utilização do espaço como

Fig. 8 – Vista, do topo da torre, das 22sepulturas rupestres escavadas.

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cemitério (o adro continuou a ser palco de enterramentos, durante a BaixaIdade Média e a Época Moderna, pelo menos), as sepulturas escavadas narocha chegaram até nós bastante destruídas, não sendo possível caracterizá-las. Por esse motivo, focamos a nossa atenção nas 22 sepulturas rupestres(de onde foram exumados 25 indivíduos em conexão anatómica), identificadasna área da actual Sineira.

3.2.1. Tipologia

A maioria das sepulturas aqui escavada é antropomórfica, ou exibe umantropomorfismo incipiente. Ou seja, das 22 sepulturas rupestres identificadas,17 apresentam a forma humana, sendo facilmente perceptível a cabeceira, oencaixe para ombros e braços e o encaixe para as pernas. As restantes 5estão demasiado destruídas para serem classificadas. Tal como já foi referido,esta zona seria a área dedicada aos enterramentos infantis, tal como aindahoje se pratica nalguns cemitérios do nosso País. Contudo, a partir de deter-minada altura, também adultos aqui se fizeram enterrar; daí que, do total dossepulcros escavados, 16 sejam infantis2 e os restantes de adulto.

A maioria dos túmulos demonstra um certo cuidado na elaboração, ape-sar da dificuldade que o talhe do xisto apresenta, devido à sua tendência paralascar. Como normalmente acontece nas necrópoles, não há uma exclusivi-dade de tipologias, embora a variedade das formas não seja muita: identifica-ram-se 5 tipos, depreendendo-se uma preferência pelas formas assimétrica etrapezoidal.

3.2.2. O Ritual

Quando alguém morria, ou sentia a sua hora chegar, era contratado umartífice especializado no talhe da pedra que, com instrumentos metálicos,esculpia na rocha um sepulcro, tendo em conta as medidas do defunto. De-pois de executado o túmulo, o defunto era colocado directamente no leito dasepultura. Para as inumações escavadas nesta área, pode-se concluir que a

2 Não podemos deixar de realçar a ausência de sepulturas rupestres de comprimento inferior a 100 cm.Ou seja, às crianças até 1 ano de idade estava destinado outro tipo de enterramento, já que nesta áreafoi identificado 1 covacho de 1 feto/recém-nascido. O facto de não se lhes dedicar o mesmo tipo desepultamento poderá ficar a dever-se ao facto de o talhe de um sepulcro rupestre tão pequenoapresentar maiores dificuldades.

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maioria dos indivíduos não foi envolvida em mortalhas. Na quase totalidadedos casos, a colocação do indivíduo no sepulcro fez-se na posição de decúbitodorsal. E na maioria cujo crânio se encontrava preservado, a sua cabeça foicolocada de forma a ficar a ‘olhar’ para Nascente, de onde surgirá Deus no diado Juízo Final.

Sobre os defuntos, foi, depois, colocada uma camada de terra. O proces-so de enterramento era concluído com o encerramento do sepulcro. Nestecaso, as tampas que sobreviveram ao passar dos séculos, eram compostaspor várias pedras, que foram cobertas por terra.

A assinalar alguns sepulcros, foram identificadas pedras de cabeceira:pedras calcárias ou seixos xistosos, colocados ao alto. Não deixa de ser para-doxal o esforço empregue nos sepulcros, que ficariam cobertos, o que con-trasta grandemente com as pedras de cabeceira, simples seixos ou pedrascalcárias, que ficariam visíveis, a assinalar tal monumento invisível.

3.2.3. Disposição e Orientação

As sepulturas identificadas na área exterior da Torre Sineira encontram-se organizadas, dispostas paralelamente, muito próximas umas das outras. Amaioria apresenta orientação NO-SE, uma ligeira variação relativamente aoscânones cristãos da época, que determinavam que os defuntos deviam serenterrados com a cabeça virada para Oeste. Esta variação poderá ser explicadaem termos de aproveitamento da pendente natural da rocha base, de NO paraSE. Assim, os sepulcros foram escavados de forma a que as cabeceiras (aNO) estejam a uma cota mais elevada do que os pés (a SE).

3.2.4. As reutilizações: “They say we die twice…”

Tal como acontece nas sepulturas rupestres identificadas noutros lo-cais, também estas foram sendo sucessivamente reutilizadas. Exemplo dis-so são os indivíduos cujo tamanho não se adequa ao comprimento do se-pulcro onde foram enterrados, ou os vários ossários identificados dentro decada túmulo. Além disso, e a demonstrar um longo período de utilização doespaço enquanto necrópole, temos o facto de que alguns sepulcros foramdestruídos, total ou parcialmente, para o talhe de outros, posteriores. Talfacto só terá ocorrido porque os indivíduos ali sepultados já teriam sidoesquecidos.

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3.3. A necrópole rupestre moderna

As sepulturas identificadas junto à cisterna, no topo do cabeço, desta-cam-se pela sua ‘descontextualização’. Aquando da realização destesenterramentos, que ocorreram entre o séc. XV e o séc. XVII, outras áreas doCalvário eram utilizadas como zonas sepulcrais. Porque teriam sido estesindivíduos sepultados no interior da área amuralhada, num espaço aindautilizado como fortificação, numa posição de destaque, em sepulturas escava-das na rocha, num período tardio? Talvez se trate de indivíduos de estatutosocial elevado.

Assim, foram identificadas 6 sepulturas escavadas na rocha, que se divi-dem em dois grupos: do grupo mais antigo (séc. XV-XVI), fazem parte 3 sepul-turas que se encontram fracturadas, sendo uma, claramente, nãoantropomórfica e as outras duas de tipologia indeterminada. Deste grupo,duas apresentam orientação O-E e uma E-O. O segundo grupo, mais recente(séc. XVI-XVII), encontra-se orientado no sentido S/SO-N/NE, cortando, naperpendicular, as primeiras. Estas sepulturas enquadram-se na tipologia ge-ral de não antropomórficas. No total, nestes sepulcros foram identificados 7indivíduos em conexão, de onde se destaca uma gestante com o seu feto. As

Fig. 9 – Exemplo de reutilizações: à esquerda, indivíduo adulto enterrado num túmulo de não-adulto; à direita, sepulcro com 3 reduções.

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inumações identificadas nesta zona foram, também elas, depositadasdirectamente sobre o leito do túmulo. A colocação dos indivíduos nas sepultu-ras fez-se na posição de decúbito dorsal, e sobre eles também foi colocadauma camada de terra. Ao contrário das sepulturas rupestres medievais, os 6sepulcros desta sondagem não conservavam tampa, nem apresentam rebor-dos, e também não foram identificadas pedras de cabeceira.

Fig. 10 – Registo gráfico das sepulturas rupestres modernas e respectivas inumações.

Fig. 11 – à esq., gestante identificada junto àcisterna. Em cima, pormenor do feto.

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4. Conclusão

A par da função defensiva, o Alto do Calvário teve, também, uma funçãoritual, sendo este o papel que se destaca. As 75 sepulturas escavadas (dasquais sobressai a longa diacronia dos covachos, que se perpetua no Cemité-rio Municipal actual!) farão parte de uma necrópole cuja verdadeira dimensãoe cronologia desconhecemos.

Apesar de todos os problemas com que nos deparamos perante este tipode vestígios (cronologias, formas específicas de cada sepultura, a condiçãosocial do inumado, o seu sexo e idade), o seu estudo contribui para o conhe-cimento dos pressupostos mentais do culto dos mortos, das formas de povoa-mento e das condições sócio-económicas da sociedade que os produziu. Porexemplo, o número de sepulcros de não-adultos, inseridos numa área especí-fica, aos quais foi prestada toda a atenção na sua elaboração, deixa-nosantever um mundo em que as crianças não seriam um grupo etário ignorado.

Por último, dedicamos breves palavras ao estudo antropológico. No ge-ral da amostra, é de salientar o número de patologias orais (com forte incidên-cia na perda dentária), das patologias infecciosas e das traumáticas. No casodos adultos, pôde-se concluir que os indivíduos do sexo masculino pratica-vam uma intensa actividade física, que contrasta com os resultados obtidospara a robustez feminina, o que leva a supor uma diferenciação nas actividadesde acordo com o sexo. Assim, de acordo com o antropólogo responsável, aactividade agrícola estaria a cargo dos indivíduos do sexo feminino e as res-tantes actividades, nomeadamente as que exigiam maior esforço a nível bra-çal, a cargo dos indivíduos do sexo masculino (SIMÕES, 2017, p. 65): resulta-dos normais numa sociedade pré-industrial, não diferindo para os apuradosnoutros contextos.

Durante toda a Idade Média, a alta mortalidade infanto-juvenil foi umarealidade, onde se estima que uma a cada três crianças morria. Uma alimen-tação pobre, pouco variada e muitas vezes escassa, tinha como consequênciauma fraca resistência às infecções, o que facilitava a ocorrência de epidemias.Esta realidade, associada a esforços físicos exigentes, a parcos conhecimen-tos médicos e cuidados de higiene deficitários, levava a altas taxas de morta-lidade infantil e a uma esperança média de vida baixa. No caso da amostraexumada, 59,4% são não-adultos3 nos vários estágios, incluindo fetos (SIMÕES,

3 Dada a especificidade de uma das sondagens, onde foi identificada a área dedicada aos enterramentosinfantis, os valores da amostra encontrar-se-ão desviados.

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2017, p. 36). Os resultados do estudo paleopatológico mostram as causas detão elevada taxa de mortalidade: elevado número de indicadores de stress,baixo índice nutricional e condições de higiene pobres. Apesar de presentesem toda a amostra, estes indicadores mostram maior preponderância nosnão-adultos, tratando-se de um grupo mais fragilizado.

Em suma, estamos perante a população de Miranda do Corvo: homens,mulheres, crianças, cuja vida de epidemias, fomes, guerras, austeridade eprecariedade resultava, frequentemente, em mortes precoces.

Bibliografia

MARTÍN VISO, Inaki – «Elementos para el análisis de las necrópolis de tumbasexcavadas en la roca: el caso de Riba Côa», in CuPAUAM (2005-2006), pp. 31-32.

– «Tumbas y sociedades locales en el centro de la península en la alta edad media: elcaso de la comarca de Riba Côa (Portugal)», in AyTM (2007) n.º 14.

SIMÕES, Flávio – A Necrópole Rupestre do Alto do Calvário, Miranda do Corvo.Relatório de estudo Arqueotanatológico, Paleobiológico e Paleopatológico daamostra exumada na campanha 2011-2012. Policopiado, 2017.

Consultas web:https://pngimage.net/mapa-peninsula-iberica-png-1/http://www.freguesiademirandadocorvo.ptGoogle Earth Pro

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COMO SE FEZ HISTÓRIA:ARQUITECTURA FUNERÁRIA DO MOSTEIRO DA BATALHA

PEDRO REDOL*ORLINDO JORGE**

* Conservador de museus** Operador de logística

O Mosteiro da Batalha acolhe a última morada de grande parte da reale-za da casa de Avis.

A opção do fundador da casa de Avis pelo Mosteiro da Batalha para seupanteão inaugura uma série de inovações, quer a nível dos programas políti-cos/ideológicos, quer a nível da arquitectura. Por conseguinte, abordamos otema deste colóquio dentro do expoente máximo do poder em Portugal, deuma capacidade financeira inigualável no Reino, num período corresponden-te ao final da Idade Média e ao início do Renascimento.

1. Os Antecedentes

A fim de enquadrar as opções tomadas, para os espaços régios de sepul-tamento no Mosteiro da Batalha, é imperativo passar em revista o históricoevolutivo dos seus antecedentes, sobre este tema. Importa realçar que, noinício da nossa nacionalidade, o espaço sagrado das igrejas ainda estavavedado ao sepultamento de leigos.

Os dois primeiros reis, D. Afonso Henriques (m. 1185) e D. Sancho I (m.1211), nas suas disposições testamentárias, escolheram o Mosteiro de SantaCruz de Coimbra, da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho,para última morada. A historiografia tem referenciado como espaço depositá-rio dos túmulos a galilé1, embora, mais recentemente, tenha sido apontada

1 Interpretação surgida ao estabelecer-se o paralelismo histórico, cultural e funcional entre o panteãode León e o de Santa Cruz de Coimbra, pela primeira vez com Saul Gomes (Gomes, 1997), depoisretomado por Walter Rossa Silva (SILVA2, 2001).

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uma capela do claustro (CRAVEIRO, 2011, pp. 15-16)2, numa opção semelhanteao sepultamento do conde D. Henrique e sua esposa D. Teresa, pais doprimeiro rei de Portugal, que se fizeram sepultar numa capela do claustro daSé de Braga (REAL, 1990).

Os reis seguintes, Afonso II, Sancho II (este acabou sepultado em Toledo)e Afonso III, optaram por outra ordem religiosa, os cistercienses, e pelo Mostei-ro de Alcobaça. Impossibilitados de ocupar o espaço sagrado da igreja, comojá referido, aproximaram-se dele até ao seu limiar, servindo-se, para o efeito,de uma galilé à semelhança de outras igrejas monásticas ibéricas.

A importância deste espaço é evidenciada pelo seu nome, galilé, relaci-onando-se com um cerimonial conotado com a última aparição de Cristo aosapóstolos na Galileia, palavra de que deriva (SILVA, 1997). É, deste modo,clara a analogia com a ressurreição e a sua importância simbólica.

Mudanças de mentalidade e de posicionamento do poder régio em rela-ção ao poder da Igreja são evidentes com a opção funerária do rei D. Dinis,que morreu em 1325. O rei funda um mosteiro e levanta uma igreja de raiz coma finalidade de panteão régio, em clara imitação da casa real francesa, ocu-pando, finalmente, o espaço sagrado do corpo do templo, próximo do presbi-tério, juntamente com sua esposa, em túmulos separados. Sugerem as inves-tigações mais recentes que este tenha sido o primeiro projecto de raiz parapanteão real em Portugal (VAIRO, 2011). Plano gorado, pois a rainha ficousepultada em Coimbra.

Até aqui a guarda do corpo ficou sempre ligada a casas religiosas, por seapresentarem como uma garantia de zelo na guarda dos corpos e vontades atéà ressurreição final, revelando a importância, no momento, da ordem escolhida.

A evolução da mentalidade religiosa prossegue com D. Afonso IV queabandona a tradição de eleger um lugar monástico e opta, para repouso finaldo seu corpo, pela Sé de Lisboa, na particularidade do espaço do presbitério.Para o efeito manda levantar uma nova cabeceira, num programa arquitectónicoousado, incluindo deambulatório e capelas radiais. Esta solução é justificadapela presença das relíquias de S. Vicente, transformando a catedral num es-paço de peregrinação e, por outro lado, fazendo-se sepultar próximo dasrelíquias, beneficiando da sua protecção.

D. Pedro I retorna à escolha de Alcobaça, mas, ao invés dos antecessores,ocupa o braço sul do transepto, juntamente com Inês de Castro, em magnífi-cos túmulos de pedra lavrada.

2 Com base numa fonte manuscrita que referencia o claustro (Biblioteca Pública Municipal do Porto:Cristo, D. José de, Miscelaneo, Ms. 86.).

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D. Fernando I mantém a tradição das ordens religiosas, mas nestecaso uma ordem mendicante, a franciscana, e introduz uma novidade. Pelaprimeira vez um espaço preexistente é amplamente alterado para o recebi-mento do monumento funerário. Para este efeito é construído um coroautónomo de cantaria aparelhada, disposto na nave central, prenúncio deum espaço funerário autónomo como acontecerá no Mosteiro da Batalha,embora a primeira estrutura de coro-alto com funções litúrgico-funerárias,em Portugal, seja a do Convento de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, queacolheu a arca da rainha D. Isabel, esposa do rei D. Dinis. Contudo, estaestrutura foi uma solução de recurso, construída por causa da subida daságuas no interior da igreja.

2. Mosteiro da Batalha – Capela do Fundador

D. João I inaugura uma nova casa dinástica, promovendo um conjunto deacções de afirmação, culminando no grande esforço construtivo de edificaçãodo Mosteiro da Batalha, entregue à ordem dominicana, certamente por signi-ficativa influência do chanceler do Reino, Doutor João das Regras, e de FreiLourenço Lampreia, confessor do monarca, ambos dominicanos.

A opção do rei D. João I pelo Mosteiro da Batalha para o seu espaçofunerário foi tomada, provavelmente, ainda em tempo de vida da rainha, suaesposa, falecida precocemente em 1415, data marcante por ser também a doinício da expansão ultramarina, com a conquista de Ceuta, já com a obra daigreja adiantada, mandando construir, para o efeito, um edifício autónomojunto à fachada principal, de um modo inusitado relativamente à tradição daprimeira dinastia portuguesa.

A motivação ideológica para esta iniciativa foi já pormenorizadamenteestudada por Saul António Gomes (GOMES, 1991). Mais recentemente, BegoñaFarré Torras atribuiu a D. Duarte, com argumentos muito convincentes, a gran-de responsabilidade do programa tumular e litúrgico da Capela Real, hojeconhecida pelo nome de Capela do Fundador (FARRÉ TORRAS, 2014).

A solução escolhida pelo rei para sua sepultura, isto é, um edifícioautónomo e de uso reservado à família real, foi inusitada em relação àque-las que se documentam ao longo da primeira dinastia portuguesa: o claus-tro, a galilé, o cruzeiro, o transepto, coros altos e baixos de igrejas monásti-cas (Silva, 1997, pp. 45-59), além do caso excepcional do deambulatóriocom capelas radiantes da Sé de Lisboa, cuja cronologia não é pacífica(GUILLOUËT, 2011, pp. 53-59; VILLAMARIZ, 2012, pp. 470-480). De facto, a Ca-

Como se fez história: Arquitectura funerária do Mosteiro da Batalha

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pela do Fundador recolhe a tradição da galilé, junto à entrada do templo,mas passa a ser dotada de uma espacialidade simbólica muito específica,em que o simile geométrico-matemático do mundo terreno, o quadrado-número quatro, se conjuga com o do octógono-número oito associado àressurreição dos mortos e elemento de transição para a forma perfeita euna, que é conveniência de si para si própria, identificando-se, porconsequência, com Deus – o círculo –, cuja rotação origina a esfera celesteou orbe (HARTOG, 2014), representada por duas vezes, com grande desta-que, lembre-se, sob a mão de Deus Pai no portal principal da igreja batalhina.A presença de um imaginário em que paira inevitavelmente o modelo idea-lizado do Santo Sepulcro não é naturalmente mais do que um eterno retor-no da arquitectura funerária do Ocidente, desde os seus primórdios; porém,a Capela do Fundador inaugura, como veremos, uma linhagem de constru-ções da mesma tipologia, na Península Ibérica, até ao início do século XVI,em que são utilizadas soluções construtivas de ponta, nomeadamente noque ao abobadamento respeita. Além de simbolicamente personalizada,ou por essa mesma razão, a Capela do Fundador dispunha ainda de dispo-sitivos rituais próprios, isto é, de um espaço fisicamente bem definido, atra-vés do seu altar e de elementos de apoio, como armários-sacristia, por cadaconjunto tumular (GOMES e REDOL, 2015).

A análise do edificado mostra que a Capela do Fundador foi levantada aomesmo tempo que o último conjunto de três tramos ocidentais da igreja, inclu-indo o portal principal. A nave lateral sul, que partilha os seus muros com aCapela do Fundador, foi construída segundo o estilo do primeiro mestre, Afon-so Domingues, certamente não muito após a sua morte em 1406 (GUILLOUËT,2011, pp. 65-69). A fachada ocidental e o portal seriam concluídos à volta1440, pelo segundo mestre, Huguet, cuja formação em França e ulterioractividade na Coroa de Aragão foram convincentemente defendidas por Jean-Marie Guillouët.

Observando a estereotomia da parede norte e as suas confrontações,é possível concluir que, embora o contraforte mais a nascente da corres-pondente parede da igreja tenha ficado embebido na nova construção, osdois restantes, construídos até a uma altura entre 2,5 m e 5 m aproximada-mente, tiveram de ser desmontados e o muro que receberia o portal deacesso à capela funerária indentado nos panos de muros preexistentes. Oportal é claramente da autoria de Huguet, em todos os seus elementos,embora, conforme assinala Guillouët, os cairéis respectivos, incluindo oarco formado pelos dois do topo, se assemelhem aos do portal do capítulo,

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de Domingues, devendo ter sido utilizados os mesmos moldes no seu talhe(GUILLOUËT, 2011, p. 63)3.

O primeiro edifício funerário medieval de planta centrada que se conheceem Portugal é a chamada Capela dos Mestres, do Santuário de Nosso Senhordos Mártires, em Alcácer do Sal, panteão dos mestres da Ordem de Santiago,cuja construção se encontra datada de aproximadamente 1330. Os alçadosinteriores e exteriores, bem como as abóbadas, inserem-se na tradição cons-trutiva nacional da sua época, de que, aliás, a primeira fase de edificação daBatalha ainda é parcialmente herdeira.

Todavia, a Capela do Fundador é um mausoléu sem precedentes nosreinos ibéricos, embora as fontes da sua abóbada estrelada central se encon-trem, sem dúvida, na Coroa de Aragão, nomeadamente nas antigas salascapitulares das catedrais de Valência (depois Capela do Santo Cálice),Pamplona (Capilla Barbazana) e Barcelona (actual Capela de Cristo deLepanto) (CHICÓ; 2005, p. 137) (GUILLOUËT, 2011, pp. 193-197). O portal e ou-tras partes da igreja testemunham, também, um contributo muito substancialda tradição construtiva do Mediterrâneo Ocidental, já sublinhado por Jean-Marie Guillouët (GUILLOUËT, 2011, pp. 174-197) e Custódio Vieira da Silva (SIL-VA, 1997, pp. 75-82).

O que se pode ver na Batalha não se explica, porém, apenas atravésdaquela tradição. A forma complexa dos pilares de socos rampeados não seencontra, de modo algum, em edifícios catalães, aragoneses ou valencianosdeste período ou anterior. Por outro lado, nesses edifícios não se pode expe-rimentar nem a leveza da Capela do Fundador, nem o carácter fluído e lumino-so do seu espaço. Tais qualidades apontam para uma fonte mais a norte.Outros aspectos a considerar quanto à formação e prática do arquitecto são aproporção e a forma exterior do edifício cujo coruchéu caiu durante o terramotode 1755. Dele nos chegou memória através de um registo ulterior de JamesMurphy. A validade relativa deste registo pode ser calibrada pelo da torre dorelógio, igualmente concebido por Huguet e ainda de pé no tempo de Murphy.Assumindo que a Capela do Fundador estava concluída quando para ali fo-ram trasladados os restos mortais de D. João I e D. Filipa, em 1434, verifica-mos que o coruchéu que rematava a capela é anterior aos das catedrais deBurgos e León, erguidos após 1440. A origem centro-europeia deste tipo deestruturas foi sugerida por Felipe Pereda (PEREDA, 2005, p. 55).

3 Os mesmos moldes devem ter sido empregues ainda na capela do panteão de D. Duarte que ficaimediatamente a sul do grande portal de Mateus Fernandes, distinguindo-se os respectivos cairéis dosdas demais capelas, nomeadamente no ápice do arco.

Como se fez história: Arquitectura funerária do Mosteiro da Batalha

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Investigações de Javier Ibañez Fernández revelaram uma significativarenovação arquitectónica na Coroa de Aragão, levada a cabo por artistasborgonheses durante o final da primeira e o início da segunda décadas doséculo XV (IBAÑEZ FERNÁNDEZ, 2014). O presbitério da Capilla de los Corporales,em Daroca, atribuído a Isambart e à sua companha, testemunha a introduçãodas primeiríssimas soluções flamejantes na Península Ibérica, reflectindo aobra do cibório de Saint-Seine-l’Abbaye (em Côte d’Or, Borgonha), onde sejulga que o arquitecto tenha trabalhado. Em Daroca, as abóbadas miniaturaisde alguns baldaquinos apresentam uma interessante afinidade com algumasque se vêem em território normando, imitando outras, inglesas, nomeada-mente abóbadas de nove chaves como a da Capela do Fundador. A capela deD. João I foi concebida ao mesmo tempo ou até um pouco antes do que aCapilla de los Corporales, com ela partilhando soluções estruturais e decora-tivas que reforçam a hipótese, discutida por Jean-Marie Guillouët, de que aprimeira formação de Huguet tivesse tido lugar em França.

Aquilo que sobressai efectivamente, neste quadro, é a novidade da solu-ção escolhida pelo rei e a vanguarda estética em que se inscreve. Na mesmalinha, o edifício congénere que se lhe segue, na Península Ibérica, é a Capelado Condestável D. Álvaro de Luna, adossada ao deambulatório da Catedralde Toledo, que se começa a construir em 1435, quando se concluía a Capelado Fundador. O projecto deste edifício, construído em escassos cinco anos, é

Fig.1 – Alçado poente da igreja e da Capela do Fundador, segundo James Murphy

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de Hannequin de Bruxelas. A Capela do Condestável da Catedral de Burgos,construída entre 1484 e 1494, sob a direcção de Simão de Colónia, culminaráeste tipo de realizações. Como é sabido, a dimensão e especialização deestaleiros como o da Batalha, Toledo ou Burgos, requeriam as melhores com-petências disponíveis, num âmbito geográfico relativamente amplo, que obvi-amente só se podiam obter trabalhando em estaleiros comparáveis. Por essemotivo, conforme alertou já e argumentou, uma vez mais, Jean-Marie Guillouët,para se compreender a presença de soluções projectuais e construtivas sin-gulares em localizações bastante díspares não se pode perder de vista agrande mobilidade de artistas.

A análise e a cronologia dos edifícios da Batalha mostram que Huguetpertencia a uma geração anterior à de Pedro Jalopa, (que era, de facto, a deIsambart), uma vez que está documentado aqui a partir de 1401. Pode tertrabalhado como mestre secundário sob as ordens de Afonso Domingues até1406, sendo certamente esta a razão para um casamento tão invulgar entrerecursos arquitectónicos diversos, que vai mais além da justaposição harmo-niosa de edifícios, incorporando ideias mais antigas em soluções completa-mente originais. Neste quadro, é possível que a Capela do Fundador tenhatido alguma influência no mausoléu de D. Álvaro de Luna, uma vez que aprimeira se concluía enquanto a segunda começava.

O programa foi definido por D. João I, mas influenciado, afinado e concluí-do por seu filho D. Duarte, com salvaguarda do disposto pelo pai, sendo acapela reservada exclusivamente para a família real.

Fig. 2 – Capela do Fundador.Localização de túmulos, altares earmários:1. Túmulo de D. João I e D. Filipade Lencastre.2 a 5. Túmulos dos infantes D.Fernando, D. João, D. Henrique eD. Pedro.A. Altar de D. João I e D. Filipade LencastreB a E. Altares dos infantes D.Pedro, D. Henrique, D. João e D.FernandoF. Armários

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Ao centro, o rei D. João I e a rainha D. Filipa de Lencastre, que repousamnuma única arca conjunta, novidade entre nós, e certamente de influênciainglesa, origem da rainha, com os jacentes esculpidos de mão dada, numaeterna aliança. Nas faces laterais correspondentes, da arca, tomam corajosa-mente o lugar da escultura dois dos mais longos textos epigrafados conheci-dos em sepulturas medievais sob a forma de panegíricos que lembram oapoio divino reservado, em vida, a D. João I e as qualidades propriamentedivinas de D. Filipa.

Na parede sul repousam os príncipes em aparência despojada, semjacentes (com uma excepção extra-programa), nem inscrições: apenas osmotes e as armas dos infantes e respectivas mulheres permitem identificar ostumulados. As edículas a nascente receberam as capelas correspondentesaos túmulos já referidos, e a parede poente os armários que se destinavam aguardar a alfaia litúrgica preciosa com que as capelas haviam de ser sucessi-vamente dotadas. Os altares dos infantes apareciam também em segundoplano em relação ao dos pais, instalado, entre dois pilares, aos pés do respec-tivo túmulo. Além disso, o pavimento do octógono central era sobreelevadoem relação ao piso periférico.

As soluções ditadas por D. Duarte quiseram vincar as virtudes de obedi-ência, lealdade e amor fraternal, sem protagonismos maiores do que os daempresa comum.

3. O panteão de D. Duarte ou Capelas Imperfeitas

No momento em que D. Duarte circunscreveu o sepultamento, na Capelado Fundador, a pais e irmãos, tinha decerto em mente o desenho de umacapela funerária para si próprio e para os seus descendentes. Implantou-o àcabeça da igreja, levando avante a afirmação de poder iniciada já por D. GilAlbornoz, cerca de setenta e cinco anos antes, ao construir uma capelaoctogonal alinhada com o presbitério junto ao deambulatório da catedral deToledo. É claro que já existia uma tradição mais antiga, na Península Ibérica,de capelas funerárias em presbitérios e deambulatórios de igrejas, na qual seinscreve a catedral de Lisboa.

O primeiro programa arquitectónico e a traça correspondente das Cape-las Imperfeitas datam de cerca de 1437, ano em que o rei D. Duarte adquireterreno para a construção. Por conseguinte, foi pensado três anos após aconclusão do mausoléu do pai e outros três antes da conclusão da fachadaocidental da igreja. Um elaborado baldaquino que cobre Cristo em Majestadeentre os evangelistas no tímpano do portal principal, suscita algumas hipóte-

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ses em relação à traça do panteão da dinastia de Avis como um todo dinâmico(Fig. 3). Como é sabido, nesta época, a arquitectura miniatural tanto reproduzobras do seu tempo como antecipa outras. O baldaquino referido mostra asabóbadas de uma capela-mor cujo presbitério é coberto por uma abóbada emforma de estrela adaptada do modelo da Capela do Fundador. Comunica, porseu turno, com um deambulatório de onde irradiam cinco capelas claramenteunidas por corpos triangulares fechados que se parecem com o que, pelaprimeira vez, se encontra, à escala monumental, nas Capelas Imperfeitas.Este dado é deveras sugestivo porque o baldaquino surge como um momentode pensamento entre a solução já praticada no deambulatório de Lisboa e asolução final das Capelas Imperfeitas, integrando esse elemento significativoque é a abóbada em forma de estrela. Seguindo este raciocínio, o mausoléude D. Duarte pode ter sido pensado como um edifício mais tradicional, isto é,um deambulatório com capelas radiantes, acabando por se materializar comoresultado de uma ambiciosa reformulação.

Fig. 3 – Baldaquino que cobre Cristo em Majestade entre os evangelistas no tímpano do portalprincipal da igreja.

Nas duas edículas do átrio das Capelas Imperfeitas, certamente destina-das a túmulos4, os capitéis são todos, à primeira vista, manuelinos. De facto,

4 Esta suposição baseia-se na relação que se verifica entre as edículas tumulares, os nichos de apoioà celebração litúrgica e o espaço destinado a altares e retábulos, nas capelas radiantes do panteão deD. Duarte, devendo situar-se os altares, no caso das edículas do átrio, nas paredes a nascente, em

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os ábacos com intersecções de volumes côncavos e convexos são típicosdesta época. Porém, no aspecto do cesto e do colarete, o capitel poente daedícula norte distingue-se de todos os restantes: a folhagem, túrgida, estádisposta helicoidalmente e o colarete é notoriamente mais desenvolvido. Nosrestantes três capitéis, a folhagem disposta na vertical e o colarete fino obede-cem ao modelo flamejante consagrado na Batalha. A comparação destes trêscapitéis com os das edículas das capelas radiantes permitiu verificar que asua altura é idêntica, excepto no que respeita ao ábaco, mais baixo e tambémreentrante. Uma observação mais atenta revelou vestígios de formas rectilíneasno topo do cesto e na parte de baixo do toro côncavo do ábaco, acusando asubtracção de pedra para o adaptar a um novo gosto. O perfil da construçãorealizada nas paredes norte e sul do átrio, durante o primeiro período, tendoem conta estas características e a dos pilares já assinaladas por Gottschlich(GOTTSCHLICH, 2012), é, por consequência, aquele se apresenta na Fig. 4, reve-lando que desde o primeiro tempo se projectou a demolição das absides dascapelas colaterais ao presbitério para um inovador deambulatório de ligaçãoda igreja ao panteão.

relação visual com as naves laterais da igreja como se de uma projecção dos altares das colateraisse tratasse.

Fig. 4 – Parede norte, e sul, do átrio. Linha divisória entre construção flamejante e a manuelina.

4a 4b

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Neste espaço, o número de colunelos – quatro por pilar – permitia umaabóbada idêntica à do deambulatório da Capela do Fundador que se acomo-da a uma geometria similar, podendo prever-se janelões congéneres dos docorpo exterior deste edifício.

Relativamente à análise do octógono e das suas capelas:Para maior facilidade na análise do octógono e das suas capelas, nume-

ramos estas de 1 a 7, em sentido horário, começando na capela adjacente aogrande portal, a sudoeste (Fig. 5).

Fig. 5 – Planta das Capelas Imperfeitas e da sua ligação à igreja

A capela n.º 7 apresenta na cobertura chaves com decoração pertencen-te ao período flamejante, sendo que a central exibe as armas reais anterioresà reforma de D. João II. Assim, é possível datá-la do período que vai de 1437a 14775, ou seja, até ao final do reinado de D. Afonso V, quando houve umaparagem das obras de pedraria. Aliás, seria a única a ser totalmente concluída

5 A reforma heráldica de D. João II data de 1485, mas, como se viu, em 1477, o estaleiro da Batalhajá era dirigido por um mestre vidreiro, depreendendo-se que a obra de pedraria estaria parada.

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até esta data. A abóbada é do mesmo tipo da capela-mor da igreja, demons-trando o respeito pelo delineamento executado por Huguet, apesar das nervurasnão serem de secção triangular.

Já a capela n.º 3 expõe o momento de paragem da obra flamejante ameio da abóbada. De facto, a chave central apresenta as armas reais anterio-res à reforma de D. João II, mas sem as flores-de-lis, suprimidas posteriormen-te, numa tentativa de actualização. Contudo, as chaves próximas são clara-mente obra manuelina, com a heráldica da esfera armilar e da Cruz de Cristo.

Depois destas evidências e observando um conjunto de outros elemen-tos, como a tipologia dos capitéis, é possível distinguir com bastante rigoronde acaba a obra de uma época e começa a de outra (Fig. 6). Da primeirafase é perceptível a construção alternada dos abobadamentos, certamenteuma estratégia de distribuição de cargas durante o processo de edificação.

Huguet desenhou um grandioso panteão octogonal com sete capelasradiais unidas por originais secções triangulares que funcionariam como sa-cristias. Na traça de Huguet, e tendo em conta a tipologia dos pilares que sevêem a cada ângulo, o octógono central deveria ser fechado por uma abóba-da de nove chaves, em forma de estrela, assente numa torre lanterna comarcobotantes, isto é, empregando uma solução idêntica à da Capela do Fun-dador, mas de dimensões mais monumentais. A inovação dentro do respeitopela tradição é uma constante neste mosteiro. O esquema compositivo dasCapelas Imperfeitas tinha já um antecedente importante em território portugu-ês: o deambulatório da Sé de Lisboa. O arquitecto retomará literalmente osalçados das capelas que Afonso Domingues, na esteira da obra de Lisboa,projectara para a cabeceira da igreja da Batalha.

A localização do panteão, particularmente colocado à cabeceira da igre-ja, expõe uma reconfiguração do poder régio sobre o poder religioso, então

Fig. 6 – Alçado exterior planificado das Capelas Imperfeitas, mostrando a linha divisória entre aconstrução flamejante (até 1477) e a manuelina. X. Tipo de abóbada mais antigo; O. Tipo de

abóbada mais recente.

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alvo de tensões, para além de influências com origem em Castela. FelipePereda sugeriu que as relações de paz entre Portugal e Castela, que favore-ceram o casamento de D. Duarte com Leonor de Aragão, com o apoio de D.Álvaro de Luna, Condestável de Castela, em 1428, podem ter desempenhadoalgum papel na traça das Capelas Imperfeitas (PEREDA, 2005, p. 58). De facto,em 1430 demoliam-se três capelas do deambulatório da catedral de Toledo ecomprava-se terreno para a construção da capela funerária octogonal de D.Álvaro de Luna, começada apenas em 1435 e mais recentemente atribuída aPedro Jalopa e Hanequin de Bruxelas (IBAÑEZ FERNÁNDEZ, 2014, p. 26).

A disposição funerária certamente seguiria o princípio da Capela do Fun-dador, adaptado à nova espacialidade, ficando ao centro o túmulo do casalreal6, em arca similar à de D. João I e D. Filipa de Lencastre, cabendo aosinfantes as capelas radiais.

4. Programa manuelino

Com o rei D. Manuel I, as obras ganharam novo fôlego, sendo possívelque, num primeiro momento, o monarca pretendesse aqui ficar sepultado.

Em 1480, encontramos um diploma que se refere a Mateus Fernandescomo mestre das obras do Mosteiro da Batalha. Diz respeito justamente àdispensa do ofício, por D. Afonso V, que em seu lugar nomeia João Rodrigues,explicitando que este o serviria melhor (GOMES, 2002, II, pp. 80-81).

É mais do que provável que Mateus Fernandes tivesse feito a sua apren-dizagem no estaleiro da Batalha, o maior ao tempo em Portugal e um dosmaiores da Península Ibérica, sob a direcção de Fernão de Évora, em edifícioscomo o claustro de D. Afonso V ou o panteão de D. Duarte.

Sabemos que Mateus Fernandes se encontrava já reintegrado na Bata-lha em 1491, através de diploma em que o rei lhe concede um rendimento fixoanual (GOMES, 2002, II, p. 391). Depois desta data, já no reinado de D. ManuelI, a documentação mostra o protagonismo que o mestre assume na constru-ção de estradas e pontes para a novel vila da Batalha, na fiscalização deoutras especialidades como o vitral, na inspecção de edificações militarescomo os castelos de Almeida, Castelo Rodrigo e Salvaterra, e na inspecção ereparação de edifícios civis em Coimbra. A par dos Arrudas, Mateus Fernandes

6 A tipologia do túmulo conjugal de D. Duarte e D. Leonor de Aragão não se acomoda às edículasexistentes nas capelas radiais e a clara inspiração no modelo antecessor remete para a sua disposi-ção no centro do octógono.

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pertence a uma primeira geração de arquitectos régios com alargada respon-sabilidade territorial, em que avultam as praças-fortes, circunstância que, con-forme veremos, não será de somenos para as características que a sua obrahá-de assumir.

Todas estas circunstâncias parecem conjugar-se com a vontade de D.Manuel I, em que pouco se tem insistido, de reformar a Batalha. Por documen-to de 1508, ficamos a saber do desejo do monarca em que a reforma decreta-da no Capítulo Geral da Ordem dos Pregadores em Roma, em 1501, seefectivasse, o que, na verdade, nunca chegou a acontecer (GOMES, 2002, III, p.132). A mais significativa de todas foi a compartimentação da extremidadenascente da chamada Adega dos Frades para aí se instalar uma casa capitu-lar. Temos que lembrar, neste ponto, que, por determinação testamentária, D.Afonso V foi sepultado, em 1481, na casa do capítulo já existente, ficando atrasladação dos seus restos mortais a aguardar a conclusão do panteão hojeconhecido pelo nome de Capelas Imperfeitas. É provável que a primeira casacapitular da Batalha, cuja abóbada foi concluída no tempo do mesmo monar-ca, como mostram as suas armas e as da rainha D. Isabel, distribuídas pelaschaves secundárias, nunca tenha servido para as reuniões a que se destina-va. Cedo se transformou, pois, num outro panteão, assim permanecendo até1901, data em que os restos mortais ali depositados foram trasladados paranovos túmulos na Capela do Fundador. A construção da abóbada referidadeve ter feito parte da formação de Mateus Fernandes que, na altura, ocupariaum lugar subalterno na hierarquia do estaleiro.

Dos anos em torno de 1501 datará não apenas a obra da casa capitularnova mas ainda a das bandeiras dos janelões do claustro e a do lavabo dorefeitório com o seu pavilhão que representa uma importante actualizaçãoestética dos espaços nobres do convento. Na verdade, tanto a nova molduraçãopolicêntrica de bases e capitéis como a escultura que anima todas as superfí-cies arquitectónicas é, nestas obras, um facto inédito em Portugal. Natural-mente, essas soluções, dotadas de uma originalidade relativa que delas faz oponto de partida para uma arquitectura reconhecível como portuguesa, nãoapareceram do nada.

Contrariamente ao que sucedeu noutras encomendas de D. Manuel I,das quais a mais saliente é o Mosteiro de Santa Maria de Belém, em Lisboa, atarefa projectual reservada ao mestre de obras da Batalha revestiu-se daparticularidade de ter que requalificar edifícios preexistentes e terminar ou-tros. Pensamos que esta circunstância, juntamente com o facto de, à morte deMateus Fernandes, em 1515, o rei ter praticamente desistido da Batalha a

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favor do mosteiro jerónimo (ainda que salvaguardando, mais uma vez emtestamento, a conclusão do panteão fundado por D. Duarte), concorreu paraque a crítica arquitectónica tivesse praticamente ignorado a intervenção desteartista como o resultado de um programa de grande fôlego, aliás, o maisimportante da encomenda régia portuguesa, executado ao longo de duasdécadas, antes justamente do de Belém.

Tendo embora como pressuposto a obra-base de Huguet, MateusFernandes introduziu no edifício em estudo soluções técnicas e plásticas com-pletamente desconhecidas até então em Portugal, que nos permitirão melhorajuizar sobre a sua cultura artística.

No topo do interior da edícula sul do átrio das Capelas Imperfeitas, en-contra-se gravada, em caracteres góticos, «p(er)fectum fuit anno d(omi)nimbcix»7. A inscrição permite constatar que a edícula foi concluída em 1509.

Mateus Fernandes certamente concluiu os pilares do átrio, isto é, elevan-do as suas paredes até à altura máxima, à volta de 1509-1510, anos em quese regista um número mais elevado de pagamentos no estaleiro da Batalha,conforme notou já Catarina Barreira (BARREIRA, 2014, p. 197). Neste contexto,seriam de atribuir à sua traça os janelões, cujas bandeiras apresentam moti-vos afins dos do Claustro Real, não fosse o desenho inusitado do topo dosmesmos, resultante da intersecção de segmentos de recta. Encontramos mai-or afinidade aqui com obra atribuída a Boytac, por exemplo, em algumasjanelas da nave de Santa Cruz de Coimbra. Da presença deste mestre nasobras da Batalha não se conhece actualmente qualquer documento. No en-tanto, o Cardeal Saraiva assinala o seu nome em documentos de 1509, 1512,1514 e 1519, que pôde ainda ler no cartório conventual (S. LUÍS, 1827, p. 19).Por outro lado, sabemos que Boytac residiu na Batalha, onde tinha proprieda-de, tendo sido genro de Mateus Fernandes e seu par na avaliação de obrasimportantes. A própria solução de trompas nos cantos NE e SE da abóbada doátrio é conhecida da obra atribuída a este arquitecto (v.g. capela-mor igreja doConvento de Jesus de Setúbal), tendo podido por ele ser antecipada à obrade João de Castilho. No esplendoroso portal das Capelas Imperfeitas, MateusFernandes apresenta uma exuberante decoração onde se patenteiam porme-nores mudéjares, como por exemplo os arquilhos da base dos colunelos, ou arepetição obsessiva da segunda parte da divisa de D. Duarte – tan yaserei –,

7 A crítica paleográfica desta inscrição e a comprovação da respectiva autenticidade deve-se aoDoutor Saul António Gomes, a quem aqui deixamos o nosso sincero agradecimento.

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à maneira de placas de estuque moldado, modalidade decorativa que, aliás,na mesma época, estava a ser aplicada na renovação manuelina da Charolade Tomar, uma possível contaminação da mais antiga obra de arquitectura--escultura de San Juan de los Reyes, em Toledo.

Em respeito com a tradição, Mateus Fernandes termina as abobadas dascapelas mais adiantadas segundo o modelo flamejante e aproveita as seguin-tes capelas para a introdução de inovações. A grande novidade nas capelasde que agora nos ocupamos é o sistema de abobadamento: desaparece acruzaria de ogivas, dando lugar a arranques duplos, nervuras e chaves se-cundárias. Este tipo de abóbada surge provavelmente pela primeira vez, emPortugal, na capela que designámos com o n.º 6, sendo de cronologia próxi-ma da da capela-mor da igreja de Nossa Senhora do Pópulo, atribuível igual-mente a Mateus Fernandes (SILVA1, 2006). Extraordinária, no contexto ibérico,é a chave central pendente que, com a nova tipologia construtiva, levanta aquestão da origem da formação do arquitecto (SILVA1, s.d.).

Será na torre lanterna inacabada que se fará sentir a força do projecto deMateus Fernandes, inauguradora da retórica militar em edifícios religiosos,como bem mostra o caminho de ronda, por assim dizer, escavado na espessu-ra de contrafortes em cujo lugar, no projecto de Huguet, estariam simplesarcobotantes. É também nesta parte do edifício que encontramos os sinais decomo Mateus Fernandes tinha projectado cobrir o octógono central: arran-ques duplos em cada ângulo interno mostram que o sistema seria idêntico aoque foi utilizado nas capelas radiantes com número par.

Este tipo de solução surge, pela primeira vez, na Península Ibérica, naCapela do Condestável da Catedral de Burgos, construída sob a direcção deSimão de Colónia, ente 1484 e 1494. É, portanto, possível fazer uma ideia decomo seria o espaço interior do panteão de D. Duarte, caso tivesse sido con-cluído. Tendo em conta este facto e a precedência das manifestações dochamado gótico isabelino em relação ao manuelino, é legítimo pensar que,nos dez anos em que esteve ausente da Batalha, entre 1480 e 1490, por tersido dispensado das respectivas funções por D. João II, Mateus Fernandespode ter ampliado a sua formação no estaleiro burgalês.

Importa novamente referir que, possivelmente num primeiro momento, D.Manuel I pretendeu ficar sepultado neste panteão, renovando o programaarquitectónico e decorativo e reorganizando os espaços sepulcrais, com re-serva da zona central da rotunda para si. Deslocaria o túmulo de seus avós, D.Duarte e D. Leonor, para a capela mais nobre, em eixo com o portal, conformea heráldica aplicada nas chaves da abóbada. D. João II e D. Leonor ocupari-

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am a capela que se segue para a direita, o que é confirmado pelos seusescudos, e D. Afonso V e D. Isabel, certamente, a oposta.

D. Manuel I investe fortemente no panteão, com o objectivo de cristalizaruma imagem de legitimidade dinástica (não era filho de rei), através da exaltaçãode seu avô, o rei D. Duarte, e através de um programa de glorificação messiânica.Como tal, o magnífico portal de entrada repete até à exaustão o mote do rei D.Duarte. Porém a omnipresença de D. Manuel I não deixa de se fazer sentir naparte superior com a aplicação da esfera armilar e cruz de Cristo.

Na lanterna inacabada, a decoração apresenta um programa de exaltaçãoe afirmação messiânica do rei, como escolhido por Deus para liderar a Cris-tandade numa dimensão imperial do mundo, evidenciada na repetição daletra «R» e «M», que também se apresentam invertidas, iniciais de «rei» e«Manuel/Maria». Importa referir que nesta altura eram comuns representa-ções com significados dualistas. Deste modo o nome do rei D. Manuel e o deD. Maria de Castela ajustavam-se a esse propósito, justificando o poder divinoe temporal na mesma pessoa: rei Manuel = Emanuel (Jesus); rainha Maria =Regina Maria (Mãe de Jesus).

5. O último programa, ao modo romano

A última tentativa de concluir as Capelas Imperfeitas deve-se ao rei D.João III, nos alvores do Renascimento português. O programa foi desenvolvi-do a partir de 1528 por João de Castilho, mestre com origens biscainhas, econtinuado por Miguel de Arruda. Mais uma vez foram introduzidas alteraçõesàs Capelas Imperfeitas embutindo um balcão renascentista na parte superior,com toda uma nova linguagem. A afirmação régia agora passa pelo impériode Além-mar e, por isso, a curiosa representação, na base do balcão, do bustodo rei ladeado por um índio e um negro (FERREIRA, 2015).

6. Conclusão

O caso da Batalha ilustra, primeiramente, no ideário virtuoso de D. JoãoI e D. Duarte, depois, no de matriz imperial, messiânica e militar de D. ManuelI, e finalmente na dimensão de um império global de D. João III, eloquentesmodos de legitimação do poder régio e de propaganda, que se souberamservir das mais actualizadas soluções arquitectónicas e plásticas colocadas àsua disposição. Do ponto de vista propriamente artístico, mostra com toda aclareza que a circulação de artistas altamente qualificados entre grandes es-

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taleiros continua a ser chave para o entendimento da inovação e das particu-laridades que o gótico tardio assume nos vários reinos ibéricos.

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Como se fez história: Arquitectura funerária do Mosteiro da Batalha

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ARQUITETURA E PRÁTICAS FUNERÁRIAS:A NECRÓPOLE DE SOUTO DA CARPALHOSANA ARQUEOLOGIA DA SUA TORRE SINEIRA

ANTÓNIO GINJA*

Resumo

As Atas Paroquiais do Souto da Carpalhosa, Leiria, dão conta de obrasde reabilitação na igreja matriz desta freguesia ao longo de grande parte doséculo XIX, incluindo na sua torre sineira. A igreja do Souto, documentalmenteregistada desde 1210, recebeu obras de grande vulto em 1602, embora hojeseja difícil perceber vestígios da igreja medieval ou mesmo da igrejaseiscentista, precisamente por conta da envergadura da reforma empreendi-da no século XIX.

Numa tentativa de resgatar o passado dos seus habitantes e da suaigreja, uma sondagem arqueológica foi aberta junto da torre sineira do Soutoda Carpalhosa, pondo a descoberto uma necrópole, sucessivamente utiliza-da desde o século XVI até ao século XIX. Identificaram-se 19 indivíduos, deambos os géneros e diferentes idades; mas, e de forma mais significativa,foram registados e recuperados modos e espólios de enterramento, tantocanónicos como pagãos, que persistiram praticamente inalterados desde oséculo XVI até à atualidade.

Partindo dos dados identificados nesta escavação arqueológica, surgiuum novo olhar sobre tradições seculares de inumação e, a partir destas, sobreas crenças perante a morte partilhadas pelos antepassados desta povoaçãoleiriense. Da relação arqueológica estabelecida entre algumas inumações ea sapata da torre, revelaram-se ainda novas perspetivas sobre alguns dosaspetos histórico-artísticos da sineira da igreja matriz do Souto da Carpalhosa.

* Arqueólogo e historiador da arte, Doutorando, Faculdade de Letras e Centro de Estudos Sociais daUniversidade de Coimbra. Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

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Introdução

Se é verdade que a natureza humana se revela na mudança, como insis-te Ovídio no seu Metamorfoses1, não é menos verdade que raramente asmudanças decorrem de efetivas ruturas abruptas com os modelos passados.Pelo contrário, frequentemente os comportamentos, atestados pelos mais va-riados vestígios arqueológicos, históricos e artísticos, se perpetuam no tempo.Os vestígios arqueológicos descobertos na igreja matriz de Souto daCarpalhosa2 haveriam de comprovar precisamente a continuidade de práti-cas funerárias e arquitetónicas, desde o século XVI a finais do século XIX.

Por tradição, os romanos enterravam os seus defuntos em túmulos emausoléus, dispostos ao longo das vias de acesso à cidade.Consequentemente, os transeuntes memoravam os sepultados através daquase inevitável leitura das suas epígrafes funerárias. «Gravar o nome faz(ia)parte do rito e incarna(va) um mito também: […] a imortalidade ansiada»(ENCARNAÇÃO, 2006, p. 123). O desejo de imortalidade memorial, alcançadapela invocação nominal, perpassou os tempos. Atualmente, por exemplo, con-tinua a verificar-se nos cemitérios portugueses cristãos, onde, por entre fórmu-las tumulárias mais ou menos diversificadas, raramente se ausenta o nome dosepultado.

«para que, graças a ti, eu continue a viver depois da minha morte […], paraque quem quer que veja […] leia também, quer queira quer não, o meunome»

SatyriconPetrónio, séc. I

Já em período medievo, os mortos eram sepultados no solo sagrado dosadros, quando não no próprio interior de igrejas, ermidas e cenóbios. O cristi-anismo trouxera, em matéria de imortalidade, renovada aspiração espiritual,garantindo a vida eterna, mesmo para além da morte, a todos que comungas-sem com Cristo. A proximidade a Cristo, materializada na adjacência espacialdo sepulcro ao templo cristão, conduziu naturalmente à escolha do adro como

1 OVÍDIO, Metamorfoses... Lisboa, Cotovia, 2007.2 No âmbito do seu 8.º centenário, a Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa, Leiria, promoveuvárias investigações arqueológicas, históricas e etnográficas, cujos resultados seriam publicados em2013. As intervenções arqueológicas, desenvolvidas sob codireção do autor, incluíram uma sonda-gem arqueológica junto à torre sineira da igreja matriz de Souto da Carpalhosa.

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local de sepultamento. Salvo algumas excepções, na generalidade reserva-das à elite local, estes enterramentos decorriam anonimamente, pouco maissendo reservado ao defunto para além de um incógnito covacho. Se vivos emortos, «grandes e pequenos»3, seriam julgados no dia do Juízo Final, nãoera necessário mais do que comparecer ao julgamento. A esperança de queos atos protagonizados em vida garantissem a eternidade dispensava qual-quer protagonismo na morte.

Todas as condutas humanas, decorridas em período romano, medievalou em qualquer outro momento histórico, são perante a morte preponderan-tes, como se a vida se definisse algures entre a memória do que guardamosdo passado e a memória que pretendemos projetar para o futuro. Indepen-dentemente da grandeza ou da simplicidade com que as sociedades passa-das tenham aquinhoado a morte dos seus defuntos, há na leitura dos seushábitos funerários revelações que, pejadas de tradição, de convicções e dememória, nos aproximam afinal muito mais das suas vidas.

A igreja e o Souto

A promoção do povoamento medieval do território leiriense ficou, no de-curso da Reconquista, a cargo do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, querecebeu diretamente de D. Afonso Henriques os coutos do Louriçal e da matade Aljazede, assim como todo o vasto território sob domínio do castelo deLeiria4. Para assegurar estas possessões, os crúzios promoveram a sua colo-nização e cultivo, mediante aforamentos. Alguns casos documentados de-monstram como os colonos se serviram do direito de presúria para ocupar“terras de ninguém”, que depois de arroteadas vendiam a Santa Cruz deCoimbra5. O limite meridional do priorado crúzio, em meados do século XII,posicionado cerca de três quilómetros a norte da atual freguesia do Souto6,poderá assim ter sido alargado tanto por determinação individual como por3 Apocalipse, 20:12. Cf., por exemplo, A Bíblia Anotada...4 Aljazede e Louriçal foram doados em 1161 e 1166 (COELHO, 1989, p. 55). A doação dos direitoseclesiásticos da região de Leiria a Santa Cruz de Coimbra (MARTINS, 2003, pp. 251-253) foi contestadapela cúria episcopal de Coimbra, atestando o conflito entre as duas instituições a relevância dasrendas das igrejas da região de Leiria (GOMES, 1992, pp. 170-196).5 Maria Helena da Cruz Coelho cita alguns exemplos ocorridos entre 1162 e 1165, como o de PedroClavus, que vendeu a Santa Cruz de Coimbra uma herdade que detinha junto de Aljazede (COELHO,1989, pp. 42-56).6 O limite sul do priorado de Santa Cruz de Coimbra no final do século XII foi definido pela mata deAljazede, entre a ribeira de Carnide e a lagoa da Ervedosa (Ervideira?) (IDEM, ibidem: 55). Este limite

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resolução monacal. Não será por isso de estranhar que na mais antiga refe-rência ao Souto, em documento de 1210, se descreva precisamente a doaçãode um terreno na localidade, feita por vários moradores a Santa Cruz deCoimbra, com o intuito de nele erguerem uma igreja7. São os mais recuadosindícios da criação de uma igreja no Souto da Carpalhosa, e simultaneamenteum precioso testemunho do seu processo de fixação populacional.

Em busca do passado

Em busca do passado do Souto foi aberta no adro da sua igreja matrizuma sondagem arqueológica. Sendo certa, a priori, a presença de inumações,conhecidos que são os adros de igrejas antigas como locais de enterramento,ambicionava-se também, dada a elevação do promontório ocupado pela igre-ja, alcançar níveis arqueológicos mais recuados. Pese embora ter sido atingi-do o geológico, a escavação desta sondagem não recuaria além da segundametade do século XVI.

Sob um nível de aterro, compreendido entre os séculos XIX e XX, encon-trava-se o primeiro nível de enterramentos, compreendido entre os séculos

7 O documento, que em certas plataformas tem erradamente vindo a ser remetido para 1218, referea preexistência de uma capela no Souto, cujo capelão, Stephanus, era religioso de Santa Cruz (GOMES,2013, p. 101).

Imagem 1 – Igreja matriz de Souto da CarpalhosaFonte: o autor

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XVII e XIX. Em decúbito dorsal e orientados de forma canónica, treze indivídu-os ocupavam uma área pouco superior a quatro metros quadrados. Apenasdois indivíduos haviam sido sepultados em caixão, ao passo que os demaishaviam sido enterrados dentro de simples covachos. Um indivíduo conserva-va, sob as ossadas das mãos, uma moeda, com datação compreendida entre1557 e 1583.

Sob este primeiro nível de enterramentos desenvolvia-se uma camadade terra, que, por sua vez, selava um nível de enterramentos mais antigo,prolongado por debaixo da torre sineira da igreja. Neste nível, compreendido

Imagem 2 – Sondagem arqueológica. Planta do primeiro nível de enterramentosFonte: o autor

Imagem 3 – Sondagem arqueológica. Planta do segundo nível de enterramentosFonte: o autor

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entre a segunda metade do século XVI e meados do século XVII, foramdetetados cinco indivíduos. Todos haviam sido enterrados em decúbito dorsale orientados canonicamente. Dois conservavam ainda, entre as ossadas dassuas mãos, moedas enquadráveis entre 1438 e 15578.

Treze indivíduos, dos dezoito identificados, foram integralmente escava-dos: sete adultos (quatro do género masculino e três do género feminino), comidades entre os dezasseis e os cinquenta anos; e seis não adultos, com ida-des entre seis meses e os quinze anos. Não existia diferenciação espacialentre inumações de adultos e de não adultos ou entre indivíduos masculinose femininos. Pelo modo como vários enterramentos surgiram cortados, deduz-se que o espaço do adro da igreja tenha sido sucessivamente utilizado comolocal de enterramento para os antepassados do Souto.

Práticas funerárias: permanências e ruturas

«E como pela morte passastes,Tereis que passar o rio»

Auto da Barca do InfernoGil Vicente, 1531

Da barca mesektet, dirigida pelo mundo subterrâneo de caos e de escu-ridão pelo deus egípcio Ámon-Rá, a Flégias, que na Divina Comédia de Dantenavegava a sua barca pelo rio Estige, passando pelo rio japonês Sanzu, cujatravessia as almas deviam empreender para alcançar o mundo dos mortos, aslendas que associam a morte a uma passagem encontram-se enraizadas emdiversas culturas. Na mitologia greco-romana era Caronte, o barqueiro domundo inferior, Hades, quem estava encarregue de transportar as almas atra-vés dos rios do esquecimento, o Estige e o Aqueronte. Mas Caronte exigiapara tal tarefa o respetivo pagamento, sem o qual as almas eram condenadasa deambular sem destino, nem vivos nem mortos, como almas penadas. Acrença de que as almas penadas, lémures na Antiga Roma, vagueavam naterra assombrando os vivos como castigo por não terem como pagar a traves-sia, levava os antigos romanos a sepultar os seus defuntos com moedas, talcomo faziam os antigos gregos e, nos enterramentos tradicionais japoneses,se faz ainda hoje9.

8 Para mais informações sobre esta escavação arqueológica, cf. ANTÓNIO GINJA e MÓNICA GINJA, Souto:Subsídios...9 Sobre mitologia greco-romana, cf., por exemplo, JOËL SCHMIDT: Dicionário...; ou ainda PASCAL MURAIL:

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Registada no Souto da Carpalhosa desde meados o século XVI até me-ados do século XIX, esta ocorrência remanesce naturalmente das práticasfunerárias da antiguidade clássica, posto o legado cultural que nos deixaramgregos e romanos. Independentemente de advir da influência direta dos anti-gos gregos, romanos ou por força dos revivalismos renascentistas, prevale-ceu ao longo de vários séculos, preservando em enterramentos cristãos umainegável vertente pagã. O costume de fazer acompanhar o inumado com mo-edas, assente na crença na morte como uma passagem, enraíza-se no entan-to numa imagética transcultural, que como tal não tal pode ser vista comoexclusivamente clássica.

«Eu sou a luz do mundo;aquele que me segue, não andará em trevas, mas terá a luz da vida»

João, 8:12

Por outro lado, no Livro do Génesis, uma das primeiras criações de Deusé a luz, enquanto no Apocalipse, é sobre o sol que um anjo anuncia oArmagedom (Génesis, 1:3; Apocalipse, 19:17). Ao longo dos textos bíblicos,são recorrentes as associações entre a luz do sol e as principais entidadesdivinas: Deus, Jesus e o Espirito Santo. Esta associação, porém, está longe deser exclusiva das confissões judaico-cristãs. Amón-Rá, por exemplo, trans-portava o sol na sua barca ao longo de toda a noite, Hélio conduzia o sol numaquadriga pelo firmamento grego, e todos os dias Shamash atravessava com osol o céu babilónico, desde o portão oriental até ao portão ocidental10.

A relação entre as principais potestades e o sol foi desde os seusprimórdios assimilada também pelo cristianismo, relação que alcançaria umdestacado protagonismo com as catedrais góticas das primeiras décadas doséculo XIII11, para não referir a infinidade de templos cristãos erguidos, nasmais variadas épocas, segundo o eixo este-oeste, com o altar posicionado noextremo oeste em articulação com o nascer do sol.

Biologie... Sobre aspetos culturais tradicionais no Japão atual, cf., por exemplo, SANDRA BUCKLEY (ed.):Encyclopedia...10 Vide acima JOËL SCHMIDT; ou ainda LOUIS-JOSEPH DELAPORTE, La Mésopotamie...11 Cf., por exemplo, GEORGES DUBY: O tempo das catedrais...

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A orientação canónica verificou-se também, sem exceção, em todos osenterramentos detetados na necrópole do Souto da Carpalhosa, prática que semanteve desde meados do século XVI a meados do século XIX. As sepulturaseram abertas segundo eixos este-oeste e os corpos depositados com o rosto volta-do para nascente, garantindo que todos os verdadeiros cristãos veriam Cristo nasua segunda vinda, no preciso momento em que se iniciasse o Juízo Final.

Por meados do século XIX, no entanto, sopravam já em Portugal os ven-tos do liberalismo, que no afã almejo de separar o Estado da Igreja, impuse-ram o final dos enterramentos nos adros das igrejas. A rutura com o costumefoi acolhida pela sociedade portuguesa com grande controvérsia. Nem o cleronem o povo viam com bons olhos a desproteção imposta aos seus finados,enterrados para lá dos limites do solo sagrado das igrejas12. Não existemporém notícias de contestação à nova norma no Souto, cuja freguesia conta-va, já em 1869, com cinco cemitérios murados e de porta fechada, «bemculcados não sentrais» (MOREIRA, 2013, p. 209). Não obstante, é fácil imaginar

Imagem 4 – Sondagem arqueológica, indivíduo 10Fonte: o autor

12 Recua a 1835 a lei que determinou a obrigatoriedade de construção de cemitérios públicos emPortugal, embora a proibição de enterramento nos adros das igrejas fosse decretada apenas em 1844.Cf., por exemplo, MARIA DE FÁTIMA BONIFÁCIO: História...

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que o adro da igreja do Souto possa ter continuado a receber algunsenterramentos mesmo depois de institucionalizada a proibição. Há mesmomemória, partilhada pelos membros mais velhos da freguesia, de enter-ramentos no adro, ainda no início do século XX, sobretudo quando a febrepneumónica assolou a região.

De quando, a torre?

A sapata oeste da torre sineira da matriz do Souto, também ela posta adescoberto pela escavação, suscitou alguns cuidados interpretativos, sobre-tudo pelo modo como, ao cortar e cobrir enterramentos compreendidos entreos séculos XVI e XIX, teria que ter sido erguida já em período bastante tardio.No entanto, havendo notícias de uma torre anterior e existindo na torre atualpedras mais antigas, poderá a sineira do Souto resultar da reforma de umatorre anterior? De quando será afinal a construção desta torre sineira?

O Couseiro, obra redigida cerca de 1650, revela que a igreja do Souto«por ser muito antiga, se mandou reformar e accrescentar, e toda foi feita denovo, como ora é, com seu alpendre, e se acabou no anno de 1602 e se deulicença para n’ella se dizer missa no de 1603» (O Couseiro, 1868, p. 138,139). Embora parca em informações, esta referência reveste-se de assaz va-lor, ao indicar uma reforma do edifício original, ações substancialmente distin-tas da demolição e reconstrução total sugeridas em algumas plataformas con-sultadas (PERDIGÃO e MATIAS, 2003).

Entre 1583 e 1604, altura para a qual O Couseiro remete a reforma daigreja medieval do Souto, liderava o bispado de Leiria D. Pedro de Castilho13,promotor do 2.º Sínodo Diocesano de Leiria, realizado em 1598. As respetivasConstituições Sinodais, de 1601, enumeram as normas a adotar pelas paró-quias leirienses, em consonância com a doutrina tridentina. Não admira porisso que, procurando um ajustamento aos novos preceitos sacramentais, gran-de parte dos templos paroquiais da região de Leiria remonte precisamente àprimeira década do século XVII, como é o caso do Souto14.

13 Pedro de Castilho, filho do arquiteto Diogo de Castilho, nasceu em Coimbra, onde cursou e selicenciou em Teologia e Cânones, em 1572. Além de bispo de Leiria, exerceu vários cargos deprimordial relevância, como vice-rei de Portugal, inquisidor-geral, capelão-mor, prior de Guimarães eadministrador do Crato e de Alcobaça (CRISTINO, 2005, pp. 37-42).14 Uma pesquisa à base de dados Sistema de Informação para o Património Arquitetónico (SIPA), emmonumentos.gov.pt, atesta o «enorme movimento de construção de novos templos em toda adiocese» referido por Luciano Cristino (CRISTINO, 2005, p. 43).

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A sua torre sineira do Souto ergue-se até aos arcos sineiros de formasimilar à das suas congéneres regionais: paredes isentas de ornamentos,planta quadrangular, vãos sineiros em volta completa e de molduras lisas.Acima dos arcos sineiros, todavia, a torre destaca-se das suas vizinhas. Entrequatro pináculos, encima-a um coruchéu de traçado singular, com arestascontracurvadas, óculos ovalados, remate em friso triangular coberto por umacúpula octogonal. A singularidade deste coruchéu, que não encontra equiva-lente em toda a freguesia, impôs uma procura de casos similares na região,mas a cada templo visitado, dentro e fora da freguesia, saía reforçada a pecu-liaridade da sineira do Souto. No início do século XIX, os coruchéus visitados,como o da sineira de Colmeias, de 1806, parecem organizar-se em torno desoluções mais simples, sob formas prismáticas de base estrangulada. Simila-res, por exemplo, à sineira da Sé de Leiria, de 177215, estes casos aparentamfiliar-se numa tradição mais antiga, ainda setecentista. No final do século XIX,por seu turno, os casos visitados passam a organizar-se em torno de formasmais orientalizantes, lembrando vagamente cúpulas bulbosas, como nos ca-

Imagem 5 – Sondagem arqueológica, indivíduo 11. Sapata da torre sineira, à direitaFonte: o autor

15 A cronologia da torre sineira de Colmeias deduz-se a partir de inscrição no lintel da sua porta.Embora a construção da Sé de Leiria tenha sido iniciada em 1559, a sua torre sineira seria erguidaapenas em 1772 (FIGUEIREDO, 2013).

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sos de Bajouca e de Vale da Pedra, de 1888 e 189816. Nestes casos, porém, ainspiração poderá melhor compreender-se à luz dos revivalismos que marca-ram a arquitectura ocidental do século XIX17.

Ora, erguida entre 1862 e 187918, a torre sineira do Souto coroa-se comum coruchéu estilisticamente distante de quase todos os observados na re-gião19. Na verdade, o coruchéu da sineira do Souto, cujas formas denunciamum desenho mais erudito, aproxima-se das linhas gerais pelas quais se defi-ne o barroco italiano20. Portugal, onde o barroco prevaleceu sobretudo entre1640 e 175021, possui vários testemunhos de sineiras de tendência barrocaitaliana. Entre eles contam-se, por exemplo, a sineira da Capela Real doPalácio da Ajuda, de 1792, por Manuel Caetano de Sousa, e os campanáriosdo Convento de Mafra, de Frederico Ludovice, erguidos em 172822. O mesmosucede com outros casos setecentistas, desta feita sob influência de SantaCruz de Coimbra, como sejam os casos das sineiras das matrizes de Tocha,Góis e Buarcos23. Dado que a construção da torre sineira do Souto remonta aperíodo que se afasta tanto da prevalência do barroco italiano como dos exem-plos citados, só poderá resultar da apropriação de características arquitetónicasque à data da sua construção se encontrariam já ultrapassadas, constituindocomo tal um revivalismo.

Mas se a arquitetura e a documentação relativa à sineira do Souto con-correm para uma solução revivalista da segunda metade do século XIX, ou-

16 Da antiga igreja matriz de Bajouca, resta apenas a sua torre sineira, datada por epígrafe de 1888.A capela de Vale da Pedra, foi erguida a partir de meados do século XIX, com intervenções de vultoem 1869 e 1898, ano em que se andava «fazendo de novo» (BAPTISTA, 2013, p. 427).17 De construção revivalista arábica, as cúpulas bulbosas do Campo Pequeno de Lisboa remontam a1889 (FIGUEIREDO, 2008; SILVA, 1992).18 O início da construção da sineira do Souto encontra-se referido na ata da Junta da Paróquia de 3 deFevereiro de 1862. Em 1877, na ata de 25 de Maio, referem-se ainda as obras na torre. Deduz-se quetenha sido concluída antes de 1879, ano em que a ata de 24 de Junho refere ser função do sacristão«tocar o sino» (MOREIRA, 2013, pp. 202-218).19 Com ligeira aproximação, por exemplo, à sineira de Marrazes, de 1845 (PERDIGÃO, 1998).20 Em A arte barroca em Itália, por exemplo, encontram-se definidas as principais característicasarquitetónicas do barroco italiano, compreendidas para Itália entre 1625 e 1675 (PIJOAN, 1972, p. 4).21 O barroco em Portugal baliza-se, genericamente, entre a Restauração e a morte de D. João V, ouseja, entre 1640 e 1750 (BORNGÄSSER, 1997, p. 112).22 Informações recolhidas na base de dados SIPA (FIGUEIREDO, 2007; VALE e GOMES, 1994).23 Reformada na segunda metade do século XVIII (Cravo, 1993; Jesus, 1999), a matriz de Tochajunta-se às reformas decorrentes do terramoto de 1755 nas matrizes de Góis (ALÇADA, 1984; CRAVO,1993) e de Buarcos (MATIAS e SILVA, 2004).

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tros aspetos porém parecem sugerir a integração de elementos arquitetónicosmais antigos. Quando uma ata de 1877 refere, por exemplo, o aproveitamentode «pedra lioz (…) da torre velha»24 na construção da nova torre, não secomprova apenas a reutilização de materiais construtivos antigos mas tam-bém a preexistência de uma torre velha, cuja localização hoje se desconhece.No interior da torre atual, são visíveis várias peças de cantaria calcária (pedralioz) em evidente contexto de reutilização, das quais se destaca uma lajeepigrafada, utilizada como padieira de um pequeno vão de janela. A leitura daepígrafe, bastante dificultada pelo desgaste da peça, parece remetê-la para oséculo XVI, o que, a confirmar-se, a recua para período anterior ao da reformade inícios do século XVII, descrita em O Couseiro. Curiosamente, a únicapalavra que com alguma clareza se consegue ler nesta epígrafe, adro, pareceremetê-la para uma estrutura localizada no adro da igreja.

24 Ata da Junta da Paróquia (10 de Junho de 1877).25 Transcrição de José d’Encarnação, cuja amabilidade agradeço.26 Cf., por exemplo, ANTÓNIO FILIPE PIMENTEL: A morada da sabedoria...; JOSÉ CUSTÓDIO VIEIRA DA SILVA:Paços medievais...; e ainda, PEDRO DIAS e ANTÓNIO MADEIRA PORTUGAL, Casa de Sub-Ripas.

V[?] OR LEIODI · ADRo · CV

AIA25

Também a escada em caracol no interior da torre parece atribuir-lhe maiorantiguidade. Incontestavelmente, surgem na arquitetura portuguesa em temposbastante recuados. Vieira da Silva, por exemplo, recua esta solução para perío-do medieval tardio, identificando-a, por exemplo, no quatrocentista Paço dosDuques de Bragança, em Guimarães. António Pimentel remete o exemplar dopiso inferior da Biblioteca Joanina de Coimbra para período forçosamente ante-rior ao manuelino. Também no Paço de Sub-Ripas, em Coimbra, da primeirametade do século XVI, se encontra uma escada em caracol26.

Imagem 6 – Epígrafe nointerior da torre sineira,à esquerda, e respetivatranscrição, à direitaFonte: o autor

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Posto que utilizadas desde tempos recuados, as escadas em caracolterão contudo permanecido em uso até período bem recente, pelo menos noconcernente ao interior das torres sineiras. Na região do Souto, registam-secasos nas mais variadas épocas, desde os quinhentistas até aqueles que,sem margem para dúvida, recuam aos últimos anos do século XIX. Salvaguar-dadas algumas diferenças de materiais ou de desgaste, por exemplo, todosse assemelham ao tipo construtivo verificado na torre do Souto. O exemplar dasineira de Igreja Velha, por exemplo, com grande probabilidade quinhentista,difere pouco do da igreja de Barreira, do século XVIII, ou dos que se erguemem Colmeias e em Vale da Pedra, de 1806 e 1898.

A abertura da sapata de fun-dação da sineira do Souto, poroutro lado, cortou dois enterra-mentos, datados entre os sécu-los XVII e XIX, e cobriu um tercei-ro, da segunda metade do sécu-lo XVI. Estas relações estratigrá-ficas não demonstram senão queos enterramentos em causa exis-tiam já no momento de aberturada vala de fundação, comprovan-do que a construção da sapatanão poderá ser senão posteriora meados do século XIX. Assim,se algo subsiste na atual torresineira que, para além dos mate-riais segundo a ata de 1877reaproveitados, remonte à primi-tiva torre sineira, não será a sa-pata nem mesmo a escada emcaracol. Um documento de 1643confirma de resto que, à época, o acesso à torre se faria através de umaescada em madeira27.

Imagem 7 – Interior da torre sineiraFonte: o autor

27 Livro das Visitações, 1600-1645: fl. 21 v.º e 31 (GOMES, 2013, p. 107).

Arquitetura e Práticas Funerárias – A necrópole de Souto da Carpalhosa na arqueologiada sua torre sineira

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Tabela 1 – Escadas (cronologias, tipos e dimensões) em algumas igrejas da região de LeiriaFonte: o autor

Arquitetura e práticas funerárias no Souto: uma leitura final

A pequena área escavada no adro do Souto da Carpalhosa pôs a desco-berto uma quantidade significativa de vestígios do passado, preponderantespara o conhecimento de que dispomos hoje sobre os antigos habitantes destalocalidade, sobretudo como encaravam a morte, ou melhor, como encaravama vida para além da morte. Inadvertidamente, a exposição de parte da sapatada torre sineira, e em particular a forma como cortava e cobria certosenterramentos, levantou dúvidas quanto à cronologia de edificação deste queé, há muito, um elemento indispensável das igrejas cristãs. Subir ao topo datorre sineira do Souto conduz-nos. por isso, a uma ilusória viagem pelo passa-do. Mas a escada em caracol, do século XIX, apenas simula um modelo que,embora antigo, prevaleceu útil ao longo de séculos. A meia altura da torre,uma pedra lavrada, testemunho de um qualquer edifício ou lápide perdidos,prevalece também ela, agora como padieira de uma janela. Paradoxalmente,adro é a única palavra legível, remetendo-nos de volta ao adro da igreja, à suanecrópole, àqueles que ali enterraram os seus defuntos e às suas crenças

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que, prevalecendo ao longo de séculos, nos são hoje dadas a conhecer.Atingido o topo, coberto por um coruchéu barroco de finais do século XIX,percebe-se como, afinal, práticas funerárias e modelos arquitectónicos atra-vessam culturas e tempos, prevalecem e se revisitam.

Se é certo que, como frisado por Ovídio, é da natureza humana a mudan-ça, uma subida à torre do Souto mostra como, afinal, as mudanças podem serfeitas muito mais de prevalências do que de ruturas.

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Constitviçoens Synodaes do Bispado de leiria, Feytas, & ordenadas em synodo peloSenhor Dom Pedro de Castilho, Bispo de Leiria, Coimbra, Por Manoel d´AraújoImpressor delRey N. S. na Uniuersidade de Coimbra, 1601.

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Arquitetura e Práticas Funerárias – A necrópole de Souto da Carpalhosa na arqueologiada sua torre sineira

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ENTERRAR E REZAR. A MISERICÓRDIA DE POMBALE A ASSISTÊNCIA AOS MORTOS

(SÉCULOS XVII-XIX)

RICARDO PESSA DE OLIVEIRA*

* Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias,Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal.

1. As Santas Casas dedicaram enorme atenção à questão da morte e aosserviços fúnebres. Com efeito, o enterro dos mortos e a oração pelos defuntosconstituíram obras de misericórdia que todas praticaram, chegando algumasa declarar ser essa a sua principal obrigação. Detentoras do monopólio douso da tumba (1593), proporcionavam enterro gratuito aos pobres, aos seusmembros e respetivos familiares diretos; disponibilizavam, mediante paga-mento, os seus serviços a indivíduos estranhos à corporação; e recolhiam esepultavam os restos mortais dos justiçados (ARAÚJO, 2000, pp. 294-297 e528-534; ARAÚJO, 2007, pp. 5-22).

Neste texto pretende-se estudar a atuação da Misericórdia de Pombal –irmandade com existência documentada em 1628 (OLIVEIRA, 2016) – em maté-rias fúnebres, entre meados do século XVII e finais do XIX. Entre outros aspetos,importará analisar os indivíduos que estava obrigada a sepultar, o mobiliáriofúnebre que possuía, as normas estabelecidas nos compromissos, a impor-tância dos enterros enquanto fonte de receitas, os problemas que os acompa-nhamentos fúnebres originaram e os moldes em que se processou a assistên-cia espiritual aos defuntos, procurando apurar mudanças e continuidadesrelativamente a esta matéria.

2. O enterro dos irmãos, sobretudo os de primeira condição, assumia umformato distinto dos demais. Além de uma tumba específica, a comparênciaobrigatória de todos os membros da instituição, que deviam envergar osbalandraus, transportar os brandões, os círios, a bandeira e as restantes insíg-nias conferiam ao ato grande aparato e solenidade. Pese o funeral dos irmãosser assegurado gratuitamente, alguns confrades não deixaram de conceder

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1 Leiria, Arquivo Distrital de Leiria (ADL), Registos Notariais, Pombal, V-103-E-2, fol. 21.2 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-9, fols. 64v-68v.3 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-19, fols. 21-27v.4 Leiria, ADL, Registos Paroquias, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fol. 117.

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esmolas à instituição, no momento da morte. Foi o caso do pombalense Manu-el Francisco Lampreia, falecido a 7 de outubro de 1658, que, no seu testamen-to, declarou ser «irmão da Santa Caza da Mezericordia desta villa e semembarguo disso deixo a dita Santa Caza de esmola dous mil reis»1.

O privilégio de ser enterrado como irmão compreendia as esposas ouviúvas daqueles, desde que não contraíssem segundo matrimónio com ele-mento externo à irmandade, prerrogativa que não deixava de ser evocada nomomento de instituir as últimas vontades. A 1 de fevereiro de 1727, D. MarianaSerrão da Fonseca, viúva de Domingos Antunes, antigo mesário da SantaCasa, declarou querer ser sepultada na matriz de S. Martinho, junto dos restosmortais do marido, devendo ser amortalhada no hábito de S. Francisco «e porsima do meo capello me poram hum veo preto e asim sera levado a sepulturaacompanhado com a pompa e bandeira da Santa mizericordia como mulherque sou de irmam»2. Da mesma forma, a 12 de fevereiro de 1761, D. TeresaNeves de Oliveira Craveiro, viúva de um antigo capitão-mor de Pombal emesário da instituição, determinou que, na ocasião da morte, o seu corpofosse sepultado na antiga igreja de Nossa Senhora do Cardal, junto do altarde Nossa Senhora das Neves, sendo «levado na tumba da Mizericordia comomulher que sou de irmão da dita Santa Caza»3.

Os filhos dos membros da irmandade usufruíam de semelhante direito,ainda que, por norma, fossem impostos determinados limites, relativos aoestado matrimonial e à idade do falecido (SÁ, 1997, p. 105). No que toca àSanta Casa de Pombal, foi possível verificar que, por vezes, eram abertasexceções. O caso que se segue parece comprovar essa ideia. A 17 de dezem-bro de 1698, Manuel, filho do pombalense Simão Lopes, já defunto, provavel-mente antigo irmão da confraria, foi sepultado na Misericórdia «aonde o leva-rão em hua alcatifa a consentimento do provedor que entam hera Luiz Botelhode Mello desta dita villa sem embargo de ser de idade de trese annos e seismezes o defuncto»4.

Quem não fosse irmão podia, mediante pagamento, solicitar a utilizaçãoda tumba e o acompanhamento da irmandade. De entre os vários exemplospossíveis, refira-se o do padre Filipe Leal de Abreu, clérigo do hábito de S.Pedro, morador na vila de Pombal, que no seu testamento, lavrado a 21 demaio de 1703, manifestou desejo de ser sepultado na matriz de S. Martinho e

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ser «levado na tumba da Mizericordia da mesma villa para o que se dará aesmolla costumada»5. Para a Época Moderna, o valor do serviço jamais foireferido6.

Estudos já realizados evidenciam que o volume de indivíduos auxiliadospelas Misericórdias no momento da morte era bastante superior ao dosesmolados de forma regular (ARAÚJO, 2000, pp. 300-301 e 535). Para Pombal,se a ausência de documentação não permite realizar semelhante análise, osassentos de óbito da paróquia não deixam de atestar traços dessa assistên-cia, evidenciando que a instituição sepultava os pobres em dois espaçosdistintos: a sua igreja e o adro de S. Pedro. A 21 de outubro de 1689, foisepultado no adro dessa igreja um passageiro que perdera a vida no lugar daVenda de Baixo «e a Misia o enterrou de esmolla»7. Anos depois, a 22 de julhode 1711, Domingas Gaga, solteira, moradora em Pombal, doente mental, quefalecera em casa, foi sepultada na Misericórdia «aonde lhe derão sepulturapelo amor de Deos por ser pobrissima e mendicante»8. Mais tarde, a 17 dedezembro de 1749, um pobre, surdo e mudo, foi encontrado morto num pa-lheiro no lugar do Tinto, tendo sido sepultado «de graça e por esmola na igrejada Mizericordia»9. Por sua vez, a 8 de outubro de 1781, a Santa Casa, porcaridade, mandou sepultar no adro de S. Pedro, o corpo de uma Maria Rosa,natural do bispado de Tui, Galiza, que procedendo de Leiria, num carro aexpensas da Misericórdia leiriense, morrera no lugar de Travasso10.

3. Os registos notariais demonstram que número considerável de indiví-duos elegia a igreja da Misericórdia como última morada, designadamenteirmãos e suas esposas11. Por exemplo, a 16 de maio de 1756, José Gaspar,morador em Santorum, irmão da Santa Casa, ordenou que, aquando de suamorte, a sua mulher mandasse sepultar o seu corpo na igreja da instituição a

5 Lisboa, Arquivo Nacional Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Corte, Estremadura e Ilhas, mç.644, doc. 6.6 Sobre os preços em vigor noutras Misericórdias, cf., entre outros, ARAÚJO, 2000, pp. 302, 539-540;LOPES, 2000, vol. 2, p. 122; PEREIRA, 2008, pp. 223-227.7 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fol. 33v.8 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fols. 229-229v.9 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-51, fol. 37v.10 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-52, fol. 164.11 Não é possível apurar a percentagem de irmãos que escolhia ser sepultada na Misericórdia. Noutrosespaços, os irmãos não demonstravam essa preferência, cf. SÁ, 1997, pp. 250-251; ARAÚJO, 2000, p.570; PEREIRA, 2008, pp. 232-233.

Enterrar, rezar e cantar. A Misericórdia de Pombal e a Assistência aos Mortos (Séculos XVII-XIX)

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que pertencia12. No mesmo ano, Manuel Mendes e sua mulher, Maria Jerónima,moradores em Água Travessa, declararam ambos querer ir a enterrar na San-ta Casa «donde o dito doado seu marido he Irmam»13. Pouco depois, a 3 dejaneiro de 1759, José Gomes, residente na Venda da Pelariga, termo de Pom-bal, também ele irmão da Misericórdia, e sua mulher Maria da Conceiçãoexpressaram a mesma vontade14. Bastante mais tarde, em 1827, o capitãoDionísio José de Oliveira estabeleceu, sucedendo morrer em Pombal, sersepultado na igreja da Misericórdia «donde he irmão»15. Além de membros dairmandade e seus parentes, muitos outros manifestaram idêntico desejo. Foi ocaso de Manuel Fernandes e sua mulher Maria Domingues, moradores nolugar da Arroteia, termo de Pombal, que, a 9 de outubro de 1732, declararamquerer ser sepultados naquele espaço, dando-se à Misericórdia «a esmola naforma costumada»16.

Entre 1782 e 1834, o templo da irmandade foi o terceiro espaço maisrequisitado, tendo sido aí sepultados 581 corpos, cifra próxima da registadana matriz de S. Martinho, onde foram a enterrar 655 defuntos. Excluindo o adrode S. Pedro, local onde foi inumada a maior parte da população, sobretudogente de baixo estatuto socioeconómico, todos os outros espaços ficarammuito aquém, designadamente a capela dos Terceiros de S. Francisco e aigreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (MARQUES, 2011, pp.66-73).

Por essa altura, a Misericórdia não era a única instituição que possuíatumba. Na segunda metade do século XVIII, a Ordem Terceira de S. Francisco,sediada no convento dos capuchos, e a Ordem Terceira de Nossa Senhora doMonte do Carmo adquiriram protagonismo, utilizando esquife próprio edisponibilizando os seus serviços fúnebres, mediante pagamento. Assim, a22 de outubro de 1751, a pombalense Madalena Maria Freire, solteira, insti-tuiu como última vontade ser sepultada na capela dos Terceiros de S. Francis-co «que a levariam a dita sepultura no esquife da mesma Ordem a qual deixa-va de esmola des tostois pela sua sepultura»17; enquanto, a 31 de dezembrode 1764, frei Valentim Alexandre da Cunha declarou querer ser sepultado noconvento do Cardal, sendo conduzido à sepultura no esquife da Ordem Ter-

12 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-16, fols. 15-17.13 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-16, fols. 43-45.14 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-17, fols. 18v-21.15 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-104-A-10, fols. 14v-17v.16 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-10, fols. 22-22v.17 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-103-E-15, fols. 83-84.

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ceira do Carmo, da qual havia sido prior e subprior (OLIVEIRA, 2019)18. Pese aconcorrência em matérias fúnebres, que representou a perda do monopólioda Misericórdia, a inexistência de documentação não permite atestar a exis-tência de conflitos entre as diferentes instituições19.

Os registos paroquiais evidenciam ainda que na Santa Casa eram sepul-tados indivíduos de condição distinta. Desde pobres falecidos no hospital eindivíduos que pereciam na cadeia, a gente de estatuto bem mais elevado, deque são exemplo algumas mulheres designadas por “Dona”20. Acrescente-seque, embora a maioria dos antigos provedores tenha sido sepultada na igrejade S. Martinho, alguns escolheram o templo da confraria21; e que, além devários irmãos da Santa Casa, também alguns assalariados encontravam re-pouso naquele espaço sagrado.

No interior da igreja da Misericórdia, como em qualquer outro templo, oslocais de sepultura estavam hierarquizados e regulamentados (ARAÚJO, 1997,pp. 361-371). Entre 1690 e 1706, os assentos esclarecem sobre a localizaçãodas covas de 13 indivíduos. Três mulheres foram sepultadas junto da portaprincipal, espaço que evidencia tratar-se de gente de parcos recursos, condi-ção confirmada quando existe informação a respeito: uma era criada e outramulher de um sapateiro. De igual forma, a proximidade da pia de água benta(dois) estava reservada a indivíduos pouco proeminentes, caso de Isabel João,mulher de um lavrador22. Apenas uma pessoa foi sepultada no corpo da igreja.Tratou-se de Pedro Domingues, do lugar de Santorum, que provavelmenteseria irmão da Santa Casa. As imediações do altar-mor estavam confinadas aindivíduos de estatuto mais elevado, caso de D. Bárbara Teixeira Feio, sepul-tada «dentro da Mizericordia a parte esquerda em sima dos degrãos»23. Osrestantes foram inumados em diferentes espaços: para a parte do Evangelho,junto aos degraus (dois); para a parte da Epistola, junto aos degraus (um);junto aos degraus que vão para a tribuna (um); defronte do púlpito (um); ejunto ao altar do Espírito Santo (um).

18 Pombal, Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (ASCMP), Livro de títulos da Santa Casade Pombal (1821), fols. 81-84.19 A propósito de desavenças entre Misericórdias e outras confrarias, cf. ARAÚJO, 2000, pp. 305-310 e554-565.20 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fols. 38, 40v e 64.21 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fols. 202v e 215v.22 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fols. 88v-89 e 158.23 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, fol. 40v.

Enterrar, rezar e cantar. A Misericórdia de Pombal e a Assistência aos Mortos (Séculos XVII-XIX)

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4. No século XIX, a Misericórdia continuou a assegurar o enterro dospobres falecidos no hospital, providenciando a cera, a mortalha, a abertura dacova e o transporte à sepultura24. À semelhança do praticado por outrascongéneres, optava por vender alguns dos bens dos indivíduos que morriamnaquele espaço, minorando dessa forma as despesas realizadas com o trata-mento e o enterro dos mesmos (OLIVEIRA, 2016, pp. 330-331).

Além de providenciar o enterro dos irmãos e dos pobres falecidos nohospital, continuou a disponibilizar a sua tumba e o acompanhamento dairmandade, mediante pagamento. Em 1827, o preço do serviço foi fixado em1200 réis, valor a que acresciam 400 réis quando o falecido pretendesse serconduzido na tumba da irmandade. Sempre que alguém era sepultado emterra da Casa, o testamenteiro era obrigado a entregar mais 1000 réis à Mise-ricórdia (MORA, 2010, p. 34). Até 1844, os indivíduos que faleciam fora da vilaeram, por «custume imemorial», transportados em esquife até ao centro urba-no e aí transferidos para a tumba da Misericórdia «para cuja transferencia selhe leva o emolumento de 800 reis»25. Tratava-se, claro está, de uma práticaabusiva e, como tal, foi proibida pelo administrador do concelho, excetuandoos casos em que o falecido assim o houvesse requerido em testamento. Maistarde, o compromisso de 1873, estipulou que a esmola, isto é, o pagamento doserviço fúnebre, nunca fosse inferior a 1200 réis, sendo o defunto da vila, e a1600 réis, sendo necessário ir aos limites da localidade para acompanhar ocadáver, estabelecendo, outrossim, que esse valor seria previamente pago, oque remete para a existência de incumprimentos em épocas anteriores26.

Nesse período, o rendimento proveniente dos acompanhamentos erapouco significativo27. No ano económico de 1837/38, esse serviço rendeuapenas 4800 réis, resultante de três acompanhamentos, o que representou1,1 por cento da receita28; e em 1875/76, os funerais renderam 6400 réis,ainda assim apenas 0,5 por cento da receita total registada nesse ano29.

24 A propósito da assistência aos mortos por parte das Misericórdias, nessa centúria, cf. ARAÚJO, 2010,pp. 270-282.25 Pombal, Arquivo Municipal de Pombal, Administração do Concelho, Correspondência expedida paradiferentes autoridades (1842-1845), ofício 103.26 Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, cap. 7, art. 59. O documento encontra-seem Leiria, ADL, Governo Civil de Leiria, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia dePombal, -1-III-74-D-4.27 O mesmo em Vila Viçosa, cf. ARAÚJO, 2010, p. 272.28 Pombal, ASCMP, Livro de receita e despesa (1828-1871), fol. 30.29 Pombal, ASCMP, Livro de receita e despesa (1869-1905), fol. 15v.

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Quanto ao mobiliário e a têxteis utilizados na condução dos defuntos, osdados são relativamente escassos. Sabemos que 1837/38 foi necessário com-prar holanda preta para conserto do pano da tumba, o que teve um custo de120 réis30. Em julho de 1859, a irmandade contava com duas toalhas para oesquife31. Uma década mais tarde, existia uma tumba e dois panos mortuários,ainda que um estivesse inutilizado32. Em agosto de 1873, o tecido utilizadopara cobrir o esquife encontrava-se «muito estragado», pelo que foi necessá-rio adquirir um novo33. Assim, em 1874/75, a Santa Casa comprou um panomortuário que importou 10 mil réis34. Anos depois, em 1897/98, foi adquiridoum novo pano de veludilho preto para o mesmo esquife, o que teve um custode 4165 réis35.

Os problemas relacionados com os enterros foram constantes36. Umadas principais dificuldades residiu na falta de comparência dos irmãos aosfunerais, a ponto de não existir quem conduzisse o esquife. Tenhamos pre-sente que, sobretudo para os irmãos de estatuto mais elevado, carregar obje-tos em público, no caso a tumba, representava um ato desprestigiante, peloque as faltas tendiam a suceder-se. Já em 1827, entre várias deliberaçõesrelativas a enterros, fora instituído um livro de ponto, para tentar colocar termoa semelhantes faltas (MORA, 2010, pp. 33-34). Em agosto de 1846, passarama ser nomeados, mensalmente, nove irmãos para acompanhamento dos de-funtos que a irmandade fosse obrigada a conduzir à sepultura37. Todavia,mais uma vez, a deliberação não surtiu efeito pelo que, a 28 de novembro de1851, a Mesa obrigou os irmãos a nomear um substituto quando, por algummotivo, não pudessem comparecer aos enterros, sob pena de que faltando aeste «religiozo dever por tres vezes consequtivas será riscado do quadrodesta irmandade»38. Nos anos imediatos, a ausência de referências a seme-lhantes faltas poderia indiciar o sucesso do ameaço. No entanto, o compro-

30 Pombal, ASCMP, Livro de receita e despesa (1828-1871), fol. 25.31 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1844-1862), fol. 133v.32 Pombal, ASCMP, Inventário dos fundos e alfaias (1869), fol. 30.33 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1878-1884), fol. 45v.34 Pombal, ASCMP, Diário da receita e despesa (1874-1878), fol. 44.35 Pombal, ASCMP, Diário da receita e despesa (1895-1905), fol. 70.36 Para a Época Moderna, a ausência de documentação não permite atestar a existência de semelhan-tes atritos. No entanto, à semelhança do sucedido noutros locais, é bastante plausível que já severificassem. Este foi de resto um problema transversal a todas as Misericórdias. Sobre o assunto cf.,entre outros, SÁ, 1997, p. 194; ARAÚJO, 2000, pp. 310-312 e 565-567, ARAÚJO, 2013, pp. 494-496.37 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1844-1862), fols. 21-21v e 23.38 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1844-1862), fols. 73-73v.

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misso de 1873, que dedicou particular atenção ao assunto, insistiu na neces-sidade de «evitar inconvenientes, já por muitas vezes ocorridos»39, o quesugere precisamente o contrário.

O novo texto normativo estabeleceu minuciosamente a disposição doscortejos fúnebres e estipulou diversas outras minudências. Entre outros aspetos,refira-se o restauro do número de nove elementos designados mensalmentepara os enterros e a instituição de penas pecuniárias para os que, faltandoaos cortejos, não apresentassem motivo válido ou não providenciassem subs-tituto. Semelhantes faltas obrigavam ao pagamento de 120 réis, quantia queseria entregue a um irmão pobre, que substituiria o faltoso na cerimónia fúne-bre. Quem recusasse pagar arriscava a expulsão. Por último, uma modifica-ção relativa aos indivíduos que a irmandade estava obrigada a sepultar. Alémdo encargo de enterrar todos os irmãos e respetivas esposas, quer fossemviúvas quer contraíssem segundo matrimónio, desde que com outro irmão dairmandade, apenas acrescia a obrigatoriedade de inumar os indigentes e ospobres falecidos no hospital. Ou seja, o ónus de sepultar os filhos dos irmãos,enquanto estivessem sob o pátrio poder, deixou de estar consagrado.

Pese o estipulado nos estatutos, os problemas persistiram. Os diários dereceita e despesa demonstram que alguns irmãos pagaram a multa consigna-da no texto normativo, inclusivamente a figura máxima da instituição40. Emjunho de 1873, pouco depois do compromisso ter sido aprovado, cinco dosirmãos nomeados não compareceram, nem apresentaram substituto, ao en-terro de uma mulher falecida no hospital41. Além desses indivíduos, JoaquimRomão de Araújo Pereira, provedor, e Manuel Gomes de Oliveira, secretário,também faltaram ao cortejo fúnebre. Se as principais figuras da irmandadepagaram prontamente a multa, os restantes irmãos, apesar de terem recebidouma «carta atenciosa» para o efeito, não o fizeram42. Ora, nestes casos, comorelembrou o mesário padre João Miguel de Figueiredo, os incumpridores de-viam ser riscados do livro, penalização que não parece ter sido aplicada. Ouseja, quando confrontada com semelhantes faltas, a Misericórdia optou pornão empregar todas as sanções previstas, manifestando inoperância e atécondescendência com os faltosos.

39 Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, cap. 7, art. 60.40 Pombal, ASCMP, Diário da receita e despesa (1871-1874), fols. 126v, 127v e 136v; Diário da receitae despesa (1874-1878), fols. 57v e 83v.41 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1871-1878), fol. 41.42 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1871-1878), fol. 41; Diário da receita e despesa (1871-1874), fols.126v e 127v.

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Porque o transporte da tumba continuou a gerar discórdia, a 18 de julhode 1873, um dos vogais, alegando que muitas vezes os nomeados estavamimpossibilitados de cumprir a obrigação, fazendo-se representar por indivídu-os de tenra idade, propôs que o esquife fosse carregado por quatro homenspagos pela Misericórdia. Ainda assim, entendia que os irmãos, por si ou porinterposta pessoa, deviam continuar a acompanhar o corpo «mas só comomeio de decencia»43. Na verdade, a proposta não representava propriamenteuma novidade. Em novembro de 1872, a irmandade já havia pago 240 réis aquatro homens, pela condução do corpo de José Lopes, do hospital para ocemitério44. Embora os diários de receita e despesa contenham diversosregistos a semelhantes pagamentos, a irmandade continuou a nomear irmãospara a função45. Apenas quando os confrades não compareciam em númerosuficiente (o que sucedeu por várias ocasiões) é que eram contratados ho-mens para a condução dos defuntos. Aos problemas relacionados com acondução do esquife, acresceram muitos outros, desde capelães que nãoacompanhavam a totalidade dos cortejos fúnebres, até distúrbios causadospor um irmão durante um enterro, em 1875 (OLIVEIRA, 2016, pp. 336-337).

5. Os dados sobre a assistência à alma são escassos. Na Época Moder-na, é bastante plausível que, após o funeral, a Misericórdia de Pombal, àsemelhança das suas congéneres, mandasse celebrar um ofício pelo irmãofalecido e, nos dias seguintes, uma ou mais missas por alma daquele. A cren-ça no Purgatório e a necessidade de celebrar missas para resgatar as almasdesse local, fez com que as Misericórdias, tal como outras instituições, acumu-lassem missas aos milhares, o que exigiu a contratação de vários capelães(SÁ, 2001, pp. 99 e 109). Em 1759, a Santa Casa de Pombal, além do capelãoresponsável pela celebração da missa aos domingos e dias santos, contavacom mais três clérigos encarregados de missas quotidianas vinculadas a ou-tras tantas capelas e, poucos anos depois, passou a ser obrigada a mandarcelebrar uma missa anual por alma de frei Valentim Alexandre da Cunha.Com o avançar dos anos, tornou-se impossível cumprir essas obrigações e asSantas Casas tentaram diminuir o número de missas através da obtenção debreves de redução, num movimento que teve início no início do século XVIII eque a de Pombal tentou acompanhar no começo da centúria seguinte (OLIVEI-RA, 2016, pp. 365-366).

43 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1871-1878), fols. 43-43v.44 Pombal, ASCMP, Diário da receita e despesa (1871-1874), fol. 85.45 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1871-1878), fols. 74, 88-88v e 135.

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No século XIX, a instituição de missas praticamente desapareceu. Há so-mente a mencionar uma anual, instituída por João Fortunato Monteiro em 1856.Em troca de 48 mil réis, a Santa Casa comprometeu-se a mandar celebrar anu-almente, no dia 16 de maio, uma missa rezada na igreja do convento do Cardal,ou no templo mais próximo, por alma das duas mulheres com quem o instituidorhavia sido casado. Além da missa, nesse dia, seria entregue uma esmola, novalor de 240 réis, a um pobre, viúvo, que tivesse filhos a seu cargo46.

Quando morria uma figura ligada à instituição, membro ou benemérito, podiaigualmente ser celebrada uma missa. Por exemplo, a 4 de abril de 1883, mandoudizer-se uma, por alma da esposa de Manuel João Carreira, residente no Pará,Brasil, benfeitor da Santa Casa de Pombal47; e, em março de 1886, os mesáriosincumbiram o pároco da freguesia de rezar uma missa, sufragando a alma deAntónio Teixeira de Araújo Guimarães, uma vez que a Misericórdia havia sidocontemplada com 100.810 réis do remanescente da herança daquele indivíduo48.

No dia de finados, a instituição devia mandar celebrar um ofício grandepor alma dos irmãos falecidos e pelas almas do Purgatório49. Dada a escassezde rendimentos, o compromisso oitocentista apelou à contribuição de esmo-las por parte de irmãos e de gente não pertencente à irmandade. Se, em 1881,sabemos que o ofício teve lugar e que decorreu com certa pompa, após essadata, terá deixado de se realizar.

6. Possuindo templo próprio, mobiliário fúnebre e paramentos litúrgicos,contando com vários capelães e tendo tido, até meados do século XVIII, o mono-pólio do uso da tumba, a Misericórdia de Pombal teve na assistência aos mortos,quer na vertente espiritual quer na material, um dos seus principais campos deatuação. Se, na Época Moderna, os enterros terão representado uma interes-sante fonte de receitas, no período da monarquia constitucional o rendimentoproveniente dos acompanhamentos fúnebres e do aluguer da tumba foi muitopouco significativo. Além de render pouco, os gastos com os enterros aumenta-ram, já que os irmãos nem sempre compareciam aos funerais, o que obrigou àcontratação de homens para conduzir o esquife à sepultura.

Na segunda metade do século XIX, a Misericórdia passou a canalizar ogrosso das suas receitas para a assistência hospitalar e a considerar como

46 Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-105-C-22, fols. 84v-85v.47 O Pombalense, ano 7, n.º 295, de 3 de abril de 1883.48 Pombal, ASCMP, Livro de atas (1884-1903), fol. 15v.49 Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, cap. 7, art. 63.

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principal obrigação acorrer às necessidades do seu hospital. Sem prejuízo,continuou a atribuir enorme importância aos enterramentos, como atestam osnove artigos que lhes foram dedicados no Compromisso de 1873. As atas dainstituição e o referido texto normativo deram conta dos inúmeros problemasassociados aos enterros, semelhantes aos registados noutras Misericórdias.Se as várias medidas para combater as faltas e o desrespeito dos irmãos edos assalariados tiveram efeito limitado, não deixaram de revelar, de formaclara, que o cortejo fúnebre permaneceu, durante todo o período em estudo,como um dos principais momentos de representação da irmandade. Momentoque pretendia causar impacto visual no seio da comunidade, funcionandocomo encenação pública do poder da instituição.

Fontes e Bibliografia

Fontes Manuscritas:

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córdia de Pombal, -1-III-74-D-4Registos Notariais, Pombal, V-103-E-2, V-103-E-9, V-103-E-10, V-103-E-15,

V-103-E-16, V-103-E-17, V-103-E-19, V-104-A-10, V-105-C-22Registos Paroquias, Pombal, Óbitos, IV-42-D-50, IV-42-D-51, IV-42-D-52

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Livro de receita e despesa (1869-1905)Livro de títulos da Santa Casa de Pombal (1821)

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1. Os tradicionais enterramentos católicos

Se é certo que, em alguns hospitais e misericórdias, ou em diversascorporações religiosas, havia já pequenos cemitérios ao ar livre, ao entrar-seno século XIX, o enterramento da grande maioria dos portugueses efectuava--se em recintos fechados, mormente no chão das igrejas.

Nas pequenas comunidades rurais, quando a dimensão da igreja paro-quial o permitia, todos ou quase todos os defuntos eram acolhidos no seuinterior. Mas, se a superfície coberta do templo era insuficiente para receber atotalidade dos mortos, remetiam-se para os adros aqueles que não cabiamdentro de portas. A opção pelo interior das igrejas ou, em alternativa, peloterreno adjacente, era, muitas vezes, determinada pela condição económicado falecido, sendo enviados para os adros os defuntos desprovidos de quempudesse solver o valor do covato. Excepcionalmente, no decurso de vicissitu-des históricas que provocassem inusuais mortandades, o adro convertia-seem destino maioritário ou mesmo universal dos desafortunados – pobres ouremediados – que nessas ocasiões pereciam1.

Até à construção dos cemitérios públicos – quando a individualizaçãodos finados substituiu o anonimato das sepulturas, e a personalização dacampa ou do jazigo superou a indiferenciação dos tradicionais enterramentoseclesiais – à esmagadora maioria dos fiéis não estava destinado senão um

* Professor de História e investigador.

OS CEMITÉRIOS PÚBLICOS NO SÉCULO XIX:ATENÇÃO ESPECIAL AO NORDESTE

DO DISTRITO DE LEIRIA

MÁRIO RUI SIMÕES RODRIGUES*

1 Na área do Nordeste do Distrito de Leiria, aqui em estudo, verifica-se uma clara supremacia dosenterramentos nos adros, relativamente ao interior das igrejas, tanto em 1811, na Terceira InvasãoFrancesa, como nas epidemias que devastaram a região entre a década de 30 e a década de 50 doséculo XIX.

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mero coval temporário, tapado por lajes ou por tábuas (dentro das igrejas), ou,apenas, coberto de terra (no seu adro). Desta realidade exceptuavam-se ape-nas alguns privilegiados que, no interior dos templos, possuíam ostentatóriascapelas funerárias, artísticas arcas tumulares ou simples campas perpétuas(assinaladas com inscrições epigráficas ou destacadas por ufanosos brasõesde armas).

Muito expressiva da realidade mais comum, que se estendia a todo oPaís, é a seguinte resposta, dada pelo coadjutor da Paróquia de Nossa Se-nhora da Esperança, da vila de Alpedriz, a um dos quesitos das InformaçõesParoquiais de 1721: «Nesta terra nam ha sepulturas com letereiros […]; amaior parte dos defunctos se custuma enterrar no adro, fora da Igreja; se lhetapam as sepulturas somente com terra, e os que se enterram na igreja co-brem-se com o lajeado da mesma igreja sem letereiros alguns»2.

2 AGOSTINHO DE SOUSA MATIAS e MÁRIO RUI SIMÕES RODRIGUES, Diocese de Leiria: Informações Paroquiais.1721. Notícias Várias para a História Eclesiástica, coligidas para os trabalhos da Academia Real daHistória Portuguesa, Leiria, Hora de Ler, 2019, p. 202. Ao longo do presente artigo, nas transcriçõesou citações de documentos, procedemos a algumas actualizações gráficas (na ortografia e napontuação), para mais fácil compreensão dos leitores.

Lápides da Igreja de Nossa Senhora da Orada,contendo apenas o número da sepulturaGranja, Santiago da Guarda (Ansião)

Lápides do adroda Igreja Paroquial de N.ª Sr.ª da Graça

Aguda (Figueiró dos Vinhos)

Se, no interior das igrejas, eram problemáticas as condições de salubri-dade, decorrentes dos sucessivos sepultamentos numa superfície exígua, comuma rotação demasiado acelerada para reaproveitamento dos covais; nosadros, à grave questão higiénica, acrescia a da indignidade a que eram sujei-

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tos os mortos, que a sua própria pobreza e a insensibilidade dos viventessubjugavam às mais abjectas mundanidades, num espaço destinado às maisdiversas actividades profanas, como sítio de passagem, espaço de convívio elocal de mercancia. A este propósito, é bem esclarecedora a seguinte descri-ção do adro da igreja de Pussos, no Concelho de Alvaiázere, no ano de 1862,local, simultaneamente, usado para feira e para cemitério:

«Na época em que cada freguezia deve ter o seu cemitério para osinterramentos, convenientemente escolhido e resguardado, vêmos com hor-ror em Pussos não só as sepulturas devassadas e expostas aos animaescarnívoros, mas ainda vemos annualmente armar sobre ellas a feira de S.Silvestre» (O Districto de Leiria, 1862).

2. As inovações setecentistas

Na segunda metade do século XVIII, com os progressos verificados naciência médica, e com a renovação filosófica trazida pelo Iluminismo, gera-ram-se, em toda a Europa, condições favoráveis à crítica das ancestrais práti-cas de inumação dentro dos edifícios destinados ao culto religioso.

Em Portugal, as trágicas consequências demográficas do Terramoto de1755 suscitaram algumas preocupações sanitárias relativamente aos efeitosdos enterramentos nas igrejas, destacando-se, nessa ocasião, entre os espí-ritos mais esclarecidos desse tempo, os médicos António Nunes RibeiroSanches e José Alvarez da Silva3.

Desta mesma centúria datam já algumas experiências cemiteriais pio-neiras, contrastantes com a prática dominante dos enterramentos no interiordas igrejas ou nos seus adros. Dentre elas – além dos cemitérios ingleses deLisboa (1717-1725) e do Porto (1788) – refiram-se: o cemitério catacumbal daIgreja de São Francisco, da Ordem Terceira, no Porto (1749); o cemitério,pombalino, de Vila Real de Santo António (1776); ou o cemitério do Alto daAjuda (1787), destinado aos criados da Casa Real e aos pobres das freguesi-as de Belém e da Ajuda.

Por ter sido erigido na região aqui em análise, merece um especial des-taque o cemitério que, atrás da Sé de Leiria, mandou construir o bispo D.Manuel de Aguiar. Inaugurado em 1798, ostenta entre as suas singularida-

3 ANTÓNIO NUNES RIBEIRO SANCHES, Tratado da Conservação da Saúde dos Povos, Paris, 1756; JOSÉ

ALVAREZ DA SILVA, Precauções médicas contra algumas remotas consequências, que se podem excitardo Terremoto de 1755, Lisboa, Na Officina de Joseph da Costa, Coimbra, 1756.

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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des, ser uma construção permanente, edificada ao ar livre, destinada a toda apopulação da cidade, comportando aspectos estruturais que prenunciam oscemitérios públicos oitocentistas.

Cemitério catacumbal da Igreja de São Francisco, da Ordem Terceira, no Porto

Cemitério da Sé de LeiriaGravura de O Ocidente (N.° 55, Abril de 1880)

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2. A “Revolução Cemiterial” no Século XIX

Apesar destas inovações setecentistas, será necessário esperar peloséculo XIX para, entre as grandes transformações então verificadas, ocorreruma autêntica “Revolução Cemiterial”, resultante da construção dos cemitéri-os públicos, que em Portugal provocaram múltiplas e profundas alterações,no amplo espectro da vida nacional.

Desencadearam esta “Revolução Cemiterial” os decretos de 21 de Se-tembro de 1835 e de 28 de Setembro de 1844. Mas mergulham bem longe asraízes da enorme mudança agora produzida, remontando, como vimos, àsreflexões higienistas de vários espíritos do Iluminismo, que prosseguiram nosalvores de Oitocentos, com Vicente Coelho Seabra e Teles, José CorreiaPicanço e D. Francisco da Soledade, arcebispo da Baía. Este, em 1821, pro-pôs a construção de espaços funerários a céu aberto, semelhantes aos cemi-térios dos protestantes de Lisboa e do Porto, que deveriam ser financiadospelas irmandades e pelas ordens terceiras, e cuja administração caberia àsautoridades eclesiásticas.

Na região de Leiria, no princípio do século XIX, destacou-se, pelo seupioneirismo, a vila de Pombal. Com efeito, a pedido do “juiz de fora” desta vila,a 27 de Novembro de 1821, as Cortes Gerais ordenaram que se fizessem «osenterramentos de todos os fallecidos no Cemitério, e não nas Igrejas», e quenaquele se procedesse ao levantamento de um «muro decente». Na repre-sentação que o referido “juiz de fora” fizera, foi dito que, por causa «de umgrande contágio», ocorrido em 1800, se mandara «Ordem para os defuntos seenterrarem em um Cemitério, e não nas Igrejas; o que se executou». Porém,tendo os franceses incendiado a vila, aquando da sua retirada na Terceira Inva-são, desaparecera tal Ordem, pelo que «os Religiosos da Província de SantoAntónio de Portugal» iam «admittindo enterramentos na Sua Igreja pela esmolade 6:400 réis; e a Misericórdia» ia «fazendo o mesmo na sua Capella por 1:200réis». Ao contrário do que seria desejável, não tinham cercado o cemitério dePombal com um muro que o tornasse inacessível «á entrada dos animaes», osquais haviam desenterrado alguns cadáveres (Collecção, 1822, p. 287).

Para a mudança que se avizinhava, revelaram-se decisivos alguns acon-tecimentos políticos, como as Invasões Francesas (1807-1811), a Revoluçãode 1820 e a Guerra Civil entre liberais e miguelistas (1832-1834): eventos quepermitiram disseminar no País algumas das correntes de pensamento maisprogressivas da Europa, que nesse tempo principiavam a germinar ou que jáiam logrando a sua plena implementação, entre as quais, com relevantíssima

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atinência à “Revolução Cemiterial”, merecem destaque o Liberalismo e oRomantismo. Para esta “Revolução” contribuíram, de forma não menos deci-siva, diversas epidemias oitocentistas, entre as quais, pelos seus grandesefeitos demográficos, ocupa uma posição de relevo a Cholera Morbus de1833. Não admira, por isso, que datem deste ano os primeiros cemitériospúblicos de Lisboa (Prazeres e Alto de São João) e do Porto (Lapa).

Daquelas correntes de pensamento se nutrem os elementos essenciais danova legislação oitocentista que, ao menos idealmente, pretendeu instituir: cemité-rios de natureza pública, e não privada; de administração laica, e não eclesiástica;,fora das povoações, e não no seu centro; compostos de sepulturas individuais, enão de jazigos comunitários; em solo profano, e não em chão sagrado.

Mas não foi fácil, nem célere, a aplicação das novas normas jurídicas.Com efeito, em 1862, no conjunto do País, 31,2% dos enterramentos continu-avam a efectuar-se nas igrejas, elevando-se estes números a 92,6%, 81,7% e55%, respectivamente, nos distritos de Braga, Viana do Castelo e Viseu (CABRAL

e FEIJÓ, 1985, p. 204).Para este grande atraso na construção dos cemitérios públicos, concorre-

ram razões político-administrativas, financeiras, culturais e religiosas. Explicam--no: as deficientes estruturas burocráticas das novas juntas de paróquia ou dosvelhos municípios; a escassez dos seus recursos financeiros; ou, tão-só, nal-guns casos, a falta de terrenos adequados. Mas, intervieram, no mesmo sentido:a aversão dos sectores sociais mais conservadores face às novas ideias dematriz liberal e urbana; a recusa, pelas populações rurais, da ruptura dos laçosinter-geracionais entre falecidos e viventes; a repulsa, por parte dos católicos, dades-sacralização do espaço de inumação; a reacção da Igreja contra a perda depoderes e rendimentos decorrentes dos rituais fúnebres; ou o desagrado dealguns privilegiados que possuíam, nos edifícios eclesiásticos ou nas suas pro-priedades (palácios ou solares), espaços privativos de sepultamento.

Mas não se reduz a contestação da “Revolução Cemiterial” a esta lenti-dão na execução das novas leis. Não só por omissão, mas também por acçãose manifestaram os múltiplos e multímodos antagonismos relativamente àsgrandes mudanças, verdadeiramente revolucionárias, que os decretos de 1835e de 1844 pretendiam realizar. Observando a realidade de todo o Reino, alémda verbalização, mais ou menos explícita, da oposição à mudança, encontra-mos diversos casos de: impedimento da demarcação dos terrenos dos futuroscemitérios; de demolição de muros dos novos espaços funerários; de desen-terramento de cadáveres nos cemitérios públicos; ou de sepultamento decorpos nas igrejas e nos adros, quando já existia cemitério público.

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O que na região aqui em estudo se pôde constatar foi, sobretudo, a demorana execução da lei. E talvez seja legítimo vislumbrar alguma oposição à mudan-ça, por parte dos párocos, no uso de designações imprecisas e equívocas, nosregistos paroquiais, que iludiam a inexistência de cemitério público, continuan-do o clero local a efectuar enterramentos nos adros das igrejas, na maioria dasparóquias, até inícios da década de 60 do século XIX. Um caso de recurso àforça, para incumprir a lei, constata-se em Pousaflores. O registo de óbito deFelizardo José, falecido no dia de Natal de 1846, é, a este propósito, eloquente.Diz-nos o pároco: «foi enterrado dentro da Igreja violentamente, com barulho dopovo, não podendo [eu] movê-los a seguirem o costume de enterrarem no Adro»4.

Dois paradigmas diametralmente opostos se confrontaram na centúriade Oitocentos, mediados pela “Revolução Cemiterial”, quer quanto às práti-cas funerárias, quer relativamente às atitudes perante a morte: um paradigmaancestral, dominado por ideias católicas, e eivado de antigas crenças popula-res, no qual, por via dos enterramentos nas igrejas ou nos seus adros, asacralidade do território dos defuntos se inseria no centro das localidades,convivendo, inseparavelmente, a vida com a morte, os vivos com os mortos, eo passado com o presente, vigorando uma concepção optimista da mortecomo passagem entre dois planos da existência, assegurada pelo contacto(tanto dos vivos como dos mortos) com o espaço sagrado administrado pelaIgreja; outro paradigma, em estruturação neste século XIX – configurado comoSéculo da Memória e Século da História –, imbuído da nova filosofia iluminista,e dominado pela emergente doutrina liberal, no qual, em consequência danova modalidade de enterramento em solo profano e em espaço extra-urba-no, se passaram a exilar os mortos para longe dos vivos e a separar as gera-ções defuntas das gerações viventes, acolhendo uma concepção pessimistada existência que se tentava superar através de processos de simulação davida e de dissimulação da morte.

Na transição de um para outro paradigma, aos anónimos e temporárioscovais dos templos e dos seus adros (nos quais, lado a lado, os mortos seachavam sepultados todos juntos, em comunidade) sucederam-se as sepul-turas personalizadas (campas perpétuas e jazigos)5, ocupando as famíliaslugares especialmente reservados no espaço dos novos cemitérios públicos.

4 Arquivo Distrital de Leiria – Registos Paroquiais: Pousaflores: Óbitos: 1830-1848 (IV-28-E-6), fol. 37 v.º.5 O individualismo burguês e a fuga ao enterramento anónimo, que se exprimem como matriz dalegislação cemiterial de 1835 e 1844, eram ostensivamente contraditados nos cemitérios públicos dasgrandes cidades pela existência de valas comuns, destinadas aos mais pobres, nas quais os defun-tos, identificados apenas por números, estavam condenados à putrefacção, impedidos de beneficiar

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Se, junto daqueles humildes covais de antanho, nas igrejas ou nos seusadros, se rezava pela comunidade inteira; agora, nas campas perpétuas e nosjazigos dos novos cemitérios públicos, passou a rezar-se quase exclusiva-mente pelos familiares mais próximos.

Enquanto nos antigos cemitérios eclesiais, com uma periodicidade diáriaou semanal, constantemente contactavam os viventes com os seus falecidos(durante os actos litúrgicos ou aquando da ida a uma feira ou a um mercado);agora, nos novos cemitérios públicos, os vivos, temerosos do contacto com aameaçadora impureza, imaginária, dos miasmas dos mortos e dos seus hu-mores pútridos, passaram a visitar os seus entes queridos quase só anual-mente, no aniversário do seu falecimento ou no Dia de Fiéis Defuntos.

Se, anteriormente, era pública e comunitária a vivência da morte; com osnovos cemitérios públicos foi privatizada a experiencialização do fim da vida,restringindo-se progressivamente a expressão do luto ao círculo familiar maispróximo.

3. A imagem dos novos cemitérios

A concretização da “Revolução Cemiterial” exigia a definição de mode-los urbanísticos para as novas necrópoles, bem como o desenvolvimento demodelos arquitectónicos para as novas construções fúnebres.

Os decretos de 21 de Setembro de 1835 e de 28 de Setembro de 1844instituíram um modelo de cemitério extra-urbe, rodeado por fortes muros.

Com a sua estrutura de arruamentos – uns principais, outros secundários– os cemitérios portugueses oitocentistas – verdadeiras cidades dos mortos –reproduziram, urbanisticamente, as cidades dos vivos.

Socialmente, espelharam as profundas diferenças de estatuto que sepa-ravam os seus moradores: com as zonas mais valorizadas próximas das por-tas de entrada ou do arruamento principal, reservadas aos detentores demaiores recursos; em contraste com as zonas mais periféricas, de menor valorcomercial, destinadas aos menos favorecidos.

Arquitectonicamente, pensando nos que detinham maiores recursos, amorada dos mortos representou-se, mais frequentemente, ora configuradacomo uma capela, ora com a aparência de uma casa de família. Além destastipologias de feição habitacional, muitas outras existiram, bastas vezes se-

dos meios de dissimulação que constituíam penhor da re-presentificação mnemónica que asseguravaa contínua revivificação do morto na memória (familiar e social) da colectividade.

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guindo modelos internacionais (que circulavam em publicações periódicas,em livros ou em mostruários), expressos em tipologias diversas, tais como apirâmide, o obelisco, a coluna, a urna clássica, a arca tumular ou o baldaquino,entre outras. Por exprimir um gosto tipicamente romântico, entre os variadosmodelos oitocentistas, refira-se, ainda, o modelo, muito habitual nesta centúria,da falsa ruína. Para os que possuíam escassos recursos, ontem como hoje,bastava um montículo de terra a assinalar o local da sepultura...

Relativamente aos jazigos, acrescente-se que, além daqueles que ti-nham uma estrutura externa, em forma de capela ou de habitação, eram fre-quentes, pelo menos nas primeiras décadas, os jazigos de estrutura subterrâ-nea, nos quais, à semelhança das catacumbas, os caixões eram depositadosem nichos, verticalmente sobrepostos, situados abaixo do solo, aos quais seacedia por uma pequena escada.

Antes que se urbanizassem com estas belas e arrojadas construções, oscemitérios oitocentistas, mormente os rurais, com poucas construções funerá-rias e escassa vegetação, teriam um aspecto desolador, não muito diferentedos antigos adros, com a agravante de, para a consciência dos católicos,estarem afastados dos edifícios eclesiais – portanto, em condições menospropícias à escatológica salvação ressurreicional dos fiéis defuntos.

Com a progressiva organização de arruamentos, e com a sucessiva cons-trução de campas perpétuas, de jazigos e de mausoléus, os cemitérios públi-cos do século XIX foram adquirindo feições mais monumentais (ou memoriais),tornando-se, assim, mais adequados a receber a visita dos vivos, o que origi-nou um novo culto funerário – individual e familiar –, que passou a ter, comoelementos típicos principais, a deposição frequente de flores nas construçõesfúnebres e a realização periódica de romagens à morada dos mortos emdeterminados dias do ano.

Paralelamente ao incremento da monumentalidade das construções,assistiu-se a um aumento da vegetação no espaço funerário, contribuindocada uma destas inovadoras realidades para realizar as funções de sociabili-dade atribuídas aos novos cemitérios e para reforçar os seus fins estético--pedagógicos.

A necessidade existencial de negação da morte, que o pessimismo ro-mântico exacerbava, impôs a multiplicação de meios de dissimulação dafinitude terrena e de simulação da presença do ausente, não apenas atravésdas campas perpétuas e dos jazigos, mas também através de esculturas e defotografias dos falecidos. Para a ilusionística representação da morte comosono, muito contribuía a configuração da sepultura como habitação do morto.

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Através da deposição do féretro em caixão de chumbo, impedia-se a normalconsumpção cadavérica, que na perspectiva católica da existência exprimia oseu desvalor pela existência corpórea e a sua concepção transitorial da vidaterrena para a vida eterna.

A pretexto de propósitos fundamentalmente higienistas, algumas elitesideologizadas tentaram implementar estratégias de des-sacralização dos ce-mitérios públicos e, até, de descristianização da sociedade, por vezes comagendas políticas fortemente anticlericais.

Apesar das transformações verificadas e não obstante os novos ventossecularizadores, num país como Portugal, que permanecia esmagadoramen-te católico, persistiram vários dos traços da antiga mundividência religiosa: oscemitérios públicos continuaram a ser benzidos; no seu interior construíram--se capelas funerárias de uso comum e, esporadicamente, capelas privativasnas secções particulares de algumas corporações, como sucedia nas ordensterceiras; os rituais eram quase exclusivamente católicos, estabelecendo ocortejo fúnebre um perfeito continuum entre o ofício de defuntos, realizado notemplo católico, e o acto de deposição do féretro no novo terreno cemiterial;além de que os inúmeros jazigos-capela transpuseram para os novos “cam-pos santos” os tectos protectores das antigas igrejas. De resto, com miríadesde cruzes, imagens de santos e de Virgens Marias, e todo o rol de símbolosligados ao Além e à Vida Eterna, os novos cemitérios públicos, situados quaseao lado das antigas “igrejas-jazigo”, acabaram por acolher no seu seio, tantoa iconografia e a doutrina da Igreja Católica (integradas nas anteriores práti-cas religiosas oficiais) como as ancestrais crendices e superstições popularesque com aquelas se misturavam.

E, apesar de se ter instituído a tutela política sobre a administração dosnovos locais de enterramento, a Igreja manteve algumas das suas prerrogati-vas, ainda que tenha perdido diversas receitas financeiras, designadamenteas que provinham da cedência dos covais.

De resto, os novos espaços de inumação foram edificados quase noprolongamento dos antigos adros, muitas vezes ao lado ou atrás das igrejasparoquiais. Por exemplo, os cemitérios públicos do Rego da Murta e de Torrede Vale de Todos foram construídos ao lado da igreja; os de Figueiró dosVinhos, Maçãs de Caminho e Pousaflores, atrás das suas matrizes; e os daLagarteira, de Maçãs de Dona Maria e de Pedrógão Grande6, exactamente,

6 Referimo-nos ao primitivo cemitério oitocentista, do qual, na actualidade, só resta parte do muro edo portão.

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em frente dos respectivos templos paroquiais. Na generalidade dos casos, osnovos espaços de inumação oitocentistas não se afastavam muitas dezenasou, no máximo, centenas de metros relativamente aos antigos locais de sepul-tamento da paróquia, ao contrário dos cemitérios edificados no século XX,que foram implantados no exterior mais remoto das povoações. O desejo,sentido pelas populações, de instalar os cemitérios do século XIX em chãosagrado exprime-se, de forma ostensiva, na vila do Avelar, que sediou o seucemitério no adro da antiga igreja matriz. Noutras localidades portuguesas, aescolha recaiu sobre as cercas conventuais.

Esta ânsia do sagrado, à escala nacional, exprimiu-se, igualmente, tantopela fraca adesão aos enterramentos civis, permitidos por uma lei de 1878,como pelo pouco sucesso que, nos finais desta centúria, teve a campanhacremacionista. E o mesmo se diga do escasso apoio que receberam os defen-sores da laicidade dos cemitérios públicos neste mesmo período. Para mais,o espaço destinado aos não-católicos, instituído por diversas portariasnormativas de 1866, 1868 e 1877, separado, por vezes, por um muro quetantas polémicas veio a dar, ao menos nos cemitérios rurais acabou por ficardeserto, não sendo, pois, de estranhar que só no início do século XX, com o

Cemitérios de Santiago da Guarda (Ansião)A – Cemitério velho (Séc. XIX) B – Cemitério novo (Séc. XX)

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advento da Primeira República, os cemitérios fossem totalmente seculariza-dos e se decretasse a liberalização dos ritos para todos os cultos.

4. Alguns exemplares funerários do Nordeste do Distrito de Leiria7

Do conjunto de cerca de quarenta cemitérios públicos edificados noscinco concelhos do Nordeste do Distrito de Leiria – Alvaiázere, Ansião, Casta-nheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos e Pedrógão Grande –, antes de terminar-mos este estudo, façamos breves alusões a alguns exemplares de constru-ções funerárias aqui existentes que, pela sua imponência, beleza ou origina-lidade, ou ainda pelas personalidades que nelas foram inumadas ou deposi-tadas, merecem um especial destaque:

Concelho de Alvaiázere

Do cemitério da sede do concelho, quase nada resta do século XIX,centrando-se o seu maior interesse histórico na pertença de alguns dos jazi-

gos mais vetustos aqui existentesa importantes famílias ou perso-nalidades da terra, que viveramna primeira metade do século XX,tais como os jazigos de AntónioÁlvaro Nunes Sério e do comen-dador Cesário Neves.

No Cemitério de Almoster,construído, talvez, em 1864, acha--se um interessantíssimo exemplarde jazigo-capela, no qual foi se-pultada D.ª Leonarda Madalenade Mascarenhas de Velasques

7 Este breve capítulo destina-se exclusivamente a mostrar o interesse histórico e artístico da preser-vação de alguns espécimes do património cemiterial desta região. Um trabalho mais extenso e maisaprofundado é incompatível com a finalidade desta comunicação e com o tempo disponível para apreparar. Com dimensões, necessariamente, diferentes, cada cemitério mereceria um estudo espe-cializado.

Arruamento central do Cemitériode Alvaiázere

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Sarmento de Alarcão, falecida em1877. Construído nos primeiros tem-pos dos cemitérios públicos rurais,quando ainda se começavam a esbo-çar as novas tipologias funerárias,esta edificação tem, entre as suas par-ticularidades mais relevantes, o factode ser o jazigo de uma mulher, e nãode um homem rico ou poderoso. E éde destacar, igualmente, o facto de sero jazigo de uma só pessoa, e não deuma família inteira, razão pela qual asepultura está no chão, e não numaprateleira como era típico nos jazigoscolectivos. Ainda que artisticamentesingelo, é uma preciosidade históri-ca, tanto mais que a mulher ali sepul-tada tem ascendência que remonta àrealeza dos primórdios dos reinos peninsulares.

Do princípio do século XX, existem neste cemitério alguns exemplares decampas cuja raríssima originalidade reside na sua decoração epigráfica quepreenche, com grande beleza, a totalidade do tampo.

Com interesse para a histórialocal, sem descurar o seu valor ar-tístico, refira-se a existência, logo àentrada, à mão direita, de um ta-lhão com sepulturas dos párocosda freguesia.

No Concelho de Alvaiázere,merece indisputado destaque oCemitério de Maçãs de Dona Ma-ria. Construído em 1855, deixou deestar em funcionamento um séculodepois, quando foi construído umnovo espaço cemiterial.

Logo que Maçãs de Dona Ma-ria passou a ter um novo espaço de

Jazigo-capela de D.ª Leonarda Madalena deMascarenhas de Velasques Sarmento de

Alarcão, Almoster (Alvaiázere)

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inumação, ao cessarem no antigo cemitério novos enterramentos, não sofreramas edificações ali existentes as destrutivas remodelações que vêm danificando opatrimónio cemiterial português. Assim sendo, preservou-se, por falta de uso,um pequeno cemitério de características rurais, com os traços arquitectónicos eescultóricos essenciais que possuía em meados do século XX.

Mais do que pela riqueza individual das suas construções, o Cemitério deMaçãs de Dona Maria vale sobretudo como documento, relativamente bem pre-servado, da época em que esteve em funcionamento. O facto de ter apenas doisjazigos-capela é ilustrativo da pequenez de um agregado populacional quevivia maioritariamente da actividade agrícola. Um deles pertencia à família deSilveira e Castro; o outro era da família de António dos Santos Guia Gameiro

Têm grande valor histórico e artístico os jazigos catacumbais da famíliade João Augusto Simões Favas e da família de Callisto Curado: o primeiro,ostentando um elegantíssimo obelisco; o segundo, contendo, além de umformoso obelisco, um belíssimo gradeamento de ferro forjado.

Vista do Cemitério de Maçãs de D.ª MariaMaçãs de D.ª Maria (Alvaiázere)

O Cemitério de Maçãs de Caminho, com data de fundação posterior ao deMaçãs de Dona Maria, beneficiou igualmente do facto de, em pleno século XX,ter sido substituído por um outro que lhe sucedeu como terreno de inumação daparóquia. Em consequência de Maçãs de Caminho ter uma população, numeri-camente, muito inferior à de Maçãs de Dona Maria8, o seu cemitério tem dimen-

8 Em 1864, Maçãs de Dona Maria tinha 2 502 habitantes. Na mesma data, Maçãs de Caminho tinha apenas 511.

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sões ainda mais peque-nas, limitando-se as suasconstruções fúnebres acerca de uma dezena decampas perpétuas, algu-mas das quais, compostasapenas de uma laje epi-grafada rodeada por umgradeamento de ferro for-jado: modelo muito usualentre famílias de médiosrecursos. Como, também,era comum, a maior parteda superfície cemiterial eraconstituída por simplescovais, destacados peloabaulamento da terra quecobria o féretro e delimita-dos nas extremidades porpequenos marcos de pe-dra, muitos deles, entretan-to, desaparecidos.

O actual Cemitério da Pelmá, situado fora do aglomerado populacionaldesta aldeia, parece ser uma construção do século XX. Pode presumir-se queterá existido outro cemitério, oitocentista9, próximo da igreja matriz. Em frentedesta, conservam-se duas lápides sepulcrais que poderão ser desse primitivocemitério ou mesmo anteriores à sua edificação. No novo cemitério, pelo seuinteresse estético, bem como pela sua relevância para a história social local, me-rece especial referência o jazigo-capela que, em memória de seus pais, mandouerigir Manuel Jorge Bachá. O mesmo se diga do jazigo-capela dos Viscondes deSão Pedro do Rego da Murta. Noutra escala completamente diferente, mas comalgum valor artístico, aluda-se à campa de Vitorino Nunes Junior.

Vista do Cemitério de Maçãs de Caminho,Maçãs de Caminho (Alvaiázere)

9 O primeiro assento dos livros de registo paroquial que indica um enterramento no «cemitério público»da Pelmá, de forma sequencial e irreversível, tem data de 17 de Janeiro de 1867. Infelizmente, porrazões várias, não podemos utilizar este tipo de fonte documental para datar a inauguração de cada

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No património do Cemitério de Pussos é credor de destaque o seu portãoem ferro forjado, não apenas por conter uma data completa –18/7/1871 –, oque é raro, mas por integrar, simultaneamente, os mais usuais símbolostanatológicos do tempo: a cruz, a caveira com as tíbias cruzadas, a saudade ea perpétua, a ampulheta alada, a grinalda, a papoila, o caduceu, os fachosinvertidos e o anjo alado.

Além de alguns jazigos-capela da primeira metade do século XX, o Ce-mitério de Pussos conserva ainda alguns exemplares dispersos de campasperpétuas e de memoriais oitocentistas ou novecentistas que, pelo seu valorartístico e conteúdo histórico, merecem ser preservados. Podem referir-se,entre outros: o jazigo do Dr. José Barata de Vasconcelos e Silva ou o jazigo deBernardino José Fernandes.

um dos vários cemitérios públicos, sem recorrermos à confirmação desse dado através de outrasfontes. Em abono desta reserva, diga-se que vários assentos de 1862 indicam como local deenterramento o «cemitério público», seguindo-se outros assentos que referem como local deenterramento o «adro desta Igreja», desde 1862 a 1867. Em muitos registos paroquiais, o «adro» eraconsiderado como «cemitério público».

Jazigos-capela dos pais de Manuel Jorge Bacháe dos Viscondes de S. Pedro do Rego da Murta

Pelmá (Alvaiázere)

Sepultura de Vitorino Nunes JuniorPelmá (Alvaiázere)

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Jazigos-capela do Cemitério de PussosPussos (Alvaiázere)

Portão do Cemitério de PussosPussos (Alvaiázere)

Jazigo do Dr. José Barata de Vasc.los e SilvaPussos (Alvaiázere)

Jazigo de Bernardino José FernandesPussos (Alvaiázere)

Erigido mesmo ao lado da igreja matriz, o primevo Cemitério do Rego daMurta, apesar da edificação de um novo espaço cemiterial, foi sofrendo uma

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continuada “modernização” das suas mais antigas construções funerárias,restando hoje muito poucos exemplares antigos com valor artístico. Exceptuam--se, entre outros: o jazigo-capela de Agostinho Gomes dos Santos; o jazigo--capela da Família de Manuel D. da Silva; a campa de Guilhermina da Pieda-de; a campa de Emília da Conceição Santos (1889-1938) que, além do bomtrabalho de cantaria, tem duas fotografias esmaltadas; a campa de AntónioDuarte (1913-1986) e de sua esposa Maria Virgínia (1918-1976); e a campade Maria José Ramos da Silva.

O cemitério novo, que à entrada tem gravado, em pedra, o ano de 1980,possui vários jazigos-capela com alguma qualidade estética, como os dasfamílias de António Gomes ou o de António Dalmácio da Graça.

Concelho de Ansião

Com a ampliação que se efectuou no século XX, o Cemitério do Alvorge,cujo portão tem a data de 1867, ficou, urbanisticamente, organizado com doisarruamentos perpendiculares, em forma de cruz, e com quatro quarteirões: doisdo “cemitério velho” e dois do “cemitério novo”, um esquerdo e outro direito.

Conforme é usual em todo o País, situam-se no corredor principal, logo àentrada, as suas mais sumptuosas construções funerárias. Sobre todas elas,destaca-se um jazigo de traçosrevivalistas, neogóticos, mandadoerigir, em 1888, por D.ª Rachell A.d’A. Motta, para os seus pais – o ba-charel José N. da Motta e D.ª Felis-bella d’A. Motta – e para sua irmã,D.ª Virgínia E. Motta, os quais já seachavam sepultados neste cemitério.

Entre meia dúzia de outras cons-truções fúnebres meritórias, é muitointeressante o memorial de AníbalPimenta de Carvalho, falecido em1945, decorado com a sua própriaassinatura.

Se o desejo ou a necessidadeda proximidade do sagrado, por umlado, retardou a construção dos ce-

Jazigo do bacharel José N. da Motta efamiliares

Alvorge (Ansião)

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mitérios públicos fora das localidades; por outro, fez radicar junto de antigostemplos os novos espaços sepulcrais. Assim aconteceu em Ansião, onde aimplantação do cemitério oitocentista se fez numa área designada como Igre-ja Velha10, na qual terá existido o medieval edifício paroquial desta vila, subs-tituído pelo actual, ao que se pensa, próximo do ano 1593.

Tal como em Pousaflores ou em Torre de Vale de Todos, no Cemitério deAnsião foi sepultado no corredor principal, em campa rasa, um clérigo, nestecaso o Padre José Rodrigues Portela (1839-1912). Ladeiam esta via váriosjazigos-capela, dentre os quais se destaca um, de gosto neogótico, da famíliade D. João de Mascarenhas Vallasques Sarmento e Alarcão.

Tendo este cemitério assinalável riqueza patrimonial, poderíamos referiraqui uma ou duas dezenas de construções funerárias, de várias tipologias,com valor histórico ou artístico, como, por exemplo, os memoriais a José Luizde Macedo (1810-1898), a Carlos Manoel Vaz, a Josefa Lima, a MelâniaPortela (1871-1944) ou a Elias da Cruz (1881-1964).

O portão do cemitério tem a data de 1875.

O cemitério oitocentista do Avelar foi instalado no adro da antiga igrejaparoquial, que havia sido substituída por um novo templo cerca de 176711. Oespólio do actual cemitério, que no portão de entrada tem registado o ano1900, está condicionado, quanto ao que aqui nos interessa, pela sua cronolo-gia. Mesmo assim, a grande pujança económica desta freguesia permitiu, aalgumas das famílias que aqui habitaram, edificar construções funerárias de

10 Antes da construção do cemitério público, alguns enterramentos eram feitos no «Adro da cappellade S. Lourenço, junto a esta villa d’Ancião», como sucedeu, por exemplo, a 26 de Agosto de 1855.Sobre a identificação do local da Capela de São Lourenço com o espaço da igreja medieval de Ansião,veja-se: MÁRIO RUI SIMÕES RODRIGUES e SAUL ANTÓNIO GOMES, Notícias e Memórias ParoquiaisSetecentistas. Ansião, Coimbra, CHSC-Palimage, 2012, pp. 150-151 et passim. O «largo» ou «terrei-ro» de São Lourenço acabou por ser convertido no novo espaço cemiterial de Ansião, construindo-seaí o cemitério público em obediência aos decretos de 1835 e 1844, talvez pelos anos de 1855-1856,o qual adquiriu a designação de «Cemitério de São Lourenço», que se subsumiu à designação de«Cemitério Público».11 Como atrás dissemos relativamente à Pelmá, era usual confundir as designações «adro» e «cemi-tério público». Por exemplo, num assento de 2 de Novembro de 1863, o pároco da Freguesia doAvelar, refere o seguinte: «foi sepultado no Adro, digo no semitério público». E, num assento de 13 deJaneiro de 1865, diz-se: «sepultado no Adro desta Igreja que serve de semetério público». Um assentode 18 de Abril de 1873 esclarece-nos sobre a localização do «cemitério público»: «adro da extintaegreja velha que serve de cemitério público». Outro assento, de 8 de Maio de 1873, é ainda mais claro:«adro da antiga egreja matriz desta freguezia, a qual serve de cemitério público».

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

grande valor artístico. Pela dimensão e, sobretudo, pela sua peça escultórica,sobre todas se destaca o jazigo de Maria Rosa Pimentel Teixeira (1831-1903).Acrescentem-se, ainda: o jazigo, em forma de arcaz, de Joaquim Simões Dias(1839-1913) e de Bernardina Simões Dias (1841-1923); o jazigo catacumbalde Bernardo Lopes e de Joaquina de Jesus; e o jazigo-capela da Família deManuel Simões da Silva (1912), de feições revivalistas, num misto de traçosneogóticos e neomanuelinos.

Jazigo de Maria Rosa Pimentel TeixeiraAvelar (Ansião)

Jazigo-capela da Família de M. Simões da SilvaAvelar (Ansião)

Pouco frequentes na região – tanto quanto o permitem concluir os exem-plares subsistentes –, observam-se no Cemitério do Avelar algumas campasperpétuas com decorações compostas por símbolos profissionais, como é ocaso da campa de Francisco Simões da Silva, que talvez fosse sapateiro, e daarca funerária de António J. Simões, que era pedreiro.

O Cemitério de Chão de Couce, tal como os de Alvorge e da Lagarteira,ostenta no seu portão a data de 1867. Possui alguns exemplares notáveis, orapela qualidade estética das cantarias ou das esculturas, ora pela sua origina-lidade. Numa perspectiva escultórica, os melhores exemplares são dois jazi-gos, actualmente desprovidos de qualquer identificação, que as seguintesimagens ilustram:

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Pela sua originalidade, é justo referir a sepultura de D.ª Maria Augusta deSá e Cascão, em forma de mesa, e o jazigo-capela de P. Manuel M. Gaspar eFamília com feições Arte Nova.

São, também, dignos de referên-cia os dois memoriais em forma decoluna, simetricamente colocadosem frente da capela funerária, um dosquais dedicado a Francisco Rodri-gues (1804-1881).

A riqueza patrimonial deste ce-mitério permite aludir a muitos outrosexemplares, tais como: a campa per-pétua, com um nicho em forma dealpendrada, de Alberto Ferreira; acampa perpétua de Albertino Lopes;o jazigo catacumbal da família deJanuário Sousa Ribeiro; o jazigo-ca-pela da Família de José Ribeiro dosSantos, de inspiração neogótica; ojazigo-capela da Família Godinho(1918); ou o memorial dedicado, pelos seus pais, a Maria Virgínia Freire (1899--1928), donzela de excepcionais virtudes.

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

Vista do fundo do Cemitério de Chão de CouceChão de Couce (Ansião)

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

O primeiro enterramento no Cemitério da Lagarteira terá ocorrido a 4 deAgosto de 1861. O portão tem inscrita a data de 1867. Por esse tempo, afreguesia teria cerca de sete centenas e meia de habitantes.

Num espaço funerário que continuou a ser utilizado até à actualidade,quase nada resta do primeiro século de existência. Constituem excepção,entre poucas mais: a campa de João S. Godinho de Carvalho, falecido em188812; a campa de Maria Godinho de Carvalho, falecida em 1894, muitosemelhante à anterior; ou a campa de Patrocínia Godinho Coelho (1871--1949) e de José dos Santos Coelho (1868-1955).

Vista geral do Cemitério da LagarteiraLagarteira (Ansião)

Campa de Maria Godinho de CarvalhoLagarteira (Ansião)

Com o antigo Cemitério de Pousaflores correu um processo semelhanteao que vimos com Maçãs de Caminho e com Maçãs de Dona Maria, razão porque se acham as suas construções funerárias razoavelmente preservadas,descontada a inexorável degradação provocada pela passagem do tempo ealguma incúria dos viventes. À entrada do cemitério, no pavimento do corre-dor, jaz, em campa rasa, epigrafada, o pároco Pedro Borges, nascido em 1831e falecido em 1893. Do conjunto cemiterial, claramente, destoa um jazigo--capela edificado em 1940, desfasado, na cronologia e no estilo, das demaisedificações, que são poucas, como era habitual na generalidade dos cemité-

12 Há uma campa semelhante, de um homónimo falecido em 1894.

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rios rurais, nos quais a individualidade das sepulturas, muitas vezes temporá-rias, se limitava a um abaulamento de terra, moldado sobre o corpo do defun-to. Como exemplo de um cemitério rural que pela escassez de sepulturas perpé-tuas exprime a pobre sociedade desse tempo, o conjunto merece ser preserva-do, havendo três ou quatro exemplares com algum interesse estético.

O portão do cemitério tem a data de 1885, tendo o primeiro enterramentoocorrido a 4 ou a 5 de Setembro deste ano.

Vista geral do Cemitério de PousafloresPousaflores (Ansião)

O Cemitério de Santiago da Guarda, que recebeu o primeiro corpo a 25de Outubro 1855, tem escrita no seu portão, em ferro forjado, a data de 1879.

Teria uma grande riqueza patrimonial se, quando construíram o novocemitério, tivessem preservado as construções fúnebres do antigo. Dois jazi-gos-capela constituem grandes preciosidades, ambos inspirados numrevivalista estilo neogótico-manuelino: um, dedicado à memória de D.ª M.Augusta L. Vieira; outro, da família Canaes Vieira, mandado erigir por D.ªMaria Guilhermina Canaes Vieira Ferreira, em memória de seu esposo, AcácioLopes Ferreira, e dos seus tios. Ostenta grande elegância um memorial, com-posto por um plinto tronco-cónico, encimado por uma urna, homenageando oPadre João Dias da Silva, falecido em 1910. Destaca-se, pela sua originalida-de, a cabeceira de uma campa, cuja forma recorda uma harpa, dedicada aMaria da Conceição, nascida em 1885 e falecida em 1945.

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Situado quase ao lado da igreja paroquial, o Cemitério da Torre de Valede Todos, que recebeu o primeiro féretro a 30 de Julho de 1858, tem peque-nas dimensões: as suficientes para uma localidade que, em 1864, possuía

apenas 757 habitantes.Talvez como revivescência de

tempos passados, ao fundo do corre-dor de entrada, antes da capela fune-rária, está sepultado, em campa rasa,o prior António Lopes do Rego, faleci-do em 1913, recordado numa lápide,graças à homenagem da criada e deum filho... Têm interesse: a sepulturade Joana Dias Fazenda, falecida nes-te mesmo ano, composta de uma lápi-de epigrafada e um gradeamento deferro forjado; bem como outras cam-pas com cabeceira esculturada e, nal-guns casos, com fotografia esmaltada.

O portão do cemitério contém a da-ta de 1885 e a inscrição «Campo Santo».

Jazigo-capela de D.ª M. Augusta L. VieiraSantiago da Guarda (Ansião)

Jazigo-capela da Família Canaes VieiraSantiago da Guarda (Ansião)

Cemitério e Igreja ParoquialTorre de Vale de Todos (Ansião)

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Concelho de Castanheira de Pêra

Ainda que situado num concelho rural, o Cemitério de Castanheira dePêra possui características que nos permitem classificá-lo como um extraordi-nário cemitério de feições urbanas, no qual se acham algumas construçõesfunerárias capazes de ombrear com aquelas que se podem encontrar nosmais prestigiados cemitérios portugueses de Lisboa, Porto ou Coimbra.

Riquíssimo, tanto pela quantidade, como pela qualidade dos seus jazi-gos, alguns dos quais possuidores de uma rara monumentalidade, este cemi-tério deve à pujança da antiga indústria têxtil desta vila, assim como à grande-za de várias famílias (burguesas ou aristocráticas) que aqui viveram, o ímparvalor histórico e artístico que ostenta, que se afigura merecedor de um projectoglobal de preservação.

Caindo-se na grave injustiça de não referir outros exemplares, merecemdestaque obrigatório: o Memorial aos Viscondes de Castanheira de Pêra; oJazigo-capela de Domingos Correia de Carvalho, de estilo neo-gótico; o Jazi-go de Manuel Rodrigues Dinis, em forma de casa de morada; ou o Memorialao Visconde de Nova Granada, José Alves Barreto, contendo uma estátua debronze, sob um baldaquino de lioz amarelo.

Arruamento principal do Cemitériode Castanheira de Pêra

Jazigo de Manuel Rodrigues Dinis,Castanheira de Pêra

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Apesar do escasso volume demográfico da sua freguesia, que em 1864tinha apenas 559 habitantes, a aldeia do Coentral surpreende pela beleza,tanto do seu casario como da sua paisagem. E o seu cemitério, não obstantea sua pequena dimensão, possui alguns exemplares que fazem jus à elevadaestatura económica de algumas famílias que ali tinham interesses ou que aliviviam.

Não são muito numerosos os seus jazigos-capela. Mas, tal como as habi-tações da terra dos vivos, assim as da terra dos mortos não deslustrariam umaqualquer vila portuguesa de média grandeza. Alguns dos jazigos são verda-deiramente belos e portentosos. Sem desprimor para outros que são maisrecentes, refira-se o jazigo de Francisco Nunes Barata e sua família, de 1922.

Aludamos, ainda, a outras interessantes construções funerárias, taiscomo: a campa de José Simões Claro, falecido na América do Norte, em 1921;a campa de Ana Henriques Diniz e José Diniz; a campa de Maria H. da Con-ceição Barreto, falecida em 1913; e o jazigo, em forma de arca, da família deManuel Barata (1918).

Pelo interesse meramente histórico da personalidade nela inumada, éinteiramente merecedora de alusão a sepultura de Manuel Dinis Henriques,que, entre outras realizações, fundou o jornal O Ribeira de Pêra.

O portão do Cemitério do Coentral ostenta a data de 1908.

Memorial ao Visconde de Nova GranadaCastanheira de Pêra

Memorial aos Viscondes de Castanheira de PêraCastanheira de Pêra

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Concelho de Figueiró dos Vinhos

O Cemitério de Figueiró dos Vinhos possui uma das mais belas constru-ções funerárias da região aqui estudada: um monumento em forma de urna,dedicado pelo seu inconsolável es-poso, a D.ª Maria Justina Quaresmade Oliveira Vale do Rio, falecida, ape-nas com 26 anos de idade, quandodava à luz o seu segundo filho. É umaobra de cantaria e escultura de rarabeleza, da oficina lisboeta de AntónioMoreira Rato & Filhos.

Pelos seus elementos escul-tóricos e simbólicos, merece especi-al destaque o Jazigo da Família Gui-marães. Pelo seu busto em bronze epelo interesse histórico do homena-geado, refira-se a campa perpétua deManuel Henrique Pinto, pintor natu-ralista do Grupo do Leão.

Arruamento principal do Cemitério do CoentralCoentral (Castanheira de Pêra)

Vista de várias sepulturasCoentral (Castanheira de Pêra)

Jazigo monumental de D.ª Maria JustinaQuaresma de Oliveira Vale do Rio

Figueiró dos Vinhos

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

Não obstante se situar numa freguesia rural de escassa dimensãopopulacional – 1 680 habitantes em 1864 –, o Cemitério da Aguda conservaalgumas construções funerárias de interesse, que resistiram à generalizada“modernização” efectuada nas últimas décadas. É o caso, entre outros: da

Pormenor escultórico do Jazigoda Família Guimarães Figueiró dos Vinhos

Vista de várias sepulturas, incluindo uma falsaruína de gosto romântico

Figueiró dos Vinhos

Sepultura de José Lopes do RegoAguda (Figueiró dos Vinhos)

Sepultura de Maria Palmira da SilvaAguda (Figueiró dos Vinhos)

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campa de Palmira da Conceição Leal, falecida em 1937, que, além do bomtrabalho de cantaria, tem um gradeamento de ferro forjado e uma fotografiaesmaltada; do jazigo, tipo arcaz, de Abílio de Assunção; do jazigo, do mesmotipo, de José Lopes do Rego; do jazigo-capela de António Freire Pássaro; ouda sepultura, gradeada, de Maria Palmira da Silva, falecida em 1922.

No adro da igreja paroquial, em frente da sua porta, ainda subsistem algu-mas lápides epigrafadas, quase totalmente ilegíveis, que poderão ser anterioresà construção do cemitério público. O seu portão contém a data de 1885.

No Cemitério de Arega, cujo portão ostenta a data de 1868, são já muitoescassas as construções funerárias oitocentistas e da primeira metade doséculo XX. E estas sobreviventes são, quase todas, singelas campas rasas,com um emolduramento inciso, em jeito de cartela rectangular com os ângu-los boleados, semi-circulares, no interior da qual se gravou uma sintéticainscrição epigráfica. Desta tipologia de sepultura, refiram-se as campas deJosé Rodrigues e de Bernardina Rosa.

Sepultura de José RodriguesArega (Figueiró dos Vinhos)

Sepultura de Manuel Gomes e Rosa de JesusArega (Figueiró dos Vinhos)

Concelho de Pedrógão Grande

Não existindo já o primitivo cemitério público de Pedrógão Grande, quese situaria em frente da igreja matriz, são escassas as construções oitocentistase das primeiras décadas do século XX existentes no actual cemitério. Dentre

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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elas, destacam-se: a sepultura de Manuel Thomaz David e sua esposa, Mariada Conceição das Neves David, que tem sobre o tampo uma “coluna quebra-da”; a sepultura de Joaquim Pires Coelho David e sua esposa Maria JoséLopes David, em cuja cabeceira está uma formosa estela decorada com umasaudade; o memorial dedicado a Maria Assunção das Neves, contendo, nasua cabeceira, sobre um plinto, um obelisco decorado com uma saudade euma perpétua, encimado por uma cruz; o memorial dedicado a Jacinta dasNeves, falecida em 1864, composto de um obelisco, implantado sobre a cam-pa perpétua do seu marido, António Jacinto Fernandes; o jazigo catacumbalde Januário David Andrade e de sua mulher, Maria Joaquina Andrade; ou omemorial a Silvestre Jacinto Henriques Coelho, falecido em 1936, que tem nacabeceira uma estela em forma de portal gótico.

Sepultura de Manuel Thomaz David e esposaPedrógão Grande

Memorial a Silvestre Jacinto Henriques CoelhoPedrógão Grande

O antigo Cemitério da Graça, construído quase em frente da igreja paro-quial, ainda que do outro lado da estrada, possui, apesar da sua pequenaextensão, algumas construções funerárias merecedoras de destaque,designadamente: o jazigo-capela de Albertino Francisco do Carmo; a campade Carolina da Conceição Silva Graça; ou a campa de José João Nunes.

Neste cemitério existem, também, algumas interessantes estruturas se-pulcrais em ferro forjado.

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O Cemitério de Vila Facaia, que aparenta ter sido edificado no século XX– talvez em substituição de outro, oitocentista, que se pode presumir que sesituaria nas traseiras da igreja paroquial –, tem poucas construções anterioresa meados daquela centúria. Refiram-se: a campa de M. António Lopes, iden-tificado como professor, falecido em 1932; a campa de Hermínia Lopes; acampa de João Coelho da Fonseca e de Maria Luísa da Fonseca; e a campade Adelaide Oliveira Dias (falecida em 1928) e de seus filhos.

Vista do antigo cemitérioGraça (Pedrógão Grande)

Diversas sepulturasGraça (Pedrógão Grande)

Sepultura de João Coelho da Fonseca e esposaVila Facaia (Pedrógão Grande)

Sepulturas de M. A. Lopes e de Hermínia LopesVila Facaia (Pedrógão Grande)

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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Todos estes cemitérios foram edificados tendo por base a plantaortogonal, adoptada como padrão quase invariável em Portugal. Os mais pe-quenos organizavam-se a partir de uma rua central, interseptada, nos cemité-rios de maiores dimensões, por uma rua perpendicular.

Evidente em todos eles é a preferência das famílias de maiores recursospelas áreas contíguas ao arruamento principal – muitas vezes único –, e pró-ximas da porta de entrada. É nestas áreas que se erguem, quase sem excepção,os jazigos mais imponentes e as campas mais notáveis.

Além da sua função prática, servia o portão de ferro forjado como meio deostentação da capacidade financeira da freguesia. Olhando só à sua dimen-são e à sua estética – ainda que não disponhamos de investigações individu-alizadas para cada cemitério ou especializadas nesta pequena temática daarte cemiterial –, pela análise perfunctória realizada, vislumbra-se em algu-mas localidades a preocupação em exibir um portão que se evidenciassepela sua dimensão ou pela sua beleza. As datas, que muitos deles hoje con-têm, sugerem uma construção, muitas vezes, posterior à do próprio cemitério.Por exemplo, tendo-se efectuado o primeiro enterramento no cemitério públi-co de Santiago da Guarda a 25 de Outubro de 1855, ostenta o seu portão adata de 1879. Noutros casos, porém, coincide a data inscrita no portão com adata conhecida ou intuída do primei-ro enterramento, como sucede comMaçãs de Dona Maria (1855) ou comPousaflores (1885).

Para rodear os antigos cemitéri-os oitocentistas, levantaram-se fortese altos muros de alvenaria, sendoexcepção o de Castanheira de Pêraque é protegido por um gradeamentode ferro, como sucede em alguns ce-mitérios urbanos, como os de Agra-monte e Prado do Repouso, ambosno Porto.

O esgotamento do espaço ce-miterial oitocentista obrigou, no sé-culo XX, a efectuar ampliações ou a Portão do Cemitério de Castanheira de Pêra

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edificar novos cemitérios, sem que, em regra, tivesse havido a preocupaçãode preservar os antigos cemitérios. Casos de ampliação em que ficou clara-mente distinguível a área primitiva e a nova, verificam-se em Aguda, Almoster,Alvorge, Ansião, Arega, Campelo, Castanheira de Pêra, Chão de Couce,Figueiró dos Vinhos e Pussos. Casos de construção de novos cemitérios afas-tados dos primevos, verificam-se em Avelar, Graça, Maçãs de Caminho, Ma-çãs de Dona Maria, Pedrógão Grande, Pelmá, Pousaflores, Rego da Murta,Santiago da Guarda e Vila Facaia. Alguns dos cemitérios oitocentistas conti-nuam activos, talvez ainda dentro dos primitivos muros, como sucede emLagarteira, Torre de Vale de Todos e Coentral.

Ainda que só aprofundados estudos individualizados permitam conclu-sões mais seguras, os cemitérios aqui analisados não diferiam, quanto à rari-dade ou ausência de capela funerária, daquilo que era o mais comum noscemitérios não urbanos. Além de razões financeiras, impeditivas da constru-ção destas estruturas, a proximidade da igreja paroquial tornava-as dispensá-veis. Com grande frequência, em todo o País, as capelas funerárias foram,geralmente, edificadas em pleno século XX. Têm capelas funerárias, ou insta-lações de apoio, ao fundo do corredor, por exemplo, os cemitérios deAlvaiázere, Ansião, Chão de Couce, Coentral, Pelmá, Pussos e Torre de Valede Todos.

Eis, pois, a imagem possível, necessariamente sintética13, da realidadecemiterial oitocentista no Nordeste do Distrito de Leiria.

Bibliografia

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CATROGA, Fernando – O Céu da Memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dosMortos em Portugal, 1756-1911, Coimbra, Minerva, 1999.

13 Este tema merecia uma investigação mais aprofundada, mas também muito mais demorada, recorren-do, sistematicamente, aos registos paroquiais e à documentação do Governo Civil de Leiria, das câmarasmunicipais e das juntas de freguesia. Tal investigação duraria muitos meses ou mesmo anos.

Os cemitérios públicos no século XIX: Atenção especial ao nordeste do Distrito de Leiria

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

DIAS, Vítor Manuel Lopes – Cemitérios, jazigos e sepulturas. Monografia. Estudohistórico, artístico, sanitário e jurídico, Coimbra, 1963.

SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos – Arte e Sociabilidade no Porto Romântico, Porto,Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da Universidade CatólicaPortuguesa, 2009.

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A MORTE DE JOSÉ RELVASNA CULTURA REPUBLICANA

NUNO PRATES*

Resumo

José Relvas (1858-1929), o agricultor, político, diplomata, músico, coleci-onador de arte, cultivava na amizade com Raul Lino (1879-1874) um projetode vida que se traduz na casa, que guarda um gosto particular de uma época:a Casa dos Patudos, um projeto que contemplasse espaços dignos para apre-ciar a coleção e, ao mesmo tempo, fosse residência familiar.

A Casa dos Patudos vive essencialmente das suas coleções artísticas,com incidência na arte portuguesa. O seu proprietário manifestou, várias ve-zes, a necessidade de mostrar o que se fazia de melhor ao nível das BelasArtes e Artes Decorativas.

José de Mascarenhas Relvas faleceu a 31 de outubro de 1929, na suacasa, em Alpiarça. Pela ausência de herdeiros diretos, legou a grande maioriados seus bens (a casa, a colecção de arte, a quinta, e o dinheiro) à CâmaraMunicipal de Alpiarça. Com o dinheiro pediu que se construísse uma Institui-ção de Apoio aos Idosos e às Crianças.

A morte desta figura marcante do Século XX está intimamente ligada àcultura republicana. As várias homenagens valorizaram o homem e a Repú-blica. Durante o Estado Novo foram uma forma de fazer perdurar os seusideais. Ainda hoje, no dia 31 de outubro, são várias as iniciativas que serealizam para o homenagear.

A imprensa da época demonstra o sólido prestígio deste republicano,relatando a importância de espírito e de carácter do homem que viveu e lutoupelo que acreditava: Um Portugal, livre Democrático e Republicano.

* Conservador da Casa dos Patudos-Museu de Alpiarça. Licenciado em História (Variante de Arque-ologia), + Ramo de Formação Educacional pela FLUC e pós-graduado em Museologia pela Universi-dade de Évora.

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

1. José Relvas – O homem

José Relvas nasceu a 5 de março de 1858 na vila da Golegã, filho dofotógrafo Carlos de Mascarenhas Relvas (nascido em 1838 e falecido naGolegã em 1894). Este, era filho de José Farinha Relvas de Campos (1791-1865) e de Clementina Amália de Mascarenhas Pimenta (c.1810-1859).

José Farinha Relvas de Campos era na-tural da Sertã (de uma localidade denominadaRelvas, freg. de Ermida). Em 1820, José Fari-nha de Campos veio da Sertã para a Golegã,onde já se encontrava um irmão. Vem trabalharcomo feitor agrícola para a Quinta da Labruja.

José Relvas, descendente, por via ma-terna, dos Condes de Podentes, não usou otítulo a que tinha direito. Frequentou a Uni-versidade de Coimbra entre 1875 e 1877, masfoi em Lisboa que veio a concluir o CursoSuperior de Letras em 1880, com uma tesesobre Direito Feudal.

A 5 de fevereiro de 1882, casou comEugénia Antónia de Loureiro da Silva Mendes(sua prima por via materna), filha de Luís deLoureiro Queiroz Cardoso da Costa Leitão

(1844-1906) e Maria Antónia da SilvaMendes (1845-1872), os Viscondes deLoureiro, residentes em Viseu.

José e Eugénia tiveram três filhos,nenhum dos quais sobreviveu aos pro-genitores: Maria Luísa de Loureiro Rel-vas (1883-1896), Carlos de Loureiro Rel-vas (1887-1919) e João Pedro de Lou-reiro Relvas (1887-1899). Carlos suici-dou-se aos 35 anos (14-12-1919).

Fotografia de José Relvas, fotografiaGuedes (Santa Catarina, Porto)

Inícios do Século XX(Arquivo Histórico da Casa dos

Patudos-Museu de Alpiarça)

Fotografia do Casamento de José Relvascom Eugénia da Silva Mendes, fotografia deMargarida Relvas Navarro, 1882(Arquivo Histórico da Casa dos Patudos-Museude Alpiarça)

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No ano de 1888, Relvas vem viver com a sua família para Alpiarça, paraa Quinta dos Patudos; o nome Quinta dos Patudos deve-se ao facto de existi-rem muitos patos na quinta.

Ocupou-se da gestão das propriedades da família a partir de 1882; tinha23 anos. A quinta produzia cereais, azeite, cortiça e vinho. Relvas empenhou-se particularmente neste ultima domínio; reformou o plantio, as castas e aprodução.

José Relvas apresentava-se na vida pública como Agricultor de Alpiarça.A agricultura era a sua maior fonte de rendimento; e a produção vinícola amais significativa. Contudo, nas suas propriedades, José Relvas fazia produ-zir cereais, cortiça e azeite; e obtinha dividendos da criação de gado.

Tendo como parceiros, entre outros, Jerónimo da Costa Bravo, HenriqueSauvinet e Augusto Lopes Joly, Relvas fazia também significativos investi-mentos em ações de diversas companhias.

O Arquivo Histórico da Casa dos Patudos documenta o envolvimento deJosé Relvas na organização e representação dos agricultores ribatejanos. Otema que, indubitavelmente, mais mobiliza a sua atenção e o seu empenho éo dos vinhos. Este protagonismo que desponta em 1901 e se afirma, sobretu-do, a partir de 1906, de uma forma completamente absorvente, radica em

Retrato de D. Eugénia da Silva MendesLoureiro e dos seus dois filhos: Carlos e João

Pedro, José Malhoa, óleo sobre tela, 1899(CP-MA 84.250)

Retrato de Maria Luísa de Loureiro Relvas,José Malhoa, óleo sobre tela, 1896

(CP-MA 84.310)

A morte de José Relvas na cultura republicana

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primeiro lugar no homem de Alpiarça, que ama a paisagem da lezíria, com osseus emblemas sociais e culturais que a identificam: os campinos, o gado, asterras alagadas do Tejo, as oliveiras e o montado, o vinhedo emergente.

Relvas participou em reuniões da Comissão Central de Agricultura, ondea sua opinião obteve eco. A identificação de José Relvas com os protestos dosagricultores não lhe outorgou apenas representatividade associativa. Comosucede frequentemente, a mobilização associativa, que tomou o ímpeto polí-tico de Relvas, foi um catalizador.

O envolvimento de José Relvas no movimento associativo de proprietári-os, agricultores e produtores de vinho, manifestado pela presença em reuni-ões, pela redação de discursos e de notas para jornais, é continua desde1901 a 1929.

2. José Relvas – O político

Em 1882, com apenas 23 anos, inicia a sua carreira política: entre feve-reiro e dezembro desse ano é Presidente da Câmara Municipal da Golegã.

A partir de 1907, JoséRelvas estabelece uma assu-mida ligação ao Partido Re-publicano Português. Partici-pa em manifestações, comíci-os e reuniões políticas, umpouco por todo o País. Quan-do é eleito, a 25 de abril de1909, para o Diretório do Par-tido, a decisão de derrubar amonarquia, com uma revolu-ção, era um objetivo definido.Desta Direção faziam parteBasílio Teles, Teófilo Braga,Eusébio Leão, Cupertino Ri-beiro, Inocêncio Camacho eJosé Barbosa. A campanha deagitação fez de José Relvasum orador de comícios, cujasintervenções eram cuidadosa-mente preparadas. Para que

O Sr. José Relvas falando ao povo, no dia 5 de outubro,após a proclamação da República, da varanda do paço

do município, fotografia de Joshua Benoliel, 1910.Arquivo Histórico da Casa dos Patudos – Museu de

Alpiarça

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esse momento chegasse, Relvas e outros republicanos não se pouparam aesforços ou a riscos.

O momento chegou na manhã de 5 de outubro de 1910. Depois da Procla-mação da República, José Relvas assume as funções de Ministro das Finanças.

Em outubro de 1911, é nomeado para a difícil missão de Ministro Pleni-potenciário de Portugal em Madrid.

A 16 de outubro de 1911, rumou a Madrid na qualidade de representanteextraordinário e Ministro Plenipotenciário. José Relvas foi nomeado paraMadrid e aceitou a missão no mesmo espírito com que aceitara o cargo deMinistro das Finanças. A defesa do projeto revolucionário, proclamado a 5 deoutubro, não estava terminada com as palavras que proferiu na varanda daCâmara Municipal de Lisboa. Exigirá estabilização das finanças publicas.

Entre 1914 e 1915, vai ocupar o seu lugar no Senado, eleito pelo círculoeleitoral de Viseu.

Afastado da política ativa desde 1915, vai ser chamado para defendera República em 1919, assumindo as funções de presidente do Conselho deMinistros e de Ministro do Interior por um período de dois meses. Sobre essemomento escreveu: «Mas devia eu voltar as costas ao regime republicano,depois de ter contraído tão largos compromissos para o seu advento, equando de todos os lados se ouvia o grito de desespero – Delenda Repúbli-ca –, não se visionando nos arraiais monárquicos a possibilidade dumasolução feliz para a nacionalidade? Todos me perdoavam, porque o senti-mento da responsabilidade obliterou-se lamentavelmente; Não me perdoa-va a minha consciência, e ainda é com ela que eu me quero em boa cama-radagem moral.»

José Relvas foi um dos principais dirigentes do Partido Republicano Por-tuguês, entre 1907 e 1910, e teve intervenção decisiva na implantação econsolidação da República, entre 1910 e 1914. Em 1919 termina a sua carrei-ra política, quando é escolhido para desempenhar o cargo de Presidente doConselho de Ministros entre 27 de janeiro e 30 de março desse ano.

O décimo nono Governo da Primeira República, nomeado a 27 de janei-ro de 1919, liderado por José Relvas, ficou conhecido pelo Governo da Des-forra, por ser logo seguido aos governos sidonistas.

Em 1919, a conjuntura política entrou numa crise profunda, após o assas-sinato de Sidónio Pais (14 de dezembro de 1918), por José Júlio da Costa.

É nesta data que, durante um período de grande instabilidade política,José Relvas foi Primeiro-Ministro e Ministro do Interior (27 de janeiro a 30 demarço de 1919).

A morte de José Relvas na cultura republicana

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O Diretório do Partido Democrático, perante esta instabilidade política,exigia um governo de concentração republicana. Para a tarefa de dirigir onovo executivo, nada melhor que um republicano histórico: José Relvas.

A escolha recaiu sobre este, uma vez que era um político moderado, mastambém pelo seu estatuto, pela independência, pelo republicanismo firme etambém pelo seu espírito conciliador. Estas características faziam de Relvas apersonalidade que melhor se adequava à liderança política no contexto histó-rico pós-sidonista.

No seu Governo estavam representados todos os partidos da República,incluindo um membro do partido socialista com a pasta do Trabalho. A suacomposição era a seguinte: Presidência e Interior, José Relvas (republicanoindependente); Justiça, Francisco Manuel Couceiro da Costa (evolucionista);Finanças, António Paiva Gomes (democrático); Guerra, António Maria deFreitas Soares (independente); Marinha, Tito Augusto de Morais (unionista);Estrangeiros, Egas Moniz (sidonista); Comércio, Pinto Osório (sidonista);Colónias, Carlos da Maia (independente pró-sidonista); Instrução, DomingosLeite Pereira (democrático); Trabalho, Augusto Dias da Silva (socialista); Abas-tecimentos, João Henriques Pinheiro (sidonista); e Agricultura, Jorge de Vas-concelos Nunes (unionista).

Os objetivos do Governo de Relvas centravam-se na defesa das institui-ções e na normalização de todas as atividades perturbadas peloscontrarrevolucionários. O Presidente do Ministério sabia que a recomposiçãopolítica do regime exigia uma disciplinada e ordenada distribuição dos cargospúblicos.

Na apresentação do Governo ao Senado, no dia 3 de fevereiro, JoséRelvas afirmou, como nos relata nas suas Memórias Políticas, que: «a suamissão é grande e bem difícil, mas em poucas palavras se resume: subjugarenérgica e rapidamente a revolta monárquica; promover a punição justa elegal de todos os responsáveis por tão criminosa tentativa; restabelecer anormalidade em todo o país e em seguida entregar o regime, salvo e purifica-do, em mãos que forem competentemente escolhidas para a continuação daobra redentora iniciada em 5 de outubro de 1910». O Governo de José Relvasfoi bem acolhido pelo Presidente da República, Canto e Castro, e pela opiniãopública. O Ministério que dirigiu durou apenas dois meses – de 27 de janeiroa 30 de março de 1919 –, mas apesar disso, teve um papel decisivo na Res-tauração da República e na destruição dos restos do sidonismo.

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3. A Casa dos Patudos

O bom momento empresarial, suportado pelas produções da Quinta dosPatudos e pelos investimentos realizados, permitiram a José Relvasredimensionar algumas das edificações da quinta, nomeadamente o lagar e aresidência. Relvas percebeu em Raul Lino um arquiteto dotado de uma cultu-ra europeia, marcada pela robustez dos seus critérios e competências. EmRaul Lino (1879-1974), Relvas terá visto também interesse e capacidade desintetizar uma arquitetura promotora de valores nacionais, capaz de concebere materializar um modelo de casa de feição culturalista, inovadora para aépoca.

José Relvas mandou edificar a Casa dos Patudos para dar uma moradacondigna à sua coleção de arte; e todas as artes tiveram o seu espaço nesta casa.

A construção das novas salas iniciou-se em 1905, com projecto de RaulLino de 1904. O senhor dos Patudos participou nas decisões do arquitecto,discutiu pormenores e deu as suas directrizes. As salas amplas, o salão comacústica para concertos, as galerias exteriores que permitem admirar a lezíria,foram concebidas por um arquitecto moderno para um cliente exigente.

Mas o arquitecto não se limitou a desenhar uma grande residência; es-merou-se em pormenores da decoração interior e enalteceu as artes portu-guesas, usando os azulejos, os ferros, as cantarias e até o mobiliário de fabri-co português. A Casa foi mais tarde ampliada, em, pelo menos, duas fases deobra, sempre com projecto de Raul Lino.

A Casa dos Patudos foi local de romagem de artistas, políticos, escritorese poetas.

Depois de visitar a casa de José Relvas, em fevereiro de 1908, o jornalis-ta espanhol Luis Morote, escrevia no Heraldo: «De pronto, al Salir de unacurva de la carretera, nos encontramos delante de este hermosíssimo manoir,de esta mansion senorial, de este palacio y museo, que modestamente sellama en el país la Casa dos Patudos. … Porque es eso una maravilla de laarquitectura portuguesa, de la casa de campo, que es á la vez castillo, granja,morada de un labrador y de artista. … Aquella línea de ventanas, aquellasgalerias, aquel claustro conventual, aquellos capiteles, aquelles azulejos,convidan á reposar. …O interior dos Patudos es un depósito excepcional deobras de arte, un palácio, un museu…»

José de Mascarenhas Relvas veio viver para Alpiarça a partir de 1888,quando herdou a Quinta dos Patudos por morte de sua mãe. Em 1904, decidiuconvidar o arquiteto Raul Lino para realizar uma reformulação da casa que já

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aí existia, de modo a conferir-lhe novas dimensões. As várias campanhas deobras decorreram num período de 21 anos. A Casa dos Patudos, numa pri-meira fase, foi projetada e construída entre 1904 e 1906. Depois, em 1914decorreu uma nova fase de construção. E, por último, em 1926 foi realizadoum acrescento com o objetivo expresso de albergar a grande coleção de arte.

Empresário Agrícola em Alpiarça, ali construiu uma solida liderança regi-onal dos agricultores, que projetou ao resto do País. E para ali atraiu também,a uma casa concebida expressamente para esse efeito, um grupo de amigosartistas e uma notável coleção de pintura, escultura e artes decorativas.

Carlos Relvas, pai de José Relvas, era homem de múltiplos interessesartísticos, destacando-se a fotografia, onde afirmou o seu espírito inovador.De destacar, de entre o grupo de amigos, José Malhoa, porque as cumplicida-des que entre os dois se ergueram em muito ultrapassaram o mundo dasartes. Na casa de Alpiarça, escreveu João Chagas, «amam-se todas as artesmas só uma se cultiva – a música». Foi para que a sua casa pudesse darexpressão a esse mundo interior, receber condignamente amigos e objetosartísticos, que José Relvas decidiu encomendar em 1903 uma remodelação eampliação do núcleo urbano da sua Quinta. Relvas confiou esse desígnio aum jovem arquiteto, Raul Lino. O projeto da Casa dos Patudos ficou finalizadoem 1906, de cuja varanda o austero empresário agrícola podia alongar o

Casa dos PatudosFotografia, Serviço Técnico da Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça, início do século XXI

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olhar sobre a lezíria de que se sentia parte, e por cujo destino se julgoutambém responsável. Adquire um sentido de critica às políticas governativas ede mobilização dos agricultores da região. A questão já não se resume aAlpiarça e ao vinho; passou a ser a Pátria e o seu futuro. Individualizaremos astrês missões de que José Relvas se investiu entre 1907 e 1914. Em primeirolugar, organização da Revolução, tarefa em que se aplicou, sem qualquerhesitação ou quebra de ânimo, até ao 5 de outubro de 1910. Quando, davaranda da Câmara Municipal de Lisboa, uma câmara que os republicanostinham ganho em 1908, anunciou a vitoria da República, fê-lo por direito pró-prio: quando se filiara no Partido Republicano realizado em Setúbal em 1909,recebera dos votos dos congressistas o mandato claro de preparar e acelerara queda da monarquia. A seguir, a missão reformadora no Governo Provisó-rio, onde aceitou o Ministério das Finanças, por onde passaram não apenasmudanças emblemáticas, como a da moeda, mas também alterações estrutu-rais na administração financeira e na orgânica de alguns regimes tributários.Nessa pasta foram também implicados dossiês relevantes como o do regimee conservação dos bens da antiga Casa Real, o da defesa do patrimónioartístico e arqueológico português, o das repercussões da Lei da Separaçãodo Estado e da Igreja no Orçamento do Estado, o da crise das fianças munici-pais em Lisboa, o da fiscalização estatal das Sociedades Anónimas.

4. A Morte, o testamento e o legado à Câmara Municipal de Alpiarça

José de Mascarenhas Relvas faleceu a 31 de outubro de 1929, na suaCasa dos Patudos. Pela ausência de her-deiros directos, testamentou os seus bens,em especial a Casa e a colecção de arte, àCâmara Municipal de Alpiarça, facultandoinstrucções precisas para a construção deuma instituição de apoio ao idoso e à cri-ança na mesma vila.

Pelas 22h00 do dia 31 de outubro de1929 finou-se, na sua Quinta dos Patudos,o prestigioso cidadão e homem de bemque foi José Relvas. Cidadão, acima de

Retrato Póstumo de José Relvas,José Malhoa, óleo sobre tela, 1930(CP-MA 84.232)

A morte de José Relvas na cultura republicana

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tudo, José Relvas sentiu, com a sua sensibilidade educada ao serviço de umainteligência lúdica, que os males de que padecia a Nação só poderiam encon-trar o remédio necessário numa renovação das instituições. Com a serenida-de e elegância que punha em todos os seus actos, José Relvas lançou-se na

propaganda republicana, com-batendo com distinção, a monar-quia, e sobretudo pondo o seuprestigio pessoal ao serviço doregime que a devia substituir,contribuindo largamente paraaplanar dificuldades, para con-vencer a opinião indiferente deque a República não seria o quediziam os seus inimigos. JoséRelvas que, triunfante o regimeque ajudou a implantar, sealheou da vida política, não de-sempenhou na vida pública o pa-pel de chefe. Foi e quis sempreser um cidadão.

Não pode evocar-se, semuma funda emoção, o passadodeste homem, que era um mode-

lo de exemplares virtudes. Nele se reuniam,em magnifica harmonia, os primores da cultu-ra e da bondade, da inteligência e do senti-mento, do espírito e do coração.

A morte deste homem, que em Portugalfoi alguém pelo espírito e pelo carácter, eraesperada. Mas nem por isso o País a rece-beu com menos sentimento; e a região ondeJosé Relvas nasceu, viveu, lutou, amou ecriou um nome e um sólido prestígio moral, arecebeu com menos profunda mágoa.

José Relvas sofre ainda um duro gol-pe... o suicídio do seu filho do meio: Carlosde Loureiro Relvas, ocorrido a 14 de dezem-bro de 1919. Na sequência deste trágico

Quarto de Dormir de José RelvasFotografia, Serviço Técnico da Casa dos Patudos-

-Museu de Alpiarça, início do século XXI

Calendário de Secretária, parado nodia em que faleceu, 31 de outubro de1929, fotografia, Serviço Técnico da

Casa dos Patudos - Museu deAlpiarça, início do século XXI

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acontecimento, faz o legado à Câma-ra Municipal de Alpiarça. No entanto,vai fazer três disposições no seu tes-tamento que deverão ser sempre cum-pridas: o quarto de Carlos nunca de-verá ser aberto ao público; o seu pia-no jamais poderá tocar; e o retrato queo representa nunca poderá sair dolocal onde está... junto do seu piano.

Fotografia do Funeral de José Relvas (oferta de Manuel Paciência Gaspar à viúva de José Relvas,Eugénia da Silva Mendes, autor desconhecido, 1929

(CP-MA 85.299)

Calendário de Secretária, parado no dia em queCarlos de Loureiro Relvas se suicidou 14 de

dezembro de 1919Fotografia, Serviço Técnico da Casa dos

Patudos-Museu de Alpiarça, início do século XXI

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4. O grande coleccionador de arte e artista

A Casa dos Patudos foi propriedade de José Relvas, que a legou aoMunicípio de Alpiarça com todo o seu acervo artístico. A coleção tem peças devariadas épocas e tipologias, desde o século XV até aos inícios do século XX.A Casa dos Patudos pode ser encarada em três vertentes museológicas: aCasa em si, de Raul Lino; a coleção eclética; e a memória do seu fundador,José Relvas. Na Casa podemos encontrar uma vasta coleção de obras dearte, composta por pintura, escultura e artes decorativas. Na pintura portugue-sa destacam-se: Silva Porto, José Malhoa, Columbano Bordalo Pinheiro eConstantino Fernandes, além de notáveis artistas de escolas estrangeiras.Podem, ainda, ser apreciadas porcelanas de Sèvres e de Saxe, azulejaria,peças da Companhia das Índias, cerâmicas das fábricas das Caldas da Rai-nha (Rafael Bordalo Pinheiro), Rato, Bica do Sapato e Vista Alegre, e aindabronzes de Chapu, Mercié e Frémiet. A coleção é composta por cerca de 8 000peças.

A Casa dos Patudos-Museu de Alpiarça nasceu por vontade de JoséRelvas, que no seu testamento manifestou a necessidade de mostrar o que sefazia de melhor ao nível das Belas Artes e Artes Decorativas. Assim, encomen-

Porta do Quarto de Carlos de Loureiro Relvasfechada

Fotografia, Serviço Técnico da Casa dos Patu-dos-Museu de Alpiarça, início do século XXI

Salão Nobre – O Retrato Póstumo de Carlos deLoureiro Relvas e o seu piano

Fotografia, Serviço Técnico da Casa dos Patu-dos-Museu de Alpiarça, início do século XXI

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dou ao arquiteto Raul Lino, um projeto que contemplasse espaços dignospara apreciar a coleção e ao mesmo tempo, fosse residência familiar. Na suabiblioteca particular, existem obras e estudos referenciando as peças maissignificativas e autores, que Relvas ia adquirindo, constituindo um auxiliarprecioso e por vezes único ao estudo dessas coleções. No Arquivo Histórico,podemos encontrar complementada a história do patrono da casa e da forma-ção da coleção através da correspondência pessoal com artistas, políticos emúsicos.

José Relvas era um colecionador esclarecido e compulsivo. José Relvasreuniu uma coleção eclética com destaque para a pintura, a azulejaria, asartes decorativas e têxteis.

O seu grande ideal era a Arte, que o absorve fora dos momentos aplica-dos à administração da sua casa. As suas idas a Lisboa obedecem em geralà sua impulsividade artística.

A compra em exposições de arte nacionais e estrangeiras, a visita fre-quente a leiloeiros e antiquários, o contacto com os artistas e seus ateliêspermitiram a José Relvas um conhecimento amplo das artes e dos artistas.

José Relvas dedicou-se a preencher uma casa com obras de arte, eorganizar um espaço propício a encontros de qualidade em que os interve-nientes se sentissem num ambiente esteticamente criativo. Para atingir essefim, não se poupou em nada. Nem a gastos, nem a uma grande atenção sobreos mercados, nem a uma paciência vigilante, nem a sacrifícios pessoais. Des-de que, pelas mãos de Raul Lino, organizou a casa ideal, da sua varanda,entre terra e céu, levantou a sua paisagem, o espaço foi povoado pelo desejoincessante do belo. O desejo da música que com os amigos fazia vibrar pelossalões; o desejo de ver mais longe nas salas fechadas através de pinturas queeram janelas para o infinito, a sua amada lezíria que os naturalistas preenchi-am com os seus temas favoritos: os touros de Tomás da Anunciação, SilvaPorto, José Queirós; as luzes vibrantes dos campos de Sousa Pinto, JoséQueiroz e José Motta; as casas policromadas tocadas de dourado peloentardecer, de Marques de Oliveira, João Vaz, António Saúde; o seu povo porquem dava a voz pelas tribunas, de Francisco José Resende, José Rodrigues,António Ramalho, Artur Loureiro, Carlos Reis, e acima de tudo Malhoa,Columbano e Bordalo, no génio puro, na admiração e nos afetos.

Em simultâneo, vive o estudioso que visita os museus da Europa, reúneimpressionantes colecções de postais meticulosamente arrumados onde des-filam as pinturas do mundo, Louvre, Prado, National Gallery, Uffizi, os grandesmuseus alemães, holandeses, belgas, suíços, as grandes revistas de arte

A morte de José Relvas na cultura republicana

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existentes na Europa, e uma considerável biblioteca que reúne os melhoreslivros de arte publicados nos alvores do século XX.

E graças ao cuidado precioso na conservação de documentos (recibosguardados, listas de compras, notas de pagamento), é também um exemploraro que permite o estudo e a compreensão de uma época e deixará umtrabalho exaltante a futuros investigadores.

Só tarde, à beira dos 40 anos, José Relvas começa a sua incessantereunião de objetos. Os primeiros registos datam de 1897, pouco após a mortedo pai, o que terá acontecido menos pelo usufruto de uma herança, pois amorte da mãe 10 anos antes já lhe tinha proporcionado a maior parte dosbens, do que por via de uma disponibilidade de espírito.

Alegoria às ArtesPorcelana de Meissen, Século XIX

(CP-MA 84.404)

José Relvas amava as paisagens, os verdes frescos dos campos, osdoces crepúsculos da lezíria, e se cristalizava num ultimo arroubo romântico.Para José Relvas só existia o seu velho mundo, e nos tempos do fim, em 1928e 1929, continuará a comprar Silva Porto e António Ramalho como se fossemelos perdidos na filigrana da memória.

José Relvas teve uma relação de amizade com o pintor José Malhoamuito forte. Malhoa teve uma relação pessoal com José Relvas que se prolon-gou por mais de três dezenas de anos, a qual foi assinalada com um conjunto

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de obras artísticas de grande fulgor estético, onde se revela toda a mestriatécnica do pintor nascido nas Caldas da Rainha. Malhoa, que já pintara paraCarlos Relvas, foi sistematicamente convocado para marcar alguns dos mo-mentos mais íntimos da vida da família. Apreço pessoal, reconhecimento mú-tuo e amizade.

É nas belas artes que José Relvas congrega algumas das mais coniven-tes amizades pessoais e artísticas, como são as relações cultivadas com afamília Bordalo Pinheiro, os irmãos Rafael e Columbano, e com o filho deRafael, Manuel Gustavo, que José Relvas visita na sua fábrica das Caldas daRainha.

José Relvas, ao construir a sua coleção de arte, norteou-se por doisobjetivos maiores: em primeiro lugar pretendia viver num mundo perfeito, quesó a arte o poderia proporcionar; e em segundo lugar, desejava que essemundo estivesse, fisicamente o mais próximo de si possível. Tal perfeição eproximidade tornava-se possível e alcançável com a presença de obras reali-zadas pelos seus amigos, aos quais também convidava para a sua Casa dosPatudos.

Ao longo da sua vida de colecionador de arte, José Relvas afirmou oprincipio de que só adquiria obras de arte em que o artista plasmasse o seuespirito, obras denunciadoras de processo artístico em que o autor projetas-se a sua identidade moral, a sua organização mental e afectiva.

José Relvas cultivava relações próximas com artistas, o que lhe permitiaobter estudos, ensaios, efetivar primeiras escolhas artísticas, como o demons-tram as obras adquiridas a António Carneiro, Silva Porto, Columbano, RafaelBordalo Pinheiro, Teixeira Lopes, José Malhoa, Sousa Pinto, Carlos Reis eJoão Vaz, cujas obras se assumem como “pedaços de uma amizade” eternizadana sua coleção.

José Relvas era um apaixonado pela música: tocou piano em público emdiversos concertos; coleccionou pautas musicais e rolos de pianola; apoioumúsicos portugueses e patrocinou a vinda a Portugal de músicos estrangei-ros; fez questão de dar à musica um lugar de destaque no seu quotidiano e umlugar de honra nos serões da sua casa.

A música povoa a casa dos Patudos, desde fotografias com dedicatórias,no centro da mesa de porcelana, em alegres cenas pintadas ou no magníficoretrato de Domenico Scarlatti.

Malhoa, numa das poucas caricaturas que se conhece de sua autoria,representou José Relvas com asas a tocar violino, iluminado por um sol emforma de tampo de tonel de vinho encostado a um violino.

A morte de José Relvas na cultura republicana

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Bordalo Pinheiro tentou, em 1885, corresponder à encomenda do seuamigo, que lhe pediu uma obra alusiva a esta paixão pela música. Dessatentativa saiu uma obra tão excessiva que, com os seus 2,80 de altura, foirecusada por Relvas. Bordalo Pinheiro dedicou a sua jarra a Beethoven. Maistarde terá feito uma jarra mais pequena para oferecer a José Relvas.

José Relvas a tocar violinoPastel sobre papel, José Malhoa, 1898

(CP-MA 84.361)

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5. Homenagear Relvas e o seu legado

A morte desta figura marcante do Século XX está intimamente ligada àcultura republicana. As várias homenagens valorizaram o homem e a Repú-blica. Durante o Estado Novo fo-ram uma forma de fazer perduraros seus ideais. Ainda hoje, no dia31 de Outubro, são várias as ini-ciativas que se realizam para ohomenagear.

A imprensa da época de-monstra o sólido prestígio desterepublicano, relatando a impor-tância de espírito e de carácterdo homem que viveu e lutou peloque acreditava: Um Portugal, li-vre Democrático e Republicano.

No dia do seu enterramen-to, o amigo Manuel Duarte, aodiscursar no funeral do seu gran-de amigo José Relvas, revelouuma recomendação deste:«Quando disserem que morri,ergam junto do meu corpo umviva à República. Se eu não res-ponder estarei realmente morto.»

A Casa dos Patudos-Museude Alpiarça, pelo seu excelenteacervo, é considerado o maisimportante museu autárquico doPaís. A Casa dos Patudos fazparte da Direção da AssociaçãoPortuguesa de Casas Museu,onde tem tido um papel funda-mental na dinamização destatipologia de museu.

De acordo com o referidosobre este projeto, destacamos

Coroa de Flores – Homenagem a 31 de outubro,fotografia, Câmara Municipal de Alpiarça, início do

século XXI

Jazigo da Família Relvas no Cemitério de AlpiarçaFotografia, Ricardo Hipólito, início do século XXI

A morte de José Relvas na cultura republicana

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ainda a importância que tem para o concelho de Alpiarça, uma vez que é umespaço de referência na Museologia Nacional e Internacional. Este espaço éo principal postal turístico do concelho de Alpiarça.

A Casa dos Patudos foi residência de José Relvas desde os finais doséculo XIX até 1929, data da sua morte. Agricultor, colecionador de arte, mú-sico amador, diplomata, estadista e político, José Relvas, proclamou a Repú-blica a 5 de outubro de 1910.

A Casa dos Patudos foi inaugurada, como museu, em 15 de maio de1960; e ao longo destes 59 anos foram vários os prémios e distinções querecebeu. Destacamos alguns: Prémios SOS Azulejo 2011, foi atribuída a Men-ção Honrosa ‘Intervenção e Restauro’ pelo Estudo e intervenção / recolocaçãode painel de azulejos intitulado “Cenas Agrícolas da Quinta dos Patudos”,conforme plano e edifício originais; Louvor Público atribuído pela AssociaçãoPortuguesa dos Municípios com Centro Histórico, pelo trabalho desenvolvidona valorização e reabilitação da Casa dos Patudos; Prémios APOM 2014(Associação Portuguesa de Museologia), Prémio Projeto Internacional - Men-ção Honrosa – Casa dos Patudos-Museu de Alpiarça, no âmbito do projeto“Animals in arts and nature”, do programa Comenius. Medalha de Ouro atribu-ída pela Associação Portuguesa dos Municípios com Centros Históricos(APMCH) em 2016 e o Prémio de Melhor Projecto Público de 2015 e 2017 daEntidade Regional de Turismo Alentejo e Ribatejo.

Bibliografia

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FRANÇA, José Augusto – A arte em Portugal no século XIX, 3.ª ed., vols. I e II, Lisboa,Bertrand Editora, 1990.

MECO, José – Azulejaria Portuguesa, 3.ª ed. s. l, Bertrand Editora, 1985.NORAS, José Raimundo – José Relvas (1858-1929). Fotobiografia, Leiria, Imagens &

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Museu de Alpiarça», in O Campino. Imaginários de uma identidade, representaçõesnas Artes Visuais portuguesas (Catálogo da exposição), Vila Franca de Xira, CâmaraMunicipal, 2013, pp. 51-59.

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PRATES, Nuno – «Constantino Fernandes e o seu legado artístico e cultural», in Revista Magos,Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, n.º 3 (2016), pp. 255 a 262.

PRATES, Nuno – (2017), «A Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça: o vinho, a vinha e aarte», in CARLOS ALBERTO BROCHADO DE ALMEIDA (et al.), Enomemórias, Museologia ePatrimónio do Vinho (Território, Sociedade e Desenvolvimento), Maia, Edições ISMAI/CEDTURISMAI, 2017, pp. 41 a 50.

ROCHA, Luzia Aurora; PRATES, Nuno – «A iconografia musical na colecção de leques daCasa dos Patudos: análise de aspectos temáticos e organológicos», in Cuadernos deIconografia Musical, Universidad Nacional Autónoma de México, Vol. II, Número 1(2015).

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A morte de José Relvas na cultura republicana

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O TABU DA MORTE EM PORTUGALNOS ÚLTIMOS 30 ANOS:

PERSISTÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES

ANTÓNIO MATIAS COELHO*

* Historiador. Organizador dos Encontros sobre as Atitudes perante a Morte, realizados na Chamuscaem 1989 e em 1991, os primeiros que tiveram lugar em Portugal

Quando, em 1989, organizámos na Chamusca o I Encontro sobre asAtitudes perante a Morte – o primeiro que se realizou em Portugal –, a temáticada Morte era absolutamente tabu.

Passados quase 30 anos, a situação é hoje diferente: a multiplicação, emespecial nos últimos tempos, de colóquios e outras iniciativas sobre a temática,a valorização do património funerário e o incremento do turismo cemiterial, oaumento exponencial da cremação e o debate que se instalou na sociedadesobre a eutanásia são sinais de abertura e de alguma mudança de mentalidade.

Mas o tabu da morte persiste. E persistirá enquanto o Homem ocidental,herdeiro do positivismo oitocentista, não for capaz, de novo, como acontecianos tempos medievais e modernos, de encarar a morte como etapa natural einevitável da vida.

1. Os Encontros da Chamusca sobre as Atitudes perante a Morteem 1989 e 1991

A ideia de realizar um Encontro sobre as Atitudes perante a Morte naChamusca em 1989 surgiu no contexto da abertura ao público, no ano anteri-or, da Biblioteca Pública Municipal da Chamusca – a primeira que o concelhoconheceu, num tempo em que, a bem dizer, tirando as casas particulares, nãohavia na vila onde encontrar um livro – e da necessidade de a promover juntodos potenciais utilizadores e do público em geral, assim procurando atrairleitores e frequentadores.

Foi então elaborado um programa de animação da Biblioteca que com-preendia um conjunto vasto e diversificado de iniciativas, tanto no seu espaço

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próprio como no exterior, tirando partido das particularidades locais e daspotencialidades do seu património material e imaterial. Ora nós, que trabalhá-vamos havia já alguns anos naquele meio e com aquela realidade, sabíamosbem da singularidade do cemitério municipal e da riqueza que os seus murosencerravam. Como sabíamos da existência, em bom estado de conservação,embora disperso pela imensidão do território municipal, de um considerável emuito significativo conjunto de peças associadas à morte, ao funeral e ao lutoque seria interessante reunir, contextualizar e expor.

Este conjunto de especiaiscircunstâncias proporcionou ascondições para se realizar, navila ribatejana, uma tripla ativida-de sobre a temática da morte quese revelaria de grande importân-cia para a Chamusca e, sobretu-do, para o País: um Encontro so-bre as Atitudes perante a Morte,visitas guiadas ao cemitério mu-nicipal e a inauguração, no inte-rior do cemitério, de um núcleodo Museu Municipal dedicado àFunerária. Tanto quanto sabe-mos, foi a primeira vez em Portu-gal que se realizou qualquer des-tas três atividades que tiveram,na época e nos anos que se se-guiram, consideráveis repercus-sões. O Encontro atraiu muitosinteressados, entre estudiosos do

tema, professores, curiosos e público em geral, tendo tido enorme repercus-são na comunicação social, através da televisão, da rádio e dos jornais erevistas, atraídos sobretudo pelo ineditismo do tema e pelo atrevimento dasrealizações. As visitas guiadas ao cemitério municipal mostraram como a ci-dade dos mortos reproduz, à sua escala, o mundo dos vivos que a produz edemonstraram que há uma outra forma de entrar num cemitério para além dashabituais idas para enterrar alguém ou para prestar culto a quem morreu: ocemitério, o espaço da morte, pode ser, é seguramente, um excelente eriquíssimo recurso para se entender a vida e a forma como os vivos encaram

Cabeceira de sepultura do Cemitério Municipal daChamusca, utilizada como imagem dos Encontrossobre as Atitudes perante a Morte de 1989 e 1991

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o viver e o morrer. E o Núcleo de Funerária veio pôr à vista de todos umconjunto de objetos – do carro funerário oitocentista à jarra funerária feita pelooleiro de uma pequena aldeia do concelho, da mesa de pêsames à tranca doprimeiro cemitério civil da vila, criado em 1836 –, objetos que, por ser a morteassunto tabu, haviam andado escondidos, arredados do olhar de toda a gente,guardados como coisas que não são para ver mas não se devem deitar fora.

O sucesso do Encontro de 1989 justificou e impôs a realização de um IIEncontro em 1991 que teve uma participação e uma projeção mediática aindamaiores. Na ocasião foi publicado, sob minha coordenação, o livro Atitudesperante a Morte, editado pela Livraria Minerva, de Coimbra, que trouxe apúblico os textos das intervenções do primeiroEncontro, em áreas tão diversas como a Histó-ria, a História da Arte, a Antropologia, a Peda-gogia e a Medicina1. A Câmara Municipal daChamusca seria depois muito pressionada nosentido de continuar a organizar mais encon-tros sobre a temática, mas entendeu que, paraalém de não ser essa a sua vocação, não dis-punha de meios humanos e financeiros para oefeito. Nunca mais a vila foi palco de ativida-des desta natureza, mas os Encontros da Mor-te, como popularmente ficaram conhecidos,permaneceriam na memória de quantos nelesparticiparam e da gente da Chamusca que, comespanto, viu a sua terra, por uns tempos, famo-sa, falada e valorizada por motivo deles.

2. O cemitério da Chamusca como espelhodo mundo dos vivos que o produz

Ao proporcionarem visitas guiadas ao cemitério municipal, os Encontrosda Chamusca vieram revelar aos participantes, ao País através da comunica-ção social e, em primeira linha, aos próprios habitantes da vila, uma imensariqueza patrimonial que faz dele um dos mais interessantes cemitérios de

1 O volume, com 247 páginas, reúne textos de António Matias Coelho, Pedro do Amaral Xavier, AnaCristina Bartolomeu de Araújo, Jorge Custódio, Fernando Catroga, Brian Juan O’Neill, Ana IsabelBasto Carvalho e Maria Alzira do Rosário.

Livro publicado em 1991 com ostextos das comunicações do

Encontro de 1989

O tabu da morte em Portugal nos últimos 30 anos: persistências e transformações

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Portugal. Antes de mais porque o cemitério reproduz, com uma impressionan-te aproximação, a organização espacial e socioeconómica da vila dos vivos,as suas relações de vizinhança e as hierarquias de poder, espelhando ainda,numa perspetiva diacrónica, os gostos e as modas de diferentes épocas. E,por outro lado, porque a cidade dos mortos contém uma quantidade muitogrande e uma imensa diversidade de ferramentas e instrumentos de trabalhoe símbolos profissionais dos defuntos, inscritas ou gravadas em inúmerascampas e jazigos. Há outros cemitérios em que esta prática também ocorre,em especial no Ribatejo e particularmente nas povoações da margem es-querda do Tejo, mas em nenhum outro com a densidade e a riqueza artísticae patrimonial patente no cemitério da Chamusca.

A imagem que a maior parte das pessoas tem da vila é a de uma ruamuito comprida – a Rua Direita de São Pedro – que a atravessa de ponta aponta e, sendo estrada nacional sem alternativa, a transforma numa via difícile demorada de fazer. Para a Chamusca, esse eixo principal é, há séculos, oespaço mais central e por isso mais requerido para a construção de habita-ções, sendo por isso tradicionalmente mais caros os terrenos aí do que noresto do aglomerado urbano. Assim, só as famílias mais abastadas, sejam deorigem nobre ou de ascendência burguesa, têm em geral recursos para aspi-rarem a viver na Rua Direita. E ao longo dela se sucedem os solares maisricos e as vivendas de maior dimensão, discursando a quem passa sobre opoder – económico, social e político – de quem os habita. Lateralmente à RuaDireita dispõem-se, de um lado e do outro dela, uma série de outras ruas, maisou menos próximas do centro da vila, mas não propriamente nele. Aí os terre-nos não eram tradicionalmente tão caros como na Rua Direita e por isso essasruas laterais foram sendo habitadas pela classe média: os médios agriculto-res, os comerciantes, os funcionários públicos, os empregados, os mestres deofícios. Para o alto da colina, chamada Outeiro do Pranto, onde os terrenoscostumavam ser mais baratos por estarem afastados do centro e ser precisodescer e subir, a pé quando não havia automóveis, para vir à vila, assimmesmo designada a parte baixa da Chamusca, como se a alta não fosse vilatambém. Esse cabeço distante e de acesso difícil, onde só ia quem lá morava,é ocupado por modestas casinhas que se amontoam em torno da capela daSenhora do Pranto, modesta como elas, que pontua o aglomerado. Esse é oespaço dos assalariados, dos dependentes, dos pobres.

Às três partes bem diferenciadas que se identificam na vila correspondemtrês distintas partes no cemitério. Quem passa o portão da entrada está naalameda principal: é aí que se dispõem, de um lado e do outro, os jazigos das

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principais famílias da terra, ostentando brasões de antigas fidalguias ousonantes nomes de dinastias burguesas, grandes proprietários agrícolas umase outras – as mesmas famílias, afinal, que no mundo dos vivos habitam a RuaDireita da Chamusca. Lateralmente à alameda dispõem-se as sepulturas per-pétuas: são, em geral, ocupadas por famílias da classe média que não dis-põem de riqueza e estatuto bastantespara adquirir e manter um jazigo maspodem comprar o chão da campa e pôr--lhe uma pedra em cima – ou seja, aclasse média que na vila habita as ruasparalelas à rua principal. E depois há,no cemitério, uma terceira zona, atrásda capela, num sítio onde ninguém vai:é o espaço dos covais comuns, sem epi-táfios nem outras lembranças que nãosejam uma tabuleta com um número,posta pelo coveiro, e às vezes uma cruzou umas flores, de plástico quase sem-pre, deixadas pelos familiares – esse éo lugar onde são sepultados os pobres,grande parte dos quais habitou, em vida,o bairro do Outeiro do Pranto.

O cemitério reproduz, portanto, oespaço dos vivos. Porque, como é sabido, quem faz os cemitérios não são osmortos, são os vivos. E fazem-nos não apenas para os mortos mas também –eu diria sobretudo – para os vivos. Para os vivos verem. Os cemitérios assu-mem-se, assim, como instrumentos discursivos de afirmação e dehierarquização social, ao mesmo tempo que disponibilizam uma infinidade derecursos para a compreensão das ideias e dos gostos da comunidade que osfaz. No da Chamusca isso é especialmente evidente.

Por outro lado, o cemitério da Chamusca dispõe, numa impressionantequantidade e diversidade, de um valiosíssimo conjunto de inscrições, em rele-vo ou gravadas, alusivas à profissão ou outra forma de afirmação do defunto.Uma volta por entre as campas ou uma olhada aos frontões dos jazigos reve-la-nos maravilhas surpreendentes, muitas delas obras de qualificados cantei-ros, outras mais modestas, mas todas encantadoras e muito interessantespara o estudo e a compreensão da mentalidade do mundo dos vivos. Numavila tradicionalmente virada para o trabalho da terra, não admira que haja

Brasão de família de ascendência nobre: nojazigo dos mortos como no solar dos vivos

O tabu da morte em Portugal nos últimos 30 anos: persistências e transformações

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muitas campas com símbolos de agricultores,mas a variedade é imensa: do comerciante decavalos ao pedreiro (que umas vezes é pedrei-ro simplesmente e outras maçon), do carpintei-ro ao músico, da costureira ao caçador, do mo-torista ao cami-onista TIR, dobombeiro aomédico, do ju-rista ao farma-cêutico, docombatente aopoeta. Todas

ou quase todas as profissões estão presentes,menos, claro está, as dos pobres, assalariadosou outros que não têm na morte direito a impor-tância, como a não tiveram na vida.

3. O que mudou em Portugal, no respeitante às atitudesperante a morte, nos últimos 30 anos

3.1. A multiplicação de estudos e de eventos sobre a morte

No tempo em que se realizaram os dois Encontros da Chamusca, o tema damorte era, como se disse, absolutamente tabu em Portugal. A ousadia e o esfor-ço de uma pequena comunidade do interior do País que os organizou seriamamplamente compensados pelos reflexos que os Encontros tiveram, sobretudono meio académico, nos anos imediatamente a seguir, com o crescente interes-se pelo estudo da temática, materializado em inúmeras teses de mestrado e dedoutoramento, em Portugal e no Brasil, muitas delas citando o livro Atitudesperante a Morte que lhes serviu como instrumento motivador, como fonte deinformação e como base de reflexão. E, por outro lado, com a organização deeventos dedicados ao assunto, dos quais destaco o 1.º Congresso Nacionalsobre o Homem e a Morte, poucos meses depois do II Encontro da Chamusca,em 1991, organizado pela ULTI – Universidade de Lisboa para a Terceira Idade,a conferência A realidade humana da Morte e do Luto, em 1992, promovida peloMovimento Esperança e Vida e, no ano seguinte, o colóquio Morte… e depois?,da iniciativa do Centro de Tanatologia do Instituto Francisco Manuel Rodrigues.

Agricultor

Costureira

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Seguiu-se uma fase de abrandamento emtermos de realização destas iniciativas até que,já no ano de 2000, por iniciativa da CâmaraMunicipal de Seia, as III Jornadas Históricasdaquela cidade foram dedicadas ao tema AMorte e a Festa. Mais recentemente o assuntovoltou a suscitar o interesse de diversas insti-tuições, em diferentes pontos do país. Só nosúltimos três anos aconteceram pelo menos cin-co eventos relacionados com a temática: o co-lóquio Os Astros e os Homens, a Vida e a Mor-te, em Constância no ano de 2015, promovidopelo Instituto Politécnico de Tomar e pela Câ-mara Municipal de Constância; em 2016, emTomar, o encontro Bibliotecando em Tomar, or-ganizado pelo Agrupamento de Escolas da ci-dade, no qual apresentei a comunicação OsMortos e Nós que, com ligeiras adaptações,levei depois ao 3.º Ciclo de Palestras de Inver-no, promovido pela Junta de Freguesia deMaçãs de Dona Maria; em 2017, de novo emSeia, nas Jornadas Históricas agora em 20.ªedição, apresentei A Chamusca e os seus Ce-mitérios: Memórias da Vida no espaço da Mor-te; e, finalmente, em 2018, a Junta de Fregue-sia de Maçãs de Dona Maria – a quem se devereconhecer (e louvar) o esforço que tem vindoa desenvolver no tratamento destas questões – organizou, com muita partici-pação e grande interesse, o colóquio Práticas Funerárias e Atitudes Perante aMorte na Região Centro, deixando indicações do seu empenho em prosse-guir este caminho.

3.2. O desenvolvimento do turismo cemiterial

Para além dos eventos em que a temática da Morte vem sendo analisada ediscutida, tem crescido significativamente a utilização dos cemitérios como re-curso para o desenvolvimento de atividades culturais e turísticas. Nos últimosanos temos assistido à multiplicação de visitas guiadas a cemitérios – que já não

Folheto de divulgação dasJornadas de Seia dedicadas à

Morte, 2000

O tabu da morte em Portugal nos últimos 30 anos: persistências e transformações

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são olhadas como atividades estranhas como foram as primeiras, na Chamusca,há 30 anos – e teve considerável crescimento o chamado turismo cemiterial.

A Câmara Municipal de Lisboa tem um programa regular de visitas guia-das aos cemitérios do Alto de São João e dos Prazeres, algumas das quaisnoturnas e que por vezes são temáticas, dedicadas à arquitetura, à escultura,à heráldica, à maçonaria, a atores, a escritores, a músicos, etc.

Cartaz de divulgação das visitas guiadas aos cemitérios de Lisboa

A Câmara Municipal do Porto organiza, há vários anos, os chamadosCiclos Culturais dos Cemitérios do Porto, no âmbito dos quais se desenvolveum variado programa envolvendo os cemitérios Britânico, do Prado do Re-pouso e de Agramonte, com visitas guiadas, algumas delas também noturnas,olhares temáticos sobre a arquitetura, a música, os escritores e incluindo ou-tras atividades como concertos e raides fotográficos. Por seu lado, a BibliotecaPública Municipal do Porto organizou, em 2018, em colaboração com o cemi-tério do Prado do Repouso, uma formação sobre Arte Cemiterial «destinada atodos os que querem conhecer a história e o significado dos mais interessan-tes monumentos existentes em cemitérios portugueses, assim como os seusprojetistas, executantes e encomendadores»2.

Para além das duas maiores cidades do País, outras localidades vêmaderindo a esta prática de valorização do património funerário e do espaço damorte como forma de enriquecimento cultural e de melhor compreensão davida. É o caso do Município de Loures que promove, num domingo de cadamês, uma visita guiada ao cemitério municipal da cidade, apresentada como«Visita pela História de Loures»3. Iniciativa do género foi também já organiza-

2 Do cartaz da iniciativa que se realizou em 30 de maio de 2018.3 Do cartaz das visitas dominicais guiadas ao Cemitério Municipal de Loures de julho a novembro de 2017.

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da, por exemplo, pela Câmara Municipal dePeniche e até por Juntas de Freguesia, como ade Campo de Ourique, em Lisboa.

A multiplicação de atividades envolvendoos cemitérios e a sua inclusão em roteiros cul-turais das autarquias representam um óbviosinal de mudança de atitude perante a morte eo que lhe está associado. Não significa isto,evidentemente, que a morte tenha deixado deser tabu. Longe disso, mas que a mentalidadeestá a mudar, está.

3.3. O crescente abandonode campas e jazigos

A mudança das atitudes perante a morte decorre, em boa parte, daspróprias mudanças da vida. Até há poucas décadas, a grande maioria dascampas e dos jazigos dos cemitérios portugueses estavam bem cuidadasporque as famílias, presentes e organizadas da forma tradicional, tratavamdelas, quer por respeito aos seus mortos quer como forma de afirmação pe-rante os vivos. Nesse tempo e nesse quadro, uma campa descuidada seria,como uma casa descuidada, um sinal de desmazelo e de desrespeito queenvergonharia qualquer pessoa. Hoje a situação, em especial nos meios ur-banos, é bem diferente: a vida mudou muito, o ritmo dela acelerou, o tempoescasseia para tudo, as famílias reduziram-se em número e em laços, aspessoas tornaram-se mais egoístas, menos solidárias e mais solitárias, mes-mo vivendo no meio da multidão, e os velhos – que são cada vez mais e cadavez mais velhos – passaram, em muitos casos, a ser olhados como um peso,um estorvo e uma despesa, sendo atirados para os lares à espera da morteque, tantas vezes, demora anos e anos a chegar. Nos hospitais, como é sabi-do, são cada vez mais os idosos que, tendo alta médica, permanecem interna-dos tempos infindos por não haver ninguém que os vá buscar… Ora, se não secuida das pessoas em fim de vida, por que se há de cuidar do sítio em que aspuserem depois de mortas?! E, por isso, são cada vez mais frequentes assituações de abandono definitivo de campas e jazigos de que ninguém quersaber. No verão passado, um jornal ribatejano informava que o «Cemitério deVila Franca de Xira tem 322 sepulturas e jazigos ao abandono»4, dando a

Cartaz de divulgação de visitaguiada a cemitérios de Peniche,

2018

4 Jornal O Mirante, 23.08.2018, p. 16.

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Câmara dois meses aos familiares para regularizarem a situação, sob penade o município tomar posse administrativa dessas campas e jazigos. E muitosoutros exemplos do género se poderiam acrescentar como ilustração de quea forma de os portugueses encararem a morte e os espaços da morte temmudado significativamente nos últimos anos, segundo uma tendência quealastrará a mais gente e a maiores áreas geográficas do País nos próximostempos.

3.4. A aceitação e o incremento da cremação

Um indicador importante da mudança de mentalidade em relação à mor-te e ao destino do corpo é o aumento muito rápido e exponencial do númerode cremações em Portugal. O grande crescimento das maiores cidades veiocolocar, de uma forma muita séria, problemas de falta de espaço para a con-tinuação das inumações individuais. De facto, não é comportável essa formatradicional de enterramento em cidades onde os vivos se amontoam em espa-ços cada vez mais exíguos, impondo-se novas formas de a sociedade sedesfazer da quantidade crescente de cadáveres. Por outro lado, a seculariza-ção da vida – e, por consequência, da morte – veio tornar desnecessário oenterramento porque muita gente deixou de acreditar na ressurreição dosmortos e no reencontro da alma com o corpo no fim dos tempos. A incineraçãosurge, assim, como uma solução mais eficaz (e também mais limpa, mais levee mais serena) de dar destino aos restos mortais de um número cada vezmaior de portugueses. A própria Igreja Católica, sensível ao problema e aten-ta ao sentimento geral, acabou por aceitar a cremação, criando até um ritualpróprio para o seu acompanhamento religioso.

Em resultado da crescente aceitação e adesão da cremação – havendocada vez mais pessoas que manifestam em vida a vontade de serem crema-das, inclusive através de testamento –, o fenómeno vem conhecendo um im-pressionante crescimento. Estamos longe dos 81% de cremações em relaçãoao total de óbitos que se atingiram na Dinamarca e na Suécia ou mesmo dos55% da Alemanha ou dos 31% da França, mas, em 2017, essa percentagemem Portugal ascendia já a 16%, quando dez anos antes se ficava por poucomais de 6%. No Porto, em 2017, a percentagem de cremações chegou aos40% e em Lisboa representou mesmo metade do total dos funerais realizadosna cidade. Sendo certo que o crescimento do fenómeno é mais evidente nosgrandes centros urbanos e no litoral, ele alastra muito rapidamente ao conjun-to do País. Prova disso é a evolução da instalação de fornos crematórios em

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Portugal: no início da década de ’90 existia apenas um desses equipamentosno País – o do cemitério do Alto de São João em Lisboa; em 2007 já haviaquatro – dois em Lisboa, um no Porto e outro em Ferreira do Alentejo; eapenas dez anos depois, em 2017, o número tinha subido para 24, sendo 21no Continente, dois na Madeira e um nos Açores. Atualmente estão em cons-trução ou anunciados muitos outros fornos crematórios por todo o País. Só nodistrito de Santarém, os jornais falam de três: um na cidade de Santarém5, outroa apenas oito quilómetros em Almeirim6 e um terceiro no Entroncamento7.

A multiplicação dos crematórios é tal quejá há quem se queixe de graves prejuízos nasua atividade profissional e mesmo de riscosério de ter de a cessar por causa deles. É ocaso dos canteiros que até há pouco temponão tinham mãos a medir na muito solicitadatarefa de preparar pedras tumulares e outrosobjetos para colocação em campas e jazigos,e que ultimamente veem a procura drastica-mente reduzida porque, como se evidenciouacima, há já um considerável número de fune-rais que se fazem com cremação e tudo apontapara que o número de sepulturas continue adiminuir drasticamente no nosso País. Numapeça recentemente publicada no jornal O Mi-rante, intitulada «Os crematórios estão a aca-bar com o negócio das campas e lápides»8,dava-se o exemplo de Lucílio Caria que, aos69 anos, «continua a trabalhar a pedra na suaoficina em Atalaia, no concelho de Santarém,mas considera que a sua atividade está em perigo de extinção». Dizia o can-teiro ao jornal que «quando se iniciou no ofício, os clientes eram muitos;agora, com o recurso aos crematórios a aumentar em detrimento da sepulturaem cemitérios, começam a contar-se pelos dedos», acreditando que «a arteestá em vias de extinção». E o jornal concluía: «Apesar do ofício das lápidesser considerado por muitos como um negócio de luxo, Lucílio Caria confessa

5 Jornal digital mediotejo.net, 20.06.2018.6 Jornal O Almeirinense, 11.06.2018.7 Jornal Novo Almourol, edição de agosto de 2018.8 Jornal O Mirante, 26.07.2018, p. 4.

Recorte do jornal Novo Almourol, deVila Nova da Barquinha

O tabu da morte em Portugal nos últimos 30 anos: persistências e transformações

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que há cada vez menos pessoas a mandar colocar pedras nas campas».Tudo porque, segundo ele, «a cremação está na moda». E, inquestionavel-mente, está.

3.5. O debate sobre a eutanásia

Se a aceitação e o incremento da cremação são sintomas de que asatitudes perante a morte estão a mudar entre nós, outro sinal evidente dessamudança é, sem dúvida, o debate sobre a eutanásia que está instalado nanossa sociedade. Como todos os temas ditos fraturantes, a questão da euta-násia divide os portugueses, tanto os cidadãos em geral como os políticos,não havendo, longe disso, consenso, seja a favor seja contra, no interior dequalquer dos partidos mais representativos. De um lado os que, pela eutaná-sia, defendem o direito de a pessoa, no pleno uso das suas faculdades men-tais e encontrando-se numa situação irreversível do ponto de vista clínico, einsuportável em termos de sofrimento, poder decidir da sua própria vida e, nãoo podendo fazer por si, optar por lhe pôr termo com ajuda de terceiros. Dooutro os que, contra a eutanásia, advogam que a vida é um bem inviolável, oumesmo sagrado, não sendo legítimo a ninguém, nem ao próprio e muito me-nos a outros, agir deliberadamente no sentido de acabar com ela.

Imagem: Diocese do Porto

O debate ainda mal está começado e adivinham-se longas e empolgadasdiscussões em torno da eutanásia – palavra cujo étimo grego significa boa

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morte. De todo o modo, atendendo ao que se passou em outros países nossosparceiros que, no essencial, comungam dos mesmos princípios civilizacionaise que já passaram por esse processo (a eutanásia, embora com variantes,está legalizada ou é tolerada, em determinadas circunstâncias, na Bélgica, naHolanda, no Luxemburgo, na Suíça, na Alemanha, em França, em cinco dosEstados Unidos da América e no Canadá), parece muito provável que, maistarde ou mais cedo, a boa morte venha também a ser despenalizada emPortugal. Seja como for, basta pensarmos que, ainda no princípio deste sécu-lo, o tema da eutanásia estava completamente afastado do debate público epolítico, e hoje em dia se discute com entusiasmo e, acima de tudo, comcrescente naturalidade.

4. A morte, um tabu incontornável

Não obstante uma certa abertura à reflexão sobre a temática da morte e àação relativamente aos espaços e objetos a ela associados que, como procurámosilustrar, ocorreu em Portugal nos últimos 30 anos, a morte continua a ser tabu nanossa cultura. E assim continuará, por certo, por muito tempo ainda.

A tendência natural de qualquer ser vivo, por uma questão básica deinstinto, é lutar pela sobrevivência. É assim no reino vegetal, entre os animaise, muito especialmente, no Homem. Em regra, ninguém quer morrer, e a mor-te, a própria ou a dos outros, associada à finitude e à perda, é sempre umassunto desagradável que temos, como se compreende, tendência para afas-tar do nosso pensamento e das nossas conversas. Provavelmente sempreassim foi, desde que o Homem tem consciência de si e do morrer; e é deadmitir que assim será pelo tempo adiante. Houve, no entanto, cambiantesnas atitudes perante a morte ao longo da História, determinadas por um con-junto de fatores dos quais se destacam o nível de conhecimentos alcançado,a conceção do mundo e da vida e, implícito nela, o sentido religioso daspessoas e das comunidades em cada momento da evolução humana.

Assim, no Antigo Regime – ou seja, no período da História da EuropaOcidental que vai do tempo dos descobrimentos marítimos, no século XV, atéàs revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX – a conceção da vida e da morte,norteada por um fortíssimo sentimento religioso, assentava basicamente naideia de que a vida terrena era um caminho, uma preparação para se merecera vida eterna, e que essa, na presença de Deus, é que verdadeiramentecontava. Por tal razão, a morte era então encarada como uma passagem paraos esplendores da luz perpétua, uma viagem para o divino, uma libertação.

O tabu da morte em Portugal nos últimos 30 anos: persistências e transformações

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Morria-se porque, como se afirmava, era Deus servido chamar a criatura à suadivina presença. Não quer isto dizer que a perceção da morte não causassesofrimento a quem ia partir ou aos seus familiares e amigos perante ainevitabilidade da separação. Mas esse sofrimento era mitigado pela crençano alcançar da vida eterna e pela esperança no reencontro de todos, um dia,no Céu. Nesses tempos, a morte era preparada e vivia-se em família: pressen-tindo a sua chegada, o moribundo reunia os filhos para os últimos conselhose as últimas recomendações; mandava vir o tabelião para lavrar o testamento;e chamava o padre para administrar a extrema-unção e dar a última comu-nhão – o viático, ou seja, o alimento para a via, para o caminho. E morria-setranquilamente, no conforto da própria casa e da família, reunida à cabeceirada cama. Um famoso quadro do holandês Anthony van Dyck, pintado na pri-meira metade século XVII e que aqui reproduzimos, retrata-nos o ambiente dovelório da esposa de Rubens em que o viúvo chora a morte da mulher rodea-do de familiares, incluindo crianças (que, então, não eram afastadas dessassituações como agora acontece) e até do cão da casa. A morte, no AntigoRegime, era, portanto, uma morte domesticada, como lhe chamou Philippe Ariès9,e as pessoas, sofrendo embora com ela, conformavam-se e encaravam-na coma naturalidade de quem segue os caminhos e os desígnios de Deus.

9 Philippe Ariès, L’Homme devant la Mort, 1977.

Rubens chorando a esposa (Anthony van Dyck, 1.ª metade séc. XVII)

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A Revolução Francesa e as outras revoluções liberais que se lhe segui-ram, bem como a Revolução Industrial e os imensos avanços tecnológicos ecientíficos a ela associados, mudaram profundamente a mentalidade e o modode vida na Europa Ocidental a partir dos finais do século XVIII. Triunfam oindividualismo e o materialismo e avança a descristianização dos quadrosmentais e das práticas quotidianas. São cada vez mais os que se afastam deDeus e da Igreja e, mesmo para os que não deixam de ser crentes, ganhaforça a ideia da construção da felicidade na Terra. Por outro lado, o positivismooitocentista vem afirmar o princípio de que a ciência será capaz de explicartodos os fenómenos e de resolver todos os problemas da Humanidade. Ora,como sabemos, a ciência não tem solução para a morte: pode retardá-la,amenizá-la, mas evitá-la não. É a consciência dessa impotência humana pe-rante a morte que leva à construção do tabu – o interdito, o proibido: esconde--se a morte e evita-se falar dela; afastam-se os mortos e o espaço que lhes édestinado, que deixa de ser a igreja e o adro que toda a comunidade frequen-tava, para passar ao cemitério civil, murado e separado do mundo dos vivos.Progressivamente, os velhos e doentes são levados a morrer nos lares e noshospitais, fora do seu ambiente e da sua família. Morre-se cada vez maissozinho. Os corpos já não são velados em casa; e as crianças são afastadasdo contacto com os mortos.

Confrontado com a inevitabilidade da sua finitude e sem o conforto daesperança na existência de outra vida para além desta, ao Homem ocidentalnão resta outra possibilidade que não seja evitar pensar no assunto e procu-rar não falar dele, arredando de si tudo o que o possa tornar presente e lhecause inquietação e sofrimento. Assim se alimenta o tabu da morte, no qual,com mais ou menos intensidade, estamos e continuaremos mergulhados.Porque, sendo uma imposição da natureza, muito mais forte do que a fraque-za humana, a morte não tem solução. E o Homem do nosso tempo não conse-gue lidar com isso.

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TURISMO CEMITERIAL– UM NICHO DE ATIVIDADE TURÍSTICA

ANA PAULA DE SOUSA ASSUNÇÃO*

* Doutoranda Turismo, IGOT; Museóloga e Historiadora; Membro do CLEPUL, Universidade deLisboa.

Resumo

Uma das componentes da presente comunicação é o estado de arterelativamente às práticas realizadas em contexto de cemitério, um nicho deatividade turística. Pretende-se apresentar as caraterísticas desse turismo edo turista de nicho e será feita a revisão da literatura no que se refere aoturismo em cemitério, que toca o turismo cultural e patrimonial, ambiental, masdistinto dos mesmos pelo local, o património in situ.

O cemitério com a prática de turismo cemiterial sofre uma perfeita transfiguração.

O turismo cemiterial como turismo de nicho: história do conceito

O termo nicho ter-se-á generalizado a partir de 1957, por intervenção doecologista Hutchinson que, ao referir-se à região numa escala multidimensional,caracterizou-a como um conjunto territorialidade de fatores ambientais que afe-tam o bem-estar das espécies. A sua utilização em turismo generalizou-se atra-vés do marketing (niche marketing) (SIMÕES, 2009, 21, nota 2).

Citando Simões (2009, 21) e outros autores que estudaram a evoluçãodo turismo desde a Antiguidade, houve sempre lugar à emergência de novaspráticas, destinos e conceitos turísticos.

Mas a busca regular de práticas e destinos turísticos não massificados ediferenciadores, nomeadamente mais em contacto com a natureza, só come-çaram na década de setenta do passado século (SIMÕES, 2009, 21).

Douglas et al. (2001, 2) sugerem que turismo de interesse especial outurismo alternativo emergiu das preocupações com o turismo sustentável.

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A oferta personalizada é um ramo especializado para interesses especí-ficos e para um público segmentado. É o oposto do turismo de massas – estenovo turismo opta por demonstrar, em vez de descrever.

Em muitos contextos socio-territoriais, estes configuram uma nova opor-tunidade de inovação e de alavancagem do processo de desenvolvimento,não apenas turístico, mas também territorial.

A relação do turismo com o território é muito forte; na generalidade dassituações, o território é o próprio recurso turístico.

No caso específico dos turismos de nicho, a escala intimista de uma boaparte deles tende a aprofundar ainda mais essa relação, conduzindo muitasvezes à conformação e emergência do que podemos designar como “territóri-os turísticos de nicho” (SIMÕES, 2009). É a fusão de todos estes fatores quecompõe o turismo de nicho.

Características do turista de nicho

Segundo Brotherton e Himmetoglu (1997), podemos encontrar no turistade nicho as seguintes caraterísticas:

– Minoria dos viajantes globais;– Classes económicas média-altas;– Turistas experientes e sofisticados;– Altas expectativas em relação à atividade, baixas em termos de alojamento;– Aventureiros, alocêntricos, independentes;– Férias como extensão das atividades de lazer quotidianas;– Destinos alternativos para concretização de interesses especiais.A Interdisciplinaridade do turismo de nicho ou de especial interesse en-

volve toda a comunidade da mesma forma que considera a perspetiva dopróprio turista.

A figura1, infra, pretende apresentar toda a diversidade deste complexosistema.

Figura 1

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Dentro da prática de turismo cemiterial, existe uma diversidade de desig-nações das perspetivas com que os mesmos cemitérios são analisados/visita-dos.

O turismo negro ou mórbido, o thanaturismo, o turismo politico, cultural,de ócio humanista e, finalmente, turismo cemiterial.

A moldura concetual de turismo cemiterial pode ser a seguinte: toca oturismo cultural e patrimonial, mas deles se distingue pelo ponto de partida, olocal, património in situ, o cemitério, ele próprio já transfigurado como produtoturístico e exigindo para existir uma prática turística, uma mediação.

Registou-se um aumento significativo da procura deste turismo a partirda década de 90 do século XX. Destacam-se dois importantes momentos: oCongresso Internacional sobre Cemitérios Contemporâneos em Sevilha(1992) e a criação da ASCE – Associação de Cemitérios Significativos daEuropa em 2001.

Carvalho (2012) refere que o turismo cemiterial surge de uma misturaentre o turismo negro e o turismo cultural; Pécsec (2015) inclui os rituais fúne-bres, e as atividades baseadas na natureza e na cultura; Light (2017) acentuaa crescente convergência com o turismo de património; e Marques (2018)utiliza o conceito de cemitério de objetivo patrimonial e de turismo, criandoroteiros de arte cemiterial e a produção artística com as crenças sociais ereligiosas da época.

Figura 2 – O poder de conexões do turismo cemiterial. Autora.

Turismo cemiterial – um nicho de atividade turística

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O valor da transfiguração do cemitério em produto turístico

Considerando que o património associado ao conceito de herança pode-rá ser encarado como uma cadeia de valor histórico, aborda-se o cemitériocom igual linguagem, reconhecendo o seu valor histórico como uma efetivacadeia de valores ao acolher a história local, a arte do ferro e da cantaria, aestética dos jazigos e a arte vitralista ou escultórica.

Desta forma, a cadeia de valor histórico do cemitério anexa-se à do valorturístico e contribui para a apresentação, portanto, de um produto turístico.

Que valor traz o turismo cemiterial?

Os cemitérios românticos ou não românticos (sem jazigos ou registosmonumentais) com turismo cemiterial configuram:

– Património in situ;– Reserva de identidade coletiva;– Conceito valor histórico;– Património significativo, material e imaterial;– Território turístico de nicho.A transfiguração do cemitério alvo de turismo cemiterial aporta à comuni-

dade um significativo conjunto de indicadores, portadores de inovação e depotencialidade, que são resumidos nas figuras 3 e 4.

Figura 3 – Indicadores da transfiguração do cemitério. Autora.

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O exemplo de Loures – informação acessível

No cemitério municipal de Loures existe uma prática regular de atividadede turismo cemiterial1.Trazem-se exemplos que abordam novas formas deresponder a um desejo de conhecimento, de curiosidade e de renovado olharsobre o património cemiterial.

Figura 4 – Indicadores da transfiguração do cemitério. Autora.

Imagens 1 e 2 – Placas com informação sobre as personagens dos jazigos e campas.Criação de valor histórico.

1 Ana Paula de Sousa Assunção – «The Value of the Transfiguration of a Cemetery. Cemetery Tourismin Loures. Case Study», (2018), in Finisterra (Aguarda revisão/aceitação).

Turismo cemiterial – um nicho de atividade turística

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Imagens 3 e 4 – Exemplos de sinalética com informação acessível.

Imagem 5. Uma visita de turismo cemiterial ao cemitério de Loures.

Imagem 6 –Placa cerâmicade autoria deÁlvaro PedroGomes,Fábrica deLoiça deSacavém,Cemitério deLoures.

Imagem 7 – Pormenor de anjo, numjazigo da Alameda da Redenção do

cemitério de Loures.

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Partilha de experiências

A não continuidade da função de inumação num cemitério no séc. XXIconduz-nos à questão do seu abandono ou salvaguarda; a proteção é o cami-nho que se aponta para usufruto deste bem na contemporaneidade.

A figura de classificação do cemitério – lugar de património – como imó-vel de interesse municipal, poderá ser uma primeira medida.

O cemitério constituir-se-á como um centro histórico onde o estudo decada jazigo, mausoléu ou campa será uma necessidade para produzir conhe-cimento e interesse turístico.

A prática de turismo cemiterial dará uma nova responsabilidade a esteequipamento cultural: o cemitério, agora investido de uma função turística,social, política e patrimonial.

O turismo cemiterial já começa a despontar como uma ferramenta detrabalho única ao criar novos centros de interesse nas comunidades, ao pro-mover uma prática de turismo de nicho.

O caminho de salvaguarda e da existência de cemitérios já sem inumaçõespode estar nesta transfiguração da função do cemitério, através do turismo cemiterial.

Imagens 8 e 9 – As datas históricas locais: o Mausoléu da Junta Revolucionária do 4 de Outubrode 1910, no cemitério de Loures.

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Bibliografia

BROTHERTON, Bob; e HIMMETOGLU, Büllent (1997) – «Beyond Destinations – SpecialInterest Tourism», in Anatolia, vol. 8 (n.º 3), pp. 11-30.

CARVALHO, Hugo Pereira de – A inclusão do cemitério no espaço da cidade (Projectopara obtenção do Grau de Mestre em Arquitectura), Lisboa, FAUTL, 2012.

DOUGLAS, Norman et al. – Special Interest Tourism, Melbourne, John Wiley & Sons,2001.

LIGHT, Duncan – «Progress in dark tourism and thanatourism research: An uneasyrelationship with heritage tourism», in Tourism Management, 61 (2017), pp. 275--301.

MARQUES, Maia – «Turismo cemiterial “porquê” e o “onde”» in Revista Turismo & De-senvolvimento, n.º 29 (2018), pp. 47-63.

PÉCSEC, Brigitta – «City Cemeteries as Cultural Attractions: towards an understandingof foreign visitors’ attitude at the National Graveyard In Budapest», in DETUROPE- The Central European Journal of Regional Development and Tourism, vol.7,issue 1 (2015), pp. 44-61.

SIMÕES, José Manuel (Ed.) – Turismos de Nicho: Motivações, Produtos, Territórios,Lisboa, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, 2009.

Créditos Fotográficos:

Câmara Municipal de Loures

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Resumo

Maçãs de Dona Maria foi uma das primeiras localidades do país a cons-truir o seu cemitério, indo ao encontro dos diplomas de 21.9.1835 e de 28.9.1844que proibiam o enterramento nas igrejas e nas capelas, e tornava obrigatórioa construção de cemitérios municipais e paroquiais. Corria o ano de 1855tendo liderado este projeto o pároco Bernardo Ferreira da Silva, que apelou àgenerosidade da população e à contribuição das quatro confrarias da paró-quia para murar um pequeno espaço inclinado a poente da igreja paroquial.

Contudo, nos anos seguintes, o pequeno cemitério não foi suficientepara enterrar tantas pessoas que sucumbiram às infeções de cólera e febretifoide que ocorreram em 1856, 1857 e 1864, pelo que houve que recorrer, denovo, ao adro como prolongamento do cemitério.

Se a sua construção veio dar resposta às obrigações legais, depressa setornou numa das principais fontes de receita das sucessivas juntas da paró-quia, quando perceberam que as elites locais procuravam perpetuar o seuprotagonismo com a aquisição de terrenos para a construção de distintosmausoléus para os seus defuntos.

O cemitério antigo recebeu defuntos até 1955. Já depois de uma tentativafrustrada de transformar o antigo cemitério num jardim público, este espaçopatrimonial foi classificado como “Imóvel de interesse municipal”, por despa-cho de 30.4.97 do ministro da cultura.

As sucessivas epidemias de cólera e de febre tifoide do século XIX

No decorrer da reunião da Junta da Paróquia de Maçãs de Dona Mariade 20.9.1885, o então presidente, António José Marques, leu um ofício envia-

HISTÓRIA DO CEMITÉRIO ANTIGODE MAÇÃS DE DONA MARIA

CARLOS LARANJEIRA CRAVEIRO*

* Professor de Biologia e Geologia

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do do administrador do Concelho de Figueiró dos Vinhos onde a freguesiaentão se integrava, recomendando que aquela Junta conseguisse uma casacom cozinha e com dois quartos, para que nela pudessem ser instaladoscinco ou seis doentes pobres que, porventura, viessem a ser atacados pelatemível epidemia da cólera. Um dos vogais e tesoureiro da Junta, ManuelMaria Pimentel Teixeira, solicitador da comarca, imediatamente se prontificoua oferecer umas casas que possuía no lugar da Cumeada que, na sua opi-nião, dispunha de todas as condições exigidas para aquele fim1.

Recorde-se que a cólera é consequência da atividade de uma bactériaque se desenvolve especialmente bem nas fezes, propagando-se através doseu contacto. Vómitos e dejeções quase constantes, dores e cãibras nas per-nas e uma fraqueza generalizada potencializadora de infeções secundárias,pode conduzir, em casos mais graves, à morte, particularmente, em pessoasmal alimentadas e, como tal, menos resistentes, mas também nas pessoasque viviam mais próximas dos focos de contágio.

Ora, para que numa região se estabelecesse uma epidemia de “cóleramorbus” entre a população, a proximidade de fezes das habitações ou ocontacto com tais dejetos deveriam estar na raiz do problema.

Para a primeira razão não será difícil percebermos que a presença deestrumes dos porcos e gados junto das habitações seria uma constante. Em1848, num texto monográfico com que se candidataria a professor da Facul-dade de Medicina da Universidade de Coimbra, afirmava o Dr. Costa Simõesa propósito da qualidade das habitações: «As habitações das Cinco Vilas eArega são geralmente mal construídas (…) e por toda a parte há, em geral,muita pouca higiene. A exposição mais higiénica de toda a casa, a exposiçãoao meio dia, é cedida pela família em proveito dos porcos. É deste lado dacasa, por ser o mais soalheiro, que ordinariamente se acham as cortes, con-sistindo num pequeno curral, um pátio e às vezes um telheiro, e quase tudodebaixo dos mesmos telhados da própria habitação da família. É muito fre-quente ver-se a entrada da casa pelo pátio da corte, sempre coberto de estru-meiras húmidas, com o péssimo cheiro da própria estrumeira, dos excrementose das águas da cozinha»2.

1 Ata da Junta da Paróquia, 20.9.1885.2 SIMÕES, António Augusto da Costa, Topographia Medica das Cinco Vilas e Arega ou dos concelhosde Chão de Couce e Maçãs de D. Maria em 1846, com o respetivo mappa topográfico e cartageológica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1860, p.107.

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Por outro lado, e na opiniãodo mesmo autor, outro dos focosde infeções seriam os poços, mi-nas de água e as represas dasribeiras utilizados para a mace-ração do linho. Seriam estes “pân-tanos artificiais” com materiaisorgânicos em putrefação, que apósa retirada do linho e a exposiçãoao sol seriam os responsáveis pe-las principais pestes da região.

À proximidade das popula-ções com estas estrumeiras eáguas estagnadas associe-se,então, a falta de hábitos de higi-ene (em que o simples gesto delavar as mãos estaria muito lon-ge do desejável), o consumo deprodutos hortícolas contamina-dos e a ingestão de água inqui-nada; e então teremos motivosmais que suficientes para justifi-car as sucessivas epidemias de cólera com que a freguesia de Maçãs de DonaMaria se viu confrontada e que tantas vidas dizimou ao longo do século XIX.

Os primeiros registos de cólera em Portugal datam de 1832, aquando dasguerrilhas entre liberais e miguelistas, talvez trazida por um grupo de soldadosvindos da Flandres para auxiliar D. Pedro na conquista do Porto. A sua chegadaa este canto da Europa não foi mais que o alastrar de uma epidemia iniciada doisanos antes na Rússia com efeitos devastadores. Tal como rapidamente chegou,depressa se espalhou pelo País, calculando-se que nesse e no ano seguinteterão morrido mais de 40 000 pessoas no nosso território.

Pouco mais de duas décadas depois, já o País registava novos surtos,desta vez com origem na vizinha Espanha ou mesmo do Norte de África,afirmam os especialistas. Os anos de 1854, 1855, 1856 e 1857, e anos depois,em 1864, foram anos desastrosos no que diz respeito às consequências destaepidemia, com uma mortandade superior à primeira3. Parece, pois, que desdea sua chegada, a cólera nunca mais abandonou o nosso País.

Figura 1 – Placa em homenagem ao Dr. CostaSimões, no Luso.

3 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa – Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Limitada, 1939.

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De quando em vez, nova epidemia dizimava famílias, tendo feito maisestragos ainda nos anos setenta do século passado. Então os meios de comu-nicação não se cansavam de alertar a população: as carnes dos animaisdeveriam ser sujeitas a elevadas temperaturas antes de serem consumidas eas verduras comidas cruas deveriam ser convenientemente lavadas por águacorrente da rede. No caso da lavagem com água extraída dos poços seriaessencial adicionar um qualquer produto desinfetante, por exemplo, algumaspoucas gotas de lixívia, produto que contém cloro dissolvido.

Mas nos primeiros anos da introdução da doença em Portugal (aindalonge de se saber a origem da doença que só viria a ser descoberta em 1883por Koch), num País onde grande parte das população rural vivia ao lado ousobre as suas pocilgas, em localidades onde os dejetos da noite eram demanhã atirados do bacio para o quintal para ajudar a crescer as hortaliças,onde, enfim, alguma imundice assolava a cada porta, entrando mesmo casadentro, não será de estranhar a rapidez da propagação da doença entre aspopulações mais desfavorecidas.

E Maçãs de Dona Maria não escapava a tal moléstia cujo tratamentopaliativo se quedava por cocktails de produtos naturais que boticários e bar-beiros se apressaram a idealizar. A doença tinha vindo para ficar e com ogado e os estrumes fazendo parte do dia-a-dia do camponês, decerto, terãosido as populações rurais e, em particular, as famílias pobres, as maissacrificadas.

Com alguma regularidade a doença voltava e o administrador do conce-lho tomava medidas, determinando a «criação de uma Comissão de Benefi-cência presidida pelo Pároco, para promover socorro, donativos e esmolaspara socorrer as classes pobres e indigentes»4 ou sugerindo à Junta a coloca-ção de uma caixa de esmolas na Igreja para “Socorro dos Náufragos” entãoentendido como tragédias.

E quanto aos mortos atingidos pelas pestes, a solução não poderia dei-xar de ser aquela que todos esperavam: o seu enterramento. Herdeiros datradição cristã e da crença na ressurreição final, os portugueses sempre recu-saram a cremação dos corpos ou o seu abandono, como ocorria nalgunspovos antigos. Portanto, para os mortos, ainda que provisoriamente, haveriade se encontrar uma morada não muito longe dos seus mais queridos e sem-pre à sombra da força protetora da Igreja.

4 Ata da Junta da Paróquia, 31.7.1892.

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O Adro da Igreja como primeiro cemitério aberto

Nos anos em que ocorreram as trágicas epidemias de cólera, os locaisde enterramento terão sido exíguos para acolher tão grande quantidade dealmas. Novos e velhos, a doença a todos atingia. Então nesta, como em tantasoutras aldeias do reino, à tragédia da mortandade terá sucedido, então, umoutro problema: a necessidade de espaço para enterramento.

Ora quais terão sido os locais de enterramento em Maçãs de Dona Ma-ria? À semelhança de qualquer localidade, um dos primeiros locais de sepul-tura nesta freguesia foi a Igreja. No seu interior, ali mesmo debaixo do soalho,terão sido cavadas as covas daqueles que partiam, como se veio a comprovarnos anos quarenta do século passado, aquando de uma intervenção de res-tauro e ampliação da Igreja, e de onde terão sido retirados restos de ossadas,transladadas, posteriormente, para uma vala no cemitério antigo que agoradescrevemos.

Pároco, sacristão e coveiro terão tido a preocupação do registo das se-pulturas, evitando, deste modo, enterrar corpos em locais onde não tivessedecorrido tempo suficiente para a decomposição do cadáver ou evitando en-terrar corpos uns sobre os outros. Foram preocupações tidas noutras igrejasdo País e estabelecidas na forma de regimento e que, decerto, a Igreja deMaçãs de Dona Maria não terá sido exceção, desde que se iniciou o registosistemático dos óbitos após a Contrarreforma (em oposição à reforma protes-tante iniciada com Lutero), em meados do século XVI.

Porém, a inumação de corpos no interior da Igreja acarretava perigos eincómodos que todos conheciam e sentiam de perto, e em especial, os odoresnauseabundos provenientes de um chão com corpos em decomposição. Porisso, um dia do qual não há registos (talvez a partir do século XVII como édestacado por alguma bibliografia sobre outros locais do País)5, quando apopulação da freguesia começou a crescer, terá havido a decisão sensata deos enterramentos passarem a ser feitos no exterior da Igreja, não sendo deexcluir, contudo, que as figuras locais de maior prestígio continuassem a serenterradas no interior da Igreja. De facto, com tantos corpos a desaparecerempor baixo do soalho da Igreja nem as portas abertas ou o incenso queimadoconseguiriam disfarçar tais odores, em especial, em épocas de epidemias dacólera ou da febre tifoide.

5 http://geneall.net/pt/forum/147284/enterrado-em-cova-de-fabrica-assentos-de-obito/#a169791

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É, pois, no Adro da Igreja, que se organiza o primeiro cemitério públicoaberto da aldeia dos tempos modernos. É certo que enterrar os mortos nointerior da Igreja significava terem os restos mortais dos mais queridos sobproteção da casa de Deus. Mas no Adro, também ele um espaço sagrado,paredes-meias com a Igreja, a diferença não seria tão grande e sempre adecomposição dos corpos se poderiam fazer sem perigos para a saúdepública.

Figura 2 e 3 – Adro da igreja paroquial de Maçãs de Dona Maria, mostrando do lado direito algumascasas onde no século XIX se instalaram tabernas e outros estabelecimentos comerciais de Manuel

Simões de Abreu.

Mas esta decisão de enterrar os corpos no adro da igreja não foi tãopacífica em todo o território nacional, devendo-se aos costumes locais a formade encarar o enterramento. Por exemplo, nas pequenas aldeias do Norte doPaís, nos primeiros anos do século XIX, a igreja ainda continuava a ser utiliza-do como cemitério. E foi para acabar definitivamente com este problema dehigiene pública que já no Regime Liberal haveria de sair o Decreto de21.9.1835 (dois anos depois do primeiro surto de cólera em 1832), proibindoo enterramento nas igrejas e nas capelas e a tornar obrigatório a construçãoem todo o território nacional de cemitérios municipais e paroquiais.

De acordo com este diploma de Rodrigo da Fonseca Magalhães, todosos cemitérios então considerados como espaços “insalubres de primeira or-dem” deveriam ficar distanciados das habitações, pelo menos, a 200 passos(cerca de 143 metros); e párocos ou eclesiásticos que ousassem permitir oenterramento de corpos no interior dos seus templos seriam alvo de severassanções.

Como seria de supor, pelo território nacional tal proibição não foi aceitedo mesmo modo e, em especial, nos pequenos e isolados aglomerados doNorte montanhoso, onde tal legislação foi inicialmente ignorada, pondo-sepedra sobre o assunto. Afinal, ordenar que os corpos fossem sepultados

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num descampado, longe da casa de Deus, era uma intromissão do podercivil nas questões da fé, pelo que tal legislação terá surgido como umaofensa sacrílega.

Mas os governos não descansavam enquanto tal decisão não fosse pos-ta em prática. Nove anos depois, seria publicado o Decreto de 28.9.1844, dogoverno do conde de Tomar, Costa Cabral, promulgando a Reforma da Saú-de Pública que tornava a recordar a proibição do enterramento em espaçosde culto, e a obrigatoriedade desses atos decorrerem em cemitérios públicos,para além de exigir também uma certidão de óbito passada por um médico.

Um mau ano agrícola, pro-vocado pela praga da batata epela seca intensa que na épocase fez sentir, a saída desta leivexatória para o povo humilde eainda uma outra lei que obriga-va o povo a mais um tributo (a do“cruzado para as estradas”), le-vou a que um pouco por todo oterritório o descontentamento seinstalasse entre a população ru-ral, em especial, no Norte do País.Foi a gota de água no copo atransbordar.

Segundo uma das versões,na origem deste espontâneo le-vantamento popular, sem unida-de de comando, teria estado umamulher da freguesia de FonteArcada, do concelho de Póvoade Lanhoso, uma tal Maria. De-corria o mês de abril de 1846quando um grupo de mulheresdaquela aldeia, armadas de “chuços” (paus com aguilhões) invadiram umacapela onde se velava uma defunta e não obedecendo às solicitações dopároco, pegaram no cadáver e foram sepultá-lo no chão da Igreja, como dita-vam os velhos costumes.

Enterro consumado, não se quedaram; e estradas fora terão gritado vivasao antigo regime e às antigas leis. A autoridade interveio, tendo prendido três

Figura 4 – Estátua da “Maria da Fonte”em Póvoa de Lanhoso.

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dessas revoltosas. No dia seguinte, quando o juiz e delegado chegaram àaldeia para fazer a averiguação dos factos, o grupo do dia anterior agoraampliado com outras tantas mulheres armadas de foices, paus e chuços nãose fizeram rogadas e expulsaram da aldeia os homens das leis. Depois, nãosatisfeitas, tocaram o sino a rebate, e depressa conseguiram uma pequenamultidão entre as aldeias vizinhas dirigindo-se à sede de concelho. Uma vezem Póvoa de Lanhoso, o mulherio armado invadiu a cadeia, soltaram asencarceradas do dia anterior e, de novo, terão soltado vivas a D. Miguel emorte ao governo e aos Cabrais.

Era a “Revolução da Maria da Fonte” disseminada pelas aldeias, desig-nação que na história ficou associada a este levantamento de mulheres dopovo, a “revolução do saco às costas e roçadoura na mão”, nas palavras dopróprio Costa Cabral, discursando nesses dias no Parlamento. A insurreiçãoda Fonte Arcada ter-se-á replicado um pouco por todo o Norte do País, haven-do mesmo a ousadia de um grupo de revoltosos tentar invadir o Quartel deInfantaria de Braga, onde terão sofrido vários mortos e feridos.

O Conde Costa Cabral não teve outra alternativa para silenciar os levan-tamentos: solicitou ao Parlamento poderes excecionais, e só a força das ar-mas e da justiça conseguiu pôr cobro à situação. Porém, já tinha ocorrido oaproveitamento político das insurreições por parte de miguelistas, setembristase cartistas dissidentes e, em 18 de maio, cairia o governo autoritário de CostaCabral, e logo em outubro desse mesmo ano de 1846, estalaria a guerra civilda Patuleia.

A construção do Cemitério Velho

Mas as leis sanitárias do governo de Costa Cabral do qual aobrigatoriedade do enterramento nos cemitérios públicos era apenas umadas medidas, acabaram por se ir instalando um pouco por todo o país. Ofanatismo ignorante das populações começou a diluir-se e algumas cidadescomeçavam a dar o exemplo com a criação dos seus cemitérios, como emLisboa com o cemitério do Alto de S. João em 1833 e no Porto, o cemitério doPrado do Repouso em 1839.

Entre aqueles povoados que cedo tomaram a decisão de construir o seuprimeiro cemitério, esteve a freguesia de Maçãs de Dona Maria. Corria entãoo ano de 1855, e muitas cidades do país ainda se debatiam em polémicasrelativamente ao local onde deveriam ser instalados os seus cemitérios, privi-legiando as orientações predominantes dos ventos, as superfícies que deve-

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riam ter e quantos e quais os es-paços para ruas e jazigos. Napromoção da construção destepequeno cemitério a poente daIgreja, esteve o pároco da épo-ca, Bernardo Ferreira da Silva,que, quatro anos antes da suamorte, graças à sua iniciativa, àsofertas dos paroquianos e à con-tribuição financeira das quatroconfrarias então existentes (Con-fraria do Santíssimo Sacramen-to, Confraria das Almas, Confra-ria da Senhora do Rosário e Con-fraria de Santo António) conse-guiu fazer erguer um muro nazona poente do adro da igreja,delimitando o referido cemitériopúblico6.

A decisão encontrada naaldeia não poderia estar mais acontento do pároco e da população, com o aproveitamento de parte do adroda igreja para se instalar o cemitério, libertando, assim, o restante espaçopara atividades mais mundanas, nomeadamente, o mercado dominical e osfestejos. Ali próximo, a umas escassas dezenas de passos, a igreja e tudo oque ela significava, continuava a zelar pelos seus mortos.

Contudo, nos anos seguintes, o pequeno cemitério não foi suficientepara enfrentar novas epidemias. De facto, em 1856 e 1857, e entre outubro edezembro de 1864, as epidemias de cólera e de febre tifoide que grassarampela aldeia produziram demasiadas vítimas para a capacidade do pequenocemitério, pelo que houve que recorrer, de novo, ao adro como prolongamen-to do cemitério. Desde então, a hipótese da utilização do adro como comple-mento do cemitério foi acautelada pela Junta da Paróquia, e já no início doséculo XX foi mesmo previsto que, em caso de máxima urgência, se procedes-

Figura 5 – O adro da igreja de Maçãs de Dona Maria,em meados do século XIX.

6 SIMÕES, António Augusto da Costa, Topographia Medica das Cinco Vilas e Arega ou dos concelhosde Chão de Couce e Maçãs de D. Maria em 1846, com o respetivo mappa topográfico e cartageológica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1860, pp. 20 e 21.

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se à transferência da «venda de objetos» que ali se costumavam ocorrer«para uma pequena praça (…) próxima da escola»7 junto do pelourinho. Deigual modo, a Junta da Paróquia toma a decisão de impedir qualquer constru-ção no adro que pudesse prejudicar aquele espaço.

Efetivamente, em 1900, a Junta da Paróquia tendo verificado que ManuelSimões de Abreu, proprietário do terreno e muro do lado sul contíguo ao adro(e benemérito da terra, pois tinha cedido gratuitamente, durante dois anos,uma casa para ali funcionar a sala de aulas do sexo feminino), se preparavapara aí construir «uma obra de arte de pedreiro», utilizando o Adro como localde «passagem de carro puxado a bois», pronunciava-se desfavoravelmentecontra tais obras, com receio de que as mesmas viessem resultar em mais«tabernas e outros quaisquer estabelecimentos prejudiciais à Igreja»8 e aoadro envolvente. É que o requerente, além da reconstrução da sua casa pre-tendia ampliá-la em mais 16 metros de comprimento, acrescentando-lhe maistrês portadas voltadas para o adro, e na opinião do Padre José Francisco deSousa Santiago, presidente da Junta da Paróquia nessa época, isso era maisum pretexto para instalar mais “casas de tabernas” além daquelas que Manu-el Abreu já ali possuía9.

E a Junta na forma de ofício, em resposta a Manuel Simões de Abreu,recordava o que todos sabiam: «(…) tendo esta Igreja matriz de Maçãs deDona Maria em volta de si, terreno vulgarmente o Adro e que até há poucos

Figuras 6 e 7 – O cemitério antigo de Maçãs de Dona Maria. No portão de ferro forjado bemtrabalhado e encimado por uma cruz, continua a poder ler-se a data de 1855, ano de construção de

um dos primeiros cemitérios paroquiais do País.

7 Ata da Junta da Paróquia, 7.4.1900.8 Atas da Junta da Paróquia, 17.2, 17.3 e de 7.4 de 1900.9 Ata da Junta da Paróquia, 21.7.1900.

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anos servia de cemitério, hoje onde se vendem vários objetos aos Domingosà hora da missa, por se ter construído um pequeno cemitério em parte domesmo Adro; e sendo as obras a que se refere o requerimento incluso feitascom a frente para a Igreja, beiras e portas para o dito Adro por onde elerequerente ficaria com direito de passagem a pé e de carro e onde se estabe-leceriam tabernas e outros quaisquer estabelecimentos prejudiciais à Igreja,e já mais que é em frente da sua porta principal, do lado sul, à distância de 25passos ordinários, e em tais condições não deverá autoridade alguma a quemcompetir conceder tal licença, por em caso idêntico de epidemia como a queem 1856 e 1857 e Outubro a Dezembro de 1864, terá a Junta desta freguesiade se utilizar do dito Adro como suplemento ao atual cemitério, como no indi-cado tempo de epidemia sucedeu; e transferir-se-á a venda de objetos que alise costumam vender para uma pequena praça que há nesta vila, próxima daescola»10.

A ocupação de faixas de terreno do Cemitério Velhocomo umas das principais fontes de receita da Junta

Relativamente à ocupação do terreno, tudo aponta para que a cerimóniada bênção do terreno tivesse sido feita à medida que o cemitério ia crescendo.De facto, em 1889, o pároco José Francisco de Sousa Santiago, foi autorizadopelo Bispo Conde da Diocese de Coimbra a benzer uma parte do cemitérioque ainda não tinha contemplado, «com todas as solenidades canónicas,civis e administrativas», tendo sido excluída desta «bênção um bocado deterreno para o lado norte que tem 41 metros de comprimento e 4 de largo,destinado à sepultura de cadáveres não católicos»11.

Desde a sua construção, o “Cemitério Antigo”, com a sua rua principal eas travessas laterais por onde circulavam os vivos que buscavam a compa-nhia dos seus desaparecidos, no essencial era a “aldeia dos mortos”. Assim,desde o final do século XIX, começaram a surgir nesta “aldeia” as “casas” maisdistintas, algumas poucas mas requintadas obras artísticas, espelhando algu-ma vaidade e ostentação das famílias mais favorecidas que passaram a ad-quirir porções de terreno para construção de “jazigos perpétuos”. O primeiropedido registado de tal concessão foi atribuído ao antigo professor da aldeia,secretário da Junta da Paróquia e juiz de paz, Callisto Curado. Nascido em

10 Ata da Junta da Paróquia, 7.4.1900.11 Ata da Junta da Paróquia, 28.4.1889.

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1831, filho do sapateiro Bernardo Curado e de Teresa Maria (de Vale deTábuas)12já enfermo e acamado, terá pedido ao seu filho Firmino Curado,então com 21 anos, alferes de infantaria em comissão, para tratar do assuntodo jazigo de família. Contudo, Callisto Curado só viria a falecer muitos anosdepois, tendo este elegante mausoléu sido inaugurado pela sua filha Ignacia,de dezoito anos, vítima de tuberculose. Neste mesmo monumento funeráriohaveriam de se enterrados o próprio Callisto Curado, a esposa, e os seusfilhos João e Seraphim Curado da Gama, aquele que em 1898 abriria aopúblico na terra uma farmácia com o seu próprio nome13. O preço de 2,5metros de largura (cerca de 6 m2) foi então de 10 mil réis14.

13 www.al-baiaz.we.pt14 Ata da Junta da Paróquia, 17.3.1894.15 Ata da Junta da Paróquia 1.10.1898.

Figura 8 – Jazigo de família de Callisto Curado.

Anos depois, a Junta recebia outro requerimento de João AugustoSimões Favas, proprietário da Quinta da Boavista e residente na Sé Novaem Coimbra, requerendo a concessão dos mesmos 6 m2 de terreno. O preçojá tinha aumentado para dois mil réis o metro quadrado15 e seria para este

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jazigo que Simões Favas haveria detrasladar as ossadas dos seus pais,António Simões Favas, falecido a1.4.1907 e Joaquina da Conceição fa-lecida muitos anos antes16.

A Junta da Paróquia começou en-tão a constatar que a venda de terre-nos no cemitério acabava por se tor-nar numa das suas principais fontesde receitas, tendo no mesmo ano de1900 recebido dois pedidos: em18.8.1900, pelo tabelião de julgado,António Joaquim Nogueira (da Vila),para preservar os restos mortais da suaesposa Maria do Nascimento de Sou-za Lemos e Nogueira, e em novembrodesse mesmo ano, desta vez uma fai-xa de terreno maior, com o Jazigo daDona Maria da Conceição da Silveirae Castro, que por 18 m2 de terreno tevede desembolsar 36 mil réis17.

Neste mausoléu haveriam de serdepositados os restos mortais de D. Es-têvão José Lopes da Silveira e Castro,Desembargador da Relação de Lis-boa, natural de Chão de Couce, quetinha uma irmã, a Dona Maria da Con-ceição da Silveira e Castro, moradoranas Ferrarias, que após a morte repen-tina do seu irmão, ficou de imediato naposse de um vasto património. DonaMaria mandou erigir o jazigo para oirmão e sua mãe (Dona Maria Emíliada S. e Castro) e, por sua morte, todos os seus bens foram herdados por Sr.Mateus Pereira dos Reis, das Ferrarias, o caseiro e seu primo, pai do médi-

Figura 9 – Jazigo de família de JoãoSimões Favas.

Figura 10 – Jazigo de famíliade Silveira e Castro.

16 Ata da Junta da Paróquia, 5.2.1914.17 Ata da Junta da Paróquia, 3.11.1900

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co e antigo presidente da Câmara de Alvaiázere, Dr. António José Pereirada Silveira e Castro.

Para evitar uma rápida ocupação do cemitério, em 8.7.1906, a Juntatoma a decisão de aumentar o preço do metro quadrado de dois mil para novemil réis, o que não impediu os paroquianos abastados de continuarem a ad-quirir o espaço para perpetuar a sua memória.

Figuras 11 e 12 – Mausoléus do cemitério antigo de Maçãs de Dona Maria

Entretanto a inflação faria o resto. Em 6.8.1919, o grande comerciante,industrial e benemérito da aldeia, António dos Santos Guia Gameiro, pagaria31$66 (escudos) pelo terreno para o seu jazigo de família, e em 1920, já opreço do terreno na rua principal e lateral tinha aumentado para 40$00 (escu-dos)/m2, sendo um pouco inferior «da escada para baixo», 30$00 (escudos)/m2 18 tornando a subir dois anos depois para 150$00 (escudos)/m2 19 e aumen-tando cada ano que passava (em 1923 estes valores do m2 da parte superiore inferior foram aumentados, respetivamente, para 300$00 e 250$00 (escu-dos) e em 1924, para 600$00 e 500$00 (escudos)).

Em 1926, a Junta instituiria novas regras para a construção de campas ede jazigos no cemitério: 1.º Os interessados deviam entregar o plano de obrapara aprovação na Junta; 2.º A Junta é que determinaria a extensão do terre-no; 3.º As pessoas que já tivessem comprado terreno, teriam de apresentartambém um plano de obra, devendo efetuá-la no prazo máximo de 5 anos etrasladar as ossadas entre 5 a 6 anos; 4.º Se não fizessem tais obras perderi-am direito ao terreno; 5.º Quando o pagamento dos 1,30 m de extensão tives-se sido realizado, o coval seria respeitado por mais 5 anos20.

18 Ata da Junta da Freguesia, 21.1.1920.19 Ata da Junta da Freguesia, 3.5.1922.20 Ata da Junta da Freguesia, 6.5.1926.

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Posteriormente, e pelo facto de terem ocorrido irregularidades, decidiu-se proceder à numeração dos covais, tendo sido solicitado ao serralheiroManuel Ferreira Urbano a aquisição de 50 chapas de zinco e respetivas esta-cas de ferro, pelo valor de 66$7521, algo que iria prosseguir nos anos seguin-tes (por exemplo, fornecimento de 35 estacas de ferro por 52$5022.

A Junta mantinha-se atenta a todas as tentativas de enterramentos nãolegalizados. Deste modo, em 1929, a Junta constatou que uma viúva tinhaenterrado o seu marido num coval que tinha comprado mas ainda não tinhapago os respetivos direitos23. Chamada a regularizar a situação, quando com-pareceu na Junta para explicar o incidente, a viúva adiantou que não tinhadado ordens algumas para sepultar o seu marido na campa da primeira efalecida mulher e que, decerto, essas ordens teriam sido dadas «por pessoasde boas ou más intenções que se fizeram seus procuradores, intervieram nocortejo fúnebre e autorizaram, naturalmente a pedido dele, seu falecido, a queo sepultassem junto das ossadas da falecida mulher; e nestes termos, rogavaà Comissão a fineza de a julgarem como inocente no assunto, e que pagavaa multa que estabelecessem, a fim de evitar qualquer questão a impor-sesobre o cadáver do seu falecido marido». A Junta estipulou uma multa de125$00 e se não pagasse arriscaria o poder judicial e uma multa especial24.

Figuras 13 e 14 – O patamar superior e o patamar inferior do Cemitério Antigo. Junto da entrada,os preços dos terrenos sempre foram superiores aos da “parte de baixo”.

21 Ata da Junta da Freguesia, 15.2.1928.22 Ata da Junta da Freguesia, 16.10.1931.23 Ata da Junta da Freguesia, 10.4.1929.24 Ata da Junta da Freguesia, 24.4.1929.

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Graças a esta postura intransigente do Junta sobre o pagamento dosdireitos correspondentes aos enterramentos, começaram a surgir os pedidosde enterramento em campas já adquiridas, como aquele de uma filha quetinha a sua mãe moribunda, tendo pedido à Junta que quando ela falecesse,que pudesse ser enterrada na campa do seu pai25.

As obras de manutenção do cemitério

Desde cedo, a Junta da Paróquia e, mais tarde, a Junta de Freguesia,revelaram preocupação em manter o “Cemitério Antigo” em dignas condi-ções. Nas atas da Junta são frequentes as referências às obras deste espa-ço, fosse para caiar os muros, para preservar os limites dos arruamentos ea marcação de covais ou para manter a estrutura dos próprios muros quenalgumas ocasiões ameaçavam desmoronar-se em consequência de vio-lentos temporais.

Em 1885 um elemento funerário esculpido em pedra foi colocado juntodo portão, recordando o espaço de morte que se encontrava ao transporaqueles muros de proteção.

No ano seguinte, em 28.3.1886, a Junta da Paróquia toma a decisão dearrematar a construção da escada sul do cemitério a José Luís, da Cabreira,

Figuras 15 e 16 – Elemento esculpido no muro do “cemitério velho” de Maçãs de Dona Maria.

25 Ata da Junta da Freguesia, 11.12.1929.

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por 106.850 réis e para ir fiscalizando tais obras, foi proposto Manuel CuradoLeitão, da Charneca, sendo-lhe atribuído 200 réis por cada dia que se aplicas-se na referida fiscalização26. E, curiosamente, as questões estéticas estiverampresentes no contrato estabelecido: «a escada terá oito patamares de calçadade seixo branco e pedra azulada da Ribeira, cada um dos quais terá doismetros quadrados sete escadas de cantaria lavrada» e a «cantaria lavradaserá da serra chamada Comares e não branca (…)» para além de exigir queos dois muros que a ladeavam deveriam ser construídos a pedra e barrovermelho, rebocados e caiados, «incluindo o respetivo espigão que será devolta perfeita». Nada poderia faltar para uma escada que deveria estar con-cluída até ao final do mês de agosto, dia de festejos da terra.

Figuras 17 e 18 – Escadas laterais do Cemitério Antigo com calçada de seixo branco e pedraazulada da Ribeira e lajes de cantaria calcária.

Mas como qualquer construção, também os muros do cemitério foramcedendo aos rigores do tempo, pelo que, em 1925, quase 70 anos depois dasua construção, houve necessidade de grandes reparações, intervindo, emespecial, nas escadas que separavam a parte superior da parte inferior, acolocação de uma forte argamassa, com bastante cal, que embelezasse, de-finitivamente, os muros deste espaço comunitário. Nessa altura, vários foramos fornecedores de materiais que prestaram serviço de transporte com carrosde bois, como Manuel Rodrigues Craveiro (Fonte Galega) ou António Luís(Casal Agostinho Alves).

O investimento terá sido tão avultado (mais de 2 500$00 em materiais eoperários) que no final desse mesmo ano já se tinha esgotado o orçamento

26 Ata da Junta da Paróquia, 16.5.1886.

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previsto para reparar os muros do cemitério. Para que essa recuperação seconcluísse houve necessidade da transferência de verbas que estavam des-tinadas à construção da Sala de Sessões da Junta. E o presidente da altura,António José de Faria interveio na discussão, adiantando que «por bem, e deharmonia com os interesses gerais da freguesia, achava que seria um deversagrado aplicar o disponível pecuniário na conservação daquele edifício pú-blico, visto o local ser destinado à última morada dos nossos antepassados»27.No final desse ano, mais 2 549$00 para pagamento dos materiais e operáriosque repararam os muros e as escadas do cemitério28.

Os trabalhos de manutenção foram-se sucedendo: a reparação dosportões de ferro do cemitério (em 1924, tendo sido pagos 187$50 ao serra-lheiro Manuel Ferreira Urbano); a mudança do cruzeiro para o centro do cemi-tério (e que pelo trabalho foram pagos 45$00 a Serafim Luís29; a caiação dosmuros (por exemplo, em 1924 foram pagos 44$50 a Domingos da Silva (daFonte Galega, carreiro) pela compra de cal para dentro e fora do cemitério e164$00 a José Ferreira, do Vale do Paio; a limpeza do solo do cemitério, tarefaentregue, por exemplo, a António Simões Luiz, do Vale do Senhor30, João deDeus31 ou José da Engrácia32.

O esgotamento do Cemitério Velhoe a construção do Cemitério Novo

Com o aumento da população, Maçãs de Dona Maria viu-se na contin-gência de encontrar alternativas para a expansão do velho cemitério. Dada asua localização o alargamento só seria possível para o lado norte. A opção deexpropriação de terreno ainda chegou a ser equacionada, mas tal soluçãoseria sempre limitativa para os desejos da freguesia. Deste modo, em 1954, afreguesia tomou a decisão da construção de um novo cemitério afastado docentro da Vila.

Desde a decisão até ao início da construção do novo cemitério, aindahaveria que se esperar, conforme a notícia do jornal: «Pela segunda vez foi àpraça o concurso para a construção do novo cemitério, a qual não teve licitan-

27 Ata da Junta da Freguesia, 4.11.1925.28 Ata da Junta da Freguesia, 16.12.1925.29 Ata da Junta da Freguesia, 3.9.30.30 Ata da Junta da Freguesia, 6.8.1924.31 Ata da Junta da Freguesia, 17.6.1925.32 Ata da Junta da Freguesia, 6.8.1928.

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tes. Parece que o caderno de encargos não oferece condições vantajosaspara os empreiteiros»33. Mas no final desse mesmo ano, precisamente umséculo depois da construção do antigo cemitério, o novo cemitério já começa-va a receber os mortos da aldeia (o segundo enterramento foi o bisavô doautor destas linhas, Serafim Rodrigues Craveiro), mantendo-se e acentuan-do-se o gosto pela compra dos espaços para obras tumulares, o que conduziuà necessidade do seu alargamento em 2015.

33 Diário Popular, 15.1.1955.

Figura 19 – Campas no Cemitério Antigo.

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Conclusão

O Cemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria recebeu os mortos destafreguesia entre 1855 e 1955. Durante este século, este espaço retirado aoadro da igreja viria transformar-se na réplica da aldeia, com os pobres e osabastados a replicarem o seu estatuto, ora enterrando os seus familiares emcovais lisos e temporários, ora em mausoléus de algum requinte. Por ser umdos primeiros cemitérios públicos do País, este modesto mas significativoespaço de enterramento merece ser conservado, devendo ser repensado umprojeto que transforme este espaço patrimonial em mais uma referência daidentidade desta freguesia, uma localidade com história.

Figura 20 – Ainda campas no Cemitério Antigo

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Índice

Apresentação ............................................................................................................. 7Organização ............................................................................................................. 9Programa .................................................................................................................. 11

Comunicações

Comportamentos simbólicos e deposições funerárias na pré-históriarecente, na região de Alvaiázere ......................................................................... 15

Alexandra FigueiredoAs inscrições funerárias romanas como lugares de memória ........................ 33

Ana Paula Ramos FerreiraPor aqui andaram/enterraram mouros: as necrópoles islâmicasna Região Centro .................................................................................................... 45

Ana Raquel GonzagaA Necrópole da Igreja de Santa Maria da Alcáçova do Castelode Montemor-o-Velho: os enterramentos de não adultos ............................... 59

Ana Maria Silva e Flávio ImperialAlto do Calvário, Miranda do Corvo: uma necrópole com onze séculos ...... 67

Vera SantosComo se fez história: Arquitectura funerária do Mosteiro da Batalha ........... 79

Pedro Redol e Orlindo JorgeArquitetura e Práticas Funerárias: A necrópole de Soutoda Carpalhosa na arqueologia da sua torre sineira ........................................ 99

António GinjaEnterrar e rezar. A Misericórdia de Pombal e a Assistênciaaos Mortos (Séculos XVII-XIX) ........................................................................... 117

Ricardo Pessa de OliveiraOs cemitérios públicos no século XIX – Atenção especialao norte do Distrito de Leiria ............................................................................... 129

Mário Rui Simões RodriguesA morte de José Relvas na cultura republicana.............................................. 163

Nuno Oliveira Prates

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Práticas Funerárias e Atitudes perante a Morte na Região Centro

O tabu da morte em Portugal nos últimos 30 anos: persistênciase transformações....................................................................................................183

António Matias CoelhoTurismo cemiterial – Um nicho de atividade turística ..................................... 199

Ana Paula de Sousa Assunção

Anexo

História do Cemitério Antigo de Maçãs de Dona Maria ................................ 209Carlos Craveiro