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Questões crônicas NO ENSINO DE HISTÓRIA

Questões crônicas [7]

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Questões crônicasNO ENSINO DE HISTÓRIA

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 1

Questões crônicas NO ENSINO DE HISTÓRIA

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Questões crônicas 2

Sumário

Pra Que Serve Esse Prédio Velho?.........................................................3

Por Que Eu Não Sei (Quase)Nada Sobre A África? .......................8

Quando A Gente Aprende A Aprender? ........................................ 11

E Se... ............................................................................................................... 18

E As Mulheres Daquela Época? ........................................................... 22

Formação Política ...................................................................................... 25

A Idade Média, É A Média Do Quê? ................................................. 30

O Tribunal Das Causas Anacrônicas ................................................. 36

Por Que Existe O Dia Da Consciência Negra? .............................. 41

Mas É História Ou Estória?................................................................... 46

Onde Está A História No Mundo Tecnológico? ............................ 52

Professor, Eu Vi Num Filme É Verdade? ........................................ 56

O Trânsito, A Chuva E… A História ................................................. 64

“Meu Brasil Brasileiro, Terrade Samba E Pandeiro” ............... 70

Quem Tem Medo De Museu?................................................................ 74

Minhas Cápsulas Do Tempo .................................................................. 77

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Questões crônicas 3

Pra que serve

esse prédio velho? Prof. Anselmo

UANDO caminhamos pelo centro histórico de minha

cidade, eu e meus alunos do 6ºano, nos deparamos

com uma infinidade de prédios antigos. Construções

essas que em um passado não muito distante eram habitados

e serviam de moradia ou tinham outras funções dentro desta

cidade.

No decorrer da caminhada observamos uma antiga

escola, uma antiga mercearia, um antigo hotel, um pequeno

teatro, algumas lojas, e diversos casarões.

Gabriela, um das alunas, mais observadora,

pergunta:

- Professor, porque algumas dessas

construções estão

abandonadas? Várias estão

caindo aos pedaços! E sabemos que alguns

desses lugares hoje em dia são locais de

vendas de drogas.

Ao que respondo:

- Gabriela, para muitos moradores da

cidade essas construções são apenas “prédios velhos” e acham

Q

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Questões crônicas 4

que deveriam ser derrubados para dar lugar ao “progresso”,

ou seja, construir estacionamentos ou arranha-céus.

Daí Léo, outro aluno, intervém:

- Muitas dessas pessoas não entendem que nesses

prédios antigos estão boa parte da

História da cidade, né professor. Por

exemplo, minha mãe estudou

naquela escola e eu soube que ela

está condenada. Podendo cair a

qualquer momento.

Respondo:

- Sim Léo, muitas crianças aprenderam

nessa escola, assim como sua mãe. Viajantes e até

celebridades dormiram no antigo hotel. Artistas

apresentaram espetáculos nesse teatro.

Aposto que suas mães e as mães de suas

mães já compraram roupas para suas

famílias nessas lojas e alimentos na

mercearia. Muitas pessoas viveram e

conviveram nesse espaço.

- Mas professor, porque as pessoas

de nossa cidade, principalmente os

governantes, não se preocupam em preservar esse patrimônio

e o deixam caindo aos pedaços? Pergunta Léo.

- Muito desse patrimônio não é reconhecido como

parte da História dessas pessoas. Até porque, a maioria delas

nunca teve informações suficientes na escola, não formou

uma consciência patrimonial, ou seja, o que estamos fazendo

aqui hoje. E até porque, a preocupação com a proteção de

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Questões crônicas 5

nosso patrimônio é algo muito recente. O que se busca

preservar no Brasil são

apenas os monumentos que

representavam os “grandes

feitos” das autoridades

políticas de cada cidade, de

cada Estado e do país.

- Verdade professor,

olha ali a estátua do

primeiro Padre de nosso

município, aponta Léo.

- Na maioria das vezes, os políticos tradicionais não

ligam para o nosso patrimônio, ou edificações que revelam

mais a identidade de grupos populares ou da população em

geral. Acho que acreditam que somente serão reeleitos se

produzirem transformações urbanas de grande visibilidade.

Se fizerem muito asfalto para as pessoas desfilarem com seus

carros. Mas se construírem escolas, oportunizando mais

conhecimento e trocas culturais e, com isso, preservando o

patrimônio, não imaginam que poderão ganhar votos, pelo

contrário.

É nesse momento de nossa caminhada que chegamos

à igreja matriz do município. Estrategicamente construída

em um local elevado para que possa ser vista de todos os

pontos da cidade. Olhamos para cima observamos o

esplendor da construção. Neste momento faço algumas

provocações.

- Vocês sabiam que a construção dessa

“monumental” igreja foi paga pelos cidadão católicos de

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Questões crônicas 6

nosso município? Que eles doaram quase todo o material

para sua construção? Que muitos ajudaram a construí-la

trabalhando nos finais de semana junto aos trabalhadores

contratados para execução da obra?

- Mas professor, minha

mãe disse que quem construiu a

igreja foi o primeiro Padre - diz

Gabriela.

- Será que ele conseguiria

construir esse grande monumento

sozinho? Indago.

- Claro que não professor.

Ele precisou de vários pedreiros,

carpinteiros, serventes - diz Léo.

Respondo que:

- Esse patrimônio nos faz lembrar que é obra de um

esforço coletivo, portanto, pertence a todos. O que nos

devolve a responsabilidade quanto a sua proteção, à medida

que nos representa e diz muito sobre cada um de nós e de

nossa comunidade. Mas esse patrimônio nos faz lembrar que

muitas coisas pertencem a todos. Portanto todos nós temos o

dever de protegê-lo.

Um silêncio paira sobre nós e sentamos nas escadarias

do templo católico. Ficamos ali observando o movimento do

município. As pessoas vão e vem. Sem nem olhar umas para

as outras, como acontecia antigamente.

- Entenderam então para que servem esses prédios

velhos? Pergunto esperando uma resposta sincera e objetiva.

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Questões crônicas 7

Um silêncio paira sobre a turma, e Pedro, que até

então só escutava o diálogo, diz:

- Eles servem para preservar a nossa memória. Para

sabermos que nossa História está sempre presente. Então, se

deixarmos que esse patrimônio seja derrubado, muito de

nossa História cairá junto com ele.

Dou um sorriso de aprovação a resposta de Pedro. O

orgulho brota em meu coração e penso: “essa é razão de ser

professor”, ou seja, fazer com que meus alunos entendam a

importância que a História tem em suas vidas.

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Questões crônicas 8

Por que eu não sei (quase)nada

sobre a África? Prof. Bruno

OMO assim? Peraí, eu sei algumas coisas. Se parar

para pensar com calma, acho que consigo encher uma

folha de caderno com esse tema... O quê? Exemplos?

Ora, foi lá uma das últimas copas do mundo. Eu sei que a

África não é um país, mas a África do Sul é. Tem outros

países lá, mas não sei de

cor os nomes...

Não passa na TV?

Claro que passa!

Já perdi a conta de

quantos programas do

Globo Repórter eu vi

sobre a África. Não teria

coragem de fazer um

safári, mas deve ser uma

experiência e tanto. Ah, e vez ou outra sai algo de lá no

jornal também... O Ebola, lembra? Tinha gente morrendo de

medo porque parece que é bem contagioso, aí estavam

controlando quem viajava e tal. Mas antes, passava mais

coisas de guerra. Inclusive deve ser por isso que o povo passa

fome por lá. Nunca esqueço uma vez que vi, era um avião,

grande, aí eles jogavam comida do alto mesmo, nuns sacos.

Então o pessoal que estava embaixo corria, rasgava o saco,

C

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Questões crônicas 9

ficava catando o arroz do chão, separando da terra, aquelas

crianças pretinhas e barrigudinhas de vermes. Aí minha mãe

dizia “Viu? você precisa dar valor pro que tem, pode comer

seu prato todinho!” Onde era? Na África, ora. País? Eu sei

que a África não é um país, mas foi lá...

E tem mais, se você for pensar na História, dá pra

encher mais uma folha ainda, rapidinho. Foi de lá que os

negros vieram pro Brasil. O quê? Ora, pra ser escravos, isso

todo mundo sabe. Acabou com a Lei Áurea, que a princesa

Isabel assinou. Aí, terminada a escravidão, vieram os

imigrantes alemães, italianos e outros. Eu sou descendente de

italiano. Hã? Não, nem todos os meus avós eram italianos,

tem espanhol e português parece. E bugre também. Africano

não sei, acho que não...

Se eu pudesse escolher um

lugar pra viajar na África? Não

sei... Na época da copa eu fiquei

curioso com a África do Sul...

Não sei de outro lugar bom,

teria que pesquisar, ver se não

é perigoso... Onde? Egito? Ah é,

o Egito é na África né? Claro, queria muito conhecer as

pirâmides de perto, aquelas coisas de múmias também. Tem

gente que diz que isso foi coisa de alienígena, de tão

grandioso que é. Mas viajar mesmo eu queria é pra Europa.

Conhecer a Itália, na França ir pra Paris. Tenho uma tia que

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Questões crônicas 10

mora lá perto, na Alemanha. Ah, e pra Disney. Não morro

sem ir.

Hã? Ah, sobre a

África? Acho que não sei mais

nada. Na escola não falam

muito né? Parece que agora é

que tão falando mais…

Ah sim, tem o dia da

consciência negra, já ia me

esquecendo! Esse é legal, é um

dia diferente sempre tem algo novo, como o dia do índio,

sabe? A escola muda, o pessoal faz apresentações, alguns

alunos ajudam também. Teve uma fala sobre o Zumbi, foi

legal, ele era um herói negro que morreu lutando contra a

escravidão, parece… Se tinha mais coisas nesse dia? É que não

me lembro direito, isso faz tempo, foi no final do ano

passado. Depois ninguém mais falou nada…

Você quer ainda mais??? Ah, deixa de ser chato, não

tem outro assunto não? Eu sei de vários. Sobre a África até

acho que falei muito…

E por que só pergunta? Fale alguma coisa também!

Ou você não sabe nada além disso?

E você que tá olhando aí, sabe ou não sabe???

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Questões crônicas 11

Quando a gente aprende a

aprender?

Prof. Cleyton

S AULAS mal haviam começado e um feriado

prolongado já estava chegando. As expectativas

estavam se construindo. Até porque “uma coisa sobre

ser professor, é criar utopias nas férias e se deparar com as

distopias da sala de aula”.

Professor Amarildo jurava ter ouvido essa frase de

algum colega de profissão, certa vez durante o café.

Lembrou-se que nesse mesmo intervalo, o assunto girava em

torno de temas bem comuns para tal ambiente: o desrespeito

“habitual” dos estudantes, a desatenção, a ignorância dos

alunos, as péssimas perspectivas para o futuro da educação.

Um dos professores, talvez o mais ativo na conversa,

na tentativa de construir uma piada com algum crédito

intelectual, afirmou que isso seria culpa da “Pedagogia da

Hipocrisia” – numa clara referência aos textos de Paulo

Freire.

– Estamos formando uma geração de fracassados que

só fala bobagens. Quando lê, é um monte de besteiras que

vendem bastante. E ainda são aplaudidos por qualquer

asneira que dizem – teria dito o professor, naquilo que

considerou uma perfeita análise crítica da realidade

educacional.

A

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Questões crônicas 12

O grupo se dividiu. Uns poucos riram com certa

segurança, por ter entendido a intenção; outros os seguiram;

e houve ainda aqueles que, constrangidos, apelaram para a

diplomacia:

– Ainda bem que as

férias estão chegando.

Afinal de contas, “os

de esquerda” estavam ali ao

lado e um incidente agora,

colocaria em risco o resto

do recreio.

Amarildo se

levantou naquela manhã e

enquanto escovava os

dentes, tentou pensar

porque teria se lembrado

daquele episódio. Talvez

tenha até sonhado com ele naquela noite.

Decidiu ligar a TV para saber como estaria o tempo.

O país era outro naquela manhã. Protestos e greves

eram palavras que traziam os mesmos adjetivos. Era

estranho, na semana anterior nada disso parecia acontecer.

Agora o país era tomado por uma gigantesca insegurança,

um medo extremo e, sobretudo, um ar de que “se não está

conosco, está contra nós.” Como disse um entrevistado,

defensor de um país ordeiro e pacífico e indignado com

tamanha corrupção. Para ele, os males do país seriam

resolvidos tirando “algumas maçãs podres” da política. Lutar

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por educação, saúde, era um monte de besteira que diminuía

a importância daquilo que realmente mudaria o Brasil.

– Ele falou pacífico ou passivo? – Amarildo não havia

entendido. Foi o barulho da chaleira que fervia ou o

entrevistado se confundiu?

Tomou um longo gole de café e corrigiu-se: o país era

exatamente o mesmo.

Naquela segunda-feira, com cara de segunda-feira, os

alunos arrastavam-se para suas salas, as aulas iriam

começar.

– Fazia anos que eu não via tanta politização nas

ruas e na mídia! Essa baderna precisa acabar! - falou com

tom de discurso um colega na sala ao lado.

Amarildo tentou continuar a aula, enquanto aquilo

que tinha ouvido nos últimos dias tentava se organizar em

sua mente, ou pelo menos encontrar um eixo que ligasse todo

esse momento. O sinal bateu.

– O país não aguenta mais! Para acabar com a

corrupção, esse pensamento de esquerda precisa ser

exterminado! - Ecoou pelo corredor durante a troca de salas.

No sacrossanto horário do café, havia uma disputa

instalada. Quem utilizasse menos adjetivos contra o “atual

estado do país”, estaria sendo favorável a ele e, Deus nos

livre, até “esquerdista”.

Sentado próximo à janela para sentir o cheiro da

grama que estava sendo cortada – um oásis àquele ambiente

árido - finalmente ele conseguiu entender. O fim da

diplomacia confirmava as palavras proféticas de antes: morre

a utopia e nasce a Era da Distopia.

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Questões crônicas 14

Sempre foi partidário do meio termo. E talvez por

isso, aqueles olhares trocados na sala dos professores o

incomodavam tanto. Olhou para o relógio, viu que faltava um

minuto para o fim do intervalo. Na tentativa de exorcizar os

sentimentos daquele dia, pegou um giz, juntou suas coisas e

escreveu no quadro de recados: “Uma mentira, quando dita

muitas vezes, corre o risco de virar uma aula.”

Saiu sem ver os lucros

e os prejuízos daquilo que nem

de perto julgou ser um ato de

coragem.

No corredor, sentia

que ainda não estava bem. As

palavras escritas não o

ajudaram como pensava.

Tentou um último ato de

desespero. Entrou em sala,

olhou cordialmente para seus

alunos, fez a chamada e

sentou-se sobre a mesa.

Pensou que pela primeira vez em seus dez anos de

profissão, estava realmente olhando para eles, tentando se

colocar no lugar daqueles meninos e meninas. Como estariam

diante daquele turbilhão? O quanto a família os influencia?

De tudo isso que está acontecendo, o que mais lhes chama

atenção? Será que leram algo a respeito? Só viram na TV?

Ou em redes sociais apenas? A opinião de um professor é

diferente das demais? Como? Será que querem falar sobre

tudo isso?

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Questões crônicas 15

Finalmente se levantou, pegou o giz e foi ao quadro.

Escreveu tantas palavras quanto conseguia lembrar: “direitos,

deveres, política, direita, esquerda, Estado, corrupção,

baderna, vandalismo”. Os alunos não entenderam. Guilherme

perguntou se era para copiar. Pedro perguntou se poderia

acrescentar outras. Amarildo sorriu.

Em seguida, solicitou que cada um desse uma

definição à elas, de acordo com aquilo que estavam pensando

no momento e pediu que tentassem conectá-las através de

uma redação.

– Vale nota, professor?

– Claro que vale. Mas para mim.

A turma pareceu não entender, mas aceitou a

atividade com certa alegria, pois tinham muito a dizer.

Nas aulas seguintes, as redações foram discutidas. De

acordo com os textos, o professor trazia informações notícias,

gráficos que confirmassem ou, quase sempre, questionassem

os dados apresentados.

Alguns alunos se incomodaram, porque já fazia algum

tempo que não ouviam nenhuma resposta. O material

didático estava abandonado! Só eram provocados a

questionar as próprias informações. Um deles gravou um

desses momentos da aula e levou para os pais.

– Olha, senhora diretora, ter professores comunistas

é muito perigoso! Ainda mais no atual momento em que

vivemos. Eles fazem lavagem cerebral nessas crianças e aí

acontece tudo isso que a gente está vendo. Talvez seja até

bom a senhora pensar em substituí-los. Caso contrário, não

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Questões crônicas 16

sei, alguns pais podem se reunir para tomar medidas legais

contra o colégio.

Na saída da diretoria, com o sentimento de dever

cumprido, o pai encontra sua filha mais nova, que o olha com

certa tristeza.

– O que foi?

– É que o Guilherme disse que eu bati panela, e que

por isso não queria mais brincar comigo. Mas eu não bati!

Juro!

– Mas querida, isso é um motivo de orgulho! Não é

qualquer um que tem a coragem de ir pra janela e protestar

por um país melhor! Se ele não pensa assim, deve ter pais

alienados que não querem nada com nada.

Sem entender as palavras do pai e muito menos a

raiva com a qual ele falava, a menina disse meio sem graça:

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Questões crônicas 17

– Não, pai. A gente estava brincando de esconde-

esconde, eu achei o Guilherme, mas ele disse que eu não tinha

visto onde estava escondido. Isso é bater panela. Aí não quis

contar e estragou a brincadeira.

O pai, encabulado, olha para trás discretamente, a

fim de observar se a diretora havia presenciado a cena. Mas a

vê diante de um quadro de recados, meio distraída com um

sorriso aparentemente irônico nos lábios, enquanto escrevia

algo:

“Obrigado, professor. Nota dez.”

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Questões crônicas 18

E se... Prof. Dismael

AULA estava boa. O assunto era interessante para a

maioria dos alunos e um dos prediletos do experiente

professor de História, a Segunda

Guerra Mundial. Alguns eram fanáticos

por games, outros tinham assistido

documentários, muitos já tinham visto

filmes e uns dois ou três tinham até lido

livros sobre a temática. O certo é que

todos já entendiam um pouco sobre a

grande guerra.

O jeito como o mestre contava a

história era tradicional, tinha pesquisado durante anos nas

pilhas de seus livros didáticos “clássicos” os detalhes do

evento. Os fatos eram citados na ordem cronológica, do mais

velho ao mais recente, com destaque às questões políticas. A

aula, expositiva e dialogada, até o momento tinha deixado a

parte da discussão de lado, o diálogo estava apenas no

planejamento entregue no início do ano à coordenação.

Algumas imagens de cartazes, fotos e mapas eram

projetadas na tela e serviam para ilustrar e dar um tom de

veracidade ao seu discurso. O ambiente estava à meia luz. Só

o professor falava, era de manhã cedinho... Ainda assim, os

estudantes estavam prestando atenção. O contexto pré-

guerra já tinha sido explicado, as alianças estavam postas, a

A

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Questões crônicas 19

Alemanha tinha invadido a Polônia. E

a classe permanecia atenta,

concentrada.

Quase todos. No fim da sala,

um rapaz com o olhar

contemplativo de repente volta de

seu mundo de pensamentos. No

momento em que o mestre fazia uma breve

pausa para beber água, ele interrompe sua narrativa e

manda, de bate-pronto, uma pergunta:

- Professor, e se Hitler não tivesse nascido, existiria a

segunda guerra?

Sua paciência não era a mesma depois de tanto

tempo na sala de aula. Inúmeras vezes ele já ouvira esta

questão e tantas outras respondeu sem pestanejar “o se para

a História não existe!!!”

Pronto, discussão encerrada. Mas desta vez a resposta

fácil não veio à tona. Se a paciência não era a mesma de um

iniciante, sua experiência o encorajou a usar a criatividade, e

depois de alguns segundos, sacou do bolso um trunfo

previamente preparado e com uma postura teatral começou

a declamar:

- Se Hitler não tivesse nascido, muitas coisas iriam

mudar: as possibilidades são imensas, fica difícil mensurar...

Se Hitler não tivesse nascido, mapas seriam modificados,

Goebbels e Mengeli esquecidos, uns acabariam arruinados,

outros seriam afortunados.

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Questões crônicas 20

A turma ficou atônita. Não era comum o professor

interromper a aula daquela maneira, ele sempre fazia de

tudo para concluir os conteúdos sugeridos da apostila. Não

abria espaço para uma discussão tão infantil. Avançando

entre as carteiras, continuou:

- Se Hitler não tivesse nascido, não existiriam campos

de concentração, outro mundo teria sido construído, a paz

reinaria desde então...

Pausa. O aluno que indagara a questão parecia

insatisfeito. Em silêncio as perguntas em sua cabeça se

multiplicavam: será que a culpa da guerra caberia toda nas

mãos de Hitler? Teríamos um mundo

melhor? Os judeus não teriam

sofrido? Outro colega que sentava

na fila da janela pertinho dele

sussurrou:

- Agora o professor forçou

a barra... Mas ele estava

interessado no desenrolar daquele

momento inusitado, respondeu

imediatamente:

- Shiiiii!!! Não interrompe o professor! Quero saber

como vai acabar esse papo!!

Do fundo da sala, o professor que não tinha percebido

a conversa, continuou:

- Se Hitler não tivesse nascido outro ocuparia seu

lugar, a guerra teria acontecido, o sangue de qualquer forma

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Questões crônicas 21

iria jorrar. Se Hitler não tivesse nascido, Martin Bormann

comandaria o partido nazista, Albert Speer se tornaria

ministro de guerra e Rudolf Hess (quem sabe!) seria apenas

um dentista.

Silêncio. O professor então retornou a sua posição

habitual na frente do quadro e terminou a pequena surpresa

preparada para a turma olhando

diretamente para o aluno que tinha feito

a pergunta:

- O “se” para a História não

existe, serve apenas como um exercício

de reflexão... Mas lembre-se: em toda

narrativa de historiador (ou

historiadora), cabe um pouco de

imaginação.

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Questões crônicas 22

E as mulheres

daquela época? Prof.ª Elaine

MAIS uma manhã gelada de julho apontava. Como

era difícil sair da cama naquele frio da pequena

cidade do interior de Santa Catarina, onde eu

morava. Mas não tinha remédio, o jeito era encarar de uma

vez. Muito bem agasalhada, fui tomar café e saí para a escola.

Aquela semana

havia sido muito cansativa.

Provas, trabalhos escolares

e a demanda das funções

domésticas que me eram

incumbidas. Aquilo

realmente me irritava, meu

pai e meu irmão na

“ajuda”, minha mãe e eu

na lida. Por que aquele

trabalho era de exclusividade feminina, enquanto os homens

“bons” apenas ajudavam?

Chegava da escola e lá estavam os banheiros me

esperando... Depois a arrumação da casa, a louça suja do

almoço. Ah, o almoço. Eu chegava da escola e minha mãe

ainda estava no fogão enquanto meu pai assistia o início do

jornal do meio dia. Honestamente, aquilo me indignava. Mas

E

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Questões crônicas 23

minha mãe sempre dizia “Minha filha, teu pai ajuda tanto,

não reclame, antigamente era bem pior”.

No caminho para a

escola pensava na

apresentação do trabalho

de História. A professora

nos incumbiu a difícil tarefa

de encontrar as mulheres

que contribuíram para a

construção da sociedade

brasileira na Primeira República. Mulheres? Onde? Quem?

Berta Lutz? Só encontrei uma. Então, onde elas estavam?

Acho que meu zero está garantido...

Mergulhada em meus pensamentos de preocupação

com o tal trabalho de História e ainda zangada ao lembrar

das tarefas que me esperavam quando chegasse em casa

encontrei a Malu e a Natália, minhas colegas de classe. Elas

reclamavam da professora, diziam que o trabalho era

impossível, pois não apareciam mulheres nesse período da

História. Que se fosse pensar em toda História, apareceriam

uma Olga, uma Anita, uma Joana e olhe lá, sempre com um

Prestes, um Giuseppe ou um Deus, como companhias, dizia

Natália sempre muito criativa e bem humorada. Acabamos

rindo um pouco da nossa preocupação.

Na sala de aula, combinei com minhas colegas que

teríamos de tentar enrolar a professora de História, pois o

trabalho estava deficiente em informações. Não havíamos

encontrado figuras históricas femininas nos livros didáticos,

como era nossa tarefa. Combinamos de falar muito durante a

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Questões crônicas 24

apresentação dos trabalhos dos colegas, fazer questões,

sugerir repetições até chegar ao final da aula e não dar

tempo de apresentarmos o nosso trabalho.

Estava tudo combinado, não tinha como não dar

certo. Só não contávamos com a irreverência da professora

que inverteu a ordem da apresentação dos trabalhos e

colocou o nosso grupo como primeira apresentação. E agora!

Deu tudo errado! Estamos reprovadas, pensei com meus

botões.

Mas em frações de segundos após este pensamento,

num lampejo de inspiração (destes que só os desesperados

têm!), solicitei que minhas colegas iniciassem a apresentação,

dissertando sobre as poucas figuras femininas que

encontramos. Terminada a explanação delas, solicitei a

palavra e comecei relatando o dia a dia de uma dona de

casa, com seus afazeres.

Relatei uma série de figuras masculinas, casadas que

tinham em suas companheiras a base de sustentação para as

suas atividades. E, que por muitas vezes, essas mulheres

extrapolaram os afazeres domésticos, adentrando e apoiando

diretamente suas atribuições profissionais.

Ao narrar sobre o cotidiano das atividades domésticas

é praticamente impossível deixar

de falar na realidade de muitas

“Marias”, que mesmo anônimas,

têm construído a história deste

país e do mundo inteiro, todos

os dias.

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Questões crônicas 25

Formação política Prof. Elton

ELA manhã, o menino saiu de casa para brincar e se

deparou com a calçada e a rua repletas de folhetos.

Aquela avalanche de papéis fora capaz de ocultar

totalmente as pedras e o cimento em algumas partes. Mais

tarde, soube que esses papéis eram chamados de santinhos.

Alguns tinham fotos, eram grandes e coloridos. Outros eram

de papel ordinário, com letras

pretas, bem sem graça. A

diversão era recolher alguns e

levar para casa. Havia uns

santinhos mais interessantes

que outros. Aqueles com verso

em branco, usava para

desenhar. Tendo foto, dava

para rabiscar sobre a cara,

desenhar óculos, bigode e

outras coisas. Era o dia

seguinte às eleições. Sabia

disso pois tinha ido votar com o pai, que o levara junto à

cabine para marcar o X.

Essa história de marcar o X era bem falada na TV

naquele ano. Na sala da 1ª série C, onde estudava, havia uma

tira de papel colada no quadro negro, bem no alto. A

professora dizia que aquilo pertencia aos alunos da manhã,

P

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Questões crônicas 26

da 8ª série. O menino já tinha visto aquele mesmo papelzinho

na TV e sabia para que servia. Também sabia que os pais iam

fazer o X no primeiro quadradinho quando chegasse o dia

certo, mas nem todos da família iam.

Havia uns tios que não gostavam do

barbudo, mesmo ele tendo a melhor

música, e preferiam o que tinha óculos

de fundo de garrafa. Depois passaram

a gostar do que usava gel no cabelo.

Era uma briga! O avô dizia que ia

votar no velhinho de cabelo branco. O

menino sempre achou que fosse

porque o avô tinha os cabelos iguais.

De qualquer forma, no papelzinho da

sua sala, na escola, o X seria posto

no primeiro quadradinho. Para isso,

subiu numa cadeira em um

momento que a professora não

estava observando, no meio da

bagunça da turma, e marcou com

gosto um X no primeiro quadradinho. Nos dias seguintes,

observava aquilo com orgulho. O barbudo ia ganhar, pensou.

Passados alguns dias, entretanto, a expectativa do

menino não correspondeu à realidade. O que mais o chateou

foi que não teve comemoração, igual estavam falando que ia

ter. Depois que sua mãe falou que o barbudo tinha perdido, o

menino ficou em casa, meio triste, igual aos pais. Sua torcida

não foi o suficiente. O cara de gel no cabelo e que ia para TV

chamar todo mundo de “minha gente!” levara a melhor.

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Questões crônicas 27

Aquele de bigode, que dizia “brasileiros...

e brasileiras!” não aparecia mais. Melhor

para ele, pois todo mundo o xingava

sempre. Foi de espantar que com esse

novo a coisa não foi muito diferente.

Depois de um tempo, todos os que

fizeram o X nele ficaram com uma raiva

danada, que só aumentava. Tinha gente

que dizia “o barbudo falou, o barbudo avisou...”, até fizeram

música. Mas parece que alguns não tinham ouvido seus avisos.

O menino também não ouviu, mas achava que seus pais sim,

então estavam do lado certo. Por que os tios e os avós de

todo mundo não tinham feito o X no primeiro quadradinho

também? Agora tinha ficado ruim para todo mundo. Então,

muita gente foi para rua pedir para o cara de gel no cabelo

cair fora e ele aceitou. Devia ter feito muita coisa errada

mesmo.

Mais ou menos

por aquela época que o

barbudo perdeu, um

pouco depois, o time de

futebol de preferência

do menino – que

também era o time

do pai, do avô e do tio

– venceu um campeonato e houve

comemoração. Ah, desta vez sua torcida deu certo! Podia

sair às ruas comemorar e assim o fez. O menino foi crescendo

e compreendendo um pouco melhor as coisas. Sabia que seu

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 28

time, que alternava vitórias e derrotas em finais de

campeonato – permitindo, ao menos de vez em quando –

uma comemoração diante de uma importante conquista, já

tinha ficado 23 anos sem vencer nada... Mesmo assim, muita

gente não tinha parado de torcer por ele, pelo contrário: a

torcida só cresceu. Mas as conquistas não dependiam só disso.

Havia outros fatores, desconhecidos para o menino, que

interferiam e a comemoração não vinha. E ainda, havia

outras torcidas, também desejando vencer para comemorar.

Nem por isso o menino deixou de se manter fiel ao seu time

de futebol, aquele que era o mesmo de seu pai.

Com o tempo, o menino viu que o time do barbudo,

aquele do primeiro quadradinho, tinha grande dificuldade de

obter vitórias – pelo menos no campeonato que mais valia.

Na escola, o menino convenceu seus colegas a batizarem o

time de futebol do campeonato da 7ª série com a sigla do

time do barbudo. Uns aceitaram por brincadeira, houve quem

lutasse contra, mas no final a sigla ficou como nome, mas

sem conquista. Se o time do homem de gel no cabelo já não

oferecia perigo, com o tempo, surgiu um outro, muito forte

– pois tinha resolvido um problema que era antigo e que

ninguém conseguia resolver por muito tempo. Como é que ele

fez isso o menino não sabia explicar. Contudo, esse novo

adversário do homem barbudo tinha uma torcida muito

grande. O barbudo perdeu mais uma vez e nem houve a

emoção da disputa anterior contra o homem de gel no

cabelo, que todo mundo pediu pra sair depois. O novo

adversário que o barbudo enfrentou, ao contrário do homem

de gel no cabelo, queria inventar um jeito de todos pedirem

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 29

para ele ficar. E conseguiu! O

barbudo só conseguiria vencer

depois de muito tempo... E o

menino, torcedor que era, e

agora crescido, comemorou –

já um pouco consciente dos

significados daquela vitória.

Para ele, tinha um gosto de

infância, embora já soubesse que nem os santinhos eram

inocentes.

— Professor, então você é petista?

— Petista, eu? Você prestou mesmo atenção? Eu sou

corintiano, rapaz.

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Questões crônicas 30

A Idade Média, é a

média do quê? Prof.ª Juliana F.

ÃO consigo entender essa tal de Idade Média!! Pra

começar, é a média do que?

- Cara, Idade Média é muito simples! É o

feudalismo, que tem a

pirâmide social: Clero,

Nobres e Camponês; tudo

acontece no feudo, e

quem manda é o

suserano, e o vassalo só

obedece. Pronto!

- Só? Não é mil

anos? E só tem isso?

- É! Eu já estudei

esse assunto na minha

outra escola, e tirei 10 na

prova. É fácil demais.

- Não to acreditando não. No livro tinha tanta coisa.

Olha ali ó, a professora tá ali ó, vamo fala com ela... Ô

profeeeee, a gente quer saber uma coisa de História.

-Humm, se interessando por História, é? Diga, qual é

a dúvida?

N

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Questões crônicas 31

-Prof. Silene, eu tava falando pra Mariana como

Idade Média é fácil. Que tudo rola no feudo, tem 3 classes

sociais e tem os suseranos e os vassalos. Não é isso aí?

- Então meninos, é e não é. O que você tá me

dizendo aconteceu sim, mas não o tempo todo, e nem em

todos os lugares.

-Então o meu professor na outra escola me ensinou

errado? Desgraçado!

- Não, não, não! Não é uma questão de certo ou

errado. São pontos de vista, que compõem a História. Nesse

caso, esse ponto de vista é dos historiadores da França, que

organizaram os estudos de Idade Média lá no século XIX. Pra

eles, a maior parte do período foi isso mesmo que você falou.

Aconteceu isso também na Inglaterra, na Alemanha, em

parte da Itália, mas não dá pra dizer que aconteceu isso em

todos os lugares.

-Não ti falei, cara? Mil anos é muita coisa pra só

aquilo que tu falou!!

-Tá, se não foi só isso, o que tava acontecendo nos

outros lugares, profe?

- Posso te dar muitos exemplos. Aqui no Brasil, na

América, na África, na Ásia, não teve nada disso de

feudalismo, em nenhum momento. Ou vocês imaginam os

indígenas vivendo como cavaleiros e princesas?

-Dã, lógico que não né, profe.

- Então, tá. Mas também, dentro da própria Europa,

as coisas não eram totalmente iguais. Por exemplo, na região

da Península Ibérica, onde hoje estão Portugal e Espanha. Lá

as coisas foram bem diferentes...

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Questões crônicas 32

No século VIII essa região foi invadida e dominada por

um grande império, que veio lá da Arábia, o Império

Islâmico, que acreditava no deus Alá e seguia a religião

revelada pelo profeta Maomé. Os árabes-islâmicos vieram

pelo norte da África, atravessando dunas e desertos, e

chegaram até a ponta onde a África se aproxima da Europa.

Lá, um ex-escravo, que se transformou em comandante

militar, Tariq ibnZiyad, liderou a invasão para a Europa, em

711. O primeiro lugar que ele aportou na Europa foi numa

península rochosa, que ficou conhecida como “Monte de

Tarik”, ou Gibraltar, como conhecemos hoje. Tão importante

foi, que a passagem entre África e Europa recebeu o nome de

Estreito de Gibraltar.

Ali os Islâmicos combateram e venceram os visigodos,

um antigo reino bárbaro, e dominaram a região por muitos

séculos. O domínio deles não tinha nada a ver com o

feudalismo cristão, até porque eles eram principalmente

comerciantes e viviam em centros urbanos. A Península

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 33

Ibérica foi dominada com o nome

Califado de Córdoba, e as maiores

cidades tinham livrarias e

banheiros públicos, lojas de tecidos

e joalheiros, e havia convivência

com vários outros povos, como

judeus, berberes, bizantinos e

também cristãos. O Império

Islâmico era tão grande que

dominava um pedaço da Europa,

uma parte da África, e um

pedaço da Ásia, até chegar na

China! Com esse vasto território, eles conduziam uma grande

rede de comércio, onde circulavam coisas dessas várias

regiões, como moedas, temperos, tecidos, alimentos, armas,

conhecimento e tecnologia. Por exemplo, são os islâmicos que

trazem a pólvora para a

Europa, junto com o papel,

ambos da China. Também a

cana-de-açúcar, que vem pro

Brasil depois, e os números,

os algarismos indo-arábicos,

também vem de lá. Os

conhecimentos astronômicos,

as experiências químicas e as

práticas de alquimia, e

mesmo conhecimentos de

Medicina, através de uma

enciclopédia criada por um

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Questões crônicas 34

médico persa chamado Avicena.

-Nooossa professora, que legal! Não tinha ideia de que

essas coisas tinham acontecido. Isso foi bem mais empolgante

que aquela coisa do senhor feudal. Viva o Tarik!

- Poxa professora, e eu que tinha aprendido que a

Idade Média era a Idade das Trevas, ou como o professor

repetiu várias vezes: “mil anos de escuridãooo” hohoho!!!

- Olha meninos, não é só o seu outro professor que

diz isso. É uma visão muito comum, mas precisamos pensar

de novo sobre isso. Será que foi só escuridão? Só trevas?

- Não professora! Olha só essa tal de Córdoba, quanta

coisa... Até arma de fogo eles já tinham!

- Isso mesmo. Tá vendo como a História é feita de

pontos de vista? Não foi só escuridão não. A Idade Média é

vista como um período ruim desde o século XVI. Nesse

momento, chamado de Renascimento, o pessoal queria

afirmar que eram mais racionais que no período anterior.

Eles diziam que estavam retomando a racionalidade das

grandes civilizações clássicas da Idade Antiga, Grécia e Roma.

Por conta disso, criaram a ideia de que o período de mil anos

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 35

entre o final de Roma e o tempo que eles viviam, era só um

intervalo, uma pausa entre duas grandes épocas. Foi por isso

que inventaram o nome Idade Média, como o que tá no meio.

- Ahhhhhh! Então é por isso que Idade Média é

média. Eu não tava entendendo isso, ia mesmo te perguntar.

Mas agora entendi.

- É, e essa ideia de “mil anos de escuridão”, de

“idade das trevas”, quem criou foram os pensadores de um

movimento chamado Iluminismo, no século XVIII. Eles se

aproveitaram dessa ideia da pausa no conhecimento, pra

falar que se não tinha conhecimento, era escuridão. E

adivinha quem ia trazer a luz do conhecimento, pra tirar o

povo da escuridão?

-Os tais iluminadores?

-Iluministas, iluministas. Isso mesmo. Espertinhos,

não é mesmo? Meninos, o papo foi bom, mas está na hora da

aula. Até mais, Salaam Aleikum.

-hm? Salamaleico?

-É a saudação dos povos islâmicos. Significa: “que a

paz esteja com você”. E a resposta pra essa saudação é

Alaikum As-Salaam, “e você também tenha paz”

- Ahhhh, Aleicosalam, professora!

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Questões crônicas 36

O Tribunal das Causas

Anacrônicas (ou “Como julgar o passado?”)

Prof.ª Juliana H.

ARADO, garoto! Desça da bicicleta devagar e coloque

as mãos na parede.

O rapaz se virou surpreso.

- Quem? Eu?

O som da sirene é inconfundível: ele estava sendo

preso. Os policiais, com exóticas roupas prateadas, iam se

juntando para a abordagem, enquanto o cérebro do rapaz

tentava entender o que estava acontecendo. Um dos

prateados avisou pelo microfone que o alvo finalmente havia

sido encontrado. Com os braços abertos e as palmas da mão

quase tocando a parede, o garoto hesitou.

- Mas por quê?!

Tirando coragem sabe-se lá de onde, segurou firme a

bicicleta e fugiu pedalando o mais rápido que podia. Atrás

dele, luzes e sirenes. O

garoto conseguiu ganhar

vantagem dos policiais.

Como conhecia cada

quebrada naquela cidade,

pedalou por uns 15

minutos sem se perder.

P

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Questões crônicas 37

Mas, apesar da adrenalina, era impossível conter o espanto:

quem eram aquelas pessoas? E os automóveis estranhos? Por

que estariam atrás dele? Se o garoto não estivesse pensando

nisto tudo e tivesse olhado para cima ao invés de só olhar

para frente, talvez tivesse percebido quando o drone começou

a sobrevoar sua cabeça. O aparelho acendeu uma luz e

quando o menino se deu conta, uma rede solidificante já

havia caído sobre ele. A bicicleta travou e algumas pessoas

atravessaram a rua quando ela e o garoto capotaram no

chão. Os policiais o colocaram

desacordado dentro da viatura.

O drone pairou um tempo em

cima do automóvel e,

exatamente como nos filmes

de ficção científica, emitiu

um flash de luz que fez

todos desaparecerem.

Quando o menino

acordou, vestia um camisão branco e

algemas muito finas, de um material que nunca tinha visto

antes. Estava escoltado por dois policiais, um de cada lado,

que lhe conduziram por uma porta. Nela, uma placa

indicava: Sala de Julgamento.

Ao fundo do salão, ele reconheceu as clássicas mesas

do juiz, advogados, testemunhas e o júri. Ele já havia visto

filmes suficientes para concluir que ele era o réu. Mas acusado

do quê? E onde afinal ele estava?

- Caso nº 16 do dia. Você é André dos Santos,

nascido no ano de 1995?

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Questões crônicas 38

- Sim, Vossa Excelência!

O tribunal explodiu em gargalhadas. “Fala direito,

moleque!”; “Que sotaque bizarro!”; “De que época ridícula

você vem pra falar assim?!”. O garoto se sentiu diminuindo e

foi assim, miudinho e humilhado, que seguiu respondendo às

perguntas da juíza.

- André dos Santos, você está sendo acusado do

crime de barbárie e incivilidade, relacionados à crueldade

com os animais.

“Crueldade com os animais? Mas eu adoro os

bichinhos! Será que eles estão falando daquela vez quando eu

atirei num passarinho com espoleta? Poxa, eu nunca mais fiz

aquilo desde que tinha uns 7 anos!”. Enquanto André

pensava, entrou a primeira testemunha. Ela segurava um

projetor holográfico.

- Boa noite, tribunal. Tenho aqui imagens que podem

chocar a todos. Peço, desde já, desculpas pela brutalidade do

que iremos ver. No entanto, provas são provas.

A cada holograma que aparecia, vinha uma

exclamação da plateia. Algumas pessoas viravam o rosto.

Houve os que choraram e também aqueles que se indignaram

e saíram do tribunal.

O advogado de acusação apenas comentou, com uma

entonação profundamente atordoada: “Temos aqui provas

irrefutáveis da crueldade e especismo do acusado.”

André reconhecia as fotos que foram mostradas e não

estava entendendo nada. Eram as fotos que ele postava nos

seus perfis na internet, mostrando os alimentos que

preparava nos finais de semana.

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Questões crônicas 39

- Sr. Santos, você preparou e comeu aqueles animais?

- … sim.

- E o que você sentia ao realizar tais atos perversos?

- Não sei... Fome, só, eu acho.

- E por que fez isso?

- Bom... Não sei... Acho que porque era gostoso. E

também: todos na minha família faziam o mesmo, eu

aprendi a fazer isso desde pequeno... Ninguém nunca achou

errado.

A defesa intervém:

- Você sabia que estava cometendo um grave crime,

além de ser extremamente cruel com as outras espécies?

- Claro que não! Comer isso não é considerado crime!

Até já ouvi gente dizendo que é crueldade, mas... O que mais

a gente poderia comer? Minha família não tem dinheiro pra

comprar comida cara...

- Entendo - disse a advogada. - Bem, tribunal, creio

que chegamos à solução deste caso! De início também me

indignei. No entanto, o réu não pode ser penalizado! Este

comportamento que nos parece cruel é um comportamento

típico da época em que André viveu. Todos, ou quase todos

que o acusado conhecia faziam e pensavam as mesmas coisas

que ele. Ele cometia tais crimes, porque aprendeu assim.

Vocês bem sabem que tudo o que pensamos e fazemos está

limitado pela época em que vivemos. Quem sabe se muito do

que fazemos hoje também não será visto como algo errado no

futuro? Por isto, mesmo que para nós André pareça um

criminoso, um bárbaro, não podemos condená-lo!

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Questões crônicas 40

A juíza entendeu a defesa da advogada e proferiu a

sentença de André: “Apenas mandem-no de volta para sua

época, pois aqui entre nós ele não terá lugar!”.

Assim que André saiu da Sala de Julgamento, o

próximo reu se apresentou à juíza.

- Caso nº 17 do dia. Você é Fernão de Góis, nascido

no ano de 1615?

- Sim, Vossa Excelência.

- Fernão de Góis, você está sendo acusado fazer parte

da Inquisição, tendo torturado e executado 30 pessoas devido

à questões religiosas.

Entrou a primeira testemunha.

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Questões crônicas 41

Por que existe o Dia da

Consciência Negra? Prof.ª Karla

RA 20 de novembro e a organização do evento

começou cedo na escola. Grupos dividiam-se entre

fixar os painéis, carregar carteiras e montar os

estandes. Eu estava lá ajudando em tudo. Afinal, era um dia

de celebração. Era o Dia da Consciência Negra.

Nas paredes, murais

denunciavam o racismo. Havia

máscaras e esculturas

“africanas” por entre os

espaços. Na entrada havia uma

brava exaltação a Zumbi dos

Palmares. Para as maquetes

quilombolas reservamos um

lugar especial. Aos poucos um

cenário negro ia se construindo

em nossa escola. A esta altura, a manhã já havia passado.

Não fui para casa almoçar, a professora precisava de

mim. Eu me identificava com tudo aquilo e decidi ficar. Lá do

pátio ouvíamos os ensaios do Grupo Negrociação. Como eu

gostava de dançar! Como eu gostava de música! Como eu

gostava de Hip Hop!

E

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 42

Não podia me dispersar, ainda tinha muito a ser feito

até a abertura do evento. Éramos poucos. Chamei Marcos,

um colega que estava sentado na escada aguardando a aula

do período da tarde iniciar. Acho que

ele era da turma 201. Ele me disse:

- Eu não sou negro! Esta festa

não é minha!

Alguns risos do grupo em que

Marcos estava me deixaram chocada.

Como assim? É assunto de negro, não

me interessa? Quem falou em festa?

Pensei.... Racista!

Não comentei nada com a

professora. Não queria chateá-la.

Afinal, ela havia se empenhado muito

para tudo acontecer direitinho. Não vi

movimentação de outros professores.

Será que seguiam o mesmo

pensamento de Marcos? Será que

entendiam que a responsabilidade do

“assunto negro” era da professora

negra? Pensei.... Se for isso.... Acho que

meus professores também são racistas.

As horas passaram

rapidamente. Na verdade, eu nem vi o tempo passar. Já era

noite e os capoeiristas estavam chegando. Na biblioteca o

agogô ecoava, era a primeira vez que nossa escola vivenciava

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 43

manifestações religiosas de matriz africana. Os visitantes

começavam a chegar e o cheiro dos quitutes ganhava corpo

pela escola.

Tudo pronto! A capoeira abriu o evento e na roda

todos foram convidados a participar. Em seguida, os orixás

ao movimento do batuque giravam, giravam e se

encaminhavam até o auditório nos conduzindo a palestra de

abertura. Era de arrepiar! Eu via força em tudo aquilo.

Auditório repleto. Tema da palestra: Por que existe o

Dia da Consciência Negra? A palestrante era a professora

Ana, a mesma que pensou todo o

evento. Ana era minha professora

negra, minha professora de

História. Ela nos deu uma super

aula!! Recuperou o passado de luta

do povo negro na figura de Zumbi

dos Palmares. Ela nos disse que a

data, que o 20 de novembro

marcava a morte deste herói negro.

Ana tentava nos mostrar que

mesmo após a abolição da escravatura no Brasil, os negros

precisavam continuar lutando. Para resistir era preciso nos

reconhecermos como negros e negras. A professora insistia

que precisávamos questionar o lugar que ocupamos nesta

sociedade.

A atividade trouxe certos desconfortos, algumas

conversas paralelas, muitas saídas antecipadas. Realmente a

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 44

questão não tocava a todos. Terminada a palestra, o debate

iniciou. A primeira pergunta veio de Marcos:

- Somos todos iguais, somos seres humanos. O

racismo não está mais na cabeça dos negros?

Eu pensei.... Por que não foi embora? O que esse

garoto pretendia?

A conversa rolava de maneira calorosa. A professora

Ana apresentou alguns dados para comprovar as

desigualdades existentes entre negros e brancos em nosso

país. Ela falou de mercado de trabalho, de acesso à

universidade, de mídia.... Ela insistia em mostrar para Marcos

que o racismo é uma realidade. Ele:

- Ok professora! Essa história de escravidão e de

preconceito eu já entendi. Mas ter um dia para o negro já é

demais! Em alguns lugares tem até feriado!

A professora:

- É exagerado ter o dia de Tiradentes? Esse feriado é

questionado? Os comerciantes reclamam? A sociedade se

incomoda?

O papo durou mais que o previsto na programação e

o Grupo Negrociação ainda tinha que se apresentar. Os

meninos estavam aguardando com ansiedade desde cedo

para cantar. Como estava auxiliando a professora em tudo,

achei que era melhor interromper.

Marcos esbravejou:

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Questões crônicas 45

- Agora sou obrigado a ouvir Hip Hop também?

A professora:

- Não. Você não precisa ouvir Hip Hop. Você precisa

refletir sobre o que é ser negro e a música pode lhe ajudar

muito nisso. Veja.... Há passados que são relembrados

constantemente. Há passados que são esquecidos

intencionalmente. Hoje, especialmente hoje, queremos que

você e todos aqui presentes possam partilhar de uma outra

História. O Dia da Consciência Negra é um convite para isso

também...

Marcos aceitou o convite. E você aceita amigo(a)

leitor(a)?

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Questões crônicas 46

Mas é História ou Estória? Prof.ª Karoline

ULA de leitura com a profe Mônica de

Português. Ela me fez ir à biblioteca,

porque pra variar eu me esqueci de

levar algo “diferente” pra ler, e não podia ficar

lendo o livro de História de novo. Chegando lá pedi

pra Mari, a bibliotecária, me indicar alguma coisa.

Não estava com muita inspiração pra escolher um livro

àquela hora da manhã, não é que eu não goste de ler,

mas é que antes das 8 eu realmente não funciono direito. Ela

me indicou um livro que tinha acabado de chegar na escola,

Azincourt, de um autor estrangeiro, disse que eu ia gostar,

tinham várias batalhas e grandes exércitos. Apesar do livro

ser E-NOR-ME resolvi levar mesmo assim, a capa era

bacana, tinham umas flechas e, se eu não gostasse não

precisava ler inteiro, afinal era pra aula de leitura, não tinha

que fazer apresentação depois, nem texto pra entregar pra

professora.

Começou a terceira aula. Sei que deveria estar

prestando atenção ao que o professor Carlos está dizendo. Eu

geralmente gosto das aulas de História – não quando ele

pede pra gente fazer resumos e responder aquelas questões

A

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Questões crônicas 47

chatas que é só encontrar no livro e copiar – mas emprestei

aquele livro da biblioteca, e ele é realmente muito bom. A

Mari não estava mentindo quando disse que eu ia gostar.

Deixei ele embaixo da mesa e fiquei lendo até o final da aula,

o professor nem notou, depois eu vejo com alguém do que foi

que ele ficou falando.

Finalmente pude ir pra casa. Tenho uma montanha

de tarefa atrasada pra fazer que deixei acumular da semana

passada, mesmo assim, a única coisa que passa pela minha

cabeça é almoçar, me trancar no quarto e continuar a ler.

Avancei bastante na leitura do livro, já passei da

metade. Como não tivemos a primeira aula (um dos profes

faltou de novo) aproveitei pra ficar lendo enquanto a galera

da sala ficava brincando e conversando. Quando o professor

de História chegou eu estava tão concentrada em uma

batalha que estava rolando na estória que nem notei que ele

tinha parado na frente da minha mesa. A Kaká, minha

colega que senta na carteira de trás, precisou me dar um

cutucão pra que eu parasse de ler e visse o profe parado ali,

feito um dois de paus me encarando e encarando meu livro.

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Questões crônicas 48

Toda sem jeito eu pedi desculpas e já fui guardando aquele

livro e puxando o outro que o professor estava querendo ver

na minha mesa. Nessa aula não ia poder me disfarçar pra

ler, fiquei na mira do professor.

Conforme a aula começou,

eu fui reparando que várias das

coisas que o professor falava eu já

sabia, ou, pelo menos, parecia que

eu já sabia. Ele falava nomes de

lugares e países, de reis e duques e

de técnicas de batalha que eu

estava lendo e conhecendo desde

segunda. Ele estava falando de

uma tal de Guerra dos Cem Anos

(aparentemente era esse o assunto da aula que eu não prestei

atenção) enquanto eu estava interessada em saber o que ia

acontecer com os personagens do livro que estava lendo. Será

que as duas coisas tinham conexão? Será mesmo que aquela

estória cheia de sangue, mortes, reviravoltas e aventuras que

eu estava gostando tanto de ler era a mesma que o professor

estava contando de um jeito tão, TÃÃÃO, chato? Quando me

preparei pra levantar a mão e perguntar isso para o

professor o sinal tocou e ele saiu da sala, decidi guardar as

perguntas para a próxima aula, até lá eu ia ter terminado de

ler o livro, e ele ia ter que me responder se aquilo que eu li

era verdade ou não.

Terminei de ler.

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Questões crônicas 49

O sinal bateu e um minuto depois o professor Carlos

entrou na sala. Quando terminou de fazer a chamada e pediu

pra que nós abríssemos o livro didático na página 87, para

terminarmos a leitura sobre as guerras entre França e

Inglaterra, eu aproveitei, levantei a mão e perguntei:

– Professor, os ingleses massacraram mesmo os

franceses na Batalha de Azincourt? Eles realmente lutaram

naquela lama toda? Os arqueiros fizeram a diferença de

verdade nessa guerra?

O profe ficou me olhando com uma cara meio de

assustado meio de surpreso, eu quase nunca fazia perguntas,

mas acho que ele se espantou mais porque eu sabia essas

coisas.

– Isso não está no livro de vocês Heloyse onde foi que

você leu sobre isso?

– Aqui. (Eu respondi tirando meu livro de baixo da

mesa) Isso tudo aconteceu mesmo?

– Bom, eu não li esse livro ainda, mas ele realmente

fala de um evento que aconteceu nessa guerra que nós

estamos estudando a

“Guerra dos Cem Anos”.

O que se fala dessa

batalha é que ela foi

ganha pelos ingleses e

que os arqueiros fizeram

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 50

alguma diferença sim... Mas eu prefiro não falar muito sobre

ela, acho que é mais interessante falar sobre a Guerra como

um todo do que só de uma batalha...

O professor continuou falando sobre a Guerra e de

como ela se desenvolveu, mas a minha cabeça estava muito

confusa... Será então que o que eu estava lendo não tinha

nada a ver? Não aguentei e fiz mais uma pergunta:

– Profe, como é que eu sei então se as coisas que eu

estou lendo aqui aconteceram ou não?

– Você vai ter que pesquisar sobre o

assunto, assim como eu vou ter que ler esse seu

livrinho pra saber como é que ele fala dessa

guerra tão importante na História da Europa.

Quando queremos saber sobre os fatos históricos

nós sempre temos que buscar as informações

em mais de um lugar, seja um livro didático,

um site na internet, nos livros escritos por

especialistas ou documentários, além das fontes

históricas em si... Essa é a parte legal da História, ela pode

ser escrita de várias formas. A Literatura também pode ser

usada como uma fonte da História, e os autores de livros de

Literatura podem se utilizar da História para escrever as suas

estórias.

Enquanto o professor ia explicando daquele jeito dele

sobre o final da guerra eu ia revivendo as passagens do livro

na minha cabeça, acho que o cara que escreveu esse livro

conhecia muito de História.

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Questões crônicas 51

A aula terminou enquanto o professor Carlos dizia

quais questões nós tínhamos que responder pra próxima aula,

pra variar um pouco (só que não). Acho que as aulas seriam

bem mais divertidas e interessantes se ele contasse a História

de outra forma, como nesse livro que eu li. Mas acho que isso

não vai acontecer tão cedo...

Enquanto isso não acontece, acho que vou continuar

indo a biblioteca e pedindo indicações pra Mari, como fiz

hoje. A aula pode ter terminado, mas eu estou indo pra casa

com um livro novo, dessa vez é um tal de O Continente, pelo

que ela me disse esse fala de uma parte da História do Brasil,

espero que seja tão legal quanto o anterior.

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Questões crônicas 52

Onde está a História no mundo

tecnológico? Prof. Lucas

OJE estava frio e chovia, passei o dia fazendo o que

mais gosto de fazer: nada. É estranho dizer que não

fiz nada, afinal sempre estamos fazendo alguma

coisa, mesmo quando achamos que não estamos fazendo

nada, por exemplo, quando estamos dormindo, não estamos

só dormindo, estamos descansando, sonhado, ou mesmo só

dormindo, qual o problema? Isso já é fazer algo. Talvez,

então, seja essa definição de não fazer nada que tenha que

ser mudada. Mas, quantas vezes às

pessoas já falaram que estão cansadas de

não fazer nada? Acho que vou recontar

meu dia, e veremos quantos “nadas” fiz

hoje.

É domingo, estou na casa da

minha mãe, chove

e faz frio. Aquela

pedida para ficar

na cama, mas

tinha corrida e

jogo de manhã,

não que eu pratique esses esportes

hoje, mas ia passar na TV e eu tinha

acesso a Internet, coloquei a camiseta

H

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 53

do meu time e iria comentar ativamente pelo Facebook e

Twitter, então participaria, não jogando, mas torcendo. Jogo

e corrida transmitidos de outras cidades e países, que eu

acompanharia do sofá da minha casa, sem nenhum

problema. Bênçãos à tecnologia! E as minhas condições

sociais! Ou nem tanto, já que mesmo pessoas mais pobres que

eu, hoje em dia, têm algumas dessas tecnologias disponíveis

em suas casas. Enquanto assisto aos jogos, minha mãe

prepara uma lasanha em seu forno elétrico, e ao mesmo

tempo faz um suco em seu liquidificador, bênçãos à

tecnologia! E ao almoço.

Após o almoço fui eu para meu computador, ver e-

mail, vídeos, Facebook, jogar, me distrair, como se não

tivesse feito nada o resto do dia, mas mesmo na distração

estava eu ali fazendo algo, meu cérebro estava ativo. Na volta

para casa, ainda chovia e fazia frio, e dentro do ônibus quase

vazio eu mexia em meu celular, jogava de novo, via as

mensagens, os “whats”, me distraía, só para variar um pouco

nesse dia. Portanto o meu dia de não fazer “nada” foi meio

cheio de distrações, que não foram a toa, me levaram a

pensar coisas, me ensinaram coisas, sei que meu time

empatou, que estou com minha conta de celular atrasada

(mensagem só pra isso ultimamente), que choveu, que fazia

frio, portanto, a todo o momento aprendo algo, sinto algo e,

automaticamente, entendo a importância das coisas

relacionadas as minhas percepções e sentimentos, que

movem, ao mesmo tempo, minhas escolhas. Se estiver frio

pego um agasalho, se chover pego um guarda chuva, se

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 54

preciso ver meu e-mail acesso a internet, se quero fazer uma

ligação pego meu celular... E assim por diante.

A maioria das minhas distrações acho que, estão

ligadas ao mundo da tecnologia, assim é muito fácil percebê-

las e a sua importância, pois com elas nos comunicamos,

relacionamos, temos mais empregos, a medicina se

desenvolve, ou seja, a ciência se

multiplica e ainda nos distrai, que

“maravilha é essa ciência”, está

em todo lugar nos fazendo o

“bem”. Evidente que essa minha

visão tem a ver com a presença

dela na minha vida, afinal como

vocês viram, ela está presente na

minha vida, de forma muito clara,

assim influencia sobre tudo que eu

acho dela. Mas toda ciência produz

um artefato, ou algo palpável, que

a gente possa usar no nosso dia a

dia? A resposta a essa pergunta

pode ser respondida de maneira

simples: NÃO.

Existem ciências que não percebemos logo de cara,

para quais muitas vezes somos ingratos, mas que ajudam a

produzir, não necessariamente um artefato, um objeto, mas

nos ajudam a ver as desigualdades, as diferenças, as

intenções, a nos lembrar, a esquecer, a questionar, que nos

mostram que nossas distrações não são só distrações, que

ajudam a produzir a nós mesmos. Ciências que são úteis a

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 55

todos os momentos, que podem responder de onde vêm as

percepções e porque às entendemos de determinadas formas

e não de outras. Mas porque não as percebemos nesse mundo

tão tecnológico? Talvez, porque estamos muito preocupados

nos distraindo, vivendo-as como se elas não fossem nada

além de uma distração…

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 56

Professor, eu vi num filme...

É verdade? Prof. Maicon

SESSÃO cinematográfica estava se aproximando.

Foram meses de espera desde o anúncio da estreia

nos cinemas locais. Angus havia lido de tudo a

respeito da trágica história: assistiu documentários, leu

diversos artigos, livros e revistas. A paixão era tão grande que

resolveu construir inclusive uma

réplica do famoso navio. A fila

estava imensa, percebeu ele que

não era o único entusiasmado

pela história. Escolhido o

assento, acomodou-se na espera

ansiosa pelo início da

“verdadeira história” do Titanic!

As cenas produzidas acerca dos destroços encontrados

a quase quatro quilômetros de profundidade enchiam seus

olhos de brilho. - Que incrível! - Angus pensava. Ali estavam

as imagens “reais” do navio. A imaginação corria solta.

- Será que é possível encontrar algum corpo ainda? Como

seria interessante conseguir algum objeto do navio! Existiriam

ainda fotos escondidas entre os escombros? Conforme as

imagens estavam se sucedendo, mais e mais perguntas

alçavam voo em sua mente. Como Jack e Fabricio se

conheceram? O que aconteceu com os dois irlandeses que

A

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 57

perderam as passagens no navio numa rodada de pôquer e,

então, não puderam embarcar? Por que a mãe de Rose era

tão cruel com a filha? Por que ela queria que a filha se

casasse com alguém que ela não amava?

No entanto, o momento mais aguardado por ele

estava no trágico acidente que acometeu o navio e que o

levou ao fundo do Atlântico Norte. Perguntas e mais

perguntas borbulhavam sua mente: Como ele (diretor)

descobriu a forma que o iceberg tinha? Como ele sabe que

tiveram operários que ficaram presos na sessão de caldeiras?

Algumas das cenas não traziam as mesmas informações que

ele aprendera nas suas pesquisas e, isso o deixou bastante

angustiado e preocupado, afinal, aquele filme era uma

mentira?

Aquele final de semana foi um dos mais inquietantes

da vida de Angus. Muito daquilo que ele sabia sobre o mais

famoso dos naufrágios da História, tinha sido “mostrado” de

forma diferente no filme. Nunca antes havia desejado tanto,

que uma segunda-feira chegasse o mais rápido possível para

que pudesse ir à escola, conversar com o professor de História

e tirar essas grandes dúvidas que borbulhavam em sua

mente.

Segunda-feira chegou.

Dizer que ele acordou às seis horas

da manhã não seria uma

verdade, uma vez que a ansiedade

venceu o sono naquela

madrugada. Ao chegar à escola, dirigiu-se a sala do dos

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 58

professores na esperança de encontrar o professor de

História. Bateu na porta e, para seu alívio, quem atendeu foi

aquele por quem procurava.

- Professor, por favor, preciso conversar contigo!

- Ok. Tens alguma dúvida sobre os conteúdos para a

prova de hoje? - indaga o professor Mulder.

- Não professor. Sei “exatamente como tudo que

aconteceu” na Segunda Guerra Mundial. Minhas dúvidas são

sobre outro fato histórico. O professor já assistiu nos cinemas

ao filme Titanic?

- Sim, assisti ontem à noite. Por quê?

- Ok. Então é verdade aquilo que eles mostram no

filme? Pergunto isso, pois muitas coisas não batem com

aquilo que eu estudei sobre o que aconteceu com esse navio.

Nunca Angus havia aguardado tanto por uma

resposta, mas, ao mesmo tempo, também preocupava-se

com a resposta que iria receber de seu professor. Quem está

errado: o filme famoso ou os livros e outros “materiais” que

ele pesquisou a respeito do assunto?

- Bom Angus, temos que repensar um pouco sobre

sua ideia do que é a História. - respondeu o professor.

- Como assim? - indaga Angus com uma expressão

inquieta.

- Primeiramente, vamos deixar claro que não existe

“a verdade” absoluta sobre os fatos que estudamos “do”

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 59

passado, pois toda vez que olhamos “para” o passado,

podemos construir “uma nova interpretação” sobre esse

passado, a partir da forma que pensamos no “presente”.

- Bah professor, o senhor está me

deixando mais confuso ainda. Explique

melhor, por favor!

Naquele momento, o professor

Mulder percebeu que aquela sua explicação

só seria compreendida com um exemplo

prático. Então ele questiona Angus:

- Você já assistiu ao filme “Ponto de Vista”?

- Ainda não professor, por quê?

- Bem, nesse filme, um presidente americano estava

fazendo um discurso ao público, quando de repente se tornou

alvo de um atentado, que buscava matá-lo. Dado esse evento,

o filme mostra como oito personagens ligados àquela cena

observaram a tentativa de assassinato. Cada um deles

compreendia de forma diferente quem seria o autor do

crime, mas ao debater e comparar as versões que cada um

possuía a respeito daquele evento, conseguiu se perceber

quem era o criminoso.

- Mas então se encontrou o “verdadeiro” criminoso?

- Não é tão simples assim Angus - responde o

professor. Pense! O personagem que investiga no filme quem

teria atentado contra a vida do presidente poderia ter

apontado no final para oito criminosos diferentes, se

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 60

escolhesse apenas um dos pontos de vista sobre o fato. Tanto

para o investigador, quanto para o historiador quando este

busca compreender um determinado aspecto ligado a um

determinado evento, ele precisa obter o máximo possível de

informações. Com essas informações em mãos, ele tentará

verificar se essas podem ser usadas ou não, verificando sua

autenticidade e comparando-as entre em si e, aí, vem o

ponto principal: fazer suas escolhas!

Nesse momento, Angus, bombardeado de ideias

diferentes daquilo que ele imaginava, observa o professor de

forma incrédula. E, então, pergunta:

- Como assim, fazer suas escolhas?

- Meu caro Angus - responde o professor. Muitas das

informações que o historiador possui sobre um fato são

contraditórias e, não necessariamente, ele possui outras

fontes que ajudem ele a mostrar qual delas é “a correta“ ou

qual seria “a errada”. Assim, ele tem que escolher qual

caminho seguir, deixando de lado os outros caminhos de

“interpretação” possíveis.

E o professor ainda indagou:

- Você disse que sabe como

tudo aconteceu durante a Segunda

Guerra Mundial, não é? Então me

diga: o que aconteceu com o líder

alemão Adolf Hitler durante a

guerra?

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 61

- Essa é muito fácil professor, ele se matou num

bunker antes dele ser invadido por tropas soviéticas. Vi um

filme e li um livro que contam todos os detalhes sobre isso.

Com um sorriso no rosto o professor, estando

contente com o entusiasmo e ao mesmo tempo inocência de

seu estudante, faz uma nova pergunta:

- Você sabia que essa intepretação sobre o suicídio no

bunker é recente? Até meados da década de 1990, a

explicação que os historiadores davam é de que os soviéticos

haviam matado Hitler quando chegaram em Berlim.

- Não sabia disso - responde Angus com tom de

preocupação.

- Assim - continua o professor - podemos perceber

que, com as fontes que os historiadores possuem, eles

constroem uma interpretação sobre os eventos que

investigam, as quais podem variar conforme novas fontes

sejam acrescidas e antigas sejam descartadas.

Compreendendo agora um pouco

melhor como funciona o trabalho do

historiador, Angus percebeu que o

diretor de um filme age quase que da

mesma forma.

- Então professor, quer dizer

que o diretor do filme Titanic se fez de

historiador para explicar a história do

naufrágio? Para montar o roteiro do

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 62

filme, ele fez escolhas de quais informações seriam as mais

corretas sobre a tragédia e, então, construiu através de

imagens a sua interpretação do fato?

- É mais ou menos isso Angus - respondeu o

professor - mas talvez não devêssemos usar a palavra

“corretas”, pois ele poderia utilizar a interpretação mais

“aceita” entre os historiadores ou a versão que ele considera

mais interessante passar no filme e, ainda temos que levar

em conta outras implicações.

- Como assim professor? - pergunta Angus.

- É fácil de entender. Um filme é produzido com um

objetivo: atrair pessoas para as salas de cinema e, assim,

trazer recursos financeiros que paguem o custo que o filme

teve para ser produzido e, o máximo a mais, que seria o

lucro. Para que isto aconteça, os roteiristas, produtores e

diretores muitas vezes acrescentam informações ou

personagens que de fato não existiram, para “melhorar” a

história e atrair o maior público possível. Por exemplo, em

Titanic, Jack e Rose não existiram. Além disso, muitas dessas

obras cinematográficas são patrocinadas por empresas que

tem seus interesses quanto aquilo que querem que seja

mostrado através das imagens.

Aquela informação atingiu a mente de Angus, como

se fosse uma tesoura picotando todo o conhecimento que ele

possuía sobre a história do navio e seu naufrágio. Estava

boquiaberto com toda aquela situação. E, o professor ainda

acrescentou:

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Questões crônicas 63

- Muitos livros fazem a mesma coisa, principalmente

quando os “profissionais” que os escrevem estão mais

interessados em atrair o público, preocupando-se menos em

“como lidar” com as fontes que possuem. E, não podemos

esquecer que as fontes, que um historiador ou um diretor

podem possuir, foram produzidos também com uma

intenção, que podem ou não serem devidamente condizentes

com os fatos aos quais estão relacionados.

- Bah professor, História é mais complicado do que

eu pensava. Sempre entendi que a História era uma só e

ponto.

- Ela não é simples, mas não é tão complicada assim.

Basta perceber que é a pluralidade de olhares que torna a

História ainda mais cativante.

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Questões crônicas 64

O trânsito, a chuva e…

A História (“Pra que serve?” Ou: “O que

eu tenho a ver com isso?”)

Prof. Mateus

HOVIA. E muito. O trânsito parecia

superar-se e tornar a cidade ainda mais

congestionável. As pessoas estavam

infelizes dentro do ônibus 184. Talvez porque

muitas se molharam. Ou porque chegariam

mais atrasadas do que de costume. Cada uma tinha uma

resposta ou, pelo menos, uma sugestão pro caos que ali

transbordava. Uns diziam que a culpa era do tempo, que

nunca chovia tanto assim em maio. Uma mulher disse que

era culpa do aquecimento global. Um idoso disse que era do

Chuvalsky, repórter da previsão do tempo que nunca

acertava nada. Uns estudantes disseram que a culpa era das

pessoas que jogavam lixo em qualquer lugar e que depois

entupiam as bocas de lobo. Uma mulher que levava seu filho

recém-nascido reclamava que o problema era a falta de

infraestrutura e saneamento que o governo não cumpria. Isso

sem esquecer os que afirmavam que era tudo coisa de São

Pedro que tinha acordado de mal humor.

Sentado num assento próximo da janela, João

rabiscava seu caderno. Surgiam navios, espaçonaves, zumbis e

C

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 65

carros de corrida. Enquanto olhava pela janela molhada

pensava na avaliação que o aguardava. “Prova de História.”

Pra que estudar História, hein? Pra que aquelas datas,

aquelas palavras difíceis, coisas que não existiam mais e

pessoas que já tinham morrido há tanto tempo que nem o pó

delas restava mais? Menos as múmias, que eram exceção.

Dessas ainda restavam faixas, embrulhando um cadáver

esquisito. Pra que isso tudo hein? Nem o seu vô existia

naquelas épocas.

Mais uma parada. Enquanto o

senhor que estava ao lado de João descia

junto a outros colegas para trabalhar

numa indústria das redondezas, outras

subiam no coletivo livrando-se

temporariamente do chuvaréu. Depois de

duas senhoras entrarem, João notou um

sujeito encharcado. “Nossa, coitado. Vai

ter uma gripe daquelas”, pensou. Depois de o sujeito arrumar

o cabelo e colocar os óculos, João o reconheceu. Era seu

professor de História!!

Não demorou a passar pela catraca, deixando uma

considerável soma ao cobrador pelo uso do transporte. O

professor avistou João e veio a seu encontro. Depois de um

sorriso, lhe disse “E então, João? Quanta chuva hein? Achei

que o mundo ia desabar. Posso sentar com você?”

Depois da confirmação de João a conversa continuou

sobre o tempo chuvoso. João disse que as pessoas

comentavam sobre o problema do congestionamento e que

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 66

ele, particularmente, não gostava quando chovia porque não

tinha aula de Educação Física. O professor riu do comentário.

Passaram a dialogar sobre alguns acontecimentos da escola.

João notou que o professor se interessou pelos desenhos de

seu caderno e disse que gostava muito de desenhos. Falou de

alguns personagens de histórias em quadrinhos que João

nunca tinha ouvido falar, mas que, de cara, pareceram

interessantes. João descobriu até que ambos torciam para o

mesmo time de futebol e tinham a mesma opinião sobre o

novo zagueiro: um grande perna-de-pau!

A conversa estava tão descontraída que João deixou

escapar: “Puxa, professor, você é tão legal, como que foi dar

aula de História, hein? Eta materiazinha mais chata!!”

Por um segundo que pareceu uma eternidade, João

suou frio e arrependeu-se do que disse. Afinal o professor

podia não gostar do comentário e ainda tinha uma prova

com ele em breve. Já pensou se ele descontasse a nota? Antes

que pudesse começar as desculpas, o professor começou a

falar. Dava pra perceber que ele sentia a necessidade de falar

sobre aquilo – e “de boa”. Ele contou que nem sempre gostou

de História. Falou que a História tem uma coisa engraçada:

quando não a entendemos ela parece não ter sentido algum,

como se fosse um amontoado de fatos que se sucedem;

porém, quando passamos a compreender pra que serve a

História, ela torna-se parte da nossa forma de pensar, vira

parte integrante de nossa vida.

E foi explicando...

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Questões crônicas 67

– Graças à História eu tenho hoje um olhar diferente

sobre as coisas, sabe? Você me falou sobre o modo que alguns

passageiros explicaram o problema do trânsito. Em certo

sentido eles estão corretos, embora provavelmente a melhor

explicação para o problema seja a questão da mobilidade

urbana: o crescimento desordenado das cidades, a exploração

do serviço de transporte público por empresas privadas e um

excessivo número de automóveis rodando, estimulado por

uma cultura que associa um volante a prestígio social.

Acontece que muitas destas pessoas estão tão mergulhadas

(melhor dizendo no dia de hoje: encharcadas) em seus

problemas que não se questionam sobre a razão de viverem

no mundo em que se encontram. Você notou os operários que

desceram? A fábrica em que trabalham está na iminência de

demitir muitos deles. Será que eles entendem o motivo disso?

Estarão resignados? Ou organizados para defenderem seus

direitos? E você, João? Você que está indo estudar, percebe o

quanto ir à escola pode fazer a diferença em sua visão de

mundo?

O professor continuou dizendo que só conseguimos

entender nosso mundo atual se estudarmos o passado. “O

mundo não “caiu do céu”, João. Este mundo é consequência

de escolhas que foram tomadas pelos seres humanos. Por

exemplo, eu nunca pego ônibus neste horário. Sempre pego o

próximo. Mas hoje, resolvi sair de casa mais cedo porque com

essa chuva o trânsito fica pior ainda. Se eu tivesse escolhido

pegar o ônibus no horário de costume teria chegado tarde na

escola e não conversaria com você agora.”

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Questões crônicas 68

- Puxa, é verdade professor. Eu pensei que era

coincidência, mas a gente só se encontrou por que você

escolheu um ônibus diferente. Mas diz aí, quando você

começou a gostar de História?

- Ora, eu comecei a me interessar pela História

quando descobri que faço parte dela.

- Faz parte dela? Como assim?

- Todas as pessoas fazem parte da História, João. A

História não é um assunto só de reis e generais. Imagina só:

olhe pras pessoas desse ônibus. Cada uma indo pra um lugar,

estudar, trabalhar. Uma desce, outra sobe. Uma com

guarda-chuva, outro com uma capa e um todo molhado

como eu. Muitas delas não sabem, mas são capazes de lutar

por um mundo mais justo, mais digno

para todos. É sobre isso que a História

trata. Os seres humanos no tempo. Não

para estudar o passado como

curiosidade; mas para entender o

passado, compreender o presente,

construir o futuro.

- Nossa professor que legal! Eu

nunca tinha pensado na História dessa

maneira.

- É. Pensar em que as coisas

poderiam ter acontecido de outra

forma nos ajuda a imaginar que

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 69

podemos ter um futuro bem diferente do nosso.

- Um futuro sem trânsito e sem uma fortuna pelo

“busão”, professor?

- É isso aí, João! Um futuro em que a chuva seja o

nosso maior problema.

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Questões crônicas 70

“Meu Brasil brasileiro, terrade

samba e pandeiro” Prof.ªMichele

UIZA estava super

empolgada, afinal de contas

era sua primeira viagem

internacional e como se não

bastasse, iria pra bem longe.

Finalmente liberdade e

independência! Enfim chegou o dia

em que seu sonho de estudar fora

ia se realizar. Sua bagagem tinha

de tudo um pouco, mas uma coisa não podia faltar, vários

cartões de memória com o máximo de músicas que pudesse

caber ali, além da memória do próprio iPhone! Era uma

adolescente, não poderia ficar dois segundos sem o fone no

ouvido era algo inconcebível.

De malas prontas e rumo a Finlândia!

Os dias se passavam muito rápido e Luiza tentava se

adaptar. A família que a acolheu já tinha recebido outros

intercambistas, mas era a primeira vez que recebiam uma

brasileira e todos faziam um grande esforço para que tudo

desse certo.

Ao longo de três semanas Luiza já estava se dando

super bem e até já tinha feito algumas amizades, na maioria

L

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 71

outros brasileiros que também estavam fazendo intercâmbio.

Tudo era novo, diferente e divertido, mas a saudade de casa

aumentava cada vez mais! Para matar a saudade, ela falava

com os amigos e a família que estavam no Brasil, a internet

era sua grande aliada! Assistia a alguns programas de TV,

que nem tinha muito interesse, mas ouvir o português lhe

fazia muito bem. Mas o que mais gostava mesmo de fazer era

ouvir as músicas que com tanto cuidado havia selecionado.

Apesar de seu gosto musical ser bastante eclético, ela tinha

incluído na sua playlist várias músicas brasileiras que

considerava as mais legais.

Num determinado dia, Luiza chegou em casa

pensativa, remoendo a conversa que tinha tido há poucos

minutos com uma finlandesa. Uma das novas amizades, mas

essa parecia promissora. Estava conversando sobre como seus

“jeitos de ser” eram diferentes, falavam sobre a língua,

comida e músicas, claro! O papo ia bem até que a nova

amiga pediu:

- Me ensina a sambar?

- Ih, não sei sambar! Fico te devendo essa...

- Como assim não sabe? Você não é brasileira?

- Sou e daí?

- Mas o Brasil não é a “terra

do samba”?

- Pode até ser pra muita

gente, mas não pra mim. Eu gosto de

ouvir algumas músicas, mas não é o

meu estilo musical preferido e nunca

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 72

me interessei em aprender a sambar. Aliás tem muita gente

no Brasil que gosta de outros tipos de música. Você já viu o

tamanho do meu país? Acha realmente que num país daquele

tamanho todo mundo gosta e sabe sambar? Nossa cultura

não se resume a isso!

- É, eu não tinha pensado nisso…

E a conversa seguiu com Luiza explicando para sua

amiga que nem todo mundo no Brasil sambava, pulava

carnaval ou jogava futebol.

Quando chegou em casa sentia-se incomodada e ao

mesmo tempo curiosa... “Ora, só porque sou brasileira tenho

que saber sambar? Esse “como não?” ecoava na cabeça de

Luiza e ela não conseguia se conformar porque as pessoas que

conversavam com ela, ao saberem que ela era brasileira

falavam sobre os mesmos assuntos: carnaval e futebol. Mais

do que isso, toda hora alguém se espantava porque ela não se

importava muito com essas coisas e isso a deixava cada vez

mais incomodada. “Ora, como era possível uma menina

brasileira não saber sambar?”Pra Luiza era muito estranho

perceber que as pessoas pensavam que no Brasil todos tinham

os mesmos gostos, como se isso fosse uma espécie de

obrigação já que “aquilo” representava o país. Então se

perguntava: “será que não sou brasileira de verdade?”

Mas, depois de muito pensar, percebeu que não era

menos brasileira porque não sabia sambar. Conhecia tanta

gente como ela e nem por isso se sentiam menos brasileiros.

Depois de passar por isso, entendeu como era ruim ser

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 73

rotulado por alguém. Mas, ainda ficou pensando sem achar

uma resposta: “Afinal de contas, quem foi que inventou esse

negócio de que o Brasil é o país do samba? Quando voltar

pergunto pra prof de História, vai que ela sabe!”

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Questões crônicas 74

Quem tem medo de museu? Prof.ª Nair

UEM tem medo de museu? Eu!! Tinha! Sim, eu tinha

muito medo de museu ou de qualquer coisa que

lembrasse gente morta ou que tivesse pertencido a

quem já morreu. O que é que tem num museu? Muitas coisas

que pertenceram a quem já está morto. E se o falecido

estivesse por ali cuidando do que era seu? Me arrepiava, só

de pensar que aquelas coisas poderiam se mexer ou sair

voando pelo lugar. Deus me livre! Bom, era assim que eu

pensava e sentia em

relação a museus.

Como eu disse,

tinha medo. Hoje não

tenho mais e quer saber,

gosto muito de museus!

Depois que aprendi que

aqueles objetos guardam

histórias, ou melhor, eles

podem nos contar histórias incríveis, fiquei tranqüila. Hoje,

gosto de passear em museus, de observar os objetos e

imaginar como seriam as pessoas que fizeram uso deles. O

que faziam? Como se vestiam? Como preparavam seus

alimentos? Sobre quais assuntos falavam? Com o que se

divertiam? E mais uma imensidão de perguntas.

Q

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 75

Os objetos expostos em museus ajudam a contar

histórias de um tempo que já passou, mas também ajudam a

entender o nosso tempo presente. Os aparelhos que

utilizamos em nosso cotidiano

estão profundamente

relacionados com diversos

objetos que estão em museus.

Quer saber? Vamos pensar no

celular nosso de cada dia.

Aliás, está cada vez mais

difícil viver sem ele.

Quando hoje fazemos uso do nosso celular para quase

tudo, precisamos imaginar que não foi sempre assim. As

cartas, as máquinas de escrever, o telégrafo, o telefone

enorme e antigo da casa da bisa (e que agora está no

museu!), foram todos objetos inventados pelo homem ao

longo tempo para que chegasse ao que temos hoje, o celular

altamente sofisticado. No celular, podemos imaginar que

cabem inúmeros objetos que antes existiam de modo

independente. Isso para pensarmos apenas em relação às

comunicações, mas podemos refletir sobre as vestimentas,

artefatos de cozinha, obras de arte, fotografia, arquitetura,

transportes e tudo o que

diz respeito à vida

humana.

Que alívio ter me

libertado do medo que

tinha de museu! Viu como

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 76

podemos aprender diversas coisas interessantes visitando um

museu? Ah, e tem mais. Você sabia que todos nós temos o

nosso próprio museu? Sim. O nosso museu afetivo. Todos nós

guardamos com carinho diversos objetos que chamamos de

‘lembrança’ ou ‘recordação’, objetos que são muito

importantes para nós e que fazem parte da nossa história. Só

para dar um exemplo: guardo comigo os cadernos que meu

avô utilizou para se alfabetizar, inúmeras cartas que minha

mãe me escreveu antes de existir e-mail, meus diários,

fotografias, peças de roupas e muitas outras coisas que gosto

muito e que fazem parte da

minha história. Você também

pode montar o seu museu

afetivo ou visitar um museu e

conhecer diversos objetos

interessantíssimos. Que tal?

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Questões crônicas 77

Minhas cápsulas do tempo (Minhas lembranças dão História?)

Prof.ªTamelusa

RA tarde, e uma caneca de chocolate quente me

aguardava em cima do balcão da cozinha ainda por

arrumar. Só de olhar aquela fumacinha que insistia

em subir pelo ar frio e cortante do inverno, já me sentia

aquecida. Naquela semana, minhas noites tinham sido assim:

café ou achocolatado bem quentinho, e muitas, muitas coisas

para retirar das caixas que se amontoavam pela casa.

Tínhamos acabado de nos mudar, e ainda faltava muito para

aquilo ter cara de lar.

Já havíamos nos

mudado muitas vezes,

mas fazia muito tempo

que não me sentia tão

bem, tão em casa. Sabe

aquelas vezes em que a

gente sente um perfume

que conhece, mas não

tem certeza de onde

sentiu pela primeira vez,

nem consegue identificar

de onde vem? Da janela

E

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 78

do meu quarto conseguia sentir aquele cheirinho gostoso que

vinha do jardim. Era cheiro de infância, me fez lembrar de

coisas que vivi na casa de minha vó.

Dividindo o tempo entre a escola e tudo que vinha

com ela – muito dever de casa, trabalhos e quilômetros de

matéria para estudar para as provas – eu ia tentando pôr

alguma ordem naquela imensidão de caixas, malas e sacos

plásticos espalhados no meu quarto. Minha mãe insistia para

que eu organizasse logo minhas coisas. E eu até concordava

com ela, afinal estava difícil encontrar aquela calça que eu

gostava tanto. Mas a preguiça estava tão entranhada em

mim, e eu tinha tanto sono...

O quarto era menor do que o da casa anterior. Como

eu era a mais velha de 3 irmãos, pude escolher entre ficar

sozinha em um quarto menor, ou dividir meu sagrado espaço

com um dos meus irmãos pestinhas. É claro que não é difícil

descobrir qual foi minha escolha. O caso é que agora tinha

que me desfazer de algumas coisas. Mas o quê?

Não imaginei que fosse tão difícil escolher o que

guardar e o que jogar fora. Sempre guardei tudo. Os bilhetes

declarando amizade incondicional, os diários e agendas que

fui acumulando desde a entrada na adolescência, o ticket

daquele show em que meu primeiro amor se revelou... Tudo,

absolutamente tudo era importante. Minhas recordações

ficavam guardadas em lugares diferentes, como se fossem

várias cápsulas do tempo que encerravam pedaços de mim.

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Questões crônicas 79

Mas algum critério eu tinha que adotar. Não era

possível manter tudo o que eu já tinha, e guardar o que

ainda estava por vir. Se eu não me decidisse logo, minha mãe

podia querer impor sua ordem de limpeza e ir juntando tudo

o que ela achasse que não prestava. E aí como eu ia garantir

minhas memórias? Ah, não! Eu precisava pensar logo nisso.

Então comecei a abrir as caixas, e olhar cada objeto

amarelado e empoeirado que guardei.

A primeira era bem antiga, ainda dos meus tempos

de criança. Não tinha muita coisa, porque a época era difícil

e eu não tinha muito para guardar. Meus pais não podiam

comprar muitos brinquedos. Daquele tempo, ficaram alguns

penduricalhos que não

sei por que guardei.

Além das bugigangas,

uma boneca. Mas não

era qualquer boneca.

Era a minha primeira

boneca, com a

roupinha original

ainda, e parecia muito com um bebê de verdade. Na minha

memória, eu passara um ano inteiro pedindo aquela boneca,

mas não tenho certeza. Sentia o tempo de um jeito diferente

naquela época.

Fui abrindo e fechando caixas, tentando decidir onde

eu concentraria meus esforços desta tarefa quase impossível.

Foi então que me deparei com uma caixa cheia de fotografias.

Tinha de tudo ali. Festas familiares (daquelas que reúnem

Mestrado Profissional em Ensino de História

Questões crônicas 80

todo mundo uma vez por ano), fotos dos meus amigos, de

atividades da escola, de lugares que visitamos... Tinha foto até

de gente que eu não lembrava mais quem era. Perdi a noção

do tempo, olhando

cada uma delas...

Mesmo não

sabendo quem eram

todos, acabei

deixando tudo lá,

como estava. Tinha

tanta coisa para

relembrar naquele quarto. Quem sabe, eu não acharia uma

pista que me ajudaria a lembrar quem eram e porque

naquele momento em que guardei os retratos, a história

daquelas pessoas se conectava com a minha.

Continuei por mais algum tempo a executar meu

plano de rever minhas recordações, e decidir o que manter

em minhas tantas cápsulas. Mas não deu para terminar

naquela noite. Vencida pelo sono, meus sonhos foram

embalados pela lembrança de um amor que ficara para trás,

perdido com outras coisas importantes que por vezes se

perdem nas mudanças. Um pedaço de papel rasgado, com

algumas frases que se pretendiam poesia escritas. Foi o que

bastou para recordá-lo. Este com certeza não seria

desprezado em uma lixeira...