Quanto Mais Cedo Melhor

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    BIANCA R. V. GARCIA

    Quanto mais cedo melhor (?):

    uma anlise discursiva do ensino de ingls para crianas

    (exemplar revisado)

    So Paulo 2011

  • BIANCA R. V. GARCIA

    Quanto mais cedo melhor (?):

    uma anlise discursiva do ensino de ingls para crianas

    (exemplar revisado)

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls do Departamento de Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras. rea de Concentrao: Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls Orientadora: Profa. Dra. Deusa Maria de Souza Pinheiro-Passos

    So Paulo 2011

  • AUTORIZO A DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL

    DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO

    TRADICIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE

    ESTUDO OU PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

  • Folha de Aprovao

    Bianca R. V. Garcia

    Dissertao apresentada ao programa

    de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos

    e Literrios em Ingls do Departamento de

    Letras Modernas, da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade

    de So Paulo, para a obteno do ttulo de

    Mestre em Letras

    Aprovada em:

    Banca Examinadora

    Profa Dra _____________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura: _______________________

    Profa Dra ______________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura: _______________________

    Profa Dra ______________________________________________________

    Instituio: ___________________ Assinatura: _______________________

  • Ao C, meu amor e companheiro de aventuras, com

    muita gratido por seu apoio, carinho e incansvel

    f no meu trabalho.

  • Resumo

    GARCIA, B. R. V. Quanto mais cedo melhor (?): uma anlise discursiva do ensino de ingls para crianas. 2011. 216 p. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2011.

    Atualmente, notvel a expanso do oferecimento de aulas de ingls para

    crianas pequenas no Brasil. As modalidades disponveis no mercado so variadas

    e os pais que se interessam por elas podem optar por cursos especficos de lngua

    estrangeira, escolas internacionais, bilngues, ou at mesmo escolas regulares que

    ofeream aulas de ingls includas em suas grades curriculares. De qualquer

    maneira, todas elas so acessveis quase que exclusivamente por meio do ensino

    privado. Ancorados nos pressupostos da Anlise do Discurso desenvolvidos na

    Frana (Pcheux, 1975), e no Brasil (Orlandi, 2001; Coracini, 1998),analisamos as

    representaes de criana, lngua estrangeira e ensino de lngua estrangeira

    presentes nos dizeres da legislao brasileira, da mdia (reportagens e sites

    institucionais) e de coordenadoras da rea, buscando compreender de que forma as

    justificativas da incluso desse componente curricular se materializam e com quais

    sentidos se relacionam. Esta anlise nos permitiu depreender certas regularidades

    nos sentidos: em primeiro lugar, as representaes de criana veiculam duas

    perspectivas dominantes: a de um ser passivo, que aprende rpido por no realizar

    processos mentais complexos e uma outra relacionada ideia de um trabalhador em

    potencial. Em segundo lugar, quanto s representaes de ensino de LE, h dizeres

    que referem o processo de aprendizagem como absoro, ou, ento, modelagem de

    comportamentos. As representaes de LE, por sua vez, remetem majoritariamente

    a um sentido de garantia de sucesso da vida profissional. Finalmente, pudemos

  • concluir que a prtica do ensino de ingls para crianas emerge de uma cadeia

    discursiva cujos sentidos esto maciamente alinhados com os dizeres do mercado

    neoliberal. A anlise das justificativas pedaggicas do ensino de ingls para crianas

    tornou-se, uma anlise das projees da criana no mercado de trabalho e da

    naturalizao da lgica capitalista para a formao e preparao das crianas de

    elite. Assim, parece que o mais cedo do aprendizado lingustico coincide com o

    mais cedo da aceitao das prticas do mercado na educao e tambm da

    euforizao da produtividade, excluindo, at da mais precoce infncia, o acesso ao

    cio ou a no-obrigatoriedade da produo.

    Palavras-chave: ensino de lngua estrangeira, educao infantil, Anlise do

    Discurso, escolas bilngues, mercantilizao da educao.

  • Abstract

    GARCIA, B. R. V. The earlier, the better (?) a discoursive analysis of

    English teaching to children.2011. 216 p. Dissertation (MastersDegree) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2011.

    Currently there is a remarkable expansion of English courses for young

    children in Brazil. There are several modalities available and among them parents

    may choose from foreign language courses, international and bilingual schools up to

    schools where English classes are provided in their curricula. Nevertheless, they are

    all available almost exclusively through private education. Relying on Discourse

    Analysis assumptions (Pcheux, 1975; Orlandi, 2001; Coracine, 1998), we have

    analyzed the representations of children, foreign language and foreign language

    teaching in the utterances of Brazilian legislation, in the media (reports and

    institutional sites) as well as in pedagogical coordinators talk, aiming at

    understanding how the justifications for the inclusion of this curricular component

    materialize in the discourse, and what senses they relate to. The analysis enabled us

    to identify certain sense regularities. Firstly, representations of children point to two

    dominant meanings: one which refers to the belief that they learn fast because they

    do not perform complex mental processes, and another related to the fact that they

    are potential workers. Regarding the representations of English teaching, the sayings

    refer to the learning process as absorption or behavior modeling. The second one

    concerns representations of English that refer mostly to its sense as a guarantee of

    success in professional life. Finally, we concluded that the practice of teaching

    English to children emerges from a discursive chain whose senses are

    overwhelmingly aligned with the utterances of the neoliberal market. Our analysis of

  • the justifications for teaching English to school children has revealed itself the

    analysis of projections of the child into the labor market and the naturalization of

    capitalist logic in the education and the upbringing of elite children. Thus, it seems

    that the "early" language learning coincides with the "early" acceptance of market

    practices in education, as well as the valorization of productivity, preventing, from the

    earliest childhood, access to idleness or the right to non-compulsory production

    engagements.

    Keywords: foreign language teaching, early education, Discourse Analysis,

    bilingual schools, market practices in education.

  • Agradecendo...

    CAPES, pelo financiamento de minha pesquisa.

    minha orientadora Deusa, por sua infindvel pacincia e apoio durante

    todos os momentos deste percurso. Obrigada por acreditar em minhas inquietaes,

    e me instigar constantemente com perguntas que me levariam mais alm. Obrigada

    pelo bom humor e pelas deliciosas horas de debate e descoberta que tivemos ao

    longo dessa pesquisa. Obrigada por me deixar mais atenta aos exageros e s

    panfletagens excessivas, e por nunca me deixar perder de vista as questes

    relativas ao sentido.

    A todos os docentes que me inspiraram e desestabilizaram durante minha

    (iniciante) carreira acadmica. Obrigada Anna Maria Carmagnani e Maria Jos

    Coracinni por sua cuidadosa leitura e valiosas contribuies quando de meu exame

    de qualificao. A Marisa Grigoletto por me ajudar a organizar minhas ideias iniciais

    no formato que hoje assumiram.

    Ao Departamento de Letras Modernas, representado por seu corpo tcnico-

    administrativo: Edite, Romilda e Cleide, obrigada por sempre serem eficientes na

    resoluo das questes burocrticas e por colaborar com sua dedicao e bom

    humor para o andamento dos aspectos institucionais deste trabalho.

    A Carlos, meu companheiro de longa jornada, por sua inabalvel f em meu

    potencial. Obrigada por me dar a mo em todos os momentos de dvida, cansao e

    impacincia que vivemos durante o tempo desta pesquisa. Obrigada por sua

    generosidade ao sempre compartilhar comigo sugestes de bibliografia que

    pudessem enderear minhas inquietaes, e obrigada por sempre me lembrar de

    manter o foco na finalizao deste trabalho.

  • Ao Z, meu incansvel e irremedivel amigo.

    s colegas de Grupo de Estudo, que sempre me estimularam com suas

    prprias pesquisas e com a agradvel convivncia. Em especial s amigas Ingrid Del

    Greco, Daniela Reyes e Renata Matsumoto, pelo companheirismo e pelos ombros

    amigos nas horas de saltar e de chorar.

    A minha famlia por sempre me fazer acreditar em meu potencial. Agradeo

    especialmente minha tia Rosani, que mostrou a todos ns que a busca da

    realizao acadmica era possvel, e que pode ser feita de maneira brilhante.

    Agradeo a minha me por realizar todos os esforos que estavam a seu alcance

    para que eu pudesse finalizar meus estudos. A meu irmo, Pablo, por existir e me

    inspirar a lutar sem me deixar abater. E aos meus tios Rosngela e Reinor, por

    sempre terem um punhado de pulgas para me colocar atrs das orelhas.

    A todos os amigos que debateram comigo, me fizeram perguntas e me

    ajudaram a desdobrar minhas questes e minhas respostas: Leonardo, Renata,

    Rosi, Isabelle, Rogrio, Ren, Nicole, Joo e Kelly. Obrigada por nunca perderem o

    interesse em meu trabalho.

    Especialmente, agradeo ao Kiko, que no perdeu uma oportunidade de

    contribuir em minha vida, tanto sendo um coordenador inspirador, quanto um

    arguidor instigante ou um amigo fiel.

    J, que me abriu as portas para essa aventura que o Ensino de Ingls

    para crianas na Educao Infantil, e a todos os colegas das escolas onde trabalhei,

    que me receberam de braos abertos (e cheios de pacincia), me ensinando sobre

    esse lugar que a escola. Obrigada por me deixarem curiosa e intrigada!

  • Finalmente, mas no menos importante, a todos os meus alunos e alunas,

    fonte primordial de inspirao para este trabalho. Obrigada por me apresentarem

    fantstica aventura que dar aula para vocs!

  • SUMRIO

    INTRODUO: ENSINANDO INGLS PARA CRIANAS ........................... 14

    Modalidades do Ensino de Ingls para Crianas .................................... 16

    Recorte Epistemolgico .......................................................................... 19

    Justificativa ............................................................................................. 24

    Objetivos e Perguntas de Pesquisa ........................................................ 25

    Constituio do Corpus .......................................................................... 27

    Normas para a Transcrio das Entrevistas ........................................... 31

    Lista de Abreviaturas .............................................................................. 32

    CAPTULO 1: SILENCIANDO OS SENTIDOS DO INGLS COMO LE: UM

    PERCURSO HISTRICO ATRAVS DAS LEIS ........................................... 33

    CAPTULO 2: LEGITIMANDO OS SENTIDOS DO ENSINO DE INGLS

    PARA CRIANAS: OS DIZERES DA MDIA ................................................. 65

    2.1 A criana como aprendiz mais favorecido por suas caractersticas

    psiconeurolgicas ................................................................................... 69

    2.2 A criana como aprendiz para a insero no mercado de trabalho 83

    2.3 Absorvendo e trabalhando... .......................................................... 96

  • CAPTULO 3: A PRODUTIVIDADE DO ENSINO DE INGLS PARA

    CRIANAS E A VONTADE DE LEI: OS DIZERES DAS COORDENADORAS

    ........................................................................................................................ 99

    3.1 A escola particular como lugar sem lei ........................................... 101

    3.2 Lngua Estrangeira como Produtividade ....................................... 113

    3.3 Disforizaes do Ensino de Lngua Estrangeira ........................... 120

    3.4 As vantagens da criana-aprendiz .............................................. 125

    Consideraes Finais: quanto mais cedo, melhor? ................................ 130

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................ 142

    ANEXO A REPORTAGENS E WEBSITES ............................................... 152

    ANEXO B - ENTREVISTAS ......................................................................... 166

  • 14

    INTRODUO

    Ensinando Ingls para Crianas

    Nos ltimos anos, pudemos assistir expanso e consolidao do lugar de

    mercado dos cursos de ensino de lnguas estrangeiras. Tal movimento pode ser

    creditado, em parte, ao imaginrio existente com relao eficcia da educao

    oficial. A constituio do currculo ensinado, a preparao de docentes e a estrutura

    das escolas pblicas so frequentemente desvalorizadas pelos dizeres das

    instituies privadas, da mdia e dos agentes desse contexto (professores e alunos),

    como pontua, dentre outros estudos, o de Silva (2007). No caso do ensino de lngua

    estrangeira, o descrdito com relao eficcia do aparelho oficial de ensino se

    estende tambm maioria das escolas particulares, tendo como consequncia a

    repetio de um pr-construdo1 que afirma lugar de LE no na escola regular,

    um aspecto explorado no trabalho de Uechi (2006) e Sousa (2006). Da o frtil

    terreno para a expanso do mercado livre do ensino de LE, no qual muitos

    professores (como eu) tm suas primeiras experincias prticas antes de

    completarem as respectivas formaes acadmicas2.

    Ao longo de dez anos de (sobre)vivncia nesse mercado, mantive contato

    com uma tendncia que vem se intensificando com o decorrer do tempo: o ensino de

    ingls para crianas. Por conta da natureza de nossas caractersticas (a maioria dos

    professores ainda estava em formao, e nenhum tinha experincia na rea de

    1Podemos compreender os pr-construdos como enunciados provenientes de discursos anteriores,

    que emergem nos discursos como ideias consolidadas (PCHEUX, 1975). 2 E muitos ali se mantm, mesmo depois de terminada sua formao universitria.

  • 15

    pedagogia, nos diversos institutos em que trabalhei durante esse perodo), as turmas

    de crianas eram sempre evitadas (quando no temidas) por ns. Aliava-se a isso a

    grande dificuldade que as coordenaes tinham para lidar com as questes de

    aprendizado, convivncia e disciplina que as referidas turmas introduziam naquele

    ambiente, uma vez que a maioria habitual de nosso pblico-alvo era de

    adolescentes e adultos. Em escolas de idiomas, por sua vez, as crianas eram, sem

    dvida, estranhas no ninho. Para nossa maior inquietao, o movimento no apenas

    aumentava em grandeza (cada vez mais nossas manhs e tardes eram preenchidas

    com turmas cheias de alegres aluninhos e aluninhas), como tambm a idade dos

    alunos, inversamente, diminua cada vez mais, at ao ponto - confesso - de

    desespero, em que tivemos de elaborar um curso para crianas que no sabiam

    ainda ler ou escrever.

    Depois de alguns anos aprimorando minhas habilidades instintivas de ensino

    de ingls para crianas (doravante EIC), e temendo um pouco menos as aulas com

    os pequenos, recebi um desafio que acabou irremediavelmente me aliciando para a

    turma deles: fui convidada para ministrar aulas de LE em uma escola particular de

    educao infantil. Apesar de relutante, decidi abraar a oportunidade, e acabei

    entrando em contato com as inquietaes que me motivaram a dar incio a esta

    pesquisa. Por estar em um ambiente com maior grau de formalidade, decidi que era

    hora de aprofundar as leituras tericas especficas e aprender mais com o que

    estava sendo feito em EIC. Minha primeira grande surpresa foi a (ento) inexistncia

    de materiais para professores nessa rea. A literatura nacional tratava apenas de

    aspectos especficos de educao infantil, mas, como no fazia parte do escopo

    nacional nesse segmento, no havia meno ao ensino de LE. Os trabalhos

    acadmicos que encontrei no se ajustavam ao meu contexto, pois, em sua quase

  • 16

    totalidade, debatiam aspectos do EIC a partir do ensino fundamental I (faixa etria

    com caractersticas e necessidades bastante diferentes da educao infantil), e as

    expectativas de pais, colegas, coordenao e direo da instituio em questo no

    pareciam apontar para os mesmos lugares. O contato com os agentes desse cenrio

    revelou dvidas existentes a respeito do papel da LE na escola, da relao que as

    crianas desenvolveriam com essa nova lngua e de que maneira esta afetaria as

    relaes j existentes com a lngua materna, das possibilidades de aprendizado, da

    escolha apropriada de contedos e abordagens, enfim, percebi que, mesmo em um

    panorama bastante especfico e restrito, havia pouqussimas certezas e saberes

    estabelecidos. Foi ento que decidi investigar, partindo de uma perspectiva dos

    estudos discursivos, os sentidos veiculados sobre o EIC, e observar de que maneira

    os aspectos constitutivos dessa prtica (em nosso recorte, a criana, a lngua

    estrangeira e o ensino/aprendizagem de lngua estrangeira) so representados nos

    discursos veiculados em diversas instncias sociais.

    Modalidades do Ensino de Ingls para Crianas

    Apesar do crescente interesse das classes mdias e altas pelo EIC e o

    consequente aumento de seu oferecimento, em nosso pas, essa prtica no

    sujeita a nenhuma regulamentao3, da a inexistncia de qualquer dado oficial

    nesse mbito. Alm da falta de informaes por parte do Estado, outros fatores

    complicam a pesquisa, como a natureza do registro das escolas bilngues junto s

    3 Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, o oferecimento de aulas de lngua

    estrangeira moderna obrigatrio, a partir da primeira srie do ensino fundamental II, o sexto ano do ensino fundamental.

  • 17

    secretarias municipal e estadual de educao4 e de no ser possvel utilizarmos o

    nome delas como critrio de seleo5. Apesar das dificuldades, por meio de

    participao em eventos e de cursos na rea, alm de leitura dos trabalhos

    desenvolvidos a respeito do assunto, pude ampliar meus conhecimentos sobre esse

    mercado.

    Nossas observaes empricas do EIC nos levaram identificao das

    seguintes modalidades de oferecimento:

    a) Cursos livres de idiomas: a modalidade mais flexvel de EIC. O nmero de

    horas-aula pode variar de 2 at 5 horas/semana. O currculo geralmente

    desenhado em consonncia com o mtodo/abordagem do instituto em

    questo e independe das expectativas de aprendizagem e dos temas

    trabalhados na escola regular. Nesses cursos, a lngua de instruo

    geralmente o ingls.

    b) Escolas bilngues6: nesta modalidade encontramos as escolas que se

    autodenominam bilngues. Englobam os colgios que seguem os

    Parmetros Curriculares Nacionais (doravante PCNs) e oferecem um

    nmero grande de aulas de LE. A carga horria de ingls varia bastante,

    podendo se estender entre 25% at 100%7 do tempo total. Nessas

    4 Em virtude da inexistncia de uma categoria especial de registro para as escolas particulares

    bilngues nos rgos oficiais, estas so registradas como escolas de educao infantil (na secretaria municipal de educao) e/ou escolas de ensino fundamental (na secretaria estadual de educao), em outras palavras, elas so registradas como escolas comuns. 5 Muitas escolas bilngues no incluem a designao bilngue no nome da escola. Assim sendo, na

    listagem do Censo Escolar de 2009 (acessado em www.educacao.gov.br), uma busca por escolas bilngues resultou em apenas seis instituies. Segundo a pesquisa emprica de Selma Moura (2009), temos hoje cerca de quarenta e seis escolas dessa modalidade. 6 Estas so tambm chamadas de escolas bilngues de prestgio (MOURA, 2009, p.57).

    7 Observamos que prtica comum nas escolas bilngues de educao infantil adotar um currculo totalmente baseado na LE, o chamado currculo de imerso. (cf. entrevista de C3).

  • 18

    escolas, h graus variveis de dominncia entre os idiomas, podendo a

    instruo majoritria ser em lngua portuguesa ou em lngua inglesa.

    c) Aulas de ingls no currculo regular: muitas escolas monolngues optam

    tambm por incluir aulas de ingls no currculo antes do exigido por lei.

    Observamos, neste mbito, que h tambm grande variabilidade do

    nmero de horas-aula oferecidas, de 1 a 5 horas-aula por semana8.

    Nessas escolas, o oferecimento de LE no altera sua adeso aos PCNs,

    podendo o contedo da rea estar vinculado ou no s expectativas de

    aprendizagens e prticas curriculares da escola. Em nosso contato com

    professores, pudemos concluir que o currculo de LE geralmente isolado

    do currculo geral das escolas, tratando de temas selecionados pelos

    professores da rea ou presentes nos materiais didticos.

    d) Escolas internacionais9: este o segmento mais elitizado de oferecimento

    de EIC, sendo acessvel apenas s famlias mais abastadas, por conta de

    seu alto custo10. Nessas escolas, o currculo seguido o do pas de

    origem, podendo ou no haver conformidade com os PCNs. Essas escolas

    oferecem certificao internacional e so reconhecidas por rgos como a

    International Schools Association ou o European Council of

    InternationalSchools. A instruo ocorre predominantemente no idioma do

    pas de origem e a lngua portuguesa tratada como estrangeira.

    8 Segundo nossas observaes, quando a carga horria excede cinco horas semanais, as escolas

    passam a se denominar bilngues, mesmo utilizando o portugus de maneira majoritria para a instruo. 9 Por conta do foco destas escolas em parmetros internacionais e do pblico extremamente restrito

    atendido por elas, no trabalharemos com dizeres referentes a escolas internacionais em nossa pesquisa. 10

    Alm das altas mensalidades (as mais baratas custam aproximadamente R$ 2,000.00), as escolas internacionais cobram uma taxa de matrcula (endowement fee) que varia de R$ 4.500,00 a R$ 30.000,00, dependendo da escola(SCHLZ, 2006).

  • 19

    Apesar da heterogeneidade observada na carga horria de LE oferecida e no

    currculo trabalhado, todas as modalidades de EIC mantm uma caracterstica

    comum: esto presentes apenas no mbito privado de ensino, o que confere a elas

    uma grande dependncia do mercado para sua sustentao. Essas instituies no

    apenas desenvolvem prticas pedaggicas, mas tambm as justificam e so

    responsveis por sua venda.

    com esse espao discursivo multifacetado em vista que nossa pesquisa

    investigar as representaes de criana, lngua estrangeira e ensino/aprendizagem

    de lngua estrangeira.

    Recorte Epistemolgico

    O recorte epistemolgico e metodolgico norteador das reflexes e anlises

    desta pesquisa a Anlise de Discurso (doravante AD), campo do conhecimento

    que procura problematizar a lngua e seu acontecimento, apoiando-se no apenas

    no aparato terico proporcionado pela lingustica clssica, mas tambm em outras

    reas, tais como a psicologia, as cincias sociais, a histria e a filosofia. Tal

    abordagem objetiva anlise e interpretao da lngua em seus constituintes

    formais e estruturais, assim como em sua realizao contextual, ou seja, em sua

    realidade scio-histrica. A preocupao com a produo da lngua como um

    acontecimento que tem motivaes e significados scio-histricos o que diferencia

    a AD de outros estudos lingusticos.

  • 20

    A AD prope uma articulao entre o estruturalismo, o marxismo e a

    psicanlise, trabalhando por entre a tensa interseco das reas, como afirma

    Gregolin (2004, p. 193):

    Por meio dessa articulao, h uma relao tensa que se estabelece entre uma teoria de lngua (Saussure), uma teoria de histria (Marx), uma teoria do sujeito (Freud) que vai concretizar-se a partir de releituras feitas por Althusser, Lacan, Pcheux, Foucault.

    Essa articulao opera por meio da adoo da linguagem como objeto de

    estudo, mas sob uma perspectiva que inclui em sua concepo as condies de

    produo11. A crtica materialista proporciona a essa investigao lingustica a

    ateno aos aspectos circundantes da realidade: econmicos, polticos e sociais,

    tidos aqui no como complementos da cena enunciativa, mas como elementos

    constitutivos da linguagem e do discurso. Segundo Pcheux, todo processo

    discursivo se inscreve em uma relao ideolgica de classes (1975, p. 92),

    carregando, por consequncia, marcas da tenso a presente. Neste contexto, a

    ideologia, que age no sentido de naturalizar as contradies, de exercer fora no

    movimento dos sentidos, afeta tanto a interao entre as classes quando entre os

    sujeitos e o discurso. Para Althusser (1969 [2003], p. 94)12, a transparncia da

    linguagem tambm um efeito da ideologia:

    Como todas as evidncias, inclusive as que fazem com que uma palavra designe uma coisa ou possua um significado (portanto inclusive as evidncias da transparncia da linguagem), a evidncia de que voc e eu somos sujeitos e at a no h problema um efeito ideolgico, o efeito ideolgico elementar.

    11 Para Pcheux (1975), essa noo engloba no apenas o contexto scio-histrico da produo do

    discurso, como tambm as posies-sujeito construdas por meio desse. 12

    Nota sobre as referncias: em obras cuja data de publicao for diferente da data da edio consultada, adotaremos o seguinte padro (data da publicao [data da edio consultada])

  • 21

    A ideologia naturaliza o j-l da linguagem e do sujeito e afeta o discurso

    produzindo dois esquecimentos que operam em sua produo (PCHEUX, 1975). O

    esquecimento nmero um relativo no-possibilidade da exterioridade do sujeito

    com relao sua formao discursiva dominante, ou seja, a iluso de ser origem

    dos sentidos que produz. Essa iluso constitutiva de nosso assujeitamento pelas

    formaes discursivas e ideolgicas, isto , no conseguimos observar de fora os

    sentidos que edificamos no momento de sua produo, e nem identificar as

    formaes ideolgicas que mobilizamos a fim de constru-los, sendo afetados,

    assim, pela iluso de autoria.

    O segundo esquecimento da ordem da enunciao, e consiste na iluso da

    univocidade da formulao, ou seja, ao dizermos algo, desconsideramos as outras

    vrias possibilidades de construo que veiculariam um sentido similar. Segundo

    Pcheux: todo sujeito-falante selecionar no interior da formao discursiva que o

    domina (...) um enunciado, e no outro. (1975, p. 173), e, ao faz-lo, oculta os

    outros enunciados possveis. Em outras palavras, os dois esquecimentos operam no

    sujeito fazendo-o crer que a origem do que diz, e que seu dizer tem apenas o

    sentido que ele busca expressar.

    Segundo Coracini (2007), o sujeito para a AD, como concebido por Lacan,

    comea a existir ao se inscrever na linguagem. Alm disso, a concepo de si

    tambm articulada por meio da identificao do sujeito com representaes

    produzidas socialmente. Ao identificar-se, traz para dentro o que est fora,

    construindo sua autoimagem por meio do que lhe dito sobre si prprio. Segundo

    Woodward (2000, p.17), as representaes nos fornecem possibilidades de

    existncia, lugares, a partir dos quais podemos nos posicionar e a partir dos quais

    podemos falar.

  • 22

    Em nosso contexto imediato, o Brasil, podemos observar a crescente

    penetrao do que Harvey (1989 [2007]) chama de capitalismo de acumulao

    flexvel, que se caracteriza essencialmente pela ruptura com o fordismo, apoiando-

    se na flexibilizao dos processos, dos mercados e dos padres de consumo. Por

    flexibilidade, compreendemos a possibilidade de deslocamento e movimentao

    tanto do capital quanto dos processos de produo que foram possibilitados pelas

    mudanas tecnolgicas ocorridas principalmente na segunda metade do sculo XX.

    Tal sistema econmico tambm gerou reflexos na maneira de compreenso das

    prticas sociais, pois evidenciou-se a caracterstica efmera e transitria das

    relaes, o que fez com que a fragilidade e a condio eternamente provisria das

    identidades no possa mais ser escondida" (BAUMAN, 2005, p. 22). Acreditamos

    que, na sociedade brasileira atual, a penetrao do sistema econmico seja mais

    visvel do que a liquidez das relaes e das identidades.

    Nesse contexto, a unidade do sujeito cartesiano comea a ser deslocada e

    substituda pela multiplicidade e heterogeneidade do sujeito ps-moderno, que se

    divide em vrios eus. Consideramos que as identidades se constituem no e pelo

    discurso, podendo sobrepor-se e coexistir, no sendo fragmentadas entre si ou

    existindo de maneira independente.

    Tal heterogeneidade relacionada s identidades do sujeito ps-moderno pode

    ser demonstrada no dizer de uma das coordenadoras de escola bilngue que

    entrevistamos13. Ao ser perguntada a respeito das vantagens ou desvantagens do

    ensino bilngue, ela se desdobra em trs posies-sujeito e enuncia:

    13 Trataremos mais detalhadamente dessas entrevistas ao descrevermos o corpus, pgina 27.

  • 23

    eu sou perigosa para responder essa questo... porque eu tenho trs

    vises... eu tenho a minha viso como me... tenho minha viso

    como coordenadora e tenho minha viso como pesquisadora

    A ps-modernidade nos permite o desdobramento em um sujeito mltiplo, o

    que at ento no nos era possvel, mas, por outro lado, a fluidez das identidades

    pode mascarar a rigidez das leis que controlam e regem o que pode ou no ser dito

    a partir de um determinado lugar (FOUCAULT, 1970 [2003]). Ao mesmo tempo em

    que o sujeito pode desdobrar suas identidades, ainda sofre a presso dos

    mecanismos de controle que cerceiam a normalidade dos dizeres e selecionam

    quais sentidos so passveis de produo por esta ou aquela posio discursiva. Em

    outras palavras, a multiplicidade de identidades no muda o fato de a posio-me

    poder produzir determinados sentidos que so vetados s posies de

    coordenadora e pesquisadora.

    Neste jogo de esquecimento e memria que a produo dos discursos,

    podemos compreender tanto o sujeito quanto o sentido como efeitos voltados para

    as possibilidades de realizao e (re)produo. Ambos deslizam de acordo com as

    posies ideolgicas sustentadas tanto nos dizeres quanto pelos dizeres, e,

    portanto, o sentido no est colado s palavras e o sujeito no est colado ao ente

    biolgico. O primeiro construdo por meio das relaes de poder entre os

    elementos da enunciao, e o segundo, a posio-sujeito, se constitui na relao

    com o outro e com a linguagem. Quando abordamos sentido e sujeito, tratamos de

    lugares e regies possveis no espectro do dizvel, no os considerando fora das

    relaes discursivas:

    (...) sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, na articulao da lngua com a histria, que entram no imaginrio e na ideologia.

  • 24

    Se, na Psicanlise temos a afirmao que o inconsciente estruturado como linguagem, na AD considera-se que o discurso materializa a ideologia, constituindo-se no lugar terico em que se pode observar a relao da lngua com a ideologia. (ORLANDI, 2005, p.99)

    Na articulao entre a linguagem e suas condies de produo, buscaremos

    analisar as posies-sujeito e os sentidos sobre o EIC, problematizando, dessa

    maneira, a relao da ideologia da flexibilizao e globalizao com as

    representaes de criana, lngua estrangeira e ensino de lngua estrangeira que

    circulam em diversas instncias discursivas. Em uma delas, com poucos sentidos

    cristalizados, procuraremos investigar de que maneira determinados sentidos so

    privilegiados em detrimento de outros.

    Justificativa

    Nos dias atuais notvel a expanso do oferecimento de aulas de lngua

    estrangeira para crianas. H vrias modalidades para os pais interessados, que

    podem optar por cursos especficos de lngua estrangeira em institutos de idiomas,

    escolas bilngues de educao infantil, ensino fundamental, escolas regulares que

    oferecem aulas de ingls dentro de suas grades curriculares e, por fim, escolas

    internacionais. No Brasil, o nmero de escolas bilngues aumentou de 145 para 187

    entre 2007 e 2009, um crescimento de quase 30% em um perodo de dois anos14.

    Nesse contexto de expanso, os trabalhos acadmicos atualmente

    produzidos com relao ao EIC esto, em sua grande maioria, concentrados na

    lingustica aplicada ao ensino de lnguas e tratam de assuntos especficos da prtica

    docente, como o desenvolvimento de parmetros para o ensino de ingls (ROCHA,

    14 Fonte: AGNCIA ESTADO, 2010.

  • 25

    2006), a formao de docentes em escolas bilngues (WOLFFOWITZ-SANCHEZ,

    2009), e, tambm, a utilizao da LE como ferramenta mediadora de educao

    (CORTEZ, 2007). H, ainda, estudos na rea da psicologia que relacionam o

    bilinguismo ao desenvolvimento infantil (FLORY, 2009) e os da educao, que

    buscam definies e investigam as prticas pedaggicas de escolas bilngues

    (MOURA, 2009; ROSA, 2009;). Outros tambm problematizam a questo das

    escolas de elite (CANTURIA, 2005; ALMEIDA, 1999). Esto ausentes estudos

    discursivos a respeito desta rea, envolta em condies de produo que se

    caracterizam pela instabilidade dos sentidos produzidos nas diversas instncias,

    como j mencionamos anteriormente.

    Acreditamos que a problematizao desses sentidos pode ser de interesse

    aos profissionais que atuam na rea de ensino de lngua estrangeira e de educao,

    por contribuir para sua prtica ao fornecer um recorte interpretativo e crtico desse

    cenrio.

    O percurso que realizamos tambm diz respeito a todos aqueles que buscam

    compreender, de maneira mais complexa, o movimento atual de valorizao do

    ensino precoce de lngua estrangeira e das prticas que o circundam, auxiliando na

    reflexo de pais, professores e agentes envolvidos nesse processo de modo geral.

    Objetivos e Perguntas de Pesquisa

    No desenvolvimento de nossa pesquisa, apoiamo-nos nas teorias sobre a

    globalizao, suas caractersticas econmicas e sociais (cf. HARVEY, 1989;

    BAUMAN, 1989) e nas noes de sujeito, linguagem, ideologia e condies de

    produo, a fim de compreendermos os dizeres a respeito do ensino de ingls para

  • 26

    crianas e, assim, propormos reflexes em torno de seus possveis efeitos de

    sentido. Pressupondo que o EIC uma modalidade acessvel apenas por meio do

    ensino privado e, portanto, do consumo, levantamos a hiptese de que os sentidos

    associados a ele se alinham mais com caractersticas do mercado globalizado do

    que com os benefcios pedaggicos.

    Norteiam nosso trabalho as seguintes perguntas de pesquisa:

    a) Quais as representaes de criana e aprendizado de lngua estrangeira que

    podem ser depreendidas da legislao, dos textos de mdia e dos dizeres das

    coordenadoras?

    b) De que forma as escolas justificam a necessidade do ensino de lngua inglesa

    a crianas pequenas por meio de seu discurso institucional?

    Ao refletir sobre tal cenrio, temos como objetivos gerais:

    Contribuir com as investigaes acerca da educao brasileira mediante a

    discusso dos aspectos relacionados ao aprendizado de LE e de seu papel

    na formao dos aprendizes brasileiros, assim como sua participao na

    relao com nossa prpria lngua e cultura;

    Problematizar a necessidade/os efeitos do aprendizado de ingls como LE

    nos ciclos iniciais da educao, contribuindo, assim, para o debate acadmico

    a esse respeito.

    Como objetivos especficos pretendemos:

  • 27

    Investigar as representaes de criana, lngua estrangeira e ensino de lngua

    estrangeira advindos da legislao educacional brasileira, de materiais

    miditicos, de materiais institucionais e do discurso de coordenadoras

    pedaggicas de escolas regulares e bilngues;

    Identificar, neste espao especfico, traos discursivos a respeito da

    aprendizagem de ingls que venham a contribuir para uma reflexo crtica

    sobre seu ensino para crianas;

    Problematizar as semelhanas e diferenas encontradas entre os dizeres

    analisados, relacionando-os com o cenrio da globalizao e da ps-

    modernidade.

    Constituio do Corpus

    A fim de podermos observar o movimento dos sentidos do EIC em diferentes

    instncias discursivas, fizemos uso de textos que remetem a vrios nveis de

    estabilizao de sentidos. Quando nos referimos a sentidos estveis, consideramos

    formaes discursivas que, por meio dos mecanismos de controle e excluso

    (FOUCAULT, 1970 [2003]), produzem sentidos aparentemente mais uniformes,

    mais controlados, como o caso da legislao, por exemplo. Podemos considerar

    que, nessas regies supostamente estveis, o efeito ideolgico faz parecer que os

    conflitos e tenses entre as diferentes potencialidades de sentido e as lutas de poder

    envolvidas na materializao discursiva de cada uma delas so silenciadas pelo

    peso da autoria de um enunciador (DUCROT, 1984 [1987]) que goza de um status

    hegemnico, concentrando, dessa forma, um poder maior. As formaes discursivas

    menos estabilizadas se encontram margem, podendo produzir sentidos de maneira

  • 28

    menos controlada (o que no garante que eles escapem da lgica estabelecida

    pelas instncias mais centrais).

    No captulo 1, demos incio anlise observando decretos e leis produzidos

    desde a Repblica Velha at os dias atuais, selecionados por sua relao com o

    tema LE. Por meio da anlise dessas leis e decretos, buscamos traar um panorama

    analtico do ensino de lnguas no Brasil ao investigar de que maneira as condies

    de produo ecoam nos textos.

    A seguir, no captulo 2, selecionamos cinco reportagens produzidas entre

    2001 e 2007 em diversas publicaes: duas reportagens advindas de uma revista de

    grande penetrao nacional, duas de um jornal dirio que circula no estado de So

    Paulo e, a ltima, de uma revista mensal especializada em crianas e

    adolescentes15. Decidimos investigar os dizeres da mdia por considerarmos que

    constituem uma instncia discursiva atuante no processo de criao de

    necessidades de consumo (CORACINI, 2006, p. 137) que relaciona-se diretamente

    com o EIC em nosso pas, por se tratar de um tipo de ensino apenas acessvel por

    meio das escolas particulares, e, portanto, que apresenta relao direta com a lgica

    do mercado.

    Posteriormente investigamos os dizeres das escolas fornecedoras de EIC

    veiculados em seus sites. Realizamos um levantamento em sites de

    aproximadamente 34 instituies, a fim de poder identificar os elementos comuns,

    nos quais a instituio produzia sua descrio, sua designao e,

    consequentemente, atribua sentidos s categorias que estamos analisando. Aps a

    identificao de aproximadamente 30 elementos distintos que figuravam na

    construo dos sites, optamos por selecionar as sees em que a escola falava

    15 Coletamos as reprodues integrais das reportagens dos websites dos jornais e da revista.

  • 29

    sobre si. Decidimos selecionar os sites que figuravam nas reportagens16, com o

    objetivo de analisar os sentidos presentes em seus dizeres.

    Finalmente, no captulo 3, analisamos as entrevistas realizadas com

    coordenadoras pedaggicas de escolas particulares regulares e bilngues. A seguir,

    descrevo resumidamente o perfil das coordenadoras entrevistadas:

    Formao Tipo de escola onde trabalha

    Localizao e Perfil Socioeconmico (aproximado) da clientela17

    C1 Superior completo em Pedagogia e Especializao em Gesto Escolar

    Escola particular regular, com incluso de aulas de ingls a partir da educao infantil

    Zona Oeste de So Paulo, regio de grande concentrao de classes A2, B1 e B218

    C2 Mestrado em Educao Escola bilngue de educao infantil e ensino fundamental I

    Zona Oeste de So Paulo, regio de grande concentrao de classes A2, B1 e B2

    16 Apesar de nossa lista inicial incluir oito sites, dois deles foram construdos de modo a no permitir a

    cpia e gravao de seus textos, o que impossibilitou a coleta dos enunciados, reduzindo nosso nmero de sites. 17

    Distribuio da populao com base no estudo de PAIVA (2010). 18

    Esta classificao segue o chamado Critrio Brasil, critrio criado pela Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), com a finalidade de estimar o poder de compra da populao em termos de classes sociais. Segundo a ABEP, as faixas de renda familiar de acordo com a renda seguem a seguinte tabela:

    (fonte: abep.org.br, acesso em 10/03/2010)

  • 30

    C3 Superior completo em

    Pedagogia

    Escola confessionria de educao infantil a ensino mdio que est passando por processo de bilingualizao por meio da implantao de um sistema de ensino produzido por empresa especializada.

    Zona Leste de So Paulo, com maior concentrao de classe C, D e E.

    Todas as coordenadoras foram entrevistadas nas escolas onde trabalhavam

    mediante agendamento de entrevistas. Com exceo de C1, elas no conheciam a

    entrevistadora e no tiveram contato com seu trabalho. As entrevistas foram

    gravadas em udio e transcritas posteriormente. As perguntas selecionadas foram:

    1) Como organizado o currculo do fundamental I/da educao infantil aqui na

    escola?

    2) De que maneira esse currculo se articula com a legislao da secretaria

    estadual/municipal de ensino?

    3) H algum tipo de presso por parte dos rgos de fiscalizao quanto

    organizao e distribuio das aulas?

    4) De que forma as competncias lingusticas das crianas so

    estimuladas/observadas/avaliadas nas aulas de lngua inglesa?

    5) Qual , em sua opinio, a vantagem de iniciar o aprendizado na educao

    infantil ou no ensino fundamental?

    6) Em sua opinio, porque os pais procuram uma escola bilngue para os filhos?

    7) De que maneira voc acredita que as crianas que estudam em escolas

    bilngues no contexto brasileiro estabelecem relaes com sua cultura e com

    a cultura do outro?

    As entrevistas foram semiguiadas com as perguntas-base adaptadas s

    respostas das entrevistadas, assim como ao contexto imediato da enunciao.

  • 31

    Nosso objetivo com essa estratgia foi evitar influenciar as respostas das

    coordenadoras.

    Normas para a Transcrio das Entrevistas

    Para a transcrio das entrevistas realizadas, nos baseamos no trabalho de

    Dino Pretti (2000), cujas normas reproduzimos a seguir, com exemplos retirados de

    nosso trabalho:

    OCORRNCIA SINAL EXEMPLO

    Incompreenso de

    palavras ou segmentos

    ( ) geralmente quem tem

    mais domnio da lngua

    fala porque ( ) falar

    primeiro e o outro copia

    Entoao enftica Maiscula TUdo dado em

    ingls...

    Truncamento / obrigatrias/vamo

    pensar no fund 1

    Prolongamento de

    vogal e consoante

    (como s, r)

    :: podendo aumentar

    para :::

    mas na verdade o

    mi::nimo e bem menor

    do que...

    Interrogao ? e tem alguma

    fiscalizao... a

    supervisora vai... ?

  • 32

    Qualquer pausa ... deliberaes... ::: da diretoria de ensino... ento

    Comentrios

    descritivos do

    transcritor

    (( )) ((risos))

    Citaes literais ou

    leituras de textos,

    durante a gravao

    texto de repente voc leva um

    projeto e fala isso aqui

    pode ela tambm pode

    te orientar nisso

    Lista de Abreviaturas

    AD Anlise do Discurso

    C1,2,3 Coordenadora1, 2, 3

    EIC Ensino de Ingls para Crianas

    LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    LE Lngua Estrangeira

    PCNs Parmetros Curriculares Nacionais

    R1,2 Reportagem

    S1,2 Site

  • 33

    CAPTULO 1

    Silenciando os Sentidos do Ingls como LE: um percurso

    histrico atravs das leis

    A fim de compreendermos o aumento na oferta de ingls para crianas nos

    dias atuais e investigarmos as representaes que cercam essa prtica,

    buscaremos, neste captulo, traar um panorama do ensino de lngua estrangeira no

    pas do ponto de vista legal e estabelecer um paralelo entre a legislao que regula

    a educao infantil, o primeiro ciclo do ensino fundamental e o oferecimento de LE.

    Nosso objetivo investigar as condies de produo (PCHEUX, 1975 [1988]) dos

    discursos oficiais sobre a educao no Brasil. A tessitura de uma anlise histrica

    possibilitar uma compreenso mais ampla sobre a produo de sentidos a respeito

    da prtica que focal: o ensino de ingls para crianas de zero a dez anos, em

    escolas particulares na cidade de So Paulo.

    Cabe ressaltar que o oferecimento de ingls para crianas nessa faixa etria,

    embora tenha sofrido um substancial aumento nos ltimos anos, no

    regulamentado em mbito federal, estadual ou municipal (no caso de So Paulo),

    exceto apenas a partir do terceiro ciclo do ensino fundamental (que se inicia no

    sexto ano). Tal sombra legal, ou seja, a inexistncia de reconhecimento desse tipo

    de prtica por parte do Estado, tambm se aplica s escolas bilngues e

    internacionais, cujos registros junto s diretorias de ensino no apresentam

    diferenciao aparente em classificao legal. Esses estabelecimentos so

    considerados escolas regulares tanto de educao infantil (as quais no precisam

    seguir qualquer orientao oficial em seus currculos) quanto de ensino fundamental,

  • 34

    devendo cumprir o currculo mnimo obrigatrio veiculado pela secretaria estadual de

    educao, com um nmero estipulado de aulas a serem ministradas em lngua

    nacional, e cujo trabalho em lngua estrangeira categorizado como parte

    diversificada do currculo, indistinta para rgos responsveis. No caso das escolas

    internacionais, elas podem tambm funcionar em regime experimental, conforme

    explicitado no artigo 81 da lei 9394 de 20/12/9619. Dessa maneira, possvel afirmar

    que as escolas bilngues de educao infantil e ensino fundamental no so

    reconhecidas por lei e seus currculos especficos de LE no so registrados pelos

    rgos competentes. A exceo neste panorama so as escolas indgenas e de

    fronteira, consideradas as nicas escolas bilngues legais no pas, mas cuja

    regulamentao e processos avaliativos tambm no parecem levar em conta os

    contedos especficos das culturas indgenas envolvidas no processo educativo,

    embora diversos estudos estejam em trmite nessa rea da educao20.

    Frente a esse contexto, optamos por uma anlise da legislao relativa ao

    ensino de lngua estrangeira em determinados momentos da histria brasileira,

    buscando, para isso, sentidos e lugares referentes prtica e os relacionando

    legislao federal, no que diz respeito Educao Infantil e ao Ensino Fundamental

    vigentes nos dias atuais.

    19 Art. 81. permitida a organizao de cursos ou instituies de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposies desta Lei. 20

    No podemos ignorar os esforos feitos no sentido de ampliar o acesso dos povos indgenas preservao de suas culturas e s novas tecnologias. Entretanto, observamos que, no nvel estadual, essa diferena intercultural parece no ser muito levada em conta pelos parmetros de avaliao. Tal considerao se baseia no fato de que no h diferenciao de participao dessas escolas em sistemas compulsrios de avaliao de rendimento, tais como o SARESP (Sistema de Avaliao de Rendimento do Estado de So Paulo). H tambm o projeto das escolas bilngues de fronteira, que tm como objetivo a troca de experincias entre alunos da rede pblica no Brasil e Argentina. A lngua ensinada nessas escolas o espanhol, e esseprograma uma iniciativa do governo federal para uma rea especfica, e sobre a qual no encontramos legislao referente ou orientaes curriculares.

  • 35

    O ensino de lnguas estrangeiras modernas ganhou prestgio significativo com

    a vinda da famlia real para o Brasil, em 1808, a qual trouxe consigo as tendncias

    que essa modalidade de ensino j gozava na Europa e nos Estados Unidos

    (VIDOTTI e DORNELAS, 2006). De modo geral, o ensino do francs ocupava um

    lugar de destaque no currculo oficial, observada a grande influncia poltica, cultural

    e cientfica que a Frana exercia sobre o Brasil. Segundo as autoras, a quase

    totalidade dos materiais utilizados nos cursos superiores e de formao militar eram

    em lngua francesa. A partir de 1837, o currculo oficial, materializado pelas prticas

    do Colgio Pedro II, servia como modelo de qualidade para todas as escolas, as

    quais requeriam a legitimao por meio da equiparao dos currculos ao do

    Colgio, a fim de que seus alunos obtivessem o reconhecimento dos diplomas. O

    ensino no Pedro II era de nvel secundrio, acessvel apenas elite existente no

    pas, j o ensino primrio (as primeiras letras) era em sua maioria de carter

    privado ou domstico.

    Tal panorama foi pouco alterado at o final da Repblica Velha, levando-se

    em considerao que o pas mantinha uma caracterstica de povoamento

    predominantemente rural e o acesso educao formal continuava restrito elite,

    que, por sua vez, enviava preferencialmente os filhos para serem educados na

    Europa.

    O regulamento do Colgio apresenta detalhamento quanto s disciplinas

    ministradas, o nmero de aulas e os procedimentos adotados na abordagem dos

    conhecimentos. A respeito do ensino de LE, o documento postula que:

    [E.1] b) Ao estudo das linguas vivas ser dada feio eminentemente pratica. Os

    exercicios de conversao e os de composio versaro sobre assumptos

    scientificos, artisticos e historicos; as dissertaes sobre themaslitterarios

  • 36

    reclamaro cuidado dos docentes e uma parte desenvolvida nos programmas

    das ultimas series em que as lnguas forem leccionadas. No fim do curso os

    alumnos devero estar habilitados a fallar e a escrever duas lnguas

    estrangeiras e familiarizados com a evoluo litteraria dellas. (artigo 7.o, item

    b Decreto 8660 de 05 de abril de 1911)

    O excerto acima, retirado do regimento do colgio Pedro II, representa o

    documento que mais se aproxima da legislao educacional da poca e trata do

    ensino de lnguas estrangeiras modernas (as lnguas vivas) de modo bastante

    detalhado. O trecho traz os objetivos relativos rea, nfase pedaggica,

    metodologia a ser adotada e, por fim, temtica a ser tratada. O esquema abaixo

    relaciona esses elementos:

    estu

    do

    das

    ln

    guas

    viv

    as

    objetivos

    falar

    escrever

    compreender evoluo literria

    nfase prtica

    metodologia

    exerccios de conversao

    exerccios de composio

    temtica a ser desenvolvida

    (assuntos)

    cincia

    arte

    histria

  • 37

    Em apenas um pargrafo, diversas prescries a respeito dessa prtica de

    ensino so estabelecidas, ou seja, a lei no trata somente do ensino de lngua

    estrangeira, como tambm dos parmetros a serem seguidos, de maneira bastante

    especfica. Compreendemos que o excerto remete a um alto nvel de controle sobre

    as prticas, na medida em que os passos que devem ser seguidos so descritos

    com um certo nvel de detalhe de maneira imperativa e categrica. As afirmaes

    categricas so transmitidas por uma voz absolutamente objetiva que fala de um

    lugar de autoridade explcito, criando, dessa forma, um efeito de sentido capaz de

    relegar, tanto professores quanto alunos ao lugar de meros seguidores de ordens:

    ao estudo das lnguas vivas ser dada feio eminentemente prtica, os exerccios

    versaro, as dissertaes reclamaro cuidado dos docentes.

    A nica modalizao explcita no trecho se refere aos alunos, e se

    caracteriza como um dever, uma ordem: os alunos devero estar habilitados a falar

    e escrever duas lnguas. Recai sobre o professor ou sobre o colgio a obrigao de

    preparar os alunos a fim de que ao final do curso estes atinjam o nvel de habilidade

    descrita no documento.

    A feio eminentemente prtica a ser dada ao ensino de LE se refere ao

    mtodo direto, que se apresentava como uma alternativa mais moderna ao mtodo

    de gramtica e traduo, adotado em vrios lugares do mundo. Tal ensino inovador

    era, como veremos adiante, acessvel apenas para uma pequena parte da

    populao.

    Durante os primeiros 300 anos da histria do pas, assim como no sculo XIX,

    a educao secundria (e consequentemente o acesso ao ensino de LE) constituiu

    um bem para poucos. Segundo Marclio (2005, p.88):

  • 38

    No havia nenhuma ligao nem continuidade com a escola popular elementar. O ensino primrio e secundrio eram duas instituies que se desenvolviam paralela e autonomamente uma da outra. Cada uma delas respondia a fins diversos: o ensino primrio era feito para o povo. O secundrio para a elite.

    interessante notar que a elitizao dessa prtica (e, portanto, do ensino de

    lngua estrangeira) dialogava com um elemento bastante presente no imaginrio da

    poca: o de que a produo nacional no era de boa qualidade e que, portanto,

    devia-se consumir a produo estrangeira. A mesma autora cita Mario Pinto Serva,

    que, em seu livro A Educao Nacional (de 1924), critica a instruo do povo

    brasileiro e a misria mental das publicaes em lngua portuguesa:

    (...) o brasileiro quando sabe ler conhece apenas o portugus. Quem entra em uma livraria brasileira qualquer, em qualquer cidade de nosso pas, e constata os livros que se encontram em lngua portuguesa, fica horrorizado na misria mental a que est condenado nosso povo em geral. (...) Em lngua portuguesa, no h publicado o que fez a civilizao humana, o pensamento moderno. (SERVA, 1924, p. 149)

    Os sentidos de cultura e pensamento presentes tanto na crtica de Serva

    quanto no estatuto do colgio Pedro II apresentam uma relao de regularidade, de

    conformidade com a produo intelectual da poca (que at ento consistia em

    adaptaes de modelos europeus na produo artstica e com a supervalorizao da

    produo estrangeira). Os contedos descritos para as atividades de conversao e

    redao do Colgio materializavam a preocupao de colocar os alunos em contato

    com essas produes em suas aulas de LE por meio do estudo dos assumptos

    scientificos, artisticos e histricos. Esses dizeres so materializaes do que

    Calligaris (1996), em sua interpretao a respeito da construo imaginria

    brasileira, denomina figura do colonizador. Segundo o autor, as figuras do

    colonizador e do colono so as figuras retricas predominantes no discurso dos

  • 39

    brasileiros, e se referem relao que estabelecemos com nossa origem portuguesa

    e com nosso pas. Ele compara o colonizador a algum que busca o gozo em um

    corpo, que no o corpo interditado da me. Ao explor-lo com uma voracidade sem

    limites e sem leis, ele se d conta que goza com um corpo que no o que

    realmente desejava, e se desilude, projetando sua falta no corpo que possui,

    menosprezando-o:

    Ele tem com o pas enquanto corpo uma cobrana que lhe permite dizer este pas no presta, quer seja porque ele deveria ser o outro (aquele que deixou), quer seja porque ele no goza como deveria. (CALLIGARIS, 1996, p. 19)

    Assim, a elite que produzia culturalmente no Brasil acabava por reescrever

    (mesmo que com algumas breves rupturas) o discurso do colonizador exilado, que,

    no se satisfazendo na nova terra, almeja voltar civilizao que o antecede. Essa

    mesma civilizao o interpela e concomitantemente, desdenha daquilo que ele

    encontrou na colnia. Nesse contexto, a LE um instrumento que possibilitava a

    volta, pois fazia-se necessria para a comunho com a metrpole. A misria

    mental qual, segundo Serva, o povo brasileiro est condenado por no ter acesso

    em lngua portuguesa ao que a civilizao humana realizou e, consequentemente,

    ao pensamento moderno, relega nossa lngua materna a um lugar de completa

    inferioridade, como se a civilizao humana e o pensamento moderno no

    existissem seno por meio de uma outra lngua. Enquanto a(s) outra(s) lngua(s)

    figuram como lugar da civilizao humana e do pensamento moderno, a lngua

    portuguesa o lugar da misria, da no civilizao, e, portanto, da barbrie, de

    pensamentos ultrapassados, ou at mesmo da irracionalidade.

    O incio do sculo XX trouxe uma srie de mudanas econmicas no cenrio

    mundial que afetaram duramente a economia exportadora brasileira. A crise na

  • 40

    chamada poltica do caf-com-leite (acordo firmado entre Minas Gerais e So Paulo,

    as potncias econmicas da poca, para a alternncia entre representantes mineiros

    e paulistas no governo do pas), as diversas revoltas de carter separatista e uma

    crescente mobilizao das foras armadas no sentido de organizar o cenrio poltico

    nacional eram as preocupaes das elites da poca, que viam seu poder ameaado

    pelo iminente desmembramento da unidade nacional. Ao mesmo tempo em que a

    grande maioria da populao brasileira no possua representatividade poltica, nem

    acesso s condies satisfatrias de sobrevivncia, evidenciou-se a crise no modelo

    de administrao adotado at ento, gerando um movimento de cultivo da

    brasilidade e de sua inveno como elemento unificador e pacificador das

    inquietaes brasileiras, que tinha como objetivos principais a suavizao das

    diferenas regionais e a manuteno da unidade territorial. Tal estratgia j havia

    sido utilizada na formao dos estados nacionais europeus, e descrita por Hall (

    1992 [2004],p. 59):

    (...) no importa quo diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gnero ou raa, uma cultura nacional busca unific-los em uma identidade cultural, para represent-los todos como pertencendo grande famlia nacional.

    Acreditamos que, no Brasil, esse movimento particularmente observvel.

    Com o governo de Getlio Vargas, em 1930 (resultado de uma aliana de

    representantes das classes dominantes para reprimir o levante poltico e os

    movimentos armados estimulados pela crise da Repblica Velha), e o subsequente

    Golpe em 1942, d-se a criao do Estado Novo, que, de uma maneira autoritria e

    ditatorial, investe na criao de um pas de identidade uniforme, sob a gide da

    ordem que levaria ao progresso e possibilitaria recuperar o atraso do pas com

  • 41

    relao aos pases desenvolvidos. Para tal objetivo, alinha-se uma poltica

    educacional que almeja a unidade e a identidade nacionais. (AQUINO et al, 2000).

    A poltica de Vargas para a educao era chefiada por Gustavo Capanema

    Filho, o qual ganhou notoriedade graas s suas metas nacionalizantes, ao

    bastante marcada na direo de uma escola que atingisse os ideais de

    uniformidade, padronizao e organizao em voga. Segundo Aquino ET AL. (2000,

    p. 386), sua atuao representou uma relao com a cultura erudita e contou com

    nomes como Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Vincius de Morais e

    Cndido Portinari. Criou-se a Comisso Nacional do Livro Escolar, visando reforma

    das obras didticas, as quais passaram a ressaltar as virtudes do povo brasileiro, o

    ufanismo e as qualidades de Vargas. Em 1939, torna-se obrigatrio o ensino de

    Educao Fsica com moldes na educao militar. Em detrimento de uma concepo

    de cultura e lngua estrangeiras (notadamente europeias, francesa e inglesa) como

    modelos de civilidade a serem seguidos, emerge uma viso que visa ao reforo da

    identidade nacional:

    Paralelamente formao do Homem Novo preconizado pelo Estado Novo, o Ministrio da Educao atacou as escolas consideradas desnacionalizantes, caracterizadas por uma ligao com outros pases, a exemplo das escolas alems no Sul do Pas. Tendo seus registros cassados, foram obrigadas a fechar suas portas e ceder o espao para a criao de escolas pblicas. Na verdade, com o pano de fundo desta questo, encontrava-se o tema da imigrao, cada vez mais polmico diante da proposta de integrao nacional. (AQUINO [ET AL] 2000, p. 389)

    Uma caracterstica interessante desse movimento o seu incio, que se d

    por meio da alterao da estrutura do Colgio Pedro II, onde, em 1931, teve extintos

    os cargos de professores de LE modernas, e cuja instruo passou a ser fiscalizada

    pelo Estado (cf. Decreto 20.833 de 21 de dezembro de 1931). Em 1939, promulga-

    se uma lei que obriga a utilizao da lngua portuguesa nas escolas (cf. Decreto-lei

  • 42

    n. 1.545 de 25 de agosto de 1939) [E.2], e outra que probe o uso de quaisquer

    materiais em LE, assim como sua produo em territrio nacional (cf. Decreto-lei n.

    3.580 de 3 de setembro de 1941) [E.3] .

    [E.2] Art. 1 Todos os rgos pblicos federais, estaduais e

    municipais, e as entidades paraestatais so obrigados, na esfera de

    sua competncia e nos termos desta lei, a concorrer para a perfeita

    adaptao, ao meio nacional, dos brasileiros descendentes de

    estrangeiros. Essa adaptao far-se- pelo ensino e pelo uso da

    lngua nacional, pelo cultivo da histria do Brasil, pela incorporao

    em associaes de carter patritico e por todos os meios que

    possam contribuir para a formao de uma concincia comum.

    [E.3] Art. 4 Fica proibida a importao de livros didticos, escritos

    total, ou parcialmente em lngua estrangeira, se destinados ao uso de

    alunos do ensino primrio, bem como a sua produo no territrio

    nacional.

    Nota-se, em E2, o esforo realizado para a construo da uniforme identidade

    nacional por meio da preocupao do Estado em adaptar de maneira perfeita os

    brasileiros descendentes de estrangeiros. O objetivo do processo de adaptao

    promover a formao de uma conscincia comum nesses descendentes. O emprego

    do substantivo adaptao remete a leituras sociais da teoria de Charles Darwin,

    segundo a qual as espcies devem adaptar-se ao seu meio ambiente a fim de

    garantir a sobrevivncia. A adaptao, no contexto do decreto, pode ser considerada

    como a substituio de valores estrangeiros por valores brasileiros. O carter

    totalitrio da formulao pode ser observado no apenas pela utilizao da

    modalidade categrica expressa em so obrigados e far-se-, mas tambm pelo

  • 43

    investimento em um produto ideal do processo de adaptao: a perfeita adaptao,

    e, de uma conscincia comum (uniforme), o que caracteriza a identidade nacional.

    O investimento em um ideal de brasilidade pura tambm se torna visvel na

    disposio sobre a comisso nacional do livro didtico, que no somente motiva a

    produo nacional, como tambm promove a erradicao de didticos em LE

    destinados ao ensino primrio, por meio da proibio de sua importao e da

    produo em territrio nacional. Pode-se afirmar, portanto, que esses dois

    movimentos de construo da brasilidade promovidos pela Era Vargas foram

    operacionalizados empregando-se um forte investimento contra as prticas correntes

    de instruo pblica em lngua estrangeira e que, segundo alguns autores, levou

    sua quase extino.

    Assim, consideramos que a Era Vargas institui um momento de silenciamento

    da LE e sua prtica como elemento constitutivo do processo de construo da

    identidade nacional. As leis promulgadas no perodo parecem colocar a cultura

    estrangeira imigrante em confronto com a cultura nacional como se fosse uma

    ameaa ao almejado sentimento de brasilidade. As polticas de Vargas apontam

    para um alinhamento com as concepes totalitaristas vigentes na poca, tais como

    o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itlia. Bastante irnico o fato de a

    veemente rejeio s prticas que pudessem motivar o florescimento de culturas

    no nacionais ser inspirado pelos discursos totalitaristas atuantes na Europa.

    Com a popularizao da instruo pblica ocorrida durante o Estado Novo,

    diversos debates entram na cena nacional, muitas mudanas ocorrem no cenrio

    poltico, e, em 1961,aps mais de dez anos de negociaes, promulgada a

    primeira lei de diretrizes e bases da educao nacional (doravante LDB), inspirada

    nos princpios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana (cf. LDB 4024 de

  • 44

    20 de dezembro de 1961). At ento, a regulamentao da educao no Brasil era

    feita majoritariamente pelos decretos esparsos, que declaravam a adoo de

    modelos ideais, no entanto, raramente aplicados. Segundo Casemiro dos Reis Filho

    (1981, p. 45):

    O decreto, a regulamentao, a norma codificadora constituem, nos pases de origem colonial, o instrumento por excelncia para a reforma. Tal fato decorre do processo colonizador que , antes de tudo, um processo de transplante cultural.

    Consequentemente, a educao por decreto pode ser compreendida como

    uma herana de nosso passado colonial e nossa relao com a metrpole

    reguladora. Da ruptura com esse modelo (e depois de muita discusso) produzida

    a primeira LDB, a qual sistematiza as regras para a educao no pas. O documento

    no faz meno alguma ao ensino de LE, deixando a critrio das instituies a

    escolha das disciplinas opcionais a serem ministradas21. Apesar de todas as

    discusses e grupos sociais envolvidos na elaborao da LDB, aparentemente o

    apagamento da LE nos documentos oficiais promovido na Era Vargas ainda surtia

    algum efeito.

    Com o golpe militar em 1964, observa-se o recrudescimento das prticas, o

    que se materializa, em termos de legislao educacional, mediante volumosos

    decretos de restries e punies, mas que, de maneira geral, pode ser observado

    na LDB produzida em 1971, durante os chamados Anos de Chumbo da histria

    brasileira, no governo de Emlio G. Mdici, parte da linha dura do governo militar.

    21 Segundo Cunha (1979), a estrutura geral do currculo nacional no era centralizada, permitindo que

    cada regio o adaptasse s suas necessidades. O currculo era dividido em disciplinas obrigatrias (Portugus, Histria, Geografia, Matemtica e Cincias), disciplinas complementares e optativas (Organizao Social e Poltica do Brasil, LE Moderna, Lngua Clssica, Desenho, Fsica, Qumica, Biologia, Filosofia).

  • 45

    A poca do regime militar e os macios investimentos estrangeiros

    decorrentes de acordos inspirados por meio da dinmica de foras instituda pela

    guerra fria levaram criao de acordos internacionais, que, como condio de

    parceria, exigiam adaptao a uma srie de padres (em sua maioria unificadores,

    indo de encontro s polticas anteriores propostas pelos governos civis). Segundo

    Marclio (2005, p.151): A regra era a unidade nacional e, junto com a doutrina da

    segurana nacional, produziu instrumentos rgidos de controle na educao. A

    busca pelo desenvolvimento da educao nos moldes do desenvolvimento

    tecnolgico levaram criao de acordos que ficaram conhecidos como Acordos

    MEC-Usaid"22, os quais privilegiaram as camadas mais abastadas da populao. E,

    ainda segundo a autora, beneficiaram predominantemente os Estados Unidos, que

    ficavam com o investimento de 93% dos fundos, e enviavam materiais e produtos

    aos pases parceiros em troca da conformidade aos padres estabelecidos pela

    agncia. Novamente, podemos observar que a construo da identidade nacional

    recebia uma ajuda externa de um grande irmo do Norte que ditava a direo a

    ser seguida por essa identidade.

    Em acrscimo mudana de foco da educao oficial, a nova LDB tambm

    instituiu o amparo financeiro de instituies privadas de ensino por parte do Estado,

    com o redirecionamento de fundos destinados educao. No documento, a LE

    merece meno em carter complementar:

    [E.4]Art. 8 A ordenao do currculo ser feita por sries anuais de disciplinas ou

    reas de estudo organizadas de forma a permitir, conforme o plano e as

    possibilidades do estabelecimento, a incluso de opes que atendam s

    22 United States Agency for International Development

  • 46

    diferenas individuais dos alunos e, no ensino de 2 grau, ensejem variedade de

    habilitaes.(...)

    2 Em qualquer grau, podero organizar-se classes que renam alunos de

    diferentes sries e de equivalentes nveis de adiantamento, para o ensino de

    lnguas estrangeiras e outras disciplinas, reas de estudo e atividades em que tal

    soluo se aconselhe.

    Em um momento de reconhecido recrudescimento da poltica nacional que

    promoveu a ascenso de polticas autoritrias de controle por parte do governo,

    assim como a grande influncia estadunidense na constituio (e manuteno) do

    governo militar, notvel o fato de o ensino de LE gozar de relativa liberdade, j que

    sua meno, expressa no texto pela utilizao do verbo modal podem, se d apenas

    em termos de uma sugesto de organizao de turmas. O prprio oferecimento da

    disciplina no estipulado pelo documento, uma vez que a parte variada do

    currculo includa conforme o plano e as possibilidades do estabelecimento. Esta

    clusula da lei permite ao estabelecimento escolher e adaptar o oferecimento de

    determinado componente curricular s necessidades de sua comunidade.

    Uma nova LDB foi promulgada em 1996, no governo civil de Fernando

    Henrique Cardoso. Em suas caractersticas gerais, esse documento se aproxima

    bastante do produzido em 1961, entretanto, apresenta um carter mais flexvel com

    relao regulamentao escolar. De maneira bastante interessante, todavia, as

    proposies referentes ao ensino de LE parecem ter sido mantidas de maneira

    quase idntica, pois dispem a disciplina em um lugar de um componente curricular

    que pode gozar de prticas diferenciadas:

  • 47

    [E.5] Art. 24. A educao bsica, nos nveis fundamental e mdio, ser organizada

    de acordo com as seguintes regras comuns:

    (...)IV - podero organizar-se classes, ou turmas, com alunos de sries distintas,

    com nveis equivalentes de adiantamento na matria, para o ensino de lnguas

    estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares; (cf. Lei n. 9394 de 20

    de dezembro de 1996).

    E, pela primeira vez, garante LE carter de obrigatoriedade no ensino

    fundamental e mdio:

    [E.6] Art. 26. Os currculos do ensino fundamental e mdio devem ter uma base

    nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e

    estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas

    caractersticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da

    clientela.

    5 Na parte diversificada do currculo ser includo, obrigatoriamente, a partir da

    quinta srie, o ensino de pelo menos uma lngua estrangeira moderna, cuja

    escolha ficar a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da

    instituio. (idem)

    Quanto poltica de ensino de LE, o ltimo acrscimo que pudemos observar

    foi a lei 11.161 de 5 de agosto de 2005, que torna obrigatrio o oferecimento do

    espanhol no ensino mdio:

    [E.7] Art. 1o O ensino da lngua espanhola, de oferta obrigatria pela escola e

    de matrcula facultativa para o aluno, ser implantado, gradativamente, nos

    currculos plenos do ensino mdio.

  • 48

    Nesse percurso, percebemos que, apenas em 1996, o Estado se compromete

    com o oferecimento gradativo de LE no ensino oficial (o que no necessariamente

    garante o acesso e o sucesso dos alunos do ensino oficial LE), mas parece

    apontar na direo de uma fixao legal do lugar da LE na escola pblica por meio

    da instituio de sua obrigatoriedade (isto expresso linguisticamente por ser

    includo obrigatoriamente [E6] e oferta obrigatria [E7]), ao mesmo tempo que

    retoma a adaptao do currculo escola ao condicion-la a estar dentro das

    possibilidades da instituio. Assim, o efeito de obrigatoriedade diludo pelo

    condicionamento do oferecimento s condies da instituio.

    Tal reforma no currculo, mediante regulamentao legal, aparentemente

    representa o primeiro passo em direo ao aumento no acesso das populaes de

    baixa renda LE, o que desestabilizaria o lugar de exclusividade que a elite at

    ento possua. Insistimos na questo da aparncia desse acesso, pois o

    oferecimento condicionado s possibilidades da instituio [E.6]. Em termos

    prticos, isso significa que se a instituio no puder (por questes de falta de

    recursos, de profissionais ou de interesse dos dirigentes da escola) a comunidade

    escolar no encontrar na legislao o respaldo para exigir seu direito do Estado. O

    sentido se encontra, portanto, difuso entre o direito garantido e a condio

    preexistente da escola, deslizando de ser includo obrigatoriamente para dentro das

    possibilidades da instituio, movimento que anula a direo de obrigatoriedade.

    Observamos que quanto mais se populariza o ensino, menos o Estado se

    compromete com o oferecimento de determinados componentes curriculares.

    Passamos de um discurso prescritivo e autoritrio sobre LE a ser oferecida s elites

    [E1] para dizeres difusos quanto a real posio do Estado com relao ao seu

    oferecimento s classes populares [E6]. Parece-nos que a oferta de LE consta da lei

  • 49

    de maneira pro forma nos documentos mais recentes, como se fosse uma incluso

    mascarada desse elemento no currculo, uma incluso que no encontra respaldo

    na lei quando da necessidade de ser acessada pelas populaes mais vulnerveis

    cujos entornos no possibilitam o alcance a esse produto elitista. Dessa forma, a lei,

    ao mesmo tempo em que apresenta a LE como desejvel, no garante o direito

    popular ao seu acesso, pois prioriza as possibilidades da instituio, constituindo-se,

    assim, em um discurso de desestabilizao apenas aparente e funcionando,

    paradoxalmente, de maneira a garantir a manuteno das condies j existentes.

    A Educao Infantil e ao Ensino Fundamental, no perodo relatado, sofreram

    uma srie de reformas e tentativas de implantao. O Ensino Fundamental (que

    tambm j foi primeiras letras e ensino primrio), a exemplo de todas as polticas

    educacionais que analisamos, teve carter descentralizado e descontnuo. A

    legislao federal esteve, em grande parte dos documentos, direcionada em obrigar-

    se e desobrigar-se quanto ao oferecimento dessa instruo, assim como estipular a

    faixa etria das crianas que deveriam frequentar cada segmento. At a

    promulgao do Estatuto da Criana e do Adolescente, em 1990, podemos afirmar

    com segurana que h um silncio macio nos documentos federais a respeito da

    figura e do lugar da criana na sociedade, um apagamento completo das

    caractersticas e do papel desses seres sociais.

    A Educao Infantil teve, at meados do sculo passado, um atributo

    assistencialista e foi direcionada principalmente s mes pobres que no podiam

    cuidar de seus filhos durante a jornada de trabalho. A primeira legislao que

    garante a educao infantil como direito da populao a de 1988, que tem sua

    organizao detalhada pela LDB de 1996, nos seguintes termos respectivamente:

  • 50

    Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de:

    I - ensino fundamental, obrigatrio e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele no tiveram acesso na idade prpria;

    (...)

    IV - educao infantil, em creche e pr-escola, s crianas at 5 (cinco) anos de idade;

    (Constituio de 1988, Captulo III)

    Seo II

    Da Educao Infantil

    Art. 29. A educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criana at seis anos de idade, em seus aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social, complementando a ao da famlia e da comunidade.

    Art. 30. A educao infantil ser oferecida em:

    I - creches, ou entidades equivalentes, para crianas de at trs anos de idade;

    II - pr-escolas, para as crianas de quatro a seis anos de idade.

    Art. 31. Na educao infantil a avaliao far-se- mediante acompanhamento e registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoo, mesmo para o acesso ao ensino fundamental.

    ( LEI N 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996.)

    Mas de que maneira essa legislao constri a relao Estado-criana? Em

    primeiro lugar, observamos uma representao da criana como um ser em

    desenvolvimento que deve ser garantido (em seus aspectos diversos) pela educao

    infantil, e, portanto, pelo Estado:

    [E.8] A educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade

    o desenvolvimento integral da criana at seis anos de idade, em seus

  • 51

    aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social (...) (Lei n. 9394 de 20 de

    dezembro de 1996)

    Ao tratar das atribuies do Estado frente ao desenvolvimento

    infantil,estipula-se o raio de ao esperado, ou seja:

    Aparentemente, ao objetivar o desenvolvimento integral da criana,

    apresenta-se um discurso normativo, descritivo dos aspectos, incluindo a avaliao:

    [E.9] Na educao infantil a avaliao far-se- mediante acompanhamento e

    registro do seu desenvolvimento, sem o objetivo de promoo, mesmo para o

    acesso ao ensino fundamental.

    Nos excertos [E.8] e [E.9], a descrio das responsabilidades do Estado

    estabelecida pelo uso dos substantivos desenvolvimento e avaliao, ambos

    derivados de verbos. Esse processo, denominado nominalizao, discutido sob a

    Des

    envo

    lvim

    ento

    inte

    gral

    da

    cria

    na

    aspecto fsico

    aspecto psicolgico

    aspecto intelectual

    aspecto social

  • 52

    tica discursiva por Fairclough(1992, p. 223). Sob tal perspectiva, o processo em si

    relegado ao segundo plano, o tempo e a modalidade so ocultos e, tanto o agente

    quanto o paciente tornam-se implcitos. O emprego das categorias abstratas

    desenvolvimento e avaliao tem o efeito de apagar as aes envolvidas em sua

    concretizao, tornando o sentido menos discutvel. Segundo o trabalho de Osakabe

    (1979) sobre a argumentao no discurso poltico, o emprego de noes vagas para

    a referncia de processos aponta para o esvaziamento da funo informativa do

    texto e para intensificao de sua funo argumentativa, pois toma como

    pressuposto uma srie de noes que so discutveis, fixando, portanto, o

    significado, e dificultando a visibilidade das aes implicadas, o que colabora para o

    efeito persuasivo:

    Elas constituem um conjunto plenamente satisfatrio de noes que o locutor pressupe que sejam aceitas pelo prprio ouvinte, e que o so, na medida em que so utilizadas no seu carter mais genrico e mais confuso. Isso explica o fato de elas ocorrerem sempre como instncias ltimas (dominantes ou interessadas) e jamais ocorram (...) enquanto objeto de discusso. (OSAKABE, 1979, p. 67)

    Tais noes vagas, ao dificultarem sua discusso, tm como efeito

    pragmtico o enfraquecimento da garantia do direito de acesso da populao aos

    processos descritos. A prestao de direitos resvala na frouxido do favor prestado

    quele que no consegue ser autossuficiente. Podemos tambm notar essa posio

    acerca do excerto no qual se estabelece a relao entre o Estado e a criana:

    [E.10] (...) complementando a ao da famlia e da comunidade. (Lei n. 9394 de 20

    de dezembro de 1996)

    Ao nomear sua funo como complementar ao da famlia e da

    comunidade [E.10], novamente o dizer do Estado aponta para uma regio de

  • 53

    obscurecimento dos processos envolvidos nas responsabilidades das instncias

    participantes, que nos parece fruto da tenso entre os dizeres pastorais e neoliberais

    que interagiram quando da produo da legislao.

    Em primeiro lugar, retomaremos a referncia ao da famlia e da

    comunidade. De que maneira caberia famlia agir? Alimentando a criana?

    Ensinando noes bsicas de higiene? Ensinando rudimentos de linguagem? Sobre

    qual parmetro de cuidados e conhecimentos caberia escola ser complementar?

    H, nesse excerto, um espao de deslizamento de praticamente todos os referentes

    (ao, famlia, comunidade), que aponta para uma volatilidade das expectativas de

    ao de ambas as instncias, pois, nem a famlia pode cobrar o Estado quanto a

    resultados especficos da educao infantil, nem o Estado pode delimitar seu escopo

    de interveno, j que as aes que complementa no esto designadas de maneira

    especfica. Como veremos adiante, a maleabilidade nas representaes de ao

    tambm se encontra relacionada s questes de qualidade da educao pblica no

    Brasil.

    Novamente, vemos a responsabilidade de uma das partes (a famlia) ser

    referida por meio de uma nominalizao. A criana, que se encontra entre a esfera

    pblica e a privada, tem duas instncias de formao: a famlia e a escola, cujas

    funes especficas no tm seus sentidos discutidos ou suas aes explcitas no

    texto. No acreditamos que o Estado deva assumir primazia na educao das

    crianas pequenas, entretanto, cremos que, ao contrrio do reconhecimento da

    importncia formativa da famlia e da comunidade, tal indeterminao de papis na

    lei aponta para a tenso entre duas formaes discursivas que tiveram forte

    participao na gnese do documento legal: a pastoral e a neoliberal.

  • 54

    As pastorais catlicas tiveram presena bastante significativa nas discusses

    que produziram nossa legislao educacional e cujas vozes ressoam principalmente

    na delimitao do papel da educao estatal com relao funo da igreja.

    Segundo Oliveira (2002), ao perder a luta pelo financiamento das escolas

    confessionais pelos poderes pblicos, as pastorais catlicas lutaram para definir a

    primazia da famlia e a comunidade na instruo das crianas. Tal delimitao indica

    a resistncia das pastorais catlicas a cederem o lugar da educao, que, segundo

    Foucault (1974 [1975]), um dos pilares da ao pastoral em sua relao com as

    tcnicas de governabilidade. Marcando a primazia da famlia e da comunidade

    (instncias de socializao nas quais a igreja ainda encontraria legitimidade de ao

    na esfera pblica), busca-se manter a arte do pastorado. O autor afirma que o

    pastorado age de maneira bastante prxima dos indivduos, acompanhando-os a

    cada passo:

    O pastorado deu lugar, no cristianismo a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os indivduos, uma arte de segui-los e de empurr-los passo a passo, uma arte que tem a funo de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existncia.(FOUCAULT, 1974 [1975], p. 219)

    No podendo exercer tal arte dentro das escolas pblicas, os grupos

    pastorais marcaram na lei a primazia da famlia sobre o Estado, para que ela

    pudesse optar por servios de carter pastoral, os quais, a partir da instaurao da

    lei em 1963, s poderiam ser prestados na esfera privada. Mas, no acreditamos

    que apenas a fora pastoral tenha exercido presso no momento das deliberaes

    da LDB. Mais que manter o espao aberto para as comunidades e famlias poderem

    optar por uma educao confessional, acreditamos que a voz mais pungente na

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    delimitao da relao de complementaridade estado/famlia e respectivamente

    pblico/privado a da orientao neoliberal da economia de mercado.

    Ao colocar-se em segundo plano na ao educacional infantil, notamos que o

    Estado parece apresentar caractersticas do que Bueno (2003) define como

    pedagogia neoliberal. Tal pedagogia inclui princpios de mercado nos mecanismos

    de ao do Estado, e os aproxima da lgica de competitividade. Segundo o autor:

    Trata-se de uma pedagogia que ultrapassa os muros escolares, pois utiliza-se tambm dos meios de comunicao de massa, neles divulgando insistentemente os benefcios da lgica empresarial em oposio lerdeza burocrtica do Estado. A nova direita, ao privilegiar a tica de livre mercado, objetiva desvincular a noo da educao pblica de sua dimenso historicamente constituda de direito social e conquista democrtica. Em seu lugar, a educao afirmada como mercadoria a ser livremente consumida por usurios no mercado (BUENO, 2003, p.83)

    Assim, a educao pblica coloca-se, desde seu incio, de modo tmido,

    objetivando apenas complementar a ao da famlia enquanto que a educao

    privada trata de definir e veicular suas metas, parmetros e resultados. Segundo

    Nunes (2003), em nosso pas, as aes advindas do Estado para as crianas so

    geralmente rotuladas como polticas sociais ou assistenciais. Isto indica uma

    dificuldade que as prticas governamentais tm para tratar das questes privadas.

    Como as crianas dizem respeito aos pais e famlia mais prxima, as esferas em

    que pode haver influncia externa so a sade e a educao. Enquanto as elites

    tm alcance aos servios privados, os pobres tm de se utilizar de servios pblicos,

    que geralmente apresentam qualidade inferior. Assim, o que de direito acaba

    sendo taxado como assistencialismo, um favor que o Estado faz aos pobres. A

    prpria organizao poltica do Estado evidenciava essas representaes. Segundo

    Marclio (2005, p. 250):

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    At 1963, as creches estavam na rbita do Estado, no Servio Social de Menores, de assistncia ao menor carente, e eram internatos, obras assistenciais, proteo ao menor abandonado, sem famlia.

    Embora o desenvolvimento urbano tenha gerado as condies para a

    multiplicao de instncias exteriores de socializao infantil, at 1963 as creches e

    escolas para crianas pequenas eram destinadas a outra categoria: a dos menores,

    o que fez com que a educao infantil se ampliasse como atividade de

    desenvolvimento apenas no mbito privado de ensino. Na esfera pblica, su