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UFRJ QUALIA INTENCIONAIS: ACERCA DA ABORDAGEM REPRESENTACIONAL DA CONSCIÊNCIA FENOMENAL. José Gladstone Almeida Júnior. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia (Lógica e Metafísica). Orientador: Prof. Dr. Roberto Horácio de Sá Pereira Rio de Janeiro. Março de 2020.

QUALIA INTENCIONAIS: ACERCA DA ABORDAGEM … · Consciência fenomenal. 2. Qualia. 3. Intencionalidade. 4. Representacionismo. 5. Conteúdo perceptivo. I. Sá Pereira, Roberto Horácio

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UFRJ

QUALIA INTENCIONAIS: ACERCA DA ABORDAGEM

REPRESENTACIONAL DA CONSCIÊNCIA FENOMENAL.

José Gladstone Almeida Júnior.

Tese de Doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Lógica e

Metafísica, Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do

título de Doutor em Filosofia (Lógica e

Metafísica).

Orientador: Prof. Dr. Roberto Horácio de

Sá Pereira

Rio de Janeiro.

Março de 2020.

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

A447qAlmeida Júnior, José Gladstone Qualia intencionais: acerca da abordagemrepresentacional da consciência fenomenal. / JoséGladstone Almeida Júnior. -- Rio de Janeiro, 2020. 116 f.

Orientador: Roberto Horácio de Sá Pereira. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Instituto de Filosofia e CiênciasSociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica eMetafísica, 2020.

1. Consciência fenomenal. 2. Qualia. 3.Intencionalidade. 4. Representacionismo. 5.Conteúdo perceptivo. I. Sá Pereira, Roberto Horáciode, orient. II. Título.

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Sou cabra da peste.

Eu sou de uma terra que o povo padece

Mas nunca esmorece, procura vencê,

Da terra adorada, que a bela cabôca

De riso na boca zomba do sofrê.

Não nego meu sangue, não nego meu nome,

Olho para fome e pergunto: o que há?

Eu sou brasilêro fio do Nordeste,

Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Tem munta beleza minha boa terra,

Derne o vale à serra, da serra ao sertão.

Por ela eu me acabo, dou a própria vida,

É terra querida do meu coração.

Meu berço adorado tem bravo vaquêro

E tem jangadêro que domina o má.

Eu sou brasilêro fio do Nordeste,

Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ceará valente que foi munto franco

Ao guerrêro branco Soare Moreno,

Terra estremecida, terra predileta

Do grande poeta Juvená Galeno.

Sou dos verde mare da cô da esperança,

Que as água balança pra lá e pra cá.

Eu sou brasilêro fio do Nordeste,

Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ninguém me desmente, pois, é com certeza,

Quem qué vê beleza vem ao Cariri,

Minha terra amada pissui mais ainda,

A muié mais linda que tem o Brasí.

Terra da jandaia, berço de Iracema,

Dona do poema de Zé de Alencá.

Eu sou brasilêro fio do Nordeste,

Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Patativa do Assaré.

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AGRADECIMENTOS.

Aos meus familiares Rossana Nayara, Maria Noélia, Ramoniela Bezerra, Winderson

Chaves e Allany Chaves. Cujo apoio, afeto e paciência tornaram possível a concretização

desta conquista. Amo vocês!

Ao professor Roberto Horácio, por sua solicitude, pela confiança depositada em mim e

por suas correções minuciosas. Sua orientação foi fundamental para a realização desta

pesquisa.

Aos professores André Leclerc e Cícero Barroso, que acompanharam minha pesquisa em

filosofia da mente na graduação e no mestrado sempre com contribuições importantes.

À professora Karla Chediak, pelas contribuições e estimulantes discussões suscitadas por

ocasião da pré-defesa.

Ao professor Eros de Carvalho, por sua gentileza ao aceitar participar da minha banca de

defesa.

Ao corpo docente do Programa de Pós-graduação Lógica e Metafísica da UFRJ. Em

especial aos professores Dirk Greimann, Marina Velasco, Guido Imaguire e Célia

Teixeira.

Às funcionárias que compõem a secretaria do Programa de Pós-graduação Lógica e

Metafísica da UFRJ.

Aos colegas do curso de filosofia da Universidade Federal do Cariri.

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RESUMO.

QUALIA INTENCIONAIS: ACERCA DA ABORDAGEM

REPRESENTACIONAL DA CONSCIÊNCIA FENOMENAL.

José Gladstone Almeida Júnior.

Orientador: Prof. Dr. Roberto Horácio de Sá Pereira.

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação Lógica e

Metafísica, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção de título de Doutor em

Filosofia (Lógica e Metafísica).

O objetivo deste trabalho é apresentar uma teoria representacionista sobre as experiências

perceptivas que explicita a indissociabilidade entre consciência fenomenal e

intencionalidade nestes estados. Defenderemos que esta abordagem permite explicar

completamente o caráter fenomenal destes experiências em termos do seu conteúdo

representacional, evitando deste modo o compromisso ontológico com entidades sui

generis como os qualia. Para isto demonstraremos como esta teoria soluciona quatro dos

principais problemas suscitados pela consciência fenomenal, a saber: o argumento do

conhecimento, a lacuna explicativa, o problema difícil da consciência e o problema dos

zumbis. A teoria proposta está baseada em quatro teses fundamentais: a ideia de que as

experiências perceptivas realizam uma função informacional filogeneticamente

determinada, a tese da transparência, uma perspectiva conjuntivista do conteúdo

perceptivo e o não-conceitualismo.

Palavras-chave: Consciência fenomenal; Qualia; Intencionalidade;

Representacionismo; Conteúdo perceptivo.

Rio de Janeiro.

Março de 2020.

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ABSTRACT.

INTENTIONAL QUALIA: ON THE REPRESENTATIONAL ACCOUNT OF

PHENOMENAL CONSCIOUSNESS

José Gladstone Almeida Júnior.

Supervisor: Prof. Dr. Roberto Horácio de Sá Pereira.

Abstract of the PhD. Thesis submitted to the Post-Graduation Program Logic and

Metaphysics, Institute of Philosophy and Social Sciences, from Federal University of Rio

de Janeiro – UFRJ, as part of the necessary requisites for obtaining the PhD title in

Philosophy (Logic and Metaphysics).

The aim of this work is to put forward a representacionalist theory about perceptual

experiences that make explicit the inseparability between phenomenal consciousness and

intentionality on that states. We will defend this approach allows to explain completely

the phenomenal character of that experiences in terms of their representational content,

thus avoiding the ontological commitment with sui generis entities like qualia. For this

we will demonstrate how this theory solves four of the main problems raised by

phenomenal consciousness, namely: the knowledge argument, the explanatory gap, the

hard problem of consciousness and the zombie problem. The proposed theory is based on

four fundamental theses: the idea that perceptual experiences perform a phylogenetically

determined informational function, the transparency thesis, a conjuntivist approach of the

perceptual content and the non-conceptualism.

Key-words: Phenomenal consciousness; Qualia; Intentionality; Representationalism;

Perceptual content.

Rio de Janeiro.

March of 2020.

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SUMÁRIO.

INTRODUÇÃO: DOIS CONCEITOS DE “CONSCIÊNCIA”................................ 7

UNIDADE I: CONSCIÊNCIA FENOMENAL E INTENCIONALIDADE........... 15

1. Alguns problemas decorrentes da consciência fenomenal...................... 15

1.1. Argumento do conhecimento................................................................. 15

1.2. Lacuna explicativa................................................................................. 16

1.3. Problema difícil da consciência............................................................. 19

1.4. O Problema do zumbi............................................................................ 23

2. Intencionalidade.......................................................................................... 26

2.1 A tese de Brentano.................................................................................. 26

2.2 Intencionalidade segundo Searle............................................................. 28

UNIDADE II: O QUADRO TEÓRICO REPRESENTACIONISTA...................... 32

3. Transparência, externismo fenomenal e conteúdo amplo....................... 34

4. Conteúdo perceptivo................................................................................... 45

4.1 Conteúdo singular................................................................................... 50

4.2 Conteúdo geral........................................................................................ 55

4.3 Conteúdo lacunar.................................................................................... 59

4.4 Uma proposta conjuntivista.................................................................... 63

5. Conteúdo perceptivo e não-conceitualismo................................................ 73

UNIDADE III: REPRESENTACIONISMO E CONSCIÊNCIA FENOMENAL... 89

6. Aplicando a teoria aos problemas................................................................ 89

6.1. O que Mary descobriu?......................................................................... 89

6.2. Lacuna explicativa e problema difícil sob a perspectiva

representacionista......................................................................................... 92

6.3. Zumbis filosóficos e o argumento da conceptibilidade......................... 96

CONCLUSÃO............................................................................................................. 105

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 109

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INTRODUÇÃO: DOIS CONCEITOS DE “CONSCIÊNCIA”.

Certamente a consciência é algo extremamente familiar e, ao mesmo tempo,

enigmático. A consciência se mostra a cada indivíduo com extrema vivacidade e sua

existência é raramente negada. Descartes, inclusive, defendeu durante toda a sua obra

filosófica que este “eu”, denominado pelo autor francês de res cogitans, se constitui como

substrato ineliminável de todo conhecimento indubitável. Porém, nosso arcabouço

teórico-científico até hoje parece ter pouco a nos dizer especificamente sobre este

fenômeno. A consciência é uma característica fundamental de organismos biológicos

dotados de um córtex, desde aqueles mais complexos, tais como nós seres humanos, até

aqueles organismos mais elementares, como abelhas. Mas apesar disto sobre ele nada ou

quase nada conhecemos, tal como sabemos sobre o funcionamento de nosso sistema

reprodutivo, sobre o nosso sistema digestivo, ou mesmo o conhecimento que possuímos

acerca da força gravitacional. É premente a necessidade de avançarmos na elaboração de

concepções que compreendam os estados mentais conscientes como parte do nosso

mundo, como quaisquer fenômenos naturais. Em outras palavras, é necessário trazer a

consciência à ordem natural.

De que modo surge a consciência? Como algo puramente mental pode ser

gerado a partir de determinadas estruturas físicas e das relações estabelecidas no interior

destas estruturas? Em outras palavras, como é possível algo com tais características

peculiares advir de uma base estritamente neurobiológica? De que maneira misteriosa a

consciência, por sua vez, pode se relacionar com o domínio físico de modo a causar algum

evento neste? Como é possível a existência de algo com características tão singulares em

um mundo físico que é satisfatoriamente explicado pelas ciências naturais tais como a

química, a física e a biologia? Estas são somente algumas das principais questões que

surgem ao pesquisar este assunto.

A complexidade envolvida neste tema já se torna evidente ao tentarmos

propor uma definição deste conceito. Um bom exemplo para iniciarmos esta discussão é

analisarmos a seguinte definição apresentada por John Searle:

Seria esta a definição: a consciência consiste em estados e processos de

sensibilidade e ciência, internos, qualitativos e subjetivos. De acordo com esta

definição, a consciência começa quando o indivíduo desperta de manhã de um

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sono sem sonhos e continua até que adormeça de novo, morra, entre em coma

ou fique, de alguma maneira, “inconsciente”. (SEARLE, 2010 b, p. 55)

Esta definição de Searle sofre inúmeras críticas pelo fato de incorporar sob

sua extensão diversos aspectos da consciência. De acordo com Ned Block, um dos

principais críticos da definição searliana, da consciência possuímos um conceito híbrido

ou mestiço, isto é, que conota diferentes conceitos e denota diferentes fenômenos. Um

breve exame do nosso uso cotidiano de “consciência” é suficiente para se perceber que

tratamos de diferentes conceitos como um só. Nossa concepção de senso comum nos

possibilita o emprego correto deste termo nas mais variadas situações, porém o entrave

para sua definição surge do fato de tratarmos este conceito como unívoco. Em especial,

segundo este autor, costumeiramente cometemos o erro de confundir ao menos dois

conceitos mais fundamentais e independentes entre si, são eles: consciência fenomenal e

consciência de acesso1 (cf. BLOCK, 1995).

A princípio, a consciência fenomenal não é passível de definição não circular,

ou seja, não podemos oferecer uma definição redutiva sem antes pressupor um conjunto

de outras noções intensionais que, ao lado da consciência fenomenal, compõem um

círculo de noções interdefiníveis. Trata-se, portanto, de um conceito primitivo. Não

obstante, podemos caracterizá-la a partir de um aspecto fundamental dos estados

conscientes: seu aspecto subjetivo. Grande parte das discussões filosóficas acerca da

consciência versa sobre este assunto, muitos filósofos inclusive defendem que esta é sua

característica mais importante, contudo, é inegável que ela suscita as mais difíceis

questões. Toda experiência consciente só é possível na medida em que é instanciada por

um indivíduo, isto é, a existência de um sistema que possua as propriedades necessárias

para a produção da consciência é condição de possibilidade para a ocorrência de um

estado consciente específico. Por esta razão, é possível afirmar que todo estado consciente

é necessariamente um estado consciente de um determinado indivíduo. Em decorrência

1 Por certo esta não é a única distinção interna ao conceito de consciência proposta na literatura. Hill (2011),

por exemplo, propõe que este conceito seja subdividido em sete outros mais básicos. Não obstante, sigo a

perspectiva de Block por dois motivos. Em primeiro lugar, a distinção entre consciência de acesso e

consciência fenomenal permite abordar de forma mais direta os problemas sobre os quais me debruço e

esclarece com maior objetividade a alegada discrepância à qual me oponho. Em segundo lugar, adoto esta

distinção devido à grande influência que ela exerceu e continua exercendo nas discussões em filosofia da

mente na tradição analítica.

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deste fato, a consciência é sempre perspectiva, ou seja, sempre é relativa ao ponto de vista

do sujeito que é seu possuidor e isto parece ser algo irrecusável.

Para utilizar um exemplo recorrente em filosofia da mente (NAGEL, 1974),

atualmente possuímos conhecimento bem fundamentado sobre diversos aspectos dos

morcegos. Como seus hábitos noturnos, o fato de algumas espécies serem hematófagas,

e seu sistema de ecolocalização que é uma espécie de sonar pelo qual os morcegos

identificam os obstáculos a partir da reverberação de sons emitidos em alta frequência.

Contudo, tal conhecimento nos mostra o que é ser um morcego a partir de sua própria

perspectiva? Apesar de todo este conhecimento objetivo acerca do morcego, não somos

capazes de compreender “o que é ser” (what is like to be) um morcego.

A inescrutabilidade atribuída ao aspecto subjetivo da experiência consciente

não se deve ao fato de tomarmos como exemplo um organismo significativamente

diferente do nosso, pois aparentemente isto seria o caso mesmo se algum dia obtivermos

um estudo completo da fisiologia e das conexões causais ocorridas no sistema nervoso

humano. Até mesmo tal conhecimento não nos tornaria aptos a ter acesso àquilo que é ser

o indivíduo que instancia determinado estado consciente. Em outros termos, mesmo em

posse dos correlatos neurais da consciência (CNC) de um ser humano, não teríamos

acesso à perspectiva de primeira pessoa de sua consciência. Disto decorre que há um

aspecto qualitativo intrinsecamente associado à experiência consciente que não seria

acessado nem mesmo se tivéssemos um conhecimento quantitativo completo sobre a

neurofisiologia do indivíduo. Este aspecto recebeu na literatura o termo técnico de qualia.

Uma vez que tal termo foi associado a uma metafísica dualista, o entenderemos aqui como

a propriedade fenomenal e subjetiva de nossa vida mental que é acessível mediante

introspecção.

É útil também caracterizarmos a consciência de modo ostensivo apontando

para diversos tipos de experiências perceptivas conscientes, consideradas o “lócus

primário” da consciência fenomenal. Tais como, por exemplo, o vermelho que

experimentamos ao instanciarmos uma experiência visual consciente de um livro

vermelho, a sensação prazerosa de sentir a textura da pele da pessoa amada, o cheiro de

um perfume que foi marcante em um dado momento, o sabor particular que

experimentamos ao degustarmos um bom uísque, etc.

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Por outro lado, Block defende que os qualia não exaurem o que entendemos

por “consciência”. Existem outros tipos de estados e processos mentais que não

comungam da mesma característica fundamental dos qualia, estados em que não há

necessariamente algo que seja como instanciá-los. Estes compõem a chamada consciência

de acesso. Segundo Block, um estado é consciente no sentido do acesso se estiver apto

para ser usado para o controle racional direto do pensamento e da ação. Exemplos

paradigmáticos são as chamadas atitudes proposicionais. Estados e processos cognitivo-

intencionais, tais como crenças, desejos e aprendizagem, não estão essencialmente

envolvidos com algum aspecto qualitativo intrinsecamente associado. Sua principal

característica é a execução de uma função causal/explicativa na produção de

comportamento adequado tendo em vista os estímulos ambientais aos quais o organismo

é submetido. Dito de outra forma, são estados mentais funcionalmente analisáveis, isto é,

estados que aparentemente podem ser plenamente definidos em termos da implementação

de determinada função no interior do sistema cognitivo que os instancia.

Assim, estados cognitivo-intencionais têm como cerne o papel causal

desempenhado. Estes constituem o objeto de estudo das ciências cognitivas. Entendida

como ciência da simulação, a ciência cognitiva objetiva a reprodução das propriedades

determinantes para a organização funcional de um sistema, ou sua invariante

organizacional (cf. TEIXEIRA, 2004, p. 21), no intuito de construir um modelo

psicológico que possa ser efetivamente testado. Deste modo o que está em jogo nesta

concepção não é a replicação de todos os aspectos da vida mental de um ser humano, mas

a reprodução das relações causais estabelecidas em um sistema cognitivo tendo em vista

a relação entre input e output. Tomando as explicações funcionais padrão, a redução de

processos cognitivo-intencionais, como a aprendizagem, aos mecanismos subjacentes

relevantes para a execução de determinada função parecem suficientes para explicar

aquilo que há de essencial neste processo. Em última instância, a aprendizagem pode ser

caracterizada como a função causal presente quando determinado sistema físico

complexo produz um comportamento adequado em virtude de uma estimulação ambiental

e este mesmo padrão de resposta é produzida novamente ao sofrer o mesmo tipo de

estímulo. Seguindo o mesmo padrão, a capacidade de o sujeito acessar e relatar seus

próprios estados internos pode ser explicada através da exposição dos mecanismos

subjacentes relevantes que possibilitam a integração das informações obtidas pelos

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diversos sistemas perceptivos de processamento, o armazenamento destas informações e

a disponibilidade destas para o relato verbal.

Embora possa haver, e de fato existem, divergências quanto à análise mais

adequada destas noções, o que há de essencial em aprender ou relatar estados internos

são, respectivamente, a capacidade de o sujeito produzir comportamento adequado ao

input ambiental, e a capacidade de expressar linguisticamente as informações

memorizadas. Genericamente falando, explicar um estado cognitivo-intencional é

explicar o papel causal/explicativo realizado por ele no interior do sistema.

Do que até aqui foi exposto, fica patente uma ambiguidade imanente ao

conceito de consciência que necessita ser desfeita para a elaboração de uma teoria

apropriada. Como corolário, devemos dividi-lo nos dois conceitos mais basilares

propostos por Block: consciência fenomenal, que se refere aos estados mentais que

possuem um caráter fenomenal, os qualia; e consciência de acesso que são os estados

cujos conteúdos são disponíveis para relato verbal, para inferência racional e/ou controle

deliberado do comportamento, em suma, estados conscientes cuja principal característica

é a realização de determinada função causal/explicativa. David Chalmers (1996) realiza

uma distinção semelhante ao contrapor à consciência fenomenal o que ele denomina de

de consciência psicológica.

Block expõe duas diferenças essenciais nas passagens a seguir, onde o autor

se refere à consciência fenomenal como consciência-P e à consciência de acesso como

consciência-A:

O primeiro ponto, posto cruamente, é que o conteúdo P-consciente é

fenomenal, ao passo que o conteúdo A-consciente é representacional. É da

essência do conteúdo A-consciente desempenhar um papel no raciocínio, e

apenas o conteúdo representacional pode figurar no raciocínio. [...]

Uma segunda diferença é que a consciência-A é uma noção funcional, assim o

conteúdo A-consciente é relativo do sistema: o que faz um estado A-consciente

é o que uma representação do seu conteúdo faz em um sistema. Consciência-P

não é uma noção funcional. (BLOCK, 1995, p. 232)

A pertinência desta distinção conceitual parece ainda mais evidente quando

buscamos explicar o surgimento da consciência. Grosso modo, podemos tentar explica-

la recorrendo a duas teorias muito robustas e amplamente aceitas: a teoria da evolução

gradual das espécies e a teoria atômica da matéria. Através delas é possível chegarmos a

conclusões objetivas que garantem boas razões para compreender o surgimento e o

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desenvolvimento da consciência. Considerando a teoria atômica, é possível compreender

que inúmeros fenômenos macroscópicos podem ser elucidados através de uma análise

microscópica, ou seja, esta teoria demonstra a possibilidade de sistemas complexos serem

“causalmente explicáveis” pelos pequenos sistemas que os compõem. A teoria

evolucionista, por sua vez, evidencia que alguns organismos submetidos a processos

evolutivos durante milhares de anos desenvolveram subsistemas de células nervosas e

que, dentre eles, algumas espécies chegaram a um sistema nervoso extremamente

complexo. Complexo de tal modo que alguns processos, como impulsos eletroquímicos

e liberação de neurotransmissores através das fendas sinápticas, produzem no organismo

a capacidade de reagir a estímulos com comportamento apropriado, a capacidade de

produzir conhecimento, de desenvolver um sistema linguístico, de interagir com outros

indivíduos e construir uma sociedade de relações cada vez mais complexas, e assim por

diante.

Todavia, apesar desta perspectiva objetiva proporcionada pelo discurso

científico ser extremamente elucidativa sobre diversos aspectos da consciência, não fica

clara a razão pela qual, além de todas estas características mencionadas, estes sistemas

nervosos produzem estados mentais qualitativos, os qualia. Toda a pesquisa científica

voltada para os fatos físicos ou, mais especificamente, para os processos cerebrais,

embora proporcione muitos avanços na compreensão de alguns estados cognitivo-

intencionais, não exaure todos os aspectos da consciência.

A descrição da dor como a estimulação das fibras nervosas do tipo C que gera

um determinado estado mental no indivíduo que acaba acarretando a produção de um

comportamento aversivo é fundamental para a compreensão físico-funcional do

fenômeno, porém esta descrição não abrange todas as características inerentes ao

fenômeno. Algo crucial não é tocado por este prisma teórico, a saber, o aspecto subjetivo

que acompanha o aspecto funcional.2

2 É necessário ressaltar, no entanto, que embora seja conceitualmente possível esta distinção entre

consciência fenomenal e consciência de acesso, muitas noções mentais possuem ambos os aspectos, como

o exemplo da dor descrito acima. É evidente a presença da experiência consciente da dor que é particular

do indivíduo e a execução de determinada função causal que culminou na exteriorização do

comportamento. Muitos estados cognitivo-intencionais são, por assim dizer, acompanhados por uma

experiência consciente. A dor é um exemplo claro da co-ocorrência de ambos os aspectos da consciência.

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Em suma, em filosofia da mente é comum traçar uma distinção entre estados

fenomenais e estados intencionais. De modo que os aspectos qualitativos das experiências

conscientes ocorrem independentemente de qualquer intencionalidade associada a elas, e

os aspectos intencionais dos estados cognitivo-intencionais podem estar presentes

independentemente de qualquer caráter fenomenal.

Com isto delimitamos o problema que constitui o ponto de partida de nossa

reflexão: a perspectiva que contrapõe consciência de acesso e consciência fenomenal, e

que atribui a esta uma natureza inescrutável e irredutível. O fio condutor desta reflexão

consistirá no exame da consciência fenomenal característica das experiências perceptivas.

Nosso principal objetivo será propor e analisar pormenorizadamente uma teoria da

consciência que desafia esta suposta oposição. Nomeadamente, voltaremos nossa atenção

para a teoria representacionista que afirma a interface existente entre consciência

fenomenal e intencionalidade, buscando tratar as experiências conscientes perceptivas em

termos do seu conteúdo representacional. Nosso propósito nesta tese é fundamentalmente

propositivo: consiste em avançar e sustentar uma teoria própria e original acerca da

experiência perceptiva. Norteada por uma tendência claramente naturalista, a abordagem

sobre a natureza do conteúdo perceptivo aqui defendida associa teses filosóficas e

pesquisas desenvolvidas nas ciências cognitivas.

Para a consecução do objetivo traçado, o percurso metodológico adotado será

dividido em três unidades. A primeira unidade será dedicada à problematização da

consciência fenomenal, demonstrando de que forma esta impõe severas dificuldades ao

quadro teórico fisicista/funcionalista. Para isto serão expostos quatro argumentos que

apoiam a irredutibilidade dos qualia, são eles: o argumento do conhecimento, a lacuna

explicativa, o problema difícil da consciência e o problema do zumbi. O segundo capítulo

desta unidade apresentará a intencionalidade, propriedade essencial de nossos estados

mentais e que desempenha papel importante nos desdobramentos de nossa análise.

Compreendendo os capítulos 3, 4 e 5, a segunda unidade consistirá na

exposição e na análise da teoria representacionista. Discutiremos os diversos elementos

que estão subjacentes e constituem o cerne desta teoria, tais como: a tese da transparência

das experiências conscientes; a noção de representação natural; a concepção conjuntivista

do conteúdo perceptivo que ressalta a necessidade de concebermos os componentes

representacionais e relacionais deste conteúdo; as noções de quadros de referência e

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sistemas de coordenadas; e o não-conceitualismo. A teoria resultante é uma versão

moderada do representacionismo por meio da qual a experiência perceptiva é

apropriadamente explicada fazendo referência apenas a seus aspectos representacionais.

Em outras palavras, a teoria que defenderemos se propõe a explanar toda a complexidade

envolvida nas experiências perceptivas exclusivamente com base em seu conteúdo

representacional. Assim, esta teoria indica um projeto explicativo alternativo à ortodoxia

reducionista do representacionismo ao mesmo tempo em que não se compromete com a

ontologia inflacionada do representacionismo não-reducionista. Ao passo em que, como

veremos, proporciona respostas satisfatórias aos problemas da experiência perceptiva sem

multiplicar as categorias ontológicas, a inferência para melhor explicação parece

corroborar esta teoria representacionista ao invés de alguma outra que pressuponha os

qualia.

Por fim, na terceira unidade, pretendemos demonstrar como o

representacionismo soluciona os quatro argumentos supracitados. A teoria aqui

formulada proporciona depreender respostas consistentes para estes problemas essenciais

da filosofia da mente, o que ratificará a pertinência de suas teses principais. Estabelecidas

estas bases, a ampla capacidade explicativa desta teoria aponta caminhos para superar

algumas objeções clássicas ao representacionismo. Diante disto, nas considerações finais,

após fazer um apanhado geral das ideias defendidas, apresentaremos uma resposta à

concepção searliana (2002 e 2006) de que as dores são exemplo de estados conscientes

não intencionais.

É importante destacar que, em razão de seu caráter primordialmente

propositivo, o texto que aqui se inicia não tem pretensões de se configurar como uma

apresentação exaustiva das perspectivas de diversos autores sobre os tópicos que serão

abordados. O cerne deste trabalho é claramente o de exposição sistemática de uma versão

do representacionismo capaz de responder aos desafios impostos pelos qualia, sendo

assim, não seguirá uma orientação exegética detida em minúcias do pensamento de

autores que pode nos desviar de nosso foco.

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UNIDADE I: CONSCIÊNCIA FENOMENAL E INTENCIONALIDADE.

1. Alguns problemas decorrentes da consciência fenomenal.

Diante da distinção supracitada, a consciência fenomenal constitui o cerne

dos principais problemas discutidos atualmente na filosofia da mente. De modo que os

qualia são o principal obstáculo ao programa fisicista/funcionalista. Este aspecto passa a

ser um entrave para o estudo científico da consciência, pois não se mostra suscetível à

explicação redutiva nos termos objetivos propostos. Um grupo de problemas parece

convergir para esta conclusão, dentre eles destacaremos os quatro a seguir.

1.1 Argumento do conhecimento.

O argumento do conhecimento foi introduzido por Frank Jackson (1982,

1986) e incide fortemente sobre a distinção, a princípio, entre os qualia e os aspectos

quantitativos do substrato físico da consciência, apontando basicamente para a

impossibilidade de se conhecer os qualia de forma objetiva. Em seu exemplo mais

famoso, Jackson sugere que Mary é uma excelente cientista que possui conhecimento

completo e exaustivo sobre todos os fatos físicos relevantes sobre cores e o nosso sistema

visual, conhecendo todos os comprimentos de onda emitidos por elas e o modo como são

percebidas. Mary possui conhecimento completo sobre os processos neurofisiológicos

relevantes que estariam na base das nossas experiências de cores.

No entanto, Mary foi forçada desde seu nascimento a viver em um quarto

onde não tem contato com nenhuma cor que não seja uma variante de preto ou branco,

seu quarto é todo pintado em preto e branco, os livros pelos quais estudou são todos em

preto e branco, assim como sua TV e seu computador. Depois de passar toda sua vida

assim confinada, Mary consegue escapar do cativeiro e logo após se depara com um

tomate maduro. Nesse momento, ela realiza pela primeira vez a experiência de ver algo

vermelho. A pergunta fundamental que se coloca é a seguinte: realizando pela primeira

vez a experiência de ver algo vermelho, estaria Mary aprendendo algo de novo?

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Nesse particular, as opiniões se dividem. Fisicistas do tipo A (Dretske,

Dennett), sustentam que Mary não realizou progresso algum. Fisicistas tipo B sustentam

que ela apreendeu algo de novo. E antifisicistas (Jackson, Chalmers etc.) sustentam que,

se ela veio a conhecer um fato novo, esse não poderia ser um fato físico, pois, por

hipótese, ela já os conhecia todos. Deixemos de lado, por hora, fisicistas do tipo A.

Intuitivamente, o conhecimento de Mary sobre todos os fatos físicos sobre cores e visão

de cores não contempla a experiência subjetiva de ver o vermelho. Os qualia se mostram

como algo além da mera descrição objetiva dos fatos físicos através de nossa linguagem

que é essencialmente intersubjetiva. São aspectos subjetivos que parecem ser irredutíveis

a qualquer objetividade. É necessário salientar que este argumento pode ser estendido a

todos as experiências perceptivas conscientes. Jackson resume o argumento do

conhecimento da seguinte maneira:

Claramente, o mesmo estilo de argumento do conhecimento poderia ser

estendido para o tato, audição, sensações corporais e, genericamente falando,

para os diversos estados mentais os quais são ditos ter (como é posto

veridicamente) sensações brutas, características fenomenais ou qualia. A

conclusão em cada caso é que os qualia são deixados de fora da história

fisicista. E a força dialética do argumento do conhecimento é que é muito

difícil negar a afirmação central que se pode ter toda a informação física sem

ter toda a informação que há para ter. (JACKSON, 1982, p. 130)

Este argumento contra o reducionismo incide principalmente contra uma

versão a priori do fisicismo. De acordo com esta concepção, se o fisicismo for verdadeiro,

então deve ser o caso que a conjunção de todas as verdades microfísicas, acrescidas da

cláusula “Isto é tudo” e das informações dêiticas necessárias implicam a priori todas as

verdades. Isto é, de posse deste conhecimento é possível deduzir tudo. Não obstante, em

seu quarto, mesmo conhecendo todos os fatos microfísicos além da cláusula “Isto é tudo”

e das informações dêiticas, Mary não poderia deduzir a priori o conhecimento do que é

ver o vermelho. O que implicaria que existem coisas que não estão circunscritas ao

domínio físico, logo o fisicismo seria falso.

1.2. Lacuna explicativa.

Todos sabemos o que é sentir medo, sentir sede ou sentir a dor de um corte

com papel. Certamente, aqueles que já tiverem a oportunidade de voar de asa-delta sabem

o que é planar no céu sentindo o vento bater no corpo além de toda a excitação

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proporcionada por este momento. Por outro lado, também possuímos um conhecimento,

ainda que incompleto, sobre alguns processos ocorridos em nosso sistema tálamo-

cortical. No entanto, as explicações que podemos extrair deste conhecimento não parecem

dar conta das situações que expusemos acima. Parece haver um certo hiato entre ambos

os relatos. Afirmar que quando voamos de asa-delta uma grande quantidade dos

neurotransmissores adrenalina e noradrenalina é liberada em nosso organismo explica

claramente alguns fenômenos como, por exemplo, o aumento da frequência cardíaca, da

pressão arterial e a contração de alguns músculos, entretanto, não está ao alcance deste

quadro teórico o aspecto subjetivo e qualitativo vivenciado neste momento. Isso porque

no primeiro caso, conhecemos os mecanismos e leis que explicam por que os

neurotransmissores produzem vaso-contração e aceleração da frequência cardíaca. Ora, o

mesmo não se dá no caso do caráter fenomenal da experiência. Mesmo que saibamos que

a liberação dos neurotransmissores esteja associada à euforia ou ao medo, não

conhecemos nenhum mecanismo capaz de explicar porque sentimos euforia ou medo

quando tais neurotransmissores são liberados.

Como corolário, argumenta Joseph Levine (1983, 1999), somos impelidos a

concluir pela existência de uma lacuna explicativa decorrente da falha das teorias

reducionistas do programa fisicista/funcionalista. A posse de todo o conhecimento físico

e funcional sobre um indivíduo que instancia uma experiência consciente não seria

suficiente para explicar por que o indivíduo instancia também este aspecto qualitativo

específico. Mesmo que seja descoberto o correlato neural instanciado no momento em

que vemos uma rosa vermelha, ainda parece obscuro porque experimentamos a

vermelhidão da rosa. Genericamente falando, mesmo supondo os qualia como idênticos

a determinados processos neurofisiológicos ocorridos no sistema tálamo-cortical (no caso

de teorias da identidade psicofísica) ou a determinadas funções causais/explicativas

executadas no interior de um sistema cognitivo tendo em vista seus inputs e outputs (no

caso teorias funcionalistas), ainda parece oportuna a pergunta: por que tenho

especificamente estas experiências conscientes e não outras?

Há uma lacuna explicativa entre as teorias reducionistas e a consciência

fenomenal relacionada a um déficit epistêmico entre as limitadas conclusões fornecidas

por teorias fisicistas e os aspectos qualitativos da consciência. Uma teoria funcionalista

poderia definir o estado mental da dor como aquele originado pelo disparo das fibras

nervosas do tipo C, cujo papel causal culminou na exteriorização de um comportamento

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aversivo ao input ambiental, evitando assim maior dano ao organismo. Contudo, a

existência de perguntas não respondidas como: “Como este processo dá origem a esta

experiência consciente específica de uma dor latejante? ” ou “Por que esta função causal

que intermedeia a relação de estímulo e resposta é acompanhada por algo que é como

estar com uma dor perfurante?” mostram que algo essencial está sendo negligenciado por

tais explicações neurofisiológicas.

Em síntese, afirmar a lacuna explicativa é afirmar as limitações das teorias

reducionistas, é defender que as explicações obtidas através delas não são capazes de

tratar dos qualia. Como dissemos anteriormente, as ciências cognitivas visam

implementar um modelo que reproduza determinadas funções de sistemas cognitivos, que

desempenhe papéis característicos de organismos inteligentes. Não se busca a replicação

de todos os aspectos da vida mental de um ser humano, mas a reprodução das relações

causais estabelecidas em um sistema cognitivo tendo em vista a relação entre estímulo e

resposta. Esta perspectiva proporciona um grande esclarecimento acerca do papel

causal/explicativo executado por um estado ou processo cognitivo-intencional, contudo

os qualia não são explicados por esta abordagem. Na ciência cognitiva, assim como nas

teorias funcionalistas em geral, grande parte dos esforços estão voltados para a

consciência de acesso, enquanto a consciência fenomenal permanece um mistério. Há um

hiato epistemológico quando se busca reduzir uma dessas propriedades à outra. Levine

formula o problema nos seguintes termos:

Não creio que esta intuição sustente a tese metafísica que Kripke defende –

nomeadamente que as afirmações de identidade psicofísicas têm de ser falsas.

Ao invés, penso que sustenta uma tese epistemológica intimamente

relacionada com essa – nomeadamente, que as afirmações de identidade

psicofísicas deixam uma lacuna explicativa significante e, como corolário, que

não temos modo algum de determinar exatamente que afirmações de

identidade psicofísicas são verdadeiras. (LEVINE, 1983, p. 354)

Em virtude desta lacuna entre as teorias reducionistas e os aspectos

qualitativos da consciência, autores como Colin McGinn defendem uma posição cética

em relação à obtenção de uma explicação acerca da consciência, configurando-se como

algo extremamente misterioso que está para além de nosso entendimento. Tratar-se-ia de

uma lacuna intransponível. Esta lacuna nada mais seria do que um reflexo de nossa

limitação cognitiva que impossibilita a compreensão de um fenômeno com tamanha

complexidade. Nos termos de McGinn, há um “fechamento cognitivo” (MCGINN, 1989,

p. 350) que nos impede de formular conceitos e explicações sobre os qualia. Não obstante,

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do reconhecimento de tal fechamento cognitivo não se segue que a consciência não seja

uma propriedade real; apenas não podemos explicá-la. Sobre sua posição cética em

relação à resolução deste problema decorrente da consciência fenomenal, McGinn

escreve:

A abordagem que favoreço é naturalista, mas não construtivista: não creio que

possamos alguma vez especificar o que no cérebro é responsável pela

consciência, mas estou certo de que o que quer que seja não é inerentemente

miraculoso. O problema surge, como gostaria de sugerir, porque a nossa

própria constituição cognitiva nos impede de alcançar uma concepção desta

propriedade natural do cérebro (ou da consciência) que explica a ligação

psicofísica. Este é um tipo de nexo causal que estamos impedidos de alguma vez compreender, dado o modo que temos de formar nossos conceitos e

desenvolver nossas teorias. (MCGINN, 1989, p. 350)

1.3. O problema difícil da consciência.

O problema difícil da consciência, formulado por Chalmers (1995, 1996),

explora uma ideia próxima à lacuna explicativa. Contudo, este não se restringe a

questionar por que os processos físicos ocorridos no sistema tálamo-cortical dão origem

a um aspecto fenomenal específico, mas questiona por que tais processos dão origem a,

ou são acompanhados por, aspectos fenomenais em geral. Isto significa que é uma

pergunta sobre a própria possibilidade de experiências conscientes.

Em decorrência da distinção imanente ao conceito de consciência exposta

anteriormente, o assim chamado problema da consciência também deve ser distinguido

em dois para que possa ser mais bem compreendido. Quando definindo a consciência, a

ambiguidade presente neste conceito conduziu a uma separação entre consciência de

acesso e consciência fenomenal (ou consciência psicológica e consciência fenomenal de

acordo com a terminologia utilizada por Chalmers), do mesmo modo esta ambiguidade

demonstra a necessidade da diferenciação entre o problema referente à consciência de

acesso e à consciência fenomenal. Faz-se necessário “fatorar” o problema da consciência

entre, por um lado, aqueles concernentes aos estados cognitivo-intencionais e, por outro

lado, aqueles que se referem à experiência consciente.

A consciência de acesso diz respeito àqueles estados conscientes cujo

conteúdo representacional desempenha uma determinada função no interior do sistema

cognitivo, em última instância, estados cognitivo-intencionais. É sobre estes estados que

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a ciência cognitiva prioritariamente se debruça e, apesar de ela estar longe de uma

explicação completa sobre esses estados, argumenta Chalmers, o quadro teórico

funcionalista no qual a ciência cognitiva está inserida proporciona um programa de

trabalho que fornece uma ideia plausível de como eles podem sê-los. Por esta razão os

problemas referentes à consciência de acesso são denominados por Chalmers de

problemas fáceis (easy problems) da consciência (cf. CHALMERS, 1995, p.4). Em outras

palavras, a possibilidade da análise conceitual em termos funcionais das noções atribuídas

aos estados cognitivo-intencionais da consciência nos faz vislumbrar um meio de explicá-

los sem deixar nada crucial sobre estes de fora da explicação.3 Não entraremos no mérito

desta questão, pois nesta tese nos concentraremos apenas na consciência fenomenal.

Este tipo de explicação redutiva é muito comum nas ciências da natureza, na

genética podemos explicar os genes especificando o ADN como mecanismo subjacente

que executa a função de armazenar e transmitir hereditariamente informações para

gerações subsequentes, por exemplo. No entanto, como salientado anteriormente, os

qualia não são suscetíveis a este tipo de abordagem.

Por que quando nos cortamos com um objeto, além do estado cognitivo-

intencional que executa um papel causal, que culmina na exteriorização de algum

comportamento aversivo, surge uma experiência consciente que reflete o que é estar em

um estado de dor? Como explicar o fato de que quando olhamos um livro vermelho, além

do processamento de informações captadas por nosso sistema visual, possuímos a

sensação qualitativa da vermelhidão? Pondo em outros termos, por que determinados

processos neurobiológicos dão origem a estados fenomenais, ou mesmo por que algumas

propriedades funcionais de nossa consciência são acompanhadas por propriedades

3 A concepção apresentada por Chalmers de que os estados acesso conscientes poderiam ser plenamente

funcionalmente analisáveis, isto é, estados conscientes que poderiam ser objetivamente redutíveis em termos da execução de determinadas funções causais/explicativas sofre algumas objeções, dentre as quais

se destaca o problema dos dêiticos essenciais proposto por John Perry em seu artigo “The problem of the

essential indexical” de 1979. Segundo Perry, as atitudes proposicionais, que são caracterizadas por Block

como os estados acesso conscientes paradigmas (c.f. BLOCK, 1995, p. 232), cujo conteúdo pode ser

expresso linguisticamente recorrendo a termos indexicais (dêiticos) não podem ser reduzidas a papeis

funcionais sem uma perda considerável de significado cognitivo. Assim, atitudes proposicionais como “EU

estou ciente que o Flamengo venceu a partida. ” ou “Acredito que AQUI estamos em local seguro. ”

possuem uma representação subjetiva irredutível que não necessariamente é acompanhada por um aspecto

fenomenal. Consequentemente, reduzir estas atitudes proposicionais à execução de funções conduziria a

uma perda importante da capacidade de explicar o comportamento do indivíduo.

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fenomenais? Esse parece ser um obstáculo intransponível para as teorias reducionistas da

consciência.

As teorias funcionalistas não são capazes de responder porque, além das

funções executadas por tais sistemas cognitivos, estes ainda são acompanhados por um

aspecto qualitativo. Do mesmo modo, as teorias da identidade psicofísica não estão aptas

para responder porque os processos neurofisiológicos dão origem à consciência

fenomenal. A pergunta pela possibilidade de propriedades fenomenais está além da

capacidade explicativa destes prismas teóricos reducionistas. Estas teorias são

incompletas na medida em que carecem de recursos que tratem de modo apropriado o

caráter fenomenal das experiências conscientes. Por esta razão, Chalmers denomina o

problema dos qualia como o problema difícil da consciência (hard problem of

consciousness) (cf. CHALMERS, 1995, p. 3), o verdadeiro problema da consciência.

Sobre o problema difícil da consciência João de Fernandes Teixeira escreve:

A questão que se coloca é a seguinte: Por que o desempenho dessas funções

no cérebro é acompanhado por experiências? Ou seja, pode-se explicar como

a informação é discriminada, integrada e relatada, mas isto não significa

explicar como ela é experienciada. Essa é a questão-chave do problema da

consciência – explicar como e por que surge a experiência no decorrer do

processamento de informação. Não existe nenhuma função cognitiva cuja

explicação leve automaticamente a uma explicação da experiência consciente.

(TEIXEIRA, 2001, p. 101)4

O problema difícil da consciência provém, em parte, do fato de que a relação

existente entre as propriedades fenomenais e as propriedades físicas do sistema tálamo-

cortical não ser pautada em uma relação de superveniência lógica. A princípio, podemos

definir superveniência como a relação estabelecida entre um conjunto de propriedades de

base, por exemplo, o substrato neurobiológico, e um conjunto de propriedades

supervenientes, por exemplo, os qualia, por meio da qual as propriedades supervenientes

são dependentes das propriedades de base, de forma que o segundo conjunto é

determinado pelo primeiro. Assim, qualquer alteração nas propriedades supervenientes é

uma consequência de uma alteração nas propriedades de base. Dentre os diferentes tipos

de superveniência no que se refere à relação psicofísica, Jaegwon Kim aponta para dois

principais, são elas: a superveniência lógica (ou superveniência forte) e a superveniência

nomológica (ou superveniência fraca). A diferença entre ambas se dá na força modal

4 Ênfase do autor.

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atribuída por cada uma à relação entre os dois conjuntos. A superveniência nomológica

indica uma relação de superveniência estabelecida em um determinado mundo possível.

A superveniência lógica indica uma relação que se estabelece em todos os mundos

possíveis.

De acordo com a superveniência lógica, uma vez fixadas as propriedades de

base, ou subvenientes, não haveria possibilidade lógica para variação das propriedades

supervenientes. Logo, a indiscernibilidade das propriedades de base implica

necessariamente a indiscernibilidade das propriedades supervenientes em todos os

mundos possíveis. Em casos de superveniência lógica seria impossível a existência de

dois mundos possíveis indiscerníveis com relação às propriedades de base, mas onde um

deles não possui as propriedades supervenientes, ou onde um deles possui propriedades

supervenientes distintas, por exemplo. A covariação entre os conjuntos de propriedades

se dá por meio de necessidade lógica; esta covariação seria o caso em todos os mundos

possíveis. A instanciação das propriedades supervenientes seria uma consequência da

instanciação das propriedades de base, estas implicariam necessariamente aquelas.5

Contudo, segundo o anti-fisicismo, a relação entre os qualia e seu substrato

físico é apenas uma relação de superveniência nomológica. O fato de perguntarmos pela

possibilidade das propriedades fenomenais já indica que elas não são necessariamente

implicadas pelos estados e processos neurofisiológicos. A covariação entre os conjuntos

de propriedades estabelecidas na relação de superveniência nomológica ocorre apenas no

interior de um determinado mundo possível, é uma relação intramundo. A correlação

entre os conjuntos de propriedades é estabelecida de acordo com as configurações do

mundo em questão, isto é, a covariação entre os conjuntos de propriedades se dá em

virtude de uma lei natural do mundo onde elas ocorrem. Logo, a indiscernibilidade das

propriedades de base não implicaria necessariamente a indiscernibilidade das

propriedades supervenientes em todos os mundos possíveis. A fixação das propriedades

de base por si só não garantiria a instanciação das propriedades supervenientes, seria

necessária a atuação de uma lei natural. Em situações onde é constatada uma relação de

superveniência nomológica, seria possível existir dois mundos possíveis indiscerníveis

em relação às propriedades subvenientes, mas que apresentam propriedades

5 Sobre as limitações e problemas da relação de superveniência na explicação dos qualia conferir KIM,

1995 a, 1995 b

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supervenientes distintas ou onde um não possui propriedades supervenientes; ou pelo

menos é o que reza o anti-fisicismo. Consequentemente, das propriedades físicas e

funcionais do sistema tálamo-cortical não poderíamos inferir necessariamente as

propriedades fenomenais.

1.4. O problema do zumbi.

As limitações das teorias reducionistas no que concerne à explicação dos

qualia também podem ser constatadas através do experimento de pensamento que

denominamos de problema do zumbi, o qual se fundamenta em um argumento de

conceptibilidade. De início deve ficar claro que a ideia exposta por este problema

frequentemente discutido na filosofia da mente contemporânea é bastante próxima do que

pensou Descartes quando este postulou uma explicação meramente mecanicista para o

comportamento dos animais como os autômatos. Descartes propunha o que hoje

chamamos de dualismo de substâncias, ou seja, a tese segundo a qual mente e corpo

constituiriam duas substâncias possuidoras de estatuto ontológico distinto e independente,

nomeadamente res cogitans e res extensa. Em contrapartida, o dualismo que emerge

como conclusão do argumento dos zumbis é um dualismo de propriedades, ou seja,

propriedade fenomenais seriam distintas e irredutíveis a propriedades físicas e funcionais.

Mas a despeito da distinção, é plausível se afirmar que o embrião dos zumbis filosóficos

já está presente nos escritos de Descartes sobre os autômatos.

Em linhas gerais, o argumento cartesiano a este respeito consiste em afirmar

que uma réplica física e funcional de um ser humano não garantiria a instanciação de

estados conscientes subjetivos. Um androide que fosse fisicamente idêntico a um ser

humano nos mais finos detalhes e que executasse as mesmas funções seria um feito

científico incrível, porém não implicaria na existência de estados fenomenais iguais aos

do ser humano. Argumentos semelhantes a este alicerçam a posição cética face à

inteligência artificial. Da mesma forma, apesar de os animais apresentarem condições

necessárias para a instanciação de uma vida mental, tendo em vista que eles possuem

características físicas (res extensa) próximas às dos seres humanos, tais características

físicas não são condições suficientes para a instanciação de uma mente imaterial (res

cogitans). Consequentemente, o comportamento dos seres autômatos é inteiramente

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explicável em termos mecanicistas, nada além de propriedades físicas como o arranjo de

artefatos materiais ou algum tipo de disposição orgânica é necessário para explicar seus

comportamentos.

O problema dos zumbis é oriundo da possibilidade de distinção conceitual

entre consciência de acesso e consciência fenomenal, apesar de sua conexão empírica.

Como apresentado por Chalmers (cf. CHALMERS, 1996, p. 95), ele consiste na

possibilidade lógica de concebermos uma criatura fisicamente e funcionalmente

indiscernível do ser humano, mas que não possui experiências conscientes. De forma

sucinta, o argumento do zumbi pode ser formulado nos seguintes termos: é concebível

um mundo de zumbis que seriam física e funcionalmente idênticos aos humanos no

mundo atual que careceriam, porém, dos aspectos qualitativos das experiências

conscientes. E se for concebível a existência de réplicas físicas e funcionais de humanos

sem consciência, então seria metafisicamente possível tal existência. Ora, como o

fisicismo postula a identidade ou superveniência lógica das propriedades fenomenais às

físicas, a simples possibilidade metafísica de zumbis refutaria o fisicismo.

O fato de um zumbi ser fisicamente e funcionalmente idêntico a mim, por

exemplo, significa que ele é uma réplica idêntica célula por célula a mim e que se

comporta exatamente como eu em face aos mesmos estímulos. Assim, por exemplo,

digamos que eu esteja tendo a experiência visual do livro vermelho à minha frente, a

experiência tátil do teclado do computador e a sensação do vento que bate em minhas

costas. Diante dos mesmos estímulos o zumbi está processando as mesmas informações

e, de acordo com elas, estaria manifestando um comportamento idêntico ao meu. Em

suma, eu e o zumbi somos idênticos no que se refere à consciência de acesso. Entretanto,

segundo este argumento, não há qualquer experiência qualitativa envolvida nisto, não há

nada que é como ser este zumbi.

Como explicitado na seção precedente, da possibilidade metafísica de uma

criatura física e funcionalmente indiscernível ao ser humano, mas que não possui

consciência fenomenal, conclui-se que as propriedades fenomenais não podem ser

logicamente supervenientes às propriedades físicas e funcionais subjacentes. Isto é, a

existência de um substrato físico semelhante ao sistema tálamo-cortical permeado pelas

mesmas funções neurofisiológicas instanciadas por um indivíduo consciente não

implicaria necessariamente a instanciação de estados fenomenalmente conscientes. O

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conjunto de propriedades de base, ou subvenientes (propriedades físicas e funcionais),

não determinaria necessariamente seu conjunto de propriedades supervenientes

(propriedades fenomenais). É necessário algo a mais para que seja estabelecida a relação

de superveniência entre estes conjuntos de propriedades, muito provavelmente alguma lei

natural. Apenas a existência desta lei natural asseguraria a conexão entre estes conjuntos

de propriedades.

Ao contrário da consciência de acesso, a consciência fenomenal não é

consequência necessária de sua estrutura física subjacente. Esta estrutura não implica

necessariamente a instanciação de experiências conscientes. Provavelmente a existência

de uma criatura indiscernível a um ser consciente também seria consciente na realidade,

o que torna a ideia do zumbi descrita acima algo nomologicamente impossível. Porém o

cerne da questão é a mera coerência conceitual, a situação descrita não reflete nenhuma

contradição. A análise funcional das noções referentes à consciência de acesso de um ser

humano e de um zumbi não demonstraria nenhuma diferença entre ambos, deste modo

uma teoria que pretenda reduzir a consciência às propriedades funcionais instanciadas

pelo sistema cognitivo deixaria as propriedades fenomenais intocadas. Assim, dada a

possibilidade dos zumbis, o fisicismo é falso.

Seguindo o raciocínio de Chalmers e daqueles autores que veem no problema

do zumbi uma séria ameaça ao programa fisicista/funcionalista, uma vez que tais criaturas

não são inconcebíveis ou impensáveis, se, em última instância, elas não são criaturas

autocontraditórias, então a realidade não pode ser plenamente explicável por meio dos

aspectos abordados por tais teorias reducionistas. De acordo com esta perspectiva, a

conceptibilidade seria um fundamento confiável do qual podemos obter possibilidades

metafísicas. Como consequência da possibilidade lógica dos argumentos citados acima,

chegamos à conclusão de que as teorias fisicistas e funcionalistas não são capazes de

tratar dos aspectos qualitativos da experiência consciente.

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2. Intencionalidade.

2.1. A tese de Brentano.

Deve-se à Franz Brentano (2009. Originalmente publicado em 1874.) a

inserção deste conceito nas discussões contemporâneas acerca da mente. Reconhecendo

que a primeira tarefa que se põe à psicologia é delimitar seu objeto de estudo, Brentano

busca oferecer uma definição clara e positiva que distinga a classe de fenômenos mentais

(também denominados de fenômenos psíquicos) da classe de fenômenos físicos. É

necessário estabelecer o que diferencia a psicologia das ciências da natureza. Uma vez

que os critérios tradicionalmente apresentados não delimitam suficientemente bem estes

dois tipos de fenômenos, o autor recorre à noção medieval de “inexistência intencional”

como característica fundamental da mente. Aqui o prefixo “in” em “inexistência” não

significa a negação da existência de algo, mas é utilizado para indicar sua localização.

Sendo assim, é característica fundamental deste tipo de fenômeno haver um objeto do

qual ele é uma representação. Todo estado mental possui um objeto intencional somente

enquanto representação mental independentemente de sua materialidade. Segundo este

autor:

Todo fenômeno mental é caracterizado pelo que os Escolásticos da Idade

Média chamaram de inexistência intencional (ou mental) de um objeto, e o que

podemos chamar, não sem ambiguidade, referência a um conteúdo, direção a

um objeto (que não deve ser compreendido aqui como significando uma coisa),

ou objetividade imanente. Todo fenômeno mental inclui algo como um objeto

dentro de si, embora não façam todos do mesmo modo. Na apresentação algo

é apresentado, no julgamento algo é afirmado ou negado, no amor amado, no

ódio odiado, no desejo desejado e assim por diante. (BRENTANO, 2009, p.

68)

Este aspecto representacional dos estados mentais é o que os delimita e o que

os diferencia de todos os outros fenômenos. A intencionalidade dos estados mentais,

enquanto característica que os torna voltados a algo, é aquilo que demarca o domínio do

mental, a característica central dos “fenômenos psíquicos”. Por exemplo, a minha

lembrança de meu cachorro Zico é um estado consciente intencional que se refere ao meu

cachorro, e a percepção que tenho do som que está tocando na rua é uma percepção

direcionada a este som. Esta característica também se encontra presente quando nos

remetemos ao passado e ao futuro. Minha crença de que Bob Marley e The Wailers

fizeram um show memorável em Santa Bárbara, Estados Unidos, em 1979 é um estado

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mental acerca do show desta banda. Já o nervosismo que sei que tomará conta de mim no

dia da defesa desta tese é um estado consciente intencional sobre este fato.

Portanto, intencionalidade é a propriedade relacional característica dos

estados mentais de se dirigirem a alguma coisa, de se reportarem acerca de algo ou mesmo

de serem orientados para um objeto ou estado de coisas no mundo, denominado de objeto

intencional. Este conceito é tomado como sinônimo de tematicidade (aboutness) ou

direcionalidade. É importante lembrar que por vezes nos direcionamos a algo que não

existe de fato, algo que não possui referência. Quando, numa conversa com um amigo,

refiro-me a João Grilo, personagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna,

obviamente me refiro a um ser que não existe efetivamente, um ser que não possui

nenhuma referência em nosso mundo, contudo ele existe em uma representação mental

de tal indivíduo, ou seja, existe enquanto uma representação que me direciona a um

personagem da literatura.

Esta possibilidade de dirigir-me a algo que não existe efetivamente implica

que a intencionalidade não se configura como uma relação propriamente dita. Toda

relação pressupõe a existência dos seus relata, uma relação se dá apenas quando temos

elementos envolvidos. Este pressuposto, contudo, não está presente em diversos casos de

estados conscientes intencionais como, por exemplo, na alucinação. O objeto sobre o qual

o indivíduo alucina não existe. Logo, a intencionalidade não é uma relação porque muitos

estados mentais pressupõem somente a existência do agente cognitivo, por esta razão,

Brentano chamava a intencionalidade de uma “quase relação”. Outro fato que corrobora

esta afirmação é que a generalização existencial não se aplica a proposições que tratam

de estados intencionais ao contrário do que acontece com proposições que tratam de

outras relações. Tomemos como exemplo as proposições “A causa B” e “A alucina B”.

Podemos inferir da primeira que ƎxƎy (x causa y), mas não podemos inferir da segunda

que ƎxƎy (x alucina Y) sem assumir inconvenientes compromissos ontológicos.

Compromissos, como aquele assumido por Alexius Meinong e que

resultaram na ontologia categorialmente inflacionada de sua Teoria dos Objetos. A partir

de uma peculiar compreensão da noção de objeto intencional e da existência imanente

deste em um estado mental, este autor pensou que a totalidade do que existe é apenas um

subconjunto da totalidade dos objetos do conhecimento. Esta excessiva carga levou

alguns pensadores a propor uma pertinente distinção entre objeto e conteúdo das

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representações mentais. De forma que nossos estados mentais representam um objeto na

medida em que possuem um conteúdo que se refere a este, é por meio deste conteúdo que

a mente se reporta a algo que, como sabemos, pode existir ou não.

Em suma, o que ficou conhecido na literatura como a “tese de Brentano” é a

conjunção de duas teses mais básicas, são elas: a intencionalidade é a propriedade que

demarca o domínio mental, ou seja, nenhum fenômeno físico possui a propriedade

intencional (cf. LECLERC, 2015, p. 3). Assim, todo estado consciente é “consciência

de”, isto é, quando afirmamos estarmos conscientes sempre estamos conscientes de algo,

todo estado consciente possui um conteúdo representacional. Isto indica a grande

proximidade entre o pensamento de Brentano e a teoria representacionista que

defenderemos e da qual falaremos mais detalhadamente na próxima unidade, uma vez

que esta afirma que só estamos conscientes de um objeto qualquer quando a representação

deste objeto faz parte do conteúdo de nosso estado consciente. Em outras palavras, um

indivíduo só está consciente de algo, seja este algo efetivamente existente ou não, quando

isto se configura como objeto intencional in-existente intencionalmente enquanto

conteúdo do estado consciente do indivíduo.

2.2. Intencionalidade segundo Searle.

Outro filósofo que se dedicou com grande afinco sobre este tema foi John

Searle. No ensejo de suas reflexões sobre sua teoria dos atos de fala, Searle fundamenta-

os na intencionalidade dos estados mentais e caracteriza esta propriedade segundo uma

estrutura bem definida. De forma que a estrutura do ato de fala reflete a estrutura do estado

intencional subjacente. Falemos primeiramente dos seguintes elementos desta estrutura:

modo psicológico, conteúdo representacional, objeto representacional, condições de

satisfação e direção de ajuste.

A distinção entre força ilocucionária e conteúdo proposicional dos atos de

fala é devida a uma distinção ainda mais fundamental entre o conteúdo representacional

e o modo psicológico do estado intencional. A noção de “modo psicológico” é o análogo

mental da força ilocucionária de um ato de fala, a saber uma crença, um medo, um desejo

etc. Já “conteúdo representacional” indica o objeto ou estado de coisas para o qual o

estado intencional está direcionado. Por sua vez, “objeto intencional” é aquele objeto ou

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estado de coisas representado e determinado pelo conteúdo representacional. Assim,

podemos dizer que o conteúdo representacional é um modo de apresentação de

determinado objeto intencional a partir de algum estado mental. Por exemplo, posso ter

uma crença de que o Flamengo vencerá seu próximo adversário e ter o desejo de conhecer

San Andrés, na Colômbia. Consequentemente, tenho uma crença que possui como

conteúdo a proposição “que o Flamengo vencerá seu próximo adversário”, e que

representa uma situação futura na qual o Flamengo de fato vence outro time; eu instancio

um desejo cujo conteúdo pode ser expresso pela proposição “que eu conheça San Andrés,

na Colômbia” e que representa minha possível viagem a este país, assim por diante.

Mas a essência destes conteúdos representacionais reside no fato de

exprimirem o que Searle denominou “condições de satisfação”. Condições de satisfação

são uma espécie de generalização das condições de verdade das proposições, são

situações que devem ocorrer para que o estado intencional seja bem-sucedido. Minha

crença na vitória do Flamengo será satisfeita se e somente se de fato o Flamengo vencer

seu adversário, meu desejo de conhecer San Andrés se e somente se eu vier a conhecer

esta cidade. Note-se que as relações que devem se estabelecer entre estes estados

intencionais e o mundo obedecem a ordens diferentes, isto é, diferentes direções de ajuste

estão em jogo nestes exemplos. Enquanto para que minha crença seja satisfeita ela deve

se adequar a um determinado fato no mundo, para que meu desejo seja satisfeito

determinado fato no mundo deve se adequar a ele. Minha crença será adequada se ela

corresponder a um fato constatado, o que indica que sua direção de ajuste é mente-mundo,

ou seja, meu estado mental é satisfeito se ele se adequar ao resultado da partida. Por outro

lado, meu desejo será levado a cabo se o mundo se adequar a ele, ou seja, se a viagem

realmente acontecer, o que indica a direção de ajuste mundo-mente. Todo estado

intencional enquanto possuidor de direção de ajuste determina suas próprias condições de

satisfação, isto é, aquilo que deve ocorrer para que este estado intencional entre em

consonância com o mundo.

Não obstante, estes estados não existem e não atuam isoladamente, pois as

suas condições de satisfação e seu próprio conteúdo só se determinam através da relação

que possuem com outros inúmeros estados intencionais anteriores a ele. Para que eu

venha a crer na vitória do Flamengo uma sequência de outros estados intencionais tem de

tomar lugar, por exemplo: tenho de crer na existência de um esporte chamado futebol,

crer que uma partida de futebol se realizará, que a vitória é um dos resultados possíveis

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de uma partida, que existe uma instituição chamada Flamengo e assim por diante. De

forma similar, desejo viajar para San Andrés apenas porque uma sequência de estados

intencionais como este é o caso: creio que existe um lugar chamado San Andrés, que é

possível fazer viagens até lá, que conhecê-lo será muito interessante e etc. Todo estado

intencional pertence a um elo de uma corrente que impõe condições de satisfação,

pressupondo que outras condições de satisfação estariam satisfeitas. Esta corrente de

estados intencionais interligados é denominada por Searle de “rede da intencionalidade”

ou simplesmente “rede”.

A busca por demonstrar todos os elos de estados intencionais que compõem

a rede é uma tarefa extremamente difícil, porém, de acordo com Searle, quando possível,

este regresso nos conduz a um conjunto de capacidades que em si mesmas não são

intencionais, mas que são o substrato de toda a intencionalidade. Este substrato é

denominado “background”. Background é um conjunto de capacidades físicas e mentais

que são pré-intencionais, ou pré-representacionais, no sentido de ser aquilo que subjaz

todo e qualquer estado intencional. Uma espécie de know-how de aptidões anteriores aos

estados intencionais. Desta forma, o conteúdo com as suas condições de satisfação destes

estados se encontram anteriormente determinadas no background. O que evita um

regresso ao infinito de nossas condições de satisfação.

As reflexões de Searle sobre a intencionalidade não se constituem apenas

como uma continuidade e aprofundamento do que foi proposto por Brentano. Há um

ponto de significativa ruptura entre ambos. De acordo com o filósofo estadunidense, a

intencionalidade não é uma propriedade partilhada por todos os estados mentais.

Enquanto parece não haver dúvidas de que atitudes proposicionais, como os estados

cognitivo-intencionais mencionados nos exemplos acima, possuem realmente um

conteúdo representacional, ou seja, são direcionados a algo, por outro lado, diversas

experiências conscientes não parecem representar nada. Para este autor, experiências

conscientes como dores, depressões ou “ansiedades não-direcionadas” (cf. SEARLE

2002), apesar de conscientes, não são intencionais visto que não se referem a nada. Se

perguntássemos, por exemplo, “A que se refere sua dor?” ou “Em que consiste sua

depressão?”, não teríamos resposta. Existem alguns estados conscientes que não são

“conscientes de alguma coisa”.

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Em contrapartida, outros estados, denominados por Searle de “estados

inconscientes”, possuiriam conteúdo representacional. Os exemplos listados pelo autor

dizem respeito ao que na literatura recebe o nome de estados disposicionais. Em oposição

a estados mentais atuais, estados disposicionais são aqueles de que não estamos cientes

em determinado momento, mas que podem se tornar manifestos sob as circunstâncias

adequadas. Por exemplo, tenho como estado consciente presente o desejo de escrever o

presente texto. Trata-se de um estado que instancio neste exato momento. Embora

também deseje viajar para San Andrés, não estou pensando nisto agora enquanto me

concentro na escrita. O desejo de conhecer esta cidade permanece agora como uma

disposição que se manifestaria se, por exemplo, eu visse a propaganda de algum pacote

turístico para este local. Apesar de não o instanciar neste momento, este estado possui um

conteúdo representacional, ele está direcionado para esta cidade. Como corolário, para

Searle, diferentemente de Brentano, consciência e intencionalidade são características

completamente dissociáveis.

Esta ideia de que nem todos os estados intencionais são conscientes, como é

o caso dos estados disposicionais, não é um problema para a teoria que propomos. A

verdadeira objeção à nossa perspectiva é a possibilidade de nem todos os estados mentais

serem intencionais, mais especificamente a possibilidade de experiências perceptivas não

possuírem conteúdos representacionais. Trata-se de uma importante objeção e a

analisaremos em nossas considerações finais, após fundamentarmos a teoria.

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UNIDADE II: QUADRO TEÓRICO REPRESENTACIONISTA.

Em termos gerais, na Filosofia da Mente “representacionismo” constitui o

quadro teórico no qual a ideia que qualia se explicaria por alguma forma de

intencionalidade. Dentre esta multiplicidade de teorias, uma distinção útil é considerar,

de um lado, as versões não reducionistas e, do outro, as versões reducionistas. Em que

pese as particularidades que diferenciam as propostas não reducionistas, podemos afirmar

que elas partilham a tese de que propriedades qualitativas intrínsecas são parte do

conteúdo de nossas experiências conscientes. Isto é, as percepções possuiriam um

conteúdo representacional (intencional) e um tipo de propriedade completamente distinto:

os qualia. Lycan (2015) denomina esta perspectiva de representacionismo fraco (weak

representationalism). Portanto, as experiências perceptivas são caracterizadas quando,

além de suas propriedades intencionais, também fazemos referência a propriedades

sensoriais qualitativas não representacionais. É exatamente a posse de um quale o que o

torna um estado fenomenalmente consciente, ou seja, uma representação consciente

diferente das demais representações mentais.

Por sua vez, as teorias classificadas como reducionistas afirmam haver uma

relação de identidade (ou superveniência forte) entre as propriedades qualitativas e o

conteúdo representacional das experiências perceptivas. Isto significa dizer que o caráter

fenomenal da experiência perceptual é exaurido pelas propriedades intencionais do estado

em questão. Os qualia nada mais são do que tipos específicos de representações

conscientes que são individuadas em termos objetivos. Instâncias de um estado consciente

com a propriedade fenomenal X não são nada além do que instâncias de um estado

consciente cujo conteúdo intencional contém X. Lycan (2015) se refere a esta perspectiva

como representacionismo forte (strong representationalism).

Ciente das limitações e dificuldades suscitadas por ambas as abordagens,

pretendemos propor e defender uma versão moderada do representacionismo. A ideia

central desta teoria consiste em afirmar que a fenomenologia da experiência perceptiva

pode ser completamente explicada em termos de seu conteúdo representacional, não

sendo necessário recorrer a propriedades adicionais. Trata-se de uma teoria naturalista

acerca das experiências conscientes que evita o fardo do compromisso ontológico em

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assumir a existência dos qualia. A forma pela qual esta perspectiva estrutura a relação

entre consciência e intencionalidade proporciona uma estratégia capaz de lidar com os

desafios impostos pela percepção através de um viés objetivo. Em particular, a teoria

representacionista aqui desenvolvida responde satisfatoriamente os problemas discutidos

no primeiro capítulo, embora siga um caminho alternativo à ortodoxia reducionista que

marca o representacionismo de Dretske, Tye e outros. Nos próximos capítulos desta

unidade, discutiremos os elementos que compõem a referida teoria representacionista,

dando especial ênfase evidentemente à natureza do conteúdo perceptivo. A argumentação

em favor desta concepção específica do conteúdo perceptivo permitirá elucidarmos uma

série de outras questões relevantes.

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3. Transparência, externismo fenomenal e conteúdo amplo.

A íntima conexão entre qualia e intencionalidade que pretendemos esclarecer

ao propor esta teoria representacionista tem como ponto de partida a reflexão sobre a

função desempenhada pelas representações conscientes que justificam o seu surgimento,

manutenção e aprimoramento ao longo de nossa história evolutiva. Portanto, a primeira

pergunta que devemos responder é: A experiência perceptiva fornece que tipo de

representação?

Deve ficar claro desde o início que representações são estruturas que

veiculam informações sobre o que representam. E considerando o crucial aspecto

evolutivo, as experiências perceptivas possuem um conteúdo representacional apenas na

medida em que desempenham a função biológica de fornecer informações sobre o meio,

isto é, a função de tornar o indivíduo ciente dos particulares que lhe circundam.

Incorporada por Dretske como um elemento fundamental de sua teoria, a “função

biológica” é entendida aqui a partir da concepção etiológica, difundida na filosofia da

biologia por autores como Larry Wright, Ruth Milikan e Peter Godfrey-Smith. A

concepção etiológica de função biológica se baseia na associação das ideias de teleologia

e adaptação (c.f. CHEDIAK, 2018, p. 108) no intuito de explicar o surgimento e a

preservação de determinadas características tendo em vista que a realização das funções

para a quais foram designadas se mostraram de grande importância para a adaptação dos

organismos durante o processo de seleção natural. Este caráter teleológico-funcional de

órgãos, sistemas e demais características dos organismos não pressupõe a ação de nenhum

agente intencional, mas apenas a história evolutiva das espécies submetidas à seleção

natural. De forma que, podemos pensar em características dos organismos projetadas a

realizar determinadas tarefas sem a existência de um planejador coordenando este

processo. A concepção etiológica atribui um aspecto normativo às funções biológicas haja

vista possuírem um télos e isto significa dizer que órgãos e sistemas do organismo devem

realizar determinadas funções sob condições apropriadas.

Nossos sistemas sensoriais foram moldados pela história evolutiva das

espécies de forma a produzirem experiências perceptivas que constituem representações

naturais, ou seja, representações cujos conteúdos informativos não são derivados das

significações atribuídas pelo indivíduo que os instancia, mas derivadas de suas funções

evolutivas que possibilitam a adaptação da espécie ao seu meio natural. Tais experiências

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desempenham a função sistêmica de transmitir informações a este indivíduo acerca de

particulares (objetos do mundo, eventos, instâncias de propriedades e das relações que

mantém entre si). Percepções representam o complexo de objetos e propriedades ao nosso

redor porque os sistemas sensoriais dos quais se originam adquiriram filogeneticamente

a função de fornecer a informação relevante. Uma vez que as informações transmitidas

independem das deliberações do indivíduo, dizemos que o conteúdo representacional

possui intencionalidade original e, por esta razão, as experiências perceptivas tornam o

sistema biológico que as instanciam consciente do seu conteúdo. Consequentemente, as

experiências perceptivas constituem o nosso contato mais íntimo com o mundo.

Tendo estes esclarecimentos preliminares em mente acerca da noção crucial

de representação natural, nosso próximo passo tratará sobre a relação entre qualia e

intencionalidade. A tese central do representacionismo, a saber, que os qualia são

completamente determinados pelo conteúdo representacional, é alicerçada por uma outra

de suma importância, denominada de tese da transparência das experiências perceptuais.

O argumento em favor da transparência remonta a George Moore e foi defendido por

inúmeros filósofos que salientam igualmente o caráter diáfano da consciência.

Consideremos exemplos paradigmáticos de experiências perceptivas como a

visão que tenho do livro vermelho que está sobre minha mesa, o som que ouço dos

pássaros cantando no quintal e o sabor que sinto ao beber uísque. Certamente estas são

tipos de experiências às quais grande parte dos filósofos normalmente associaria alguma

qualidade intrínseca. Aparentemente, minha experiência visual não apenas representaria

determinado objeto e as propriedades instanciadas por ele como seu formato e sua cor.

Há um aspecto fenomenal muito caro a este estado mental: a vermelhidão que

experimento. O mesmo ocorre com os outros exemplos. A experiência auditiva me pôs

em contato com uma qualidade subjetiva muito específica: o modo como o canto do

pássaro soa para mim, o aspecto fenomenal do timbre do som produzido. A experiência

gustativa me familiariza com o amargor daquela bebida. Em outras palavras, tais estados

possuem qualia. Negar estes elementos fenomenais seria como se desfazer de parte

significativa de nossa vida mental, seria como eliminar aquelas características de nossas

experiências que conhecemos imediatamente e que constituem o modo como

experimentamos o mundo, o modo inescrutável e subjetivo de como as coisas nos

parecem.

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Posto que os qualia são essenciais a estas percepções e que os conhecemos

imediatamente, o argumento da transparência sugere que através da introspecção

desloquemos nossa atenção dos objetos que percebemos para a própria experiência

perceptiva, mais especificamente para as propriedades fenomenais inexoravelmente

atreladas a elas. Diante da forma como os qualia são definidos, é absolutamente razoável

pensarmos que introspectivamente podemos nos voltar para a própria qualidade

fenomenal da vermelhidão, para o aspecto qualitativo do timbre do canto do pássaro e

para o aspecto qualitativo do amargor do uísque. Não obstante, qualquer simples exame

introspectivo facilmente revelará que não temos contato algum com estas propriedades

não-representacionais das experiências, mas apenas com os objetos e as propriedades que

as próprias experiências representam, ou seja, particulares e as suas propriedades que se

encontram em nosso meio.

Ao analisarmos mais de perto as experiências de ver um livro vermelho, de

ouvir o canto do pássaro e de degustar um uísque, não é possível capturar nada que seja

próprio a essas experiências, pelo contrário, passamos através delas e tudo que

apreendemos são as propriedades destes objetos externos. A experiência é uma espécie

de material transparente através do qual “vemos” o mundo fora da nossa mente. Assim,

quando por meio da introspecção focamos nossa atenção nas experiências perceptivas, os

seus conteúdos são tudo de que nos tornamos cientes, por sua vez, esses conteúdos são as

representações dos objetos e das suas propriedades. Não temos acesso a nada que faça

uma suposta mediação entre nós (nossa mente) e o que representamos, mas somente aos

objetos e suas propriedades externos à mente.

Agora se torna mais fácil compreendermos como o fato empírico da

transparência fornece uma evidência ao menos abdutiva em favor da tese

representacionista. Uma vez que tudo que a introspecção nos revela como constitutivo da

natureza da experiência perceptiva é o seu conteúdo, e este é composto pelas

representações que nosso sistema sensorial formula acerca dos objetos e propriedades do

ambiente no qual nos encontramos, o caráter fenomenal da experiência é especificado por

seu conteúdo representacional. Em suma, a introspecção não proporciona uma percepção

de re dos aspectos qualitativos das experiências, na melhor das hipóteses estamos cientes

destes aspectos apenas de modo de dicto.

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O quale da vermelhidão é apenas o vermelho que representamos como

ocorrente na superfície do livro; o quale do som nada mais é do que o timbre específico

emitido pelo pássaro e o quale do amargor é apenas a forma como decodificamos o sabor

daquela bebida. Não há nada além disso envolvido nas respectivas experiências. Isto

corrobora a tese de que o caráter fenomenal da experiência seria superveniente ao

conteúdo da mesma experiência, ou seja, que qualquer mudança nas propriedades do

objeto percebido necessariamente resultaria em uma mudança no quale instanciado. Se,

por exemplo, o livro que vejo for pintado de azul, o caráter fenomenal da experiência

obviamente será alterado, porém esta alteração será o caso apenas porque seu conteúdo

mudou e, por sua vez, a mudança no conteúdo se deve a uma alteração no próprio objeto.

É importante salientar, contudo, que a transparência não pressupõe que todas as

experiências perceptivas sejam verídicas. Alucinações, por exemplo, são completamente

compreendidas a partir dessa perspectiva. Ora, o que temos nestes casos? As propriedades

que experimentamos não pertencem à própria experiência, mas nos remetem a algo

exterior que não existe, mas é representado pela experiência (alucinatória). A

possibilidade destas falhas não é descartada, toda teoria acerca da percepção deve fazer

justiça a estas situações. Voltaremos a este tópico no próximo capítulo quando

caracterizarmos a natureza dos conteúdos representacionais.

Portanto, o caráter fenomenal da experiência perceptiva é o complexo de

objetos e propriedades que a própria experiência em questão representa de uma forma

específica e cujas informações decodificadas e veiculadas tornam o indivíduo conscientes

de aspectos do mundo e de seu próprio organismo. Vejamos este trecho em que Dretske

fala sobre a transparência da consciência:

Ao identificar qualia às propriedades experimentadas, propriedades

experimentadas às propriedades representadas, e as últimas àquelas

propriedades sobre as quais os sentidos têm a função natural de fornecer informação, uma abordagem representacional da experiência torna os qualia

objetivamente determináveis como são as funções biológicas dos órgãos

corporais. Pode ser difícil – às vezes (de um ponto de vista prático) impossível

– descobrir qual a função de um certo estado, mas não há nada essencialmente

privado ou exclusivamente de primeira pessoa sobre funções. (DRETSKE,

1995, p. 72)

A justificação do representacionismo com base na transparência da

experiência se coaduna muito bem com uma concepção intuitiva de percepção. O mesmo

não parece ser o caso, dirão alguns autores, quando consideramos as emoções (e.g.

depressão e euforia) e sensações corporais (e.g. dor e orgasmo), porém a conclusão a que

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chegamos no parágrafo anterior indica que um dos objetivos do representacionismo é

estender o mesmo tratamento a estes outros estados conscientes. Voltaremos a este tópico

mais à frente quando examinarmos as objeções direcionadas a esta teoria e suas possíveis

réplicas. Nesta seção, porém, ainda é necessário discutir dois pontos sobre a tese da

transparência.

O primeiro deles é que ainda assim se pode objetar que esta tese não

conseguiu capturar os qualia em ao menos um sentido. É possível pensar que na

percepção estão envolvidas algumas qualidades intrínsecas, ou seja, em si mesmas não

representacionais, que permitem nos tornarmos cientes de qualidades relacionais que nos

remetem a objetos externos. Isto é, o aspecto subjetivo que sempre é parte de nossa

experiência e que constitui o que é ser o indivíduo que instancia este estado. Embora não

pareça tão clara introspectivamente a existência deste aspecto subjetivo, a possibilidade

de saber como é ser um indivíduo que possui tais experiências parece indicar que temos

algum tipo de acesso fenomenológico aos qualia. Assim, parece possível argumentar que

há algo intrínseco à experiência que não é seu conteúdo representacional, mas que diz

respeito ao indivíduo consciente. Desta forma o caráter fenomenal permaneceria intacto.

Não obstante, é difícil compreender em que consiste este tipo de acesso

fenomenológico aos próprios estados mentais se ele não se dá por meio da introspecção.

Por certo, este acesso não pode ser introspectivo pois esta reflexão não nos revela nada

além do conteúdo representacional. Teríamos acesso através de alguma inferência? Esta

suposição de como nos tornamos cientes deles entra em choque com a própria definição

dos qualia como parte intrínseca de nossas experiências que nos são imediatamente

disponíveis. Se de fato os qualia existem, não há outro meio que possamos conhecê-los

além da introspecção, porém por mais diligente que sejamos ela jamais os mostra. Deste

modo, se sabemos como é ser o indivíduo que instancia uma experiência, não precisamos

supor qualidades intrínsecas e subjetivas misteriosas, basta apenas que estejamos cientes

do conteúdo representado pela experiência perceptual. Além disso, supor os qualia como

uma espécie de intermediário não representacional de nossas experiências seria retomar

uma ideia muito próxima dos dados dos sentidos (sense data) de Russell. Esta perspectiva

é insustentável por diversas razões, dentre as quais porque implica dizer que jamais temos

conhecimento direto (acquaintance) sobre propriedades objetivas do mundo, mas apenas

de propriedades mentais. O que é diametralmente oposto à ideia de que a mente é a face

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representacional do cérebro que capacita o indivíduo a estabelecer relações cada vez mais

aprimoradas com o meio.

Outro ponto que deve ser esclarecido é que a conjunção da transparência e do

representacionismo implica a controversa perspectiva externista dos conteúdos mentais

(content externalism). De acordo com o externismo, o conteúdo dos estados mentais é

determinado, em grande parte, pelas relações causais e não representacionais

estabelecidas entre o indivíduo e o ambiente físico e social no qual se encontra e por sua

história evolutiva. O que está em clara conexão com o externismo semântico defendido

por Tyler Burge e posteriormente endossado por muitos outros, para os quais os estados

mentais e suas caraterísticas fenomenológicas são individuados pelas nossas relações

intencionais e causais com a sociedade e com o ambiente que nos circunda. Utilizando o

exemplo consagrado por Putnam, o estado mental de um terráqueo ao pronunciar a frase

“O rio está cheio de água” é distinto do estado mental do seu sósia ao pronunciar a mesma

frase na chamada Terra Gêmea, uma vez que, apesar de aparentemente (fenomenalmente)

idênticas, a substância encontrada nos rios da Terra é composta por H2O e a substância

encontrada nos rios da Terra Gêmea é composta por XYZ. Tal tese parece-nos bastante

plausível em face das atitudes proposicionais. Posto que se costuma definir estes estados

como aqueles cujo conteúdo pode ser especificado através de uma proposição, a crença

do terráqueo de que o rio está cheio de água é diferente da crença do habitante da Terra

Gêmea de que o rio está cheio de água. São estados de um mesmo tipo mental que se

distinguem por seus conteúdos. O conteúdo destas crenças é individuado pelos objetos

que estão no ambiente destes indivíduos, ambos formulam crenças acerca de coisas

distintas, logo o conteúdo destes estados é determinado por fatores externos. São estados

mentais de re.

A principal controvérsia para alguns filósofos, contudo, se deve ao fato de o

representacionismo também aplicar esta perspectiva aos qualia, ou seja, por afirmar o

externismo fenomenal. Dado que o caráter fenomenal das experiências conscientes é o

complexo de objetos e propriedades que a própria experiência representa, os estados

mentais que representam tal conteúdo também seriam individuados de forma extrínseca

e relacional. As qualidades sensoriais dos nos estados perceptuais sempre seriam

individuadas e constituídas metafisicamente por propriedades ambientais, instanciadas ou

não, portanto estas qualidades seriam, em última instância, externas. Se, segundo Dretske,

todos os fatos mentais são fatos representacionais e nos remetem ao mundo fora da mente

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do sujeito, então, temos como corolário, que as propriedades mentais são individuadas

por meio de nosso contato com o mundo. O que as tornam propriedades mentais está fora

da cabeça (c.f. DRETSKE 95, p. 124). Ou melhor, o que as tornam propriedades mentais

é o fato de se dirigirem ao exterior numa tentativa de conectar o indivíduo ao meio. Em

outras palavras, para o representacionismo, nossos estados mentais, tanto as atitudes

proposicionais quanto as experiências conscientes, possuem o conteúdo amplo (wide

content). Seus conteúdos não são inteiramente dependentes da atividade eletroquímica de

seu sistema tálamo-cortical, mas inexoravelmente dependem das relações sociais,

relações causais com o meio e da história evolutiva do indivíduo.

Desta forma, tomando as propriedades do cérebro como as propriedades de

base e as propriedades da experiência como supervenientes, a relação entre estes

conjuntos de propriedades não é baseada na superveniência local. O que significa dizer

que uma vez estabelecidas as propriedades do cérebro, as propriedades fenomenais ainda

não estão fixadas. É possível haver mudanças nas propriedades supervenientes que não

são precedidas por mudanças nas propriedades de base. Para o externismo, a relação entre

estes conjuntos é baseada na superveniência global, pois o que está em jogo aqui não são

apenas propriedades de indivíduos particulares, mas padrões de distribuição de

propriedades de mundos possíveis como um todo.

Aquela que parece ser, ao menos até alguns anos atrás, a perspectiva padrão

sobre conteúdos mentais é denominada de internismo (content internalism). Como o

próprio nome indica, afirma exatamente o oposto do que observamos acima: o conteúdo

das experiências conscientes é completamente determinado por suas propriedades

intrínsecas. Desta forma, estados qualitativos possuem conteúdo exíguo (narrow content).

As propriedades fenomenais de nossas experiências são exclusivamente estabelecidas

pelas atividades eletroquímicas de nosso sistema tálamo-cortical. Estas propriedades

devem obedecer à superveniência local, isto é, uma vez estabelecido o conjunto de

propriedades internas de base, o conjunto de propriedades supervenientes também estará

estabelecido, não haverá qualquer mudança nestas que não seja precedida por alteração

naquelas. Evidentemente a pressuposição que fundamenta a adoção do internismo é a

ideia de que o caráter fenomenal das experiências conscientes é uma propriedade

intrínseca destas. Assim, uma inspeção interna a tais estados deveria proporcionar uma

percepção interna de re dos qualia instanciados. No entanto, como exposto no início do

capítulo, a tese da transparência da consciência fornece boas razões indutivas para

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rejeitarmos este pressuposto. De fato, a introspecção não nos revela nada intrínseco às

experiências. O caráter fenomenal da experiência só se manifesta na medida em que

estamos em contato com o mundo; ele é metafisicamente constituído pelo complexo de

objetos e propriedades que representamos mediante nossas próprias experiências, por

conseguinte diz respeito a um mundo fora da nossa cabeça. Mesmo sendo muito difícil

sustentar esta concepção de experiência perceptiva partilhada pelos internistas, ela ainda

está na base dos principais argumentos elencados para contestar o externismo.

Um dos principais argumentos é que a adoção do externismo fenomenal nos

conduz a uma consequência inimaginável para o internismo. Basicamente a ideia é a de

que dois indivíduos fisicamente indiscerníveis podem instanciar experiências com caráter

fenomenal distinto por viverem em ambientes e por possuírem história evolutiva distinta.

Mais especificamente, esta possibilidade se deve ao fato destas propriedades não estarem

em uma relação de superveniência lógica. A configuração das propriedades de base do

cérebro não estabelece por si só as propriedades supervenientes, a saber, a consciência. É

possível haver uma diferença nas propriedades supervenientes não antecedida por uma

diferença nas propriedades de base. Logo, duas réplicas exatas que possuem sistemas

tálamo-corticais idênticos, podem apresentar diferentes propriedades fenomenais dado

não possuírem as mesmas conexões causais com o mundo e a mesma história evolutiva.

Por serem estados com conteúdos amplos, as experiências perceptivas não são

individuadas apenas pelas propriedades do substrato físico no qual são implementadas:

elas requerem algo mais. São reguladas adicionalmente pelo ambiente com o qual são

confrontadas atualmente e pelo passado evolutivo de sua espécie que moldou e adaptou

gradativamente o sistema cognitivo desde seus ancestrais.

Grosso modo, esta é a situação que Donald Davidson expõe em seu

experimento de pensamento do Homem Pântano, criatura que é uma réplica de Davidson

gerada abruptamente e que não partilha de sua história. Em situações tão insólitas quanto

esta, Dretske adota uma postura radical e afirma não apenas que réplicas físicas e

funcionais podem ter diferentes conteúdos representacionais, mas que estas réplicas nem

mesmo seriam seres conscientes. O Homem Pântano não é fruto do longo processo de

seleção que moldou o sistema cognitivo de Davidson para decodificar as informações

veiculadas por suas representações perceptivas. A ausência de funções biologicamente

selecionadas neste processo para fornecer o tipo de informação que fornecem ao sistema

é suficiente para negar que a réplica instancie qualquer experiência e representação.

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Dretske explicita este pensamento na passagem a seguir:

Um estado do cérebro é uma experiência apenas se representa o mundo de certo

modo, e um estado representa o mundo deste modo, ou assim tenho afirmado,

apenas se tem uma função apropriada de transportar informação. Uma vez que

funções (seja sistêmica ou adquirida) tem a ver com a história dos estados e

sistemas que possuem estas funções, fatos mentais não sobrevém ao que está

na cabeça. O que está nas cabeças de A e B pode ser fisicamente indistinguível

e ainda, porque estes pedações de matéria cinzenta tiveram histórias

relevantemente diferentes, um é um sistema representacional e o outro não; um

é a sede de pensamento e experiência, e o outro não; um torna a pessoa em

quem eles ocorrem ciente do mundo, e o outro não. (DRETSKE, 1995, p. 124,

125)

Tye (2009, p. 196) assume exatamente a mesma posição. Segundo o

experimento de pensamento proposto pelo autor, embora uma estrutura inanimada possa

se tornar um duplicado microfísico de um cérebro humano em atividade durante o período

em que sofre uma descarga elétrica, a mera replicação destas características por si só não

é capaz transformar esta estrutura em um cérebro. Falta-lhe uma herança evolutiva que

seria responsável por atrelar ao cérebro humano a função de proporcionar relações cada

vez mais sofisticadas entre o indivíduo e o meio. No caso que analisamos, estas relações

são proporcionadas pela decodificação dos conteúdos representacionais veiculados pelas

experiências conscientes. Assim, mesmo que durante algum período esta estrutura seja a

replicação de um cérebro em seus mínimos detalhes, isto não será suficiente para que dê

origem a representações conscientes. Esta é exatamente a mesma situação do Homem

Pântano, por mais que ele se assemelhe a Davidson, para instanciar uma experiência

consciente é necessário que ele partilhasse a mesma função adquirida naturalmente.

Esta é uma consequência que a versão do representacionismo que defendemos

também enfrenta por entendermos as experiências perceptivas como responsáveis por

desempenhar uma função informacional determinada filogeneticamente. A história

evolutiva selecionou as experiências perceptivas por serem traços que permitiram uma

melhor adaptação de inúmeras espécies em virtude de seus conteúdos representacionais

tornarem os indivíduos cientes de um conjunto de características do ambiente. Uma vez

que o Homem Pântano não é membro da espécie humana, com a sua linha evolutiva, mas

fruto de uma geração espontânea e abrupta, seu sistema sensorial (se é que podemos

chamá-lo assim!) não possui qualquer função informacional e, consequentemente, não

produz representações que o tornem consciente.

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Entretanto, para concluirmos é importante que façamos mais um

apontamento. Dois subgrupos de uma mesma espécie submetidos a um isolamento

geográfico que impeça seu contato passam a se desenvolver de modo independente um

do outro tendo em vista as particularidades das regiões em que se encontram. Os

processos de seleção aos quais estes grupos estão sujeitos fazem com que ao longo do

tempo desenvolvam características significativamente diferentes no que se refere aos seus

hábitos e suas morfologias. Nestes casos em que as barreiras geográficas são

intransponíveis, o cruzamento entre indivíduos destes grupos será impossível, o que

acarreta no isolamento reprodutivo e na quebra de um intercâmbio genético entre os

grupos. Isto dá início ao processo denominado de “especiação”, ou seja, o surgimento de

diferentes espécies a partir de uma mesma espécie ancestral. Assim, indivíduos de uma

mesma espécie que passam a viver em ambientes dissemelhantes podem evoluir de modo

diverso e apresentar características biológicas díspares.

Ora, isto pode muito bem acontecer no caso do Homem Pântano. As

propriedades biológicas por meio das quais os indivíduos são classificados em

determinadas espécies sobrevém globalmente às propriedades físicas, de modo que dois

indivíduos fisicamente indiscerníveis podem pertencer a espécies diferentes em

decorrência de suas histórias evolutivas distintas. Apesar disto, porém, estas réplicas

possuem órgãos sensoriais e redes neuronais interligadas a eles idênticas, de modo que

parece razoável supor que, na medida em que iniciará uma nova história evolutiva, o

Homem Pântano e seus descendentes (provavelmente também gerados de forma

espontânea a partir deste ancestral.) também desenvolverão a capacidade de capturar e

processar informações do meio em que habitam. Muito provavelmente o contexto levará

estes organismos a instanciarem conteúdos representacionais significativamente

distintos, contudo sua estrutura física nos faz crer que poderão interagir com o ambiente

através de experiências perceptivas. Em outras palavras, o Homem Pântano e seus

descendentes poderão desenvolver experiências perceptivas que vão adquirir a função

filogenética de transmitir informações, mas os conteúdos representacionais destas

experiências serão diferentes em razão de interagirem com um meio diferente e de

pertencerem a uma linha evolutiva distinta.

Embora seja fisicamente indiscernível de um homem, o fato de habitar um

local diferente e poder assim dar início a um processo evolutivo novo a partir de seu

surgimento mágico pode provavelmente levá-lo a se desenvolver de modo muito

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particular. É possível que desenvolva hábitos e peculiaridades morfológicas que o afasta

do indivíduo do qual se originou. Do mesmo modo é plausível que esta nova forma de

evolução dê origem a propriedades fenomenais novas. Por mais que esteja conectado ao

mundo através de órgãos sensoriais semelhantes aos nossos, o ambiente em que se

encontra e a história evolutiva que começará a desenvolver podem levar as suas

percepções a representar o mundo sob conteúdos diferentes. Se o externismo fenomenal

estiver correto, e há sólidas razões que o justificam, a existência de indivíduos fisicamente

idênticos, mas que instanciam experiências fenomenais distintas é uma consequência

incontornável.

Portanto, após seu surgimento abrupto, o Homem Pântano de fato não

produzirá qualquer representação consciente devido à ausência de história evolutiva. Por

outro lado, com o passar do tempo naturalmente poderá desenvolver esta capacidade que

será transmitida para as gerações subsequentes. Ademais estes conteúdos

representacionais serão individuados, em parte, por um ambiente e processo evolutivo

peculiares, o que implicará em conteúdos diferentes daqueles instanciados pelos seres

humanos. Da mesma forma que diante das diferenças contextuais que permeiam esta

criatura não devemos supor que instanciará experiências do mesmo tipo das nossas,

também não devemos supor que não desenvolverá qualquer tipo de representações e

experiências, haja vista a história evolutiva que iniciará.

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4. Conteúdo perceptivo.

Com base na transparência das experiências conscientes chegamos à tese

central do representacionismo que estabelece que os qualia são determinados pelos

conteúdos das experiências perceptivas. Pressupusemos, assim, o que se chama na

literatura de visão de conteúdo (content view), que atribui a todas estas experiências um

conteúdo representacional (c.f. SIEGEL, 2010, p. 334) transmitido ao sujeito através dos

sistemas sensoriais obedecendo função de fornecer informações sobre o meio. Antes de

seguirmos o raciocínio e argumentarmos em favor de uma forma de compreender a

natureza deste conteúdo, porém, se faz necessário justificar a adoção desta perspectiva,

especialmente com o objetivo de contornar as críticas feitas por John Campbell (2002) e

Michael Martin (2002) ao proporem o relacionismo (relational view).

Numa tentativa explícita de se alinhar ao realismo ingênuo (naive realism),

ou realismo direto, estes autores ressaltam o importante papel explicativo desempenhado

pela percepção em algumas de nossas capacidades cognitivas como principal fundamento

de sua posição. Segundo Campbell, a experiência perceptiva consiste simplesmente em

uma relação cognitiva direta estabelecida entre o sujeito e um particular externo. Somente

considerando a percepção como uma relação que prescinde de qualquer entidade (seja

sense-data, qualia ou, neste caso, conteúdo representacional) intermediando a relação

sujeito-objeto é que seria possível dar sentido à ideia de que experiências perceptivas

proporcionam contato com o ambiente subjacente aos pensamentos de re.

Caracterizando-a como relação direta com objetos, independente do envolvimento com

qualquer conteúdo, Campbell opõe seu realismo direto à visão de conteúdo. Mesmo se

opondo à visão de conteúdo, o relacionismo é compatível com a ideia de que podemos

articular proposições que expressem o que percebemos, associando assim a experiência a

um conteúdo proposicionalmente estruturado. Note-se que esta possibilidade de

associação de um conteúdo proposicional se limita a dizer apenas que é possível descrever

a experiência por meio de uma proposição, o que não significa dizer que este conteúdo é

parte da experiência. Logo, reconhecer a possibilidade de associarmos a experiência a

uma proposição não implica a visão de conteúdo, pois o conteúdo expresso pela

proposição não se configura como constituinte da estrutura da percepção, mas como um

acessório meramente vinculado.

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Para estes autores, uma teoria da percepção que faça justiça às nossas

intuições mais básicas sobre este tema não deve recorrer à noção de conteúdo enquanto

um elemento constitutivo deste tipo de experiências. Apenas três componentes são

necessários e suficientes para a elaboração de uma teoria que explique satisfatoriamente

este processo: o indivíduo consciente, os particulares presentes no ambiente, aqui

entendidos como objetos físicos dotados de propriedades, e uma relação de acesso

cognitivo direto do indivíduo aos objetos. Em que pese as particularidades envolvidas nas

propostas destes autores, estes são os componentes-chave do relacionismo. Para o

relacionista, os próprios particulares compõem as percepções, de forma que este contato

direto se revela como condição de possibilidade do conhecimento destes objetos extra-

mentais e independentes do sujeito. Semelhantemente, esta relação proporciona uma clara

explicação de como determinamos os referentes de termos demonstrativos e de termos

singulares. Ademais, a perspectiva relacionista vincula o caráter fenomenal das

experiências perceptivas estritamente aos particulares que acionam o sistema sensorial.

Portanto, a principal razão para se adotar o relacionismo deriva de sua resposta direta ao

papel explicativo da percepção em clara consonância com o senso-comum. Para tratarmos

adequadamente sobre os aspectos epistemológicos e fenomenológicos atrelados às

experiências perceptivas devemos, necessariamente, rejeitar a visão de conteúdo.

Susanna Schellenberg resume os questionamentos suscitados por Campbell e

Martin nas objeções a seguir em que a autora identifica visão de conteúdo e

representacionismo:

A objeção fenomenológica: visões representacionistas interpretam errado as

bases fenomenológicas de estados perceptivos na medida em que desvinculam

o caráter fenomenal de estados perceptivos das relações com características

qualitativas do ambiente. (...)

A objeção epistemológica: visões representacionistas não explicam

apropriadamente o papel da percepção. Apenas se a própria percepção não for

representacional pode constituir a base evidencial para o conhecimento

perceptivo de particulares. (...)

A objeção do fundamento semântico: visões representacionistas não explicam adequadamente o fato de que a percepção fundamenta pensamentos

demonstrativos e pensamentos singulares sobre particulares no ambiente.

Além disso, não explicam adequadamente o fato de que relações perceptivas

com o ambiente fornecem fundamento para a possibilidade de pensamento e

linguagem. (SCHELLENBERG, 2018, p. 157, 158)

Como veremos a seguir (seção 4.2), estas objeções atingem apenas uma

versão da visão de conteúdo, aqui denominado “conteúdo geral”, à qual Schellenberg

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denomina “representacionismo austero”. Se, por outro lado, construirmos o conteúdo

perceptivo a partir de uma perspectiva que também ressalte o seu caráter relacional, como

é o objetivo deste capítulo, é possível dar conta da importante influência da percepção em

nossa cognição explicitada pelos questionamentos mencionados acima. Destacarei aqui

duas razões para adotarmos a visão de conteúdo em detrimento do relacionismo de

Campbell e Martin. A principal delas consiste no recorrente fracasso da teoria em mostrar

como a percepção retrata incorretamente o estado de coisas do mundo. É inegável que em

muitos casos as informações que as experiências perceptivas transmitem não refletem o

modo como realmente os objetos e propriedades estão configurados. Em outras palavras,

o modo como as coisas nos parecem nem sempre é o modo como as coisas são. Ora, mas

se a percepção for compreendida simplesmente como uma relação cognitiva através da

qual o indivíduo adquiri contato (acquaintance) com particulares, como defende o

relacionismo, não temos como entender a possibilidade dos inúmeros casos de erro

perceptivo. O relacionismo nos proporciona uma explicação bastante intuitiva para os

casos de percepção bem-sucedida (verídica), já que o próprio particular é um dos relata

envolvidos, mas não lança luz sobre o fato empírico e incontestável de que muitas

experiências perceptivas não correspondem apropriadamente ao mundo, nem mesmo

esclarece o fato de que duas experiências particulares de um mesmo tipo geral podem

diferir quanto a sua precisão6. Esta dificuldade é facilmente solucionada pela visão de

conteúdo ao reconhecermos que a intencionalidade original das experiências, de que

tratamos no terceiro capítulo, manifesta-se no conteúdo perceptivo ao projetar condições

de satisfação sobre o ambiente.

Em virtude desta possibilidade de fracasso quanto a sua função essencial de

nos retratar como o mundo se comporta, parece plausível supor que perceber o mundo é

estar ciente daquilo que deve ser o caso para que o conteúdo da experiência seja verídico.

Se os objetos e suas propriedades são como aparecem ao indivíduo, então o conteúdo de

sua percepção é verídico, caso contrário inverídico. Isto implica dizer que os conteúdos

das experiências perceptivas se definem pelas suas condições de satisfação e neste sentido

se assemelham às atitudes proposicionais (c.f. SEARLE, 2002, p. 56). Ou seja, os

6 Uma experiência perceptiva pode discriminar mais ou menos detalhadamente as propriedades instanciadas

pelos objetos. Como diremos a seguir, os conteúdos perceptivos projetam condições de satisfação que

podem ser satisfeitas sob diferentes gradações. Diferentes tokens de um mesmo tipo de experiência podem

ter conteúdos mais ou menos precisos.

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conteúdos representacionais transmitem ao indivíduo um determinado estado de coisas,

de modo que caso esta informação seja satisfeita, o conteúdo é exato (verdadeiro), e caso

não seja satisfeita, o conteúdo é inexato (falso). Em outras palavras, as experiências

perceptivas possuem direção de ajuste mente-mundo e tem suas condições de satisfação

satisfeitas quando as informações que têm por função veicular correspondem ao mundo.

É importante salientar que afirmar que os conteúdos perceptivos são avaliáveis em termos

de suas condições de satisfação não é afirmar a identidade entre ambos, como se estes

conteúdos fossem dados por suas condições de satisfação, mas apenas que especificam o

modo como o mundo deve ser para que o conteúdo da experiência seja verídico (c.f.

SCHELLENBERG, 2011, p. 726).

Esta abordagem da visão de conteúdo permite vislumbrar explicações para

tipos de experiências perceptivas que ultrapassam as limitadas capacidades explicativas

do relacionismo, mas que, assim como as percepções verídicas, necessariamente também

devem ser tratadas pelas teorias da percepção, a saber: as experiências ilusórias e as

experiências alucinatórias. Experiências ilusórias são aquelas cujo conteúdo nos

apresenta um objeto O como possuindo uma propriedade P, mas que O não a instancia de

fato. Por exemplo, as condições de iluminação da biblioteca influenciam minha visão e

fazem com que eu perceba um livro como sendo vermelho à minha frente, mas na verdade

o livro é laranja e isto pode ser constatado facilmente em condições normais na

iluminação. Por outro lado, diferente das ilusões, experiências alucinatórias apenas

parecem nos pôr em contato com um objeto O possuidor de uma propriedade P, porém

não existe nenhum objeto O com o qual o sujeito esteja em contato. O livro que percebo

como sendo vermelho pode simplesmente ser a projeção de um holograma, o que

evidentemente torna o conteúdo desta experiência inverídico. Portanto, as análises sobre

conteúdo perceptivo devem dar conta da possibilidade de tais casos, ou seja, é preciso

explicar em que consistem os conteúdos das ilusões e das alucinações.

Assim, como corolário da primeira razão mencionada, chegamos à segunda

razão em favor da visão de conteúdo que diz respeito ao caráter fenomenal das ilusões e

alucinações. Se o caráter fenomenal das experiências perceptivas se deriva tão somente

das relações com particulares, como explicar os aspectos qualitativos associados a estes

tipos de experiências? Novamente ilusões e alucinações interpõem um obstáculo ao

relacionismo. Contudo, vislumbramos uma maneira de explicá-los ao afirmar a existência

de um conteúdo perceptivo subjacente a estes aspectos qualitativos.

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Além destes casos, as teorias da percepção devem propor explicações para dois

desideratos de forte apelo intuitivo, a saber: o desiderato da particularidade e o desiderato

da identidade fenomenal introduzidos por Schellenberg (2010, p. 20). A primeira destas

condições a serem satisfeitas se refere ao fato dos objetos que percebemos no ambiente

serem elementos responsáveis pela individuação dos conteúdos destas experiências.

Minha experiência visual do livro vermelho O à minha frente possui um conteúdo que se

refere exclusivamente a este objeto, de forma que outra experiência visual de um objeto

O’, por mais semelhante que esse seja ao anterior nos mínimos detalhes, será uma

experiência com um conteúdo diferente. A primeira experiência possui um conteúdo que

se refere a O, e a segunda experiência um conteúdo que se refere a O’. A intuição por trás

do desiderato da particularidade se coaduna com a ideia de que as experiências

perceptivas constituem o fundamento epistemológico de pensamentos de re. Em última

instância, este desiderato torna explícito a impossibilidade de individuarmos experiências

perceptivas apenas por seu caráter fenomenal.

Por sua vez, o desiderato da identidade fenomenal (indistinguishability

desideratum) trata da impossibilidade de distinguirmos introspectivamente experiências

que possuem como conteúdo dois objetos qualitativamente idênticos. A experiência

visual E¹ que possui como conteúdo o objeto O possui caráter fenomenal idêntico ao da

experiência visual E² do objeto O’, de forma que o indivíduo seria incapaz de reconhecer

qualquer diferença entre ambas as percepções caso o objeto fosse subitamente substituído

pelo outro. Da mesma forma, ver um livro vermelho à minha frente e alucinar a presença

de um livro com as mesmas propriedades à minha frente são experiências que possuem a

mesma fenomenologia. Isto é, a múltipla realização do caráter fenomenal torna

impossível diferenciar experiências perceptivas verídicas/inverídicas de objetos idênticos

unicamente com base na introspecção, da mesma forma o conhecimento introspectivo

também não fornece fundamento suficiente para discernir entre uma percepção

verídica/inverídica e uma alucinação de objetos idênticos.

Diante de tudo o que discutimos até então, esperamos ter esclarecido o porquê

do conteúdo representacional ser um componente sine qua non da estrutura da percepção.

Nosso objetivo no restante deste capítulo será defender uma perspectiva conjuntivista

acerca da natureza deste conteúdo que ressalte a existência de um elemento

representacional e de um elemento relacional em sua constituição. Em linhas gerais, as

experiências perceptivas realizam com sucesso sua função biológica quando aspectos

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representacionais e relacionais convergem para a formulação do conteúdo perceptivo.

Esta versão conjuntivista é capaz de responder adequadamente às objeções relacionistas

e aos desafios impostos por ilusões e alucinações, assim como satisfazer aos desideratos

supracitados. Para chegarmos a este ponto será útil analisarmos antes três concepções

amplamente difundidas da visão de conteúdo destacando seus pontos positivos e

negativos, são elas: conteúdo singular, conteúdo existencial e conteúdo lacunar (gappy

contents).

4.1. Conteúdo singular.

Aqueles autores que propõem a perspectiva denominada de conteúdo singular

partem da razoável suposição de que perceber o ambiente é perceber particulares (objetos,

eventos, instâncias de propriedades e localizações espaço-temporais) na medida em que

estes constituem tudo aquilo que nos rodeia. Dito isso, a função precípua da experiência

é nos pôr em contato direto com tais particulares. Em outras palavras, trata-se de uma

relação estabelecida entre o indivíduo consciente e os particulares que lhe circundam, de

modo que ele seja capaz de discriminar uns dos outros ainda que em muitos casos esta

discriminação possa fracassar. Sendo assim, nada mais natural do que afirmar que esta

capacidade de distinguir os objetos do ambiente se dê em virtude destes próprios objetos

e propriedades instanciadas constituírem os conteúdos das experiências perceptivas. Isto

torna claro que esta forma de conceber a natureza do conteúdo dos estados perceptivos

está comprometida com a ideia de realismo direto posto que não há nenhuma entidade

(qualia, dados dos sentidos, etc.) que faça a mediação entre o indivíduo e os particulares.

No entanto, diferente do relacionismo, no conteúdo singular os objetos materiais são

objetos da percepção apenas em virtude de estarem contidos no conteúdo intencional

veiculado pela experiência.

Sua motivação mais básica pode ser resumida como se segue: ao caminhar

pela biblioteca e ver um livro na estante, o livro deve aparecer de algum modo a mim,

para isto ele deve ser experimentado de algum modo, consequentemente, para ser

experimentado de algum modo o próprio objeto deve ser constitutivo da experiência. Isto

demonstra que, subjacente a esta abordagem, encontramos a tese da particularidade,

segundo a qual uma experiência perceptiva E ocasionada ao perceber o particular x tem

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a propriedade de que E é constituída por x. Existem diversas formas em que um particular

pode constituir o estado consciente, sendo a mais fundamental delas, de acordo com

Schellenberg, compreendida em termos do conteúdo perceptivo. Diante disto, a autora

apresenta uma formulação da denominada tese do conteúdo singular: “Um estado

perceptivo M ocasionado ao perceber o particular α tem a propriedade que o conteúdo de

M é constituído por α.” (2016, p.40). Tais conteúdos são chamados conteúdos singulares

porque incluem o próprio referente de um análogo mental do que seria um termo singular

ao invés de uma descrição que seleciona objetos diferentes dependendo de quais coisas

no mundo a satisfazem. Por vezes na literatura esta abordagem recebe o nome de

conteúdos russellianos, pois Russell concebia a proposição como uma sequência

ordenada de particulares, suas propriedades e relações.

A experiência visual verídica E¹ do livro vermelho O na estante da biblioteca

representa um determinado conteúdo que possui este mesmo objeto como parte

constituinte, o que implica dizer, evidentemente, que a experiência visual E² do outro

exemplar O’ desta mesma obra dá origem a uma experiência perceptiva distinta. Portanto,

na medida em que vincula o particular ao qual a percepção se dirige como parte integrante

de seu conteúdo, a concepção de conteúdo singular atribui a este particular o papel

determinante na individuação da experiência.

A abordagem do conteúdo singular também oferece uma resposta muito

plausível para casos de ilusão perceptiva. Se, em outra situação, a biblioteca estivesse

iluminada de outra forma e sobre a estante à minha frente houvesse uma luz azul, o livro

O” me pareceria roxo. Contudo, neste caso a condição de satisfação do conteúdo desta

experiência perceptiva E³, a saber, que o livro O” à minha frente seja roxo, não é satisfeita.

O conteúdo representacional de E³ também contém o objeto O”, porém ele não instancia

a propriedade de ser roxo. Assim, as experiências E¹ e E² são verídicas pois possuem

conteúdos verídicos, os particulares O e O’ contidos nestes conteúdos realmente são

vermelhos. Por outro lado, a experiência visual E³ é ilusória uma vez que o particular O”

ao qual se refere não é roxo.

Além destas explicações simples e intuitivas para os casos de percepção

verídica e ilusória, o conteúdo singular possui outros pontos favoráveis dentre os quais,

para nossos propósitos, é o bastante que apontemos dois. O primeiro deles é que,

claramente, esta abordagem satisfaz o desiderato da particularidade. A tese do conteúdo

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singular discutida por Schellenberg nos indica que a particularidade da percepção se

manifesta essencialmente no conteúdo destas experiências. Posto que o particular

percebido é parte constitutiva do conteúdo desta experiência, isto implica dizer que

qualquer outra experiência perceptiva cujo conteúdo é constituído por outro particular

necessariamente será uma experiência com conteúdo distinto, independentemente destes

objetos serem semelhantes em seus mínimos detalhes. Mais uma vez, os particulares que

compõem o conteúdo perceptivo são os elementos responsáveis pela individuação

numérica (token-individuation) destes bem como da própria experiência. No exemplo da

biblioteca, embora O e O’ sejam exemplares de um mesmo livro e, portanto,

qualitativamente idênticos, as experiências E¹ e E² são numericamente diferentes porque

seus conteúdos são compostos por particulares diferentes. Se, no momento T1, eu estiver

vendo o livro O e em um piscar de olhos alguém o substituísse por O’ na estante, no

momento T2, quando voltasse a abrir os olhos e ver o livro na estante, eu estaria

instanciando uma experiência perceptiva numericamente diferente, ainda que eu fosse

incapaz de introspectivamente notar qualquer mudança.

O segundo ponto destaca como esta perspectiva lança luz sobre o papel

explicativo desempenhado pelas experiências perceptivas em algumas de nossas

capacidades cognitivas. O fato de termos os próprios particulares como componentes do

conteúdo perceptivo é um indicativo de que a capacidade de discriminação é constitutiva

das nossas experiências perceptivas em geral: perceber é ser capaz de discriminar

particulares uns dos outros e ele próprio do fundo contra o qual é percebido. Por sua vez,

esta capacidade de discriminação justifica, por exemplo, a produção de conhecimento

sobre particulares, a fixação da referência de termos demonstrativos e a fixação da

referência de termos singulares. Portanto, podemos concluir disto que as experiências

perceptivas se configuram como o fundamento epistemológico dos pensamentos de re, o

conteúdo dos pensamentos de re deriva do conteúdo das experiências perceptivas. Apenas

porque a experiência envolve objetos do mundo é que podemos pensar sobre eles.

O principal problema enfrentado pelo conteúdo singular é suscitado pelos

casos de alucinação. Apesar de seu caráter peculiar, parece apropriado afirmar que

experiências alucinatórias possuem conteúdo representacional; afinal de contas ela nos

apresenta uma determinada configuração de particulares, propriedades e relações em

nosso meio. O que é próprio a este conteúdo é o fato de ele impor uma condição de

satisfação que, caso satisfeita, tornaria a percepção verdadeira. Não obstante, o mundo

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não se mostrou como nossa experiência o representou. Pior do que isso: a alucinação não

nos põe em contato com nenhum particular. Em virtude disto, alucinações são

experiências falsas ou inverídicas. Em que consiste o conteúdo destas experiências?

Em face a esse problema, a teoria do conteúdo singular assume o chamado

disjuntivismo e toma as alucinações como um tipo de experiência sui generis, negando-

lhes a posse de qualquer conteúdo. Visto que a teoria sustenta que as percepções são

constituídas pelos particulares e que alucinações não nos colocam em relação com

nenhum particular no ambiente, podemos concluir que, na verdade, estas experiências

não possuem conteúdo. Entretanto isto entra em choque com a ideia de que estamos nos

enganando. Para ser considerada inverídica é necessário que as alucinações também

possuam condições de satisfação que não foram satisfeitas. Porém para que haja

condições de satisfação é necessário existir um conteúdo perceptivo que as veicule. Para

classificarmos as experiências como verídicas ou inverídicas é necessário haver um

conteúdo que seja avaliado em termos de como representa o mundo. Embora não seja

composta por um particular, parece difícil se negar que a alucinação representa o mundo

de alguma forma, ou seja, que pressupõe um conteúdo perceptivo. Então como devemos

pensá-lo? Por certo não como um conteúdo singular. Isto pressiona seus defensores a

proporem uma abordagem disjuntivista7 quanto ao conteúdo perceptivo. Percepções e

ilusões possuem um conteúdo, respectivamente verídico e inverídico, que envolvem

particularidades, suas propriedades e relações intrínsecas, porém o mesmo não pode ser

dito sobre as alucinações.

Outra evidente dificuldade atribuída a esta teoria concerne à identidade

fenomenal. Se por um lado, o conteúdo singular satisfaz o desiderato da particularidade,

uma vez que os particulares com os quais entramos em contato ao interagirmos com o

ambiente são constituintes essenciais do conteúdo perceptivo e, portanto, responsáveis

pela individuação deste, por outro lado, esta teoria entra em desacordo com o desiderato

da identidade fenomenal. Posto que as experiências visuais E¹ e E² possuem conteúdos

7 Em que pesem as diferenças com relação ao modo de compreender como o particular constitui o estado

perceptivo, o relacionismo enfrenta o mesmo problema do conteúdo singular referente à alucinação e

também assume uma postura disjuntivista. Porém, aqui se trata de um disjuntivismo quanto ao tipo

psicológico. Entender a percepção simplesmente como uma relação (R) de familiaridade ente o sujeito (s)

e um particular (a) externo, segundo a forma Rsa, não dá conta dos casos de alucinação. Toda relação

pressupõe a existência dos relata envolvidos, mas nestes casos não há qualquer objeto em contato com o

sujeito. Logo, alucinações não são relações. Configuram-se como um tipo psicológico distinto.

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diferentes por se dirigirem a objetos diferentes apesar identidade qualitativa completa,

respectivamente O e O’, e que estes conteúdos estabelecem o caráter fenomenal de ambas

as experiências, não está claro por que estas experiências seriam indistinguíveis. Se

partirmos do princípio de que se trata de experiências com conteúdos numericamente

distintos, por envolverem diferentes particulares, e de que estes conteúdos devem

determinar a fenomenologia das experiências, então é razoável presumir que há alguma

diferença fenomenológica entre elas que possa ser introspectivamente acessada pelo

indivíduo. Porém, este não parece ser o caso, não há meios de diferenciá-las através da

introspecção com base apenas no que elas representam.

Isto se torna ainda mais problemático se passarmos a considerar as

alucinações. Como dissemos antes, alucinações são experiências que não envolvem

nenhum particular, o que implica dizer que ou não possuem conteúdo ou se trata de um

conteúdo significativamente diferente do conteúdo das percepções verídicas e das ilusões.

Entretanto, mesmo considerando a discrepância entre estes conteúdos (disjuntivismo de

conteúdo), não há qualquer diferença fenomenológica detectável introspectivamente.

Assim, somos levados a concluir que, a despeito de tudo, a experiência visual verídica de

um livro vermelho sobre a mesa à minha frente possui exatamente o mesmo caráter

fenomenal de uma alucinação de um livro vermelho sobre a mesa à minha frente8.

A partir disto podemos fazer duas inferências distintas. A primeira e mais

controversa é que isto pode indicar a ideia de que a fenomenologia de nossas percepções

independe do conteúdo perceptivo. A segunda, que me parece muito mais plausível, é que

há um aspecto em comum entre percepções e alucinações que garante a identidade

fenomenal. Mas em que consiste esta intersecção? É possível alinhar este desiderato às

intuições subjacentes à teoria do conteúdo singular?

8 Em consequência do problema apontado na última nota de rodapé, o relacionismo também é incapaz de

satisfazer ao desiderato da identidade fenomenal e isto fica ainda mais evidente quando falamos das

alucinações. Embora relacionistas reconheçam que percepções e alucinações podem ser idênticas

fenomenalmente, o disjuntivismo associado a esta teoria nos diz que se trata de tipos psicológicos distintos

que não possuem elementos em comum. Ao instanciar uma experiência alucinatória falhamos em nos

relacionar com os particulares adequados no mundo, mas como explicar o fato de que a introspecção não

nos revela qualquer diferença entre ambas? O desiderato da identidade fenomenal também está além da

capacidade explicativa do relacionismo.

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4.2 Conteúdo geral.

O fracasso da teoria do conteúdo singular em satisfazer o desiderato da

identidade fenomenal, e o reconhecimento de que se faz necessário avançar em alguma

explicação sobre a indistinguibilidade numérica de experiências com conteúdos

singulares se tornaram as principais razões que motivaram o surgimento das teorias do

conteúdo geral, como fica claro nesta passagem de McGinn:

Segue-se do que acabamos de estabelecer que o conteúdo da experiência não deve ser especificado utilizando termos que se referem ao objeto da

experiência, sob pena de negar que objetos distintos podem parecer

precisamente os mesmos: assim, quando descrevemos o conteúdo de uma

experiência não devemos fazer referência singular ao objeto da experiência no

contexto seguinte “como de”. Na verdade, parece correto apoiar uma tese mais

forte sobre conteúdo experiencial; que uma descrição acurada do conteúdo

fenomenológico de uma experiência empregará apenas termos gerais para

especificar como a experiência representa o mundo. Portanto devemos dizer

que determinada experiência é como de um livro que é marrom, grosso e tem

as palavras “A Bíblia” escritas nele; não devemos dizer, quando dado o

conteúdo da experiência, qual livro é visto. (McGINN, 1996, p. 51)

No cerne desta concepção está a tese de que os conteúdos perceptivos são

constituídos unicamente por elementos gerais. Ao contrário do que diz a teoria do

conteúdo singular, os particulares com os quais temos contato no ambiente não compõem

tais conteúdos e, portanto, não são responsáveis pela individuação (nem mesmo

numérica) das experiências nem determinam seu caráter fenomenal. A alternativa seria a

seguinte: não mais tomarmos como modelo do conteúdo representacional da experiência

uma proposição singular russelliana, mas uma proposição existencialmente quantificada.

Por esta razão, muitas vezes a teoria em questão também é denominada teoria do conteúdo

existencial. Assim, ao ver o livro vermelho na estante à minha frente, tudo que minha

percepção representa é que “Há um livro vermelho à minha frente”. Minha experiência

jamais conseguirá representar esse ou aquele particular à minha frente. Toda

representação é sempre de algum objeto com determinadas propriedades. O que significa

dizer que o conteúdo perceptivo não envolve particularidades diretamente, mas apenas

propriedades representadas (como em descrições definidas).

Claramente, a teoria do conteúdo geral preserva a ideia central da visão de

conteúdo de que experiências possuem conteúdos e esses são avaliáveis em termos da

satisfação de condições mediante as quais representam acerca do mundo. O conteúdo da

experiência visual de um livro vermelho à minha frente estaria satisfeito quando

realmente houvesse um livro nesta localização que instanciasse esta propriedade; seria

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ilusória, em contrapartida, quando nenhum particular à minha frente instanciasse a

propriedade de ser vermelho que a experiência lhe atribui. Por último, seria alucinatória

quando nada houvesse à minha frente.

Também é fácil compreender como a adoção desta perspectiva explica

adequadamente o desiderato da identidade fenomenal. Independentemente de qual objeto

em específico seja responsável pela estimulação sensorial, seja O ou O’, o que as

experiências E¹ e E² representam é simplesmente que algum livro vermelho está à minha

frente. Qualquer livro vermelho que se encontre nesta posição satisfará esta percepção.

Desta forma, está garantida tanto a identidade qualitativa quanto a numérica entre E¹ e

E²: E¹ e E² representam um mesmo conteúdo que tem por modelo uma proposição geral.

O sujeito é incapaz de detectar introspectivamente qualquer distinção numérica entre as

experiências porque, em última instância, não há diferença nem qualitativa nem

numérica: os conteúdos são idênticos em todos os aspectos.

Isto se aplica igualmente à identidade fenomenal entre percepções verídicas,

ilusões e alucinações. Muito embora no segundo caso não haja associação correspondente

entre objeto e propriedade, e no terceiro caso não haja nenhum objeto, as três experiências

representam o mundo estritamente da mesma forma. Diferentemente do conteúdo

singular, que está ligado ao disjuntivismo de conteúdo, e ao supor diferentes conteúdos

perceptivos veiculados por estas experiências não consegue esclarecer este fato, o

conteúdo geral explica por que os conteúdos destas experiências possuem um elemento

em comum que garante a identidade fenomenal. Este conteúdo representacional

determina o caráter fenomenal da experiência perceptiva, logo percepções, ilusões e

alucinações podem possuir fenomenologias indiscerníveis. Os qualia destas experiências

não refletirão qualquer diferença no conteúdo simplesmente porque particulares não

constituem tal conteúdo.

Dentre muitos autores, Tye (1995) em certo momento defendeu a teoria do

conteúdo geral. Ao defender o representacionismo através de sua teoria PANIC, Tye

reduz o qualia a um tipo de conteúdo representacional que, entre outras características, é

abstrato. Vejamos este trecho a seguir:

Esta afirmação de que os conteúdos relevantes para o caráter fenomenal devem

ser abstratos deve ser compreendida como demandando que nenhum objeto

concreto particular entre nestes conteúdos (exceto para os sujeitos das

experiências para alguns casos). Uma vez que diferentes objetos concretos

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podem parecer e sentir exatamente fenomenalmente semelhantes, um pode ser

substituído pelo outro sem qualquer mudança fenomenológica. Qual objeto

particular está presente, portanto, não importa. Nem importa se algum objeto

concreto é apresentado para o sujeito. Quer você tenha uma perna esquerda ou

não, por exemplo, você pode sentir uma dor na sua perna esquerda; em ambos

os casos, o caráter fenomenal de sua experiência pode ser exatamente o

mesmo. Assim a existência dessa perna particular não é requerida para o

caráter fenomenal. O que é crucial para o caráter fenomenal é a representação

de características gerais ou propriedades. (TYE, 1995, p. 138)

Ao passo em que dá conta do desiderato da identidade fenomenal, o conteúdo

geral o faz em detrimento da satisfação do desiderato da particularidade. Uma vez que

apenas elementos gerais entram em sua constituição, todo objeto que possuir as

propriedades representadas se adequará a este conteúdo perceptivo, de forma que a ele

não está associado um único particular. Para as condições de satisfação apresentadas é

irrelevante qual particular está em uma relação com o indivíduo.

Como corolário, se torna difícil compreender em que medida a percepção

pode fundamentar as capacidades cognitivas mencionadas anteriormente. É inegável que

por meio da experiência visual conseguimos discriminar determinado particular dentre

todos aqueles que estão em nosso campo de visão, produzindo assim conhecimento sobre

este particular em específico e não sobre qualquer outro que porventura possa instanciar

exatamente as mesmas propriedades. Ou seja, a percepção justifica a produção de

conhecimento particular. Em virtude disto, sei que tenho o livro vermelho O à minha

frente, pois consigo diferenciá-lo numericamente, por exemplo, do outro livro vermelho

O’ que está do seu lado direito e da caneta sobre a mesa. No entanto, se minha experiência

perceptiva simplesmente representa que há um livro vermelho à minha frente, não está

claro como isto pode suprir informações que justifiquem meu conhecimento sobre O. Por

outro lado, se o conteúdo perceptivo traz consigo este particular e não algum outro com

estas propriedades, torna-se mais fácil compreender como se dá esta relação de

justificação e qual a função epistêmica desempenhada pela percepção.

Ademais, a teoria do conteúdo geral não parece esclarecer suficientemente

como a percepção proporciona a relação de contato direto (acquaintance) subjacente à

produção de pensamentos de re, como pensamentos singulares e crenças sobre

particulares, além da fixação da referência de demonstrativos e de termos singulares em

geral. Se formulo a crença de que “este livro à minha frente é vermelho”, este estado

mental se refere a um particular específico responsável pelo estímulo visual. Trata-se de

uma crença formada diretamente com base na experiência e direcionada ao objeto

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singular com estas características. Aqui não estamos falando de uma crença sobre algo

indeterminado como sugere o conteúdo perceptivo geral. Para fazer justiça à situação em

jogo, parece mais oportuno descrevê-la afirmando que creio que este livro O tem a

propriedade de ser vermelho e está na localização L, e não apenas que algum objeto

indeterminado satisfaz o conteúdo da crença. A conexão entre indivíduo e o ambiente

parece se tornar mais tênue nesta perspectiva.

Por fim, outro argumento que reforça esta objeção ao conteúdo geral foi

apresentado por Tye (2009). Consiste basicamente no fato de que em alguns casos esta

teoria produz resultados inequivocamente verídicos (c.f. pág. 79) quando, na verdade,

parece mais intuitivo dizermos que temos experiências enganosas com conteúdos

verídicos. O primeiro destes casos é denominado ilusão verídica (veridical

misperception) e apresentado pelo autor através do exemplo a seguir. Suponhamos que,

sem que eu soubesse, tenha sido colocado um espelho à minha frente, posicionado a um

ângulo de 45°. Ao olhar na direção do espelho, minha experiência visual representa um

cubo amarelo à minha frente, porém, na verdade, trata-se do reflexo de um outro cubo, de

cor branca, posicionado à minha direita, fora do meu campo de visão, que me parece

amarelo apenas devido às condições de luz do local. Entretanto, atrás do espelho e,

portanto, também fora do meu campo de visão, realmente há um cubo amarelo tal como

a minha experiência visual representa. De acordo com a teoria do conteúdo geral, minha

experiência visual me informa apenas que há um cubo amarelo à minha frente e, de

qualquer modo, as condições de satisfação dessa representação estão preenchidas. Existe

um objeto com estas propriedades, o conteúdo perceptivo parece ser verídico. Contudo,

o objeto que realmente vejo não está à minha frente nem é amarelo. Assim, temos aqui

um típico exemplo de ilusão. Isto nos conduz a um paradoxo: partindo do pressuposto de

que o conteúdo perceptivo é especificado em termos de uma proposição existencialmente

quantificada, é possível termos uma experiência inequivocamente ilusória, mas cujo

conteúdo é verídico!

O segundo tipo de caso é denominado alucinação verídica e o exemplo a

seguir (c.f. TYE, 2009, p. 83) ilustra a situação. X é um indivíduo que aceitou ser cobaia

de um experimento científico e foi colocado diante de uma bola azul em um laboratório

com condições ideais de iluminação. Os comprimentos de onda refletidos pelo objeto

chegam normalmente à retina de X, mas o neurocientista que conduz o experimento

bloqueou os sinais emitidos pela retina antes de alcançarem o nervo óptico.

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Simultaneamente, este neurocientista aciona eletrodos conectados ao córtex visual de X

que emitem sinais neurológicos que geram a experiência visual de uma bola azul. Dessa

maneira X tem uma experiência visual cujo conteúdo representa uma bola azul à sua

frente, porém X não está em contato visual com nenhum objeto. Posto que os estímulos

que chegam à sua retina não são processados pelo córtex visual, não podemos dizer que

X vê o objeto de forma alguma. Este é simplesmente um caso de alucinação visual, pois

X não tem acesso perceptivo a nenhum objeto. No entanto, o conteúdo geral da

experiência visual de X representa a existência de uma bola azul à sua frente e esse

conteúdo corresponde à realidade. Novamente chegamos a um paradoxo: X possui uma

alucinação que, no entanto, possui um conteúdo geral verídico. A fonte das dificuldades

suscitadas pelos casos de ilusões e alucinações verídicas é o fato desta teoria prescrever

condições gerais de satisfação para os conteúdos perceptivos.

4.3 Conteúdo lacunar.

Nas seções a seguir, avaliaremos uma alternativa que visa satisfazer os dois

desideratos em conflito. Ela consiste em uma abordagem no interior da qual se

desenvolveram diferentes teorias que igualmente ressaltam tanto o aspecto relacional

quanto o aspecto representacional das experiências perceptivas. Em outras palavras,

alguns autores recorrem à ideia de aliar os pressupostos fundamentais da teoria do

conteúdo singular e os pressupostos fundamentais da teoria do conteúdo geral, de forma

que as experiências perceptivas sejam individuadas pela conjunção de (I) os particulares

que estão no ambiente e com os quais o indivíduo tem contato e (II) o conteúdo

representacional da percepção. A esta vertente Schellenberg (2010, p. 32) chama

conjuntivismo. Uma característica importante das teorias que se desenvolveram seguindo

esta abordagem é rejeitar qualquer associação ao disjuntivismo na medida em que

preservam a ideia de que alucinações e percepções possuem um elemento em comum.

Defendida por Tye (2009), a teoria do conteúdo lacunar (gappy content) é um

exemplo de teoria conjuntivista. Segundo a proposta russelliana de Tye, o conteúdo de

uma experiência perceptiva verídica deve ser entendido como um par ordenado contendo

de um lado o objeto percebido e do outro a propriedade instanciada por este, ou seja, uma

proposição singular. Por sua vez, o conteúdo de uma alucinação é composto apenas por

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propriedade não instanciada, ou seja, sem que o sujeito esteja em contato com nenhum

particular. No lugar do particular inexistente, há apenas uma lacuna, um espaço vazio

indicando não haver particulares nesta situação. De modo que o conteúdo de uma

alucinação assumi a forma de uma função proposicional não saturada. Em razão disto o

autor denomina sua posição de conteúdo singular – quando preenchido – (singular - when

filled – content). Como exemplo, a experiência visual E¹ de livro vermelho possui a forma

E¹: (o, V). Em que “o” indica o particular percebido e “V” a propriedade de ser vermelho.

O conteúdo da experiência visual E² de um livro vermelho idêntico a “O” e a alucinação

E³ de um livro vermelho são formalizadas respectivamente: E²: (o’, V); E³: ( __, V). Nas

palavras de Tye:

A tese singular (Quando Preenchida), como devo chamá-la, afirma que no caso em que uma experiência visual é verídica ela tem um conteúdo que é uma

instância de um SWF esquema de conteúdo, cujo espaço é preenchido pelo

objeto visto, e onde as propriedades atribuídas no conteúdo são propriedades

que o objeto visto possui. No caso de uma ilusão, a experiência novamente

possui um conteúdo que é uma instância de um SWF esquema de conteúdo,

cujo espaço é preenchido pelo objeto visto, mas agora o objeto visto não tem

uma ou mais das propriedades atribuídas no conteúdo. No caso de uma

alucinação, a experiência tem um conteúdo que é uma instância de um SWF

esquema de conteúdo, cujo espaço está vazio. (TYE, 2009, p. 82)9

Vemos assim que o desiderato da particularidade é satisfeito por esta teoria

pois os próprios particulares, quando existem, fazem parte do conteúdo perceptivo. E¹ e

E² não suscitam condições gerais de satisfação: não é qualquer livro que tornará minha

experiência exata, mas apenas O’ e O”. Isto garante a distinção entre individuação

numérica e qualitativa uma vez que particulares desempenham papel importante na

individuação numérica dos conteúdos. Entretanto, os conteúdos perceptivos são

compreendidos apenas como parcialmente dependentes dos objetos para que o desiderato

da identidade fenomenal possa ser satisfeito. Alucinações como E³ possuem conteúdo

tanto quanto os outros exemplos, com a única diferença que em E³ há uma lacuna que

sinaliza a ausência de um objeto em relação direta com o indivíduo. Assim, em que pese

esta lacuna, as três experiências possuem uma estrutura em comum: os “esquemas de

conteúdo” (c.f. TYE, 2009, p. 81). Trata-se de esquemas de conteúdos que, quando

preenchidos pelos particulares, produzem conteúdos singulares. Aqui está o traço

conjuntivista desta versão do conteúdo lacunar. De acordo com Tye, a impossibilidade de

distinguirmos introspectivamente E¹, E² e E³ reside no fato de serem todos espécimes

9 “SWF” é a sigla em inglês para “singular quando preenchido”.

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(tokens) de um mesmo tipo (type) de conteúdo. Sua semelhança é o reflexo da mesma

estrutura que partilham. O conteúdo lacunar, entendido como singular (quando

preenchido), apresenta respostas às questões centrais da percepção.

Ao contrário do que afirma Tye (c.f. 2009, p. 83), no entanto, penso que um

dos pontos favoráveis à sua teoria é exatamente produzir, mais uma vez, um resultado

inequívoco de falsidade para os casos de ilusão e alucinação verídica. No exemplo do

espelho, o objeto que preenche a lacuna neste conteúdo é um cubo, chamemos de C1, que

não é amarelo nem está à frente do sujeito. Por mais que lhe pareça haver um cubo

amarelo à frente e que de fato haja outro cubo amarelo C2 nesta posição, não é C2 quem

satisfaz a experiência. Negar isto é abrir mão da forte intuição de que a veracidade de

uma experiência perceptiva necessariamente deve depender do objeto com o qual

mantemos uma conexão causal. Neste caso teremos o conteúdo (C1, A, L1), mas C1, o

objeto ao qual se tem acesso, não é amarelo (A) e não está à frente (L1). Portanto esta

experiência é simplesmente falsa. O mesmo raciocínio se aplica ao exemplo do

experimento neurocientífico. Por mais que haja uma bola azul na frente de X, não é este

objeto que causa a experiência visual, mas os impulsos elétricos no córtex visual

comandados pelo neurocientista. Embora pareça haver, e realmente haja, uma bola com

estas características, o conteúdo da experiência instanciado por X é: (__, Az, L1). Na

verdade, há uma lacuna indicando que não há objeto conectado a X que satisfaça a

condição de ser azul (Az) e estar à sua frente (L1). Consequentemente, esta teoria se

coaduna à intuição de que a veracidade da experiência perceptiva depende essencialmente

dos particulares que estimulam o sistema sensorial do indivíduo. Logo, a experiência de

X é falsa, ou, na melhor das hipóteses, nem verdadeira nem falsa.

O grande desafio enfrentado por esta versão do conteúdo lacunar é estar em

desacordo com a tese fundamental da visão de conteúdo. Como toda experiência

perceptiva, alucinações também devem representar determinadas condições de satisfação,

ou seja, seu conteúdo também deve estabelecer o estado de coisas que deve ser o caso

para que esta se configure como uma representação verídica. Dizemos assim que o

conteúdo perceptivo é expressão das suas condições de satisfação e, consequentemente,

que o conteúdo das alucinações é falso. No entanto, não está claro em que consistiria as

condições de satisfação que estão em jogo uma vez que estas experiências possuem

conteúdo incompleto. A rigor, funções proposicionais não possuem condições de

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satisfação. Sem um particular ocupando este espaço, as alucinações nada representam, o

que nos leva a concluir que não se trata de um conteúdo representacional genuíno.

Isto ocasiona consequências diretas no que se refere ao papel desempenhado

pela percepção em nossas capacidades cognitivas e epistêmicas. Considerando que o

conteúdo da experiência alucinatória não é constituído por objetos, como poderia o mero

esquema de conteúdo ser um elemento central subjacente para a produção de estados

mentais de re tais como pensamentos singulares e crenças sobre particulares? Ademais,

como poderiam eles fixar a referência dos análogos mentais aos termos singulares

demonstrativos? É plausível pensar que com base na experiência visual E³ de um livro

vermelho se pode formar a crença de que “Aquele é um livro vermelho na estante”, crença

esta direcionada àquele exemplar que aparentemente vejo. Não obstante, se esta

experiência possui o conteúdo E³: (__, V), este conteúdo é incapaz de justificar tal crença.

Nesta perspectiva apresentada por Tye, a menos que o conteúdo perceptivo tenha o

particular entre seus componentes, este não proporcionará a evidência necessária para

crenças e demais pensamentos singulares. Em outras palavras, apenas quando preenchido

e, deste modo, caracterizado como conteúdo singular, a experiência perceptiva pode

justificar o conteúdo da crença.

Esta objeção está em claro conflito com a explicação oferecida pelo autor para

casos de alucinação verídica. Buscando evitar a ideia de que apenas supondo a existência

de elementos gerais, da forma como explicitamos na seção anterior, seria possível dar

sentido à suposta veracidade do conteúdo perceptivo de X no experimento

neurocientífico, Tye sugere que: “Casos de alucinação verídica são verídicos, portanto,

apenas na medida em que as experiências visuais que envolvem dispõem seus sujeitos a

formarem crenças verdadeiras” (c.f. 2009, p. 92). Aqui, porém, voltamos à pergunta do

parágrafo anterior: Como conteúdos lacunares podem justificar crenças em particulares,

ou fundamentar a disposição de formular tais crenças, se esses próprios conteúdos não

dispõem de particulares?

Além dos problemas mencionados, esta perspectiva russelliana dos conteúdos

lacunares enfrenta uma dificuldade adicional: o conteúdo das alucinações é individuado

qualitativamente por propriedades não-instanciadas. Mas o que os individua

numericamente? O problema reside aqui: todas as alucinações verídicas com as mesmas

propriedades seriam numericamente idênticas. As diferenças numéricas residiriam no

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tempo e espaço nos quais tais alucinações têm lugar. Ora, nem tempo e lugar fariam parte

desse conteúdo lacunar.

Soma-se a isto a dificuldade de explicar como um indivíduo pode ser

sensorialmente estimulado por propriedades não-instanciadas de forma a produzir

experiências perceptivas que possuam estas propriedades em seus conteúdos. Parece mais

plausível supor nesta situação que os estímulos não são provenientes de propriedades

como estas, mas simplesmente da atividade cerebral, o que nos leva a concluir que os

conteúdos não seriam compostos pelas próprias propriedades e assim já não teríamos

conteúdos russellianos. Em consequência disto obteríamos uma perspectiva disjuntivista,

alucinações se configurariam em um tipo psicológico distinto.

4.4. Uma proposta conjuntivista.

Partilhando do pano de fundo conjuntivista exposto na seção anterior,

pretendemos apresentar uma explicação da natureza do conteúdo perceptivo em que se

coadunam um elemento representacional, através do qual nos direcionamos ao ambiente

e o concebemos como configurado de uma certa maneira, e um elemento relacional, que

está presente em casos de experiências bem-sucedidas na medida em que estas realizam

adequadamente sua função essencial de nos pôr em contato direto com os particulares ao

nosso redor. Esta forma do conteúdo conjuntivista indica que (i) a experiência representa

uma certa propriedade como sendo instanciada por um objeto e (ii) ao mesmo tempo que

põe o sujeito da experiência em uma relação de acesso cognitivo direto proporcionada

por seu sistema sensorial com o objeto que instancia esta propriedade. Sendo assim, o que

há em comum entre os casos de alucinação e os casos de percepção verídica é o seu

aspecto representacional de propriedades ou características gerais. Alucinações, portanto,

seriam desprovidas do termo relacional desta conjunção.

Argumentamos no terceiro capítulo que o processo evolutivo selecionou e foi

responsável pelo aperfeiçoamento dos sistemas sensoriais das espécies por tornarem os

organismos mais aptos à sobrevivência, uma vez que estes sistemas adquiriram

filogeneticamente a função biológica de dotar os indivíduos da capacidade de detectar

informações sobre seu ambiente. Esta função informacional é realizada pelas experiências

perceptivas que decodificam os estímulos oriundos dos diferentes modos (visão, audição,

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tato, olfato e paladar) que compõem o sistema sensorial. As experiências perceptivas

decodificam e veiculam tais informações por meio de seu conteúdo representacional que

direciona o indivíduo aos particulares externos e independentes que estão em seu meio.

Em razão disto assumimos que perceber é efetivamente discriminar e selecionar

determinado particular, ou conjunto de particulares, uns dos outros e do seu entorno.

Diferentemente das abordagens explanadas nas seções anteriores, porém, não

defenderemos a ideia de que o conteúdo perceptivo é proposicionalmente estruturado.

Segundo a nossa proposta, este conteúdo fornece ao indivíduo uma espécie de

mapeamento do ambiente, isto é, as informações provenientes dos diferentes modos

convergem para projetar um quadro de referência por meio do qual podemos segmentar

a cena e, assim, discriminar e selecionar os particulares que a compõem.

Em primeiro lugar, uma das principais razões para compreendermos o

conteúdo representacional das experiências perceptivas sob esta forma é nos fazer ver

diretamente como esta capacidade de adquirir informações desempenhou papel

fundamental na adaptação dos organismos. A cognição espacial é uma necessidade

adaptativa central e se constitui como um dos domínios evolucionários mais primitivos

de cognição intermodal sistemática, pois mesmo organismos mais elementares se

mostram capazes de relacionar os estímulos a que são submetidos com padrões de

variação do mundo imediatamente ao seu redor. Por meio da decodificação das

coordenadas oriundas de diversas fontes é possível localizar a si mesmo e aos demais

objetos como parte do ambiente, além de possibilitar agir neste espaço. Ou seja, analisar

o conteúdo perceptivo sob esta ótica nos permite reconhecer que são tais representações

espaciais que propiciam aos organismos a execução de um comportamento orientado ao

ambiente, tornando-os mais autônomos ao passo em que compreendem o local que eles

próprios ocupam bem como os demais objetos com base em suas relações espaciais.

Espécies mais elementares possuem habilidades bem mais restritas de coligir estas

informações livremente, já as experiências perceptivas dos organismos complexos como

os seres humanos parecem ter origem evolucionária em uma troca mais livre de

informações através das modalidades e organizam esta intrincada rede, contribuindo para

o conhecimento espacial.

Soma-se a isto o fato de que a cognição espacial é uma função

primordialmente atribuída ao hipocampo, que é uma estrutura filogeneticamente

primitiva do córtex. Pesquisas realizadas por John O’Keefe e Lynn Nadel ainda na década

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de 70 mostram que esta estrutura, que também é essencial para a formulação da memória

recente, apreende e armazena as informações transmitidas pela estimulação sensorial sob

a forma de mapas cognitivos. O tipo de conhecimento espacial originado nestas estruturas

primitivas do sistema tálamo-cortical “se estabelece através das ordens dos vertebrados”

(LEVINSON, 2004, p. 18). Diversos caminhos neurais estão ligados a este órgão e

transmitem ao indivíduo todas estas informações interconectadas.

Ademais, esta abordagem está alinhada com estudos desenvolvidos nas

ciências cognitivas por autores como Bernard Lechevalier (2000) e Stephen Levinson

(2004). Em sua pesquisa, Levinson busca analisar como se dá a inegável correlação entre

cognição espacial e linguagem, entre categorização espacial linguística e não-linguística.

Os modos que compõem nosso sistema sensorial, como por exemplo a visão, tato e

audição, geram experiências perceptivas (com conteúdos representacionais) que veiculam

informações significativamente diferentes sobre o espaço. Em outras palavras, todos estes

componentes do sistema são especializados em captar diferentes estímulos do ambiente

e, consequentemente, dão origem a tipos de representações díspares sobre a configuração

dos particulares em nosso meio. Apesar disto, estas informações convergem para a

realização de um output apropriado ao modo como o mundo nos parece; do contrário não

poderíamos falar sobre o que vemos, relatar o formato dos objetos que tocamos ou

identificar de qual lugar da sala ouvimos o ruído de um objeto caindo. Porém observa-se

uma diferença substancial ente padrões semânticos utilizados para a descrição espacial

em diferentes línguas. Algumas línguas, inclusive, não dispõem de meios para expressar

sistemas de coordenadas egocêntricos comuns no português e no inglês, tais como “à

minha esquerda” (c.f. LEVINSON, 2004, p. 2). Estes diferentes padrões semânticos para

categorização das relações dos objetos no espaço levaram o autor a concluir que a

linguagem não é uma simples projeção de um único conjunto de categorias espaciais não-

linguísticas. De acordo com Levinson, a diversidade linguística e a diversidade cognitiva

são intimamente ligadas, e esta correlação pode ser compreendida ao analisarmos os

diferentes quadros de referência subjacentes à linguagem e à cognição.

Atualmente a noção de “quadro de referência” é fortemente influenciada pelas

teorias gestálticas da percepção e consiste basicamente em “uma unidade ou organização

de unidades que coletivamente servem para identificar um sistema de coordenadas com

relação ao qual certas propriedades de objetos, incluindo o eu fenomenal, são aferidas”

(LEVINSON, 2004, p. 24). Ao contrário de outros autores, Levinson não interpreta esta

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noção como resumida apenas à seleção de objetos de referência. Em sua perspectiva,

apenas considerando distinções entre quadros de referência como sendo essencialmente

distinções entre sistemas de coordenadas é possível dar conta das sutilezas da percepção,

o que não seria possível caso focássemos exclusivamente nos particulares envolvidos na

cena. Por esta razão, ele propõe uma tipologia de quadros de referência baseada em três

categorias fundamentais inerentes às representações perceptivas sobre objetos no

ambiente: quadros de referência centrados no sujeito, centrados no objeto e centrados no

ambiente (LEVINSON, 2004, p. 32).

Quadro centrado no sujeito (centred-viewer frame) é entendido como um

sistema de coordenadas egocêntrico que assume como referência a perspectiva do

indivíduo que percebe o mundo. Este quadro está em jogo quando o indivíduo descobre

o seu próprio corpo no ambiente ou quando localiza estímulos em seu organismo. A partir

deste ponto de origem os demais particulares do ambiente são representados sob sistemas

de coordenadas retinocêntrico, quando a referência corresponde ao ponto de fixação

visual do sujeito sobre o objeto localizado; ou cefalocêntrico, quando a referência é a

posição da cabeça; ou egocêntrico, quando a referência corresponde ao eixo médio ou

sagital do corpo. O quadro centrado no objeto (object-centred frame) corresponde a um

sistema de coordenadas alocêntrico, isto é, o objeto é codificado unicamente com respeito

aos eixos que lhe são intrínsecos. Portanto, aqui o objeto é tomado como ponto de

referência do mapa mental que representa o meio independentemente da posição ou

orientação do indivíduo ou dos demais particulares. Já no quadro centrado no ambiente

(enviroment-centred frame) o mapeamento é feito a partir de sistemas de coordenadas

baseados em pontos de referência do meio no qual o indivíduo está inserido, os objetos

são representados tomando como referência aspectos proeminentes do mundo. Esta

distinção no nível das experiências perceptivas é correspondida no nível linguístico à

distinção entre “dêitico”, “intrínseco” e “extrínseco”. Com base nos pontos de origem

determinados pelos quadros de referência (o sujeito, o objeto ou um ponto de referência

no ambiente) são estabelecidos um conjunto de eixos de coordenadas horizontais e

verticais que seguem em todas as direções e que proporcionam a orientação espacial

característica a todo tipo de percepção. São estes eixos que também dão sentido a termos

espaciais linguísticos como “acima” e “à esquerda de”.

Evidentemente os diferentes modos sensoriais por vezes empregam diferentes

quadros de referência. Como dissemos anteriormente, estes modos adquiriram a função

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de informar sobre aspectos específicos do ambiente, são suscetíveis a diferentes estímulos

e são responsáveis por discriminar e selecionar diferentes propriedades e particulares, de

modo que os conteúdos representacionais aos quais dão origem normalmente são

baseados em sistemas de coordenadas divergentes. O conteúdo perceptivo da experiência

visual, por exemplo, veicula primariamente representações estruturadas em um quadro de

referência centrado no sujeito, em especial segundo um sistema de coordenadas

retinocêntrico. Embora não raro algumas representações visuais obedeçam ao quadro

centrado no ambiente. Por sua vez, o conteúdo da experiência tátil fundamentalmente

representa o estímulo a que é submetido através do quadro de referência centrado no

objeto, e assim pode informar sobre a textura e o formato tridimensional do particular,

entre outras coisas. O quadro de referência nativo do conteúdo da experiência auditiva é

centrado no ambiente, o que possibilita minimamente a orientação espacial que indica de

onde surgiu o ruído. E assim por diante. Na verdade, alguns modos sensoriais são

incapazes de representar o ambiente sob alguns quadros de referência. Tudo isto nos

indica que um mesmo quadro de referência não pode em princípio operar em todos os

modos que compõem o sistema sensorial, não há um único tipo de representação espacial

supramodal, de forma que é de suma importância para todas as áreas que fazem parte das

ciências cognitivas a pergunta pela possibilidade de compatibilizar estes diferentes

quadros de referência. É certo que se trata de problemas intimamente relacionados, mas

enveredar pelo caminho que esta questão apresenta nos afastaria de nosso objetivo que é

propor uma perspectiva sobre a natureza do conteúdo perceptivo.

Para nossos propósitos é importante aplicarmos a ideia de quadros de

referência a fim de esclarecer o elemento representacional envolvido no conteúdo

perceptivo. Os modos sensoriais realizam sua função informacional filogeneticamente

determinada ao empregarem quadros de referência no meio em que estão inseridos, sejam

centrados no sujeito, centrados no objeto ou centrados no ambiente, especializados em

captar certos tipos de estímulos. As informações resultantes da aplicação destes quadros

que visam apreender estímulos referentes a tipos de particulares são veiculadas e

decodificadas sob a forma de sistemas de coordenadas pelo conteúdo representacional

que compõe a experiência perceptiva. Estes sistemas de coordenadas possuem uma

origem, que vimos que pode ser caracterizada por diferentes pontos de referência, da qual

partem eixos em todas as direções e retratam todo o ambiente como apresentando um

certo estado de coisas. De posse deste sistema de coordenadas podemos segmentar a cena

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em qualquer orientação estabelecida pelo conjunto ou subconjuntos de eixos veiculados

pelo conteúdo perceptivo e, assim, discriminar e selecionar os objetos e propriedades que

experimentamos naquela porção do espaço. Em outras palavras, percebemos o mundo por

meio de uma espécie de mapeamento. O conteúdo perceptivo é constituído em parte por

um elemento representacional que mapeia o ambiente e o apresenta sob determinada

configuração, o que torna possível identificar tipos de particulares em certos pontos destas

coordenadas. Em casos de percepção verídica, o sistema de coordenadas representado no

conteúdo perceptivo corresponde ao estado de coisas atual do mundo, o indivíduo entra

em contato direto com os particulares tokens e, consequentemente, o conteúdo perceptivo

passa a ser integrado pelos elementos representacional e relacional.

Isto nos mostra que o conteúdo perceptivo não é constituído apenas pelos

próprios objetos e propriedades com os quais temos contato, mas também por quadros de

referência que podem compor este conteúdo mesmo quando empregados pelo sistema

sensorial em situações em que não há correspondência com o estado de coisas atual do

mundo. Portanto, trata-se de uma proposta conjuntivista, pois defende a existência de um

elemento comum às percepções e às alucinações, a saber, seu elemento representacional.

Diferente do conteúdo lacunar proposto por Tye e explicitado na seção 4.3, esta versão

conjuntivista da visão de conteúdo não tem como característica essencial ser inteiramente

dependente dos objetos e propriedades.

De acordo com esta perspectiva, a experiência visual verídica E¹ é constituída

por (I) um quadro de referência que estabelece um sistema de coordenadas através do

qual percebo (II) os outros componentes deste conteúdo que são o livro “o” e a

propriedade de ser vermelho “V”. Já a alucinação E³ é constituída unicamente pelo quadro

de referência cujo sistema de coordenadas possui pontos que especificam respectivamente

o objeto e a propriedade que tornariam esta experiência verídica. Considerando isto,

devemos esclarecer seis pontos. Primeiramente, a experiência covaria de acordo com o

ambiente que circunda o indivíduo, de modo que os conteúdos de E¹ e E² selecionam

diferentes objetos como referente. Assim, o sistema de coordenadas de E¹ capta os

estímulos provocados por “o” e “V”, enquanto o sistema de coordenadas de E² capta os

estímulos de “o’ ” e “V”. Os objetos com os quais se está em contato direto individuam

numericamente o conteúdo perceptivo e, portanto, garantem a particularidade relacional

que está subjacente ao desiderato da particularidade. Em segundo lugar, estes objetos

numericamente distintos são experimentados como qualitativamente idênticos porque são

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percebidos a partir de um mesmo quadro de referência aplicado pelo mesmo modo

sensorial, o que explica a identidade fenomenal. É exatamente isso que também acontece

em casos de alucinação. Apesar de não possuir nenhum objeto e nenhuma propriedade no

escopo de seus sistemas de coordenadas, a alucinação E³ é introspectivamente e

qualitativamente indistinguível de E¹ e E² por serem constituídas pelo mesmo quadro de

referência. Qualquer mudança na experiência perceptiva destes objetos se deve a uma

mudança no quadro de referência utilizado para discriminá-los e selecioná-los ou a uma

mudança quanto ao modo sensorial que aplica o quadro de referência. O elemento comum

que estas experiências singulares compartilham é o quadro de referência que utilizam para

perceber estes tipos de objetos; E¹, E² e E³ empregam o mesmo quadro de referência

centrado no sujeito que projeta o sistema de coordenadas retinocêntrico.

Isto nos conduz ao terceiro ponto sobre esta abordagem conjuntivista, que

completa e acrescenta maior especificidade à tese central da teoria representacionista que

defendemos: podemos concluir do que foi esclarecido até aqui que o caráter fenomenal

das experiências perceptivas é completamente especificado em termos de seu conteúdo

representacional, ou seja, do quadro de referência em questão. Em outras palavras, a teoria

representacionista que propomos é capaz de explicar a consciência fenomenal sem

postular a existência de entidades sui generis como os qualia ou objetos intencionais. Ao

instanciarmos uma experiência perceptiva, verídica ou inverídica, não entramos em

contato ou nos tornamos sensorialmente cientes de qualquer entidade imaterial ou abstrata

que intermedeie a nossa relação com o ambiente e que dê origem à fenomenologia

envolvida. Nossa proposta evita o inflacionamento das categorias ontológicas. Toda

experiência perceptiva consiste na execução de uma função biológica filogeneticamente

adquirida que fornece ao indivíduo informações sobre o mundo através do seu conteúdo

representacional ao aplicar um quadro de referência que, considerando o modo sensorial

em questão, é especializado em captar tipos de estímulos. Os sistemas de coordenadas

fornecidos têm por função nos direcionar intencionalmente a pontos que remetem a algum

particular externo e independente, muito embora em casos de alucinação e ilusão estes

sistemas de coordenadas não discriminam e não selecionam os particulares apropriados,

nestas situações o conteúdo não satisfaz sua função teleológica-informacional

apropriadamente.

Em consonância com a tese da transparência das experiências conscientes,

portanto, esta teoria demonstra que a consciência fenomenal é inteiramente explicável em

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termos objetivos que dizem respeito às funções biológicas informacionais dos modos

sensoriais que dão origem a estas experiências. De acordo com esta perspectiva, não se

faz necessário recorrer a qualquer aspecto inescrutável para tratarmos do caráter

fenomenal, pois este é analisado em toda sua profundidade apenas com base no conteúdo

perceptivo que é empregado com o intuito de mapear o ambiente e informar sobre os

objetos que nele se encontram. Como corolário, o caráter fenomenal das experiências

perceptivas é fundamentado em seu conteúdo representacional que, por sua vez, consiste

em uma forma mais eficaz de decodificação de informações que permite nos

relacionarmos com os particulares que nos circundam. Em última instância nossa

consciência fenomenal é completamente explicada pelas propriedades intencionais das

experiências, o que implica no externismo fenomenal discutido no capítulo anterior.

Compreender o conteúdo perceptivo enquanto uma conexão com o ambiente caracteriza

esta teoria representacionista como uma abordagem naturalista da consciência fenomenal.

Nos aprofundaremos sobre os desdobramentos desta discussão na unidade III, quando

apreciaremos o alcance explicativo desta teoria após expormos todos os elementos que a

compõe. No restante deste capítulo, porém, ainda devemos esclarecer outros três pontos

sobre nossa proposta conjuntivista do conteúdo perceptivo.

O quarto ponto a ser esclarecido é voltado para os problemas gerados pelas

denominadas alucinações verídicas. Posto que o conteúdo das experiências verídicas é

parcialmente constituído pelos particulares que provocam os estímulos sensoriais, uma

vez que realizam sua função precípua de nos pôr em contato com estes particulares, sua

veracidade não pode ser estipulada independentemente desta relação perceptiva entre

indivíduo e objeto. Assim, apesar do mundo corresponder ao modo como foi representado

pela alucinação verídica, este conteúdo representacional é inexato pois não possui entre

seus constituintes qualquer objeto com o qual o indivíduo esteja em contato. Neste caso

não temos nada além do que uma simples experiência alucinatória, este conteúdo é tão

inverídico quanto o conteúdo de E³ ao alucinar o livro vermelho na estante.

Em quinto lugar, tomar a ideia de “quadro de referência” como alicerce para

esta abordagem conjuntivista do conteúdo perceptivo preserva a “visão de conteúdo”

segundo a qual a percepção projeta condições de satisfação no mundo e, assim, contorna

um dos principais problemas do conteúdo singular quando preenchido defendido por Tye.

Em E³, o quadro de referência determina um sistema de coordenadas sob o qual não caem

nenhum objeto e nenhuma propriedade, trata-se de uma representação que falha em se

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referir a algo no ambiente. No entanto, devido ao seu caráter intencional ainda preserva

sua particularidade fenomenal (aparente relação com um particular), isto é, aparentemente

ainda experimentamos determinado objeto com propriedades que supostamente

instanciaria, porém, não há particularidade relacional (perceptivelmente relacionado ao

particular), não se tem acesso direto a nada. Em outras palavras, ao alucinarmos,

empregamos um quadro de referência da mesma forma como empregamos quando

percebemos, entretanto, esse fracassa em seus propósitos referencial e discriminativo.

Mapeamos o meio através do conteúdo perceptivo independentemente de discriminarmos

e selecionarmos objetos e propriedades factualmente.

O último ponto explicita que nossa proposta é imune à objeção das

propriedades não-instanciadas que afetava a teoria do conteúdo singular quando

preenchido. Ao contrário da abordagem russelliana, que considera unicamente os próprios

objetos e propriedades como seus constituintes, a alternativa conjuntivista apresentada

não se compromete com a ideia de conceber como elementos do conteúdo das alucinações

propriedades que não são instanciadas e com as quais, evidentemente, o indivíduo não

pode ter acesso direto. Compreendendo o conteúdo das alucinações como composto por

uma espécie de mapa que não corresponde ao estado de coisas do mundo, ao invés de

propriedades que não estão atreladas a objetos, temos então um caso de representação que

falha em selecionar um referente.

Por fim, é importante destacar que o entendimento acerca da natureza do

conteúdo perceptivo aqui defendido se assemelha em alguns aspectos à ideia de cenário

posicionado (positioned scenario) de Christopher Peacocke (1992). Em especial porque

o referido autor também o analisa como uma espécie de mapeamento do ambiente que

circunda o indivíduo. De acordo com Peacocke, o conteúdo representacional das

experiências perceptivas é um tipo de configuração espacial especificado a partir de uma

origem da qual se projetam um conjunto de eixos que cobrem toda a área em que o

indivíduo pode captar estímulos. Se determinarmos o ponto de origem como o peito do

indivíduo, os eixos estabelecerão direções relativas à origem como direita/esquerda, em

cima/embaixo e frente/atrás. Considerando estas direções ao redor da origem, o conteúdo

representacional nos apresenta um tipo de organização dos particulares a partir da qual se

detectam pontos através de sua distância e direção em relação à origem em que são

possíveis identificar tipos de estímulos como cor, formato e textura. A este tipo de

configuração espacial representada pela experiência, o autor denomina de “cenário”. Se,

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após fixarmos a origem e os eixos no mundo real, o que o autor chama de “cena”, este

estado de coisas atual se revelar uma instância do tipo espacial especificado pelo cenário,

então diremos que o conteúdo representacional é verdadeiro. Seguindo a terminologia

utilizada por Peacocke, as condições de satisfação estabelecidas pelo conteúdo perceptivo

serão satisfeitas se a cena cair sob as coordenadas determinadas pelo cenário. Temos

assim que cenário posicionado é um tipo de configuração especial fixada em localizações

e orientações no mundo atual. Vejamos esta passagem de Peacocke:

Um cenário posicionado consiste em um cenário juntamente com (1) uma

atribuição aos eixos e origens rotulados do cenário de direções e lugares reais

no mundo que caem sob os rótulos, e (2) um tempo atribuído. Para uma

experiência perceptiva particular, as direções e lugares reais atribuídos em (1) são dadas pelas aplicações dos rótulos ao sujeito que tem a experiência. Se a

origem é rotulada como o centro de gravidade do corpo, o ligar real atribuído

é o centro de gravidade do corpo do percebedor, e assim por diante. [...] O

tempo atribuído em (2) é o tempo no qual a experiência ocorre: a experiência

perceptiva tem um conteúdo no tempo presente. Podemos dizer, portanto, que

o conteúdo dado pelo cenário posicionado é correto se a cena em seu lugar

atribuído cai sob o cenário no tempo atribuído, quando o cenário é posicionado

de acordo com as direções atribuídas. (PEACOCKE, 1999, p. 64, 65)

Apesar desta clara aproximação, uma vez que concebemos o conteúdo

perceptivo como um mapeamento que fornece sistemas de coordenadas sobre o meio,

divergimos quanto ao ponto de origem que constitui o conteúdo. Embora reconheça a

necessidade de considerarmos os diversos sistemas de origens e eixos a fim de refletir

toda a complexidade envolvida em nossas experiências (c.f. PEACOCKE, 1999, p. 62),

Peacocke parece considerar apenas quadros de referência centrados no sujeito. Mesmo

apontando esta necessidade em algumas passagens, Peacocke menciona como tipos de

origem apenas partes do corpo do sujeito e, assim, varia sem maiores esclarecimentos ao

longo do texto ente sistemas de coordenadas egocêntricos, retinocêntricos e

cefalocêntricos. Em que pese o caráter intuitivo e a centralidade deste quadro de

referência, pautar toda a reflexão sobre o conteúdo perceptivo apenas neste ponto de

referência fica aquém de refletir adequadamente todas as nuances que permeiam as

experiências perceptivas. Muitas diferenças fenomenológicas são explicadas apenas se

também assumirmos quadros de referência centrados no objeto e quadros de referência

centrados no ambiente. Esta variação entre quadros de referência permite explicar por que

em algumas experiências discriminamos e selecionamos determinadas características e

relações dos particulares e do ambiente em detrimento a outras.

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5. Conteúdo perceptivo e não-conceitualismo.

Nosso objetivo neste capítulo, que encerra a segunda unidade, será o de

argumentar em favor da outra tese fundamental que compõe os alicerces da teoria

representacionista aqui defendida. Como esclarecido ainda na introdução, tendo em vista

os problemas sobre os quais nos debruçamos e o projeto explicativo traçado, ao lado das

ideias defendidas nos capítulos 3 e 4, esta tese constitui o núcleo da versão moderada do

representacionismo que defendemos. Aqui atribuiremos uma outra qualificação à noção

de conteúdo perceptivo que está em jogo nesta análise, mais especificamente sobre o tipo

de representação transmitida por este conteúdo. O externismo fenomenal, sobre o qual

tratamos no terceiro capítulo, apontava para certa proximidade entre percepção e atitude

proposicional na medida em que deu destaque ao caráter intencional destes tipos de

estados, o que era categoricamente negado às experiências perceptivas por teorias não-

reducionistas. Esta proximidade inicial foi gradativamente suprimida na medida em que

aprofundávamos nossa análise do conteúdo perceptivo. O definíamos como uma

representação natural que retrata o meio através de uma espécie de mapeamento, cujos

sistemas de coordenadas aplicados possuem a função de captar tipos de estímulos e, em

casos de percepção verídica, permitem ao indivíduo discriminar e selecionar particulares.

O distanciamento entre estes tipos de estados mentais, evidenciado ao longo destas

páginas, será reforçado com a tese explanada a seguir. A diferença entre esses estados

não se resume ao fato de atitudes proposicionais representarem determinado estado de

coisas sob a forma de proposições. Há outro fator preponderante para esta cisão: atitudes

proposicionais possuem um conteúdo conceitual e experiências perceptivas possuem um

conteúdo não-conceitual10. Crer e conhecer são essencialmente diferentes de ver e ouvir

porque, dentre outras coisas, os dois primeiros estados veiculam um conteúdo

representacional que pode ser especificado pelos conceitos que o sujeito dos estados

possui, enquanto os dois últimos estados mentais veiculam um conteúdo representacional

que se estende muito além desses limites.

O embrião da ideia expressa pelo não-conceitualismo parece já estar presente

no pensamento de David Hume quando este afirma haver um princípio de anterioridade

das impressões sensíveis em relação às ideias, conectando assim as duas categorias

10 É importante ter em mente que as noções de conteúdo conceitual e conteúdo proposicional não são

sinônimos. Proposições russellianas são um tipo de conteúdo não-conceitual.

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básicas do conhecimento. Segundo este autor, as ideias são imagens pálidas das

impressões com as quais tivemos contato anteriormente, são representações destas no

pensamento e no raciocínio. Não obstante, o debate propriamente dito em torno do não-

conceitualismo e a distinção entre conteúdos conceituais e não-conceituais surgiu com

Gareth Evans (1982). Atualmente a associação entre percepção e não-conceitualismo é

amplamente difundida e defendida sob as mais diversas perspectivas por autores como

Dretske, Tye, Peacocke e Bermúdez.

Pensada com uma ferramenta de ampla capacidade explicativa, a noção de

conteúdo não-conceitual foi introduzida com o intuito de caracterizar dois tipos de

conteúdos de diversas categorias de estados informacionais de sistemas que possuem a

função de representar características do ambiente. Em virtude disto, como esclarece

Bermúdez (2007, p. 56), conteúdos não-conceituais podem ser atribuídos tanto a estados

oriundos de sistemas de processamento de informação em nível subpessoal, quanto a

estados gerados por sistemas em nível pessoal. Os avanços nas neurociências fornecem

inúmeros exemplos do que Bermúdez chamou de sistemas de nível subpessoal. No que

se refere aos processos envolvidos na percepção visual, por exemplo, estes sistemas e o

tipo de conteúdo informacional ao qual dão origem atuam desde a recepção do estimulo

visual quando a luz atravessa a córnea e percorre todo o caminho para chegar ao receptor

óptico da retina, onde se encontram os cones e os bastonetes que são tipos de células

especializadas em captar certas propriedades destes estímulos; até o processo de

codificação dos estímulos em padrões de impulsos eletroquímicos que são interpretados

pelas áreas que compõem o córtex visual, sendo cada uma destas áreas também

especializada em decodificar determinadas características das informações, tais como cor,

forma e movimento. Em última instância, quando falamos de estados informacionais de

nível subpessoal, falamos dos resultados de processos computacionais executados pelos

sistemas neurais dos quais estamos completamente inconscientes, embora a integração

destes estados dê origem à experiência perceptiva.

A atribuição de conteúdo não-conceitual aos estados subpessoais

exemplificada acima não suscita grande controvérsia visto que as representações

envolvidas em todos esses estágios do processamento de informações visuais operam

independentemente de quaisquer conceitos possuídos pelo indivíduo. A questão que

realmente ocupa o centro deste debate é saber se podemos atribuir de forma consistente

conteúdos não-conceituais a estados de nível pessoal, como é o caso das experiências

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perceptivas. No decorrer deste capítulo apresentarei cinco argumentos com o propósito

de defender que o conteúdo perceptivo é não-conceitual. Em linhas gerais, esta tese pode

ser formulada como se segue: o conteúdo perceptivo representa o mundo mesmo que o

sujeito dos estados representacionais não disponha dos conceitos necessários para a

especificação canônica de suas condições de satisfação.

Denomino de argumento do refinamento (fininess of grain) o principal

sustentáculo da tese do conteúdo perceptivo não-conceitual. A ideia subjacente a este

argumento consiste em contrastar as capacidades discriminatórias e as capacidades

conceituais do indivíduo consciente. Em diversas passagens ao longo do texto,

assumimos que, a rigor, perceber é discriminar e selecionar particulares, e devido a esta

característica as experiências perceptivas dotam o indivíduo de informações sobre o

ambiente. Não obstante, para fazer justiça ao tipo de representação transmitida, toda

análise da natureza do conteúdo perceptivo deve destacar que se trata de um conteúdo

que possui grande especificidade e riqueza de detalhes. As experiências perceptivas

originadas dos diferentes modos sensoriais representam os particulares e o meio em que

estão sempre a partir de um quadro de referência, o que implica dizer que há sempre um

modo através do qual percebemos o mundo. Há sempre um modo no qual o conteúdo é

estruturado a depender do modo sensorial em questão, do sistema de coordenadas

empregado e dos tipos de estímulos aos quais se destina captar. Abordamos este ponto

pormenorizadamente no capítulo anterior. Importa agora explicitar que estes sistemas de

coordenadas possibilitam nos direcionarmos a particulares e discriminá-los sob riqueza

de detalhes.

Ao olhar pela janela em direção ao quintal recebo simultaneamente um

conjunto complexo de informações sobre esta cena. Entre outras coisas vejo o gramado,

algumas folhas e flores, e todos estes particulares instanciam uma ampla variedade de

propriedades que consigo captar de modo bastante detalhado e específico. Este conteúdo

perceptivo me possibilita discriminar a variedade de formatos das folhas, a diversidade

de cores das flores assim como os diferentes tons de verde que destacam o contraste entre

o gramado e as folhas caídas. Embora consiga discriminar sem dificuldades esta gama de

propriedades, não consigo traduzi-las com o devido detalhamento ao utilizar a linguagem.

Na melhor das hipóteses posso afirmar que a grama possui o formato pontudo, enquanto

as folhas são mais largas e com bordas arredondadas. Do mesmo modo posso classificar

a cor da grama apenas como verde escuro, já as folhas caídas possuem um tom de verde

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claro e as flores que percebo são vermelhas e amarelas. É um fato muito difundido que

conseguimos discriminar milhares de tons de cores, porém dispomos apenas de

aproximadamente duas dezenas de conceitos de cores para categorizar tamanha

multiplicidade.

É evidente que casos semelhantes ocorrem frequentemente com os demais

tipos de experiências. Ouço o canto de pássaros no quintal à minha esquerda. Consigo

discriminar que são dois pássaros distintos, um deles com o canto mais agudo. Porém,

não dispondo dos recursos conceituais necessários para classificar os diferentes tons em

que os sons foram emitidos, menos ainda para determinar quais as espécies desses

pássaros. Tais exemplos ilustram que as informações advindas da percepção possuem

elevado grau de refinamento se comparadas com o enquadramento de toda esta

multiplicidade em nosso arcabouço conceitual. De forma que nossas capacidades

discriminatórias ultrapassam e muito os limites de nossas capacidades conceituais.

Indiscutivelmente, somos aptos a perceber estímulos para os quais não dispomos de

conceitos apropriados para classificá-los. Como corolário, o conteúdo perceptivo é

independente de nosso repertório conceitual. Para se discriminar e selecionar todos os

objetos e propriedades do ambiente não se faz necessário possuir qualquer conceito

correspondente. A percepção não está restrita aos conceitos disponíveis ao indivíduo que

percebe. Com base neste argumento podemos concluir que o conteúdo perceptivo é não-

conceitual. Evans resume esta reflexão numa pergunta: “Realmente compreendemos a

proposta de termos tantos conceitos de cores quanto os tons de cores que podemos

discriminar sensivelmente?” (EVANS, 1982, p. 229).

Por sua vez, o conceitualismo se caracteriza como a tese oposta segundo a

qual o conteúdo perceptivo é uma função das capacidades conceituais do indivíduo11. Em

Mind and World (2000), John McDowell apresenta argumentos para corroborar esta

perspectiva e propõe uma versão do conceitualismo que visa contornar os desafios

impostos pelo argumento do refinamento. O autor reconhece a pertinência da ideia

explicitada por este argumento, chegando inclusive a afirmar que no exemplo da

experiência visual as capacidades conceituais que implementam conceitos como “verde”,

“vermelho” e “amarelo” selecionam apenas faixas no espectro de cores, ao passo em que

11 Como destacado por Pereira, conceitualismo é uma posição diferente do que denominou de judicativismo,

segundo o qual: “Perceber a como F é o mesmo que crer e julgar que a é F.” (c.f. PEREIRA, 2014, p. 1).

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a experiência perceptiva discrimina linhas no espectro (c.f. McDOWELL, 2000, p. 56).

Contudo, a constatação desta discrepância se dá em virtude de considerarmos somente

conceitos gerais como constituintes destes conteúdos. Ao invés disso, se o concebermos

a partir de expressões conceituais demonstrativas como “esse tom” (“that shade”), tal

conteúdo representacional refletirá todo o refinamento característico da experiência de

qualquer amostra de cor. O mesmo se aplica a conceitos demonstrativos como “esse

formato”, “esse timbre”, “esse sabor”, etc.

Ainda segundo McDowell, tais conceitos demonstrativos compõem o

conteúdo perceptivo em razão da capacidade recognicional de curta duração do indivíduo

(c.f. McDOWELL, 2000, p. 57). Em outras palavras, trata-se de um conteúdo conceitual

na medida em que a sua instanciação não ocorre somente enquanto o indivíduo está em

contato com o particular, mas esta informação é armazenada na memória de curta duração

e pode ser aplicada em pensamentos sobre o passado recente. O conteúdo perceptivo “esse

tom” instanciado ao ver algum objeto com determinada cor não está disponível apenas

enquanto dura a experiência visual, mas é armazenado e pode ser recombinado para a

formulação de novos pensamentos como, por exemplo, quando logo depois o sujeito

visualiza outro objeto com a mesma cor e pensa: “Esse tom é idêntico ao que vi há poucos

instantes.” Portanto, as capacidades conceituais implementadas na percepção são

intimamente ligadas às capacidades recognicionais.

O principal argumento em apoio ao conceitualismo consiste em apontar que

um conteúdo conceitualmente estruturado nos leva a compreender de modo mais claro o

impacto racional desempenhado pela percepção. Em todo caso, se devemos pensar a

percepção como construindo razões que fundamentem o raciocínio empírico, uma forma

direta de conceber esta relação é pensá-la como resultado de sua interação em um sistema

de conceitos disponíveis ao indivíduo no momento em que entra em contato com o

ambiente até o momento em que reflete sobre as informações veiculadas pelo sistema

sensorial. Ou seja, McDowell afirma que apenas pressupondo o conteúdo perceptivo

conceitual é possível reconhecer como as experiências perceptivas fundamentam juízos e

crenças sobre o mundo (c.f. McDOWELL, 2000, p. 52). Se o conteúdo perceptivo for

originado pela aplicação das mesmas capacidades conceituais que estão em jogo ao

formularmos um juízo ou uma crença, então é fácil entendermos como se dá a transição

da experiência para estes estados cognitivos. Por outro lado, para este autor, o não-

conceitualismo tornaria ininteligível esta relação de fundamentação, pois promoveria o

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isolamento entre o domínio da percepção e o domínio racional. Parece desembocar em

uma visão obscura da transição racional das experiências para os juízos e crenças haja

vista que se tratam aqui de dois tipos de conteúdos informacionais essencialmente

diferentes. Embora não-conceitualistas atribuam um conteúdo representacional às

experiências, estas nada seriam além de meras “intuições cegas”, em alusão a Kant.

Antes de adentrarmos no mérito desta proposta, faz-se necessário esclarecer

que a tentativa de alinhar as capacidades discriminatórias características das experiências

perceptivas às capacidades conceituais exemplificadas pelos conceitos demonstrativos

demonstra somente que, na melhor das hipóteses, o conteúdo perceptivo é

“conceitualizável”. Isto é, a ideia de que o conteúdo perceptivo pode ser composto por

conceitos demonstrativos não é um argumento forte o suficiente para refutar o não-

conceitualismo, uma vez que não implica a impossibilidade de discriminações que não

possuam correspondentes no repertório conceitual do indivíduo. É imprescindível ao

conceitualismo demonstrar que não se pode instanciar a experiência sem possuir

conceitos apropriados.

Esta réplica se baseia em uma má compreensão da tese fundamental do não-

conceitualismo, porque, ao contrário do que afirma McDowell, ela não se compromete

com o suposto isolamento entre experiências e conceitos. Como vimos anteriormente, seu

cerne é a possibilidade de discriminação perceptiva na ausência de quaisquer conceitos

que especifiquem tal conteúdo. Esta tese nos compromete apenas com a alegação de que

as capacidades discriminatórias superam as capacidades conceituais, que ilustramos

recorrendo ao argumento do refinamento. Isto não implica a negação sumária de

interações entre os referidos conjuntos de capacidades. Logo, essa tese é compatível com

casos em que o repertório conceitual do indivíduo exerce alguma influência em seu

conteúdo perceptivo. Dretske (1995, pp. 15 e 18), por exemplo, afirma que o aprendizado

pode “recalibrar” o modo como representamos o mundo. É notório que a aquisição de

conhecimentos e, consequentemente, de conceitos permite a pronta categorização e

reconhecimento daquelas informações acuradas veiculadas pela percepção. Ao degustar

duas amostras de vinho, um sommelier e uma pessoa não especialista terão acesso aos

mesmos estímulos. Contudo, apenas o primeiro não terá grandes dificuldades em

distinguir o cabernet sauvignon do carménère, pois seu conhecimento prévio permite

interpretar aqueles estímulos como provenientes de certas propriedades, o que não está

ao alcance do não especialista, muito embora perceba diferenças quanto às texturas, as

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concentrações de taninos e as cores. Situação semelhante ocorre com músicos que

reconhecem qual afinação do instrumento já no primeiro acorde, enquanto um leigo que

ouve o mesmo som não é capaz de reconhecer. Nesses casos os especialistas seriam mais

habituados em detectar as propriedades responsáveis por traços específicos do conteúdo

informativo. Como diz Dretske, toda informação necessária para essa recalibração já está

presente no conteúdo perceptivo.

Decorre disto que, a rigor, o não-conceitualismo se compromete em negar

apenas que o conteúdo perceptivo não é exclusivamente conceitual, ou seja, que não é

uma função das capacidades conceituais. De modo que indivíduos que dispõem destas

capacidades podem associar conteúdos não-conceituais e conteúdos conceituais em suas

experiências, possibilitando especificar conceitualmente, através do aprendizado, aquilo

que já está discriminado não-conceitualmente. Em outros termos, defendemos aqui a

concepção de que o conteúdo perceptivo não necessita, embora possa ser suplementado

por, conceitos.

Feitas estas observações preliminares que lançam luz sobre pontos

importantes referentes aos compromissos assumidos pelo não-conceitualismo, passemos

a uma breve análise do mérito daquela teoria conceitualista. O primeiro problema que se

impõe é a necessidade de pressupormos o conceito geral “tom” (“shade”) como

componente do conteúdo perceptivo “esse tom” (“that shade”). Esta condição para se

instanciar a experiência pode ser constatada na passagem a seguir:

É verdade que não temos de antemão, antes do curso que nossa experiência de

cor realmente toma, tantos conceitos de cores quantos tons de cores que

podemos discriminar sensivelmente. Mas, se temos o conceito de um tom,

nossas capacidades conceituais são completamente adequadas para capturar

nossa experiência de cor em todos os seus detalhes determinados.

(McDOWELL, 2000, p. 58)

Trata-se aqui de uma condição extremamente exigente e que, de fato, está

desvinculada da realidade posto que grande parcela dos indivíduos capazes de discriminar

e selecionar cores não possui esse conceito. Assim também com os conceitos “formato”,

“timbre”, “sabor”, etc. Não está claro o porquê de devermos possuí-los para percebermos

as propriedades dos objetos. Na verdade, esta pressuposição indica uma forte

incongruência da proposta de McDowell na medida em que reivindica conceitos gerais

como aqueles que negou anteriormente. Uma alternativa seria tomar apenas o

demonstrativo “esse” (“that”) como componente do conteúdo conceitual preservando,

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ainda, sua importante característica referencial. Porém, esta adaptação resultaria em um

conteúdo muito aquém de refletir a riqueza de detalhes da percepção.

Vimos também que um ponto muito importante da teoria de McDowell é a

associação entre os elementos demonstrativos do conteúdo perceptivo e as capacidades

recognicionais, com o intuito de que o acesso a esses não esteja restrito à duração da

experiência, podendo ser empregado em um momento subsequente. O armazenamento

desta informação na memória é uma clara tentativa de assegurar que se trata de um

conteúdo conceitual. Não obstante, um sério problema põe abaixo este alicerce da teoria:

é um fato empiricamente comprovado que as limitações de nossa memória impossibilitam

o armazenamento de informações refinadas preconizado por McDowell. Há uma vasta

literatura12 que converge para a conclusão que a maior parte das discriminações

perceptivas realizadas ao interagir com o ambiente não chega a ser retida nem mesmo na

memória de curta duração, o que exclui qualquer capacidade recognicional. Isto é o caso

porque precisamos “abrir espaço” em nossa memória para evitar uma sobrecarga

cognitiva e, assim, muitas informações sobre detalhes da cena percebida não são retidas

na memória. Consequentemente nossas capacidades recognicionais estão condicionadas

às limitações da memória. Experimentos mostraram que um percentual significativo das

pessoas testadas teve dificuldades em identificar o mesmo tom, ou tom muito próximo,

da amostra de cor exibida poucos instantes antes. Além disso, observa Peacocke (c.f.

2001, p. 251), mesmo que nossa memória não apresentasse tais limitações, quando um

indivíduo experimentasse pela primeira vez determinada propriedade, não haveria

capacidades recognicionais atuando na construção do conteúdo. Ou seja, nestas situações

seria instanciado um conteúdo perceptivo refinado independente (e anterior) da existência

de capacidades recognicionais. Logo, as discriminações perceptivas não são

necessariamente conectadas à recognição.

Diante destas objeções temos boas razões para concluir a impossibilidade de

que conceitos demonstrativos possam refletir com precisão o conteúdo perceptivo. Isto

12 Com destaque para: HALSEY, R. e CHAPANIS, A. Number of absolutely indentifiable hues. Journal

of the Optical Society of America, n. 41, p. 1057-1058. 1951;

HURVICH, L. Color Vision. Sinauer. 1981;

RAFFMAN, D. On the persistence of phenomenology. In: METZINGER, T. Conscious Experience.

Schonning-Verlag. 1995.

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nos conduz ao segundo argumento em favor do não-conceitualismo, nomeado por

Bermúdez (2015) de argumento da prioridade. Esse diz respeito à aquisição, posse e

aplicação de conceitos observacionais, como é o caso dos demonstrativos.

Indiscutivelmente, a maneira mais eficaz para aprender um conceito observacional como

“vermelho” ou “quadrado” é experimentar objetos que instanciem essas propriedades, ou

seja, é entrar em contato com particulares que caiam sob estes conceitos. Ao ver um livro

vermelho, meu sistema visual capta os estímulos ao empregar certo quadro de referência

que codifica as informações em um sistema de coordenadas específico que nos direciona

ao objeto e nos permite discriminá-lo. São estas informações veiculadas pelo conteúdo

perceptivo que tornam possível a aquisição deste tipo de conceito, a capacidade de

discriminar o tipo de característica em questão se constitui como base segura para o

aprendizado.

Por outro lado, se adotarmos a perspectiva conceitualista e pensarmos o

conteúdo perceptivo composto por conceitos, enfrentaremos a situação paradoxal de ter

que pressupor de antemão a posse do conceito que se pretende adquirir. Em outras

palavras, a realização da experiência perceptiva que fundamenta a aquisição do conceito

observacional “vermelho” (ou da expressão conceitual “esse tom” em referência à cor do

livro vermelho) exige que o sujeito já disponha em seu vocabulário do conceito que

pretende aprender. Esta circularidade entra em choque com a aquisição de conhecimentos

elementares baseados na percepção e parece se comprometer com alguma espécie de

inativismo para explicar a aquisição de conceitos observacionais. Portanto, esse processo

de aprendizagem deve se fundamentar na instanciação de uma experiência cujo conteúdo

perceptivo não inclui os próprios conceitos em questão, o conteúdo em uma representação

não-conceitual que permite discriminar as propriedades que levam a classificar o objeto

como caindo sob o conceito “vermelho” (c.f. PEACOCKE, 2001, 252). Concluímos

assim que as capacidades discriminatórias subjazem às capacidades de aquisição de

conceitos observacionais.

Consequência natural disto é que a posse e aplicação do repertório de

conceitos observacionais é uma função das capacidades discriminatórias através das quais

entramos em contato com o ambiente. Nas palavras de Bermúdez (2015), conceitos

demonstrativos não são explicativamente básicos, pois sua posse é resultado da

discriminação perceptiva das propriedades e objetos relevantes aos quais pretendemos

nos referir ao utilizá-los. A aplicação correta deste tipo de conceito pressupõe a efetiva

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discriminação das propriedades de particulares que caem sob esse conceito, de modo que

se a discriminação perceptiva é necessariamente anterior à sua posse e aplicação, então o

conteúdo perceptivo não envolve conceitos observacionais. Negar esta relação de

prioridade e supor que experiências possuem conteúdo conceitual implica a

impossibilidade de erro na utilização do conceito, mas qualquer elucidação acerca da

posse de conceitos deve permitir situações comuns de erro. Se a própria experiência for

individuada por um conteúdo composto pelo conceito observacional “esse tom de

vermelho”, sempre que instanciar esta experiência o indivíduo estará autorizado a aplicar

o conceito independentemente do estado de coisas do mundo. Por mais que esteja

experimentando uma ilusão ou uma alucinação, o conteúdo perceptivo será condição

suficiente para aplicação do conceito.

Em virtude disto, é necessário reconhecer, mais uma vez, que a natureza do

conteúdo perceptivo deve ser analisada em termos de conteúdos não-conceituais. Em

primeiro lugar porque as capacidades discriminatórias envolvidas nas experiências

perceptivas superam nossas limitadas capacidades conceituais. Em segundo lugar porque

as discriminações perceptivas são explicativamente mais básicas que os conceitos

observacionais, caracterizando-se irremediavelmente como o substrato que possibilita a

origem destes, o que significa dizer que os conceitos são uma função das capacidades

discriminatórias empregadas por nosso sistema sensorial. A argumentação apresentada

está em consonância com o pensamento de Peacocke (c.f., 1999, pp. 61 e 74), para quem

o conteúdo não-conceitual da experiência é o tipo de representação mais fundamental na

medida em que todos os outros tipos pressupõem a sua existência. Isto fica ainda mais

patente ao considerarmos a classe de conceitos observacionais, haja vista que são

individuados por suas relações com o conteúdo representacional não-conceitual. Portanto,

a ideia de conteúdo não-conceitual (conteúdo cenário) é particularmente cara para

Peacocke, pois sua instanciação se constitui como uma das condições necessárias para a

posse de conceitos. A outra condição necessária é uma versão próxima da restrição da

generalidade de Evans.

Bermúdez sintetiza a reflexão que conecta o argumento do refinamento e o

argumento da prioridade neste trecho:

O caso do conteúdo não-conceitual não repousa sobre considerações relativas

ao refinamento da percepção. Em última instância repousa sobre uma

afirmação modal no sentido de que nossas capacidades para discriminação

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perceptiva não são restringidas por nossas capacidades conceituais. Esta

afirmação modal, por sua vez, repousa sobre uma afirmação sobre a direção da

explicação entre explicações do que é possuir um conceito observacional, e o

que é ser perceptivelmente capaz de discriminar objetos e propriedades no

ambiente distal. Os detalhes do caso para a afirmação de que a percepção tem

um conteúdo não-conceitual virão do desenvolvimento detalhado das

condições de posse para conceitos observacionais, não de reflexões gerais

sobre a natureza da experiência perceptiva. (BERMÚDEZ, 2007, p. 62)

A relação de prioridade é ainda mais importante para o não-conceitualismo

pois proporciona uma perspectiva plausível sobre o impacto da percepção no raciocínio

empírico, evitando o suposto isolamento de ambos os domínios conjecturados por

McDowell. De acordo com Peacocke (2001), crenças e juízos acerca do ambiente estão

fundamentados nas experiências uma vez que os conceitos observacionais articulados nos

conteúdos desses estados cognitivos são, ao menos parcialmente, individuados pelas

representações perceptivas. Isto é evidenciado pelo fato de que as condições de satisfação

do conteúdo perceptivo são as mesmas condições de verdade dos conteúdos conceituais

em questão. Representar veridicamente um particular sob determinado quadro de

referência é uma condição suficiente para adquirirmos conceitos observacionais como,

por exemplo, “quadrado” e “vermelho”, e a partir disso é possível empregá-los em crenças

e juízos. Assim, indivíduos que dispõem de capacidades conceituais podem realizar uma

transição racional de um conteúdo não-conceitual, advindo da experiência, para um

conteúdo conceitual, em que pese a significativa diferença na forma como ambos os

conteúdos retratam o mundo. De que forma? O primeiro fornece a base evidencial que

justifica o segundo, quando devidamente conceituado. Portanto, embora não

conceitualmente estruturado, a representação cujo conteúdo perceptivo é não-conceitual

pode ser tomada pelo sujeito como razão que assegura a elaboração da crença “Este objeto

é vermelho”, uma vez devidamente conceituada. O sujeito pode avaliar racionalmente o

conteúdo perceptivo e reconhecê-lo como fundamento de sua crença ao refletir se esta

representação de um particular reúne as condições para crer que se trata de particular que

cai sob o conceito observacional “vermelho”.

A partir das reflexões expostas acima, podemos dar um passo além e ampliar

a aplicabilidade do não-conceitualismo ao defender o que se convencionou chamar de

argumento da autonomia. Conteúdos não-conceituais são definidos como conteúdos que

representam o mundo mesmo quando o sujeito que os instancia não possui os conceitos

apropriados para a sua especificação canônica. Além disso, é importante destacar que há

sólidas motivações para sustentar a relação de prioridade entre este tipo de conteúdo

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frente aos conteúdos conceituais observacionais. Considerando estes pontos, seguimos

Bermúdez e inferimos que conteúdos não-conceituais são completamente autônomos, isto

é, sua posse independe de qualquer capacidade conceitual por parte do sujeito consciente.

Aqui não nos restringimos apenas à posse de conceitos que especifiquem o conteúdo em

questão, mas de todo e qualquer conceito. Partindo da premissa que as experiências

perceptivas são a forma mais elementar de contato entre todas as criaturas que possuem

sistemas sensoriais (dos mais variados graus de complexidade) e o ambiente, é razoável

admitir a possibilidade da existência de tais estados mentais com conteúdos

representacionais primitivos, como é o caso dos conteúdos não-conceituais, ainda que

careçam de recursos conceituais. Nas palavras do autor: “A Tese da Autonomia (TA): É

possível para uma criatura se encontrar em estados com conteúdo não-conceitual mesmo

que essa criatura não possua nenhum conceito” (BERMÚDEZ, 2003, p. 295).

Em A Study of Concepts, contudo, ao mesmo tempo em que afirma a

existência de conteúdos não-conceituais como condição necessária para a posse de

conceitos observacionais, Peacocke rejeita a tese da autonomia, acima descrita. O assim

chamado “conteúdo cenário” é uma representação espacial genuína que vai além da mera

sensibilidade, devendo ser atribuído somente a indivíduos capazes de interpretar estas

informações para identificar lugares ao longo do tempo. Para que a identificação se

concretize é necessário que o indivíduo consciente possa reconhecer o lugar que ocupa

no momento como sendo o mesmo em que esteve anteriormente, o que parece requerer a

posse, ao menos, de uma forma primitiva de conceito de primeira pessoa. Em outras

palavras, indivíduos que se encontram em estados com o chamado “conteúdo cenário”

são capazes de integrar conteúdos representacionais das sucessivas experiências

perceptivas para construir e atualizar uma imagem do ambiente ao seu redor, ou seja,

podem realizar raciocínios espaciais. Porém, essa integração, que constitui a

representação do ambiente onde o sujeito está inserido durante determinado período, é

possível apenas na medida em que se tem ciência de sua própria localização, o que leva

o autor a supor a posse de algum tipo de conceito de primeira pessoa.

Assim, afirma Peacocke: “no nível mais básico, conteúdos conceituais e não-

conceituais devem ser elucidados simultaneamente. Os elementos mais básicos do

esquema formam eles mesmos um holismo local” (PEACOCKE, 1999, p.91). Nessas

palavras, Peacocke tenta compatibilizar o não-conceitualismo com a negação da tese da

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autonomia destacando que a definição deste tipo de conteúdo exige a ausência de

conceitos utilizados em sua especificação, e não a ausência de todo e qualquer conceito.

De fato, esta compatibilização é possível. Assumir o não-conceitualismo não

nos compromete necessariamente com a admissão da tese da autonomia. Entretanto, as

condições impostas para que indivíduos venham a possuir “conteúdos cenário” acabam

por torná-los conteúdos conceituais. A condição para a posse desse conteúdo espacial

genuíno, ou seja, a identificação de lugares ao longo do tempo para construir uma

representação integrada do ambiente, requer que o indivíduo possua o conceito de “lugar”

ou conceitos congêneres como “ponto” ou “localização” (c.f. BERMÚDEZ, 2003, p.

301). Portanto, o indivíduo que tem uma experiência perceptiva com determinado

“conteúdo cenário” deve ser capaz de identificar um mesmo lugar em momentos

diferentes, e este raciocínio espacial necessita invariavelmente da aplicação do próprio

conceito “lugar”. No entanto, isto significa dizer que a posse do “conteúdo cenário” é

possível apenas mediante a posse de um conceito utilizado na especificação deste próprio

conteúdo. Uma percepção com conteúdo cenário pressupõe que o indivíduo possua o

conceito “lugar”, sem o qual não seria satisfeita a condição de identificação que

caracteriza este conteúdo. Por outro lado, esta exigência transforma o “conteúdo cenário”

em um tipo de conteúdo conceitual pois a sua existência requer a posse de ao menos um

conceito utilizado em sua especificação.

O modo pelo qual Peacocke busca estabelecer esta compatibilização o põe

diante de um dilema: ou bem o autor preserva sua motivação inicial e concebe o conteúdo

não-conceitual como fundamento dos conteúdos conceituais. Ou bem nega a tese da

autonomia ao conceber que os conteúdos não-conceituais apenas são explicados ao se

fazer referência ao repertório conceitual do sujeito, e, em última instância, abre mão da

própria ideia de não-conceitualismo.

Diante deste dilema e das dificuldades que sua posição impunha ao não-

conceitualismo, Peacocke reconhece o seu equívoco, ou seja, reconhece a tese da

autonomia e segue caminho próximo àquele apontado por Bermúdez (2003, p. 306). Para

nossos propósitos, o que importa é saber que Peacocke reconhece que a construção de

uma representação integrada do ambiente não requer a posse de um conceito de primeira

pessoa, nem de lugar ou de tempo. Esta capacidade de reconhecer lugares e mudanças nas

relações espaciais do ambiente exige somente uma forma primitiva de

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autorrepresentação, cujo conteúdo espacial representa a localização do sujeito

simplesmente como algo equivalente ao “aqui”13.

Intimamente relacionado com a tese da autonomia, o quarto argumento não-

conceitualista se refere às experiências perceptivas de crianças em fase pré-linguística e

de animais não-linguísticos. A possibilidade de pensarmos conteúdos não-conceituais

autônomos nos proporciona um projeto explicativo profícuo e de grande alcance para as

ciências cognitivas. A motivação subjacente a este argumento consiste basicamente no

reconhecimento de que crianças recém-nascidas e animais de diversas espécies possuem

sistemas sensoriais significativamente similares aos dos seres humanos adultos.

Evidentemente, estas crianças ainda estão em fase de desenvolvimento, e os animais

possuem diferenças quanto a algumas características de seus órgãos sensoriais assim

como aos graus de complexidade de seus sistemas nervosos. Porém a constatação da

interação dos indivíduos com o meio e a transmissão de características ao longo da linha

evolutiva no reino animal sugerem que eles devem instanciar ao menos algumas

experiências perceptivas com conteúdos representacionais análogos aos nossos. Contudo,

tais indivíduos não possuem conceitos ou, na melhor das hipóteses, possuem repertório

conceitual muito rudimentar. Partindo destas premissas, concluímos que ao menos

algumas experiências destes indivíduos possuem conteúdo perceptivo não-conceitual

similar aos nossos.

Este argumento alia um elemento filosófico, notadamente a tese da

autonomia, ao elemento empírico proporcionado por pesquisas em etologia cognitiva e

psicologia do desenvolvimento. Na tentativa de explicar os padrões comportamentais e

cognitivos de crianças pré-linguísticas, etologistas atribuem estados intencionais ainda

incipientes dotados de conteúdo representacional14. O comportamento exibido pelas

crianças demonstra que elas possuem a capacidade de acompanhar o movimento de

objetos que ocupam o centro de seu campo visual e de exibir certas expectativas de

13 Esta ideia é apresentada de forma inicial no postscript de 2003 e desenvolvida pormenorizadamente em

Peacocke, 2014.

14 DICKINSON, A. Intentionality in animal conditioning. In: WEISKRANTZ, L. (Ed) Thought without

language. Oxford: Claredon Press, 1988;

PREMACK, D. Minds with and without language. In: WEISKRANTZ, L. (Ed) Thought without

language. Oxford: Claredon Press, 1988.

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respostas em relação à persistência de objetos, de modo que estamos justificados em dizer

que experimentam superfícies pouco definidas de objetos a certa distância e orientação a

partir do ponto de origem retinocêntrico. Esta explicação intencional é uma resposta

plausível que reflete o modo como estes indivíduos estão cientes do ambiente a partir da

discriminação de objetos e também pode ser estendida às experiências perceptivas de

animais não-linguísticos. Por sua vez, esses indivíduos não parecem dispor de

capacidades conceituais que ensejem suas capacidades cognitivas. Assim, conclui-se que

as experiências perceptivas destes indivíduos representam o mundo não-conceitualmente.

Provavelmente, o fazem a partir de quadros referenciais mais simples ainda incapazes de

codificar diversos estímulos sensoriais em certos sistemas de coordenadas.

Seguindo o caminho aberto por esta perspectiva, filósofos e psicólogos veem

na associação entre não-conceitualismo e autonomia uma forma direta para esclarecer o

desenvolvimento das capacidades conceituais (c.f. BERMÚDEZ, 2003, p. 294). Em

linhas gerais, indivíduos como crianças recém-nascidas e alguns animais progridem

gradualmente do conteúdo não-conceitualmente estruturado das percepções incipientes

que instanciam para a construção de conceitos. Esta explicação do desenvolvimento

progressivo das capacidades consiste em uma maneira alternativa de fundamentar os

conteúdos conceituais nos conteúdos não-conceituais. A possibilidade desta abordagem

é particularmente importante para pesquisas com foco nos aspectos ontogenéticos e

filogenéticos envolvidos no desenvolvimento das capacidades conceituais.

Por fim, o quinto argumento em favor do não-conceitualismo diz respeito a

casos de ilusão de ótica. Certas experiências visuais ilusórias alegadamente representam

estados de coisas impossíveis ou contraditórios. Entretanto, todo conteúdo conceitual

deve ser inexoravelmente consistente, como é o caso com as atitudes proposicionais.

Assim como não podemos ter uma crença com conteúdo conceitual contraditório, se a

experiência perceptiva também for composta por conceitos, então necessariamente seu

conteúdo não pode ser contraditório. Um exemplo claro da situação descrita são as ilusões

que experimentamos ao ver os famosos desenhos de Maurits Escher. A perspectiva que o

artista utilizava para representar estruturas tridimensionais no plano bidimensional dava

origem a figuras impossíveis e padrões geométricos que nos aparecem visualmente como

paradoxais. Toda teoria acerca da natureza do conteúdo perceptivo deve dar conta da

possibilidade de ilusões e alucinações, mas não está claro como situações como esta

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podem ser acomodadas em uma abordagem conceitualista, por esta razão parecem refletir

contraexemplos genuínos.

Tim Crane (2003) defende o mesmo ponto de vista ao analisar as experiências

que denominou de ilusão da cachoeira, também conhecida como ilusão pós-efeito do

movimento. Após olhar fixamente durante algum tempo para a queda d’água e depois

olhar para um objeto fixo como uma pedra, parecerá ao sujeito que a pedra está se

movendo, porém parecerá ao mesmo tempo que a pedra não está se movendo em relação

ao seu plano de fundo. Ou seja, o sujeito experimentará um objeto que simultaneamente

parece e não parece exibir esta propriedade. Neste caso nosso sistema sensorial transmite

um mesmo conteúdo com duas informações incompatíveis. Trata-se de um problema

difícil de se contornar pelo conceitualismo porque não falamos aqui de duas experiências

E1 e E2 ocorrendo em tempos distintos T1 e T2 representando diferentes estados de

coisas, muito menos de uma crença e uma percepção com conteúdos incompatíveis, mas

de um único conteúdo perceptivo representando uma cena aparentemente contraditória.

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UNIDADE III: REPRESENTACIONISMO E CONSCIÊNCIA FENOMENAL.

Tendo em mente as reflexões apresentadas na segunda unidade, agora nos

voltamos novamente para as dificuldades explicitadas no primeiro capítulo. Nosso

objetivo neste ponto será aplicar o representacionismo moderado na tentativa de

solucionar os quatro problemas suscitados pela consciência fenomenal, a saber: o

argumento do conhecimento, a lacuna explicativa, o problema difícil da consciência e o

problema dos zumbis. A análise das experiências perceptivas a partir da teoria proposta

aponta para um projeto explicativo capaz de responder a estas dificuldades de maneira

consistente sem assumir compromissos com categorias ontológicas sui generis, como é o

caso dos qualia.

6. Aplicando a teoria aos problemas.

6.1. O que Mary descobriu?

Como apresentado na seção 1.1, o argumento do conhecimento é ilustrado

através do exemplo da excepcional cientista Mary. Confinada desde o nascimento em um

quarto onde todos os objetos eram pretos ou brancos, sem contato algum com qualquer

outra cor, Mary adquiriu exaustivo conhecimento a ponto de se tornar especialista nos

temas “cores” e “visão de cores”. Ela possui conhecimento completo sobre todos os fatos

físicos sobre cores e sobre a experiência visual das cores. Desde todos os padrões de

comprimentos de onda da luz refletida pelos objetos, até os processos que ocorrem em

nosso sistema visual, quando a luz é captada pela retina e segue todo o percurso até o

córtex visual. Não obstante, ao sair do quarto e ver pela primeira vez um tomate maduro,

Mary parece adquirir um conhecimento novo, algo que ela desconhecia a despeito do seu

exaustivo conhecimento físico. A cientista fez uma descoberta.

Uma vez que a personagem já conhecia todos os fatos físicos que ocorrem ao

ver objetos coloridos, Jackson sustenta que ela descobriu um fato não-físico.

Consequentemente, o fisicismo é falso. O argumento do conhecimento utilizado por

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Jackson para fundamentar sua posição antifisicista é resumido por Tye (2009, pp. 123,

124) da seguinte maneira:

(1) Em seu quarto, Mary conhece todos os fatos físicos relativos a cores e à

visão de cores.

(2) Após deixar seu quarto e ver um objeto vermelho, ela veio a conhecer

algo novo (algo que não podia conhecer em seu quarto)

Portanto,

(3) Após deixar seu quarto, ela veio a conhecer um fato não-físico

Portanto,

(4) Fisicismo é falso.

Ao passo em que conservo a ideia expressa pela premissa 2 de que ao se

deparar com o tomate maduro Mary fez uma descoberta genuína, que não estava ao seu

alcance com o conhecimento que dispunha até aquele momento, rejeito a conclusão

antifisicista a que chegou Jackson. Proponho uma resposta representacionista alternativa

que contesta a passagem das premissas 1 e 2 para as conclusões 3 e 4, adequando-se,

assim, a uma perspectiva fisicista mais ampla. A chave para compreender este ganho

cognitivo consiste no reconhecimento da distinção fundamental entre o tipo de conteúdo

representacional que Mary passa a instanciar a partir do momento em que vê o tomate

maduro e o tipo de conteúdo representacional que a cientista possuía enquanto presa no

quarto preto e branco. Em outras palavras, a chave para compreender seu ganho cognitivo

consiste na distinção entre conteúdos não-conceituais e conteúdos conceituais.

Embora Mary possuísse conhecimento exaustivo acerca de cores e da visão

de cores enquanto aprisionada, de sorte que certamente possuía todos os conceitos

envolvidos neste fenômeno, o fato é que seu sistema visual apenas fornecia informações

sobre as cores preta e branca dos objetos ao seu redor. Posto que seu contato era restrito

a objetos destas duas cores, seu sistema visual estava condicionado a captar e codificar

somente uma pequena fração deste tipo de estímulo visual o qual possui função de

informar. O conteúdo perceptivo de suas experiências visuais dos livros e da tela do

computador veiculavam e decodificavam representações naturais e não-conceituais

exclusivamente das propriedades de instanciar a cor preta e de instanciar a cor branca.

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Isto significa dizer que ao segmentar a cena a partir dos sistemas de coordenadas dos

quadros de referência projetados, Mary discriminava e selecionava apenas estas cores,

pois, como afirmei em diversas passagens, perceber é discriminar e selecionar

particulares no meio em que nos encontramos.

Neste cenário, Mary adquiriu conhecimento completo sobre todos os fatos

físicos sobre cores e visão de cores. Mary possuía representações conceituais sobre tudo

o que estava envolvido nestes casos, incluindo aí naturalmente representações conceituais

acerca do processo de ver cores que ela jamais experimentou. No entanto, ao se libertar e

ver o tomate pela primeira vez, seu sistema visual pôde captar um exemplar deste tipo de

propriedade e pôde realizar sua função biológica informacional a respeito de tais

estímulos. Ao sair do quarto, os sistemas de coordenadas dos quadros de referência

projetados pela experiência visual possibilitaram à Mary discriminar e selecionar pela

primeira vez estas propriedades em seu meio, mediante representações naturais e não-

conceituais acerca dos referidos particulares. Nossa cientista possuía vasto conhecimento,

mas não estava ao seu alcance discriminá-los não-conceitualmente, capacidade exercida

somente através da percepção. A situação descrita pelo argumento do conhecimento

parece girar em torno da distinção entre as excepcionais capacidades conceituais da

personagem e de seu déficit quanto às capacidades discriminatórias perceptivas.

Portanto, a descoberta se deu em virtude da aquisição de um novo tipo de

informação, uma representação não-conceitual, distinta, independente e não determinada

pela informação conceitual já possuída. O ganho cognitivo é explicado pela obtenção de

uma representação não-conceitual acerca das mesmas entidades e propriedades das quais

Mary já possuía todas as representações conceituais. Trata-se de uma forma primitiva de

representação que possibilita discriminar e selecionar particulares através do sistema

sensorial. Desta forma, a discrepância físico/fenomenal ressaltada neste problema não se

deve a propriedades irredutíveis como os qualia, mas ao tipo de conteúdo

representacional através do qual retratamos os particulares de nosso ambiente. Nesta

perspectiva a distinção epistêmica relatada nas premissas 1 e 2 não implica a distinção

ontológica das conclusões 3 e 4. Assim evitamos os pressupostos antifisicista defendidos

por Jackson a partir de uma resposta de forte apelo intuitivo desde que considerada a

pertinência da tese não-conceitualista.

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É importante ainda destacar que o conteúdo perceptivo da experiência visual

é uma forma de representação primitiva no sentido de ser explicativamente mais básica

do que as representações conceituais que a cientista aprendeu em seu quarto, isto se torna

ainda mais evidente neste caso por tratarmos de conceitos observacionais, como

“vermelho”. As informações transmitidas por estes conceitos observacionais se baseiam

diretamente nas informações transmitidas por aquelas representações não-conceituais. As

formulações conceituais sobre a visão de cores fornecidas a Mary pressupunham como

seu fundamento as representações não-conceituais das experiências perceptivas que

permitem discriminar e selecionar esses objetos e propriedades no mundo, conceitos

centrais do seu conhecimento sobre os fatos físicos são individuados a partir do conteúdo

perceptivo. Evidentemente a própria taxonomia refletida pelos conceitos do espectro de

cores tem como alicerce a discriminação perceptiva. Esta relação de prioridade (c.f.

argumento da prioridade, p. 81.) é mais um aspecto que reforça a ideia de que o que está

em jogo são dois tipos de conteúdos representacionais que tratam do mesmo domínio de

particulares, porém, o conteúdo não-conceitual veiculado pela experiência perceptiva é

mais elementar por se tratar de uma representação natural que executa uma função

filogeneticamente determinada.

6.2. Lacuna explicativa e problema difícil sob a perspectiva representacionista.

Vejo a lacuna explicativa e o problema difícil da consciência como objeções

ao ficisismo que exploram intuições muito próximas, sendo a segunda uma extensão da

primeira. Por esta razão abordarei ambas nesta seção.

Levine (1983, 1999) elabora essa primeira objeção ao constatar que o

conhecimento dos estados e processos neurofisiológicos ocorridos no sistema tálamo-

cortical por si só é insuficiente para nos fornecer uma explicação sobre a fenomenologia

das experiências perceptivas correlatas. Sabemos muito bem como é realizar

subjetivamente uma experiência visual de um objeto vermelho e também possuímos

conhecimento razoável sobre os processos que ocorrem objetivamente em nosso desde o

momento em que a luz é captada pela retina até a atividade eletroquímica realizada no

córtex visual. Contudo, estes processos neurofisiológicos não parecem suficientes para

esclarecer sua associação a esta experiência visual específica. Do mesmo modo sabemos

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como é sentir a dor de uma queimadura, assim como conhecemos os processos que

ocorrem quando tocamos em um objeto quente acionando as terminações nervosas desta

região do tecido que conduzem impulsos elétricos até as fibras nervosas. No entanto,

parece faltar uma explicação que conecte a descrição físico-funcional que toma lugar ao

tocarmos no objeto quente e a descrição desta experiência perceptiva específica da dor

provocada por uma queimadura. De sorte que parece pertinente perguntar: por que tais

processos físico-funcionais são acompanhados por estas experiências conscientes?

Portanto, a argumentação que sustenta esta objeção consiste em apontar para um déficit

epistêmico-explicativo entre as descrições neurofisiológicas e a fenomenologia das

experiências perceptivas. Consequentemente, esse déficit epistêmico-explicativo se

parece colocar em xeque todo fisicismo reducionista.

O problema difícil da consciência (Chalmers 1995, 1996) estende a pergunta

à consciência fenomenal como um todo. O conhecimento dos processos neurofisiológicos

é insuficiente não somente para esclarecer porque são associados a determinada

experiência consciente específica ao invés de alguma outra, mas também não esclarecem

porque há qualquer experiência consciente associada a tais processos. A pergunta que se

põe é: por que estes processos neurofisiológicos dão origem a experiências perceptivas

conscientes? Estas duas questões embasam a perspectiva antifisicista. O hiato explicativo

apontado por ambas seria resultado de uma distinção metafísica mais fundamental. As

descrições neurofisiológicas não explicam a emergência da consciência fenomenal, pois

esta consistiria em propriedades subjetivas de um tipo ontológico distinto e irredutível ao

substrato físico, a saber, os qualia.

A resposta a ser extraída da teoria defendida parte do princípio de que há um

nível de descrição de fundamental importância que deve ser considerado em conjunto

com as descrições neurofisiológicas a fim de explicarmos a consciência fenomenal.

Através da história evolutiva, certos órgãos e sistemas do organismo desenvolveram a

capacidade de, sob condições adequadas, dotar os indivíduos de informações sobre os

objetos e propriedades que estão em seu ambiente. Os modos que compõem o sistema

sensorial interagem com o ambiente projetando quadros de referência especializados em

captar certos tipos de estímulos dos particulares. O tipo de quadro de referência

empregado (centrado no sujeito, centrado no objeto ou centrado no ambiente) pode variar

de acordo com o modo sensorial em questão e com os diferentes estímulos aos quais é

suscetível. É este processo de projetar um quadro de referência, de orientar o indivíduo à

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apreensão de determinados estímulos provenientes de objetos e propriedades que

possibilita ao sistema sensorial codificar informações sobre um estado de coisas do

mundo e transmitir estas informações ao indivíduo.

Esta função informacional filogeneticamente adquirida pelo sistema sensorial

é efetuada pelo conteúdo representacional das experiências perceptivas às quais dá

origem. Os estímulos codificados resultantes da atuação dos modos sensoriais, por sua

vez, são decodificados em sistemas de coordenadas, que são os componentes essenciais

do conteúdo perceptivo. A forma mais eficaz de coligir e organizar dados tornando o

indivíduo ciente do mundo ao seu redor, pois o orienta a certa configuração de particulares

no ambiente. As informações transmitidas por este conteúdo possibilitam segmentar o

estado de coisas retratado, considerando o ponto de referência e os eixos do sistema de

coordenadas, de modo que perceber é, em última instância, discriminar e selecionar

propriedades e objetos externos e independentes que se encontram no ambiente. Assim,

a função informacional é levada a cabo pela representação natural que constitui o

conteúdo perceptivo.

A análise introspectiva deste tipo de experiências, porém, não nos revela a

existência intrínseca de propriedades como aquelas exemplificadas pelos qualia. É

exatamente esta análise que justifica a adoção da tese da transparência. Este exame

demonstrou que ao se realizar a introspecção de uma experiência perceptiva não entramos

em contato com qualquer entidade imaterial, não-representacional e pertencente a um

domínio otológico distinto. Ao contrário, toda introspecção nos revela apenas um

complexo de objetos e propriedades que ela própria representa de forma específica, ou

seja, seu conteúdo representacional. Seu caráter fenomenal é inteiramente esclarecido a

partir do seu conteúdo que, por sua vez, obedece à função biológica de tornar o indivíduo

interligado ao meio de forma mais eficiente. O que implica dizer que o conteúdo

perceptivo é determinado extrinsecamente com base na história evolutiva do sujeito e nas

relações causais que este mantém com o meio. Portanto, propomos uma alternativa à

perspectiva antifisicista explicando o caráter fenomenal das experiências perceptivas em

termos de suas propriedades intencionais.

O compromisso aparentemente inevitável com os qualia (apontado pelas

objeções supracitadas) é contornado pela teoria aqui defendida ao considerarmos mais

detalhadamente a intencionalidade das experiências perceptivas, isto é, ao analisarmos o

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conteúdo perceptivo em termos de sistemas de coordenadas que decodificam os estímulos

captados pelo sistema sensorial. O mecanismo que esclarece a associação dos processos

neurofisiológicos que ocorrem em nosso organismo a determinadas experiências

conscientes é o fato destas experiências realizarem uma função informacional. Os

sistemas de coordenadas veiculados pelo conteúdo perceptivo “traduzem” os dados

provenientes do sistema sensorial, configurando-se como uma forma mais eficiente de

prover informações sobre os particulares do mundo. Tais sistemas de coordenadas são o

elemento representacional do conteúdo perceptivo e concretizam esta função ao nos

sinalizarem determinados pontos que remetem a particulares externos e independentes.

Nos casos de percepção verídica, como argumentado no quarto capítulo, essas

coordenadas correspondem ao estado de coisas atual do mundo e o conteúdo perceptivo

passa a ser composto também por um elemento relacional.

Uma importante consequência desta teoria representacionista é o fato de que

o conhecimento sobre a constituição do sistema físico que implementa estas

representações não é suficiente para identificar o que é representado. Em outras palavras,

o conhecimento das atividades eletroquímicas é incapaz de elucidar qual experiência está

associada, ou mesmo se há alguma, pois este deve ser complementado pelo entendimento

da função informacional que está em jogo e de como esta função é executada. Isto, porém,

não pode ser constatado investigando apenas a atividade cerebral. Neste sentido me

aproximo do pensamento de Dretske (1995, p. 35) quando este autor estabelece a

distinção entre veículos representacionais e conteúdos representacionais. Embora sejam

necessariamente realizadas por um indivíduo, não encontramos experiências conscientes

ao abrir a sua cabeça. Os processos neurofisiológicos verificados em nossos sistemas

tálamo-corticais se caracterizam como veículos representacionais, ou seja, estados físicos

portadores de estímulos fornecidos pelo sistema sensorial que são decodificados em

informações no conteúdo representacional transmitido pela experiência perceptiva. Por

esta razão não podemos inferir o conhecimento das experiências perceptivas

simplesmente a partir do conhecimento dos processos neurofisiológicos. A distinção entre

veículo e conteúdo representacional equivale à distinção entre cérebro e consciência.

Sobre este ponto Dretske afirma:

Podemos ter histórias sobre cachorros azuis (histórias cachorro-azul) e

experiências cachorro-azul. Histórias sobre cachorros azuis – veículos

cachorro-azul – não são azuis e nem semelhantes a cachorros. Apenas olhe

para o livro. É tudo preto e branco. Da mesma forma, o que encontramos

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quando olhamos para o cérebro de uma pessoa experimentando cachorros azuis

não é azul e nem semelhante a um cachorro. Não encontramos o conteúdo da

experiência, as propriedades que fazem da experiência o tipo de experiência

que é. O que encontramos, ao contrário, são atividades eletroquímicas na

matéria cinzenta do cérebro. Encontramos os veículos da experiência (ver

Lycan 1990, p. 111; Tye 1991, p. 118, para o mesmo apontamento). O que

encontramos, em outras palavras, são o mesmo tipo de coisas que encontramos

quando olhamos para os livros: veículos representacionais que de modo algum se assemelham a o que estas representações representam. (DRETSKE, 1995,

p. 36)

Em suma, ao propor esta análise das experiências perceptivas em termos de

conteúdos representacionais, assume-se um nível de descrição crucial para as percepções

que se sobrepõe ao nível puramente neurofisiológico. Este nível de descrições diz respeito

às funções informacionais filogeneticamente determinadas. Apenas considerando este

aspecto podemos explicar as experiências perceptivas em toda sua profundidade e superar

a lacuna observada inicialmente. Porém, o hiato não implica a existência de entidades

não-físicas como os qualia. Processos neurofisiológicos são resultado da atuação de

determinada porção do sistema sensorial especializado em informar sobre certos tipos de

objetos e propriedades, por isso são acompanhadas pela experiência perceptiva específica

que representa tais particulares. O aspecto representacional não pode ser deduzido a priori

do conhecimento neurofisiológico, razão pela qual defendo que as atividades

eletroquímicas são veículos que transmitem aquelas informações codificadas sobre o

meio, posteriormente decodificadas sob a forma de quadros de referência que remetem

aos objetos. Passamos através destas ao mundo e assim nos tornamos cientes. Isto nos

aponta os componentes representacionais e relacionais do conteúdo perceptivo.

6.3. Zumbis filosóficos e o argumento da conceptibilidade.

Por fim, cabe analisar as dificuldades suscitadas pelo problema dos zumbis.

A ideia cartesiana a respeito de seres autômatos que, ao contrário dos humanos, poderiam

ter seus comportamentos explicados em termos puramente mecanicistas, foi reformulada

nas discussões contemporâneas. A versão mais forte desse argumento não se limita a

supor a existência de réplicas física e funcionalmente idênticas a nós que não possuiriam

aspectos qualitativos associados às experiências conscientes, pois fisicistas podem

defender a impossibilidade destas situações assegurando que estes aspectos são

nomologicamente necessariamente conectados. Sua versão mais forte recorre à noção de

mundo possível. Em linhas gerais, afirma-se que é plenamente concebível a existência de

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um mundo possível microfisicamente idêntico ao atual, o qual seria habitado não por

humanos, mas por réplicas físicas e funcionais de humanos, desprovidas, no entanto, de

experiências conscientes. Em outras palavras, estes indivíduos seriam o que David

Chalmers denomina de zumbis, não instanciariam qualia. A possibilidade de um mundo

zumbi mesmo quando replicadas todas as condições físicas do mundo atual é claramente

um contraexemplo ao quadro teórico reducionista físico-funcional.

Se tomarmos “P” como sendo a conjunção de todas as verdades microfísicas,

incluindo as leis fundamentais que regem esse domínio, e “Q” como uma sentença que

afirma que alguém é fenomenalmente consciente, então o argumento antifisicista baseado

na conceptibilidade de um mundo zumbi pode ser formulado com se segue:

(1) P˄(¬ Q) é concebível

(2) Se P˄(¬ Q) é concebível, então P˄(¬ Q) é metafisicamente possível

(3) Se P˄(¬ Q) é metafisicamente possível, então o fisicismo é falso

Portanto,

(4) O fisicismo é falso.

Como os outros três problemas analisados neste capítulo, o argumento dos

zumbis tem como ponto de partida uma premissa epistêmica que exprime o que se pode

legitimamente conceber tendo em vista a lacuna existente entre o conhecimento sobre o

substrato neurofisiológico e o conhecimento sobre experiências conscientes.

Diferentemente dos outros problemas, contudo, o argumento da conceptibilidade não

parte simplesmente da premissa epistêmica para a conclusão ontológica. Para tornar a

inferência mais robusta, assume-se, como passo intermediário essencial, a passagem de

uma afirmação epistêmica para uma afirmação modal na segunda premissa. A passagem

do concebível para o metafisicamente possível. Somente após obtermos a afirmação

modal estaríamos justificados a inferir, na terceira premissa, sua conexão com a afirmação

ontológica, o último passo para a conclusão antifisicista.

De acordo com Chalmers (2010, p. 143, 144), podemos compreender a noção

de conceptibilidade que está em jogo a partir de duas definições mais precisas. Dizemos

que uma situação S é idealmente positivamente concebível quando podemos imaginar

coerentemente esta situação como sendo o caso no mundo atual e não podemos rejeitá-la

a priori através de reflexão racional ideal. Isto é, quando podemos formular uma

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concepção clara e distinta (não-contraditória) em que a situação ocorre e que não se

mostra falsa a priori em um raciocínio ideal. Outra alternativa é definir uma situação S

como idealmente negativamente concebível quando se trata de uma hipótese que não pode

ser rejeitada por raciocínio ideal a priori, quando não podemos deduzir sua falsidade a

priori. Estas definições da noção de conceptibilidade são os dois lados da mesma moeda.

Segundo Chalmers (c.f. 2010, p. 144), enquanto a versão positiva exige a capacidade de

imaginarmos clara e distintamente que a situação S é o caso e não pode ser descartada a

priori, a versão negativa requer apenas que não possamos deduzir a priori a falsidade de

S. Em todo caso, o argumento da conceptibilidade é compatível com ambas as versões.

Para além do âmbito do representacionismo moderado, penso que a maneira

mais consistente de responder a esta objeção é refutar a suposta possibilidade metafisica

de P˄(¬ Q). Concordo, portanto, com os autores que defendem que o problema central do

argumento da conceptibilidade está na premissa (2), que afirma a passagem da

conceptibilidade para a possibilidade. Em que pese as controvérsias suscitadas pela noção

de “concebível” na premissa (1)15, é fundamental destacar que a principal crítica

enfrentada pelo argumento diz respeito à legitimidade em inferir a possibilidade

metafísica de uma situação a partir de sua suposta conceptibilidade.

As noções positiva e negativa de conceptibilidade ideal foram formuladas por

Chalmers com o propósito de evitar determinados contraexemplos que apontam para o

problema mencionado. Nos casos específicos que o autor tem em mente, quando não se

estabelece restrições bem definidas, o conceito de conceptibilidade reivindicado pode se

revelar estritamente vinculado às limitações cognitivas dos sujeitos, de modo que tanto

uma verdade matemática extremamente complexa como a sua negação podem parecer a

princípio plenamente concebíveis. O que acaba por tornar o conceito ainda mais vago e

de pouca utilidade para o argumento em questão. Nesse sentido, se assumirmos uma

concepção menos rigorosa deste, então podemos afirmar que tanto a conjectura de

Goldbach como a sua negação são concebíveis e, consequentemente, deveríamos concluir

que ambas são possíveis. No entanto, esta conclusão é uma evidente violação à lei lógica

da não-contradição, o que nos impele a afirmar sua impossibilidade. Temos aqui,

portanto, um exemplo que indica exatamente o oposto da pretensão declarada no

15 Kirk (2008), por exemplo, defende que a situação descrita pelo experimento de pensamento é

inconcebível e, portanto, questiona o ponto de partida deste argumento.

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argumento: uma situação à primeira vista concebível, mas, na verdade, logicamente

impossível.

Casos semelhantes por vezes são apresentados para demonstrar as

contradições a que estamos sujeitos ao inferirmos a possibilidade a partir da

conceptibilidade. Porém, estas falhas atingem apenas versões mais imprecisas de

“conceptibilidade”. Um raciocínio ideal jamais chegaria a uma conclusão que está em

desacordo com o princípio da não-contradição, um raciocínio ideal jamais concluiria que

uma situação “p˄¬p”, como descrita acima, é possível. Assim, é seguro afirmar que a

conjectura de Goldbach e sua negação não são idealmente (positiva e negativamente)

concebíveis. Tais contraexemplos incidem precisamente em algumas noções pouco

rigorosas do conceito, permanecendo intocadas as versões ideais. Como corolário,

defende Chalmers, há pelo menos uma forma de articularmos o argumento que justificaria

passarmos da conceptibilidade de uma situação para sua possibilidade metafísica, e isto

envolve a elaboração de uma compreensão mais rígida e restritiva daquele conceito. Em

razão disto o autor afirma (CHALMERS, 2010, p. 144) que a conceptibilidade ideal é o

melhor guia para a possibilidade metafísica.

Ainda assim, a passagem da premissa epistêmica para a premissa modal

enfrenta outras objeções, e nem mesmo a conceptibilidade ideal imunizaria o argumento.

Dentre estas destaco a objeção fundamentada na ideia de verdade necessária a posteriori.

Subjacente ao conceito de conceptibilidade aduzido aqui está, indiscutivelmente, a noção

de possibilidade lógica. A proposição expressa pela frase P˄(¬Q) é concebível no sentido

relevante porque não implica uma impossibilidade lógica, ou seja, nenhuma lei lógica

impede a sua formulação. Dito de outra forma, a conjunção composta de um lado por uma

frase verdadeira que envolve apenas conceitos físicos e, do outro lado, pela negação de

uma frase que envolve apenas conceitos fenomenais não é uma frase autocontraditória. O

que leva alguns autores a utilizarem a expressão “possibilidade conceitual” para descrever

o caso dos zumbis. Dada a possibilidade lógica, o antifisicista conclui que há um mundo

possível no qual P˄(¬Q) é verdadeira. Há um mundo possível no qual seres fisicamente

idênticos a nós não possuem consciência fenomenal, logo o fisicismo é falso. Entretanto,

cabe perguntar: a possibilidade lógica de uma situação nos assegura se tratar de uma

situação realmente possível? Isto é, a conceptibilidade fundamentada na possibilidade

lógica é, de fato, um guia seguro para a possibilidade metafísica?

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Vemos claramente que aqui o antifisicista pressupõe que a possibilidade

lógica é uma modalidade absoluta16. Isto significa dizer que se P˄(¬Q) é absolutamente

possível, então P˄(¬Q) é possível. Há um mundo possível em que a situação descrita é o

caso. Dessa forma, a possibilidade lógica seria equivalente à possibilidade metafísica.

Contudo, o problema desta linha de raciocínio surge quando somos forçados a admitir

que a situação descrita pela frase “A água não é H2O” também é idealmente concebível.

Consequentemente, “A água não é H2O” é uma possibilidade lógica, e assim deveria

haver um mundo possível no qual a água não fosse composta por moléculas de H2O.

Apesar disto, é amplamente reconhecido se tratar de uma impossibilidade metafísica. “A

água é H2O” é uma verdade necessária conhecível apenas a posteriori e, portanto,

metafisicamente necessária. Este exemplo nos mostra que os domínios da possibilidade

lógica e da possibilidade metafísica não são coextensivos, sendo este apenas um

subconjunto do primeiro17. Por conseguinte, a negação de verdades necessárias a

posteriori, como no caso da proposição expressa pela frase “A água não é H2O”, constitui

um forte contraexemplo ao argumento da conceptibilidade porque atinge sua conjectura-

chave: trata-se de situações plenamente concebíveis que, porém, são metafisicamente

impossíveis18. Um fisicista reducionista pode argumentar que, na melhor das hipóteses, a

possibilidade de um mundo zumbi evidencia apenas que a negação de uma necessidade

metafísica não é uma impossibilidade lógica.

O contraexemplo acima demonstra que há justificativas robustas para crer que

até mesmo a conceptibilidade ideal não é um guia seguro para a possibilidade metafísica

e, em decorrência disto, para rejeitar a conclusão antifisicista. De modo que, ao contrário

da maneira como esta discussão é posta comumente, o ônus da prova deve recair sobre os

ombros do antifisicista, não do fisicista. Aqueles que propõem o argumento da

conceptibilidade devem demonstrar o porquê de neste caso em especial a conceptibilidade

ser um guia confiável para a possibilidade metafísica a despeito das dificuldades

explanadas.

16 Sobre a discussão acerca das modalidades aléticas ver Murcho 2002.

17 Este exemplo também nos mostra que os domínios da necessidade lógica e da necessidade metafísica não

são coextensivos, sendo aquele apenas um subconjunto deste.

18 A rigor, no entanto, a situação descrita pela proposição “A água não é H2O” é apenas aparentemente

concebível.

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Chalmers (2010) apresenta sua análise semântica bidimensional como uma

alternativa para contornar essa objeção. Sua análise consiste em distinguir as intensões

primárias e secundárias das proposições expressas pelas frases P˄(¬Q) e “A água não é

H2O” o que, segundo ele, esclareceria as razões que levariam a admitir que a

conceptibilidade implica a possibilidade metafísica em alguns casos e em outros não.

Como todos os exemplos padrão de verdades necessárias a posteriori, as intensões de “A

água não é H2O” são divergentes. A intensão primária desta sentença é verificada quando

assumimos como circunstância de avaliação um mundo possível que exemplifica como o

mundo atual poderia ser estruturado, ou seja, quando consideramos que nosso próprio

mundo poderia ser constituído de forma diferente. Assim, “A água não é H2O” é

verdadeira (verificada) nesse mundo M1. De acordo com Chalmers, associada à intensão

primária está o que denominou de conceptibilidade primária19 (conceptibilidade I), noção

restrita à reflexão a priori, da qual derivamos a possibilidade primária (possibilidade I).

É esta noção que está em jogo quando se afirma que “A água não é H2O” é concebível.

Por outro lado, quando consideramos a circunstância de avaliação da intensão

secundária, concluímos que “A água não é H2O” não é satisfeita em um mundo

contrafactual. Em um mundo metafisicamente possível, se a substância que encontramos

nos rios e mares é composta por XYZ, esta não é uma situação em que se descobriu que

a água não é H2O, mas uma situação em que se descobriu uma substância

qualitativamente idêntica ao que chamamos de “água” no mundo atual, muito embora

sejam substâncias diferentes haja vista que uma é composta por XYZ e a outra por H2O.

Logo, essa proposição é falsa (não satisfeita) no mundo M2. O autor afirma que

associadas à intensão secundária estão as noções de conceptibilidade e possibilidade

secundárias (conceptibilidade II e possibilidade II, respectivamente). É em virtude destas

noções que se diz que embora possa parecer a princípio concebível que a água não seja

H2O, está é, na verdade, uma situação impossível. Deste modo, apenas a conceptibilidade

secundária implica diretamente a possibilidade metafísica, e assim a negação da verdade

necessária a posteriori é metafisicamente impossível. Nas palavras de Chalmers:

Podemos dizer que quando a intensão primária de S é verdadeira em algum

mundo centrado (i.e., quando algum mundo centrado verifica S), S é

primariamente possível, ou possível 1. Quando a intensão secundária de S é

verdadeira em algum mundo (i.e., quando algum mundo satisfaz S), S é

19 Conceptibilidade ideal negativa e conceptibilidade ideal positiva podem ser entendidas como tipos de

conceptibilidade primária.

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secundariamente possível, ou possível 2. Então, “água não é H2O” não é

possível 2, mas é possível 1.

A observação de que frases como “água não é H2O” são concebíveis, mas não

possíveis nesses termos, trata-se da alegação de que essas frases são

primariamente concebíveis (concebível 1), mas não são secundariamente

possíveis (possível 2). (CHALMERS, 2010, p. 147)

Tendo isto em mente, um fisicista pode se opor ao argumento da

conceptibilidade defendendo que, muito embora um mundo zumbi seja primariamente

concebível e, consequentemente, primariamente possível, no fim das contas este mundo

não é secundariamente possível. Como corolário, não estamos autorizados a inferir a

falsidade do fisicismo. Entretanto, Chalmers responde que ao tratarmos da consciência

fenomenal, a lacuna entre possibilidade I e possibilidade II é superada, pois as intensões

primária e secundária da frase P˄(¬Q) coincidem. Isto decorre da coincidência das

intensões de P e Q. Para fins de exposição da argumentação podemos conceder ao

antifisicista a ideia controversa de que as intensões de P coincidem20. Por sua vez, é

bastante plausível sustentar essa mesma ideia quanto à Q, pois não parece muito

problemático aceitar que aquilo que satisfaz a intensão primária de “consciência” seja

realmente a consciência. Como diz o autor: “[...] não parece haver a mesma forte

dissociação entre aparência e realidade no caso da consciência como no caso da água [...]”

(CHALMERS, 2010, p. 149). Portanto, se as intensões primárias e secundárias de P˄(¬Q)

de fato coincidem, o antifisicista pode refinar o argumento da conceptibilidade para obter

a conclusão desejada, e assim a situação descrita exemplificaria um caso em que a

conceptibilidade implicaria a possibilidade metafísica. Após estas reformulações o

argumento toma a seguinte estrutura:

(1) P˄(¬Q) é concebível.

(2) Se P˄(¬Q) é concebível, então P˄(¬Q) é possível I.

(3) Se P˄(¬Q) é possível I, então P˄(¬Q) é possível II.

(4) Se P˄(¬Q) é possível II, então o fisicismo é falso

Portanto,

(5) O fisicismo é falso.

20 O próprio Chalmers (2010, p.p. 149, 150) vê inúmeras dificuldades suscitadas por essa ideia, sendo assim

levado a admitir a perspectiva denominada de “monismo russelliano”.

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A análise proposta por Chalmers como forma de contornar as dificuldades

mencionadas e preservar sua conclusão antifisicista foi recentemente alvo de críticas por

parte de Wilson Mendonça. Assim como ocorreu com sua primeira versão, novamente a

premissa-chave desta reformulação do argumento parece problemática. Isto é, a premissa

(3) que afirma a passagem da possibilidade I para a possibilidade II é questionada. Em

sua palestra intitulada “Scrutinizing the conceivability argument against physicalism”,

apresentada na Universidade Federal de São João del Rey, Mendonça afirma que a

premissa (3) pressupõe o que denominou de “princípio ponte” (bridging principle). Um

princípio que viabilizaria a conceptibilidade como um guia para a possibilidade real

objetiva, que conectaria o domínio dos cenários possíveis e o domínio dos mundos

metafisicamente possíveis. Em linhas gerais, esse princípio aponta para um mundo onde

se constata a verificação e a satisfação de P˄(¬Q), o que significa dizer que o mundo

zumbi não seria meramente concebível, mas metafisicamente possível. Essa circunstância

se dá quando a proposição em questão é verificada ao ser implicada por uma especificação

canônica desse mundo, ou seja, uma especificação formulada em termos neutros que não

mudam de extensão quando empregados no mundo atual e em qualquer mundo possível.

Caso em que suas intensões coincidem. O princípio ponte estabelece que se temos um

mundo cuja descrição canônica implica P˄(¬Q), então este mundo corresponde ao cenário

concebido.

Entretanto, Mendonça aponta a existência de uma circularidade em seus

fundamentos. Inicialmente a versão refinada do argumento nos leva a conjecturar um

mundo metafisicamente possível correspondente ao cenário concebido para

caracterizarmos a convergência das intensões primaria e secundária de P˄(¬Q), por meio

do qual concluímos sua verificação e sua satisfação. Porém, este mundo é retratado a

partir de especificações canônicas, especificações estas constituídas por termos neutros

que, por seu turno, são definidos com base na convergência de suas intensões primária e

secundária. Em outras palavras, estabelecemos um caso em que as intensões coincidem

para chegarmos aos termos neutros e assim obtermos especificações canônicas que

permitem alcançar um caso em que as intensões primária e secundária coincidem. Isto

posto, evidencia-se a circularidade que transpõe a reformulação proposta.

Chalmers busca elucidar a conexão entre cenários e mundos, vale dizer a

conexão entre possibilidade I e possibilidade II, simplesmente admitindo que há um

mundo possível que corresponde à situação concebida cuja especificação canônica

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implica P˄(¬Q). Não obstante, a finalidade do princípio ponte é exatamente demonstrar

a existência deste mundo, de modo que o estabelecimento deste princípio não pode partir

deste pressuposto. Mendonça conclui, portanto, que não há boas razões que justifiquem

a viabilidade deste princípio. Em decorrência disto, voltamos ao mesmo empecilho

identificado anteriormente: não há justificação segura que permita obter um mundo

metafisicamente possível fundado na conceptibilidade de um mundo zumbi. Segundo este

autor, ao invés de demonstrar sua existência, o argumento da conceptibilidade parte do

pressuposto de que há tal mundo possível, muito embora possa caracterizá-lo apenas

como o mundo no qual P˄(¬Q) é verificada e satisfeita. Uma vez que não logra êxito

nesta demonstração, o argumento da conceptibilidade é inconclusivo. Ele não é suficiente

para provar a falsidade do fisicismo.

Em suma, nesta seção defendemos dois pontos centrais. Em primeiro lugar,

apontamos que a objeção analisada enfrenta sérios contraexemplos à sua tese central. Sua

principal dificuldade consiste no fato de que as verdades necessárias a posteriori tornam

explícito que mesmo a conceptibilidade ideal não implica a possibilidade metafísica. Já o

segundo ponto discutido explicita que a maneira pela qual Chalmers busca contornar estas

dificuldades está fundamentada em uma circularidade. O que nos levou a concluir que,

na melhor das hipóteses, o argumento da conceptibilidade é inconclusivo. Não estamos

justificados a inferir a falsidade do fisicismo a partir dele.

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CONCLUSÃO.

A tese desenvolvida ao longo destas páginas teve um caráter

fundamentalmente propositivo. Seu objetivo principal consistiu em avançar uma teoria

original acerca da consciência fenomenal das experiências perceptivas. Penso que o

objetivo foi atingido na medida em que foi demonstrado que a concepção de conteúdo

perceptivo, delineada pelo representacionismo moderado, é capaz de explicar

completamente o caráter fenomenal destas experiências evitando o compromisso

ontológico com propriedades sui generis como os qualia. Nosso exame incidiu sobre uma

classe de estados mentais desafiadora e que desperta problemas inequívocos para a

filosofia da mente: trata-se da consciência fenomenal. Portanto, a reflexão sobre este

aspecto da consciência não pode se furtar a uma investigação minuciosa da percepção, o

que pode embasar a compreensão do referido aspecto em outras classes de estados.

Assim, partimos de uma reflexão sobre aquilo que é considerado ser seu lócus

primário para defender uma perspectiva que se contrapõe à alegada oposição essencial

entre consciência fenomenal e consciência de acesso e que atribui àquela uma condição

inescrutável e irredutível. O representacionismo moderado explica a natureza das

experiências perceptivas unicamente fazendo referência a seus aspectos intencionais, a

consciência fenomenal é integralmente elucidada em termos do conteúdo

representacional destas experiências. Configura-se como um projeto alternativo às duas

principais tendências do quadro teórico representacionista (o representacionismo forte

que adota postura reducionista, e o representacionismo fraco que é não-reducionista) que

apresenta uma ampla capacidade explicativa, solucionando quatro problemas capitais

desta área de estudos sem a admissão de categorias ontológicas extravagantes. Esta teoria

foi defendida através da exposição e análise crítica daquelas que me parecem ser suas

teses fundamentais, dando especial ênfase nas implicações por elas suscitadas.

A primeira destas é a tese da transparência das experiências perceptivas,

formulada aqui no contexto da exposição da função informacional desempenhada por tais

estados. Durante o processo evolutivo nossos sistemas sensoriais adquiriram a função de

captar estímulos do ambiente de modo a tornar os indivíduos cientes dos particulares que

lhe circundam. Esta função informacional filogeneticamente determinada é concretizada

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pelas experiências perceptivas produzidas por esses sistemas, mais especificamente pelos

seus conteúdos representacionais. Em condições adequadas os sistemas sensoriais captam

estímulos aos quais são especializados e codificam estes inputs em padrões de atividade

eletroquímica que são transmitidas ao cérebro, onde certas porções decodificam as

informações em conteúdos representacionais. As percepções representam o complexo de

objetos e propriedades que se encontram no meio, em virtude disto defendi que perceber

é efetivamente discriminar e selecionar particulares no ambiente. É apenas este conteúdo

informativo que se revela ao exame introspectivo da percepção. Não temos contato com

nenhuma propriedade não-representacional intrínseca às experiências. Passamos através

deste “material transparente” do qual são constituídas as experiências para os particulares

por elas representados.

As considerações sobre a função informacional e sobre a tese da transparência

conduziram a ponderações acerca da natureza deste conteúdo, vale dizer, da forma na

qual esta informação é estruturada. Sustentei que a ideia de que as experiências

perceptivas realizam com sucesso sua função biológica informacional quando aspectos

representacionais e relacionais convergem para a formulação do seu conteúdo. Os

sistemas sensoriais atuam na captação de estímulos projetando quadros de referência, que

podem ser distinguidos em pelo menos três tipos: quadros centrados no sujeito, centrados

no objeto ou centrados no ambiente. Após esta codificação, as informações provenientes

são veiculadas e decodificadas no conteúdo perceptivo sob a forma de sistemas de

coordenadas, o que permite segmentar a cena em qualquer orientação a partir de seu ponto

de origem e eixos. Isto viabiliza discriminar e selecionar os objetos e propriedades com

os quais entramos em contato quando, de fato, entramos em contato. São estes sistemas

de coordenadas individuados pelos quadros de referência que constituem o elemento

representacional do conteúdo perceptivo.

Nesse sentido, podemos dizer que percebemos o mundo através de um “mapa

cognitivo”. A cognição espacial é uma das formas mais rudimentares de interação do

indivíduo com o meio, produto da ação de estruturas filogeneticamente primitivas do

córtex, como o hipocampo, responsáveis por traduzir e armazenar as informações da

estimulação sensorial. Quando realizamos uma percepção verídica, o sistema de

coordenadas representado corresponde ao estado de coisas do mundo, isto é, o indivíduo

entra em contato com particulares tokens representados na percepção. Este estado de

coisas é o elemento relacional que, ao lado do elemento representacional, seu sistema de

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coordenadas, constituem o conteúdo perceptivo daquelas experiências que realizam

adequadamente sua função informacional precípua. O conteúdo das alucinações, por

outro lado, é constituído apenas pelo elemento representacional, não há no mundo

particulares que correspondem às informações que tal experiência transmite. Deste modo,

o conteúdo das percepções verídicas e o conteúdo das alucinações possuem um ponto em

comum, ambos compartilham do componente representacional. Posto que a análise

apresentada entende haver um elemento comum aos conteúdos destes estados, devemos

denomina-la de uma análise conjuntivista do conteúdo perceptivo. É precisamente este

elemento representacional o responsável pela fenomenologia das alucinações, tornando-

as introspectivamente indistinguíveis de percepções verídicas sobre os mesmos objetos,

pois são constituídas pelo mesmo quadro de referência.

Outro alicerce de suma importância para o entendimento da natureza do

conteúdo perceptivo no representacionismo moderado é a tese não-conceitualista. O

contraste entre as capacidades discriminatórias, verificadas na percepção, e nossas

capacidades conceituais evidencia que o conteúdo da experiência é independente e não

delimitado por nosso arcabouço conceitual, de modo que o indivíduo consciente é capaz

de representar os particulares que percebe no mundo mesmo que não disponha dos

conceitos necessários para a especificação canônica de suas condições de satisfação. Na

verdade, os nossos recursos conceituais ficam muito aquém se comparados com tamanha

especificidade e riqueza de detalhes com a qual discriminamos os objetos e propriedades

através da percepção. Isto nos leva a afirmar que o conteúdo representacional destas

experiências é não-conceitual. Ademais, a argumentação sustentada no quinto capítulo

justifica inferir que o repertório de conceitos observacionais que dispomos é uma função

das capacidades discriminatórias da percepção, portanto, há uma relação de prioridade

destas representações não-conceituais em relação àquelas representações conceituais.

Por fim, encerro estas considerações finais com breves apontamentos que

esclarecem por que a perspectiva representacionista exposta se opõe à concepção de

Searle acerca das experiências de dores. Como havia mencionado na introdução e no

capítulo dois, em diversas obras (SEARLE 2002, 2006, 2010a, 2010b) o referido autor

defende a ideia de que existem alguns estados conscientes que não são intencionais,

explicitando assim sua discordância com Brentano. Diante dos propósitos do presente

texto, é importante contestá-lo pontualmente por classificar as dores como exemplos

destes estados consciente não intencionais. Cito Searle:

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Mas o “de” de “consciente de” nem sempre é o “de” de intencionalidade. Se

estou consciente de uma batida na porta, meu estado consciente é intencional,

porque faz referência a algo além disto mesmo, a batida na porta. Se estou

consciente de uma dor, a dor não é intencional, porque não representa nada

além dela mesma. (SEARLE, 2006, p. 125)

Esta é nitidamente uma objeção à teoria aqui defendida, pois exemplificaria

um caso proeminente de experiências perceptivas que não possuem conteúdo

representacional. No entanto, o representacionismo moderado responde sem maiores

dificuldades a esta objeção. De acordo com esta linha de raciocínio, a dor é uma

experiência cujo conteúdo perceptivo representa certo dano que afeta o organismo em

alguma localização naquele instante, representa uma mudança ocorrida em estados físicos

internos ou externos. Trata-se de uma experiência cujo elemento representacional de seu

conteúdo consiste em um quadro de referência centrado no sujeito por meio do qual

podemos discriminar e selecionar a localização de estímulos nocivos em nosso

organismo. Portanto, a dor é uma experiência perceptiva consciente e intencional que se

direciona a uma parte específica do corpo onde ocorre algum distúrbio.

Os casos de síndrome do membro fantasma são compatíveis com este

entendimento. Um modo oportuno de compreendê-los é toma-los como alucinações nas

quais, pela tese aqui proposta, o elemento representacional do conteúdo perceptivo não é

acompanhado pelo elemento relacional. Assim, devido ao mal funcionamento do sistema

sensorial na captação dos estímulos, os sistemas de coordenadas de seu quadro de

referência informam sobre uma lesão em um membro amputado. Não há correspondência

entre o que nossa experiência representa e o estado corporal, o que evidencia que a

experiência de dor possui um conteúdo representacional que estabelece condições de

satisfação sobre o mundo. Esta argumentação nos aproxima do pensamento de Brentano,

ao menos no que se refere às experiências perceptivas que foram o foco deste texto. Nesse

sentido, a tese de Brentano permanece admissível no caso das percepções, a

intencionalidade é a propriedade que demarca este domínio do mental. Em suma, expus

ao longo deste trabalho que consciência fenomenal e intencionalidade são indissociáveis.

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