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Filosofia da Linguística Florianópolis - 2011 Roberta Pires de Oliveira Renato Miguel Basso Período

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Linguagem. Filosofia. História. Língua

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Filosofia da Linguística

Florianópolis - 2011

Roberta Pires de Oliveira Renato Miguel Basso7º

Período

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Governo FederalPresidente da República: Dilma Vana RousseffMinistro da Educação: Fernando HaddadCoordenador da Universidade Aberta do Brasil: Celso José da Costa

Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação a Distância: Cícero BarbosaPró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh MüllerPró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres MenezesPró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros CamargoPró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista FurtuosoPró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretor Unidade de Ensino: Felício Wessling MargottiChefe do Departamento: Izabel Christine SearaCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Renato Miguel BassoCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti-Rizzati

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Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação Geral: Andrea LapaCoordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

Produção Gráfica e HipermídiaDesign Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiCoordenação: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramação: Talita Ávila Nunes, Jean Henrique Menezes, Thiago Rocha Oliveira, Karina SilveiraFiguras: Talita Ávila Nunes, Jean Henrique MenezesTratamento de Imagem: Talita Ávila Nunes, Jean Henrique MenezesRevisão gramatical: Renata de Almeida

Design InstrucionalCoordenação: Vanessa Gonzaga NunesDesigner Instrucional: Maria Luiza Rosa Barbosa

Copyright © 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina.

Ficha Catalográfica

O48f Oliveira, Roberta Pires deFilosofia da Linguística / Roberta Pires de Oliveira, Renato Miguel

Basso. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2011.145p. : il.

Inclui bibliografiaUFSC. Licenciatura em Letras Português na Modalidade a Distância.

ISBN: 978-85-61482-41-1

1. Linguagem – Filosofia. 2. Ciência. I. Basso, Renato Miguel. II. Título.

CDU: 801

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Sumário

Apresentação ...................................................................................... 7

Unidade A - A linguística é uma ciência .................................... 9

Introdução1 ......................................................................................................11

O que é ciência?2 ............................................................................................25

A reflexão humanista3 ..................................................................................37

Unidade B - Como fazer ciência da linguagem? ..................41

Como fazer ciência da linguagem?4 ........................................................43

4.1 Classes de palavras ...........................................................................................44

4.2 O significado dos numerais ...........................................................................50

4.3 Sobre a concordância verbal ........................................................................54

4.4 Sobre o sujeito ...................................................................................................59

A arquitetura das hipóteses5 .....................................................................63

5.1 A indução .............................................................................................................63

5.2 A dedução ...........................................................................................................66

5.3. A abdução...........................................................................................................71

Unidade C - Modelos de reflexão em linguística

contemporânea ...............................................................................79

Os paradigmas de abordagem do objeto linguagem6 ....................81

O que é o formalismo na linguística?7 ....................................................85

O que é o funcionalismo na linguística?8 ..............................................93

O paradigma humanista9 .........................................................................101

Unidade D - A linguística e outros saberes sobre

a linguagem ................................................................................... 109

A linguística e outras ciências10 ............................................................111

O conhecimento tácito do falante e sua opinião sobre 11

a linguagem ..............................................................................................121

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Política e planejamento linguístico12 ..................................................129

Considerações finais13 ..............................................................................137

Referências ...................................................................................... 139

Crédito das imagens ................................................................... 141

Glossário .......................................................................................... 145

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Apresentação

N este livro, nosso objetivo é apresentar alguns dos rumos que a Lin-

guística, a ciência que estuda a linguagem humana, tem tomado

desde a sua fundação com Ferdinand de Saussure, no início do

século XX (O curso de linguística geral foi ministrado por Saussure nos anos

de 1907 a 1910 em Genebra. Foi compilado por seus alunos Charles Bally, Al-

bert Sechehaye e Albert Ridelinger e publicado posteriormente em 1916 como

Curso de Linguística Geral). Iniciamos nosso percurso com a questão básica:

a Linguística é uma ciência? E em que sentido ela é uma ciência? Como você

verá, responderemos que sim, apesar de a Linguística não ser o único tipo de

saber sobre a linguagem. Contudo, para podermos responder a tal pergunta,

é necessário que disponhamos de uma definição mínima de ciência; algo que

não é nada simples. Precisamos não só saber o que é ciência, mas também

como ela opera, quais são seus métodos de investigação, e é por isso que en-

veredamos pelos argumentos indutivos, dedutivos e abdutivos. Nessa emprei-

tada, avaliamos como se constroem hipóteses em Linguística, que cara tem

uma hipótese linguística, como é possível formulá-la, averiguá-la, refutá-la e,

se necessário, reformulá-la.

A Linguística, como dissemos, não é o único tipo de conhecimento que po-

demos ter sobre a linguagem e nem é o único tipo de conhecimento científico

que se ocupa da linguagem; diversas outras ciências e disciplinas filosóficas

têm um grande interesse na linguagem, e é por isso que olhamos ainda para a

relação da Linguística com outras ciências e com a filosofia, procurando sem-

pre destacar seu lugar e sua contribuição única. Analisamos ainda tipos de

conhecimento sobre a linguagem que não são científicos de acordo com nossa

definição de ciência – o que não significa nenhum tipo de demérito – e tam-

bém o valor político da língua, como ela pode ser um instrumento de liber-

dade ou de repressão. Em meio a todas essas discussões, não podemos deixar

de lado nosso conhecimento intuitivo da linguagem, um conhecimento que

é revelado através de piadas e brincadeiras que todos fazemos com a nossa

língua e também em situações como aquelas em que identificamos alguém

que fala com sotaque ou que fala uma variedade sem prestígio social – essa

identificação é um conhecimento linguístico.

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Tudo somado, talvez nosso maior objetivo seja mostrar como um olhar na-

turalista – um olhar científico – sobre a linguagem é revelador e instigante.

Procuramos assim mostrar como a Linguística pode contribuir para a cons-

trução de nossa imagem científica do mundo, uma imagem que é por vezes

erroneamente taxada de redutora e árida. Esperamos mostrar que isso está

errado e que a imagem científica do mundo é sim fascinante, como diz muito

bem o físico Richard Feynman:

But I would like not to underestimate the value of the world view which is the result of scientific effort. We have been led to imagine all sorts of things infinitely more marvelous than the imaginings of poets and dreamers of the past. It shows that the imagination of nature is far, far greater than the imagination of man. For instance, how much more remarkable it is for us all to be stuck – half of us upside down – by a mysterious attraction to a spinning ball that has been swinging in space for billions of years than to be carried on the back of an elephant supported on a tortoise swimming in a bottomless sea.

Mas eu gostaria de não subestimar o valor da imagem de mun-do que resulta do esforço científico. Fomos levados a imaginar coisas infinitamente mais maravilhosas do que a imaginação dos poetas e sonhadores do passado. Isso mostra que a ima-ginação da natureza é muito, muito maior do que a imagina-ção do homem. Por exemplo, é muito mais impressionante que estejamos todos nós presos – metade de nós de ponta-cabeça – por uma atração misteriosa a uma bola em rotação que está oscilando no espaço há bilhões de anos do que sermos carrega-dos nas costas de um elefante que está em cima de uma tarta-ruga nadando num mar sem fim. (FEYNMAN, 2006)

Roberta Pires de Oliveira Renato Miguel Basso

FEYNMAN. Richard. In: LEIGHTON, Ralph. (Org.).

Classic Feynman: all the adventures of a curious

character. New York: W. W. Norton & Company,

2006. p. 484.

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Unidade AA linguística é uma ciência

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Capítulo 01Introdução

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1 IntroduçãoEmbora a linguística tenha sido fundada por Saussure como a ciên-

cia da linguagem, nem todos os linguistas a entendem como tal e não há tampouco acordo, entre os próprios linguistas, sobre o que se entende por ciência. Se nem todos os linguistas entendem que seu ofício é aque-le do cientista e aqueles que se veem cotmo cientistas não entendem o fazer ciência da mesma maneira, precisamos esclarecer o que é ciência para entendermos melhor o que faz cada linguista. Essa é, contudo, uma tarefa que exige cuidado porque, na nossa sociedade, ciência é um ter-mo extremamente carregado: muitas vezes é considerado demasiada-mente positivo, e outras é tomado como sinônimo da nossa derrocada, da nossa miséria. O que é afinal a ciência?

Os analistas do discurso entendem que o seu modo de fazer lin-guística não é científico: “Provavelmente, a AD [Análise do Discurso] quis ser científica. Provavelmente, não é, nunca foi. E nisso não vai uma avaliação de demérito, antes pelo contrário”, afirma Possenti (apud XA-VIER; CORTEZ, 2003, p. 389). É certo que a ciência não é a única ma-neira de conhecermos o mundo e a depender de nossos interesses nem mesmo a melhor forma, e é possível constatarmos tal fato em diversos domínios. A filosofia, por exemplo, permite entender aspectos da nossa realidade sem ser científica. A literatura é um modo de conhecimento certamente não científico, que é muito mais importante e eficaz para compreendermos a complexidade das nossas vivências sociais e emo-tivas do que a ciência. Mas aqui é preciso um cuidado especial porque, se é verdade que não há demérito algum em não ser uma ciência, tam-pouco é o caso que é algo positivo não ser científico, como parece suge-rir Possenti com o seu apêndice “antes pelo contrário”. Nesse início do século XXI, a palavra ‘ciência’ é, como dissemos, um termo carregado de simbolismos, muitas vezes tão exacerbadamente positivos que aden-tramos no ideológico – basta ter o rótulo de ciência para ser bom, como mostram as mais diversas propagandas – o que obviamente não é o caso; outras vezes, a ciência é entendida como o grande mal, responsável pela destruição da natureza, pela construção da sociedade de consumo, o que acaba por levar à formação de ondas de misticismos que negam ce-gamente o empreendimento científico, entendendo ser um demérito fa-

Ferdinand Saussure é considerado o fundador da linguística desde a publicação das notas dos cursos que ele ministrou durante os anos de 08-11 do século XX, em Ge-nebra, organizadas por seus alunos Charles Bally, Albert Sechehaye e Albert Riedlinger no livro Curso de linguística geral .

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Filosofia da Linguística

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zer ciência. Nem boa nem má, a ciência é uma maneira de entendermos a natureza, e somos, sem sombra de dúvidas, também natureza. O uso que se faz desse entendimento e os limites de interferência que devem nor-tear essa compreensão são questões de ética e envolvem uma discussão mais ampla de diferentes setores da sociedade. Se o objetivo da ciência é entender a natureza, deve haver limites para esse conhecimento? Há áreas, por exemplo, a genética, que a ciência não deve explorar? Podemos construir clones que serão nossos escravos ou que estarão a nossa dispo-sição como no filme A.I. Inteligência artificial (2001), de Spielberg?

A nossa compreensão da natureza caminhou paralelamente a cria-ções tecnológicas cada vez mais sofisticadas e nem sempre positivas: a bomba atômica1 é fruto do nosso conhecimento científico e tecnoló-gico. A ciência permitiu entendermos melhor a natureza, e a nós mes-mos como parte dela; e com isso permitiu manipulá-la e manipular-nos, como no caso das engenharias genéticas, o que gera questões éticas que nos tocam diretamente. São várias as facetas que a ciência entretém com a sociedade, com a ética, com a política etc. O tema geral pode ser apresentado pela seguinte questão: devemos deixar a ciência explorar li-vremente todos os seus caminhos de pesquisa sabendo que seus resulta-dos poderão eventualmente ser utilizaados contra o que reconhecemos como o bem comum? Devem os Estados restringir e regular a pesquisa científica? Certamente você já ouviu falar sobre se devemos ou não pes-quisar as células tronco2. Note que essas questões dizem respeito mais diretamente a certas aplicações do conhecimento do que ao próprio co-nhecimento – assim um primeiro passo nessa discussão é separar tecno-logia e ciência. Embora essas questões sejam extremamente importantes e controversas, o nosso objetivo não é discuti-las. Vamos apenas apontar o que nos parece ser uma maneira de encaminhá-las. A ciência é uma prática social e, como tal, deve confrontar-se com as questões do bem comum, almejá-lo. Reside aí a importância da reflexão ética na ciência.

Uma discussão interessante sobre o lugar da ciência na sociedade

contemporânea aparece no filme Mindwalk, traduzido por O ponto

de mutação. O enredo gira em torno de uma conversa entre um polí-

tico estadunidense que vai à França visitar um amigo poeta.

Se você não assistiu a esse filme, vale a pena assistir!

1. Apenas para lembrá-lo: Hiroshima e Nagasaki fo-

ram bombardeadas pelos Estados Unidos nos dias 6 e 9 de agosto de 1945,

respectivamente, com bombas atômicas, resul-tado do famoso Projeto Manhattan. Você pode

obter mais informações sobre o referido projeto em: <http://www.scielo.

br/scielo.php?pid=S1678-31662005000400011-&script=sci_arttext>.

2. Desde 29 de maio de 2008, o Supremo Tribunal

Federal Brasileiro con-sidera legal a pesquisa

com células tronco e sua utilização em terapias.

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Capítulo 01Introdução

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Eles conhecem uma cientista e discutem questões existenciais. O

filme baseia-se na obra The turning point, O ponto de mutação, de

Fritjof Capra.

Este livro tem, no entanto, um alvo mais modesto: ele pretende apenas esclarecer o que o linguista faz nos dias de hoje, esclarecer o que significa dizer que a linguística é uma ciência ou o que significa afirmar que a análise do discurso não é ciência, apesar de ser um tipo de conhe-cimento sobre a linguagem abarcado pela linguística.

Como já dissemos, a ciência é uma forma de refletirmos sobre a natureza, mas não é a única maneira de conhecermos e talvez não seja a mais eficiente para certos propósitos. Na sua posição política anárquico-sindicalista, Chomsky talvez explicite mais claramente a separação drás-tica entre humanidades e pensamento científico: a política, embora ex-tremamente importante, não é ciência, por isso sua reflexão faz parte das humanidades; a linguística, para Chomsky, não é política, mas ciência.

Noam Chomsky além de ter revolucio-

nado a linguística contemporânea, é um

grande ativista político, defendendo o

anarquismo de cunho sindicalista. São

vários os seus escritos sobre política:

Contendo a democracia (2003), Esta-

dos fracassados (2009), Para entender

o poder (2005), Problemas do conheci-

mento e da liberdade (2008), entre inúmeros outros. Sua posição

política é crítica ao imperialismo americano e defende uma versão

do anarquismo sindical, um estado sem governo, liderado pelos sin-

dicatos, baseados num indivíduo altamente consciente da sua posi-

ção política.

Em várias áreas, essa separação entre humanidades e ciência tem pouco efeito, porque os pesquisadores concordam sobre o que eles estão fazendo. Historiadores parecem concordar que eles estão nas humani-

Vamos utilizar o termo humanidades como um guarda-chuva; mais à fren-te iremos distinguir, na linguística, o paradigma científico do subjetivista/humanista.

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dades, que sua prática não se confunde com aquela dos físicos; enquan-to que os físicos não parecem duvidar de que seu objeto de estudos é científico (embora haja cada vez mais físicos que entendam que a ciên-cia, em particular na sua vertente tecnológica, não se faz desacoplada da reflexão sobre a ética e o social). É claro para o historiador, assim como é claro para o físico, que seus objetos de estudo são, respectivamente, da ordem dos sujeitos e da ordem da natureza. Esse enquadramento nas humanidades ou nas ciências é, contudo, menos consensual em áreas que lidam com fenômenos que podem ser entendidos ao mesmo tempo como sujeitos às leis da natureza, como fenômenos naturais, ou como fenômenos sociais e individuais. E é esse exatamente o caso da lingua-gem humana: não há dúvidas de que a linguagem é um fenômeno na-tural, no mesmo sentido em que o cantar dos pássaros é, mas é também o caso de que a linguagem é um fenômeno da ordem do subjetivo, com uma dimensão humana ou social (nesse caso faz pouco sentido falar em linguagem como entidade natural, melhor seria falar em ocorrências particulares de linguagem).

Ao falarmos que a linguagem é um fenômeno natural, pensamos na fa-

culdade ou capacidade que todos os seres humanos têm de falar e en-

tender uma (ou mais) língua(s) humana(s). Tal capacidade, como você

deve ter visto nas disciplinas de Sintaxe e Aquisição de Linguagem, en-

tre outras, parece estar inscrita em nosso código genético, de uma for-

ma ainda a ser desvendada, e é certamente uma capacidade mental/

cerebral. Encarada desse modo, a linguagem tem uma contraparte bio-

lógica e uma contraparte mental/cerebral. A contraparte biológica da

linguagem pode ser estudada pelos biólogos e geneticistas, além dos

linguistas. A contraparte mental/cerebral é estudada por neurologistas,

linguistas, psicolinguistas etc.

Se, por um lado, todos estamos de acordo que a biologia é uma ciên-cia e que o que ela estuda é algo da natureza, os fenômenos mentais; por outro lado, são olhados com muito mais suspeita: seria um fenômeno mental algo natural? Podemos reduzir os fenômenos mentais – o medo, por exemplo – a eventos cerebrais, reações neuronais? Seriam coisas como os pensamentos semelhantes a coisas como rochas ou animais, ou

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Capítulo 01Introdução

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seja, coisas da natureza, ou seria o pensamento algo de outra substân-cia? Esse debate nos remete à proposta de René Descartes, que separou distintamente, como duas substâncias, a substância do pensamento, ex-clusividade dos humanos, da substância da matéria, apenas ela sujeita às leis causais por contato direto. Separou corpo e mente. Uma separação ainda extremamente presente na nossa maneira de ver o mundo.

A resposta a esse tipo de questão – como a matéria (hoje em dia cére-

bro) e pensamento (a mente) se relacionam – é extremamente com-

plexa e a filosofia e outras disciplinas procuram, há milênios, entender

tal problema. Não seria incorreto, contudo, dizer que atualmente não

apenas a maioria dos filósofos e demais pesquisadores estão inclinados

a dizer que coisas mentais, como os pensamentos, são coisas naturais,

como há uma série de evidências nessa direção. O debate, porém, con-

tinua aberto e, como você já deve ter percebido, não teremos uma res-

posta definitiva para essa questão, mas é muito importante que você

note o seguinte: (i) se realmente a linguagem é algo mental; (ii) se os

fenômenos mentais são fenômenos naturais; e (iii) se os fenômenos na-

turais podem ser estudados cientificamente; podemos concluir que (iv)

a linguística é uma ciência, pois seu objeto de estudos é natural. Mas

veja que, se os fenômenos mentais não se reduzirem a fenômenos físi-

cos, como reações neuronais, então, podemos ver a linguagem como,

por exemplo, um fato puramente social.

Talvez você esteja se perguntando qual é a diferença fundamental entre fenômenos naturais e fenômenos sociais ou da ordem do sujeito. Há um fator que separa esses dois tipos de fenômeno, que é a causalida-de necessária, ou seja, a relação de causa e efeito necessária. Não seria incorreto dizer que todas as leis da física, da química, da biologia, da geologia etc. são leis causais necessárias, do tipo sempre que ocorrer o fenômeno A, ocorre o fenômeno B, porque A causa B. Um exemplo clássico é aquele em que uma bola de bilhar bate na outra, e dizemos que foi a batida que causou o movimento; a explicação para o movimento foi a batida. Note ainda que essa relação de causalidade é uma generaliza-ção, porque ela sempre ocorre quando uma bola bate na outra. Quando olhamos para fenômenos históricos ou sociais, muitas vezes não dis-

René Descartes, de Frans Hals (ca. 1649 )

René Descartes foi um filó-sofo francês, racionalista, que escreveu, entre outras obras, o Discurso sobre o método, em que figura sua célebre conclusão “Penso, logo existo”. Trata-se de uma belíssima peça de argumentação em que Descartes procura bases firmes para a existência, para se contrapor à ideia de que tudo pode ser uma obra de ficção criada pelo demônio.

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pomos (e não é possível dispor) de explicações causais como descritas acima. Podemos entender que a Revolução Francesa de certa forma cau-sou a Era do Terror, no sentido de que foi ela que forneceu as condições para que se iniciasse um período de “caça às bruxas”, mas não há uma relação de causalidade necessária entre elas. Em primeiro lugar, porque só houve uma única Revolução Francesa e não é possível repetir as suas condições – daí a singularidade da reflexão humanista –, também por-que nem todas as revoluções se seguiram por uma Era do Terror.

A Revolução Francesa abarca

diferentes acontecimentos

que datam de 5 de maio de

1789, com a queda da Basti-

lha, 9 de novembro de 1799,

com a tomada de poder

por Napoleão Bonaparte

no chamado 18 de Brumá-

rio. Maio de 1968 foi uma

revolução sem terror – ainda que ela não tenha tido sucesso.

Cabe lembrar que Maio de 1968 ou As Barricas do Desejo foi

uma revolução de esquerda que se iniciou na França, em parti-

cular entre os jovens, com o lema da liberdade sexual.

A liberdade guiando o povo, de Eugene Delacroix (1830).

Queremos apenas mostrar que não é claro que os fenômenos men-tais sejam naturais, isto é, possam ser estudados a partir de uma metodo-logia das ciências naturais, como processos de causa e efeito necessários. É certo, todavia, que tal perspectiva tem sido assumida desde o início da Cibernética, antes da década de 1950. Trata-se de um movimento de naturalização do estudo da mente humana, que teve, nos trabalhos de Quine, uma de suas origens. Esse processo de naturalização dos estudos sobre o mental não nos leva necessariamente a entender que a mente como um todo seja redutível a leis naturais. Fenômenos naturais são explicados deterministicamente: toda vez que um corpo for solto, ele cai. Modelos determinísticos são aqueles em que dada uma causa ne-cessariamente produz o mesmo efeito. Há aqueles que acreditam que a mente é na verdade redutível a reações cerebrais.

Willard van Orman Quine foi um dos pensadores

mais influentes do século XX.

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Capítulo 01Introdução

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Chomsky tem uma abordagem dualista, na esteira de Descartes, ao postular que a linguagem é um sistema sintático recursivo que é pas-sível de ser apreendido por uma metodologia determinística: um pre-dicado de um lugar é sempre preenchido por um argumento para ser bem formado. Mas esse sistema, para Chomsky, é apenas um módulo da mente humana. A mente humana não pode como um todo ser tratada dessa perspectiva, em particular porque nós não somos determinados nem pela biologia nem pelo social. Perceba a diferença entre o funcio-namento de um sistema – pense, por exemplo, no funcionamento do coração ou do rim, que independe da sua vontade –, e as nossas decisões. A linguagem, enquanto sistema, é um órgão. Mas não é possível, nos diz Chomsky, descrever o uso da linguagem segundo leis naturais, porque esse uso é livre, imprevisível, dependente da nossa vontade. Nesse senti-do, a linguagem é cindida: ela é um sistema natural e um uso individual. Eis o dualismo chomskiano.

Desse ponto de vista, vale muito a pena ler a resenha que Chomsky faz do famoso livro de Skinner, Comportamento verbal, porque ele faz uma defesa brilhante da liberdade humana. Surpreendentemente, Chomsky se aproxima dos analistas do discurso, para quem a linguagem é um acontecimento. A linguagem enquanto uso é sim um acontecimen-to. Nessa famosa resenha, Chomsky argumenta que não somos autô-matos, porque somos livres para escolher. Não é possível fazermos uma ciência da nossa capacidade de decisão, precisamente porque o com-portamento humano não é sujeito a leis de causa e efeito como defende Skinner – nosso comportamento não é o mesmo do cachorro que saliva toda vez que a campainha soa.

A metodologia para estudarmos a natureza, que considera a ideia de causalidade como sua peça mais importante, é chamada de nomológico-dedutiva (nomos em grego quer dizer leis). Esse método entende que as explicações científicas são argumentos dedutivos – ver mais sobre dedu-ção adiante – com pelo menos uma lei natural em suas premissas, como vimos. Chomsky propõe que a linguística deve estudar o órgão mental da linguagem e considera o método nomológico-dedutivo como váli-do para explicar apenas o funcionamento do órgão da linguagem. Para Chomsky, qualquer coisa que não possa ser explicada por mecanismos de causa e efeito está fora da ciência, mas, como vimos, isso não significa

Retorne ao seu livro de Aquisição da linguagem e reveja como Skinner entende que aprendemos a falar: aprendemos, ele nos diz, por estímulo e res-posta. Nossa linguagem é, portanto, determinada pelo meio.

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que não seja importante; significa apenas que estamos fora da esfera da determinação causal. Os fenômenos de interação verbal são irreprodu-tíveis, são assistemáticos, não determinados, porque dependem da nos-sa vontade. A metodologia para estudar a interação verbal é, portanto, aquela preconizada pelas humanidades. É no uso que encontramos as ideologias, as lutas de classe, a política. Note que a posição de Chomsky é de uma distinção radical entre ciências naturais e humanidades. Mas nem todos na linguística aceitam essa posição de dualidade. Há aque-les que querem integrar esses aspectos, buscando mostrar, por exemplo, que nem mesmo os fenômenos físicos são determinísticos. Eles são pro-babilísticos. Essa é uma posição que encontramos na linguística cogni-tiva. Há também aqueles que querem negar o sistema-órgão e entendem que a linguagem é apenas “arena das lutas de classe”.

Essa tensão entre ser natural ou ser individual está bastante pre-sente na linguística contemporânea. Há pesquisadores que entendem que a linguística pertence às humanidades, como Possenti deixou claro no fragmento apresentado anteriormente; outros entendem que ela é ciência. Tanto é assim que essa é uma das questões que Xavier e Cortez (2003) incluíram nas suas conversas com linguistas: “A linguística é ci-ência?”. Obviamente, a pergunta só faz sentido porque há pelo menos uma controvérsia, uma discordância sobre se a linguística se enquadra ou não como um empreendimento científico. Compare a posição de Possenti apresentada anteriormente com a resposta de Carlos Vogt a Xavier e Cortez (2003, p. 197):

Ah, totalmente. Uma ciência altamente desenvolvida com um objeto

definido, com metodologias, com um aparato teórico altamente cons-

tituído, com níveis altamente sofisticados de experimentalismo, depen-

dendo da área. Então, não tenho a menor dúvida.

A resposta de Borges Neto (Xavier; Cortez, 2003, p. 45-46) contem-pla o fato de que nem todos os linguistas se veem como cientistas:

Eu pessoalmente acho que uma linguística como a feita no quadro da

gramática gerativa é ciência para um tipo de definição do que é ciência.

Outro tipo de linguística mais na linha de análise do discurso, por exem-

plo, não é ciência dado um tipo de definição de ciência que é adotado

nas ciências duras.

A linguística cognitiva tem sua fundação com a pu-

blicação de Metaphors we live by, de George Lakoff e Mark Johnson, na década

de 1980.

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Capítulo 01Introdução

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Além da controvérsia ciência ou humanidades, há, como já men-cionamos, ainda uma outra disputa entre os linguistas que acreditam que fazem ciência: há aqueles que acreditam que a linguística é uma ciência como a física, uma ciência dura – isto é, nomológica-dedutiva – e aqueles que acreditam que a linguística é ciência, mas diferentemen-te da física, é uma ciência probabilística, que lida com frequências de ocorrências, e não com leis causais determinísticas. Veja a resposta da professora Margarida Salomão para Xavier e Cortez (2003, p.189):

Depende de como você entende o que seja ciência. Se você for usar o

modelo da física, certamente a linguística não é ciência. Usando o mo-

delo da física e comparando a linguística com a antropologia, a linguís-

tica é mais ciência que a antropologia ou que os estudos da literatura.

Existem certamente áreas na linguística que buscam ser axiomatizadas,

que buscam expressar seus enunciados como teoremas, grandes gene-

ralizações ou princípios consistentes. Sob esse ângulo, eu poderia dizer

que sim, que a linguística é uma ciência. A linguística não é um saber

hermenêutico e, tal como eu a entendo e busco praticá-la, ela tem pre-

tensão de construir uma heurística, de construir os princípios operativos

para o entendimento humano, quando se usa semiose verbal, estando

aberta à testagem empírica e à crítica.

A mesma posição pode ser encontrada na resposta de José Luiz Fiorin (XAVIER; CORTEZ, 2003, p.74):

Bom, depende do conceito que a gente tem de ciência. Linguística não

é ciência no sentido da física. Mas, se nós pensarmos em duas caracte-

rísticas como sendo as características da ciência, que são o fato de que

a ciência tem o compromisso de explicar a realidade humana e tem um

compromisso com a realidade... Isso significa que quando eu estabeleço

hipóteses para explicar determinados fatos da realidade humana, esses

fatos precisam ser testados na realidade linguística. Quer dizer, eu não

posso fazer elucubrações que não encontrem amparo na realidade lin-

guística. Se eu considerar a ciência desse jeito, a linguística é ciência.

Como já apontamos, há aqueles que entendem que a linguística é não apenas uma ciência natural, mas que ela é como a física, ela é nomo-lógico-dedutiva, portanto, um sistema determinístico. Essa é a posição de Chomsky e não é a toa que o Novo manual de sintaxe, de Mioto et al. (2005), inicia esclarecendo não apenas que a linguística é uma ciência, mas comparando explicitamente o fazer da linguística ao fazer do físico.

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Filosofia da Linguística

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Assim, o cenário da linguística atual comporta diferentes posições: refletir a partir das humanidades ou a partir de uma metodologia cien-tífica são práticas distintas e, mesmo dentro da prática científica, há di-ferentes modos de se entender como procede a linguística: como uma ciência de um sistema determinístico ou como uma ciência de um sis-tema probabilístico. Nas próximas seções, procuraremos esclarecer em que essas práticas consistem.

A julgarmos pelos depoimentos que apresentamos, é possível iden-tificar duas linhas principais de pensamento na linguística. Neste livro, vamos denominar essas linhas de pensamento de paradigmas, utilizan-do, de maneira um tanto distorcida, a terminologia que vem da histó-ria da ciência através da reflexão que Thomas Kuhn fez sobre como as teorias científicas se desenvolvem historicamente, de 1962. Nesse livro, que vale muito a pena ler, Kuhn defende a ideia de que a física não foi se desenvolvendo paulatinamente através de somas de conhecimentos. Ao contrário, houve momentos de rupturas teóricas, as chamadas re-voluções científicas, que mudaram drasticamente a maneira como os cientistas viam o mundo, instaurando uma nova maneira de perceber o objeto. Um paradigma é um campo ou “mundo” conceitual, que re-presenta uma maneira de investigar uma série de fenômenos acoplada a uma visão de mundo e que constitui a chamada ciência normal, mo-mentos em que a comunidade científica está em consenso.

A ideia de paradigma, ao mesmo tempo em que tem certo apelo in-

tuitivo, é de difícil definição. No texto de Kuhn, essa palavra aparece

com vários significados distintos, mas a interpretação que a filoso-

fia da ciência mais ou menos fixou entende um paradigma como

um conjunto de práticas, conceitos, noções, métodos e sistema de

avaliação semelhantes. Assim sendo, os cientistas trabalham sob

um dado paradigma, pois é em função de um paradigma que uma

pesquisa é validada e avaliada e é o paradigma que dita como fazer

uma dada pesquisa, que fornece os métodos. Kuhn notou que os

paradigmas não se mantêm ao longo da história, mas são substitu-

ídos por outros; quando isso acontece, vislumbramos uma “revolu-

ção científica”, uma troca de paradigma.

O livro mais famoso de Kuhn é A Estrutura das re-voluções científicas

Capa do livro A Estrutura das revoluções científicas

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Capítulo 01Introdução

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O exemplo estudado por Kuhn foi a substituição do paradigma

newtoniano na física pelo paradigma einsteiniano ou da relativida-

de. Afinal de contas, por que ocorre uma revolução científica? Para

Kuhn, grosso modo, uma revolução científica ocorre quando um

dado paradigma não consegue mais explicar fatos novos; numa tal

situação, é necessário encontrar outro paradigma que explique os

fatos novos e todos os outros fatos anteriores. O paradigma newto-

niano foi substituído, entre outras coisas, porque não conseguia ex-

plicar as anomalias das órbitas planetárias e também a curvatura

da luz quando ela passa por um campo gravitacional muito forte.

A teoria da relatividade de Einstein explica não apenas esses fatos,

mas tudo o que as ideias de Newton explicavam antes, e assim, len-

tamente, os cientistas abandonaram o paradigma newtoniano e

migraram para o paradigma einsteiniano. Apenas para você notar

como há também uma importante mudança conceitual, no para-

digma newtoniano, a “gravidade” era entendida como uma força

que atraía os corpos; no paradigma einsteiniano, a “gravidade” não é

mais uma força, mas sim uma curvatura, uma deformação no espa-

ço-tempo. Difícil? Pode até ser, mas é também fascinante!

As rupturas não são imediatamente aceitas pela comunidade cien-tífica. Antes, há movimentos de resistência, tentativas de manutenção do paradigma anterior. Alguns autores consideram, por exemplo, que a publicação de Syntactic structures de Chomsky, em 1957, foi uma re-volução científica porque rompeu com o estruturalismo e fundou uma nova metodologia.

Dissemos que vamos utilizar a noção de paradigma de modo distor-

cido, porque, para Kuhn, era exatamente o fato de que há paradigmas

na ciência que a distingue de outras práticas de conhecimento como

as humanidades, por exemplo, em que não haveria esse consenso

para uma normalidade. Essa é, no entanto, uma postura controversa.

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Filosofia da Linguística

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Há aqueles que acreditam que mesmo nas ciências naturais não há

momentos de acordo total, de normalidade, e outros que entendem

que o conceito faz sentido nas humanidades. Houve, por exemplo, um

momento em que as humanidades eram estruturalistas; a década de

1960 talvez seja emblemática desse momento. Neste livro, vamos en-

tão entender que há dois paradigmas na linguística contemporânea,

duas visões normais: o humanista e o cientificista. Uma questão que

não iremos desenvolver diz respeito ao fato de esses paradigmas esta-

rem em disputa. Como procuramos mostrar, através da breve referência

à postura de Chomsky, talvez estejamos diante de dois objetos teóricos

distintos. Nessa perspectiva, não faz sentido falarmos em disputa, mas

talvez em complementaridade.

Kuhn deve muito de sua reflexão a Ludwig Fleck que, ao apresen-tar a história do conceito de sífilis, mostra que o fazer científico está imerso nas linhas de pensamento que constituem a prática social. Fle-ck distingue comunidades endocêntricas de comunidades exocêntricas. Um cientista, quando está formulando suas teorias, espelha também o seu momento histórico-social porque, ao mesmo tempo em que ele está conversando internamente com seus pares – a sua comunidade endo-cêntrica –, ele participa de outras formas de conhecimento, de outras interações – as comunidades exocêntricas – e que também influenciam sua maneira de pensar. Essa maneira de entender o cientista nos distan-cia da imagem do cientista pesquisando racionalmente, sem interferên-cias externas, do objetivismo acrítico. Não é, no entanto, nossa intenção abraçar uma postura relativista.

A discussão sobre objetivismo ou racionalismo e relativismo é por

demais espinhosa para que possamos levá-la adiante aqui. Ela de-

semboca na grande questão da epistemologia: é efetivamente pos-

sível conhecermos? Apenas para fins de esclarecimentos e de modo

bastante grosseiro, pontuamos que o racionalista acredita que é

possível sabermos sobre o mundo, que conhecemos algo objetivo

e objetivamente.

Sugerimos aqui a leitura de Ilari e Oliveira (1991) para uma revisão de como foi se desenvolven-do o conceito de sífilis ao longo da história. A des-coberta do agente pa-togênico foi em grande parte uma consequência das necessidades da Pri-meira Guerra Mundial, um fato externo à ciência.

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Capítulo 01Introdução

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Desse ponto de vista, entender que a Terra é o centro do Universo

está errado e hoje sabemos que esse não é o caso. A linguística sabe

que o conhecimento é possível, porque não há como ter certeza de

que de fato esse é o caso. O relativista entende, por isso, que há vá-

rias verdades e que não há como compará-las. Assim, a Terra ser o

centro do Universo é apenas um modo de pensar diferente do nos-

so, mas não há como avaliar qual está certo. Ambos são verdadeiros

para aqueles que vivem um ou o outro, por isso dizemos “relativis-

mo”: a verdade é relativa a quem a profere. No objetivismo, acredita-

se que há um ponto de vista que independe de quem está olhando.

Para o relativismo, há uma verdade do senso comum que diz que há

línguas melhores. Para o objetivismo, isso é falso, porque podemos

mostrar que esse não é o caso. Assim, é importante manter separa-

do o relativismo da postura que a linguística propõe para as línguas:

afirmar que todas as línguas são iguais não é uma posição relativis-

ta; ao contrário, é racionalista, porque ela mostra que o preconceito

linguístico está errado.

Um argumento forte contra o relativismo é que ele é contraditório ao afirmar que há uma verdade que não depende do olhar: a de que tudo é relativo. A leitura radical da noção de paradigma, mesmo em Kuhn, pode, é claro, levar-nos a posições extremamente relativistas, já que cada paradigma é uma totalidade significativa em si e não pode-mos compará-los. O relativismo entende não apenas que há maneiras diferentes de ver o mundo, mas que esses modos são incomensuráveis e, portanto, intraduzíveis. Por exemplo, a palavra ‘força’, na teoria aris-totélica de movimento, não tem o mesmo significado que essa palavra tem na teoria da relatividade e não há como traduzir enunciados de uma teoria na outra. Se não podemos traduzir, não podemos avaliar qual é a melhor teoria. Como veremos, em alguma medida, é esse de fato o caso, as diferentes práticas em que os linguistas se encontram não entendem ‘linguagem’ da mesma forma. Com esse cuidado, suponhamos, então, que seja possível distinguir dois paradigmas na linguística contemporâ-nea: o científico e o humanista.

O paradigma humanista, como sugere o professor Pedro de Souza, pode ser também denominado de paradigma subjetivista, porque sua reflexão se ancora na relação entre o sujeito enunciador, as condições de produção do discurso e as ideolo-gias sociais que se refle-tem no sujeito (Informa-ção oral - conversa com os autores, 2011).

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Filosofia da Linguística

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O paradigma científico pode, ainda que muito grosseiramente, ser subdividido em duas posições: a lógico-formal e a funcionalista. Essa distinção não pode, no entanto, ser equiparada à diferença entre aque-les que acreditam que a investigação linguística é nomológico-dedutiva, como defende Chomsky e seus seguidores, e aqueles que adotam uma visão probabilística da linguagem. Parece ser possível afirmar que todo funcionalista entende a linguagem probabilisticamente, ao passo que é possível um formalista com uma visão probabilística. Ou seja, a posição lógico-formal comporta o gerativismo, mas não se confunde com ele. Veremos que o que diferencia formalistas de funcionalistas é antes o método de análise, mas ambos são cientificistas. Vamos, então, escla-recer em que consiste esse fazer científico. Em seguida, apresentaremos brevemente algumas características do fazer humanista-subjetivista, mas já adiantamos que, por deformação profissional, este livro pende para o paradigma científico e o leitor interessado no paradigma subjeti-vista deve recorrer a outras leituras.

Sugerimos a leitura de livros que enfoquem a

Análise do Discurso, como Mazière (2005), Fernan-

des (2008), entre muitos outros.

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Capítulo 02O que é ciência?

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2 O que é ciência?Como você certamente já deve ter percebido, o termo ciência tem

diferentes significações e vamos aqui apresentar sua conceitualização mais técnica, desprovida das várias facetas com que o termo é utiliza-do nas nossas interações diárias. É muito comum lermos ou ouvirmos propagandas em que aparecem as expressões “cientificamente testa-do” ou “cientificamente comprovado”; nesse tipo de discurso, a ciência entra como um lastro para a qualidade do produto e, portanto, como um modo de atingir o consumidor. Essa não é uma atitude surpreen-dente, dado que a nossa sociedade depende, sem sombra de dúvidas, fundamentalmente da ciência. Aviões, computadores, foguetes, vacinas, transplantes são possíveis por causa da ciência. O século XX conheceu um desenvolvimento explosivo da ciência e da tecnologia que, de certa forma, promoveu uma vulgarização da ciência. Há um verdadeiro co-mércio com a ideia de ciência que certamente é nefasto.

É preciso também ter claro que a tecnologia não é a ciência, embo-ra ela também exija pesquisa, segundo padrões científicos. A tecnologia pode ser desenvolvida em laboratórios, indústrias, e pode, é claro, ter um impacto sobre a ciência. Galileu desenvolveu o telescópio – que não é uma descoberta dele –, e essa nova tecnologia de observação permitiu que ele entendesse melhor o movimento dos planetas e comprovasse que Copérnico estava correto: é ao redor do Sol que a Terra gira. A com-provação de Galileu, publicada em 1632, Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo, irritou profundamente os inquisidores que busca-vam manter a hegemonia do discurso religioso, que pregava que a Terra era o centro do universo e que tudo girava em torno dela. Galileu foi considerado um herege pela Igreja e não foi queimado em praça pública porque escreveu um retratamento público lacônico afirmando que ele estava errado. A Igreja reviu sua decisão sobre a condenação de Galileu séculos depois e finalmente o absolveu em 1992, mais de 350 anos de-pois... antes tarde do que nunca!

Há assim relações estreitas entre tecnologia, sociedade e ciência,

mas elas não devem ser confundidas. A tecnologia, como já disse

Capa de um dos primeiros exem-plares do livro Diálogo sobre os dois princi-

pais sistemas do mundo, de Galileu.

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Filosofia da Linguística

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Aristóteles, distingue-se da ciência por sua natureza. O objeto da

ciência é “o que necessariamente é” (GRANGER, 1994, p. 24), pois

ela visa à descoberta das leis da natureza, sem qualquer aplica-

ção prática. Trata-se de conhecer a natureza por conhecer a na-

tureza. A técnica, por sua vez, visa o contingente, a produção de

meios de atuação sobre a natureza: “a geração de uma obra e [o]

conhecimento dos meios para criar coisas que poderiam ser ou

não ser e cujo princípio de existência reside no criador e não na

coisa criada” (GRANGER, 1994, p. 24). A técnica visa prioritariamen-

te o sucesso enquanto a ciência tem por objetivo a explicação. A

técnica é a arte do engenheiro, nos diz Granger, que busca criar

objetos, máquinas. “A ciência visa a objetos para descrever e ex-

plicar, não diretamente para agir” (GRANGER, 1994, p. 46). A ação

cabe ao técnico, ao engenheiro; ao cientista cabe a especulação.

Mas o que é então o fazer científico? O que caracteriza a ciência? Essa não é uma pergunta trivial e vamos aqui apenas esboçar uma res-posta. Se estivéssemos no início do século XX, com o positivismo lógi-co reinando soberano, seria mais simples respondermos: a ciência seria construída apenas a partir de fatos empíricos, observacionais, sem inter-ferências de outros domínios. Sabemos hoje que essa é uma visão ingê-nua. O cientista não é alguém que está fora do seu tempo, da sociedade, da sua psique. Sabemos também que a ciência não é sempre uma evolu-ção racional das ideias, que se sucedem quanto melhor elas descreverem a natureza. Demoramos muito tempo para aceitar que a Terra não é o centro do universo a despeito das inúmeras evidências empíricas.

Um caso famoso e trágico é do médico húngaro Ignaz Semmelweis, que descobriu que se ele lavasse as mãos e usasse roupas limpas quando fosse fazer partos, havia uma diminuição drástica tanto do número de parturientes que morriam quanto da mortalidade de recém-nascidos. Na época – estamos falando de meados do século XIX! –, o bom médico era aquele que tinha seu avental mais sujo. É claro que não se sabia ainda que havia micro-organismos, como germes, vírus e bactérias. Em 1848, Semmelweis não perdia nenhuma mulher de febre pós-parto e o índice de mortalidade dos recém-nascidos beirava o zero, tudo porque ele la-

O positivismo lógico foi um movimento na pas-sagem do século XIX para o século XX que entendia

que seria possível um conhecimento científico

totalmente empírico, com base apenas em sentenças

retiradas da observação, sem qualquer interferên-

cia do observador.

Moeda em homenagem a Semmelweis

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Capítulo 02O que é ciência?

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vava suas mãos antes de lidar com os pacientes. Seu sucesso não foi, no entanto, capaz de alterar a prática médica. Se fôssemos apenas movidos pela razão e pelas evidências empíricas, a prática deveria ter sido ime-diatamente adotada por todos os médicos. Mas não foi isso o que ocor-reu. Antes, devido às suas ideias políticas, o livro de Semmelweiss, sobre o método para evitar a morte das parturientes e dos recém-nascidos, foi ignorado pela comunidade médica. Como dizem Broad e Wade (1983, p. 137, tradução nossa),

Por que os médicos e pesquisadores ignoraram a teoria de Semmelweis?

Mesmo que eles discordassem de sua teoria, por que eles ignoraram a

sua estatística indisputável? Talvez porque eles acharam difícil lidar com as

consequências da ideia de que cada um deles, porque não lavavam suas

mãos, tinham, sem intenção, enviado inúmeras pacientes para a morte.

Como já dissemos, Kuhn, ao estudar como se sucederam os modelos de

compreensão da gravidade, mostra que há momentos de revoluções

científicas em que mudamos os “paradigmas”, os esquemas já cristali-

zados a partir dos quais pesquisamos. A passagem de um paradigma a

outro, nos diz Kuhn, depende de uma geração inteira morrer, porque é

preciso mudar uma maneira de ver, uma visão de mundo, e não é fácil

abrirmos mão das nossas crenças. É por isso que dissemos que a ideia

de que a ciência se faz apenas de observações sem interferências das

nossas maneiras de ver é ingênua. Não há ciência fora do mundo, sem

o observador, sem a sua subjetividade. Mas daí não se segue que não

há critérios objetivos que guiam nossa busca pelo conhecimento. O

caminho é tortuoso, pode demorar gerações, mas aprendemos sobre a

natureza. Aprendemos tanto que hoje em dia há o risco de exterminá-

la, e somente com mais pesquisa é possível mantermos nossa qualida-

de de vida e preservar a natureza.

O conhecimento científico produz uma visão da natureza que se caracteriza por ser uma representação abstrata dos fenômenos, gerada através de um método rigoroso de análise, como já nos ensinou René Descartes, no século XVII, em seu famoso Discurso sobre o método. Aquele foi um momento de grande florescimento da ciência que foi pau-latinamente substituindo a visão teológica do universo – deslocando o

Ignaz Semmelweis

Você encontra a primeira parte do livro, traduzida para a língua portuguesa, em: < http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/discurso.pdf>, que é disponibilizada pelos Membros do grupo de discussão Acrópolis: <http://br.groups.yahoo.com/group/acropolis/>

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Filosofia da Linguística

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homem do centro da criação divina e a Terra do centro do universo – por um entendimento da natureza cuja base não é a fé, mas a observação atenta da natureza e sua explicação através da razão. O método científico parte, então, da observação de um fenômeno. Já salientamos que essa ob-servação é impregnada pela visão de mundo do observador. Além disso, obviamente nem todo fenômeno desperta o interesse do cientista. Em geral, cientistas se interessam por fenômenos que são inesperados para a teoria, que contradizem alguma explicação já disponível. O cientista pressente que o que ele está observando é um problema para a teoria. Se houve um momento em que os fenômenos a serem explicados eram observáveis empiricamente – a maçã caindo da árvore –, hoje em dia, na física, que é o modelo de ciência, o fenômeno é cada vez menos percep-tível, por um lado, porque ele é muito dependente da teoria; e, por ou-tro, porque os procedimentos de observação são altamente sofisticados. Precisamos de grandes aceleradores de partícula para avaliar as teorias contemporâneas da física. Nesse sentido, o objeto de observação é de-pendente da teoria.

Por exemplo, na linguística, houve um momento em que o fenô-meno a ser compreendido eram as sentenças complexas, como exem-plificado abaixo.

João saiu e morreu.1)

A teoria postulava que havia, na interpretação dessa sentença, um apagamento do elemento ‘João’ na segunda sentença. Assim, sua forma profunda era:

João saiu e João morreu.2)

Nessa perspectiva, um fato curioso foi levantado por Barbara Partee.A autora mostra que, contra as predições, as sentenças em (3) e (4) não têm o mesmo sentido.

Alguém saiu e morreu.3)

Alguém saiu e alguém morreu.4)

Esse fato novo levou a uma mudança na teoria. Veja que esse fato só é interessante a partir da teoria que se estava construindo para ex-plicar a coordenação.

Barbara Partee é consi-derada a fundadora da Semântica das Línguas

Naturais.

Acelerador de partícula

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Capítulo 02O que é ciência?

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Se a investigação científica parte de um fenômeno curioso para a te-oria, seu objetivo não é uma afirmação singular sobre aquele fenômeno, mas, como dissemos, a construção de uma representação abstrata que tenha validade universal. Com relação ao fenômeno curioso produzido por ‘alguém’ não basta simplesmente dizer que isso ocorre por causa do ‘alguém’. Essa é uma explicação para o fenômeno em particular. Preci-samos de uma explicação que dê conta de todas as sentenças acima e de inúmeras outras. Assim, a ciência busca uma afirmação universal, que vale não apenas para aquele fato ocorrido, mas para qualquer fato que se comporte como o fato observado. Mas, se a ciência parte da observação do singular, como é que alcançamos uma afirmação geral?

Vamos supor que nós observamos que, ao colocarmos um canudo

num copo com água, o canudo parece estar quebrado, parece que

ele não é reto, mas distorcido. Essa é uma observação particular, so-

bre um canudo em particular, em um determinado copo, num certo

momento e lugar. O cientista quer explicar por que isso ocorre, mas

não apenas com esse canudo, com qualquer canudo, em qualquer

vasilha, independentemente do lugar e do tempo. Ele busca uma

explicação universal. Se pensarmos na linguística, partimos do fato

de que alguém produz a sequência significativa de sons ‘Alguém

saiu e morreu’. Não se trata de apenas explicar o significado que essa

sequência tem, mas de explicar a estrutura da coordenação ‘e’ de

tal maneira que tenhamos o mesmo resultado quando temos ou-

tra sequência, por exemplo, ‘João saiu e morreu’ e ‘Todo mundo saiu

e morreu’, e, ao mesmo tempo, essa estrutura deve impedir que a

interpretação seja como em (2) acima para não termos resultados

incorretos: a expectativa de que (3) significa (4). Há três métodos

principais para chegarmos às leis universais ou à explicação do fenô-

meno: a formação de uma hipótese indutivamente, dedutivamente

ou através da abdução. Vejamos a seguir um pouco sobre os dois

primeiros métodos; falaremos sobre abdução mais adiante.

A resposta indutiva ampara-se numa generalização feita a partir de uma lista finita de proposições de observações singulares para uma lei geral. O número de observações deve ser grande para que a lei tenha

GeneralizaçãoAbbagnano (2007, p. 478) define generali-zação como “Operação de abstração que dá ensejo a um termo ou uma proposição geral”; já Houaiss (2009, não paginado) pontua que se trata de “[...] ope-ração intelectual que reúne em uma classe geral, termo ou propo-sição, um conjunto de seres ou fenômenos semelhantes”.

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Filosofia da Linguística

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alcance universal. Além disso, as observações devem ser repetidas em diferentes situações a fim de evitar interferências de outros fatores. Essa é uma maneira de racionar que ocorre com muita frequência no nosso dia a dia e é responsável, muitas vezes, por raciocínios falaciosos. Não é incomum ouvirmos generalizações apressadas que simplesmente re-fletem preconceitos. É uma generalização apressada e equivocada, por exemplo, alguém que se confronta com apenas dois casos de assalto em que o assaltante mora na favela concluir que favelados são assaltantes.

O método indutivo parte de um grande número de observações controladas de um fenômeno qualquer tendo em vista uma ampla va-riedade de condições. Se todas essas observações do fenômeno pos- suírem sem exceção – ou ao menos para um grande número delas – uma propriedade qualquer, então é possível concluir que esse fenôme-no, em todas as suas ocorrências, tem aquela propriedade. Esse tipo de abordagem ocorre na sociolinguística, que investiga um grande número de ocorrências de fenômenos linguísticos em bancos de dados. Supondo que o pesquisador queira entender a coordenação, ele levantaria todas as ocorrências de coordenação. O resultado seria uma lista de possibili-dades de coordenação, como exemplificada a seguir.

5. a) João e Maria saíram.

b) João dançou e cantou.

c) João saiu e Maria dançou.

d) João é alegre e triste.

e) Maria falou rápido e pausadamente.

Ele poderia ainda ter um resultado quantitativo de cada um desses tipos de ocorrência. Por exemplo, a maior parte das coordenações é como (5c). Ele poderia também chegar à conclusão de que coordenamos qual-quer tipo de estrutura: em (5a), coordenamos nomes; em (5b), verbos; em (5c), sentenças; em (5d), adjetivos; e em (5e), advérbios. Mas, por mais minucioso que seja esse levantamento, o máximo que ele irá permi-tir são generalizações como as que exemplificamos. Fundamentalmente, a indução não permite explicar como interpretamos a coordenação.

Raciocínios falaciosos são aqueles que pare-cem estar corretos, mas são ideias equivocadas, crenças falsas. Trata-se de um raciocínio incor-reto. Uma falácia muito conhecida é a falácia da generalização apressada. Por exemplo, vemos um pato branco, em seguida vemos outro pato bran-co, daí generalizamos que patos são brancos, o que evidentemente é fal-so, já que há patos pretos.

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Capítulo 02O que é ciência?

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Podemos, no entanto, prever – uma das propriedades essenciais da ciência, porque ela permite a validação de uma teoria. A partir de (5), po-demos prever que a coordenação ocorre com qualquer tipo de expressão. A partir da lei universal, o cientista prevê: se ocorrer o fenômeno A, A terá a propriedade B. Por exemplo, a observação de vários metais aquecidos permite concluirmos que os metais se expandem quando aquecidos. No caso do nosso exemplo, o pesquisador pode prever que, sempre que esti-vermos diante de uma estrutura como (5b), a interpretação será de que os eventos denotados pelos verbos são realizados pelo mesmo agente.

Como é possível fazer uma previsão a partir de uma generalização?

Imagine que um cientista qualquer, Arquimedes, percebeu que,

ao aquecer uma barra de cobre em seu laboratório, ela se expan-

de, aumenta de tamanho. Curioso com essa propriedade do cobre

dilatar-se quando aquecido, Arquimedes decide investigar se outras

matérias apresentam a mesma característica. Assim, nosso cientista

aquece um pedaço de madeira e não comprova dilatação; aquece

um pedaço de plástico, e nada; aquece um pedaço de ferro e nota di-

latação. Bastante astuto, Arquimedes se pergunta se dilatar-se não é

uma propriedade dos metais quando aquecidos, ou seja, será que to-

dos os metais se dilatam, expandem-se quando aquecidos e só eles?

Para responder essa pergunta, ele aquece inúmeros metais e com-

prova sua conclusão através de uma generalização: porque aqueceu

vários metais e eles se dilataram, Arquimedes conclui que os metais

se dilatam ao serem aquecidos. Essa conclusão é muito interessante.

Arquimedes então se lembra de que perto de sua casa está sendo

construída uma ferrovia. Ora, (i) os trilhos da ferrovia são de metal,

(ii) em sua região geográfica, faz muito calor, logo (iii) os trilhos vão

se dilatar; se não houver espaço suficiente entre eles para acomodar

a dilatação, (iv) ficarão retorcidos e podem provocar acidentes.

Essa generalização nos permite prever que trilhos contínuos numa ferrovia não interrompidos por pequenos espaços irão se expandir e os trilhos irão se distorcer. Caso isso não ocorra, então ou o cientista encontra uma explicação para o fato de que sua lei universal falhou

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Filosofia da Linguística

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ou ele abandona sua teoria, que foi, então, refutada pelo dado. Essa é uma descrição grosseira, porque, como nos mostrou Kuhn, é muito difícil os cientistas abandonarem suas teorias apenas porque eles encon-traram algum dado que não se comportou com o que a teoria previa. O expediente mais comum nesses ca-sos é o cientista tentar adequar sua teoria ao dado novo. A refutação de uma teoria exige muito mais do que apenas um dado incompatível com ela. É preciso que haja um acúmulo de previsões incorretas e uma nova maneira de descrever os fenômenos.

Uma característica fundamental da ciência é a ve-rificação e refutação das hipóteses, as generalizações de caráter universal. Não temos uma teoria científica se não for possível falseá-la, como nos mostrou o filó-sofo austríaco Karl Popper. Esse critério de validação de uma teoria impõe um controle de domínio públi-co. É preciso, por exemplo, replicar os experimentos para verificar se os resultados conferem e é preciso, por isso, que os cientistas utilizem uma linguagem ou metalinguagem clara, não ambígua. Esse é na ver-dade um preceito ético: o cientista precisa explicitar claramente sua teoria para que ela possa ser replica-da para ser refutada ou aceita pela comunidade. É por isso que a ciência adota uma linguagem formal como metalinguagem – lógico-matemática – na for-mulação da sua teoria. Uma linguagem arregimenta-da, controlada, permite que as generalizações sejam apresentadas sem ambiguidade, sem vagueza, o mais explicitamente possível. Uma teoria científica deve ser exposta passo a passo, utilizando a linguagem ló-gica ou matemática, a fim de que sua verificação seja

possível. Como já dissemos, não é porque encontramos um fato que abrimos mão da teoria, mas, para ser um modelo científico, é preciso que as hipóteses sejam passíveis de serem validadas e explicitadas numa linguagem que permita que qualquer um da área consiga reproduzir

Ferrovia Madeira-Mamoré, em Porto Velho, que mostra os espaços entre os trilhos de trem para acomodar dilatação. Foto: Pablo Arantes.

Trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Foto Pablo Arantes.

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Capítulo 02O que é ciência?

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os experimentos, avaliar as hipóteses. O controle da ciência é público e explicitar seus métodos e explicações é obrigatório.

Karl Popper (1902-1994) nas-

ceu em Viena e morreu em

Londres e foi certamente um

dos filósofos mais importan-

tes e influentes do século XX.

Escreveu vários textos impor-

tantes em epistemologia e

política, entre outros temas.

Com relação à filosofia da ci-

ência, Popper é tomado como

o pai do falsificacionismo,

doutrina segundo a qual uma

hipótese só é científica se puder ser falseada. O que isso quer di-

zer? Popper considera que nem todos os enunciados de uma lín-

gua podem ser considerados científicos e procurou um critério para

delimitar aqueles que são científicos daqueles que não o são, e o

critério oferecido por ele é justamente o falsificacionismo. Tomemos

os seguintes enunciados:

a) Os metais se dilatam quando são aquecidos.

b) Fadas são invisíveis, inaudíveis e imperceptíveis.

c) No final, tudo termina bem, senão é porque ainda não

é o fim.

O enunciado (a) é um enunciado “falseável”, ou seja, é possível mos-

trar que (a) está errado, que afirma algo errado sobre o mundo: bas-

ta encontrarmos um metal que não se dilata quando aquecido. Não

interessa aqui sabermos se (a) é realmente verdadeira ou falsa, mas

interessa sabermos que pode ser falsa.

Por sua vez, o enunciado (b) parece não poder ser falseável; afinal,

não vemos, ouvimos ou percebemos fadas, então, como tornar (b)

falso? O mesmo vale para (c): como tornar um enunciado como (c)

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Filosofia da Linguística

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falso? Se uma coisa está ruim, basta dizer que ela ainda não ter-

minou – e isso comprova (c). Se uma coisa está boa, é porque ela

terminou (ou terminará bem, e, se não terminar bem, é porque na

verdade ainda não terminou) – e isso também comprova (c). Logo,

pelo critério de Popper, apenas o enunciado em (a) é científico, (b) e

(c) não são enunciados científicos, justamente porque é impossível

tornar (b) ou (c) falsos.

Como dissemos, a indução não nos dá imediatamente uma expli-cação para a generalização encontrada. É, pois, preciso ir além da gene-ralização. É preciso entender porque os metais se dilatam com o calor ou porque interpretamos sentenças como (5b) do modo como fazemos. E, para termos uma explicação, precisamos de raciocínios dedutivos. A lógica é a disciplina que estuda os raciocínios dedutivos, os raciocínios necessariamente válidos. Aristóteles foi certamente o pai da dedução na medida em que demonstrou haver raciocínios cuja validade depende apenas da forma do argumento. Seu exemplo mais famoso é:

6. a) Todos os homens são mortais.

b) João é homem.

c) João é mortal.

As sentenças em (6a) e (6b) são chamadas de premissas. As pre-missas são proposições que são consideradas verdadeiras, quer porque sabemos que elas o são, como é o caso de (6a) e (6b), quer porque temos motivos para crer que elas o são. Supondo que as premissas são verda-deiras, somos imediatamente levados a concluir (6c). A dedução é um raciocínio logicamente válido.

Note que, na dedução, o que importa é a forma do argumento: em (6a), temos que o conjunto dos homens está contido no conjunto dos mortais; (6b) nos diz que João é um elemento do conjunto dos homens; logo, (6c) se segue: João tem que ser um elemento do conjunto dos mortais, já que o conjunto dos homens está contido nele. Veja que, se modificarmos essa forma, o raciocínio não é mais válido (o raciocínio a seguir é falacioso):

Retorne ao seu livro de Se-mântica e reveja o capítu-lo sobre quantificadores.

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Capítulo 02O que é ciência?

35

7. a) Muitos livros de linguística são chatos.

b) Este livro é um livro de linguística.

c) Este livro é chato.

A conclusão em (7c) não se segue das premissas em (7a) e (7b). Cuidado, porque é claro que pode haver uma situação em que (7a) e (7b) são verdadeiras e (7c) também é. Mas essa é uma situação contingente e não necessária. Deduções, lembre-se, são necessariamente válidas, isto é, sempre ou em todas as situações em que as premissas são verdadeiras, a conclusão também é. Logo, basta encontrarmos uma situação em que (7c) é falsa para mostrarmos que o raciocínio não se segue. Veja que do fato de que muitos livros de linguística são chatos e de que este livro é de linguística não se segue que este livro seja chato – ele pode ser bem legal, né? A dedução permite construirmos as leis que explicam a natureza.

Como poderíamos explicar os fenômenos descritos de (1) a (4)? Mostra-

mos que não é possível explicar esses fatos entendendo que houve um

apagamento da segunda ocorrência do sujeito, porque daí geramos o

resultado incorreto de que (3) significa (4). Essa não é uma explicação

muito simples. Uma maneira de entender o que ocorre é supor que

temos, na estrutura semântica, na forma lógica, variáveis, como em (8a),

que serão ou substituídas pelos nomes próprios, (8b), ou presas pelo

quantificador (8c):

8. a) [x saiu e x morreu].

b) [x saiu e x morreu] (João) = João saiu e João morreu.

c) Existe pelo menos um x tal que [x saiu e x morreu].

Esse breve percurso permite fazermos um balanço das proprieda-des definidoras da prática científica. A prática científica tem por obje-tivo a explicação de fenômenos teoricamente relevantes (entendidos como conjuntos de fatos – podendo, é claro, ser um conjunto unitário), a partir da construção de hipóteses indutivas ou dedutivas sobre esses fenômenos, que os explicam. Busca-se construir um modelo abstrato

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Filosofia da Linguística

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para explicar esses fenômenos e esse modelo é apresentado utilizando uma linguagem lógico-matemática porque ele deve ter não apenas po-der de predição, mas capacidade de refutação. Ele deve ser passível de ser publicamente verificado. Segundo a definição de ciência com a qual estamos lidando nesta seção, modelos que não permitem a refutação não são científicos.

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Capítulo 03A reflexão humanista

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3 A reflexão humanistaDissemos anteriormente que nem todos os linguistas concordam

que estão fazendo ciência; esse parece ser o caso da Análise de Dis-curso entre outros. Dissemos também que nem todo conhecimento é científico; provavelmente sabemos mais sobre nossas vivências emo-cionais lendo literatura e sobre vários dos nossos problemas pessoais através da psicanálise, e nenhuma das duas parece se caracterizar como conhecimento científico. A análise do discurso entende que sua prática é aquela das humanidades. Mas o que exatamente caracteriza as hu-manidades? Talvez a sua principal característica seja sua heterogenei-dade de métodos: não há um conjunto de procedimentos ordenados, consensualmente aceitos pela comunidade como vimos ser o caso na reflexão científica. É, aliás, por isso que Kuhn afirma que não há para-digmas nas ciências humanas. Mas vimos também que alguns autores discordam dessa colocação, mostrando que há momentos de consenso nas humanidades. Durante um período, a análise marxista da história foi dominante. Independentemente de haver ou não paradigmas nas humanidades, nesse tipo de reflexão, não há construção de um modelo abstrato que visa explicar universalmente os fenômenos de interesse, não há generalização nem previsão, tampouco parece haver refutação ou experimentos cruciais. Isso ocorre porque, nesse modo de refle-xão, interessa a particularidade, o caso irreprodutível, a singularidade. Como bem explica o filósofo Giles-Gaston Granger (1994, p. 86): “É por isso que o objeto histórico é sempre, de alguma maneira, um in-divíduo, ou seja, tende a representar uma realidade singular e natural-mente determinada, num contexto único de espaço e tempo”.

É exatamente por essa razão que, na análise do discurso, a subjetivi-dade torna-se o foco da sua reflexão: o sujeito da enunciação única e ir-reprodutível. Se estamos lidando com o particular, estamos lidando com o imprevisível, com aquilo que nem mesmo as teorias de probabilidade podem explicar. O tipo de fenômeno que interessa a vertente humanis-ta não pode ser explicado através de cadeias causais, como aquelas que aplicamos aos objetos naturais; esses fenômenos precisam de uma expli-cação de outra ordem, que leve em conta ponderações sobre a história, a ideologia, a psique do sujeito entre outros fatores. Como dissemos, dado

Análise do Discursoé “[...] uma disciplina de entremeio (Orlandi, 1996) que se estrutu-ra no espaço que há entre a lingüística e as ciências das forma-ções sociais. Trabalha com as relações de contradição que se estabelecem entre essas disciplinas, caracterizando-se não pelo aproveitamento de seus conceitos, mas por repensá-los, questionando, na lin-güística, a negação da historicidade inscrita na linguagem e, nas ciências das forma-ções sociais, a noção de transparência da linguagem sobre a qual se assentam as teorias produzidas nestas áreas” (FERREIRA, 2001, não paginado).

RefutaçãoHouaiss (2009, não paginado) define refu-tação como “[...] parte do discurso que refuta argumentos contrá-rios”.

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Filosofia da Linguística

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que cada um dos fenômenos aqui considerados é único em sua história e em suas particularidades, não encontraremos regularidades e, portanto, não será possível arquitetar teorias que sejam preditivas, que façam pre-visões sobre o futuro. Assim sendo, nas humanidades, é a interpretação do caso particular que tem valor, e não há como refutá-la, mas apenas propor interpretações novas e talvez mais abrangentes e reveladoras. É bom deixar claro, como já fizemos em outros momentos, que isso não é nenhum demérito para nenhuma investigação – trata-se apenas do re-conhecimento de particulares de um dado tipo de conhecimento.

Como já dissemos, embora Kuhn entendesse que a noção de pa-radigma não se aplicava às humanidades, porque elas não conhecem períodos de normalidade, em que todos os cientistas estão de acordo sobre a sua prática, esse parece ser um ponto discutível, em particular se lembrarmos a enorme influência do estruturalismo a partir da metade do século XX. Há assim aqueles que acreditam que nas humanidades há períodos de estabilidades de interpretação, em que uma maneira de interpretar se torna normalidade.

Kuhn mostra que passamos nas ciências de um paradigma a outro quando há um acúmulo de evidências negativas, de refutações do para-digma e concomitantemente uma maior amplitude explicativa do novo paradigma. Refletindo sobre essa questão nas humanidades, o antropó-logo Marshall Sahlins (2004) tem uma interpretação bastante original de como se dá o estabelecimento e a refutação de paradigmas nas ciên-cias, contida num aforismo que reproduzimos a seguir:

Thomas Kuhn e outros perguntaram-se se existiriam, nas ciências sociais,

paradigmas e mudanças de paradigma como nas ciências naturais. Nin-

guém chegou a conclusão alguma, pois alguns sustentam que tampou-

co as ciências naturais têm essas coisas, enquanto outros afirmam que

nas ciências sociais não se consegue distinguir um paradigma de uma

moda. Ainda assim, considerando-se as eras sucessivas de explicação

funcional das formas culturais – primeiro, por seus supostos efeitos na

promoção da solidariedade social; depois, por sua utilidade econômica;

e, ultimamente, como modos do poder hegemônico – algo como um

movimento kuhniano parece afinal existir nas ciências sociais. Mas sub-

siste pelo menos um contraste importante com as ciências naturais.

Nas ciências sociais, a pressão para a transição um regime teórico a ou-

tro – digamos, dos benefícios econômicos aos efeitos de poder – não

O estruturalismo tem início na linguística com Saussure, mas irá ganhar força de paradigma a partir da publicação, em 1949, de As estruturas elementares de parentes-co, do antropólogo fran-cês Claude Lévi-Strauss.

Capa do livro Tristes Trópicos.

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Capítulo 03A reflexão humanista

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aparenta derivar do acúmulo de anomalias no paradigma evanescente,

como é o caso nas ciências naturais. Os paradigmas são superados não

porque explicam cada vez menos, mas porque explicam cada vez mais –

até que, subitamente, estão explicando praticamente tudo. Há um efei-

to inflacionário nos paradigmas das ciências sociais, que os desvaloriza

rapidamente. Veja-se o modo como o “poder” explica qualquer coisa, do

pronome da segunda pessoa vietnamita até a arquitetura improvisada

dos trabalhadores brasileiros, o cristianismo à africana ou o sumô japo-

nês. Mas então, se o paradigma se torna cada vez menos atraente, não

é realmente por razões lógicas ou metodológicas padrão. Não é porque,

ao explicar tudo, o poder não explica nada, ou porque diferenças es-

tão sendo atribuídas a similaridades, ou porque conteúdos estão sendo

dissolvidos em seus (presumidos) efeitos. É porque tudo acaba dando

na mesma: tudo é poder. Os paradigmas nas ciências sociais mudam

porque, como sua capacidade de persuasão é, na verdade, mais política

que empírica, eles se transformam em lugares comuns universais. As

pessoas se cansam. Elas ficam entediadas.

Na verdade, o poder é um desses paradigmas já gastos. Téééééédio!!

(SAHLINS, 2004, p. 95-96)

É verdade que a ideia de Sahlins é exposta em tom de brincadeira, mas ela contém um insight muito bom: como nas humanidades a ideia de paradigma se traduz num tipo de interpretação específica para os fenô-menos em foco, um paradigma se esgota não porque ele não pode ofere-cer interpretações, mas porque as interpretações não são mais originais, não iluminam mais os fenômenos de interesse e é por isso que há troca de paradigma. Se isso estiver correto, as dinâmicas da ciência e das humani-dades funcionam diferentemente, mas guardam certas semelhanças.

Em outras palavras, se não é possível refutar as interpretações, as humanidades precisam de outro critério para validar suas explicações e esse critério parece ser a “discutibilidade”, sua capacidade de engen-drar interpretações. Um paradigma que não suscita mais discussões, que não é mais crítico e criativo, entediante, portanto, é um paradigma que deve ser abandonado.

Esperamos ter mostrado que há diferentes maneiras de abordar o ob-jeto linguagem. Os objetivos, as metodologias em cada um dos casos não são os mesmos. Pode ser que essa duplicidade de abordagens na linguís-tica mostre que estamos ainda num período pré-científico, que ainda não

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Filosofia da Linguística

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temos um paradigma de análise ou pode bem ser que Saussure estivesse coberto de razão ao afirmar que a linguagem é um objeto heteróclito, é possível que a linguagem seja ao mesmo tempo uma estrutura passível de ser descrita a partir de uma metodologia científica, e irreprodutível enquanto manifestação do subjetivo. Nas próximas unidades, vamos pro-curar entender melhor esses dois paradigmas linguísticos.

Leia mais!

CHALMERS, Alan F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.

O texto de Chalmers é bastante acessível e carregado de exemplos, situa-ções histórias e hipotéticas que servem de ilustração para as principais po-sições filosófica quanto à ciência e seu desenvolvimento. Há ótimas explica-ções sobre indução, dedução, falsificacionismo, as ideias de Kuhn e demais marcos importantes no desenvolvimento da filosofia da ciência.

DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Introdução à Filosofia da Ciência. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998.

Assim como o livro de Chalmers, o livro de Dutra é de leitura bastante agra-dável e aborda os temas mais importantes da filosofia e teoria da ciência. Dutra aborda questões como “a ciência avança?”, “podemos confiar no co-nhecimento científico?”, “o que diferencia o conhecimento científico de ou-tros tipos de conhecimento ?”, como você deve ter notado é livro que trata de temas muito instigantes.

GRANGER, Giles Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo: EdU-NESP, 1994.

O livro de Granger é um pouco mais técnico que os acima, mas não por isso menos interessante. O autor está preocupado com questões sobre as dife-rentes ciências – exatas e humanas – e suas inter-relações. Granger também olha cuidadosamente para a relação entre ciência e tecnologia, algo bastan-te presente e às vezes preocupante em nossa época, procurando separá-las.

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Unidade BComo fazer ciência da linguagem?

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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4 Como fazer ciência da linguagem?

No capítulo anterior, vimos que o cientista formula hipóteses com relação aos fenômenos (conjunto de fatos) que ele quer investigar por-que esses fenômenos têm algum interesse teórico. Tais hipóteses fa-zem previsões e têm certas consequências que são contrastadas com os fatos. Se uma hipótese se mantiver frente aos fatos, dizemos que ela foi corroborada e podemos mantê-la para contrastá-la então com outros fatos, avaliar outras predições que ela faz e relacioná-la com ou-tras hipóteses. Se uma hipótese não resistir aos fatos, ou seja, se houver um fato que não é abarcado pela hipótese, ou se uma previsão que a hipótese faz não é o caso, então devemos refutar ou reformular a hipó-tese. Também dissemos que o que derruba um paradigma não é uma previsão incorreta, mas uma série de predições que não se sustentam acopladas a uma nova maneira de explicar o fenômeno.

Neste capítulo, exemplificaremos, num primeiro momento, como se fa-

zem hipóteses em linguística e, ao fim, apresentaremos, de modo mais

aprofundado, a “arquitetura das hipóteses”. Nosso objetivo não é mostrar

qual hipótese é a melhor ou pior, qual está correta ou não, mas, antes,

apresentar como é possível construir e verificar hipóteses linguísticas.

Para podermos começar, é importante que você se coloque na posição

de um “cientista prototípico”, ou seja, deixe de lado seus conhecimentos

e seus preconceitos sobre seu objeto de estudo – nesse caso, o portu-

guês brasileiro contemporâneo e tudo aquilo que você já aprendeu

sobre ele –, e olhe para os dados como se eles nunca tivessem sido

classificados ou analisados antes. Essa é obviamente uma situação li-

mite e, no estágio de pesquisa em que a linguística contemporânea se

encontra, já temos um corpo teórico razoavelmente assentado e nos

baseamos nele para formularmos hipóteses e explicações. É por isso

que precisamos formar os alunos antes de eles iniciarem sua pesquisa.

O objeto de estudos do linguista é o que as pessoas falam; ele é, grosso modo, o som que elas produzem (ou os gestos, se se tratar de uma

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Filosofia da linguística

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língua de sinais) quando se comunicam e que é interpretado. Essa com-preensão do que o outro disse se reflete no fato de que respondemos ao ato de fala com outras palavras ou com ações. Desse ponto de vista, não há um modo de falar certo ou errado; há apenas falas (sons ou gestos) que precisam ser explicadas: como é que conseguimos entender a nossa língua? Imagine-se na pele de um ser de outro planeta, um ET, que chega ao Brasil e quer investigar os sons significativos que as pessoas emitem nas situações de interações discursivas – ele não está interessado em ou-tros sons que as pessoas produzem, por exemplo, o ronco ou o assobio, mas está interessado apenas naqueles sons que as pessoas utilizam para agir. Pois bem, em nossa pele de alienígena, vamos investigar se é possí-vel isolar esses sons em classes que são recorrentes. Em outros termos, vamos investigar as assim-chamadas classes de palavras, que, nas gramá-ticas normativas, são rotuladas como “substantivos”, “verbos”, “adjetivos”, “advérbios” etc. Será que é possível que o nosso ET chegue a classificar as palavras? Como ele pode chegar a tais classes? Elas são possíveis? Posto de outra forma, há efetivamente classes de palavras numa língua?

4.1 Classes de palavras

Depois de recolher várias amostras de fragmentos de língua natu-ral, que você – na pele de um ET – gravou sem que seus interlocutores percebessem, você começa sua investigação procurando recorrências, padrões. Note que essa não é uma tarefa fácil, porque você não sabe onde uma palavra começa e termina. E essa não é uma informação ób-via. Tudo o que você tem é um contínuo de sons! Recortar desse contí-nuo as palavras já mostra uma compreensão sofisticada da língua que se está estudando. (Pense nas crianças aprendendo sua língua ou você num país cuja língua lhe é totalmente desconhecida.) Vamos, então, simplifi-car sua tarefa. Suponha que você tem um auxiliar, um falante nativo, que já apresentou a cadeia sonora quebrada em itens lexicais que podemos denominar de palavra. A sua tarefa é apenas verificar se é possível agru-par esses itens em classes; estabelecer uma taxonomia dos itens, como os biólogos fazem com os animais e as plantas, organizando-os em espé-cies e subespécies através da busca de semelhanças e diferenças.

Ao analisar os itens e com a ajuda de um dicionário, você desco-bre, então, indutivamente, que certas palavras da língua são usadas para

TaxonomiaHouaiss (2009, não

paginado) define taxonomia como “[...] ciência ou técnica de

classificação”.

Claro que há aqui um primeiro problema para o alienígena que é deter-minar quais os sons signi-ficativos. Como saber, se estamos nessa posição de que nada sabemos, que o som ‘hã’ ou um espirro não são significativos?

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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se referir a coisas e outras denotam ações ou estados. Essa informação permite propor uma primeira grande distinção entre palavras que de-signam coisas e palavras que falam de eventos, acontecimentos. Resolve, então, atentar para a designação das coisas. Nota também que é possível combinar essas palavras que denotam coisas com outras e o resultado é uma expressão que, por sua vez, designa ainda uma coisa. Por exem-plo, você sabe que, olhando para as palavras dessa língua, ‘homem’ se refere a um homem qualquer, porque, quando você profere ‘homem’ apontando para um homem, o seu informante concorda e, ao proferir ‘homem’ apontando para qualquer outra coisa que não seja um homem, seu informante discorda. Você testa assim sua hipótese de que ‘homem’ denota um homem. Mas você também notou que ‘homem bom’ não pode ser usado para se referir a um homem qualquer, mas apenas a um subconjunto dos homens. Nesse sentido, ‘bom’ qualifica ‘homem’. Para determinar o que ‘bom’ significa, você terá que contar mais uma vez com o seu informante e indutivamente chegar à conclusão de que, nessa comunidade, ‘homem bom’ só pode ser usado para falar seriamente, por exemplo, de homens que não fazem maldades. Feliz com sua desco-berta, você faz uma hipótese sobre a possibilidade de separar então dois tipos de palavras:

H1: as palavras do português que compõem o sintagma nominal podem ser divididas entre aquelas que se referem a coisas e aquelas que qualificam as coisas.

Note que essa hipótese é passível de verificação. Você consegue refutá-la?

De posse de H1, você sai à caça de outros exemplos, de outros sin-tagmas nominais para avaliar a adequação de H1. Depois de pesquisar um pouco, você se vê com o seguinte grupo de dados:

9) bom homem

10) bela mulher

11) mulher bela

em (9), ‘homem’ é usado para se referir a alguma coisa e ‘bom’ para qualificar coisas (no caso, qualifica um homem); em (10) e (11), ‘mu-

Note que sintagma no-minal pertence à meta-linguagem, a linguagem que o cientista utiliza para descrever a língua objeto. Retorne ao livro de Sintaxe e reveja o conceito de sintagma nominal. Retor-ne ao livro de Semântica e veja o conceito de meta-linguagem.

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Filosofia da linguística

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lher’ se refere à coisa e ‘bela’ qualifica coisas. Ora, não só H1 se sustenta frente a esse conjunto de dados, como você também se sente seguro o suficiente para formular a hipótese H2.

H2: nessa língua, as palavras que se referem a coisas e as palavras que qualificam as coisas podem trocar a ordem em que aparecem; as-sim, podemos ter ‘homem bom’ e ‘bom homem’.

Reflita: Note mais uma vez que essa hipótese é passível de ser refu-

tada. Você acha essa uma boa hipótese para o português brasileiro?

Justifique a sua resposta.

Você fica cada vez mais contente com o seu conhecimento sobre essa língua que anda estudando e não vê a hora de juntar mais dados para aprender ainda mais. Você coleta então os seguintes fragmentos:

12) casa amiga

13) amiga fiel

14) carro azul

Agora você fica um pouco intrigado. Um dos dados parece desafiar sua hipótese H1... ora, se as palavras do sintagma nominal são divididas entre as que se referem a coisas e as que qualificam coisas, o que fazer com a palavra ‘amiga’ que parece ora se referir a um objeto ora qualificar um objeto? Em (12), ela qualifica ‘casa’, mas, em (13), ela se refere a uma coisa (uma pessoa), que é qualificada como fiel. Essa evidência (ou fato) é o suficiente para você ter que refor mular H1; afinal, do modo como está formulada, H1 não captura o que ocorre com as palavras do português.

Porém, antes de mudar H1, você decide testar também H2 através de uma previsão que ela faz:

Exercício: Proponha uma reformulação de H1 que dê conta dos

dados acima.

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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P-H2: nessa língua, não importa a ordem entre as palavras que se referem a coisas e as palavras que qualificam as coisas. Chame de nome, representado por N, as palavras que designam coisas e de adjetivo, re-presentado por A, as palavras que qualificam as coisas. A hipótese P-H2 de que nessa língua podemos ter tanto AN quanto NA para qualquer A e qualquer N.

Uma maneira de testar sua previsão é justamente inverter a ordem dessas palavras, manipulando os seus dados (lembre-se: você não sabe português!) e, em seguida, indagando para o seu informante se as ex-pressões que você produziu são expressões da língua que está sendo in-vestigada (a língua objeto) ou se são apenas manipulações laboratoriais que você fez:

(12’) amiga casa

(13’) fiel amiga

(14’) azul carro

Nesse ponto, como você não sabe português, vai precisar recorrer mais uma vez aos falantes dessa língua, porque eles sim sabem como ela é, sabem suas regras, mesmo que eles não saibam explicitá-las. Para prosseguir na sua pesquisa, você interroga um falante do português so-bre se suas sentenças, construídas no seu laboratório, são aceitáveis na língua dele. Depois de indagar alguns falantes do português, você obtém o seguinte resultado:

(12)? amiga casa

(13) fiel amiga

(14)* azul carro

O símbolo “?” indica que os falantes sentem a sentença como não natural ou que eles não se sentem seguros sobre sua aceitabilidade, e o símbolo “*” indica que os falantes não reconhecem tal construção como possível em sua língua pelas regras de sua gramática. Diante desse re-sultado, você fica decepcionado... H2 também não resistiu ao confronto com os fatos. O que fazer?

Como um bom cientista, você não desiste e tenta reformular suas hipóteses, chegando a H1a e H2a:

Foi certamente o suces-so da empreitada gera-tiva que permitiu que o método de elicitação de julgamento de grama-ticalidade se difundisse na linguística. Esse é o chamado método do dado negativo (ver PIRES DE OLIVEIRA, 2010): para o linguista, o dado ne-gativo, isto é, o fato de uma expressão da língua não ser aceita como gra-matical pelos falantes, é extremamente útil, por-que ele permite chegar às regras daquela língua.

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H1: as palavras do português que compõem o sintagma nominal podem ser divididas entre aquelas que se referem a coisas – que já deno-minamos nomes – e aquelas que qualificam coisas – os adjetivos.

H1a: as palavras do português que compõem o sintagma nominal podem ser divididas entre aquelas que se referem a coisas, os nomes, e aquelas que qualificam coisas, os adjetivos, e também há aquelas que podem ora se referir a coisas, ora qualificar coisas.

Note que estamos aqui há quilômetros de distância da ideia de corre-

ção na gramática normativa. A gramática normativa dita o que é cor-

reto, ela é legalista, ao passo que o julgamento do falante nos fornece

pistas sobre como é a sua gramática internalizada. A agramaticalidade

de (14’) nos informa que a gramática dessa língua não permite gerar

essa expressão: o adjetivo ‘azul’ não pode anteceder o nome ‘carro’.

Claro que, para chegarmos à regra, precisaremos investigar outros ca-

sos. Como já dissemos, não há como generalizar a partir de uma úni-

ca evidência. Se você refletir um pouco, verá que adjetivos de cores

não podem, no português brasileiro, ocorrer na posição pré-nominal.

Para chegar a tal conclusão, você teria que fazer vários testes.

Mas note que, da maneira como H1a foi formulada, ela deixou de ser uma hipótese científica, simplesmente porque não é possível verifi-cá-la. Se você ler H1a atentamente, verá que ela cobre todas as possibili-dades que temos: uma palavra ou refere a uma coisa, é um nome, ou qualifica uma coisa, é um adjetivo, ou ambos. Para ser possível avaliar se essa hipótese se sustenta, é preciso indicar quais são as palavras que têm comportamento duplo ou que propriedades essas palavras têm para ter esse comportamento duplo.

H2: as palavras que se referem a coisas e as palavras que qualificam as coisas podem trocar a ordem em que aparecem; assim, podemos ter ‘homem grande’ e ‘grande homem’.

H2a: as palavras que se referem a coisas e as palavras que qualifi-cam as coisas podem trocar a ordem em que aparecem algumas vezes e algumas vezes não; assim, podemos ter ‘homem grande’ e ‘grande ho-mem’, mas não ‘carro azul’ e * ‘azul carro’.

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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Embora seja possível verificar H2a, avaliando se de fato isso ocorre, ela é ainda muito geral, porque é apenas uma descrição dos fatos; ela não permite uma previsão. Diante de uma palavra que qualifica, não sabemos se ela pode ou não trocar de lugar com o nome, porque não há uma regra explicitada em H2a. O que podemos verificar é se de fato há palavras qualificadoras que não permitem a troca de lugar e fazer uma listagem dessas palavras. De posse dessa lista, é possível então buscar uma regra.

H1a e H2a descrevem corretamente o seu conjunto de dados, mas ao mesmo tempo colocam duas perguntas, que já adiantamos:

com relação à Ӳ H1a: como saber quando estamos diante de uma palavra que apenas se refere, que apenas qualifica coisas, ou que pode ser usada para se referir ou para qualificar?

Uma maneira de responder a essa indagação é fazer um levantamen-to o mais exaustivo possível das palavras que têm esse comportamento duplo. Com essa lista, o cientista pode procurar avaliar se há uma gene-ralização possível. E então verificar se sua generalização está correta.

com relação à Ӳ H2a: como saber quando as palavras que se refe-rem e as palavras que qualificam podem trocar de lugar?

Exercício: O que você deve fazer se chegar à conclusão de que todas

ou quase todas as palavras podem ter comportamento duplo?

De novo, o procedimento nesse caso é um levantamento dos casos em que não é possível alterar a ordem. Faça esse levantamento.

Uma análise mais detalhada desses problemas nos levaria para longe demais de nosso objetivo aqui, que é simplesmente ilustrar a construção de hipóteses indutivamente em linguística.

De posse desse levantamento, coloque-se a questão: há alguma

propriedade que explique quando não é possível trocar o adjetivo

de lugar?

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Filosofia da linguística

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Mas vamos continuar essa empreitada de montar modelos científi-cos para explicar fragmentos de uma língua natural, procurando cons-truir hipóteses cada vez mais sofisticadas.

4.2 O significado dos numerais

Vamos agora abandonar nossa “pele de ser de outro planeta” e mo-bilizar nossos conhecimentos do português – não o conhecimento nor-mativo!, mas sim aquele de falantes do português que o aprenderam como língua vernácula, ou seja, sem ensinamento formal (na escola), em casa, nos primeiros anos de vida e com a família. Tomemos o se-guinte conjunto de sentenças:

Apenas para matar a sua curiosidade. É muito difícil manter a distin-

ção entre nomes e adjetivos, pelo fato de que podemos facilmente

tornar um adjetivo um nome colocando um artigo definido antes

dele – por exemplo, ‘o azul é uma cor’ –, por outro lado, é também

muito fácil transformar um nome num adjetivo – como ‘o carro casa

do Pedro’. Se for isso, então o melhor é abrir mão de uma tentativa

de definir essas classes dando-lhes sua conceitualização semântica –

quando dissemos que há palavras que se referem a coisas e palavras

que qualificam as coisas, adotamos uma definição semântica. O me-

lhor caminho nesse caso é optar por uma proposta sintática: o nome é

o núcleo do sintagma nominal, o adjetivo é um adjunto desse nome.

Como vocês viram na disciplina de Semântica, para a semântica, essas

classes não existem, são predicados.

(15) Você pode me comprar 3 pãezinhos?

(16) João me trouxe 4 chicletes.

(17) Para a próxima aula, o professor pediu para lermos 17 páginas.

(18) A casa da minha sogra tem 143,2 metros quadrados.

(19) 23 amigos vieram à minha festa.

(20) 8 adolescentes comeram 24 pedaços de pizza!

Sugerimos que você leia o texto de Perini: “O adjetivo

e o ornitorrinco (dilemas da classificação das palavras)”.

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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As sentenças de (15) a (20) têm em comum a presença de uma ou mais expressões compostas por numerais: ‘3 pãezinhos’, ‘4 chicletes’, ‘17 páginas’ e assim por diante. Numerais indicam a cardinalidade (de car-dinal), a quantidade numérica de objetos. Todas as sentenças acima são bem formadas, não soam estranhas aos nossos ouvidos e não temos di-ficuldade em interpretá-las: quem pede para que lhe comprem 3 pãezi-nhos espera que alguém lhe traga esses 3 pãezinhos; se João me trouxe 4 chicletes, sei qual é a quantia que ele me trouxe; se o professor pedir para que lêssemos 17 páginas, não foi 16 nem 18 páginas. Podemos concluir que nossa interpretação dos diferentes numerais que aparecem em (15)-(20), em diferentes posições e papéis, indicam sempre uma quantidade exata de objetos. Mas note – e isso é importante! – que tal conclusão deve ser encarada como uma hipótese a ser investigada, avaliada, e não como um fato. O fato é que interpretamos essas sentenças sem qualquer problema. Sendo uma hipótese (H3), ela faz previsões (P-H3):

H3: em português, os numerais representam sempre valores exa-tos, ou seja, ‘3’ significa ‘exatamente 3’.

P-H3: não encontraremos, em português, sentenças com numerais cuja interpretação envolve quantidades diferentes (maiores ou meno-res) do que aquela expressa pelo numeral em questão.

Explicando P-H3: esperamos que 3 signifique sempre ‘exatamente 3’; 2, ‘exatamente 2’; e assim sucessivamente.

Os dados das sentenças de (15) a (20) parecem se conformar a P-H3, e nossa hipótese H3 parece correta; afinal, nesse conjunto de da-dos, os números envolvidos expressam exatamente a quantidade envol-vida. Tomemos, contudo, as sentenças:

(21) Na UFSC, se você reprovar em 3 disciplinas, está fora do curso.

(22) O Bolsa Família atende famílias com 2 filhos.

Essas sentenças também são naturais no português brasileiro. Elas cabem na previsão P-H3? Ou seja, elas corroboram a hipótese H3? Como responder a essas questões? O primeiro passo é refletir com cuidado so-bre o que essas sentenças veiculam, seu significado.

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Filosofia da linguística

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Se P-H3 e H3 estiverem corretas, podemos combinar com os nume-rais o advérbio ‘exatamente’ ou uma construção equivalente a ‘exatamen-te’ nas sentenças (21) e (22) e não iremos alterar o seu significado. Vamos então aplicar esse teste. Teremos:

(21’) Na UFSC, se você reprovar em exatamente 3 disciplinas, está fora do curso.

(22’) O Bolsa Família atende famílias com exatamente 2 filhos.

Ora, as sentenças (21) e (21’) simplesmente não dizem a mesma coisa. Com a sentença (21), temos a interpretação de que podemos re-provar em no máximo 3 disciplinas na UFSC; só se reprovarmos em mais do que 3, seremos jubilados, ou seja ‘3’ é interpretado como ‘no máximo 3’, e não como ‘exatamente 3’. Contudo, (21’) nos diz que não podemos reprovar num número de disciplinas diferente de 3 – pode-mos reprovar apenas em exatamente 3 disciplinas –, do contrário se-remos jubilados. Ou seja, a sentença (21’) diz que seremos jubilados pela UFSC se reprovarmos em 1, 2, 4 ou mais disciplinas (mais preci-samente, seremos jubilados se não reprovarmos em disciplina alguma, porque o zero é diferente de exatamente 3). Ora essa é uma interpre-tação absurda da sentença (21), que diz que seremos jubilados apenas se reprovarmos em mais de que 3 disciplinas. Claramente as sentenças em (21) e (21’) descrevem duas situações de mundo muito diferentes, o que invalida P-H3 e H3.

Por sua vez, o par de sentenças (22) e (22’) também parece dizer coisas diferentes. Vejamos. Segundo (22’), o Bolsa Família não pode atender famílias que tem 1, 3, 4 ou mais filhos, mas apenas famílias que têm exatamente 2 filhos; algo diferente daquilo que temos com (22), sentença segundo a qual o Bolsa Família atende famílias com no míni-mo 2 filhos. Novamente, essa situação invalida P-H3 e H3. (Veja que, nesse caso, a interpretação de no mínimo 2 filhos é dada por nosso co-nhecimento de mundo. Dada a nossa situação no Brasil, sabemos que, numa boa parcela da população, famílias com mais de 2 filhos precisam de ajuda. Veja que, se estivéssemos em outra situação, por exemplo, na China, em que é preciso ter um controle de natalidade, talvez a nossa interpretação fosse de no máximo 2 filhos. De uma forma ou de outra, nossa interpretação não é ‘exatamente 2 filhos’.)

Aplique, como exercício, ‘exatamente’ ao conjunto

de sentenças em (15)-(20). A interpretação muda?

Sim? Não? Por quê?

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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O quadro final que temos é o seguinte:

para as sentenças (15)-(20), os numerais parecem significar Ӳ“exatamente”;

para a sentença (21), o numeral parece significar “no máximo”; Ӳ

para a sentença (22), o numeral parece significar “no mínimo”. Ӳ

Diante de tal quadro, poderíamos concluir que os numerais são ambíguos, ora significando “exatamente”, ora “no máximo” e ora “no mínimo”. Essa não é, todavia, uma saída interessante, porque ela não nos explica nada; apenas diz o que os próprios dados nos dizem, que os numerais se comportam diferentemente. Antes de admitir que eles são ambíguos e que não há mais nada para se dizer sobre os numerais, devemos investigar mais a fundo essas expressões, com o intuito de responder a questões como:

há contextos específicos para termos uma ou outra Ӳinterpretação? Se descobrirmos que as interpretações de “no máximo” derivam sempre da combinação do numeral com um certo contexto sintático, podemos propor uma hipótese como: ‘o numeral sempre significa “exatamente”, porém, ao se combinar com o contexto sintático XYZ, o numeral significa “no máximo”’. Se conseguirmos encontrar tal contexto, não precisaremos dizer que os numerais são ambíguos, mas sim que sua interpretação resulta da combinação com determinados ambientes sintáticos.

supondo que os numerais não sejam ambíguos, há algum sig- Ӳnificado inerente a eles, a partir do qual derivamos as outras interpretações?

Apesar de não perseguirmos nenhuma resposta aqui, é importante que você note como se dá o jogo entre hipóteses, dados, refutação de hipóteses, reformulação de hipóteses e previsões. É nesse jogo entre o que consideramos ser o caso e os dados que reside o avanço do nosso conhecimento científico.

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Filosofia da linguística

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Mais uma vez, apenas para matar a sua curiosidade, vamos apresen-

tar rapidamente a solução para os numerais mais aceita na semân-

tica atual. Já houve muito debate sobre a semântica dos numerais e

é mais ou menos consensual que os numerais devem significar se-

manticamente ‘pelo menos n’ (em que ‘n’ é o numeral – por exemplo,

‘2’ significa ‘pelo menos 2’ e assim por diante). As interpretações de

‘exatamente n’ e ‘no máximo n’ são geradas por implicaturas pragmá-

ticas. Por exemplo, ao responder sobre quantos filhos tem, o falante

ao proferir ‘tenho dois filhos’ implica que são exatamente dois – em-

bora do ponto de vista semântico ele afirme que tem pelo menos 2

filhos. A implicatura, nesse caso, deriva do fato de que o falante sabe

quantos filhos têm e está dando o máximo de informação possível.

As razões para tal descrição do significado dos numerais estão no

fato de que o significado semântico não pode ser cancelado, mas

pode ser pragmaticamente definido.

4.3 Sobre a concordância verbal

Vamos voltar nosso olhar agora para a construção de outra hipó-tese, um pouco mais complexa, baseados num exemplo de Chierchia (2003, p. 29-35). Sabemos que, no português da norma culta, o verbo concorda com seu sujeito, gerando paradigmas como:

pronome número pessoa verbo

eu singular primeira nado

(tu)você singular segunda nada

ele singular terceira nada

nós plural primeira nadamos

vocês plural segunda nadam

eles plural terceira nadam

Sabemos, também, que não aceitamos sentenças cujos verbos não concordem em pessoa com o seu sujeito:

A norma culta é a varie-dade falada pela classe

dominante. Recorra ao seu livro de Sociolinguística para recordar esse con-

ceito.

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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pronome número pessoa verbo

eu singular primeira *nadam

(tu)você singular segunda *nadamos

ele singular terceira *nadamos

nós plural primeira *nadam

vocês plural segunda *nado

eles plural terceira *nado

O paradigma acima certamente não representa o sistema de con-

cordância de vários dialetos do português, porque há dialetos em

que a concordância se dá apenas no pronome – dizemos ‘eles nada’,

por exemplo. Além disso, utilizamos com muita frequência ‘a gente’

como o pronome de 1ª. pessoa do plural: ‘a gente nada’. O movimen-

to do português é de perda da flexão de número no verbo – como é

o paradigma do inglês e do francês – e, consequentemente, a neces-

sidade da presença do pronome:

Eu nado

Você nada

Ele nada

A gente nada

Vocês nada

Eles nada

Desses fatos, decorre o seguinte:

23) O menino nada.

24) Os meninos nadam.

25) * Os meninos nado.

26) * O menino nadam.

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Filosofia da linguística

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Imagine agora que você queira explicar qual é a regra de concor-dância sem usar a noção de sujeito; você quer saber, apenas através da ordem superficial das palavras, qual palavra dispara a concordância do verbo. Uma primeira formulação poderia ser:

H4: o verbo deve concordar em pessoa e número com a palavra à sua esquerda.

Note que a hipótese H4 dá conta dos dados de (23) a (26) correta-mente, ou seja, H4 prevê que (23) e (24) sejam sentenças bem formadas, mas não (25) e (26).

Tomemos, contudo, o seguinte dado:

27) O menino de olhos verdes nada.

Ora, H4 prevê que a sentença (27) é mal formada – justamente por-que a primeira palavra à esquerda do verbo está no plural e o verbo está no singular –, mas nossa intuição nos diz que (27) é uma sentença perfeita do português, porque sabemos que é ‘menino’ que concorda com ‘nada’. Logo, precisamos refinar a nossa hipótese H4 para que ela não gere resultados incorretos. Note, porém, que a palavra à esquerda do verbo em (27) não é um nome, mas sim um adjetivo, ‘verdes’, e talvez aí esteja o problema: precisamos olhar para o primeiro nome à esquerda do verbo. Chegando assim a H5:

H5: o verbo deve concordar em pessoa e número com o primeiro nome à sua esquerda.

Mas, infelizmente, H5 também nos diz que (27) deveria ser mal formada: o primeiro nome à esquerda do verbo é ‘olhos’, que está no plural, e o verbo está no singular... Logo, a sentença (27) deveria ser agramatical, e não é. H5 deve ser refutada.

Vamos mudar nossa estratégia e pensar em uma hipótese que leve em conta a relação do verbo com suas pessoas, como em H6:

H6: procure qual é a denotação, em termos de pessoa e número, do grupo nominal à esquerda do verbo, entendendo por grupo nominal a unidade sintática que antecede o verbo, o sintagma nominal:

a) se esse grupo denotar o falante e for singular, a forma do verbo terminará em -o;

Explique por que essas duas últimas sentenças não são bem forma-das dada a hipótese H4.

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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b) se esse grupo denotar o ouvinte e for singular, a forma do verbo terminará em -as/-a;

c) se esse grupo não denotar nem o falante nem o ouvinte e for singular, a forma do verbo terminará em -a;

d) se esse grupo denotar o falante e for plural, a forma do verbo terminará em -mos;

e) se esse grupo denotar o ouvinte e for plural, a forma do verbo terminará em -am;

f) se esse grupo não denotar nem o falante nem o ouvinte e for plu-ral, a forma do verbo terminará em -am.

A hipótese H6 dá conta de nossa intuição sobre a sentença (27), embora ela não seja nada econômica e sabemos que as melhores hipóte-ses são aquelas que explicam mais do que descrevem. O grupo nominal à esquerda do verbo, a saber, ‘o menino de olhos verdes’, não denota nem o falante nem o ouvinte, mas uma terceira pessoa, e é singular; logo, o verbo deve terminar em -a. E é de fato isso que ocorre.

Tomemos agora uma sentença como:

28) Aqui se nada bastante.

Deixando de lado o item ‘aqui’, qual é a denotação de ‘se’? É o fa-lante, o ouvinte, nenhum dos dois? É singular ou plural? Em geral, usa-mos sentenças como (28) para nos referirmos a grupos indefinidos ou indeterminados de pessoas, ou seja, certamente não é necessariamente singular e pode referir-se ou não ao ouvinte e ao falante. Contudo, o verbo utilizado termina em -a, o que indica que se trata de uma forma singular, algo que não é capturado pela hipótese H6. O mesmo vale para o seguinte exemplo, bastante coloquial:

29) A gente nada.

Embora o verbo termine em -a, indicando que se trata de uma for-ma singular, ‘a gente’ é uma forma plural, indica o falante e mais pelo menos outra pessoa. Logo, pela hipótese em H6, a forma verbal deveria ser -mos e a sentença em (29) seria agramatical.

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Filosofia da linguística

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Até agora, tentamos caracterizar, através apenas da forma superficial das sentenças, como se dá a concordância verbal em português (hipóteses H4 e H5), mas não fomos bem-sucedidos. Voltamos, então, nossos esforços para uma hipótese que levasse em conta a semântica das relações verbais (H6), mas novamente não obtivemos muito sucesso.

Como falantes de português, e já um tanto familiarizados com gra-máticas, sabemos que uma hipótese mais plausível deve levar em conta a noção de sujeito. Já que nossa empreitada de tentar caracterizar a concor-dância verbal sem tal noção está fadada ao fracasso, a hipótese que nos resta é então:

H7: o verbo concorda em pessoa e número com os traços de pessoa e número do sujeito.

Resta-nos agora a complicadíssima tarefa de definir sujeito. E se você continuar essa busca verá que teremos que abrir mão da noção de sujeito. Simplesmente não vamos conseguir uma noção que abarque todos os casos. Significa então que a nossa busca está fadada ao fracasso? Não. Mas vamos precisar de um conceito sintático para conseguir explicar a concordância, exatamente o que nos fornece a noção de argumento externo do verbo. A moral da história para esse caso é que estudar algo que parece simples, como a concordância verbal, leva-nos inexoravelmente a um conceito que talvez seja útil, mas que é certamente complicado: a ideia de sujeito, que, se for mobilizada na construção do modelo para as línguas naturais, deve ser reformulada. No exemplo original de Chierchia, a dificuldade de deter-minarmos a concordância verbal sem mobilizar a ideia de sujeito, por um lado, e a facilidade com que crianças aprendem a concordância verbal, por outro, podem ser tomados como evidência de que há algo de inato no ser humano com relação à linguagem e à sua aquisição. Ora, como explicar que uma criança entre um ano e meio e dois anos já sabe a concordân-cia verbal e também a noção intuitiva de sujeito? Uma maneira é apelar para a hipótese inatista da linguagem: a criança sabe uma certa maneira de construir a sentença de tal forma que o argumento externo do verbo irá disparar a concordância. Mas isso já é outra história. Antes de encerrar esse capítulo, olhemos rápida e criticamente para a ideia de sujeito.

Retorne ao seu livro de Sin-taxe e reveja esse conceito.

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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4.4 Sobre o sujeito

Costumamos igualar sujeito àquele indivíduo responsável pela ação, ou por iniciar a ação descrita pelo verbo. Podemos expressar isso com a hipótese H8:

H8: Sujeito é o sintagma nominal responsável pela ação descrita pelo verbo, ou por iniciar a ação descrita pelo verbo.

Um primeiro problema é que hipóteses científicas não devem con-ter alternativas, como ocorre em H8, mas esse não é o pior. Veja que, embora H8 dê conta de sentenças como as abaixo, há nela vários termos que carecem de definição, por exemplo, “ação” e “verbo”. Quando cons-truímos um modelo científico para explicar as línguas naturais, deve-mos definir todos os conceitos utilizados na metalinguagem. Vamos, no entanto, dar de barato que essas noções já foram definidas e atentar para os dados apresentados abaixo:

30) João subiu o morro.

31) João entregou os anéis pra Maria.

H8 prevê que ‘João’ é o sujeito das sentenças em (30) e (31), o que confere com a nossa intuição. Mas H8 parece não acomodar bem sen-tenças como as abaixo:

32) João caiu.

33) João morreu.

Ora, não faz sentido dizer que, em (32) e em (33), ‘João’ foi o res-ponsável pela ação de ‘cair’ ou de ‘morrer’. Certamente o verbo concorda em pessoa e número com ‘João’, mas isso não quer dizer que ele é o su-jeito conforme definido em H8.

Aliás, ao olharmos com mais cuidado para diferentes tipos de sen-tenças, talvez seja interessante pensar em mais de uma noção de sujeito ou, como já sugerimos anteriormente, abandonar qualquer tentativa de definir semanticamente tal noção e adotarmos uma perspectiva sintáti-ca. Diversos estudiosos da linguagem propuseram, no começo do século XX, distinguir três noções de sujeito:

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Filosofia da linguística

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sujeito lógico: indivíduo a quem pertence a iniciativa da ação Ӳdescrita pelo verbo;

sujeito gramatical: termo que determina a concordância do Ӳverbo; e

sujeito psicológico: o “assunto” da sentença. Ӳ

Note que a noção de sujeito psicológico é discursiva e depende da estrutura informacional da sentença. Voltaremos adiante a esse ponto.

Muitas vezes essas três noções de sujeito coincidem, mas esse nem sempre é o caso. No exemplo (32), ‘João’ é o sujeito gramatical e pode ser o sujeito psicológico, mas não é o sujeito lógico, o mesmo vale para a sentença (33). Se voltarmos nossa atenção para a sentença (34), e a manipularmos um pouco, veremos também que não apenas essas noções não coincidem sempre, mas elas podem ser creditadas a diferentes ele-mentos numa mesma sentença:

(34) João entregou os anéis pra Maria.

(34’) Pra Maria, o João entregou os anéis.

‘Maria’ é o sujeito psicológico porque em (34’) ela está em posição de foco, constituindo-se então o assunto sobre o qual se está falando – como dissemos, essa noção de sujeito é discursiva; já o sujeito lógico e o sujeito gramatical é ‘João’. Ou seja, temos dois sujeitos em (34’):

(34’’) Os anéis foram entregues pra Maria pelo João.

sujeito psicológico + sujeito gramatical: Os anéis;

sujeito lógico: João

(34’’’) Quem deu os anéis pra Maria foi o João

sujeito psicológico + sujeito gramatical: Quem deu os anéis;

sujeito lógico: João

Como formular uma hipótese sobre o que é o sujeito diante do fato que, comumente, quando falando em sujeito podemos estar misturan-do três noções distintas? O que fazer diante do fato de que uma mesma sentença pode ter mais de um sujeito? Essas obviamente não são ques-

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Capítulo 04Como fazer ciência da linguagem?

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tões fáceis. Mas não é, tampouco, possível construirmos uma teoria do conhecimento linguístico do falante se não dispusermos de um concei-to claro de sujeito. É por isso que talvez o melhor caminho – certamen-te esse foi o caminho adotado pela linguística atual – seja abandonar a noção de sujeito, já muito contaminada por diferentes abordagens teóricas. Uma solução melhor é apelar para a noção de constituintes frasais e para a estrutura da sentença. Em todos os exemplos em (34), partimos de um verbo com três argumentos: ‘entregar’ é um predicado de três argumentos e ‘João’, ‘anéis’, ‘Maria’ são os argumentos que pre-enchem a valência desse predicado. Esses elementos aparecem em dife-rentes constituições porque eles se deslocam de suas posições iniciais. Mas, em todos os casos, ‘João’ é sempre o argumento externo do verbo na sua forma original.

Podemos, então, associar a noção de sujeito gramatical a de argu-mento externo?

Que outras hipóteses podem ser formuladas para a noção de sujeito além de H8?

Lembre-se das aulas de Semântica e de Sintaxe, principalmente a distin-ção entre argumento e predicado.

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

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5 A arquitetura das hipótesesNa seção anterior, apresentamos alguns exemplos de hipóteses que

tinham por objetivo explicar certos fenômenos e padrões linguísticos do português brasileiro. Começamos olhando para alguns dados ou fatos, construindo então, a partir deles, nossas primeiras hipóteses, que foram, na sequência, confrontadas com mais dados e avaliadas em termos de suas predições. Caso os dados posteriormente arrolados pudessem também ser explicados pela hipótese em questão e as previsões da hipótese fossem confirmadas, podíamos assumir que a hipótese havia sido corroborada e estava pronta para uma nova bateria de testes. Se não, ou reformulamos a hipótese ou a abandonamos e tentamos um novo caminho.

Nesta seção, olharemos com mais cuidado para os modos de construir

hipóteses e de tirar conclusões, compreendendo mais profundamente o

jogo entre fatos, dados, hipóteses, reformulações e conclusões. Já toca-

mos nesse assunto no primeiro capítulo, quando falamos que havia dois

tipos de raciocínio para formular hipóteses, a indução e a dedução. Vere-

mos, nesta seção, com mais detalhes, como esses raciocínios funcionam

e também que há uma terceira maneira de raciocinarmos, a chamada

abdução, também extremamente importante para entendermos como

funciona a ciência e o processamento das implicaturas pragmáticas.

Num primeiro momento, apresentaremos a estrutura lógica de hipóte-

ses e conclusões, que chamaremos de argumentos. Ao fim deste capítu-

lo, exemplificaremos o que vimos através de exemplos linguísticos.

5.1 A indução

Talvez a ideia mais intuitiva e ingênua de como se faz ciência pode ser exemplificada pelo que chamaremos de indutivismo, que é a ins-tanciação de um argumento indutivo. No linguajar filosófico-científico, induzir significa generalizar a partir de um conjunto de dados ou obser-vações. Tomemos, como de praxe, uma série de exemplos:

O termo implicaturas pragmáticas foi introdu-zido por Paul Grice no famoso texto, de 1975, “Lógica e Conversação”. Nesse texto, Grice dis-tingue o significado da sentença – isto é o con-teúdo veri-condicional veiculado pela sentença – daquilo que o falante intenciona com o seu proferimento – o signifi-cado do falante. As impli-caturas são o significado do falante. Confira essas noções no seu livro de Semântica.

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Filosofia da linguística

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a) você observa um cisne e percebe que ele é branco

b) você observa outro cisne e percebe que ele é branco

c) você observa outro cisne e percebe que ele é branco

d) você observa outro cisne e percebe que ele é branco

e) você observa outro cisne e percebe que ele é branco

...

Conclusão: Todos os cisnes são brancos.

A intuição por trás da indução é que um número razoavelmente grande de observações de um padrão – no caso, a cor dos cisnes –, pode nos autorizar a fazer uma generalização – a de que todos os cisnes são brancos. A existência de um cisne negro põe em xeque a generalização e pede uma revisão da hipótese de que todos são brancos. Veja que chegar à generalização expressa na conclusão do raciocínio não explica a razão de os cisnes serem brancos e essa é, como vimos na primeira seção, a meta da ciência: explicar a natureza.

Muitos autores dizem que o indutivismo é a imagem ingênua que temos da ciência e do trabalho do cientista – ele faz inúmeras observa-ções de fatos e fenômenos e, partir dessas observações, deriva regras ge-rais e leis – porque é preciso mais do que apenas induzir para chegarmos a explicar os dados. Apesar de ser certo que há uma relação íntima entre observação, indução e construção da ciência, o indutivismo, enquanto argumento, é muito fraco; vejamos as razões dessa fraqueza.

Em primeiro lugar, ao dizermos que partimos de um número X rela-

tivamente grande de observações para chegar a uma generalização,

precisamos saber com um mínimo de segurança qual é o número

que substituirá X; em outras palavras, considerando o caso dos cis-

nes, quantos cisnes brancos precisamos ver para podermos, com al-

guma segurança, chegar à conclusão de que todos eles são brancos?

10 cisnes brancos, 20, 1000, 50000? A resposta é bastante complexa,

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

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pois muitas vezes lidamos com objetivos mais complicados do que

a brancura dos cisnes. Imagine um cosmólogo que esteja estudan-

do objetos astrofísicos, como asteroides, e queria formular algum

argumento indutivo com relação a eles. Ora, dado que eles exis-

tem em um número absurdamente grande (muito maior do que

o número de cisnes), quantos asteroides o nosso cosmólogo deve

observar antes de se aventurar a fazer uma conjectura indutiva mi-

nimamente razoável? Estabelecer tal número, se possível, é uma

tarefa bastante ingrata...

Outra fraqueza da indução tem a ver justamente com a robustez do argumento: depois de formulada uma conclusão a partir de obser-vações, basta uma única observação que não esteja de acordo com a conclusão para que a refutemos. É o caso do cisne negro.

Isso decorre do fato de que, num argumento indutivo, a conclusão diz mais do que as premissas, ou seja, partimos de casos particulares (as observações) para um caso geral (a conclusão), e a garantia de que tal salto do particular para o geral seja válido é apenas probabilística, mas não necessária. Por exemplo, se hoje sabemos, depois de testes e observações, que todos os metais conduzem eletricidade, nada garante que não venhamos a descobrir um metal que não conduza eletricidade; em outras palavras, do fato de que os metais que conhecemos conduzem eletricidade, não podemos garantir que todos os metais conduzem ele-tricidade como uma verdade necessária. O máximo que podemos é in-dicar que há um padrão de comportamento dos metais: tendo em vista os casos averiguados, deu-se que os metais conduziram eletricidade. Se encontrarmos um novo metal, imaginaremos que ele conduza eletrici-dade com base no que já foi observado anteriormente. Mas é claro que pode acontecer de ele não conduzir.

Da indução é importante guardarmos algumas ideias: ela se dá atra-vés do salto a partir de um conjunto de observações controladas para uma conclusão; essa conclusão diz algo que não está nas premissas, ela é maior (diz mais coisa) que as premissas; a conclusão de um argumento indutivo não é uma necessidade, mas uma probabilidade; portanto, ela pode muito bem não ser o caso.

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Filosofia da linguística

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5.2 A dedução

Como já vimos rapidamente no capítulo 1, outro tipo de argumento é a dedução. Ela é bastante empregada pelos lógicos e tem um funciona-mento bastante diferente daquele da indução. Tomemos um exemplo:

Premissas:

(35) Todos os gatos são mamíferos.

(36) Mimi é um gato.

Conclusão:

(37) Logo, Mimi é um mamífero.

O argumento acima é verdadeiro, ou válido.

Diferentemente do que vimos para o caso da indução, um argu-mento dedutivo é sempre necessariamente verdadeiro. Sua composição também é diferente da de um argumento indutivo: em vez de termos observações e então uma conclusão, temos um conjunto de premissas, que são tomadas como verdadeiras, sem observação de dados, e depois uma conclusão. A ideia de um argumento dedutivo é inferir logicamente conclusões a partir de premissas consideradas verdadeiras, e, para tanto, procurar os meios mais gerais em que é possível deduzir uma conclusão necessariamente verdadeira a partir de premissas.

Tomemos mais alguns exemplos:

Premissas:

(38) Todos os planetas orbitam uma estrela.

(39) A Terra é um planeta.

Conclusão:

(40) A Terra orbita uma estrela.

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

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Premissas:

(41) Todos os peixes nadam.

(42) Nemo é um peixe.

Conclusão:

(43) Nemo nada.

Os três exemplos de dedução que vimos até aqui podem ser redu-zidos à seguinte forma geral:

Premissas:

(44) Todo A é B

(45) x é A

Conclusão:

(46) x é B

Esse tipo de argumento ganhou forma com Aristóteles e suas investigações lógicas. Mais tarde, argumentos dessa forma ganharam uma versão em teoria de conjuntos. A premissa (44) indica inclusão de conjuntos: o conjunto A está incluído em B. A premissa (45) afirma que o elemento x pertence ao conjunto A que, como sabemos, está incluído em B. Logo, inescapavelmente, o indivíduo x pertence ao conjunto B.

Para quem se lembra, um argumento dedutivo escrito na “lingua-gem dos conjuntos” é algo como:

Premissa:

A ⊆ B (o conjunto A está contido no conjunto B)

x ∈ A (o elemento x pertence ao conjunto A)

Conclusão:

x ∈ B (o elemento x pertence ao conjunto B)

O silogismo é um raciocí-nio em que a conclusão é estabelecida a partir de um par de premissas.

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Filosofia da linguística

68

Talvez a principal diferença entre indução e dedução esteja no tipo de conclusão a que é possível chegar. Vimos que, num argumento indu-tivo, a conclusão está além das premissas, mas, num argumento deduti-vo, a conclusão já está de certa forma contida nas premissas. Ora, se as premissas de um argumento dedutivo forem tomadas como verdadei-ras, a conclusão será necessariamente verdadeira justamente porque sua verdade já está garantida pelas premissas.

O argumento dedutivo está intimamente relacionado com o falsi-ficacionismo, que, como vimos no primeiro capítulo, afirma que uma teoria científica deve ser passível de ser falseada. A ciência contemporâ-nea utiliza amplamente a dedução, e um dos raciocínios que mobiliza é chamado de modus ponens, exemplificado abaixo:

Se os gatos miam, então os gatos têm cordas vocais.

(48) Os gatos miam.

Logo:

(49) Os gatos têm cordas vocais.

Vamos analisar as sentenças envolvidas nesse argumento uma a uma. A primeira sentença tem a forma “Se A, então B”, em que A e B estão por sentenças quaisquer; no nosso exemplo, A é ‘os gatos miam’ e B é ‘os gatos têm cordas vocais’. A ideia é que, se a sentença A é verda-deira, então B também o é. Note que uma sentença do tipo “Se A, então B” expressa um tipo de relação entre A e B, uma relação que os lógicos chamam de implicação material, e que tem por intuição justamente a ideia de que a verdade de A implica logicamente a verdade de B. Outro ponto importante é que tomamos por certo (ou seja, é uma premissa) a sentença com a forma “Se A, então B”. No raciocínio logo acima, note também que a sentença A é justamente a segunda premissa, ou seja, ‘os gatos miam’. Ora, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão tam-bém será; assim:

(47) Se os gatos miam, então os gatos têm cordas vocais.

sentença A ‘os gatos miam’ sentença B ‘os gatos têm cordas vocais’

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

69

(48) Os gatos miam.

sentença A ‘os gatos miam’.

Dado que (47) é verdadeira e que (48) também é verdadeira, pode-mos concluir que (49), que é justamente a sentença B, é necessariamente verdadeira:

(49) Os gatos têm cordas vocais.

sentença B ‘os gatos têm cordas vocais’.

O que nos interessa é a estrutura desse tipo de raciocínio, que é:

Estrutura do modus ponens

(50) Se A, então B

(51) A

Logo:

(52) B

Ou seja, se a sentença “Se A, então B” é verdadeira e a sentença A é

verdadeira, logo B também o é.

Paralelo ao modus ponens, há outro tipo de raciocínio dedutivo também muito importante chamado modus tollens, ilustrado abaixo:

(53) Se os gatos miam, então os gatos têm cordas vocais.

(54) Os gatos não têm cordas vocais.

Logo:

(55) Os gatos não miam.

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Filosofia da linguística

70

Pensando em termos de estrutura do argumento, temos o seguinte:

(53) Se os gatos miam, então os gatos têm cordas vocais.

sentença A ‘os gatos miam’ sentença B ‘os gatos têm cordas vocais’

(54) Os gatos não têm cordas vocais.

negação da sentenças B

Logo:

(55) Os gatos não miam.

negação da sentença A

Ou seja, se é verdade que “Se A, então B”, e B é falso, podemos concluir que A é falso. Vejamos isso no esquema abaixo, em que o til, ~, representa negação:

Estrutura do modus tollens

(56) Se A, então B

(57) ~B

Logo:

(58) ~A

Compare com o seguinte raciocínio:

(59) Se os gatos miam, então eles têm cordas vocais.

(60) Os gatos têm cordas vocais.

Logo:

(61) Eles miam.

Você acha que esse raciocínio é válido? Ele tem a mesma forma do

modus ponens?

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

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Note primeiramente que não estamos diante da mesma forma de ar-

gumento ou da mesma figura, para usar o termo aristotélico. Veja que,

no modus ponens, iniciamos com uma sentença condicional da forma

“Se A, então B” e a premissa menor afirmava a verdade de A, o que nos

permite concluir pela verdade de B. Mas note que, no segundo racio-

cínio de (59) a (61), a premissa menor afirma que o consequente é ver-

dadeiro, que B é verdadeira. Veja que do fato de que gatos têm cordas

vocais não podemos concluir que eles miam, eles poderiam, em tese,

falar ou latir. Logo, o raciocínio acima não é válido – essa é a conheci-

da falácia da afirmação do consequente. Obviamente, se sabemos que

eles miam, podemos concluir que eles têm cordas vocais. Como vimos,

outro tipo de silogismo muito presente na ciência é o modus tollens,

mais um raciocínio que envolve sentenças condicionais. Verifique se

o raciocínio abaixo é um exemplo de modus tollens. Justifique a sua

resposta.(62) Se os gatos miam, então eles têm cordas vocais.

(63) Os gatos não miam.

Logo:

(64) Eles não têm cordas vocais.

5.3. A abdução

Um terceiro tipo de argumento é o chamado argumento abdutivo. A abdução tem a ver com o nosso conhecimento de relações causais a partir de generalizações indutivas. Nesse sentido, a abdução é uma combinação da indução e da dedução. Suas conclusões são, como na indução, probabilísticas. Tomemos um exemplo:

Observações:

a) As ruas estão molhadas.

b) Os telhados estão molhados.

c) Os carros estão molhados.

O termo abdução foi introduzido pelo filósofo Charles Sanders Peirce para dar conta de raciocí-nios probabilísticos.

Charles Sanders Peirce

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Filosofia da linguística

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Relação causal: A chuva pode ter causado (a), (b) e (c)

Conclusão:

d) Choveu.

Como passamos de (a), (b) e (c) à conclusão (d)? De fato, há aqui uma espécie de “salto intuitivo”: sabemos como as coisas e os eventos estão relacionados no mundo e procuramos, intuitivamente, as explica-ções mais comuns e apelativas à nossa experiência vivida. No exemplo em questão, como explicar que as ruas, os telhados e os carros estão (ao mesmo tempo) molhados? Ora, a chuva parece ser uma boa aposta, porque quando chove – sempre – tudo fica molhado, as ruas, os telha-dos e os carros. Mas veja, e isso é importante!, não precisa ter sido ne-cessariamente a chuva a causar toda a “molhadeira”, pode ter sido um hidrante com defeito, uma caixa d’água bem alta que estourou etc. Por essas razões, a abdução é a um só tempo bastante intuitiva e pouco con-fiável, mas pode-se dizer que é um dos métodos heurísticos mais efi-cientes para se iniciar uma investigação científica.

Além disso, os argumentos abdutivos são muito usados em nove-las e romances policias. Os livros de Sir Arthur Conan Doyle, criador do famoso detetive Sherlock Homes, ilustram de maneira bastante clara casos de argumentos abdutivos, como o trecho abaixo, tirado do livro Um estudo em vermelho:

— Venha, doutor — disse ele. — Vamos nos encontrar com Rance. Pos-

so dizer-lhes uma coisa que talvez os ajude neste caso — continuou ele,

voltando-se para os dois investigadores. — Aqui houve um assassinato,

e o autor do crime foi um homem. Ele tem mais de um metro e oitenta

de altura, ainda é relativamente jovem, usa sapatos um tanto grosseiros,

de bico quadrado, e, quando chegou aqui, fumava um charuto Trichi-

nopoly. Veio a esta casa com a sua vítima, numa carruagem de quatro

rodas, puxada por um cavalo com três ferraduras velhas e uma nova, na

pata dianteira esquerda. Com toda a certeza, o assassino tem o rosto

vermelho e as unhas da mão direita bastante compridas. São apenas

algumas indicações, mas talvez possam servir-lhes. [...]

— Não há nada como as informações em primeira mão — observou

ele. — Para dizer a verdade, a minha opinião sobre o caso já está forma-

da, mas sempre é conveniente recolher todos os dados possíveis.

Porque os utilizamos, mes-mo sem ter noção cons-ciente, frequentemente

nas nossas interações cotidianas. Como disse-

mos, é comum inferirmos o significado do falante

apelando para a abdução, através de implicaturas

conversacionais.

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

73

— Você me surpreende, Holmes — observei. — Não creio que este-

ja tão certo como se mostra a respeito dos pormenores que acaba de

fornecer.

— Não há possibilidade de erro — replicou ele. — A primeira coisa que

observei ao chegar lá foi que uma carruagem fizera dois sulcos com as

rodas, junto à esquina. Ora, até ontem à noite, tivemos uma semana

sem chuva, de maneira que esses sulcos assim tão fundos datam de on-

tem à noite. Também havia marcas dos cascos do cavalo, uma das quais

mais nítida do que as outras três, o que indicava uma ferradura nova.

Visto que uma carruagem parou ali depois de ter começado a chover, e

nenhuma durante a manhã (sobre esse ponto tenho o testemunho de

Gregson), segue-se que chegou durante a noite e que, por conseguinte,

trouxe os dois desconhecidos à casa número 3.

— Isso parece muito simples — murmurei. — Mas como sabe a altura

do outro homem?

— Ora, a altura de um homem, em nove casos em dez, pode ser deduzi-

da pelo comprimento dos seus passos. É um cálculo muito simples, mas

será inútil aborrecê-lo com cifras. O homem deixou os seus passos tanto

no barro do jardim como na poeira da sala. Além disso, tive possibilida-

des de verificar a exatidão dos meus cálculos. Quando um homem es-

creve numa parede, o instinto leva-o a escrever à altura dos olhos. Pois

bem, aquela inscrição estava a cerca de um metro e oitenta do chão.

Uma brincadeira de criança.

— E a idade? — perguntei ainda.

— Bem, se um homem pode dar uma passada de um metro e vinte

sem o menor esforço, é impossível que tenha as articulações duras. Era

essa a largura de uma poça de água no jardim que ele evidentemente

atravessou. O homem dos sapatos de verniz contornou-a, e o dos sa-

patos de bico quadrado saltou-a. Não há nenhum mistério nisso. Estou

simplesmente aplicando à vida normal alguns daqueles preceitos de

observação e dedução que advoguei no meu artigo. Há mais alguma

coisa que o intrigue?

— A história das unhas e do charuto Trichinopoly — confessei.

— Aquela palavra na parede foi escrita com um indicador masculino

molhado em sangue. A lente permitiu-me observar que o reboco fora

ligeiramente arranhado, o que não teria acontecido se o homem tivesse

as unhas curtas. Quanto ao charuto... juntei um pouco da cinza espalha-

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Filosofia da linguística

74

da pelo soalho. Era escura e escamada... tal qual a cinza que só um Trichi-

nopoly produz. Fiz um estudo especial sobre as cinzas de charutos... até

escrevi uma monografia a esse respeito. Gabo-me de poder distinguir

à primeira vista a cinza de qualquer marca conhecida de charuto ou ta-

baco. É exatamente nesses pormenores que um detetive especializado

difere do tipo representado por Gregson e Lestrade.

— E o rosto vermelho?

— Ah! Esse foi um golpe temerário, embora eu não duvide que tenha acer-

tado. Na atual fase da investigação, não me interrogue sobre esse ponto.

É importante notar que todas as conclusões tiradas por Sherlock Holmes, apesar de parecerem corretas, não são necessariamente o caso. Pode muito bem ser que encontremos outras explicações para tudo aquilo que Sherlock Homes tomou como evidência. É por isso que, dife-rentemente da dedução, raciocínios abdutivos são canceláveis, uma vez que eles podem se mostrar errados.

Voltaire, em sua novela Zadig, nos dá outro exemplo bastante inte-ressante de abdução:

— Jovem — disse-lhe o primeiro eunuco, — não viste o cão da rainha?

— É uma cadela, e não um cão respondeu Zadig discretamente.

— Tens razão — tornou o primeiro eunuco.

— É caçadeira, e por sinal que muito pequena — acrescentou Zadig. —

Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas

muito compridas.

— Viste-a, então? — perguntou o primeiro eunuco, esbaforido.

— Não — respondeu Zadig, — nunca a vi na minha vida nem nunca

soube se a rainha tinha ou não uma cadela. Ao mesmo tempo, por um

ordinário capricho da sorte, sucedeu escapar-se das mãos de um pala-

freneiro o mais belo exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos

campos de Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros oficiais corriam

à sua procura com mais inquietação do que o primeiro eunuco em bus-

ca da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não

vira acaso o cavalo do rei.

— É — respondeu Zadig — o cavalo de melhor galope; tem cinco pés

de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de com-

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

75

primento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de

prata de onze denários.

— Que direção tomou ele? onde está? — perguntou o monteiro-mor.

— Não o vi — respondeu Zadig, — nem nunca ouvi falar nele.

O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais dúvidas de que

Zadig houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no

perante a assembleia do grande desterham, que o condenou ao knut e

a passar o resto da vida na Sibéria. Mal se encerrara o julgamento, foram

encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa obriga-

ção de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar

quatrocentas onças de ouro, por haver dito que não vira o que tinha

visto. Primeiro foi preciso pagar a multa; depois concederam-lhe licença

para se defender perante o conselho do grande desterham. Zadig falou

nos seguintes termos:

“Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, vós que

tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o fulgor do diamante e

tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante essa augus-

ta assembleia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a respeitável cadela

da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me aconteceu.

Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerá-

vel eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas

de um animal. Descobri facilmente que eram as de um pequeno cão.

Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os

traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas

estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria. Ou-

tras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao

lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito

compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por

uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de

nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim me ouso expri-

mir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, seja-vos cientificado que, passean-

do eu pelos caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras

que se achavam todas a igual distância.

“Eis aqui — considerei — um cavalo que tem um galope perfeito”. A

poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora

levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro

da estrada. “Esse cavalo — disse eu comigo — tem uma cauda de três

pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a

poeira dos troncos”. Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de

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Filosofia da linguística

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cinco pés de altura, algumas folhas recém-tombadas e concluí que o ca-

valo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto, cinco pés de altura.

Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe es-

fregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como uma

pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em

pedras de outra espécie, descobri eu que era prata de onze denários”.

As conclusões de Zadig são todas baseadas em relações de cau-sa e efeito e, novamente, apesar de soarem corretas, não são neces-sariamente verdadeiras.

Vejamos a estrutura do argumento de Zadig. Inicialmente, ele relata o que viu:

a) vi na areia as pegadas de um animal

b) sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por en-

tre os traços das patas

c) outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam

no solo ao lado das patas dianteiras (denotavam que o animal tinha

orelhas muito compridas)

d) como notei que o chão era sempre menos amolgado por uma das

patas do que pelas três outras

O que poderia causar os observações (a) e (b)? Entre muitas outras

coisas, justamente aquilo que conclui Zadig:

e) uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não

fazia muito que dera cria, que mancava de uma das patas e que ti-

nha orelhas compridas.

Novamente, apesar de (e) poder de fato ser a causa de (a)-(d), isso

não é necessário. Continuemos com seus argumentos:

f) divisei marcas de ferraduras que se achavam todas a igual distância.

g) a poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largu-

ra, fora levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio

do centro da estrada.

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Capítulo 05A arquitetura das hipóteses

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h) vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de

altura, algumas folhas recém tombadas

Conclusão:

i) o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos

pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento

É fácil perceber que os argumentos abdutivos são o resultado de conjecturas, de situações que imaginamos e nas quais estabelecemos certas relações causais, dado que mantemos o mundo próximo do que conhecemos; raciocinamos supondo uma normalidade. Como nossa evidência pode ter como causa coisas distintas, é facilmente possível cancelar um argumento abdutivo – basta encontrarmos outras causas para os fatos que observamos. Uma maneira de reforçar um argumento dessa natureza é arrolar o maior número possível de efeitos que pode-mos atribuir a apenas uma causa, por exemplo, reforçando a possibi-lidade da nossa conclusão, i.e., de que o que concluímos seja de fato a causa dos efeitos (fatos) que observamos.

Como exercício, volte ao excerto do texto de Sir Arthur Conan Doyle que apresentamos anteriormente e explicite a cadeia de obser-vações (fatos, efeitos) que o famoso detetive invoca para chegar a cada uma de suas ousadas conclusões; é possível perceber que o mecanismo é bastante semelhante à nossa caracterização de abdução.

Leia mais!

BORGES NETO, José Ensaios de filosofia da linguística. São Paulo: Parábola, 2004.

Este livro é, na verdade, uma coleção de ensaios sobre a ideia de linguística enquanto ciência, os limites e as relações da linguística com outras ciências e problemas internos da linguística que têm uma contraparte epistemoló-gica, ou seja, da filosofia do conhecimento. No livro de Borges Neto, você encontra praticamente todos os conceitos e as ideias que apresentamos aqui aplicados a problemas específicos.

É comum encontrarmos, na filosofia e na semân-tica, o termo ceteris pa-ribus (expressão latina que pode ser traduzida por “mantidas inalteradas todas as outras coisas”) para indicar o raciocí-nio que se ampara num desenvolvimento nor-mal das situações. Por exemplo: se tudo correr normalmente, sem inci-dentes, se alguém está atravessando a rua, esse alguém atravessa a rua. Mas note que suspende-mos os acidentes. Como dissemos, podemos can-celar esse tipo de raciocí-nio, incluindo acidentes.

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Filosofia da linguística

78

PERINI, Mário A. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo: Parábola Editoral, 2006..

Neste livro, Perini, um experiente e importante linguista e gramático brasi-leiro, apresenta uma introdução ao questionamento e à argumentação gra-matical. Perini circula por tópicos extremamente importantes, como o que é dado e hipótese, como testar hipóteses, como formar um corpus. Tudo isso numa linguagem bastante acessível e cheio de exemplos.

FISCHER, Steven Roger. Uma breve história da linguagem. Osasco: Editora Novo Século, 2009.

O livro de Fischer é uma grande reflexão sobre as diversas dimensões da linguagem e do estudo da linguagem. O autor começa sua reflexão com a origem da linguagem, passando pela comunicação animal e suas diferen-ças com a comunicação humana, as especificidades da língua natural e as ciências da linguagem. Apesar de ser um panorama, e por vezes um pouco superficial, é possível ter uma visão de todo da linguagem e daqui para fren-te podemos nos aprofundar naquilo que mais nos atrair.

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Unidade CModelos de reflexão em linguística contemporânea

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Capítulo 06Os paradigmas de abordagem do objeto linguagem

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6 Os paradigmas de abordagem do objeto linguagem

Conforme vimos no primeiro capítulo, é possível pensar na divi-são apresentada abaixo para os estudos linguísticos contemporâneos. Note que estamos considerando que a análise do discurso é uma área da linguística, um ponto certamente controverso porque há analistas do discurso que consideram que a AD é interdisciplinar:

Paradigmas

Paradigma HumanistaParadigma Científico

Programa de PesquisaFormalista

Progama de PesquisaFuncionalista

Análise do Discurso Teoria da Enunciação

Esse quadro expressa uma proposta epistemológica de distribuição dos paradigmas de abordagem do objeto linguagem. Ele é, portanto, or-togonal às divisões em áreas de pesquisa que constituem a linguística atual. Assim, é possível ser um pesquisador em semântica na vertente funcionalista, ou ser um pesquisador em semântica adotando o para-digma formal, ou estudar o significado a partir do paradigma subjeti-vista, como é o caso da semântica da enunciação. O mesmo ocorre com as áreas mais interdisciplinares, como a sociolinguística, a aquisição da linguagem, a linguística do texto, a neurolinguística, entre outros. É pos-sível pesquisar em aquisição da linguagem adotando um viés formalista, ou um viés funcionalista, ou mesmo adotar uma visão subjetivista para a aquisição da linguagem, como ocorre nas abordagens da aquisição de cunho psicanalista. As áreas de investigação ou disciplinas específicas se ancoram embaixo dos paradigmas que propomos, e os paradigmas devem ser encarados como um conjunto de métodos, de perguntas e de respostas possíveis. Não seria incorreto dizer que o tipo de investigação (método), o tipo de pergunta e resposta que norteiam o trabalho de um pesquisador que estuda o significado sob o paradigma humanista é diferente daqueles que norteiam o trabalho de alguém que investiga o significado no seio do paradigma funcional.

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Filosofia da Linguística

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Como qualquer forma de divisão, a que apresentamos anteriormente

deixa uma quantidade enorme de diferenças de lado, salienta seme-

lhanças que nem todos concordariam em salientar e trata a “divisão de

trabalho” do estudo dos fenômenos linguísticos de uma maneira envie-

sada, além de deixar de traçar outras relações possíveis. Por exemplo, o

programa funcionalista pode se combinar com o paradigma subjetivis-

ta. Um exemplo de mesclagem de paradigmas é a sociolinguística para-

métrica, que conjuga a visão gerativista com a abordagem funcionalista

quantificacional. Dessa perspectiva, a divisão que apresentamos ante-

riormente deve, portanto, ser tomada como uma maneira de iniciarmos

uma reflexão sobre os paradigmas epistemológicos atuais da linguística.

Por mais críticas que possam ser tecidas ao esquema acima, esperamos

que ele possa ser, pelo menos, uma primeira aproximação aos paradig-

mas e programas de pesquisa da linguística. A partir dele, convidamos

o leitor a pensar em organizações que lhe pareçam mais interessantes

e a fornecer argumentos a favor de seu esquema. Afinal, assim como

para a construção da ciência e de suas hipóteses, qualquer posição em

filosofia da linguística deve ser embasada teórica e empiricamente.

Nosso interesse mais imediato aqui – por, já dissemos, motivos de deformação profissional – será o paradigma científico. Dentro desse ramo dos estudos linguísticos, apresentaremos uma primeira caracte-rização de que chamamos de “programa de pesquisa formalista” e “pro-grama de pesquisa funcionalista”. Durante um tempo, foi moda discutir os limites entre ambos os programas, suas ambições e qual a relação de um com o outro. Nessas discussões, como acontece muitas vezes, é possível encontrar autores que se situam em diferentes pontos de um vasto espectro de possibilidades: há autores que advogam que os dois programas são fundamentalmente incompatíveis e que apenas um deles pode estar correto – como é o caso de George Lakoff em relação ao ge-rativismo; ele entende que o programa da linguística cognitiva, de viés funcionalista, opõe-se radicalmente ao programa gerativo, formalista e não há como colocá-los para conversar. Há, no entanto, autores que veem os dois programas como complementares, cada qual contribuindo para a iluminação de um tipo de fenômeno linguístico – como parece

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Capítulo 06Os paradigmas de abordagem do objeto linguagem

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ser o caso exemplificado por alguns trabalhos de Steven Pinker; e há ainda autores que consideram que ambos os programas acabarão che-gando a um mesmo lugar, revelando um mesmo conhecimento, ao fim e ao cabo, sobre a linguagem humana. Como já dissemos, um casamento particularmente frutífero dos paradigmas acima pode ser encontrado na chamada sociolinguística paramétrica, que, como diz o próprio nome, é uma combinação da pesquisa em sociolinguística, fundamentalmente quantitativa e com base em levantamento de ocorrências, com a pro-posta paramétrica da gramática gerativa. Houve muita discussão sobre a viabilidade epistemológica desse casamento que o leitor interessado pode consultar. Nos capítulos a seguir, tentaremos entender o que signi-ficam atualmente os termos “formalismo” e “funcionalismo” no âmbito da linguística para que você, de posse de conhecimentos mais aprofun-dados, possa também chegar às suas próprias conclusões sobre qual é a relação, ou qual é a melhor maneira de descrever a relação, entre o pen-samento funcionalista e o pensamento formalista. A grande diferença, como veremos, é que, para o formalista, há uma primazia da forma, da estrutura da linguagem, ao passo que o funcionalista privilegia a função da linguagem. Forma e Função. Feito isso, apresentaremos as caracterís-ticas principais do paradigma humanista, e recomendamos fortemente a leitura de livros da área da Análise do Discurso.

Um bom começo são os artigos de Tarallo e Kato (1989).

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Capítulo 07O que é o formalismo na linguística?

85

7 O que é o formalismo na linguística?

Em um texto já nem tão recente, Pires de Oliveira (2004) chama a atenção para três dos principais usos que se faz dos termos “formalismo” e derivados (“formal”, “formalista”) na linguística atual, que devem, se-gundo a autora, ser distinguidos:

formal-S: 1) a acepção de formalismo que chamamos de formal-S foi (e ainda é, infelizmente) bastante proeminente nas discus-sões sobre linguística e, grosso modo, equivale formalismo à teoria gerativa, ou seja, na acepção formal-S fazer linguística formal é trabalhar dentro do modelo da gramática gerativa; por isso o “S” em formal-S nos lembra “sintaxe”;

formal-C:2) essa acepção tem a ver com o tipo de teoria e mode-lo científico em questão. Podemos dizer que qualquer teoria é formal se ela cumprir dois requesitos: (i) possuir uma metalin-guagem arregimentada na qual expressa suas hipóteses e (ii) ser refutável ou verificável; assim o “C” em formal-C nos lem-bra “ciência” ou “científico”. Essa acepção recobre o paradig-ma científico como um todo, englobando tanto o formalismo quanto o funcionalismo;

formal-E:3) a última acepção de formalismo tem a ver com a estrutura do fenômeno analisado, e aqui o “E” em formal-E lembra “estrutura”. Ou seja, por trás da acepção formal-E está a ideia de que é possível explicar um determinado fenômeno através da estrutura que o possibilita, do meio através do qual ou no qual ele ocorre ou se revela; em suma, sua forma, que é dada pelo mundo. O mundo, nesse sentido, exibiria uma estru-tura formal. É nesse sentido que Galileu afirmou que a nature-za é matemática: a sua estrutura é matemática.

Como terá notado o leitor, cada uma das acepções de “formal” apresen-

tadas anteriormente é bastante diferente das outras e conta com uma

história independente. Por exemplo, formal-S é algo que pode ocorrer

A gramática gerativa surgiu na década de 1950 com a publicação da Syn-tatic structures, de Noam Chomsky. Sua principal característica é entender que a mente/cérebro é modular e que há um mó-dulo específico para o pro-cessamento das línguas naturais, a faculdade da linguagem. Postula-se que a sintaxe é um compo-nente autônomo, com um processamento específico e é central. Além disso, o gerativismo preconiza que a linguagem é inata.

Dizemos que uma lin-guagem é arregimentada quando ela é totalmente definida internamente e é explícita (i.e., livre de ambiguidades, vagueza e imprecisões). Uma lingua-gem lógica, como o Cál-culo de Primeira Ordem, é um exemplo desse tipo de linguagem.

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Filosofia da Linguística

86

apenas no âmbito da linguística, mas formal-C e formal-E podem ser

encontrados em outras ciências. As chamadas ciências naturais, como

a física e a química, são todas formais-C e, em algumas formulações, são

também formais-E.

Seria uma tarefa deveras interessante, mas também extremamente complexa, descobrir as origens por trás das ideias de formal-C e for-mal-E. A ideia de que a estrutura pode explicar os fenômenos observa-dos pode ser encontrada já nos filósofos pré-socráticos. Por sua vez, a ideia de que uma teoria científica deve contar com uma metalinguagem e ser verificável, apesar de também antiga, ganhou muita saliência com as inúmeras tentativas de vários filósofos do final do século XIX e come-ço do século XX de delimitar a ciência de outros tipos de conhecimento, como vimos na unidade A deste livro. Aliás, a própria ideia de verifi-cabilidade, postulada por Popper em seus textos, é fruto desse debate e deu todo um corpo de doutrina para o conceito de formal-C.

Dissemos que igualar, nos limites da linguística, formal-S com formal-C ou formal-E é um erro, e nossa principal razão é que há mais disciplinas formais em linguística do que a teoria gerativa, além do fato de que algumas dessas disciplinas formais serem mais antigas do que o gerativismo. Vale a pena ficar atento: é um erro confundir os estudos formais em linguística com a teoria gerativa. É difícil estabelecer pre-cisamente as origens dessa confusão, mas podemos notar dois pontos aqui: (i) a teoria gerativa exemplifica excelentemente as outras duas acepções de formal, o formal-C e o formal-E; e (ii) via-se, na teoria gerativa, o inimigo comum de todas as teorias que não eram formais-C ou formais-E, assim era fácil identificar o que era fazer formalismo: bastava declarar-se gerativista.

Note, porém, que a teoria gerativa, apesar de ser de fato formal-C e formal-E, carrega postulados que somente ela possui, como a primazia ou centralidade da sintaxe. Se olharmos para outra disciplina formal-C e formal-E em linguística, como a semântica formal das línguas naturais, veremos que ela não partilha (e não precisa partilhar) da centralidade da sintaxe, assim ela automaticamente pode ser considerada não gerativa, mas

Um exemplo de gramá-tica formal-C, mas não

formal-S, é a gramática categorial que, embora

tenha surgido com os lógi-cos poloneses na década de 1930, principalmente com o trabalho de Kazi-mierz Ajdukiewicz, teve,

nas pesquisas de Richard Montague, na década

de 1970, o seu principal divulgador.

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Capítulo 07O que é o formalismo na linguística?

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nem por isso é menos formal. Aliás, a semântica formal tem suas origens na filosofia analítica e na lógica, e sua história é muito mais antiga do que a linguística enquanto disciplina e mais ainda do que a teoria gerativa.

Pensando em termos tipológicos, pode-se dizer que somente a te-oria gerativa é formal-S, formal-C e formal-E – o que apenas mostra como a acepção formal-S é indevida, porque só serve para caracterizar o gerativismo. A semântica e a pragmática formais, por exemplo, são formais-C e formais-E, assim como a física, a química, a biologia etc. e podem ou não adotar uma sintaxe gerativa. Para alguns filósofos, dis-ciplinas como a matemática e a lógica seriam apenas formais-E; é a ideia de formal-E que investigaremos a seguir.

Tipologia de formalismos

Formal-S + Formal-C + Formal-E: teoria gerativa

Formal-C + Formal-E: ciências naturais, semântica formal, gramática

categorial

Formal-E: matemática, lógica

O que significa exatamente formal-E? O que quer dizer que pode-mos explicar certos fenômenos através das estruturas que possibilitam ou em que se dão esses fenômenos? Nosso debate será, obviamente, no âmbito dos estudos linguísticos; vejamos, portanto, o que os linguistas têm a dizer sobre isso. Em sua participação na mesa “Formalismo vs. Funcionalismo”, Borges Neto (1997, p.17, grifos nossos) apresenta a se-guinte passagem:

O que caracteriza então o formalismo? Creio que a perspectiva forma-

lista pode ser adequadamente caracterizada pela priorização que se dá

ao estudo da linguagem humana enquanto “linguagem”. Os formalistas

estudam as línguas naturais para entendê-la enquanto uma linguagem,

isto é, enquanto um conjunto de formas que se relacionam entre si

numa sintaxe, que se relacionam com objetos do mundo (mundo “ob-

jetivo” ou mundo “mental”) numa semântica, e que servem para que os

falantes “digam coisas”, expressem seus “significados” (pragmática). Algu-

mas teorias restringem-se aos aspectos sintáticos (teoria chomskiana,

por exemplo), outras abordam também os aspectos semânticos e prag-

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Filosofia da Linguística

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máticos. O que as reúne sob o rótulo de “formalistas” nada tem a ver com

essa delimitação de domínio, mas tem a ver com a compreensão dos

fatos linguísticos enquanto manifestações de um “objeto” autônomo,

que preexiste a esses fatos (seja como um objeto “mental”, como quer

Chomsky; seja com um objeto “abstrato”, como quer Montague), que é

a linguagem humana. Assim, desde que assumida essa perspectiva, é

possível uma semântica, uma pragmática, uma sociolinguística ou uma

psicolinguística formalista.

Como fica transparente pelos trechos por nós sublinhados, as ca-racterísticas fundamentais do formal-E na linguística são:

estudar a linguagem como um sistema autônomo, sem interfe-a)

rências externas, que se sustenta através de regras, e é compos-to por subsistemas (sintaxe, semântica, pragmática etc.); e

compreender os fenômenos ou fatos linguísticos observados b)

como manifestações da linguagem, ou seja, da estrutura lin-guística e de suas regras.

Além disso, é importante salientar que, para o formal-E, a estru-tura linguística preexiste aos fatos linguísticos, ou seja, só há fenôme-nos linguísticos porque há linguagem, porque há estrutura que permite engendrá-los.

Essas ideias todas ficam bem mais claras quando olhamos para o tipo de explicação que um formalista fornece para um dado fenôme-no. Como a explicação do formalista deve ficar restrita à estrutura, ele não pode apelar para usos, intenção do falante, intenção comunicati-va e nenhum outro expediente que leve em conta o que fazemos com a linguagem, justamente porque considera que a estrutura é anterior ao uso e aos fenômenos em questão, pois é a estrutura que os permite. Vamos abordar um fenômeno específico do ponto de vista formalista e ver qual é o tipo de explicação fornecida. Esse olhar mostrará o que um formalista considera uma boa explicação e revela o tipo de objetivo que ele tem em mente.

Tomemos como exemplo os determinantes, itens como ‘todo’, ‘al-gum’, ‘nenhum’, ‘um’, ‘o’, ‘pelo menos dois’, ‘no máximo três’, no âmbito da semântica formal. Como ressaltamos, para ser formal-C, é necessário

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Capítulo 07O que é o formalismo na linguística?

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contar com hipóteses verificáveis e também com uma metalinguagem, mas essa é uma característica do paradigma científico que engloba tam-bém o funcionalismo. A marca do formalismo é explicar a linguagem pela sua própria estrutura, sem apelar para fatores externos a ela.

A metalinguagem empregada pela semântica formal encontra-se na lógica e na matemática, em particular na teoria de conjuntos e na noção de função. Assim sendo, o ideal para o semanticista formal se-ria analisar o fenômeno em tela com tal metalinguagem, fornecendo hipóteses verificáveis. Como é possível fazer isso para o caso dos deter-minantes? Seriam eles passíveis de serem expressos através de noções lógico-matemáticas? A resposta dos semanticistas é “claro que sim”. A seguir, veremos como isso se dá.

Para a semântica formal, verbos intransitivos, alguns adjetivos e substantivos têm como denotação um conjunto: ‘correr’ denota o con-junto dos que correm; ‘homem’ denota o conjunto dos homens; ‘verde’ denota o conjunto das coisas verdes e assim por diante. Nosso objeti-vo então é saber qual é a denotação do determinante ‘todo’ na sentença abaixo, levando em conta suas condições de verdade:

(65) Todo homem corre.

Intuitivamente, quando a sentença (65) é verdadei-ra? Ora, ela é verdadeira se tudo aquilo que for homem correr, ou seja, para que (65) seja verdadeira, se algo é homem, então esse algo corre, ou ainda, sendo (65) ver-dadeira, deve ser o caso que não há algo que seja homem e que não corra. Lembrando que tanto ‘homem’ quanto ‘correr’ denotam conjuntos, podemos representar grafica-mente as condições de verdade dessa sentença através do diagrama apresentado ao lado.

O que temos é que o conjunto dos homens H está contido no con-junto dos que correm C: todos os membros do conjunto H são membros do conjunto C. Então o que ‘todo’ expressa? Expressa a relação de conti-nência (indica por ⊆): o conjunto H está contido em C (H ⊆ C). Se essa explicação estiver correta, podemos então imaginar que determinantes, como ‘todo’, denotam relações entre conjuntos, independentemente de

Seria interessante você voltar ao livro de Se-mântica para reto-mar alguns dos con-ceitos que usaremos.

Conjunto doshomens ou H

Conjunto das coisasque correm ou C

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Filosofia da Linguística

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onde eles ocorram na sentença. Além disso, devemos esperar que os ou-tros determinantes também denotem relações entre conjuntos: essa é uma das previsões que a hipótese de que determinantes denotam rela-ção entre conjuntos faz. Para verificá-la, devemos analisar, nos moldes de (65), as sentenças abaixo, com os determinantes em itálico:

(66) Algum homem corre.

(67) Nenhum homem corre.

(68) Pelo menos dois homens correm.

(69) No máximo três homens correm.

O primeiro passo da análise é estar seguro sobre as condições de ver-dade das sentenças em questão. Uma primeira possibilidade seria que:

a sentença (66) é verdadeira se há pelo menos um homem que Ӳcorre; em termos de conjuntos, há pelo menos um elemento que tenha ao mesmo tempo as propriedades de correr e ser homem, ou seja, esse indivíduo pertence ao mesmo tempo ao conjunto dos homens e dos que correm. Isso é o mesmo que afirmar que a relação de intersecção entre os conjuntos H e C não é vazia;

a sentença (67) é verdadeira se não há homem que corra; em Ӳtermos de conjuntos, não há elemento que seja ao mesmo tem-po homem e corre, ou seja, a intersecção entre os conjuntos H e C é vazia;

a sentença (68) é verdadeira se há no mínimo dois homens que Ӳcorrem; em termos de conjuntos, há no mínimo dois elementos que sejam ao mesmo tempo homem e corre, ou seja, a intersec-ção entre os conjuntos H e C tem no mínimo dois elementos;

a sentença (69) é verdadeira se não há mais do que três ho- Ӳmens que correm; em termos de conjuntos, não há mais que elementos que sejam ao mesmo tempo homem e corre, ou seja, a intersecção entre os conjuntos H e C não tem mais do que três elementos.

Sugerimos que você reto-me o livro de Semântica a

fim de rever conceitos, tais como o de ‘condições de

verdade’.

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Capítulo 07O que é o formalismo na linguística?

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Podemos representar essas intuições graficamente como abaixo, se-guidas de sua notação em teoria de conjuntos.

C67

H

69

H C

|H C|

H C

66

68

H C

H C

|H C|

H C

C

Ainda que bastante superficial, a explicação que apresentamos pode ser usada para ilustrar os conceitos de formal-C e formal-E. A hipótese de que determinantes denotam relação entre conjuntos se conforma ao conceito de formal-C porque

é verificável: basta encontrarmos um determinante que não a)

denote uma relação entre conjuntos para refutá-la ou basta en-contrar um uso de um determinante em particular, ‘todos’, por exemplo, que não estabeleça uma relação entre conjuntos;

faz previsões: se algo é determinante, então deve denotar rela-b)

ções entre conjuntos; se ‘todos’ indica inclusão de conjuntos, ele deve fazer o mesmo em todos os contextos em que ele aparecer;

se dá através de uma metalinguagem elaborada e robusta: a te-c)

oria de conjuntos.

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Filosofia da Linguística

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Essa hipótese é formal-E porque encerra sua explicação apenas à estrutura linguística: dado que certos itens denotam conjuntos, outros itens denotam relações entre conjuntos – trata-se de algo da estrutura da linguagem. Em momento algum se recorre a fatores externos à lin-guagem. É essa característica que torna a semântica formal um projeto formalista, e não funcionalista.

O pequeno e superficial exemplo que acabamos de ver ilustra o tipo de preocupação e o tipo de solução com que lidam os formalistas. A ex-plicação formal, via de regra, lança mão de analogias com a metalingua-gem lógico-matemática empregada pelo formalista e tem por objetivo último encontrar princípios simples e norteadores que possam dar con-ta de uma variedade a princípio não relacionada de fenômenos. Esses fenômenos, sejam eles quais foram, têm sempre uma relação bastante estreita com a estrutura da língua.

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Capítulo 08O que é o funcionalismo na linguística?

93

8 O que é o funcionalismo na linguística?

Obviamente, não é simples definir um programa de pesquisa, seja ele em linguística, seja em qualquer outra ciência. As razões para tanto são variadas e de diversas ordens: há muitos pesquisadores com inte-resses diferentes abarcados sob um mesmo rótulo; há muitas áreas de atuação para pesquisa; há inúmeros critérios possíveis de serem mo-bilizados para a definição de um programa de pesquisa e, em geral, é muito difícil saber qual deles, ou qual subconjunto deles, é necessário e suficiente para sua delimitação. É por essas e outras razões que muitas vezes a definição se dá pela negativa, ou seja, um programa de pesquisa é tudo – ou quase tudo – que os outros não são. Já dissemos que o que caracteriza o formalismo é a crença de que a linguagem se explica por sua própria estrutura; por isso, não é necessário recorrermos a fatores externos para explicá-la.

Sobre a questão da unidade do funcionalismo e sobre o que há de comum entre todas as abordagens consideradas funcionalistas, Eliza-beth Bates – em forma de brincadeira – pondera o seguinte: “o funciona-lismo é parecido com o Protestantismo: um grupo de seitas antagônicas que apenas concordam com a rejeição ao Papa” (apud NEWMEYER, 2000, p. 13). O Papa, no caso, obviamente era Chomsky, e o tipo de lin-guística por ele advogado, que, como vimos anteriormente, teve tanta representatividade a ponto de ter sido – e, erroneamente, ainda é – con-siderada como sinônimo de linguística formal. Apesar da afirmação de Bates e da dificuldade de definir funcionalismo, é possível avançar algu-mas propostas mais propositivas, que tratam de definições não apenas pela negativa.

Como ressalta Pezatti (2004), as principais ideias e motivações do funcionalismo em linguística são:

ao passo que a explicação formal dá-se a partir da estrutura a)

da língua, a explicação funcional “encontra bases explanatórias na função que exercem as unidades estruturais e em processos diacrônicos recorrentes” (PEZATTI, 2004, p. 168);

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Filosofia da Linguística

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as explicações funcionais devem ter por base a relação entre b)

linguagem e uso, ou no contexto social da linguagem, ou ainda no contexto sociointeracional;

as regras ou padrões linguísticos devem ser consideradas como c)

instrumentos ou meios para os objetivos comunicativos dos in-divíduos;

a linguagem “não é um fim em si mesmo mas [...] um requisito d)

pragmático da interação verbal” (PEZATTI, 2004, p. 168).

A partir desse pequeno conjunto de característica, já é possível

vislumbrar vários e profundos contrastes entre as abordagens fun-

cionalista e formalista. Talvez a principal tenha a ver com o que se

considera como objeto de análise: o formalista se interessa pela es-

trutura da língua e, para tanto, deve pressupor a existência da lín-

gua enquanto um objeto autônomo, que tem o seu próprio modo

de ser; já o funcionalista se interessa pela linguagem enquanto ins-

trumento de interação e comunicação – a língua aqui é um meio

para nossas intenções comunicativas e sua estrutura, seja ela qual

ou como for, nada mais é do que o resultado de nossa interação. O

que se pretende estudar é a linguagem em interação. Em outras pa-

lavras, e muito grosso modo, a língua e sua estrutura que é sempre

flexível porque dependente da situação de uso são o modo como

os humanos resolveram o problema da comunicação e elas não

existem fora dessa trama de interações. Note que, para um forma-

lista, esse tipo de consideração sequer entra em jogo: ele não está

interessado em comunicação, mas sim na estrutura da língua en-

quanto um objeto em si. Já para o funcionalista simplesmente não

há a língua em si, mas o sistema em interação. Se há uma estrutura

– e para alguns mais radicais não há –, essa estrutura é contextual.

Caberia aqui uma pergunta metafísica em relação à língua e sua estrutura sobre quem está correto (ou mais correto), o formalista ou o funcionalista. Como o leitor já deve estar acostumado, esse tipo de per-gunta não tem uma única resposta e, na grande maioria dos casos, sim-plesmente não tem resposta. Adotaremos aqui uma visão mais “aberta” e

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Capítulo 08O que é o funcionalismo na linguística?

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diremos que a língua é tudo isso, ou, melhor dizendo, deixa-se descrever dessas duas e de outras formas: ela tem uma estrutura – assunção da qual talvez só os funcionalistas mais radicais abririam mão – e é sobre ela que os formalista se debruçam, e ela é um instrumento ou ferramen-ta interacional perfeitamente adaptada a tanto, e é sobre essa faceta da linguagem que se debruçam os funcionalistas. Mas vale a pena insistir: a estrutura não é a mesma para o funcionalista e o formalista. Para o formalista, a estrutura é autônoma; enquanto que o funcionalismo a vê como resultado da interação.

Antes de olharmos qual é o tipo de problema que um funcionalis-ta investiga, é necessário entendermos melhor o conceito de “função” e como ele é entendido no âmbito dos estudos linguísticos funcionalistas. Labov (1987) oferece uma organização na qual encontramos três noções diferentes para “função”, arrolados por nível de abrangência.

A primeira dessas noções tem a ver com o sistema interno de opo-sições estruturais de uma língua, muito próximo do sistema de oposi-ções saussureano. Os elementos da língua se organizam e se estruturam em relações de oposição e substituição com outros elementos devido às funções que desempenham. Assim /p/ se opõe a /b/ porque tem como função distinguir ‘pata’ de ‘bata’.

A segunda noção diz respeito à semântica e refere-se à tendência linguística universal de que informações semanticamente relevantes são retidas na estrutura superficial; nesse caso, a noção de função tem a ver com a relação entre uma forma e seu significado referencial. Por exem-plo, quando pronunciamos ‘Clarice Lispector’, estamos falando sobre uma autora brasileira já falecida. Finalmente, há uma noção de função que tem a ver com motivações discursivas e a encontramos na organi-zação das informações de uma dada sentença, por exemplo, na escolha, pelo falante, do que é considerado informação velha e informação nova. Nessa última acepção, costuma-se falar em “estrutura informacional da sentença” ou “perspectiva funcional da sentença”. A primeira acepção de função relaciona-se com unidades como fonemas e morfemas; a segun-da, com palavras e expressões; e, finalmente, a terceira, com sentenças e a estrutura do discurso. Essa última nos permite explicar porque a senten-ça (70b) não pode ser resposta para a sentença (70a), mas (70c) pode; a

William Labov é consi-derado o pai da socio-linguística. Suas obras mostraram que há vários dialetos do inglês e que esses dialetos indicam grupos sociais e relações de poder.

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maiúscula indica acento frasal, ou seja, (70b) é pronunciada com ênfase em “MARIA”, e (70c) é pronunciada com ênfase em “JOÃO”:

70. a) Quem beijou a Maria?

b) O João beijou a MARIA

c) O JOÃO beijou a Maria.

É interessante notar como há intercâmbios entre os programas fun-

cionalista e formalista. A noção de agramaticalidade, que surgiu na

gramática gerativa, foi incorporada à linguística. Por outro lado, a

estrutura informacional, cujo estudo e descrição se iniciou no fun-

cionalismo, é hoje objeto de estudos também dos gerativistas.

Dado que na perspectiva funcionalista a língua é o meio de comu-nicação e sua forma é resultado de nossas necessidades comunicativas, o que mais pesa em uma explicação funcionalista, ou pelo menos o que norteia tais explicações, é o componente discursivo-pragmático. Desse modo, como ressalta Pezatti (2004, p. 171), uma das tarefas das análises funcionalistas é “[...] revelar as propriedades das expressões linguísticas em relação à descrição das regras que regem a interação verbal”. Não é, contudo, apenas à pragmática, entendida em sentido amplo também como práxis social, que uma análise funcionalista deve se adequar; é necessário que a análise apresente adequação psicológica e tipológica. A adequação psicológica se dá tanto em termos de modelos de produção quanto de compreensão da linguagem e tem como tarefa evitar uma ci-são muito grande entre as explicações e as hipóteses psicológicas sobre a linguagem. Por sua vez, a adequação tipológica diz respeito à relação entre uma língua e sua família linguística e tem por objetivo fazer com que explicações semelhantes sejam aplicadas a línguas semelhantes.

Devido a essa clara diferença de enfoque, o tipo de problema de que trata o funcionalista e suas respostas são diferentes do caso do formalis-ta. E o mesmo problema, por exemplo, foco (informação nova) e tópico (informação velha), recebe diferentes interpretações. O gerativista en-tende que essas noções, embora discursivas, são geradas pela estrutura, enquanto o funcionalista as explica em termos de discurso.

Sobre família linguísti-ca, sugerimos que você retome o Capítulo 1 do livro História da língua,

de Rodrigo Gonçalves e Renato Basso.

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Capítulo 08O que é o funcionalismo na linguística?

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Do lado do funcionalismo, também não encontraremos facilmente um consenso ou uma definição que dê conta nem de todas as escolas abarcadas sob a diretriz funcionalista, nem do próprio conceito de fun-ção, como já vimos em Labov. Essa multiplicidade de compreensões do que vem a ser função aparece também no texto de Pezatti (2004). Na al-tura da página 151, lemos que: “[...] função pode designar as relações (a) entre uma forma e outra (função interna), (b) entre uma forma e seu sig-nificado (função semântica) ou (c) entre o sistema de formas e seu con-texto (função externa)”. Note que nessa perspectiva há também um lugar para as relações internas ao sistema. Apesar das discrepâncias aparentes entre as definições (a), (b) e (c) acima, o funcionalismo, em sua maneira de explicar os fenômenos linguísticos, é constituído por um corpo de teses muito coeso, compartilhado por todas as escolas que o compõem:

[...] toda a explicação linguística deve ser buscada na relação entre lin-

guagem e uso, ou na linguagem em uso no contexto social [...] explicar

o fenômeno linguístico com base nas relações que, no contexto sócio-

interacional, contraem falante, ouvinte e a pressuposta informação

pragmática de ambos. [...] o enfoque da linguagem como um instru-

mento de interação social tem por objetivo revelar a instrumentalidade

da linguagem em termos de situações sociais. [...] a linguística funcional

[...] encontra bases explanatórias na função que exercem as unidades es-

truturais e em processos diacrônicos recorrentes que têm, em sua maio-

ria, motivação funcional. A linguagem é vista como uma ferramenta cuja

forma se adapta às funções que exerce e, desse modo, ela pode ser ex-

plicada somente com base nessas funções, que são em última análise,

comunicativas. (PEZATTI, 2004, p. 168).

À diferença do que notamos quando tratamos do formalismo, o obje-to científico “língua” ou “linguagem”, na concepção funcionalista, entendi-do em sentido amplo, não é “fechado” ou autônomo; antes, a língua existe em função de e para servir a, por assim dizer, os falantes. Nas palavras de Camacho (1994, p. 34 apud BORGES NETO, 1997, p. 17, grifos nossos):

As expressões linguísticas não são, assim, objetos formais abstratos; ao

contrário, suas propriedades são sensíveis às determinações pragmá-

ticas da interação verbal. [...] são os usos da linguagem que modelaram,

durante milhares de gerações, o sistema lingüístico, que, por isso, não é

arbitrário. O modo como é organizado é funcional porque se desenvolveu

para satisfazer as necessidades humanas.

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Filosofia da Linguística

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Do lado dos funcionalistas, não há um sistema autônomo, fechado; a língua não é um fim em si mesma, mas serve às necessidades huma-nas. Se a língua é moldada pelo uso e esse uso satisfaz as necessidades humanas, nada mais natural do que imaginar que, quando alguém diz algo, diz com algum propósito e, mais ainda, que esse propósito deve ser levado em conta em qualquer explicação linguística e deve, inclusive, fazer parte do que seja o “objeto língua”; isso tudo parece constituir a abordagem funcionalista. Assim, no modelo funcionalista, “os usos da linguagem que modelaram [...] o sistema linguístico”. É por isso que o gerativismo e o funcionalismo contam histórias diferentes sobre como surgiu a linguagem nos humanos.

Para o gerativismo, a linguagem é única nos seres humanos. Ne-nhum outro animal possui esse sistema, embora vários animais tenham sistemas de comunicação – as abelhas, os golfinhos, por exemplo. Há, no entanto, uma ruptura qualitativa entre os humanos e os outros animais, porque a linguagem humana, nos diz Chomsky, não surgiu da necessi-dade de comunicação, embora ela tenha servido para isso. Ela surgiu por acaso, fruto, provavelmente, de mutações genéticas que podem ser expli-cadas evolutivamente. A questão é sem dúvida muito controversa, mas serve não apenas como emblema para notarmos a diferença entre os for-malistas e os funcionalistas, mas para mostrar que essas diferenças entre esses programas de pesquisa se estendem por áreas afins. Embora possa parecer estranho afirmar que a linguagem surgiu por acaso, é preciso ter em mente que, para Chomsky, a linguagem é um sistema sintático recur-sivo, um “órgão mental”, e não um sistema de comunicação ou de nomen-clatura. Tendo em vista essa concepção, parece que Chomsky não está de todo errado, como podemos ler no fragmento a seguir, retirado do livro Uma breve história da linguagem, de Steven Roger Fischer (2009, p. 64):

A linguagem humana moderna nasce através da sintaxe, algo que se

tornou tão absolutamente essencial à humanidade, mas que falta às

“linguagens” não humanas na natureza: regras que governem o modo

como palavras e elementos de frases e sentenças são conectados de

modo a produzir sentido.

Os hominídeos primitivos, talvez como resultado de uma mutação ao

acaso que gerou uma reorganização cerebral, tornaram a sintaxe o cen-

tro de sua linguagem vocal única.

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Capítulo 08O que é o funcionalismo na linguística?

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Outro momento em que aparece claramente a oposição entre gera-tivismo e funcionalismo foi durante a descoberta dos chamados neurô-nios do espelho, que são responsáveis pela empatia, o fato de que reco-nhecemos no outro uma pessoa como nós mesmos. Essa descoberta foi tomada pela linguística cognitiva como sendo uma evidência irrevogá-vel de que o gerativismo estaria errado.

Sabemos que a empatia é necessária para termos sistemas de comu-nicação. A descoberta dos neurônios-espelho em primatas foi tomada como evidência clara, embora ainda não tenhamos comprovação, não apenas de que eles também existem nos humanos, mas também que eles seriam os responsáveis últimos por nossa capacidade de comunicação, negando, portanto, o modelo gerativista. Mesmo supondo-se que eles existam nos humanos, para o gerativismo, sua existência nada diz sobre a linguagem, porque nesse programa de pesquisa a linguagem é um mó-dulo isolado, com funcionamento específico para o processamento lin-guístico. Os neurônios de espelho são parte do processador central, por-tanto nada dizem sobre a linguagem. Esse caso ajuda a mostrar como os fatos são interpretados diferentemente num programa e no outro.

Adendo Histórico

O estudo científico da língua e linguagem teve início na Índia – a

gramática do sânscrito elaborada por Panini em oito volumes, de-

nominada Astadhyayi, data de 600 e 300 a.C. – e na Grécia com

os escritos de Aristóteles e Platão no primeiro milênio a.C.. Como

já salientamos, o nosso recorte é epistemológico e podemos ver a

postura logicista e a funcionalista através desse longo empreendi-

mento que busca entender as línguas humanas. A Gramática de

Port Royal, por exemplo, é uma gramática científica de postura lo-

gicista; ao passo que a reflexão dos comparatistas se enquadra no

funcionalismo. Ferdinand de Saussure, considerado o pai da linguís-

tica científica contemporânea, pode ser considerado um formalista,

porque sua metodologia buscava estudar as línguas nas suas rela-

ções internas de paradigma e sintagma. É dele a formulação de que

a linguagem é uma álgebra. Embora Saussure tenha, então, tomado

Claramente de tendência funcionalista, a linguís-tica cognitiva surgiu na década de 1980, com a publicação de Metaphors we live by (Metáforas da vida cotidiana), de George Lakoff e Mark Johnson.

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Filosofia da Linguística

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a linguagem como um sistema autônomo, ele também recortou

o objeto da linguística como sendo a língua falada. A primazia da

língua falada levou autores que participaram do Círculo de Praga

– entre eles Nikolai Trubetzkoy e Roman Jakobson – a refletirem

sobre os usos e as funções da linguagem, sendo nesse sentido re-

presentantes do funcionalismo. Talvez seja por isso que Saussure é

considerado o pai da linguística: ele abriu caminho tanto aos for-

malistas quanto aos funcionalistas. (Para uma retomada da história

da linguística, reveja o seu livro de História dos estudos linguísticos.)

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Capítulo 09O paradigma humanista

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9 O paradigma humanistaO que viemos chamando de paradigma científico obviamente não

esgota tudo o que podemos saber sobre esse complexo fenômeno que são as línguas naturais e a linguagem humana. O paradigma científico faz um recorte específico do seu objeto de estudo e aplica a ele uma me-todologia particular; seu recorte separa tudo aquilo que faz parte do fe-nômeno da linguagem, os padrões e as regularidades, chegando assim a um sistema mais ou menos independente das interações comunicativas a depender do pesquisador ser mais formalista ou mais funcionalista. Em quaisquer das posições, a esse sistema é aplicado o método cientí-fico através do qual hipóteses são formuladas, verificadas, confirmadas ou refutadas, utilizando uma metalinguagem clara e precisa. Justamen-te porque foca nas regularidades que as línguas naturais apresentam, o paradigma científico abstrai tudo aquilo que é particular e pode fazer previsões, pois a estrutura tem certa estabilidade.

Não seria incorreto dizer que o paradigma humanista, ao mesmo tempo em que reconhece essa dimensão estrutural da linguagem, foca em aspectos diferenciados e a estrutura, quando muito, tem um papel de se-gundo plano. É interessante notar, do ponto de vista epistemológico, que deixar de lado aspectos ou dimensões de um dado objeto não só é algo legítimo como também necessário em qualquer empreitada que vise o conhecimento. Muitas vezes, injustamente, pesquisadores de uma dada vertente acusam outros de serem reducionistas, míopes, devido ao fato de olharem apenas para o que lhes interessa com relação a um dado objeto; ora, é exatamente essa “miopia” que permite o avanço do nosso conheci-mento: sem recortes, não há objeto e não há produção de conhecimento.

Assim como o paradigma científico em maior ou menor proporção

deixa de lado o que não tem a ver com a língua natural, o paradig-

ma humanista tem por objeto as dimensões socioideológicas dos

enunciados que um dado falante profere. A diferença de recorte

aqui é extremamente profunda e merece ser analisada com cuida-

do. Ao passo que o paradigma científico abstrai as particularidades,

incluindo os enunciados – diz-se que um formalista ou funcionalista

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Filosofia da Linguística

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analisa sentenças, ou seja, formas gerais possíveis de se realizar num

enunciado, o paradigma humanista analisa enunciados particulares

com grande ênfase em (i) quem produziu tal enunciado, (ii) as con-

dições históricas na qual o enunciado foi produzido (e pôde ser pro-

duzido), (iii) os chamados “efeitos de sentido” do enunciado, (iv) o

que o enunciado revela sobre o fundo ideológico de quem produziu

o enunciado, da sociedade em que ele foi produzido e de quem o

recebe, entre outros aspectos.

Se as investigações do paradigma científico, por se centrarem em pa-drões, podem fazer previsões, as investigações do paradigma humanista não podem, justamente devido ao caráter particular e “irrepetível” de seu objeto: cada enunciação é única, assim como cada enunciador e cada mo-mento histórico, portanto as análises serão sempre estudos de caso e não será possível construir uma teoria com poder preditivo. Como já adianta-mos na unidade A, do ponto de vista epistemológico, as explicações for-necidas pelo paradigma humanista se assemelham às explicações que são fornecidas por disciplinas como a História: não há teoria histórica que faça previsão, mas há interpretações melhores ou piores dos fatos históri-cos. Não fazer previsões não é nenhum demérito; pelo contrário, completa o vasto objeto de estudo que é língua natural. Além disso, não fazer previ-sões não significa que não haverá arcabouços conceituais, um ferramental explicativo que pode ser aplicado a cada novo caso. Como veremos a se-guir, com relação à análise do discurso de linha francesa, há todo um cor-po coeso de expedientes explicativos dos quais os analistas lançam mão.

Vamos ilustrar as várias noções que introduzimos rapidamente nos parágrafos anteriores e também o modus operandi do paradigma humanis-ta através da análise de exemplos. Mussalim (2000, p. 111) dá como exem-plo a análise da tirinha a seguir, extraída do jornal Folha de São Paulo:

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Capítulo 09O paradigma humanista

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Qual é a causa do humor dessa tirinha? Como mostra Mussalim (2000, p. 111-113), não basta ficarmos apenas na análise da estrutura linguística; essa análise é necessária, mas por si só não dá conta dos efei-tos de humor. Veja que a análise linguística entra apenas para esclarecer os efeitos de interpretação. Não há interesse em, por exemplo, elaborar uma teoria sobre o significado de ‘também’ e as estruturas de foco. Não é importante para a análise avaliar se ‘também’ carrega pressuposições e quais, não se quer apresentar uma análise desse item. O que interessa, do ponto de vista linguístico, é que há uma ambiguidade disparada pelo item ‘também’ da última fala em combinação com ‘minha noiva’ da fala imediatamente anterior, de modo que o último personagem pode estar dizendo que ele vivia fazendo sexo com a própria noiva, ou que ele vivia fazendo sexo com a noiva do amigo. Um formalista gostaria de entender como são geradas essas duas interpretações. O analista de discurso só precisa do fato de que há duas interpretações e que o efeito de humor está num fato social de que eles eram tão amigos que compartilhavam também a noiva e não linguístico:

Por que lemos essa tirinha como um discurso de humor? Devido às suas

condições de produção. Produzido para circular em uma sociedade em

que fazer sexo com a noiva de outro seria um comportamento bastante

fora dos padrões morais [...] a possibilidade [do personagem] ter feito

sexo com a noiva de seu amigo gera riso [...]. (MUSSALIM, 2000, p. 112).

É importante notar, também, que a estrutura de paralelismos na piada nos leva a ter como interpretação preferencial que se tratava de uma única noiva.

Fernandes (2008) dá como exemplo, entre outros, o uso dos termos ‘invasão’ e ‘ocupação’ no contexto de uma discussão sobre o Movimen-to Sem-Terra. Veja que um formalista, nesse caso, iria se interessar em explicar como são formados nomes a partir de verbos e se esses nomes mantêm a grade temática dos verbos ou não; mas é totalmente irrele-vante o que efetivamente essas palavras significam. Um analista do dis-curso fornece uma análise como nos moldes a seguir:

Tais substantivos são constantemente encontrados em reportagens e/

ou entrevistas que versam sobre os movimentos dos trabalhadores Sem-

Terra e revelam diferentes discursos que se opõem e se contestam. Em

torno do Sem-Terra, ocupação é empregado pelos próprios Sem-Terra,

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Filosofia da Linguística

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e por aqueles que os apoiam e os defendem, para designar a utilização

de algo obsoleto, até então não utilizado, no caso, a terra. Invasão, re-

ferindo-se à mesma ação é empregado por aqueles que se opõem aos

Sem-Terra, contestam-nos, e designa um ato ilegal, considera os sujeitos

em questão como criminosos, invasores (FERNANDES, 2008, p. 13).

Nesse exemplo, podemos ver como uma única ação ou aconteci-mento recebe nomes diferentes a depender de quem veicula tal ação e a escolha de ‘ocupação’ ou ‘invasão’ que revela “[...] ideologias que se opõem, revelando igualmente a presença de diferentes discursos, que, por sua vez, expressam a posição de grupos de sujeitos acerca de um mesmo tema” (FERNANDES, 2008, p. 13-14).

Tanto para o exemplo da tirinha quanto para o caso dos Sem-Terra, o objetivo da análise do discurso é depreender os “efeitos de sentido” produzidos por um dado item lexical ou estrutura linguística num dado momento histórico de uma sociedade. O mais importante é revelar as interpretações que escondem as posições ideológicas dos autores-falan-tes. Fernandes ilustra isso de modo bastante claro no trecho a seguir:

Assim, ocupação e invasão, nos discursos supracitados, vão além de seus

significados prescritos nos dicionários. Se observamos, por exemplo, a

significação de invasão para ambos os grupos de sujeito (os defensores

e contestadores do Sem-Terra) veremos que invadir tem sentidos dife-

rentes e peculiares para esses sujeitos. Esses sentidos, e não o significa-

do da palavra apenas, são produzidos em decorrência da ideologia dos

sujeitos em questão, da forma como compreendem a realidade política

e social na qual estão inseridos. (FERNANDES, 2008, p. 14).

Com essas duas rápidas análises, esperamos ter ilustrado alguns dos pontos principais que resultam e que são esperados de uma investi-gação feita no paradigma humanista. Conceitos como “condição de pro-dução” e “efeito de sentido” são, respectivamente, o que podem explicar um objeto de análise e o que deve ser explicado. Para produzir efeitos de sentido numa dada condição de produção, o sujeito está inserido e revela uma ideologia – que pode ser amplamente entendida como visão de mundo, mas que é comumente associada ao modelo marxista em que ideologia recobre as ideias que escondem relações de poder. Obviamen-te, para tanto, o analista deve investigar enunciados datados historica-mente, pois apenas esses enunciados materializados podem ter efeitos

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Capítulo 09O paradigma humanista

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de sentido como contraparte de uma dada ideologia. Mazière (2005, p.12) assim resume esse fato:

O discurso leva em conta o enunciado atestado, produzido no modo

segundo o qual essa relação frástica, ou um de seus termos, pode tomar

sentido por meio de uma discursivização datada e especificada [...].

Uma última noção de extrema importância para o paradigma hu-

manista é a de sujeito. É interessante notar que, para o paradigma

científico, pouco ou quase nada importa quem é o sujeito de uma

dada enunciação, entre outras razões, porque, nesse paradigma,

(i) o objeto de análise é um esquema sentencial ou de interação,

e não exatamente enunciados particulares; e (ii) o que interessa é

a estrutura (linguística), e não os efeitos de sentido causados por

uma dada ideologia. Se o sujeito da enunciação é alguém da clas-

se operária ou um representante de sindicato, uma mulher ou um

emigrante, um boia-fria, pouco importa, porque da perspectiva for-

malista todos irão atribuir a mesma interpretação à sentença ‘todos

os homens são livres’: há uma relação de inclusão entre o conjunto

dos homens e o dos livres. Já para a análise de discurso importa

quem profere esse enunciado e em que condições ele é proferido.

Sujeitos distintos produzem efeitos de sentido distintos.

Para a análise de discurso, o sujeito tampouco é a pessoa de carne e osso que produz um dado enunciado, mas o sujeito deve ser entendido de modo mais abstrato, como uma instanciação de um certo discurso: sujeitos são falados pelo discurso. Vejamos como Mazière define essa noção antes de traçarmos alguns comentários:

Referência obrigatória, o sujeito da AD [Análise de Discurso] é um “lugar

sujeito” em uma abordagem dessubjetivada. De fato, ele não pode ser

apreendido, a não ser no interior de cada uma das buscas do analista,

em função de seu desígnio interpretativo e de sua posição quanto à

língua (MAZIÈRE, 2005, p. 22).

A ideia de sujeito então é a de um “lugar de enunciação”, o sujeito não é exatamente uma pessoa, mas o representante de uma dada ideolo-gia – fala-se em “sujeito assujeitado”, e esse “assujeitamento” é justamente

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Filosofia da Linguística

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ser tomado por uma dada ideologia e falar por ela. Como para a AD não é possível um sujeito sem ideologia, quando se fala em sujeito, o que se considera, na verdade, é o fruto de um ser social que representa uma dada ideologia e fala por ela e/ou através dela.

Essa apresentação do paradigma humanista é extremamente su-

perficial e tem propósitos específicos, a saber, olhar para como suas

explicações funcionam. Recomendamos fortemente a leitura de li-

vros relacionados à Análise do Discurso.

Do ponto de vista epistemológico, como já adiantamos, o para-digma humanista não fornece previsões e nem pode ser caracterizado como uma teoria, mas sim como um corpo metodológico coeso, que lança mão de certa noções e conceitos. Esperamos que com os exem-plos analisados tenham ficado mais claras as razões da impossibilidade de se fazer teorias com poderes preditivos. O tipo de resultado que se espera também é diferente do que temos para o paradigma científico; no caso do paradigma humanista, o resultado da análise é uma interpre-tação do(s) fato(s) relevante(s) por parte do analista; é, em suma, uma hermenêutica que conta com os conhecimentos do analista que, quan-to mais versado for sobre a sociedade em que se dá um dado enunciado e em sua história, tanto mais balizada e reveladora será sua análise.

Outro ponto interessante a ser notado, do ponto de vista episte-mológico, é que a análise dos “efeitos de sentido” encontra na AD uma ferramenta muito boa, ou seja, a análise da ideologia por trás de e re-velada por um dado enunciado é muito bem analisada por um método interpretativo e talvez apenas por ele.

Leia mais!

BORGES NETO, José. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.

Este livro é, na verdade, uma coleção de ensaios sobre a ideia de linguística enquanto ciência, os limites e as relações da linguística com outras ciências e problemas internos da linguística que têm uma contraparte epistemoló-

HermenêuticaHouaiss (2009, não

paginado) define hermenêutica como:

“1 ciência, técnica que tem por objeto a

interpretação de textos religiosos ou filosófi-

cos, esp. das Sagradas Escrituras. 2 interpre-

tação dos textos, do sentido das palavras.

3 Rubrica: semiologia. teoria, ciência voltada

à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. 4. Rubrica:

termo jurídico. conjun-to de regras e princí-

pios us. na interpreta-ção do texto legal”.

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Capítulo 09O paradigma humanista

107

gica, ou seja, da filosofia do conhecimento. No livro de Borges Neto, você encontra praticamente todos os conceitos e as ideias que apresentamos aqui aplicados a problemas específicos.

ILARI, R.; PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. (1991) Considerações linguís-ticas sobre a gênese e o desenvolvimento de um fato científico: uma leitu-ra semântica de Ludwig Fleck. Boletim da ABRALIN, n. 12, p. 85-108.

Nesse texto os autores não apenas resenham o livro de Fleck sobre o desen-volvimento científico do conceito de sífilis, mas principalmente procuram mostrar como o modelo epistemológico apresentado pelo autor se aplica à linguística. É bom lembrar que o texto de Fleck é o substrato para as refle-xões de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas.

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. A linguística sem Chomsky e o método negativo. Revel, v. 8, n. 14, 2010.

Trata-se de um exemplo de análise em história da ciência usando o méto-do contrafactual. A autora se pergunta sobre as contribuições efetivas de Chomsky imaginando cenários em que esse autor não teria existido. Daí a metodologia contrafactual. A conclusão é que a contribuição original de Chomsky é o método negativo.

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Unidade DA linguística e outros saberes sobre a linguagem

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Capítulo 10A linguística e outras ciências

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10 A linguística e outras ciênciasJá lemos em Saussure que a linguagem é heteróclita e multiface-

tada, porque ela pode ser abordada a partir de diferentes pontos de vista, adotando-se diferentes metodologias. Essa constatação de Saus-sure pode ser entendida de duas maneiras: (i) a linguagem pode ser descrita a partir de paradigmas distintos, como vimos nas unidades anteriores; e (ii) é possível também estudar a linguagem levando em conta contribuições de outras áreas do conhecimento, chegando assim à relação da linguística com outras ciências; é esse segundo ponto que nos interessa neste capítulo.

De forma genérica, há uma correlação entre os paradigmas de pes-quisa já discutidos e as diferentes possibilidades de interação interdisci-plinar da linguística. O paradigma científico, quer na sua versão formal quer na funcional, tem uma interação mais próxima com as disciplinas ditas científicas, em razão de sua proximidade metodológica. Com os trabalhos de Chomsky, a biologia e mesmo a genética passaram a ser ciências com as quais a linguística dialoga; do lado funcionalista, há um diálogo interessante também com a psicologia experimental, que anali-sa fenômenos como atenção e percepção. A biologia entra, assim, tanto para o gerativismo, que é centrado no organismo do indivíduo, quanto para o funcionalista, cuja unidade de análise é a interação de organis-mos. No programa funcionalista, há tentativas ambiciosas de construir um modelo abrangente que possa dar uma explicação totalizadora para o humano, explicando de modo unificado tanto a interação biológica en-tre os organismos quanto a interação social entre eles. Esse movimento, se bem-sucedido, irá de certa maneira apagar a distinção entre ciências e humanidades, na medida em que essa será incluída naquela. Talvez a proposta mais acabada desse tipo de tentativa possa ser encontrada na linguística cognitiva, em particular naquelas que se ancoram na reflexão de pesquisadores como Humberto Maturana.

O paradigma científico, por sua própria constituição, busca a ve-rificação e a experimentação movido por suas previsões. Essa neces-sidade de testagem, no mundo real, vai ocorrer não apenas através da comprovação de hipóteses a partir de outros dados ou da intuição do

Confira, por exemplo, os escritos recentes de George Lakoff e Mark Johnson. A proposta da autopoesis aparece em Maturana e Varela (1984).

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Filosofia da Linguística

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falante, mas da investigação em outras áreas – como a neurologia – ou com instrumentais de outras áreas. É hoje em dia muito comum ava-liarmos hipóteses linguísticas utilizando testes psicolinguísticos. Antes de termos métodos experimentais eficazes e confiáveis, as hipóteses linguísticas sobre a (a)gramaticalidade de certas construções eram verificadas somente no confronto com as intuições do linguista e de alguns falantes. Uma vez de posse de métodos de testagens experimen-tais, mais sofisticados e confiáveis, podemos lançar mão desses méto-dos para verificar como os falantes respondem a certas construções; em outras palavras, é possível medir, para um número cada vez maior de casos, a aceitabilidade ou não dos falantes. Podemos, em laborató-rios mais sofisticados, também avaliar ondas cerebrais e sua relação com sentenças gramaticais. Ou, de posse de um detector, avaliar os movimentos oculares dos falantes. Sabemos que, quando um falante se depara com uma sentença agramatical, ele retorna para ler, ele demora mais tempo para interpretar.

Essa interface entre a teoria linguística, que, inicialmente apresen-

ta hipóteses elaboradas a partir do estudo e intuição de um dado

linguístico, e a psicologia experimental não só estabelece um diálo-

go extremamente profícuo entre essas duas disciplinas, mas torna

quantificável uma intuição, que agora ganha contornos mensurá-

veis. Além disso, o estabelecimento de tal diálogo é uma via de mão

dupla, porque não apenas as hipóteses linguísticas podem ser veri-

ficadas através de técnicas experimentais, como também o domínio

de tais técnicas moldará a forma das hipóteses, pois é sempre mais

interessante formularmos uma hipótese que pode ser empiricamen-

te (experimentalmente) testada do que uma que não pode, e assim

a linguística e a psicologia experimental alimentam-se mutuamen-

te, iluminando por mais vieses os fenômenos linguísticos.

Assim como é possível o recurso a técnicas experimentais da psi-cologia, muitas vezes as hipóteses linguísticas podem também ser veri-ficadas através da análise de dados de aquisição ou construindo mode-los computacionais que mimetizam a linguagem humana em alguma

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Capítulo 10A linguística e outras ciências

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de suas facetas. Como é possível observar, há uma crescente interação entre grupos de pesquisa que são compostos por pesquisadores de áreas aparentemente bastante distantes, mas que têm em comum o objetivo de chegar a um entendimento científico da linguagem humana. Diferente-mente da imagem do cientista como alguém solitário que estuda e pes-quisa sozinho, hoje em dia o que temos são equipes multidisciplinares e uma ciência cada vez mais coletiva.

Quando nos voltamos para o paradigma humanista, encontramos também um grande e crescente diálogo entre disciplinas afins; o para-digma humanista interage com as disciplinas da mesma natureza epis-temológica; aquelas que têm por objetivo entender fatos únicos, data-dos historicamente, através de métodos interpretativos, sem ter por alvo estabelecer generalizações ou realizar previsões. As disciplinas com as quais o paradigma humanista interage são a sociologia, a história, os estudos marxistas, a psicanálise, entre outros.

Anteriormente, havíamos dito que os paradigmas englobam não

apenas um método, mas também perguntas e respostas tidas como

possíveis e/ou aceitáveis, e, obviamente, os métodos e as perguntas

e respostas também estão relacionados. Por exemplo, não faz sentido

indagar, no âmbito do paradigma humanista, sobre a origem da lingua-

gem, e isso não se dá porque essa não seja uma questão interessante,

mas porque ela está fora do seu âmbito de análise – o mesmo se daria

se perguntássemos sobre “efeitos de sentido” no âmbito do paradigma

científico. O motor do modo de entender a linguagem do paradigma

humanista é a análise ideológica e subjetiva, e é por isso que os diálo-

gos não serão com as ciências naturais ou com as chamadas ciências

da cognição, nem mesmo com aqueles ramos que entendem que a

cognição é social, como já dissemos ser o caso da linguística cognitiva.

Esses diferentes diálogos que os programas de pesquisa em lin-guística entreveem com outras áreas do saber deram origem a áre-as interdisciplinares: a sociolinguística, a psicolinguística, e a própria análise do discurso que se quer como uma entre-áreas, devido à com-plexidade do seu objeto de análise e de ela ter nascido numa interface

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entre várias disciplinas sociais. Vamos passear bem brevemente por algumas dessas áreas, sem procurar ser exaustivos, apenas ilustrando a transdisciplinaridade na linguística.

Já vimos bem rapidamente, ao final da unidade B, que é possível se indagar sobre a origem da linguagem nos humanos da mesma ma-neira que nos perguntamos sobre a origem dos instrumentos, da vida em comunidades... A linguística conversa aqui com os paleontólogos, os biólogos, os antropólogos, e, embora inexistente no Brasil, há uma área denominada paleontolinguística.

Apesar de os estudos nesse campo avançarem a passos largos, ainda não sabemos como a linguagem surgiu nos humanos. Acredita-se que as condições iniciais para a linguagem articulada já tinham surgido com o Homo habilis, cerca de 2,4 milhões de anos atrás, porque esse hominídeo tinha uma capacidade cerebral muito maior do que seu ancestral do gê-nero Australopithecus. Foi também o primeiro a controlar o fogo, o que permitiu o surgimento de bandos maiores, sociedades mais elaboradas e complexas. Além disso, foi no seu crânio que se encontrou a primeira saliência da área de Broca (ver mais adiante sobre a área de Broca), uma região cerebral essencial para a produção da fala e da linguagem de si-nais. No entanto, o Homo habilis não tinha o aparato fonador preparado para a linguagem articulada; conforme diz Fischer (2009, p. 46): “Mesmo se os caminhos neurais que permitem a fala estivessem presentes, os órgãos físicos necessários a ela não estavam”.

Por sua vez, o Homo erectus, que descende do habilis, pode ter tipo uma linguagem, mas ela certamente era muito rudimentar, porque sua constituição física ainda não permitia controlar a expiração, o que im-pedia expressões vocais longas e complexas e, portanto, a articulação de sentenças longas. Mas é muito possível que ele utilizasse expressões curtas e significativas. Como o Homo erectus já havia migrado a partir da África para a Europa, a China e até as ilhas da Austrália, é também bastante provável que já havia várias linguagens rudimentares.

Há consenso que já havia linguagem articulada com o Homo sa-piens, que surgiu na África entre 150.000 e 100.000 anos atrás e que também se descolou para o Oriente Médio, a Europa e a Ásia. Segundo Fischer (2009, p. 73),

Estudos sobre o canto dos pássaros mostram que pássaros da mesma espécie quando vivem em localidades distintas desenvolvem dialetos.

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Capítulo 10A linguística e outras ciências

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Há cerca de 14.000 anos, o Homo sapiens, a única espécie de hominídeo

que sobreviveu à evolução, já possuía milhares de línguas diferentes,

agrupadas em centenas de famílias linguísticas desde as ilhas Orkeny na

Escócia até a Tasmânia, e desde o Alasca até a Terra do Fogo.

É interessante notar que uma constatação como esta, que surge de uma investigação interdisciplinar, põe em xeque um dos principais ob-jetivos dos comparatistas do século XIX, que era, através da classificação genética das línguas, alcançar a língua original, a Ursprache, ou ainda a língua adâmica. Hoje em dia ainda faz muito sentido não apenas clas-sificar as línguas, mas formar as famílias linguísticas e entender a sua mudança na história como um meio para entender historicamente a sua complexidade e diversidade, mas a ideia de que as línguas todas tiveram um único e mesmo ancestral comum é apenas uma hipótese que parece ser pouco creditada atualmente.

Deve ter ficado claro, por essa nossa breve excursão sobre as ori-gens da linguagem humana, que outra área de contato muito importante é a neurologia, a ciência que estuda o cérebro. Atualmente há a área da neurolinguística que congrega linguistas, biólogos, neurologistas, na pesquisa sobre a relação entre linguagem e cérebro. Já contamos com pesquisadores brasileiros desenvolvendo pesquisas nessa área. A neuro-linguística estuda os mecanismos fisiológicos através dos quais o cére-bro processa a informação relacionada à linguagem, incluindo as perdas da linguagem, como as afasias, resultantes de acidentes cerebrais ou de má formação. Os estudos sobre a relação entre a linguagem e o cérebro iniciaram com as pesquisas de Paul Broca, no século XIX. Esse neuro-logista, interessado nos déficits de linguagem, acreditou ter identificado a área cerebral responsável pelo processamento linguístico, que recebeu então o nome de área de Broca. Mais tarde, Carl Wernicke propôs que havia várias áreas cerebrais responsáveis pela linguagem e essas áreas ganharam o nome de áreas de Wernicke.

Para a investigação sobre a origem da linguagem, não podemos es-

quecer dos esforços de antropólogos, primatólogos, arqueólogos e

também de fisiologistas que podem determinar, como vimos, quan-

do a espécie que deu origem ao homem possuía um trato vocal apto

a realizar algo como a nossa fala.

Ou seja, línguas aparenta-das entre si por terem um ancestral comum, como o francês, o espanhol e o português, que têm o latim como língua-mãe.

Há vários tipos de afasias, envolvendo diferentes áreas da linguagem, incluindo deficiências na compreensão e produção da escrita.

Sugerimos que você vol-te ao livro de História da Língua para lembrar do debate entre mono-genistas e poligenistas.

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Ao lado encontramos um desenho do cérebro com essas áreas marcadas.

Há de fato uma correlação entre perdas de linguagem e essas áreas, o que parece indicar que é nessas áreas que ocorre o processamento da linguagem. Estudos mais recentes mostram, todavia, que é possível, após um acidente cerebral, recuperar a linguagem que passa a ser processada em outras áreas. Acredita-se dessa forma que, embora haja regiões mais especializadas para o processamento da linguagem, essas regiões não são constantes; há uma flexibilidade cerebral.

Hoje em dia a neurolinguística tem um papel importante também na avaliação de teorias linguísticas, com a ajuda das novas tecnologias de investigação do cérebro. Além do recurso a técnicas da psicologia experi-mental, podemos também, por exemplo, avaliar uma hipótese linguística medindo as reações cerebrais de um falante, utilizando aparelhos como o eletroencefalograma ou, escaneamentos com magnetoencefalograma. In-vestigar o cérebro, os mecanismos de percepção e produção da linguagem humana também é, como vimos, o objeto de estudos da psicolinguística, cuja ênfase são os processos cognitivos. Essa é também uma área alta-mente experimental, já que não há como observarmos diretamente esses processos. A psicolinguística se preocupa também com os processos de percepção e produção da língua escrita. Podemos, por exemplo, investigar a gramaticalidade de uma sentença em uma língua realizando testes de julgamento de gramaticalidade ou testes de tempo de leitura. Por exem-plo, Basso (2007) utilizou tanto o teste de julgamento de aceitabilidade quanto o de tempo de leitura para verificar se sentenças como as exem-plificadas a seguir eram aceitas pelos falantes. Esses testes baseiam-se no

fato de que já sabemos que sentenças não gramaticais têm um tempo de processamento mais demorado, os falantes levam mais tempo para processá-las:

71. João construiu sua casa por dois anos.

O autor buscava avaliar a hipótese semântica de que essa sentença não é natural, porque combina um accomplishment, ‘construir sua casa’ com o adjunto adverbial ‘por X tempo’. Os resultados do seu teste não confirmaram essa hipótese que deve então ou

BrocaWernicke

Ilustração com as áreas de Broca e de Wernicke

O cérebro consegue se “reajustar”, ou seja, a espe-cialização de áreas do cé-rebro para determinadas tarefas é apenas relativa e, uma vez que determi-nada área do cérebro é le-sada, outras áreas podem assumir a tarefa prejudi-cada. Quanto mais jovem for a pessoa que sofrer a lesão, tanto mais chance há de que o cérebro se “reajuste”; essa proprieda-de do cérebro é conhe-cida como “plasticidade”.

Aparelho de Magnetoencefalografia

Se você ficou curioso, dê uma olhada no site http://www.acesin.letras.ufrj.br/. Lá você encon-trará alguns relatos de experimentos sobre pro-cessamento de sintaxe.

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Capítulo 10A linguística e outras ciências

117

ser abandonada ou ser remodelada. Outro trabalho experimental bas-tante interessante é aquele realizado por Cunha Lima (2004) sobre a existência do uso anafórico de sintagmas indefinidos. O experimento realizado pela autora envolveu um grande número de sujeitos, aos quais eram apresentadas, de modo aleatório e diferentemente para cada um, sentenças como as apresentadas a seguir:

Indefinido Definido

Frases nominaisMeu gato caçou um rato.Um rato grande e gordo.

Meu gato caçou um rato.O rato grande e gordo.

Orações com verbos finitos.Meu gato caçou um rato.Um rato correu porta a fora.

Meu gato caçou um rato.O rato correu porta a fora.

Orações relativas.Meu gato caçou um rato.Um rato que vivia no fogão.

Meu gato caçou um ratoO rato que vivia no fogão.

Apenas para termos alguma ideia de como funciona uma pesqui-sa que leva em conta métodos experimentais, vamos analisar bastante superficialmente o que Cunha Lima fez. Com esse experimento, Cunha Lima (2004) tinha dois objetivos: (i) analisar se as sentenças apresenta-das eram aceitáveis e (ii), grosso modo, quantos ratos estavam envolvidos nesse pequeno discurso. Com relação ao ponto (i), a expectativa da li-teratura, ou seja, a hipótese a ser testada era a de que todas as sentenças da coluna “Indefinido” fossem ruins e toda as da coluna “Definido”, boas. Pediu-se aos sujeitos que classificassem as sentenças em três categorias, representadas por notas; assim, temos:

Nota 1 – sentença perfeita;

Nota 2 – sentença estranha;

Nota 3 – sentença inaceitável.

Vários sujeitos deram, então, suas notas às sentenças e o resultado refutou a hipótese de que eles eram sempre ruins. As notas encontra-das foram:

Indefinido Definido

Frases Nominais 1,39 1,7

Orações com verbos finitos 2,02 1,67

Orações relativas 1,61 1,69

(CUNHA LIMA, 2004, p. 172)

(CUNHA LIMA, 2004, p. 171)

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Como é possível notarmos a partir da tabela apresentada ante-riormente, apenas a sentença com estrutura “oração com verbo finito” é ruim, ou seja, a hipótese da literatura não estava correta e é necessário, então, formular outra hipótese, que é então o que Cunha Lima faz. Claro que um único experimento é apenas um indício de que há algo errado com a hipótese. Como na física, experimentos precisam ser replicados para verificar se os mesmos resultados aparecem.

Note que não descrevemos aqui como e qual foi o experimento em-pregado, apenas o modo como ele foi usado, mas esperamos que você te-nha percebido como pode ser bastante produtivo o uso de tais técnicas.

Estreitamente relacionada tanto às pesquisas sobre o cérebro huma-no quanto à verificação de hipóteses linguísticas, está a área da aquisi-ção da linguagem, cujo objetivo é explicar como as crianças “aprendem” a falar. Não parece haver dúvidas, hoje em dia, independentemente da vertente epistemológica assumida, de que há predisposição para apren-dermos a linguagem humana; nascemos já munidos para aprender a linguagem e esse seria o componente inato da linguagem. Claro que há enormes divergências teóricas sobre o que exatamente é inato, quanto é inato, qual o papel da linguagem externa, da interação, na aquisição. Gerativistas, por exemplo, evitam falar em aquisição da linguagem, pre-ferindo o termo maturação da linguagem, porque partem da hipótese inatista forte, em que o papel do dado externo é apenas definir parâ-metros já dados pela linguagem humana. Há cada vez mais indícios de que o número de gramáticas possíveis para a compreensão humana é de fato limitado. Abordagens sociointeracionistas tendem a minimizar os componentes inatos e a explicar a aquisição através de induções feitas pelas crianças a partir da fala dos adultos. Essa área congrega linguistas, psicólogos de várias vertentes teóricas.

Até aqui falamos sobre a relação da linguística científica com áreas das ciências biológicas, incluindo a psicologia, mas o paradigma cien-tífico também se relaciona a áreas mais próximas da engenharia e da computação, a matemática, a lógica, a estatística. De fato, pesquisas em neurolinguística, psicolinguística e em aquisição têm contado com o apoio de modelos computacionais e de análises estatísticas. Assim, não é à toa que temos a área da linguística computacional que teve seu surgi-

Sugerimos que você retor-ne ao livro de Aquisição da

Linguagem.

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Capítulo 10A linguística e outras ciências

119

mento atrelado às pesquisas sobre inteligência artificial, muito em voga na década de 1950; o objetivo, na época, era construir sistemas capazes de entender e produzir a linguagem humana, entre eles máquinas de tra-dução. Há aqui um filão tecnológico ligado à indústria que tem uma im-portância econômica grande. Há projetos para construir máquinas que compreendem a linguagem humana – você já deve ter vivido a experi-ência de responder ao telefone para uma máquina; elas ainda são muito rudimentares, embora já haja modelos não comerciais bastante sofisti-cados. Há também pesquisas para construir máquinas que reproduzem a linguagem humana. Há muita pesquisa em fonética envolvida nessas máquinas que já estão no nosso dia a dia. Um programa famoso na dé-cada de 1970 foi o Eliza, que simulava ser uma psicanalista; esse é um programa que funciona basicamente ancorado na fala do “paciente”.

Assim mesmo aqueles pesquisadores cujo objeto de estudo situa-se

em áreas mais tradicionais da linguística, como a fonética, a sintaxe,

a semântica, têm que estar conectados a essas outras áreas, no mí-

nimo porque seu modelo deve ser testado.

Além das disciplinas científicas, sejam elas sociais, sejam naturais, há um longo e profícuo diálogo com a filosofia, em suas várias vertentes. De fato, a especulação sobre a linguagem e suas propriedades, no mun-do ocidental, tem seu início com os filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles. Quando finalmente se transforma em disciplina científica, na virada do século XIX para o XX, a linguística tem em sua agenda boa parte das preocupações colocadas por aqueles filósofos. Assim como a pesquisa em linguística, em todas as duas vertentes, deu algumas respos-tas ou encaminhamentos de respostas para algumas questões, a contra-parte dessas perguntas na filosofia também usufruiu das conclusões lin-guísticas; e, como é de se esperar, o mesmo se deu do outro lado, ou seja, investigações filosóficas guiaram algumas das pesquisas linguísticas. Ha-veria muito mais a falar sobre a profunda relação que a linguística tem com a filosofia, assim como com outras disciplinas científicas; vamos parar por aqui, esperando que você já tenha notado como é importante e, por vezes, imprescindível realizar pesquisas interdisciplinas nas quais os diálogos entre as disciplinas são muito profundos e reveladores.

Você já deve ter solicitado o saldo de sua conta por telefone e uma máquina respondeu, “falando” os numerosos números do seu saldo.

Se você quiser ex-perimentar, vá até o site http://chatterbo-x f o r u m . c o m / i n d e x .php?showtopic=120205. Você terá que teclar em inglês para que ela (o programa) responda, mas é uma experiên-cia bem interessante.

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Capítulo 11O conhecimento tácito do falante e sua opínião sobre a linguagem

121

11 O conhecimento tácito do falante e sua opinião sobre a linguagem

Como já dissemos, uma das grandes contribuições de Chomsky à linguística talvez seja sua metodologia do dado negativo: o linguista formula suas hipóteses sobre a gramática interna ou internalizada do falante levando em consideração sentenças que o falante não produz, porque elas indicam as agramaticalidades naquela língua. Nenhuma análise de corpora pode nos fornecer tal indicação, porque em corpora aprendemos aquilo que é efetivamente produzido pelo falante. Mas, para chegarmos à gramática de um falante, precisamos saber o que ela não pode produzir; o que não é possível dado o conhecimento tácito que todo falante tem de sua língua. Ele ou ela pode não saber explicar esse conhecimento, mas ela tem esse conhecimento e linguistas têm que explorá-lo na construção de seu modelo. Qualquer falante do português brasileiro sabe que a sentença abaixo não é gramatical:

(72) * Menino todo brinca.

Esse é no fundo um conhecimento bastante sofisticado que apare-ce espontaneamente em várias ocasiões; porém, inúmeras vezes deixa-mos passar tal conhecimento completamente despercebido, por conta de sua tamanha naturalidade. Quanto mais familiarizados estamos, menos enxergamos a complexidade do fenômeno, porque ele nos é muito natural. É assim que um bom começo para ser linguista é se surpreender com as línguas naturais.

Algumas vezes invocamos, contudo, tal conhecimento; na maioria delas para provocar humor e efeitos semelhantes, mesmo que, na grande maioria das vezes, o falante não saiba explicar o mecanismo que provocou o riso. Por exemplo, as crianças distinguem claramente uso de menção, uma distinção que muitas vezes os alunos do curso de Letras têm difi-culdade de entender teoricamente. Usamos uma palavra quando a pro-ferimos com a intenção de que nosso interlocutor entenda que quere-mos falar sobre o que a palavra denota. Usar é falar significativamente, porque queremos que a nossa palavra tenha o seu valor. Esse é o nosso

Aconselhamos a leitu-ra de Pires de Oliveira (2010), disponível em http://www.revel.inf.br/site2007/_pdf/17/arti-gos/revel_14_a_linguisti-ca_sem_chomsky.pdf

Seria interessante aqui retornar ao seu livro de Introdução aos Estudos Gramaticais.

Veja que uma análise ba-seada apenas em corpora será sempre indutiva, ou seja, com análise de corpo-ra, generalizamos a partir de casos particulares, tal manobra tem todas as vantagens e desvantagens dos raciocínios indutivos, conforme vimos.

Sobre essas noções, volte ao livro de Semântica.

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Filosofia da Linguística

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uso normal nas nossas interações linguísticas. Se afirmamos ‘Napoleão Bonaparte nasceu na Córsega’, queremos que nosso interlocutor enten-da que estamos lhe fornecendo uma informação sobre um indivíduo em particular no mundo, que se chama Napoleão Bonaparte, e estamos afirmando efetivamente desse indivíduo que ele tem a propriedade de ter nascido na Córsega, uma ilha particular no Mar Mediterrâneo. Nos-sa fala nos compromete então com o que falamos. Se dissermos algo falso, teremos que responder por isso – é assim que podemos processar alguém por calúnia e difamação por exemplo.

Bonifácio - sul da Córsega.

Podemos, no entanto, também apenas mencionar uma expressão da linguagem; quando fazemos isso não nos comprometemos com o que as palavras efetivamente dizem, com o que denotam no mundo, mas apenas com as próprias palavras. Por exemplo, se dizemos ‘A palavra ‘casa’ tem duas sílabas e três fonemas’, não estamos usando ‘casa’, porque não queremos falar sobre objetos no mundo que caem na extensão de casa, mas sobre a palavra, analisando-a.

Mencionar é tornar a linguagem em si como objeto de análise ou de

atenção. As crianças têm várias brincadeiras que mostram que elas

sabem essa distinção, que, como dissemos, é bastante sofisticada.

Napoleão em seu estúdio - pintura de Jacques-Louis David (ca. 1800)

Retome o seu livro de Semântica.

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Capítulo 11O conhecimento tácito do falante e sua opínião sobre a linguagem

123

Um exemplo é a famosa pegadinha para adultos desprevenidos.

A criança diz:

– Fala tatu bola paca não.

O adulto então repete:

–Tatu bola paca não

E erra, para a felicidade da criança, que repete o seu comando:

– Fala tatu bola paca não.

Até o adulto entender que o que ele deve falar é apenas ‘tatu bola’,

‘paca’ ele não deve falar. Usando as aspas simples para marcar a

menção e acrescentando o verbo elidido, podemos refrasear a fala

da criança:

– Fala ‘tatu bola’, ‘paca’ não (fala)

Outra pegadinha muito comum é a pergunta:

– Você fala alemão?

Que o adulto desavisado responde com uma negativa, já que ele efeti-vamente não fala alemão. O adulto entende que a criança está usando a pa-lavra ‘alemão’, mas a criança está apenas mencionando a palavra e replica:

– Eu falo, quer ver? Alemão.

Na sua fala original, ‘alemão’ está sendo mencionado. Muitas pia-das funcionam dessa maneira. Aliás, o estudo de piadas mostra que sa-bemos muito sobre a linguagem, mesmo sem saber que sabemos.

Não apenas as piadas, mas também formas de literatura como os

poemas exploram a distinção entre uso e menção. Um exemplo par-

ticularmente interessante é o poema Pronominais, de Oswald de

Andrade, reproduzido a seguir:

Se você tiver interesse em piadas, sugerimos dar uma olhada nos ar-tigos de Possenti (1998).

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Filosofia da Linguística

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Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

Esse poema é um verdadeiro jogo entre uso e menção, e ele só faz

sentido se entender que a primeira e última sentença que o com-

põe são mencionadas, ou seja, o poeta não está pedindo cigarro

algum, mas sim versando sobre como se pede cigarros no Brasil, e

conclui que há duas formas, ‘Dê-me um cigarro’, que é forma prega-

da pela gramática e que quase ninguém usa – já naquela época –,

e há a forma ‘Me dá um cigarro’, usada por toda a nação brasileira.

Não deixa de ser interessante notar que o poeta antecipa várias das

angústias que os brasileiros sofrem ao viver sob as normas de uma

gramática que não é a da sua língua. Usando aspas simples para

marcar menção, o poema tem a seguinte estrutura:

Pronominais

‘Dê-me um cigarro’

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

‘Me dá um cigarro’

Obviamente, não precisamos saber teoricamente os conceitos de

uso e menção para entender o poema; antes, é nosso conhecimento

tácito desses conceitos que nos permite entendê-lo.

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Capítulo 11O conhecimento tácito do falante e sua opínião sobre a linguagem

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Outra habilidade que os falantes têm é reconhecer imediatamente diferentes dialetos. Eis uma história que presenciamos, mas certamente você deve ter outras semelhantes.

Numa roda de amigos em Florianópolis, um paulista fala para os nativos, que têm um dialeto próprio, o Manezinho:

– Como vocês falam de um jeito diferente aqui!

E então um deles pergunta:

– Ué, e como é que você fala?

E ele responde:

– NoRmal! – com o R-retroflexo típico da fala interiorana de São Paulo.

Esse R-retroflexo (//) é diferente da região de Florianópolis; seu uso é, portanto, um sinal claro de que se trata de alguém de fora.

É o conhecimento tácito que temos da nossa língua que nos permite perceber um estrangeiro falando português. É muito comum ouvirmos americanos falando: ‘Eu encontro ele cada dia’, certamente uma sentença estranha para nós, que dizemos ‘todo dia’, e não ‘cada dia’. Falantes do português europeu dizem (e escrevem): ‘Toda a criança brinca’, que para nós essa é uma sentença muito estranha, porque a presença do artigo nos leva a uma interpretação de que se trata de apenas uma criança em particular (e todas as partes dela estão brincando, o que é estranho...). Por isso, para nós, a sentença ‘A criança toda tá suja’ é boa, porque agora o ‘toda’ quantifica sobre as partes de uma criança em particular. No por-tuguês brasileiro, perguntamos duplicando o que: Que é que você quer?, uma pergunta agramatical para falantes do português europeu.

Uma das questões mais delicadas da escola no Brasil, hoje em dia, é que os professores de português não têm conhecimento explícito, me-talinguístico, sobre qual língua eles mesmos falam, não sabem o que é o português brasileiro. Certamente o português brasileiro não é aque-le das gramáticas normativas, também não é aquele que vemos nos li-vros didáticos e poucos de nós sabem como ele é. Há aqui uma questão política muito importante: precisamos não apenas saber que língua é

Retome o seu livro de Sociolinguística.

Se você voltar ao seu livro de Fonética, deve encon-trar o símbolo // para representá-lo.

Não há quem saiba mais sobre a nossa gramá-tica do que nós mes-mos! E esse conheci-mento simplesmente é ignorado pela escola.

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Filosofia da Linguística

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a nossa, mas ter orgulho de ter essa língua, de nos identificar com ela. Entender qual língua falamos é um primeiro passo para podermos com-preender melhor a discrepância que há entre o conhecimento tácito que os falantes têm de sua língua – que não é explorado pela escola, mas deveria ser – e a sua opinião sobre a língua que ele fala. É muito comum ouvirmos sentenças como ‘eu não sei falar português’. Ora, o que exa-tamente significa essa sentença? Como é possível um falante não saber a sua própria língua? Entramos aqui num dos pontos interessantes da relação entre a linguística e a política, as representações que fazemos da língua que falamos.

Várias são as questões que estão embutidas aqui e vamos falar mais explicitamente sobre política linguística na próxima seção. Nesse mo-mento, interessa criticar essa ideia equivocada de que não sabemos falar a nossa língua. Claro que quem diz isso tem em mente uma língua idea-lizada, uma linguagem virtuosa, que não contém erros e que não é a lín-gua dela, provavelmente vulgar, cheia de erros e defeitos. A despeito dos inúmeros estudos em linguística, há ainda muitos que acreditam haver o certo e o errado na língua que falamos. Mas essa não é uma situação peculiar; demoramos muitos anos para aceitar que a Terra gira ao redor do Sol e a despeito da teoria da relatividade ter mais de 100 anos ainda não a incorporamos no nosso dia a dia e nem na escola. Mudanças na forma de pensar são lentas. A arte do bem falar tem uma longa tradição e é essa tradição, e não a das gramáticas filosóficas ou científicas, que embasa as gramáticas normativas. É essa tradição que promove espa-ço para as colunas de Pasquale Cipro Neto, que reforçam essa tradição de que não sabemos falar a nossa língua. A gramática normativa, que legisla sobre o que é certo ou errado, não é, como lemos num sítio so-bre a língua portuguesa do prof. Pasquale, útil; ao contrário, ela faz um desserviço porque nos torna surdos para a nossa língua; ela impede a reflexão, porque já tem o certo. Não há nela espaço para a dúvida ou para questionamentos de qualquer natureza; uma gramática normativa não é uma explicação dos fatos linguísticos, é um tipo de manual de etiqueta, porém de uma etiqueta que não pertence mais à nossa realidade, e deve, portanto, ser substituída por algo que possamos entender, que seja de fato nosso. Equívocos em ver na gramática normativa a palavra final sobre a língua nos leva a afirmar equívocos ainda maiores, carregados

Sugerimos a leitura do texto de Basso e Pires de Oliveira (2010).

Nossa questão aqui se refere exclusivamente à

língua falada. A língua escrita, por suas peculiari-dades, é regida por regras

passíveis de serem normativizadas.

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Capítulo 11O conhecimento tácito do falante e sua opínião sobre a linguagem

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de preconceito, como o famoso “o português brasileiro é inculto e belo”. Essa é uma fala preconceituosa e errada, na verdade, do ponto de vista científico, ela sequer tem sentido.

Veja esse trecho:

[...] a São Paulo que fala ‘dois pastel’ e ‘acabou as ficha’ é um horror. Não

acredito que o fato de ser uma cidade com um grande número de imi-

grantes seja uma explicação suficiente para esse ‘português esquisito’

dos paulistanos. Na verdade, é inexplicável. (Fonte: Entrevista à Revista

VEJA, em 10 de Setembro de 1997.).

Esse fato é obviamente inexplicável para alguém que não estudou o suficiente como são as línguas naturais, e cujas únicas observações e conclusões têm por bases seus próprios preconceitos e opiniões pron-tos. Não há nada de esquisito em dizermos ‘acabou as ficha’. Esse é o português brasileiro, em que a concordância aparece marcada apenas no determinante. Essa é uma gramática parecida com a do francês oral, em que também só temos o plural no determinante. No inglês, como aparece no exemplo ‘The boys arrived’, a concordância aparece apenas no nome (‘boys’) e ninguém acha feio falar desse modo. Mas defender o português brasileiro e seu ensino na escola é certamente uma questão política.

Sugerimos fortemente a leitura de Possenti Por que (não) ensinar gramá-tica na escola.

Atenção: cuidado para não confundir o fato na-tural de que os falantes sabem a sua gramática, com a questão de que não há certo ou errado na ciência. A ciência ex-plica fatos. Do ponto de vista científico, é errado afirmar que há uma lín-gua bela ou inculta.

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Capítulo 12Política e planejamento linguístico

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12 Política e planejamento linguístico

Nesta última parte, faremos considerações sobre outra interface da linguística, aquela com a política; interface que ganha corpo com a re-cente disciplina de Política Linguística. Questões de política linguística vieram à tona recentemente no Brasil com o projeto de lei 1676/1999 do então deputado Aldo Rebelo. Talvez o leitor se lembre, em linhas ge-rais, do conteúdo de tal projeto: tratava-se de um projeto cujos objetivos eram “a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa”, tendo como alvo ou inimigo declarado os estrangeirismos; em particu-lar, os empréstimos do inglês, como ‘deletei o arquivo’.

O texto citado do projeto, aquele que diz que a língua portuguesa pre-cisa de promoção, proteção e defesa pode até passar despercebido, mas é um trecho ao menos curioso. Ora, que tipo de coisa é uma língua para que ela precise ser protegida ou defendida? Quem ou o que se configura como um inimigo de uma língua? Existe tal coisa como um inimigo da língua?

Para os defensores do projeto, o inimigo claro, como dissemos, são os estrangeirismos. O que é exatamente um estrangeirismo? Como você já deve esperar, definir essa noção é algo extremamente complicado. Num primeiro momento, podemos pensar que estrangeirismo é o uso de uma palavra que não faz parte do português. Mas, para que tal noção faça sentido, devemos ser capazes de fornecer uma lista das palavras que são do português; dado que o português deriva do latim; e, se vol-tássemos no tempo, seríamos obrigados a dizer que todas as palavras do (que chamamos hoje de) português são estrangeiras, justamente porque vêm do latim em sua maioria, ou de outra língua. Uma alternativa seria estabelecer um tipo de limite temporal que marque o nascimento do português e então, a partir de tal data, tudo o que não for palavra do português é um estrangeirismo. Tal manobra já foi feita antes e os alvos foram, entre vários outros, as palavras ‘futebol’ e ‘restaurante’, deriva-das do inglês e do francês, respectivamente. Os substitutos sugeridos na época eram ‘ludopédio’ ou ‘balípodo’ e ‘casa de pasto’; felizmente, tais sugestões não vingaram e mantivemos ‘futebol’ e ‘restaurante”.

Estrangeirismos são condenados pela gramá-tica tradicional como um tipo de vício de lingua-gem conhecido também como barbarismo. O estrangeirismo é o uso de uma palavra estrangeira em detrimento de uma palavra que faz parte da língua portuguesa, e é subdividido em galicismo (uso de palavra france-sa), germanismo (uso de palavra alemã), anglicismo (uso de palavra inglesa), latinismo (uso de palavra latina) etc.

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Filosofia da Linguística

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Uma vez que é bastante difícil definir exatamente o que é uma pa-

lavra estrangeira, convém olharmos para o pressuposto do projeto

de que estrangeirismo são inimigos da língua. O que isso signifi-

ca? Resumindo bastante os argumentos usados então, a ideia era

de que o uso de estrangeirismos danificava, prejudicava, atacava o

“espírito da língua”. Não precisamos ir muito longe para perceber

que há um tanto de preconceito e ideologia quase xenófoba em

afirmações desse tipo, além de elas carecerem de sentido; afinal, o

que é o “espírito da língua”? Essa obviamente não é uma noção ou

conceito científico e parece impossível de ser definida, porque ela é

embasada em julgados estéticos subjetivos – o que “soa bem” está

de acordo com o “espírito da língua” e o que “soa mal”, não; mas note

que “soar bem” e “soar mal” é algo que depende do julgamento esté-

tico de quem avalia, e não de algo objetivo ou determinado. Assim

sendo, não podemos fazer virar um decreto-lei algo embasado em

julgamentos subjetivos! É como se disséssemos que não gostamos

de, que não “soa bem”, usar bonés, pois vai contra o “espírito do bem

vestir brasileiro” e, portanto, façamos uma lei que proíba o uso de

bonés. Claramente isso não faz sentido...

O medo que paira por trás de projetos como esse é de que em pou-co tempo não teremos mais uma língua nacional, porque ela será toma-da pelos estrangeiros. O que se perde, então, é a própria nação brasileira. Mas esse é um medo que faz pouco sentido.

Outra pergunta, contudo, ainda resta. Apesar da tentativa felizmen-te frustrada de proibir, através de decretos-lei, os estrangeirismos, a pró-pria tentativa traz à tona a perspectiva de que a língua é algo sobre o qual é possível legislar. Sobre a língua escrita é de fato possível imprimir-mos normas legais, prova disso é a recente reforma ortográfica, ou novo acordo ortográfico, cuja implementação deve se completar até 2012. Mas e sobre a língua falada, é possível regulá-la legalmente?

Não é simples responder tal pergunta, mas historicamente não fal-taram tentativas de Estados intervirem na língua falada, como Calvet (2007, p. 11) afirma:

Note que ‘ludopédio’ é uma palavra formada atra-vés de étimos latinos e ‘ba-lípodo’ de étimos gregos. Assim sendo, estaríamos usando palavras estran-geiras e não iríamos me-lhorar muito a situação...

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Capítulo 12Política e planejamento linguístico

131

A intervenção humana na língua ou nas situações linguísticas não é no-

vidade: sempre houve indivíduos tentando legislar, ditar o uso correto

ou intervir na forma da língua. De igual modo, o poder político sempre

privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa

língua ou mesmo impor à maioria a língua de uma minoria.

A disciplina de Política Linguística, em suas investigações, diferencia política linguística de planejamento linguístico. As políticas linguísticas propriamente ditas lidam com quais decisões tomar sobre a(s) língua(s) de um Estado e o planejamento linguístico tem por meta justamente a implementação das decisões alcançadas com a política linguística. Do ponto de vista epistemológico, é interessante notar que é constitutivo da Política Linguística uma parte prática, ou seja, pensar em política lin-guística é automaticamente pensar em planejamento linguístico, dado que o resultado de uma dada política linguística deve, se possível, ser implementado através de um dado planejamento.

A relação entre política e planejamento linguístico é resumida de forma bastante clara por Calvet (2007, p. 61):

Uma ação planejada sobre a língua ou sobre as línguas nos remete ao

seguinte esquema: consideram-se uma situação sociolinguística inicial

(S1), que depois de analisada é considerada como não satisfatória, e a

situação que se deseja alcançar (S2). A definição das diferenças entre S1 e

S2 constitui o campo de intervenção da política linguística, e o problema

de como passar de S1 para S2 é o domínio do planejamento linguístico.

Há duas questões que veremos aqui:

por que um Estado adotaria algum tipo de política linguística?1)

ao se adotar algum tipo ativo (i.e., intervencionista) de política 2)

linguística, como implementá-lo?

Sobre a primeira questão, podemos enumerar, entre outras, as se-guintes razões para uma política linguística intervencionista:

purificação linguística: medidas que visam preservar a “pureza a)

linguística” ou o “espírito da língua”, tanto proibindo estrangei-rismos quanto a variação interna à língua. A medida avançada por Aldo Rebelo encaixa-se nesse tipo de proposta.

Usaremos “Política Lin-guística” com as iniciais em maiúsculo para nos referirmos à disciplina; “política(s) linguística(s)”, em minúsculo, refere-se a reflexões particulares so-bre a política das línguas.

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Filosofia da Linguística

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padronização ou “standardização” linguística: manobras que b)

visam dar a uma língua, dialeto ou variedade de língua o status de língua padrão de uma dada região;

revitalização linguística: tentativa de evitar a extinção de uma c)

língua com poucos falantes nativos;

modernização lexical: criação ou adaptação de palavras a uma d)

dada língua;

manutenção ou preservação linguística: garantir a sobrevivên-e)

cia de uma dada língua através da garantia de sobrevivências de seus falantes e promoção da língua;

unificação terminológica: reformas linguísticas de nível lexical f)

para equalizar os termos de um dado campo;

reformas de linguagem: mudança deliberada de aspectos esti-g)

lísticos e ortográficos de uma dada língua.

Haveria outras razões a serem aqui arroladas dos motivos pelos quais um Estado intervém na língua, mas não iremos esgotá-las. Os itens exem-plificados de (a) a (g) são adotados por vários Estados ao longo do globo. Se pensarmos apenas no caso do Brasil, teremos o exemplo já citado no item (a) no combate aos estrangeirismos; os itens (c) e (e) também são exemplificados através dos esforços de alguns pesquisadores com relação às línguas indígenas brasileiras; e, finalmente, o item (g) pode ter como exemplo o recente acordo ortográfico dos países de língua portuguesa.

Uma vez que já temos alguma ideia através das quais os Estados desenvolvem políticas linguísticas, podemos pensar então sobre a ques-tão (2) colocada acima: como implementar uma ou outra decisão polí-tica sobre as línguas? Em vez de discutirmos exemplos particulares de implementações de políticas linguísticas, interessa aqui notar que elas podem se dar em níveis distintos, como na escrita (adotar ou reformar um sistema de escrita), no léxico (evitar ou não estrangeirismos), na pa-dronização (estabelecimento de normas), as políticas podem ser imple-mentadas geograficamente, ou seja, aplicando-se em um limite regional, ou mais pessoalmente, ou seja, aplica-se uma determinação a uma dada língua e ao seu falante, independentemente de onde ele esteja.

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Capítulo 12Política e planejamento linguístico

133

É importante notar, como faz Calvet (2007), que as políticas lin-guísticas podem ter como alvo ou ainda podem agir sobre o “corpo” da língua, sua materialidade, ou seu status, suas características mais instru-mentais e políticas. No primeiro caso, pensamos em políticas linguísticas que afetam o léxico, a ortografia, a norma padrão e seu estabelecimen-to. Um exemplo interessante desse tipo de ação é a reforma linguísti-ca pela qual passou a Turquia no final da década de 1920, que ocorreu no regime de Mustafa Kemal Atatürk. Quando Atatürk subiu ao poder, a língua turca escrita culta apresentava um número muito elevado de elementos estrangeiros, árabes e persas, além de ser escrita através do alfabeto árabe. Essa situação era problemática porque a língua erudita escrita se afastava demais da língua popular e o acesso aos textos escritos era, portanto, dificultado; além disso, a escrita arábica não representava bem o turco pela simples razão de que a língua turca tem em seu sistema fonológico 8 vogais breves e 3 vogais longas e o alfabeto árabe permite apenas a notação de 3 vogais. Esse quadro já incitava por si uma refor-ma linguística, pelo menos com relação ao alfabeto. O problema é que a Turquia antes de Atatürk não era um estado laico e mexer no alfabeto árabe significava mexer no alfabeto usado no Alcorão, algo que trazia claramente uma série de implicações religiosas indesejadas. De forma bastante delicada, a reforma linguística que promovia o alfabeto latino adaptado à língua turca foi feita em 1928, e até hoje a Turquia ainda usa um alfabeto latino. As reformas não pararam por aí; Atatürk promoveu também a substituição de expressões e construções árabes e persas que não pertenciam à língua turca, promovendo o uso do turco. Para tanto, uma comissão foi organizada com o objetivo de averiguar quais seriam os melhores substitutos turcos para as palavras agora “invasoras”.

As políticas linguísticas que afetam o status de uma língua podem ser encontradas mais claramente em estados bilíngues ou plurilíngues, como descreve Calvet (2007, p. 116):

Nas situações de plurilinguismo, os Estados são levados às vezes a pro-

mover uma ou outra língua até então dominada ou, ao contrário, retirar

de uma língua um status de que ela gozava, ou ainda fazer respeitar um

equilíbrio entre todas as línguas, ou seja, administrar o status e as fun-

ções sociais das línguas em presença.

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Filosofia da Linguística

134

Como você pode notar, nesse caso, não se trata de intervir no sistema

linguístico ou na sua contraparte escrita, mas sim em seu status. Como

é possível que se dê tal interferência? Uma maneira interessante é tornar

uma dada língua um veículo oficial do Estado em questão. Se em um

dado país duas línguas são faladas por uma quantidade bastante repre-

sentativa de falantes, mas os documentos oficiais são escritos em apenas

uma delas, por exemplo, há claramente uma diferença de status entre as

línguas. Mas a questão não se esgota no caso de documentos públicos;

o que fazer no caso das escolas? Escolas bilíngues? Como implementar

tal solução? A Bélgica é um caso interessante: são três as línguas oficiais

do país: o flamengo, o francês e o alemão. Não apenas os documentos

oficiais são escritos nas três línguas, mas as escolas devem ensiná-las.

Um passo marcante na nossa história recente é o da Comunidade Europeia que não apenas propôs uma legislação sobre o multilinguismo, que busca explicitamente a diversidade linguística, e garante a publica-ção dos documentos oficiais nas 23 línguas da Comunidade Europeia, mas colocou-a para avaliação e discussão públicas.

Atualmente, no Brasil, é possível vislumbrarmos uma política lin-guística relativamente ao status com relação à Língua Brasileira de Sinais (Libras). Estamos ainda um pouco longe do ideal, mas a televisão, por exemplo, promove tradução ou interpretação simultânea de vários pro-gramas; já há, também, cursos de e em Libras em diversas universidades, mas, a nosso ver, a principal conquista dessas políticas ainda incipiente com relação à Libras é a diminuição drástica do enorme preconceito que havia contra a Libras e contra as línguas de sinais em geral. Para muitas pessoas, elas sequer podiam ser consideradas línguas como as línguas fa-ladas, ou seja, havia (e, infelizmente, ainda há) uma visão segundo a qual a língua de sinais carece de estrutura, é pobre em expressividade e várias outras opiniões que são simplesmente erradas sobre as línguas de sinais.

No Brasil, é interessante também notar que há um crescente res-peito pelas línguas indígenas – que também sofriam e ainda sofrem um preconceito semelhante, sendo taxadas de primitivas, brutas etc., reve-lando novamente posturas preconceituosas e equivocadas – e um incen-

Veja mais na página http://ec.europa.eu/edu-

cation/languages/langua-ges-of-europe/ .

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Capítulo 12Política e planejamento linguístico

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tivo à sua promoção, com o intuito de que elas não se extingam, é um convite para pensarmos sobre o seu estatuto. Os linguistas têm aqui um papel importante ao ajudar no desenvolvimento de sistemas de escrita e materiais didáticos para os indígenas aprenderem a redigir na sua lín-gua materna, fixando em forma escrita suas tradições e literatura, além, é claro, de poderem aprender português a partir de sua língua nativa. É importante garantir a alfabetização na língua materna. A questão das línguas indígenas no Brasil é tão pouco considerada que muitos de nós nem temos ideia de quantas existem. Tanto com relação à Libras quanto às línguas indígenas brasileiras, os linguistas também têm o papel de estudá-las e descrevê-las estruturalmente.

Famílias Linguísticas

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1. Arawá2. Arikém3. Arúak4. Boróro

6. Guaikuru

8. Iranxe

11. Karajá10. Juruna

12. Karib13. Katukina14. Krenák15. Makú16. Mawé17. Maxakali18. Mondê19. Mundurukú20. Mura21. Nambikwará22. Ofayé23. Puroborá

7. Guató

5. Chiquito

9. Jê

24. Ramarama25. Rikbaktsá26. Tikúna27. Tukano28. Tupari26. Tikúna27. Tukano

31. Yanomami

34. Aikaná e Nambikwára33. Aikaná e Koazá

35. Arúak e Jê36. Arúak e Pano37. Arúak e Tupi-Guarani38. Jê e Krenák39. Jê e Tupi-Guarani40. Kanoê e Tupari41. Katukina e Pano42. Arúak, Crioulo Francês e Karib43. Arúak, Makú, Tukano e Tupi-Guarani44. Aikaná, Jabuti, Kanoê, Mondê e Tupari45. Arúak, Aweti, Jê, Juruna, Karib, Tupi-Guarani e Trumái

30. Txapakúra

32. Yatê

29. Tupi-Guarani28. Tupari

São mais de 150 línguas indígenas faladas no Bra-sil. Muitas delas em perigo de extinção.

Mapa das línguas indígenas atualmente faladas no Brasil. Fonte: Instituto Socioambiental (2009)

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Filosofia da Linguística

136

Finalmente, não podemos esquecer as línguas de imigrantes, de pessoas que vêm ao Brasil e trazem sua língua e seu costume. Devido ao grande crescimento econômico recente do Brasil, é provável que sejamos cada vez mais um centro atrativo e que tenhamos em nosso território um número cada vez maior de falantes de outras línguas que não o portu-guês, e é necessário desde já pensarmos em como lidar com tal situação. Uma primeira manobra é desenvolver métodos e estratégias de ensino de português como língua estrangeira – algo que a Linguística Aplicada no Brasil já vem desenvolvendo com sucesso há um bom tempo.

Leia mais!

PERINI, Mário A. Princípios de Linguística Descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo: Parábola, 2006.

Neste livro, Perini, um experiente e importante linguista e gramático brasi-leiro, apresenta uma introdução ao questionamento e à argumentação gra-matical. Perini circula por tópicos extremamente importantes, como o que é dado e hipótese, como testar hipóteses, como formar um corpus. Tudo isso numa linguagem bastante acessível e cheio de exemplos.

FISCHER, Steven Roger. Uma breve história da Linguagem. Osasco: Novo Século, 2009.

O livro de Fischer é uma grande reflexão sobre as diversas dimensões da linguagem e do estudo da linguagem. O autor começa sua reflexão com a origem da linguagem, passando pela comunicação animal e suas diferen-ças com a comunicação humana, as especificidades da língua natural e as ciências da linguagem. Apesar de ser um panorama, e por vezes um pouco superficial, é possível ter uma visão de todo da linguagem e daqui para fren-te podemos nos aprofundar naquilo que mais nos atrair.

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Considerações Finais

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Considerações finaisA linguagem é tão banal, estamos tão imersos nela, somos tanto

a nossa língua que não temos consciência da sua complexidade e de suas inúmeras conexões. O fascínio da linguagem surge quando para-mos para refletir sobre ela e aumenta cada vez mais quando passamos a vê-la como um objeto de estudos, de análise e reflexão. Esse é o de-safio da linguística: entender a linguagem em suas múltiplas facetas. A filosofia da linguística é um metaconhecimento, ele se pergunta como a linguística realiza esse seu empreendimento de compreender a lin-guagem humana. Nesse sentido, a filosofia da linguística engloba tanto questões mais gerais de filosofia da ciência – o que é ciência?; como se dá a construção de um modelo científico?; é possível o conhecimen-to científico?; o conhecimento científico é confiável? – quanto aquelas mais específicas que dizem respeito ao estudo da linguagem – como é a linguística atualmente?; como a linguística se relaciona com outras áreas do conhecimento?; como se relaciona com a sociedade? Se já não bastassem todas essas problemáticas, a filosofia da linguística está ainda estreitamente conectada a outras áreas de cunho mais filosófico como a filosofia da mente – qual é a relação entre mente e corpo? – e a filoso-fia da linguagem – os sentidos são construídos pela língua?; eles estão no mundo? Procuramos, ao longo deste livro, apresentar um panorama amplo da linguística atual, refazendo, sempre que possível, um pouco de sua história e situando os diferentes modos de estudar a linguagem. Vi-mos que, na linguística contemporânea, é possível vislumbrarmos dois paradigmas: o científico, que engloba as abordagens formal e funcio-nalista; e o humanista, preocupado com os aspectos ideológicos na/da linguagem. Traçamos a diferença entre formalistas e funcionalistas afir-mando que os primeiros entendem que a linguagem é forma, ao passo que os funcionalistas privilegiam a função da linguagem. Mostramos, igualmente, que há abordagens que combinam essas duas tendências. Além da diversidade metodológica, a linguística atual conversa com di-ferentes disciplinas – a neurologia, a política, a ética, entre outras – e há uma forte tendência à interdisciplinaridade, à formação de grupos de pesquisa coletivos, congregando pesquisadores de diferentes áreas do saber, uma marca da ciência atual. Procuramos ainda mostrar que

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Filosofia da Linguística

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a linguística tem uma grande importância para a sociedade. No Brasil somos ainda dominados pela ideia incorreta de que não sabemos falar, não somos donos da nossa própria língua. Há muito a ser feito nessa direção, em especial nas escolas de ensino médio e fundamental. Pre-cisamos de professores que entendam a sua língua, que saibam analisar a sua língua, que mostrem aos alunos o fascínio de refletirmos sobre as línguas. As aulas de português precisam ser muito mais do que aulas de leitura e escrita; é preciso mostrar que a linguagem humana tem uma história, que as crianças aprendem sua língua em casa, que o português brasileiro falado nas ruas, aquele dos ‘dois pastel e um chops’, tem a sua gramática. Muito mais do que transmitir informações, esperamos que este livro tenha despertado a curiosidade pelas línguas, tenha mostrado que há muitas áreas de pesquisa, muitas formas de atuação; que tenha, finalmente, deixado claro que estudar a linguagem é fascinante!

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RefeRênCias

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Crédito das imagens

Capa

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Filosofia da Linguística

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Unidade B

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Unidade C

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Unidade D

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Miolo

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RefeRênCias

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Figura 8 - Ignaz Semmelweis. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Ignaz_Semmelweis_1860.jpg>. Acesso em: 10 out. 2010.

Figura 9 - Moeda em homenagem a Semmelweis. Disponível em: <http://www.muenzauktion.com/pollandt/item.php5?id=3646>.

Figura 10 – Acelerador de partícula. Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-wnt-ZeXQEDY/TYCcb_323QI/AAAAAAAAA9w/6A0Nl_YjIJg/s1600/hadrones.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2011.

Figura 11 – Foto 1 da Ferrovia Madeira-Mamoré, em Porto Velho, que mostra os espaços entre os trilhos de trem para acomodar dilatação. Foto: Pablo Arantes.

Figura 11.1 - Foto 2 da Ferrovia Madeira-Mamoré, em Porto Velho, que mostra os espaços entre os trilhos de trem para acomodar dilatação. Foto: Pablo Arantes.

Figura 12 – Trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Foto Pablo Arantes.

Figura 13 - Karl Popper. Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/43/Karl_Popper.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2011.

Figura 14 - Claude Lévi-Strauss. Disponível em: <http://referentiel.nou-velobs.com/file.nouvelobs/605523.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2011.

Figura 15 - Capa do livro Tristes Trópicos. Disponível em: <http://2.bp. blogspot.com/-HeYParBg3GU/TWLEm3qK6bI/AAAAAAAAASY/ 2K1OnTSA_AQ/s1600/DSC03271.JPG>. Acesso em: 05 abr. 2011.

Figura 16 - Charles Sanders Peirce. Disponível em: <http://www.photo-lib.noaa.gov/htmls/theb3558.htm>. Acesso em: 07 abr. 2011.

Figura 17 - Paradigmas. Fonte: Autores.

Figura 18 - Diagrama: Conjuntos. Fonte: Autores.

Figura 19 - Teoria dos conjuntos. Fonte: Autores.

Figura 20 - William Labov. Fonte: Disponível em: <http://www.phillwebb.net/topics/communication/Labov/Labov.jpg>. Acesso em: 08 abr. 2011.

Figura 21 - Tirinha de Angeli. Fonte: MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Ana Christina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2000. v. 2, p.111.

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Filosofia da Linguística

144

Figura 22 - Ilustração com as áreas de Broca e de Wernicke. Disponível em: <http://cueflash.com/cardimages/answers/thumbnails/3/6/3663294.jpg>. Acesso em: 08 abr. 2011.

Figura 23 - Aparelho de Magnetoencefalografia. Disponível em: <http://www.actamedicaportuguesa.com/pdf/2004-17/3/231-240.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2011.

Figura 24 - Napoleão em seu estúdio, de Jacques-Louis David (ca. 1800). Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_OQUYRfMAcMQ/TRAZI-TnMrwI/AAAAAAAAAJ8/HYHikrguZVk/s1600/Napoleon_in_His_Study.jpg>. Acesso em: 08 abr. 2011.

Figura 25 - Bonifácio - sul da Córsega. Disponível em: <http://4.bp.blog spot.com/_PUbsum1zJoc/TGmBqrbCH0I/AAAAAAAAAvA/ 98NPzm1cr80/s1600/DSC01735.JPG>. Acesso em: 08 abr. 2011.

Figura 26 - Mapa das línguas indígenas atualmente faladas no Brasil. Fonte: Instituto Socioambiental (2009). Disponível em: <http://pibmi-rim.socioambiental.org/en/node/22>. Acesso em: 08 abr. 2011.

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GlossáRio

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Glossário

Abdução: raciocínios canceláveis, com base em generalizações dadas pela experiência. Notamos que os carros, a rua, as casas estão molhadas. Em geral, isso ocorre porque choveu. Concluímos que choveu. Esse ra-ciocínio é também chamado de ceteris paribus, se tudo correu normal-mente.

Ciência: tem como objetivo entender a natureza, explicá-la. Para tanto, baseia-se na análise de dados. Propõe teorias que devem ser refutáveis.

Dedução: raciocínio necessário a partir de premissas tomadas como verdadeiras. Exemplo:

Todos os homens são mortais.

João é homem.

Concluí-se que

João é mortal.

Indução: generalização feita a partir de um grande número de casos particulares. Notamos vários casos de cisnes brancos e concluímos que os cisnes são brancos.

Formalismo: na linguística compreende as abordagens que procuram estudar a linguagem autonomamente; privilegiando sua forma.

Funcionalismo: as abordagens linguísticas que dão privilégio às fun-ções da linguagem.

Naturalização: movimento filosófico que iniciou na década de 1930 cujo objetivo é estudar os fenômenos mentais a partir de uma perspecti-va naturalista, isto é, tratando-os como fenômenos naturais.

Nomológico-dedutivo: Método de investigação que consiste em dedu-zir leis naturais a partir de outras leis naturais. Entende que os fenôme-nos naturais são determinísticos.

Paradigma: congregado de método, teoria, dados, que é compartilhado por uma comunidade científica. Por exemplo, a teoria da relatividade.