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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA RACHADURAS SOLARESCAS E EPIGONISMOS PROVINCIANOS Sociedade e Cultura no Maranhão Neo-Ateniense: 1890-1930 MANOEL DE JESUS BARROS MARTINS Recife 2002

Rachaduras Solarescas e Epigonismos Provincianos Sociedade e Cultura No Maranhão Neo-Ateniense_ 1890-1930

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Manoel de jesus barros

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    RACHADURAS SOLARESCAS E EPIGONISMOS PROVINCIANOS

    Sociedade e Cultura no Maranho Neo-Ateniense: 1890-1930

    MANOEL DE JESUS BARROS MARTINS

    Recife 2002

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    RACHADURAS SOLARESCAS E EPIGONISMOS PROVINCIANOS

    Sociedade e Cultura no Maranho Neo-Ateniense: 1890-1930

    MANOEL DE JESUS BARROS MARTINS

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial, para obteno do Ttulo de Mestre em Histria, rea de concentrao em Histria do Brasil.

    Orientadora: Prof. Dr. Slvia Cortez Silva

    Recife 2002

  • Martins, Manoel de Jesus Barros Rachaduras solarescas e epigonismos provincianos sociedade e cultura

    no Maranho neo-ateniense: 1890-1930 / Manoel de Jesus Barros Martins. Recife, 2002.

    140 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal de

    Pernambuco, 2002. 1. Conhecimento Produo (Maranho 1890-1930) 2. Cultura

    Sociedade Maranho. I. Ttulo. CDD 001.098121

    CDU 001.9(812.1)

  • RACHADURAS SOLARESCAS E EPIGONISMOS PROVINCIANOS Sociedade e Cultura no Maranho Neo-Ateniense: 1890-1930

    MANOEL DE JESUS BARROS MARTINS

    Aprovada em ______/ _____/ 2002.

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________

    Orientadora: Prof. Dr. Slvia Cortez Silva Universidade Federal de Pernambuco

    _____________________________________________ Prof. Dr. Antonio Paulo de Moraes Resende

    ____________________________________________ Prof. Dr. Lourival de Holanda Barros

    _______________________________________________ Prof. Dr. Maria do Socorro Ferraz Barbosa (Suplente)

  • Para Zez (esposa), Gustavo e Manuella (filhos) e Preto Martins (pai), in memorian, figuras essenciais em minha vida.

  • O historiador algum a costurar panos rotos com agulha e linha novas; sempre que d um n, precisa recomear tudo novamente posto que o pano geralmente se rompe.

    Manoel de Jesus Barros Martins

  • AGRADECIMENTOS

    A todos aqueles que confiam em nosso crescimento intelectual, rendo preitos de

    gratido.

    Aos colegas do Departamento e da Coordenadoria de Histria, e aos alunos dos

    Cursos de Histria, de Turismo e de Biblioteconomia com os quais tenho a satisfao de

    compartilhar experincias e alegrias.

    Aos colegas da turma de Mestrado pelo convvio salutar, de enorme valia para

    minha formao intelectual.

    Aos professores do Mestrado: Antonio Paulo, Slvia Cortez, Marcos Joaquim,

    Marc Holfnagel, Mathias Assuno e Jorge Siqueira; e tambm Socorro Ferraz e Lourival de

    Holanda.

    Sou muito grato professora Slvia Cortez Silva, pela pacincia, pela orientao

    segura e pelo carinho.

    Aos colegas funcionrios do Arquivo Pblico e da Biblioteca Pblica Benedito

    Leite, com quem tenho o prazer de aprender a perscrutar os silncios, olvidos e tenses

    presentes na frieza das unidades informacionais, especialmente Ironilde, Heitor, Vilma,

    Helena Espnola, Rosinha, Joseane, Cludia, Ftima Matos, Luzimar e Carla Serro.

    queles que, de algum modo, contriburam para a realizao deste trabalho,

    especialmente a Nauro Machado, de cujas reflexes inspiradas coligi o ttulo deste trabalho.

    Sou muito grato amizade e ao incentivo constante dos professores Regina Helena

    Martins Faria, Jos Ribamar Chaves Caldeira, Sebastio Barbosa Cavalcante Filho, Joo

    Renr Ferreira de Carvalho e Maria da Glria Guimares Correia.

    Sou grato pelo incentivo constante de familiares e amigos como Pantaleo Barros,

    Ribamar Barros, Nerinha e D. Odete, Bento Barros e Sebastiana, Miguel Martins, Albino,

    Joo e Francinete Sampaio, Mauro Rego e Roberto Peixoto, Emanuela Ribeiro e Rosana

    Sousa, Lourdinha Mendes, Benedito Buzar, Maurcio Serro, Jomar Moraes, e tantas outros

    cuja enumerao, alm de intensa, pode resultar em injustia involuntria.

    Ao meu pai, Jos Sousa Martins (Preto Martins), que sempre acreditou na

    educao como fator de transformao social, e minha me, Francisca Rosa Barros Martins,

    que sempre vibrou contida com a elevao educacional dos filhos.

  • minha esposa, Zez Sampaio, e aos meus filhos, Gustavo e Manuella, agradeo

    a compreenso pelo inmeros momentos de convvio subtrados: a eles dedico este trabalho

    com amor e carinho.

    Enfim, UFMA, que propiciou a oportunidade para a realizao de um sonho

    acalentado pacientemente, e UFPE, atravs do Programa de Ps-Graduao em Histria,

    pela qualidade dos profissionais envolvidos.

  • RESUMO

    Anlise das representaes formuladas pela elite letrada maranhense acerca dos processos de

    decadncia material e de renovao cultural presentes na produo intelectual dos novos

    atenienses. Estuda-se a recorrncia do discurso da decadncia e do mito da Atenas Brasileira

    como elementos basilares das imagens produzidas sobre o Maranho. Discute-se a atuao

    dos novos atenienses, visando proceder a uma renovao cultural sistmica no Maranho,

    ancorada: por uma produo intelectual pondervel, versando sobre os mais diversos ramos

    do conhecimento e, em grande parte, sobre a realidade regional; por um ambiente editorial

    minimamente dinmico e responsvel pela publicidade da referida obra; por um espectro

    institucional variegado, paulatinamente constitudo como lugares de memria essenciais, at

    ento inexistentes; e por uma diversidade de eventos comemorativos e de interesses coletivos

    e setoriais da comunidade gonalvina.

  • ABSTRACT

    Analysis of the representations worked out by the learned elites from Maranho State about

    the processes of material decadence and of cultural renovation present in the intellectual

    production of the new Athenians. The reouccurrence of the decadence discourse and the myth

    of the Brazilian Athens as basic elements of produced images about Maranho are studied..

    The performance of the new Athenians are discussed, aiming at conducting to a systemic

    cultural renew in Maranho, supported by: a intellectual wary production about the most

    varied branches of knowledge and, in the majority, about the regional reality; by an editorial

    environment not so dynamic and responsible by the publicity referred in that work; by a group

    of varied institutions constituted as places of essencial memories, no existent up to that time,

    and by a variety of commemorative events and of colletive and sectorial interests of the

    timbira community.

  • S U M R I O

    INTRODUO ............................................................................................................ 10

    PARTE I - DA FLORESCNCIA DE ATENAS S RUNAS DE TEBAS ........ 13

    CAPTULO 1 MISSAS NEGRAS IMAGENS DA DECADNCIA ................... 13

    1.1 Clssicos fundantes................................................................................................. 13

    1.2 Epgonos perplexos ................................................................................................ 17

    1.3 Operrios da saudade............................................................................................ 27

    CAPTULO 2 - POR NUMES NOSSOS AVS O ITINERRIO ATENIENSE 51

    2.1 O tempo de Pricles ............................................................................................ 51

    2.2 Peregrines quimeras... em aladas paragens ..................................................... 57

    PARTE II OFICINAS DA RENASCENA ............................................................ 64

    CAPTULO 3 - A NOVA AURORA OS NOVOS ATENIENSES....................... 64

    3.1 Frutos Selvagens A produo intelectual .......................................................... 81

    3.2 Mosaicos Peridicos e editores .......................................................................... 92

    3.3 Minaretes As instituies ................................................................................... 95

    3.4 Harpas de fogo Os eventos ................................................................................. 99

    CONCLUSO............................................................................................................... 102

    REFERNCIAS............................................................................................................ . 103

    APNDICE .................................................................................................................... 133

    ANEXO .......................................................................................................................... 140

  • 10

    INTRODUO

    A presente dissertao, intitulada Rachaduras Solarescas e Epigonismos

    Provincianos Sociedade e Cultura no Maranho neo-ateniense: 1890-1930, tem por

    finalidade analisar as representaes projetadas pela elite letrada maranhense acerca dos

    processos de decadncia material e de renovao cultural atravs da produo intelectual dos

    novos atenienses, denominao esta dada aos intelectuais que dominaram o panorama scio-

    cultural inclusivo no perodo compreendido entre os anos noventa do sculo XIX e os anos

    vinte do sculo XX.

    Com efeito, nesse lapso de tempo, duas temticas deram substncia s

    representaes e reproduo intelectual, poltica e social dessa elite regional: o discurso

    monocrdio, por vezes, da decadncia e a referncia obrigatria ao mito da Atenas Brasileira.

    Ambas constituram-se em elementos basilares das imagens produzidas acerca do referente

    Maranho em sua trajetria, especialmente aquelas que focavam essa realidade espacial no

    lapso de tempo aludido.

    Por um lado, o discurso da decadncia formulado pelos membros dessa elite local

    no constitua enunciado novo, mas a continuidade de postura semelhante assumida por seus

    pares em outros contextos a partir do incio do sculo XIX, quase sempre associado idia de

    decadncia da lavoura. A elite referida, alis, vinculou sua anlise nessa referncia devido ao

    fato de essa atividade ser a responsvel fundamental pela produo da riqueza regional, a

    partir da qual ela retirava a seiva necessria para a sua reproduo material e social. Nesse

    sentido, os percalos sobrevindos lavoura repercutiam profundamente na vida maranhense,

    estimulando a produo de obras cujo objeto era entender a dinmica forjadora de espasmos

    de prosperidade seguidos de renitentes conjunturas de desnimo, de decadncia moral e

    material, como diziam.

    Assim, os intelectuais atuantes dentro do marco cronolgico proposto e da

    realidade apontada seguiam proferindo um discurso antigo sobre temtica antiga; a novidade

    ento residia nos mveis sobre os quais se assentava a anlise produzida. verdade que a

    decadncia da lavoura ainda repercutia sensivelmente, mas, nos parece, nesse momento a

    sensao de desnimo configurava-se bem mais abrangente; tratavam tais intelectuais de

    entender e discorrer sobre a complexa teia de runas materiais e morais que, concluam,

    estavam paralisando a vida maranhense, produzindo um cenrio de sombras crepusculares, de

    sombras enervantes.

  • 11

    Ora, um cenrio assim jamais se prestaria contemplao daqueles que se

    intitulavam os ldimos herdeiros da tradio mitolgica, nacionalmente referendada, que deu a

    So Lus o epteto de Atenas Brasileira. Ao contrrio, tal cenrio, destruindo energias,

    aniquilando vontades, esfacelando msculos, volatizava essa herana zelosamente cultivada

    pelos sucessores dos prgonos atenienses.

    Em verdade, esses intelectuais maranhenses viviam, por um lado, uma angustiante

    sensao de impotncia diante de tenebrosa fase que o Estado atravessa, fase de decadncia

    moral, intelectual e material. Por outro, buscavam reunir as ltimas foras disponveis e

    predispostas para intervir significativamente nessa realidade movedia. Assim, que, como

    diziam, remando contra a mar, encetaram um conjunto de aes que, no marco indicado,

    tinham como vetor arrancar o Maranho do letargo, da tristssima e caliginosa noite, que

    o recobria; de modo que ao cabo do perodo estudado possvel distinguir como resultados

    dessa iniciativa: 1) uma produo intelectual pondervel; 2) um conjunto aprecivel de

    peridicos e editores que dava publicidade a essa obra; 3) uma produo institucional

    significativa; e 4) a realizao de eventos fundamentais para integr-los.

    Essas aes tinham fim constituir um sistema cultural dinmico (ou como define

    Antonio Cndido, um sistema literrio), que possibilitasse a esses intelectuais reeditar a

    prodigalidade do mito ateniense, a qual, por conta da conjuntura desfavorvel em que se

    moviam, prolongamento de outras semelhantes, vinha sendo malbaratada e apoucada, quer

    pela emigrao recorrente dos seus mais expressivos luminares, quer pela morte das

    referncias seminais (os intelectuais do chamado Grupo Maranhense, instituidores da Atenas

    Brasileira), ou ainda pelo exlio forado de um bom nmero de intelectuais motivado por

    injunes polticas e por falta de perspectivas de sucesso profissional.

    Um trao de unio a dar relevo ao dos intelectuais neo-atenienses, tanto na

    produo intelectual quanto na constituio de instituies e ainda na organizao e realizao

    de eventos, foi a nfase dada anlise da categoria Maranho, categoria esta pensada,

    parece evidente, com o objetivo de inserir o Maranho nos escaninhos do concerto identitrio

    nacional.

    Assim definida a questo, o trabalho resultou organizado em duas partes: a

    primeira com dois captulos e a ltima com um captulo e quatro sees.

    Na primeira parte Da florescncia de Atenas s runas de Tebas , o objetivo

    perseguido foi estudar os variados aspectos da realidade maranhense, configurados pelos

    intelectuais neo-atenienses como imersos num ambiente de decadncia geral a sufoc-la, bem

    como as eventuais alteraes de sentido modernizador encetadas na realidade aludida. Alm

  • 12

    disso, analisou-se a instituio do mito da Atenas Brasileira no imaginrio social maranhense,

    como referncia recorrente no discurso dos intelectuais locais desde meados do sculo XIX.

    Na segunda parte Oficinas da Renascena , objetivou-se dar conta da

    interveno neo-ateniense na vida maranhense. Nesse sentido, estudou-se a produo

    intelectual por eles consolidada, buscando identificar aquelas obras baseadas no exame de

    aspectos da realidade regional, o universo editorial disponvel para dar publicidade a essa

    produo, o espectro institucional constitudo pelos novos atenienses como lugares de

    memria indicados para consagrar e legitimar os foros tradicionais da Atenas Brasileira e, por

    fim, a variedade de eventos levados a efeito pelos neo-atenienses para discutir problemas e

    interesses maranhenses e realizar comemoraes cvicas.

    Espera-se, alm de atender s exigncias do Programa de Ps-Graduao em

    Histria de UFPE, contribuir, mesmo modestamente, para o entendimento de aspectos da

    trajetria histrica maranhense relativamente negligenciados pela historiografia regional.

  • 13

    PARTE I

    DA FLORESCNCIA DE ATENAS S RUNAS DE TEBAS

    CAPTULO 1 - MISSAS NEGRAS IMAGENS DA DECADNCIA

    1.1 Clssicos fundantes

    Ao longo de sua trajetria histrica, a realidade maranhense foi objeto de ateno

    de variada gama de intelectuais, os quais fundaram suas obras obedecendo a motivaes,

    enredos e contextos os mais dspares possveis, em dia com a viso do mundo de cada um e

    com o lugar de onde enunciavam suas reflexes.

    Uma avaliao contempornea do produto dessa atividade possibilita a

    identificao de vrias temticas recorrentes no imaginrio desses intelectuais, que

    examinaram, superficialmente ou em profundidade, o recorte espacial denominado Maranho.

    A temtica da decadncia avulta nessa produo intelectual sobre o Maranho;

    constitui-se, sem embargo, em uma permanncia substantiva presente nessa produo.

    Seminal ou subrepticiamente, a noo de decadncia perpassa o mago da produo literria,

    econmica, poltica e cientfica; informou e perdura informando as mais distintas dimenses

    discursivas, crtica ou acriticamente, quando o referente Maranho foi definido como o objeto

    privilegiado de anlise.

    Com efeito, no Maranho, o discurso da decadncia remonta ao incio do sculo

    XIX como um dos enunciados emitidos por cronistas como Gaioso, Paula Ribeiro, Pereira do

    Lago, Xavier, Garcia de Abranches, entre outros. Suas interpretaes instituram um padro

    de explicao confirmado de maneira unnime pelos intrpretes posteriores (ALMEIDA,

    1983, p. 28). O referencial bsico desses cronistas era o perodo de fastgio vivenciado pelo

    Maranho em meados do sculo XVIII, aps a implementao de medidas de cunho

    modernizador sob a batuta do Marqus de Pombal. Para eles, a instituio da Companhia

    Geral de Comrcio do Maranho e Gro-Par, em 1755, significou a aurora da prodigiosa

    opulncia e engrandecimento desta Provncia (ABRANCHES, 1822, p. 6), pois a partir desse

  • 14

    evento data o princpio de sua prosperidade e da criao da sua riqueza territorial

    (GAIOSO, 1818, p. XXX).

    As representaes acerca da realidade maranhense, a partir da aurora dos

    oitocentos, se conformaram a exigncia de duas imagens gmeas fundantes dos discursos

    correspondentes: a um perodo de prosperidade sobreviria indubitavelmente um perodo de

    decadncia avassaladora, que deveria ser combatido por todos os espritos lcidos com vistas

    a um retorno no porvir a uma nova Idade do Ouro, da regenerao, dimensionada pelo influxo

    do exemplo da(s) antecedente(s), j que um estado de decadncia , geralmente, percebido

    aos olhares do presente de quem o sente e emite seu juzo, na perspectiva da idealizao de

    um passado mtico que deve ser imitado para produzir um futuro destitudo de possveis

    ocorrncias traumticas.

    Esses intelectuais fundaram uma periodizao determinante e duradoura para a

    histria regional; instituram um semiforo, a iluminar a construo intelectual dos seus

    sucessores. Por esse esquema, antes da Companhia de Comrcio, o Maranho vivera um largo

    perodo de indigncia em que a colonizao, ou se confundia com a gentilidade, ou com ela

    convivia em completa barbrie. Aps o estabelecimento dessa empresa monopolista, o cenrio

    mudou progressivamente: a regio foi definitivamente coartada aos meandros do mercado

    internacional atravs da exportao do algodo, transformando o padro de vida regional, at

    ento vegetativo. Por isso, passados mais de meio sculo, quando comearam a ganhar

    visibilidade os processos denunciadores de estagnao econmica na provncia, os lavradores,

    principalmente, passaram a emitir opinies exaltando aquele tempo primordial, aquele

    passado fundante do desenvolvimento da regio; a origem de uma poca de euforia. Era nesse

    sentido que eles orientavam as leituras encetadas para compreender a realidade presente,

    considerando que ainda hoje, muitos lavradores abastados, bendizem a fortuna e a opulncia

    de seus bens que tiveram sua origem naquela poca. (ABRANCHES, 1822, p. 7).

    A periodizao consolidada indica uma pr-histria colonial maranhense baseada

    na misria, na gentilidade, na barbrie, nula economicamente, seguida de um perodo de

    franca prosperidade, uma Idade do Ouro, cujo vetor foi a implantao do sistema agro-

    exportador; sucedido, enfim, por renitentes perodos de crises conjunturais indicativas de um

    estgio decadente no porvir.

    Tal esquema de pensamento, esposado por esse patronos e clssicos, orientou a

    produo intelectual de todo o sculo XIX e seguir fazendo proslitos durante o sculo XX.

    Tanto assim que, para os administradores provinciais do Maranho, a Idade do Ouro situou-se

    na conjuntura beneficiada pelas polticas de fomento pombalinas, desenvolvidas aps a

  • 15

    instituio da Companhia de Comrcio, posio essa que foi referenciada pela viso dos

    patronos e clssicos e corroborada por boa parcela dos intelectuais regionais, tanto no sculo

    XIX quanto no sculo XX.

    Para estes ltimos, intrpretes da tradio, as medidas adotadas pela coroa

    portuguesa, em conformidade com a poltica pombalina, concorreram para que o Maranho

    fosse sacudido da letargia em que vegetava desde as primeiras investidas de colonizadores

    europeus, no sculo XVII.

    Nesse sentido, com base na avaliao de Ribeiro (1990, p. 30), sob os auspcios da Companhia, a produo agrcola maranhense foi dinamizada. Buscava-se o fermento de todos os produtos [reiterados pelo comrcio internacional]: algodo, arroz, anil, urzela, caf, urucu, gengibre, etc. De todos esses gneros, o arroz e o algodo foram os que mais mereceram o incentivo da Companhia. So Lus recebia crditos, ferramentas e, principalmente, escravos.

    A realidade maranhense conheceu, pois, um perodo de franco progresso,

    traduzido, segundo concluiu Meireles (1980, p. 293),

    no enriquecimento material e no aprimoramento intelectual da sociedade, e culminaria, j no Imprio, no surgimento de uma elite fundiria e de uma nobreza rural que concederam ento provncia uma posio de primeiro plano no cenrio nacional, no s no campo econmico, como no poltico e no cultural.

    s snteses desses dois autores coevos, somam-se inmeras outras batendo na

    mesma tecla, posto que esse surto de progresso que o Maranho desfrutou nos ltimos

    quarenta anos do perodo colonial [...], todos os historiadores consideram notvel

    (VIVEIROS, 1954, p. 89), j que se trata do perodo em que ele passa a constituir-se

    realidade econmica pondervel. (TRIBUZZI, 1981, p. 13).

    Analisando essas interpretaes, observa-se que aquela manifestada por Meireles

    (1980, p. 296) aponta para uma outra Idade do Ouro, divergente daquela configurada pelos

    demais intelectuais. Esse autor concluiu que o Imprio, repetimos, foi a Idade do Ouro do

    Maranho, no obstante quando em vez os azares da balana comercial, as altas e baixas

    inesperadas do algodo [...]. Essa avaliao levou em conta o sucesso granjeado nesse

    perodo pelo denominado Grupo Maranhense da literatura brasileira, constitudo por um

    considervel nmero de intelectuais regionais que conseguiu projeo nacional, fundando

    uma tradio onipresente na vida maranhense, o mito que elevou a provncia condio de

    Atenas Brasileira.

  • 16

    Enunciadas a partir da metade do sculo XX, portanto, a uma pondervel distncia

    temporal e obedecendo a motivaes conseqentes ao contexto histrico do autor, as

    concluses de Meireles deslocam o problema da decadncia conforme percebida pelos

    contemporneos do sculo XIX, estipulando que o Maranho imperial, em verdade,

    constituiu-se uma continuidade dinmica, perpassada, evidentemente, por transformaes,

    mutaes e crises decorrentes da natureza do sistema econmico em que estava inserida a

    realidade regional.

    Ora, durante o sculo XIX, a estrutura econmica maranhense esteve assentada na

    proeminncia espasmdica de trs produtos primrios: o algodo, o acar e o arroz. Os dois

    primeiros sempre estiveram na dianteira da pauta de exportaes e o ltimo patinou em

    posio intermediria. O volume e o valor das exportaes definiam-se ao sabor das

    oscilaes do mercado externo.

    De qualquer modo, a agro-exportao desses e de alguns outros produtos

    primrios, propiciou, nos momentos de alta, a acumulao de capital que permitiu a opulncia

    do senhoriato maranhense vinculado tanto produo quanto circulao de bens.

    Fazendeiros e comerciantes imprimiram, pois, os rumos da sociedade provincial

    maranhense conforme seus interesses. Dominaram todos os poros dela, impregnando nos

    demais segmentos sociais a noo de pertencimento a uma realidade estabelecida sob o

    princpio democrtico da participao igualitria, apesar da escravido e do latifndio, por

    exemplo.

    Nessa tarefa, a elite intelectual desempenhou um papel de grande eficcia para o

    enraizamento desse suposto, j que no colocava em discusso as caractersticas

    contraditrias que davam substncia a essa mesma realidade.

    Ento, apesar das transformaes observveis no decurso do sculo XIX, a espinha

    dorsal do sistema mantenedor daquela estrutura social (e da viso de mundo que lhe foi

    correlata), praticamente permaneceu ao abrigo de eventos contraditrios de sua pertinncia.

    As crises evidentes nesse perodo representavam desajustes pontuais motivados externamente,

    que, em ltima anlise, no denunciavam problemas originrios da prpria debilidade com

    que o sistema agro-exportador maranhense se armava para atuar em contextos mais amplos e

    complexos.

  • 17

    1.2 Epgonos perplexos

    A partir da segunda metade do sculo XIX, especialmente no ltimo quartel, elite

    intelectual e classe dirigente maranhense no restavam dvidas de que o cenrio que se lhes

    apresentava, adquiria contornos mais definidos pela ocorrncia de vrios processos

    traumticos que culminaram na abolio da escravido, na queda da monarquia, na derrocada

    da agro-exportao e no corolrio de problemas deles decorrentes.

    Quatro importantes intelectuais regionais captaram magistralmente a essncia da

    sensao de decadncia vivenciada pela sociedade maranhense naquele contexto: Miguel

    Vieira Ferreira, Alexandre Tefilo de Carvalho Leal, Fbio Alexandrino de Carvalho Reis e

    Joo Dunshee de Abranches Moura.

    Miguel Vieira Ferreira

    Enunciadas na segunda metade da dcada de 1860, as reflexes de Vieira Ferreira

    constituram-se um exerccio analtico-crtico dos indicadores do progresso material da

    provncia, efetuado atravs da crtica sensata e commedida que produz a correo dos

    costumes, baseando-se no maior nmero de informaes exactas sobre o seu estado actual.

    (FERREIRA, 1866, p. 3-4).

    Suas anlises levaram-no a detectar um quadro de decadncia larvar a corromper

    historicamente o nimo dos mais variados segmentos sociais constituintes da realidade

    observada. Mesmo assim,

    tem-se feito alguma cousa e os espritos mais ou menos vacilantes vo dirigidos nesse rumo, mas o que se tem abandonado completamente o meio de fazer applicaes em vista das circunstancias locaes, e moraes em que nos achamos. Seguramente por isso, avaliava, tudo entre ns misria! A populao vive como uma tribu selvagem, sem morada certa, sem costumes e sem lei. (FERREIRA, 1866, p. 10-11).

    Efetivamente, a situao configurada exigia a ateno de todas as fraes da

    sociedade para o clima movedio incrustado no seio daquela mesma sociedade.

    Considerando o cenrio desconfortvel, objeto de suas inquietaes, passou ele a

    elencar os mveis da decadncia. Intuiu tratar-se a realidade regional de um caso sui-generis,

    pois, a despeito de uma natureza ubrrima, privilegiada em vrios aspectos, a falta do capital

    monetrio e, principalmente, de capital moral, concorria para que a provncia no ingressasse

  • 18

    vantajosamente nas vagas modernizantes observadas em outras realidades historicamente

    semelhantes. Conclua, enfim, que desta ltima falta dimana todo o nosso atraso.

    (FERREIRA, 1866, p. 9).

    Essa, alis, foi uma providncia muito presente nas posturas da elite intelectual do

    sculo XIX no Maranho: enumerar as carncias provinciais para apontar as solues

    entendidas com adequadas. Nessa tarefa, concordando com os cronistas j referidos, Ferreira

    detectou ter esse cenrio decadente se insinuando com maior visibilidade a partir da fase

    inicial do sculo, quando o Brasil j tornara-se um Estado nacional, dado que durante o

    perodo em que vigorara a situao colonial, mesmo com as restries impostas pelo

    exclusivismo metropolitano, nesse tempo eram menores os males de que nos devemos

    queixar. (FERREIRA, 1866, p. 10).

    O problema da decadncia ganhava contornos mais dramticos, segundo ele,

    porque, a par da uberdade natural que distinguiu o Maranho com um territrio frtil, uma

    topografia regular, uma hidrografia exuberante, situando-o a meio caminho do progresso,

    defrontava-se a provncia com a indolncia e a frouxido incrustados no carter do

    maranhense, como poderosos inimigos do progresso, como renitentes obstculos que

    temos a vencer para deixarmos de ser brbaros (FERREIRA, 1866, p. 12).

    Assim, se nos pases civilizados a relao capital/trabalho j havia sido

    equacionada, restando-lhes resolver os problemas relativos oferta de bens naturais, aqui esse

    problema no se apresentava, a questo vital que se impunha era a elaborao de um espectro

    legal para, definitivamente, disciplinar as relaes de trabalho, pois, se a provncia ainda no

    havia alcanado padres civilizados no mundo do trabalho, era porque a preguia molstia

    indemica entre ns, pelo que por toda parte a nossa ndole a mesma, todas as classes

    participo de mesma indolncia..., exceto alguns poucos homens empreendedores e o

    segmento dos comerciantes. (FERREIRA, 1866, p. 14).

    Da elite intelectual ao povo, todos estariam contaminados por esse desideratum,

    medida que os mathematicos se contento em saber resolver uma equao, os mdicos em

    applicar as receitas usadas na Europa, os legistas em ler alguns escriptores estrangeiros, os

    jornalistas em fazerem seus artiguinhos, e o povo em dormir bem e trabalhar o menos que for

    possvel. (FERREIRA, 1866, p. 14).

    O combate ociosidade revestia-se para ele em um aspecto relevante, posto que se

    fossem engendradas oportunidades para que a valorizao do trabalho se fortalecesse, a

    realidade forosamente mudaria para melhor e as pessoas j no se contentariam apenas com

    os reflexos mais comezinhos do seu interesse profissional ou de sua labuta diria.

  • 19

    Em suma, as causas basilares do atraso, da runa, da decadncia, inibidores do

    progresso material do Maranho, seriam: falta de braos activos, ou de trabalhadores; falta

    de capital moral, ou de educao verdadeiramente artstica e industrial; e falta de capital

    numerrio (FERREIRA, 1866, p. 42). Dessas faltas decorreria o estado letrgico sentido por

    todos. Entretanto,

    Si a nossa provncia possusse um grande n. de homens instrudos de forma a promover o progresso material, este se apresentaria foroso e rapidamente; porque, havendo tanto em que enriquecer em Maranho, e no existindo uma s pessoa que mais ou menos no ambicione os bens da fortuna, claro que se fazia a concurrencia a todos os ramos de industria hoje existentes, e que por toda parte se apresentario novas empresas. (FERREIRA, 1866, p. 38).

    Todavia, a realidade assim no se apresentava. Ao contrrio, pois

    nesta mesma provncia, ha 30 annos atrs, todo o publico considerava completamente louco aquelle que se lembrasse de metter-se numa empresa, ou que fallasse em maquinas; hoje ajuda-se a bem morrer. J incontestavelmente um passo para o progresso. (FERREIRA, 1866, p. 42).

    A timidez do vetor rumo ao progresso era que fazia com que ganhasse mais fora a

    conclamao formulada por um intelectual, como ele, visceralmente impregnado pela

    ideologia liberal burguesa. Em sua avaliao, a livre concorrncia poderia transformar a

    provncia arruinada numa realidade dinmica, progressista e civilizada. Bastava para isso ser

    alicerada em, pelo menos, trs elementos estimulantes da ativao econmica perseguida: a

    organizao do mundo do trabalho; a disseminao de mecanismos para a consecuo de

    capital moral; e a montagem de estrutura creditcia eficiente para promover emprstimos a

    longo prazo.

    Sua definio por semelhante postura era resultante de ter ele concludo que a

    lavoura, tal como desenvolvida historicamente na provncia, no tinha sada, estava

    condenada a retrogradar sempre, visto que, empregando macia quantidade de brao escravo,

    inibia o aparecimento de demandas por braos livres e, mais para o mago da questo,

    concorria para enraizar ainda mais a averso ao trabalho manual, vigente em amplas faixas

    dos segmentos livres da populao.

    Ferreira foi enftico ao apontar a lavoura como a atividade responsvel pelo atraso

    observado no Maranho, principalmente considerando no ter a provncia capital moral para

    desenvolver essa atividade conforme as concepes mais atualizadas naquele tempo. Por isso,

    problematizava, se o fazendeiro maranhense fosse um empreendedor, antes de tudo, utilizaria

  • 20

    racionalmente os elementos a seu dispor: a escravaria e o capital monetrio. Entretanto,

    faltava-lhe o capital moral, isto , conhecimentos especializados suficientes e eficientes para a

    organizao de seus empreendimentos em bases capitalistas. Portanto, os lavradores so a

    prpria causa de seu atraso; porque se conhecessem o que acabo de dizer, mandariam sempre

    algum filho colher esse capital que lhe falta..., ou na Europa, ou mesmo em escolas

    especializadas j existentes no Brasil. (FERREIRA, 1866, p. 44).

    Enfim, concluiu Ferreira (1866, p. 108-109): Tudo est parado, mas a penna

    move-se [...], a populao ainda est desorientada, quer progredir mas no sabe como. Urgia,

    pois, que surgisse um luzeiro, um pharol que lhe mostrasse o caminho da perfectibilidade,

    para que ella o podesse seguir. Tratava-se de diagnstico baseado na constatao angustiante

    de que a volubilidade a caracterstica dos filhos desta paiz e, particularmente, dos

    nascidos no Maranho, que produzia aprecivel nmero de talentos literrios, poucos afeitos

    problematizao de temticas relativas elevao material da provncia.

    A volubilidade endmica do maranhense para o trato de questes associadas

    dinamizao do mundo material respectivo sobressaa-se porque:

    o nosso esprito pouco profundo, o nosso typo o da indolncia e fraqueza mental, e por isso mesmo o da superficialidade; contentamo-nos em geral de illudir o publico [...]; entre ns escreve-se muito, muito se projeta, mas no se escrevem obras, nem se fazem trabalhos desenvolvidos [...], no h firmeza ou plano assentado; comea-se hoje para tudo ser amanh abandonado. (FERREIRA, 1866, p. 107-108).

    A julgar por essa avaliao no causava surpresa ao autor o estado de

    degenerescncia identificado em amplos setores da provncia do Maranho. No havia nela, a

    partir dos seus luzeiros, o esprito de continuidade que possibilitasse a criao de condies

    para o acmulo de experincias, da seiva necessria, para nutrir as empreitadas orientadas

    para um futuro progressista antpoda ao estado geral de decadncia aniquilador das

    potencialidades provinciais.

    Alexandre Tefilo de Carvalho Leal

    Com uma produo intelectual publicada fundamentalmente atravs da imprensa

    local, Carvalho Leal sempre tematizou a regenerao econmica do Maranho. Para ele, a

    recuperao da agricultura deveria ser uma preocupao constante dos agentes econmicos e

    dos governantes. Asseverava que a recuperao econmica maranhense passava pela equao

  • 21

    de vrios problemas, a saber: a persistncia e a proeminncia da mo-de-obra escrava; as

    distncias cada vez maiores das terras frteis; a dificuldade de obteno de produtividade na

    lavoura, visto os processos produtivos arcaicos; a tributao demasiada dos produtos da

    exportao; e a concorrncia internacional desfavorvel ao produto local.

    Suas preocupaes ganharam concretude na forma de um plano progressista

    tendente a promover a recuperao econmica do Maranho. Por esse plano propugnava:

    A prosperidade da reforma radical dos processos seguidos at hoje: Na oportunidade transformando a pequena cultura do brao do homem, na grande cultura mechanica; substituindo o systema nmade ou alternativo pelo systema intensivo das culturas continuas a produo limitada pela produo indefinida e sempre crescente: Na fabricao do aucar rejeitando de uma vez para sempre o systema jamaiquino de taxas esphericas fogo nu, e adaptando resolutamente a fabricao racional por meio do vapor e das caldeiras a vacuo em engenhos de aucar de um proprietrio se for bastante rico para o manter; em engenhos por associao reunidos os seus capites esforos de trs ou mais senhores de engenhos; engenhos por empreza sob a forma de engenhos centraes, que a ultima palavra dita no assumpto, porque alm de ser a suprema associao, realisa na lavoira de canna, o fecundo principio da diviso do trabalho. (LEAL, 1875, p. 7).

    As idias centrais de Leal, presentes tambm no plano proposto, indicavam uma

    interveno acentuada na organizao da agricultura em moldes mais coerentes com os

    ltimos progressos desse ramo de atividade. A continuar como historicamente se reproduzia,

    como participar com vantagem no mercado externo?

    Envolvido por tais preocupaes e como um expressivo integrante da elite nativa,

    atento s transformaes que se processavam, Leal, em artigo veiculado atravs do peridico

    local, avaliava estupefato a conjuntura crtica que abatia o nimo dos seus conterrneos,

    formulando interrogaes inquietantes:

    Tudo definha! Tudo esmorece! Tudo cahe aos pedaos!... Porque casos de fortuna acontece que esteja em dissoluo esta bela provncia, quando por todas as manifestaes do esprito, por suas empresas, e at mesmo por suas corajosas tentativas de melhoramento, e progresso nos diversos ramos de actividade humana ela das primeiras dentre as mais cultas e adeantadas provncias do Imprio!? De onde vem? (LEAL, 1876, p. 140).

    Esse trecho candente revela a sensao de desconforto vivenciada no s pela elite,

    mas tambm pelos mais variados segmentos da sociedade inclusiva nas dcadas finais do

    sculo XIX. Sensao decorrente do definhamento, do esmorecimento, da queda dos padres

    de prosperidade e de crescimento econmico conquistados em tempos de euforia, em pocas

    de fastgio, de fausto, em perodos de ativao econmica e de supervit comercial. Por outro

    lado, tanto denunciava as incertezas proporcionadas por cenrios polticos em construo,

  • 22

    quanto apontava o declnio de uma produo cultural fundada em todas as manifestaes do

    esprito, motivado pelo desfalque corriqueiro de expressivo nmero de membros da elite

    intelectual, por morte ou por emigrao, caractersticos do recorte temporal aludido.

    Evidentemente, um cenrio assim configurado, onde Tudo cahe aos pedaos!...,

    traduzia-se em oposio flagrante aos tempos em que a realidade concreta apresentava nveis

    de progresso nos diversos ramos da actividade humana e por todas as manifestaes do

    esprito, que proporcionaram ao Maranho ser considerado uma das primeiras dentre as

    mais cultas e adeantadas provncia do Imprio. (Jornal da Lavoura, 15 de julho de 1876, p.

    140).

    sonante e custica a interrogao que no parava de reverberar: Porque casos de

    fortuna acontece esteja em dissoluo esta bela provncia...? Interrogao incmoda a

    convocar melancolicamente todos aqueles que, por suas corajosas tentativas de

    melhoramento e progresso nos diversos ramos de atividade humana, se dispusessem a

    investir concretamente naquela realidade combalida, visando descortinar solues para o

    presente, que projetassem um futuro informado pelas excelncias de Idades do Ouro

    precedentes, particularmente aquela que instituiu o semiforo mais caro para a

    intelectualidade gonalvina coeva: o ttulo distintivo de Atenas Brasileira.

    A incredulidade de Leal deixa claro que a sensao geral de derrocada material e

    cultural podia ser atribuda falncia do modelo operado para estancar e debelar as crises

    conjunturais experimentadas pelo Maranho durante o Imprio. Os recorrentes

    melhoramentos materiais e morais, definidos como solues duradouras para exigncias

    antigas, constantes na maioria dos planos de governo provinciais, a partir da dcada de 1840,

    no foram suficientes e eficientes para inverter a lgica dos problemas que acometiam a

    provncia e do modelo de reproduo da sociedade inclusiva.

    Fbio Alexandrino de Carvalho Reis

    J a obra produzida por Reis, constituiu-se de um conjunto de cartas endereadas

    de Recife a um amigo residente em So Lus, publicado atravs do Jornal O Paiz, em 1877, a

    seguir reunidas e publicadas em folheto.

    O objetivo capital era analisar as causas gerais da decadncia que solapava os

    alicerces econmicos, sociais e morais da provncia. Com efeito, como pintou o autor, o

    cenrio maranhense vinha sendo descripto com as cores mais contristadoras,

  • 23

    particularmente pelos nossos comprovincianos que se ausentam da patrio ninho em busca de

    melhor sorte. (REIS, 1877, p. 5).

    Tal como Ferreira, Reis invocou a prosperidade colonial para realar a decadncia

    coeva, isto , repetiu os marcos cronolgicos estabelecidos pelos cronistas. De outro lado,

    como Ferreira e Leal, demonstrava incredulidade quanto ao estado letrgico que mirava as

    entranhas da provncia, considerando que ela foi aquinhoada pela natureza com excelente

    mesopotmia, com terras frteis, prprias para toda a sorte de culturas, com imensos campos

    de criar, naturalmente estabelecidos em quase todo seu territrio, e com condies climticas

    equilibradas, inibidoras de secas violentas como as do serto oriental brasileiro.

    Alm disso, devia-se acrescentar as condies favorveis navegao fluvial ou

    martima, tendo como plo o porto de So Lus, que conjugava a riqueza nativa quela

    procedente de outras regies ou pases. Ademais, por constituir-se um territrio agraciado

    com um equilbrio natural entre secas e inundaes, foi ele pousio final de grande parte das

    populaes das provncias vizinhas acometidas pelas secas tradicionais.

    Por tais razes, a ele parecia incrvel que uma provncia em taes condies de

    prosperidade, possa ter chegado ao estado acima descrito (REIS, 1877, p. 6). Eis uma

    constatao deprimente, mas, principalmente, incmoda para um rebento da elite regional,

    informado por tradies inventadas e cristalizadas em torno da proeminncia do estrato social

    a que pertencia e da valorizao das atividades por ele desenvolvidas no seio da sociedade

    regional.

    Nestes termos, Reis atribua-se o dever de examinar a situao reinante para

    apontar as causas de tanta runa e misria, com vistas proposio de alternativas de combate

    e superao delas. Talvez por isso, pateticamente, lanou mo de um questionamento crucial

    firmado por uma imagem polissmica: Devemos quebrar o remo e deitar-nos no fundo da

    canoa, como o ndio que no pde lutar contra a corrente; ou, tomar s costas os ossos dos

    nossos maiores e ir levantar novas tabas longe da terra natal? (REIS, 1877, p. 6) (grifo

    nosso). Definitivamente, no, conclua. Urgia, sim, que todos se irmanassem em luta titnica

    para que o Maranho fosse sacudido da paralisao evidente e pudesse ser um reflexo positivo

    de pocas pretritas em que o fausto foi a tnica e as crises, porventura detectadas, somente se

    coadunaram com conjunturas especficas.

    Imbudo de idias positivas, apontava ele o desalento, a inrcia, a resignao

    muulmana, como os vetores, por excelncia, da runa maranhense, o que contrariava a

    essncia do tempo presente, afinal o sculo [XIX] da atividade e da energia, e quem se

    deixa ficar atraz, precipita-se na runa total. (REIS, 1877, p. 7)

  • 24

    Para Reis estava claro que dois processos desenvolveram-se no interior da

    sociedade regional. De um lado, nenhum dos intelectuais coevos tinha dvidas quanto ao

    estudo de decadncia material e econmica da provncia; por outro, no que respeita ao estado

    moral, a provncia do Maranho levava as lampas a muitas de suas irmans (REIS, 1877, p.

    8), pois contava com um legado inolvidvel em todo o Brasil: o qualificativo de Atenas

    Brasileira.

    Este patrimnio, fruto de um brilhante e multifacetado grupo de intelectuais

    regionais, passou a constituir-se um luzeiro, uma fico orientadora, um semiforo, para

    epgonos, como Reis, remanescentes do grupo primacial e novos prgonos, objetivando

    salvaguard-lo de eventos solventes do esforo de perpetuao das tradies regionais. Assim,

    se o dia do desalento a vespera da runa (REIS, 1877, p. 9), concitava ele a todos para um

    esforo comunitrio capaz de reverter o estado material degenerado, tomando como referncia

    o patrimnio moral legado pelos prgonos atenienses.

    Raciocinando acerca das causas capitais de decadncia maranhense, Reis (1877, p.

    10) definiu aquelas passveis de equao. Seriam elas: a extino do trfico negreiro; a

    depreciao do preo do algodo motivada pela concorrncia desnivelada com os Estado

    Unidos; a abolio de maximum do juro, de acordo com a lei de 24 de setembro de 1832; o

    comrcio direto com outras partes do pas e com o exterior, realizado, agora, pelas provncias

    do Par e do Piau; e o comrcio interprovincial de escravos.

    Com efeito, esses mveis, conjugados, concorreram, sobremaneira, para por

    remate obra de decadncia (REIS, 1877, p. 10), de sorte que se a provncia no sucumbiu

    de todo foi devido favorabilidade das condies naturais e, de certa forma, atuao

    referencial de alguns poucos espritos clarividentes, que passaram a intervir na realidade

    concreta sob parmetros modernos, em dia com as tendncias progressistas em voga.

    Enfim, a obra fundada por Reis constituiu-se em esforo orientado para a elite

    regional, objetivando conclam-la para fazer frente aos eventos ruinosos, que dilapidavam o

    Maranho como um todo. Da porque lanou uma convocao incisiva:

    Accordemos do lethargo emquanto tempo, pois j nos achamos a dous passos do abysmo; e preciso transpol-o ou cair nelle, [afinal] o que diro de ns os nossos vindouros, quando souberem que recebemos dos nossos antepassados este bello torro prospero e fluorescente e lho legamos empobrecido e decadente, por falta de iniciativa, de actividade e energia? (REIS, 1877, p. 21-22).

  • 25

    Imagens desconfortveis para intelectuais como Reis que respaldavam seu livre

    pensar em patrimnio familiar e pessoal mantido e acrescido com a riqueza oriunda da

    lavoura.

    Joo Dunshee de Abranches Moura

    Outro intelectual envolvido com o exame de estado delicado da provncia do

    Maranho e das causas da sua decadncia, no final do sculo XIX, foi Dunshee de Abranches.

    A memria que apresentou Associao Comercial do Maranho, em 1888,

    motivada pela abolio da escravido e intitulada Transformao do Trabalho, versava

    sobre a necessidade de o Maranho adotar medidas urgentes para transformar as relaes de

    trabalho historicamente vigentes, adotando relaes outras de cunho capitalista, embora ainda

    eivadas de referncias extradas da herana tradicional.

    Constituiu-se a obra de duas partes: a primeira objetivou remontar a trajetria

    histrica da agricultura maranhense, diagnosticando as conjunturas de prosperidade e de

    recesso, bem como as iniciativas envidadas para fazer frente aos recorrentes quadros de

    estagnao verificados; a outra, apresentava um plano para a redeno das relaes de

    trabalho, apontando medidas que deveriam ser tomadas pelos lavradores, pela Associao

    Comercial e pelo governo, de modo a debelar a paz, a calmaria podre, que envolvia toda a

    sociedade inclusiva, minando suas ltimas energias, aps a desorganizao do mundo do

    trabalho baseado em relaes escravistas.

    A periodizao utilizada por Abranches, em seu esforo de reconstituio

    histrica, foi a tradicionalmente eleita pela maioria dos intelectuais maranhenses. Ou seja,

    identificou a Idade do Ouro da economia maranhense no perodo subseqente instituio da

    Companhia de Comrcio de inspirao pombalina, quando ocorreu notvel engrandecimento

    da provncia, estimulado pelo sucesso alcanado pela poltica de investimentos efetuada pela

    Coroa atravs da Companhia.

    Esse engrandecimento, contudo, no suportou ecloso de processos antitticos a

    sua estruturao primordial baseada na agroexportao. Assim, como todos os edifcios

    grandiosos que so construdos sobre alicerces podres, cedo chegou a runa, [pois] a crise

    da lavoura tornou-se aterradora e quase arrasta em uma queda fatal o nosso commercio, ainda

    nascente, porem cheio j de animao. (ABRANCHES, 1888, p. 17).

    A constatao fundamental do autor era de que a lavoura maranhense, baseada

    visceralmente na escravido, no estimulava a constituio de defesas endgenas eficientes

  • 26

    para sustar as crises histricas de que regularmente era acometida; ao contrrio, dependente

    do brao escravo, neutralizava iniciativas inspiradas em moldes progressistas.

    Lembrava ele que j em 1821, um ancestral seu, Joo Antonio Garcia de

    Abranches, advogara junto aos lavradores [para] que libertassem os seus escravos mediante

    prestao de servios durante alguns anos (ABRANCHES, 1888, p. 18). Todavia,

    semelhante observao no ganhara eco entre produtores rurais motivados por falsas

    conjunturas de euforia e acostumados a administrar suas lavouras escudados pela onipresena

    do cativo.

    Essa foi uma imagem permanente na trajetria maranhense durante o sculo XIX:

    de um lado, alguns emitiram notas dissonantes no meio do concerto da escravido, notas que

    pareciam perder-se nas florestas virgens e incultas do nosso solo [...] (ABRANCHES, 1888,

    p. 18), e de outro, a imensa maioria dos lavradores, senhores de escravos, aferrados ao uso do

    brao escravo para a construo de sua riqueza e manuteno de seus privilgios.

    Assim, embalada por eventuais sucessos e por crises corriqueiras, a provncia do

    Maranho,

    estacionria h muitos annos, em uma decadncia latente, enfraquecida todos os dias em suas fontes produtoras, nicos elementos de assimilao para sua prosperidade, [...] permaneceu longamente em um torpor profundo, e s tarde despertou de seu perigoso lethargo. (ABRANCHES, 1888, p. 11).

    A elite regional enfrentava as crises costumeiras e a decadncia crescente, quase

    sempre, rechaando os vetores orientados para cenrios marcados pela idia de progresso.

    Nesse sentido, lembrava Abranches, dava um peso muito grande resoluo dos problemas a

    partir da ao dos poderes pblicos, no alimentando grandes esperanas na iniciativa

    particular. Teria sido literalmente provinciana ao reputar como investimento de monta em

    infra-estrutura as anuais desobstrues dos leitos dos rios principais, ao invs de atuar com

    vistas fundao de uma malha viria intermodal para permitir a circulao da riqueza do

    corao da provncia, no s atravs da navegao fluvial, mas atravs de quaisquer outro

    meio de transporte, igualmente ou mais eficiente.

    A salvao para a decadncia endmica, voltava a afirmar o autor, seria uma ao

    incisiva da iniciativa privada. Ela se fez sentir, espasmodicamente, em vrias conjunturas

    estacionrias, mas o malogro de vrios projetos importantes acrescentou mais desnimo s j

    combalidas energias provinciais. Por isso,

  • 27

    o Maranho [...], arrastado nessa corrente poderosa [...], como um lenho que no pde resistir a impetuosidade da vaga que o arrebata [...], no preparou-se para [...] ver brotar os rebentos do seu engrandecimento[...], [decorrentes da] revoluo parcial que vai-se operar no Brasil com a transformao do trabalho. (ABRANCHES, 1888, p. 11,12,13).

    O pblico-alvo para o qual se dirigia Abranches era aquele formado pelos

    segmentos sociais vinculados agroexportao, por isso enfatizava a transformao do

    trabalho como uma verdadeira salvao da lavoura, ao considerar ter sido a escravido o

    fulcro de onde emanavam todos os males vivenciados pela provncia.

    O plano por ele elaborado previa a conjuno de esforos da prpria provncia para

    erradicar a decadncia galopante. S uma ao coordenada dos lavradores, da Associao

    Comercial e do governo poderia equacionar as incertezas da economia e do mundo do

    trabalho maranhenses, ampliadas com a abolio da escravido.A participao de cada qual,

    em vista do plano formulado, seguia uma orientao inteiramente nova, baseada em princpios

    modernos de gesto agrcola. Talvez por isso no tenha sido possvel identificar resultados

    prticos decorrentes da execuo de tais proposies.

    Enfim, conclua o autor: a lei de 13 de maio Destruiu para construir. Destruiu

    uma instituio secular, enraizada em todos os poros da sociedade a escravido. Restava

    ento a adoo de medidas orientadas para a criao de uma ptria livre, formada por

    elementos dspares, sintetizados em um fim homogneo que o Progresso. (ABRANCHES,

    1888, p. 37).

    Como restou demonstrado, significava parcela dos intelectuais maranhenses do

    sculo XIX elegeu o fantasma da decadncia como objeto privilegiado de suas reflexes.

    Todos eles identificaram os problemas vivenciados pela lavoura como aqueles que

    contriburam preponderantemente para que a decadncia dessa atividade fosse representada

    como vlida para todo o conjunto da sociedade. Por isso, no difcil imaginar porque essa

    noo ingressou no sculo XX fazendo proslitos.

    1.3 Operrios da saudade

    Os intelectuais neo-atenienses, tambm identificados como decadentistas, situados

    no marco temporal utilizado neste trabalho, entre a ltima dcada do sculo XIX e a dcada

    de 1920, prosseguiram problematizando a realidade maranhense, seja atravs de obras

    especficas em diversos ramos, seja atravs da imprensa, da poltica ou da administrao. O

  • 28

    resultado dessas reflexes ser objeto de avaliao, doravante. Buscar-se- mapear como tais

    intelectuais lidaram com a sensao de impotncia, que produzia cenrios enervantes para uns

    e de paralisia para outros; cenrios, enfim, para revoltas supremas, mitigadas por missas

    negras... sem hostias e sem vinho. (CARVALHO, 1902, p. 5-6).

    Manuel de Bthencourt

    Em 1902, Manuel de Bthencourt, sob o pseudnimo de Plcido Guerra, publicou

    um romance fundamental, denominado A Crise, em folhetim, disposto na primeira pgina do

    jornal A Campanha, onde o autor era redator-chefe, alcanando 120 edies.

    A obra constituiu-se uma extenso das premissas expostas no prolixo editorial que

    lanou o programa do peridico. Por este, a folha vinha luz para realizar o estudo imparcial

    dos factos occorridos no nosso meio, expressando-se a respeito com toda a franqueza, mas

    sem violncias de objurgatoria, afinal, o Maranho est falto e pobre de opinio [...], e s a

    verdade dita sem rebuo, sem subtilezas, que pode crea-lo. O exerccio da crtica

    pretendida visava combater os males que nos afligem, considerando que onde quer que a

    vida se espraie, s se deparam escombros, s se encontram destroos [...], runas, por toda

    parte a parte runas; runas em todos os mbitos: na justia, na economia, na administrao,

    no carter. (A CAMPANHA, 2/4/1902, p. 1).

    Assim apresentada, A Crise assumia uma posio relevante para o entendimento

    da sociedade maranhense coeva (especialmente a de So Lus). Objetivava o romance pintar

    com a discrio possvel o que se est passando no nosso meio, sem intentos offensivos, sem

    mirar de forma alguma o escndalo. (A CAMPANHA, 2/4/1902, p. 2).

    O estilo romanesco foi o preferido para dar concretude obra por permitir

    agilidade descrio dos males que affligem a nossa sociedade, atravs de personagens que

    por ahi vivem e a cada passo os encontramos. (A CAMPANHA, 2/4/1902, p. 2).

    A temtica central da obra, fica j evidenciada, orientava-se para o exame do

    estado de decadncia geral que dilapidava o nimo maranhense a essa poca, a qual o autor

    tentou captar e repassar atravs da fala das personagens mais salientes. Um deles, o

    comerciante abonado Joo Arnaldo Seixas, traduziu a situao de grande parte dos seus pares,

    a braos com as incertezas do mercado, com os embaraos procedentes da impontualidade de

    comerciantes interioranos, seus clientes, com a escassez de dinheiro na praa, entre outros,

    que concorriam para a retrao da confiana comercial, no momento mesmo em que duas

    enormes fallencias imminentes ameaavam abalar todo o credito. (CRISE..., 2/4/1902, p. 2).

  • 29

    Por outro prisma, um outro personagem (sem nome), um artista, mulato, observava

    que a crise redundava da m f commercial, pois os comerciantes praticavam ilicitude

    quando no divulgavam o estado real de seus empreendimentos, o descalabro de suas

    finanas, comprimindo o crdito para aqueles que pretendiam sanear suas atividades. Para

    ele, o tempo dos espertos e quem no se acautelar, mal se dar (CRISE, 2/4/1902, p. 2). A

    esperteza dos comerciantes voltava-se agora contra eles sob a forma de dvidas insanveis,

    falncias, bancarrota geral.

    Se para Seixas a situao reinante levava-o a concluir que o Maranho est

    ficando to estpido que at Balzac no autoridade e muitos so capazes de o chamar de

    malcreado (CRISE, 3/5/1902, p. 2), para o poeta Inocncio Xisto da Cmara, autor das

    Liturgias Satnicas (no seria um dos maiores simbolistas brasileiros, Incio Xavier de

    Carvalho, autor de Missas Negras?), a crise que invadia todos os poros da sociedade podia ser

    observada flagrantemente tanto no mundo empresarial quanto no perfil fsico e na

    indumentria das camadas populares.

    No que concerne ao primeiro caso, aqui no Maranho nada vai por diante... As

    emprezas mais teis, que noutra parte do lucros, aqui esborracham-se completamente, haja

    visto a de vapores, gua e esta (a Ferro-Carril). Isso se verificava porque tudo mal

    dirigido, feito sem tino. (CRISE, 7/5/1902, p. 2). Por isso, no se diga que o mau estado

    dellas depende da crise que o paiz atravessa: j antes o descalabro se affirmava. (CRISE,

    8/5/1902, p. 2).

    No que respeita aparncia fsica e ao vesturio dos populares, at nisto o

    Maranho decahira. Se no passado era comum a presena de negras paramentadas com

    cordes de ouro de bom quilate, em seu tempo no se v isso, at a classe baixa attesta a

    misria em que vivemos. A degenerescncia fsica no refletia mais que o empobrecimento

    socializado por todo o corpo social, repercutindo com maior intensidade nas camadas menos

    favorecidas.

    Uma imagem desse estado de coisas: [...] Aquellas duas mulatinhas esgruviadas, de peito chato, nem de leve se parecem com as mulatas pimponas da minha infncia, umas sujeitas que punham a arder a cabea de muita gente boa, mulatas que em festas levavam consigo nas roupas valores que hoje muitas senhoras da nata social no conseguem trazer consigo. (CRISE, 8/5/1902, p. 2).

    Em verdade, tais personagens reproduziam imagens focalizando aspectos dos

    tempos bicudos que volatizavam as energias daquela sociedade, mormente aquelas que ainda

  • 30

    tonificavam os segmentos visceralmente atrelados a atividades econmicas enredadas ao

    sistema agro-exportador.

    Num concerto, o investidor Nicolau Jos da Costa vocalizava uma opinio mais ou

    menos presente nos discursos emitidos durante essa conjuntura (e antes, e depois), pela qual a

    causa maior do desequilbrio econmico maranhense foi a abrupta extino da escravido,

    que:

    induzio os commerciantes desconfiana. No mais quizeram emprestar ao agricultor que se vio privado de cultivar a terra, faltando-lhe capital para arrotear o solo e pagar salrio aos trabalhadores. Tendo capitaes, mas no tendo collocao, lembrou-se da soluo das fbricas e ahi immobilisou o que tinha. (CRISE, 19/4/1902, p. 2).

    As fbricas, fundadas celeremente, mobilizaram uma soma pondervel de recursos

    nativos, mas logo demonstraram no ser um investimento seguro, pois inflacionaram um

    mercado muito restrito com uma produo elevada para suas possibilidades de consumo. Por

    isso, algumas vo-se mantendo com difficuldade, mas solvendo os seus compromissos.

    Outras naufragaram para sempre e s existem nos prdios silenciosos em que a ferrugem lhes

    gasta os machinismos. (CRISE, 18/4/1902, p. 2).

    Efetivamente, o enredo construdo ficcionamente descrevia um clima de desolao

    geral, presente, inclusive, em dois marcos referenciais de eventual reanimao: o Palcio do

    Governo e o complexo comercial da Praia Grande, formado pelas ruas da Estrela e do

    Trapiche. No Palcio, nenhum movimento se via, a no ser as sombras de alguns poucos

    empregados a trabalhar naquele trabalho improductivo [...], uns soldados sonolentos,

    factigados de uma faco intil, alm disso, s um mar de janelas vazias. (CRISE,

    12/4/1902, p. 2).

    Expressiva a descrio do movimento (ou paralisia) da rea mais dinmica do

    centro comercial de So Lus (ruas da Estrela e do Trapiche):

    naquelle logar outrora to animado, sentia-se a athmosphera pesada dum lucto que no se podia definir, talvez a do credito perdido dos que to acreditados haviam sido [...]. Tudo era torpor, nem um bafejo do vento rumorejava nas folhas das arvores, nem um rudo de carroa se ouvia. (CRISE, 3/4/1902, p. 2).

    Esse cenrio asfixiante, para um comerciante, projetava sentido, inclusive, em uma

    prosaica reunio canina observada em meio a pensamentos econmico-sociais:

  • 31

    Trs ces, junto dum tronco de arvore miravam-se, rosnando e comprimentando-se segundo os hbitos caninos, um preto, grosso, focinho curto, cauda cortada e os outros dois, um branco, felpudo, o outro, malhado, de pelo comum, ambos magros, olhando respeitosamente para o preto, em cujo olhar de animal forte se lia como que uma nota de desdm. Elle era rico em face daquelles dois pobretes, synthese moral entre os ces do que se passa entre os homens. (CRISE, 3/4/1902, p. 2).

    Os personagens construdos por Bthencourt poderiam ser realmente encontrados

    em quaisquer das ruas de So Lus. Provavelmente, por isso, o romance saiu de circulao

    inconcluso e sem nenhuma nota a respeito. A verso que corre que a publicao teria

    ofendido a imagem de uma dama da sociedade nativa reconhecida nas entrelinhas por seus

    conterrneos. Alis, logo aps a publicao dos primeiros nmeros do folhetim, um dos

    redatores do jornal, Igncio Raposo, foi atacado por asseclas de um dos ofendidos; por outro

    lado, alguns jornalistas de outros peridicos locais criticaram a maneira despojada com que

    eram pincelados alguns personagens, permitindo a comparao com pessoas que no

    desejavam ver-se envolvidas em discusses pblicas.

    Antonio Francisco Leal Lobo

    A noo de decadncia tambm estava presente entre as preocupaes do Antonio

    Lobo. Comprova-o a publicao, em 1909, de Os novos atenienses: Subsdios para a

    histria literria do Maranho, obra em que estabeleceu uma periodizao para a cena

    literria maranhense, fundada na premissa de que a literatura maranhense foi produto da

    atuao de trs geraes sucessivas (sendo a ltima a sua), as quais imprimiram uma marca

    bem delineada no concerto literrio brasileiro.

    Por essa periodizao seguida, desde ento, quase sempre sem maiores reparos

    pela maioria daqueles que examinaram a histria literria regional , a Idade do Ouro

    maranhense situou-se no tempo em que vicejou o Grupo Maranhense da literatura brasileira,

    que granjeou para So Lus o ttulo de Atenas Brasileira, cujo termo foi o desaparecimento,

    em 1868, do Semanrio Maranhense, peridico em que colaboraram todos os espritos

    superiores da poca (LOBO, 1909, p. 13), prgonos e epgonos de uma pliade de

    intelectuais com interveno nos mais variados ramos do conhecimento.

    A segunda gerao compreendia os intelectuais que pontificaram, principalmente,

    entre as dcadas de setenta e noventa do sculo XIX, com alguns representantes ainda no

    sculo XX. Tratava-se de um grupo de intelectuais que em muito diferia do grupo anterior,

    particularmente pelo modo como problematizava os temas de sua obra e como se inseria na

  • 32

    sociedade. Grande parte desses intelectuais no suportou os obstculos que se lhes

    apresentavam na realidade provincial, elegendo a emigrao como a sada estratgica para o

    reconhecimento negado s suas obras em mbito comunitrio.

    A terceira gerao em que estava includo o autor , formada por um expressivo

    grupo de jovens intelectuais nascidos entre as dcadas de 1870 e 1890, invocava a si a misso

    de fazer face

    aos anos de apatia e marasmo que se seguiram brilhante e fecunda agitao literria de que foi teatro a capital deste estado, nos meados do sculo findo [XIX], e que ficar marcado para honra e glria nossa uma das mais fulgentes da vida intelectual brasileira. (LOBO, 1970, p. 4).

    O objetivo mais lato dessa gerao era reatar as riquissimas tradies das nossas

    letras, que a muitos se afiguravam j totalmente perdidas (LOBO, 1970, p. 5). Tal objetivo

    constitua-se um imperativo, considerando que a partir da segunda gerao,

    comeou ento para o Maranho essa tristssima e caliginosa noite, em que, por to longo tempo, viveram imersas as suas letras, noite cortada, por vezes, pelo claro fugidio de algum astro errante, que para logo se ia eclipsar na morte, ou perder-se na distncia a que era impelido pelas inelutveis fatalidades da sua trajetria. (LOBO, 1909, p. 14).

    A periodizao proposta por Lobo chancelou, pois, trs momentos distintos, mas

    intercambiantes, na histria intelectual maranhense: o da constituio e atuao do Grupo

    Maranhense e a instituio do singular epteto de Atenas Brasileira para So Lus; o da morte

    de representantes expressivos da gerao anterior e, especialmente, da emigrao recorrente

    de promessas intelectuais para a Amaznia e, principalmente, para o Rio de Janeiro, visando

    dar melhor seqncia a projetos que a realidade inclusiva invalidava; e o de franca atividade

    de jovens intelectuais, essencialmente regionais, objetivando restabelecer a dignidade do mito

    ateniense, seriamente ameaado pela descontinuidade geracional, pela distncia geogrfica,

    pelas contingncias materiais, que envolveram seus membros mais salientes.

    Ao estabelecer nesses termos sua periodizao, Lobo objetivava concitar os seus

    contemporneos para revigorar as riqussimas tradies intelectuais da Atenas Brasileira,

    j que elas somente subsistiam porque alguns escritores maranhenses emigrados para a capital

    federal, cumprindo o papel de

    depositrios fiis de nossas tradies, constituam-se os continuadores impretrritos da grande obra do nosso passado, os herdeiros do nosso nome literrio os nicos

  • 33

    que nos asseguravam ainda incontestado direito ao realante cognome de Atenas Brasileira. (LOBO, 1909, p. 15-16).

    Em sua obra Antonio Lobo buscou dar ossatura a uma trajetria singularizada da

    histria intelectual maranhense, por ele formulada, cujo termo era o esforo de sua gerao

    para produzir um movimento de renovao moral e material em uma realidade diagnosticada

    como corrompida em suas entranhas; decadente, enfim.

    O diagnstico da decadncia incomodava, pois, discpulos e mestres, afinal, [...] o

    Maranho nunca estivera assim, nunca se vira em condies to desastrosas, to falto de

    recursos (CRISE, 31/7/1902, p. 1), para que seu porto apresentasse um movimento

    insignificante a ponto de ser tomado como um entreposto abandonado, muito diferente do

    passado, quando o Maranho era o centro da vida do Brasil do norte. (CRISE, 30/7/1902, p.

    1).

    Amparado por tais avaliaes do cenrio movedio em que atuava, Lobo (1970, p

    10) props-se, ento, a fazer obra imparcial e justa, como o devem ser todas aquelas que se

    destinam a tansmitir ao futuro a memoria presente, para que do maximo brilho e esplendor se

    revista sempre a reputao intelectual da terra que nos serviu de bero e onde sempre temos

    vivido [...] (Grifo nosso).

    Uma das caractersticas da gerao de Antonio Lobo foi ter, a maioria dos seus

    membros, permanecido no torro natal, intervindo nele de forma diferenciada das geraes

    anteriores. A ao dessa gerao, no limite, tinha por escopo inventar um Maranho reatado a

    suas antigas tradies de fausto econmico, de proeminncia poltica, de requinte social e de

    cosmopolitismo cultural, de onde arvorava-se esmerado beletrismo.

    Raul Astolfo Marques

    Um dos mais devotados prceres da Oficina dos Novos, Astolfo Marques, em A

    Nova Aurora Novela Maranhense, publicada em 1913, sintetizou cenas bem definidas das

    vrias facetas assumidas pelos processos ocorridos no final do sculo XIX. Em sua narrativa,

    deu especial ateno s mudanas polticas efetuadas e sua repercusso no interior da

    sociedade vigente, analisando comportamentos ambguos de atores sociais antes identificados

    numa posio e a seguir, aps a abolio e a proclamao da Repblica, desempenhando

    papis completamente diversos e, em muitos casos, antpodas.

    O discurso da decadncia, nessa obra, pode ser apreendido num captulo

    expressivo: A Rejenerao Social. Nele, o autor produziu um conjunto imagtico

  • 34

    significativo em que a realidade maranhense era percebida atravs de uma tenso irrefrevel

    entre situaes arraigadas e situaes emergentes anunciadoras de um novo devir, de uma

    nova aurora. Com efeito, nele foi pincelado um sutil balano entre um estado decadente,

    avassalador das combalidas energias sociais, e a urgncia da deflagrao de um vigoroso

    movimento de renovao, de regenerao, de um renascimento, no Maranho.

    Assim, ao discorrer sobre a residncia do personagem central da trama, Maral

    Pedreira, localizou-a num dos extremos da cidade, [...] por entre as runas dos ranchos da

    outrora florescente Fazenda do Medeiros, onde foi construda, em estilo singelo, a

    confortante caza de vivenda da grande chcara a Aurora. Dali era possvel ver nitidamente

    o antigo e amplo domnio do senhor da quinta do Maraj, [...] os negrejados paredes da Caza do Navio e de outras edificaes inconclusas [...], o edifcio da Cadeia de arquitetura banal, [coberto] de espesso limo por amontoados invernos, bem como a estatua de marmore branco do mais vultuozo lirico patrio (Gonalves Dias) e a Vitoria, a formoza chcara do solitrio poeta (Sousndrade) do Allah errante (Guesa Errante). (MARQUES, 1913, p. 11-12).

    Imagens expressivas, indicando um modo de vida bem diverso daquele

    tradicionalmente reproduzido. Se por um lado persistiram em runas vrios distintivos da

    ordem decada, por outro, assomavam passagem da cidade cones de uma nova aurora,

    representados pela casa de vivenda da grande chcara, de Maral Pedreira, onde a

    singeleza e o conforto eram a tnica, pela esttua de Gonalves Dias, no bairro dos Remdios,

    vazada no melhor marmore branco, pela formosa chcara de Sousndrade, denominada

    significativamente de Vitria, e pela chamin, edifcios e mais dependncias da Companhia

    de Fiao e Tecidos Maranhense, a Fbrica Camboa, como popularmente conhecida. Enredos

    da tradio tecidos com filetes de modernidade descompassada.

    Pedreira era descendente nico de opulenta famlia de lavradores da ribeira do

    Itapecuru, cujos bens, em boa parte, foram dilapidados por um tutor perdulrio, mas mesmo

    assim, na maioridade, ainda desfrutou de uma pondervel herana, que lhe permitia viver sem

    privaes. Entretanto, a esse cabedal, juntava-se a renda auferida do aluguel de pastagens e

    da atividade policultora (de hortalias e frutas) situadas nos amplos terrenos que

    conformavam o entorno da vivenda.

    Astolfo Marques deu amplo destaque s festividades ocorridas na cidade em

    virtude da abolio da escravido, como um prenncio de uma nova era. No obstante,

    mencionou que aps a prolongada apoteoze aos da cruzada abolicionista, sobreveio a

    necessidade da discusso a respeito da latente transformao em taperas de uma infinidade

  • 35

    de fazendas e engenhos de grandezas at ento afigurada immarcessvel (MARQUES, 1913,

    p. 22). Urgia, pois, o debate sobre a periclitante situao econmica presente do Maranho, a

    braos com uma variada gama de problemas oriundos do grau de insero da economia

    regional nos mecanismos mais abrangentes e complexos das economia nacional e

    internacional.

    Para Marques (1913, p. 22-25), a realidade regional vinha de certa poca para c

    definhando, caindo em preocupadora estagnao, sem elemento de comparao aos tempos

    remotos, em que atingira o notvel grau de propriedade, aos quais se entoavam hinos e

    teciam loas. Atuavam como causas eficientes desse declnio: 1) o comrcio direto do Piau,

    do Par e do Cear com o exterior; 2) a elevao do preo do algodo poca da Guerra de

    Secesso, que ilusoriamente concorreu para que muitos produtores no se acautelassem de

    dvidas supervenientes; 3) o desequilbrio das operaes financeiras com as praas do

    exterior; 4) a carncia de braos e a rotina dos processos industriais; 5) a eleio do algodo e

    do acar como produtos bsicos da pauta de exportaes, em detrimento de outros; 6) o

    atraso da colonizao baseada em retirantes nordestinos expulsos pelas estiagens sazonais; 7)

    a Guerra do Paraguai, entre outros.

    Na viso do autor, a sada para semelhante estado de coisas s ganharia

    visibilidade quando cessasse o alarido de palmas indevidamente dirigidas a iniciativas fadadas

    ao insucesso, medida que fundadas em leituras deficientes da realidade.

    Tais iniciativas iam desde a fuso de brancos, passando pela abertura de estradas

    de rodagem de grande extenso, ligando o litoral ao centro sul do estado e pela retomada da

    dragagem do canal do Arapapa, em So Lus, alm de outros cometimentos, alguns bastante

    arrojados e, pela temeridade, bem duvidosos do xito, em prol da elevao econmica da terra

    ateniense. (MARQUES, 1913, p. 29).

    Nesse contexto, asseverava Marques (1913, p. 29), o papel que competiu a

    Sociedade Auxiliadora da Lavoura e da Indstria foi estimular as iniciativas exeqveis,

    visando aparar o certeiro golpeamento que a Abolio, sem indenizao, fazia cair

    penetramente sobre os principais fatores da riqueza pblica. Um dos resultados dessa

    atividade foi a constituio da Companhia de Fiao e Tecidos Maranhense a Fbrica

    Camboa , realizada em curto espao de tempo de captao de recursos, dando ensejo a que

    outros empreendimentos semelhantes, vinculados ao mundo fabril, fossem ganhando a

    credibilidade pblica. Esses esforos de regenerao foram saudados como exemplos de uma

    nova era, anunciada em castelos pirotcnicos de reinadio efeito [...], numa acariciante

  • 36

    epopia hinria, em que avultava a chamin simblica do trabalho fabril. (MARQUES,

    1913, p. 31).

    A velocidade imprimida constituio de mais de uma dezena de

    empreendimentos fabris, dos mais diversos ramos, liderados pela indstria txtil, arrefeceu,

    paulatinamente, a energia financeira dos incorporadores contumazes.

    Ao cabo de sua obra, Astolfo Marques produziu um bom quadro das expectativas

    que povoavam o nimo dos maranhenses naquela conjuntura finissecular e de profundas

    mudanas histricas processadas celeremente no seio daquela sociedade ciosa da preservao

    de um passado sem mculas nem retoques.

    Jos do Nascimento Moraes

    Uma das obras que melhor explorou as entranhas de uma sociedade decadente,

    como a maranhense, entre o final do sculo XIX e o incio do sculo XX, foi Vencidos e

    Degenerados, de Jos do Nascimento Moraes, publicada em 1915.

    Apropriadamente subintitulada Romance (Crnica Maranhense), a obra constitui-

    se um dos mais ricos testemunhos das tenses que animavam o duelo entre tramas sociais

    enraizadas, signos da tradio, e aquelas emergentes, signos do porvir, num contexto prenhe

    de transformaes dinmicas em vrios nveis da realidade inclusiva, a produzir rachaduras

    solarescas e epigonismos provincianos. (MACHADO, 1982, p 7).

    Com efeito, como um dos expoentes da crnica maranhense, Moraes fixou uma

    pgina importante da fico regional, que, como O Mulato, de Alusio Azevedo, permite a

    percepo cristalina da natureza de vrios dos processos ocorrentes na realidade de referncia,

    no lapso temporal acima mencionado.

    O cotidiano de So Lus, subseqente abolio da escravido, foi por ele

    mapeado anatomicamente, analisado sociologicamente e narrado com sagacidade e rigor

    dialtico. Isso permitiu-lhe a montagem de um retrato multifacetado da vida ludovicense, no

    qual foram gravados com tinta naturalista, suas querelas preconceituosas, seus tipos

    excntricos e marcantes, suas historietas alforriadas do esquecimento pela minudncia

    impressiva... (MACHADO, 1982, p. 33), suas tenses scio-culturais subjacentes, nuances

    da atmosfera abafadia da decadncia, reveladoras do desequilbrio vigente em todo o corpo

    social tomado como objeto da narrativa. Enfim, nesse documento sociolgico, forjado nas

    lides jornalsticas, onde atuava o autor com sensibilidade e disposio atvicas, avultavam

    elementos tpicos de uma sociedade conservadora, mantida substancialmente nas fimbrias da

  • 37

    aparncia, desenvolvendo elevadas taxas de preconceito decorrentes do enraizamento de

    idias e prticas forjadas no passado escravocrata.

    O tema central da obra , pois, a abolio da escravido e suas conseqncias no

    interior de uma sociedade visceralmente constituda e reproduzida sob o signo dessa

    instituio. A memria do cativeiro invadia e avassalava a conscincia de todos os

    personagens de que se utilizou Moraes para, com eles (j que um deles), trafegar pelos

    meandros daquela sociedade perifrica, pretensamente em dia com as ltimas novidades do

    Velho Mundo, que, entrementes, produzia uma infinidade de stos miserveis e

    nauseabundos, onde vidas cruzadas, historicamente definidas, teimavam em resistir, mesmo

    que vencidos e degenerados pela crueza da batalha de que eram integrantes orgnicos.

    O discurso da decadncia material e moral do Maranho, na conjuntura por ele

    descrita, ocupou posio de relevo no conjunto da obra. Est expresso em muitas passagens

    em que afloram primorosas imagens sintticas da vida de So Lus naquele momento.

    Assim, ao referir-se relutncia de indivduos de pequenas posses em conceder

    alforria ao seu reduzido plantel de escravos, s vsperas da abolio, sentenciou: esta

    pobreza fidalga daqui, j ia pegando a moda e no viria longe o dia em que os escravos, os

    prprios escravos, procurariam ter escravos. (MORAES, 2000, p. 31).

    Para ele, a abolio foi um golpe doloroso para os pobres presumidos que,

    almejando pertencer primeira sociedade [...], faziam economias, com prejuzo de

    alimentao, e ostentavam um pequeno cabedal em negros, os quais sofriam as mais

    ridculas vexaes impostas pelo esprito pequenino dos seus senhores, cujo deleite era

    ocupar-lhes a todo instante com as coisas mais insignificantes (MORAES, 2000, p. 37). Por

    isso, essa frao da sociedade foi descrita como vivenciando um quadro de desolao

    irreversvel, em srios apuros, haja vista ter-se acostumado a extrair de sua pequena escravaria

    todo o necessrio para sua reproduo social.

    Outra imagem. Comparando o rebulio causado pelas festividades abolicionistas

    com o marasmo evidente no bairro comercial de So Lus - a Praia Grande , Moraes

    destacou que ali no havia nenhum sinal caracterstico de vida prpria e feliz, mas clara

    denncia de decadncia e estagnao de elementos essenciais atividade do trabalho.

    (MORAES, 2000, p. 54).

    Desse modo, Moraes (2000, p. 57) identificou trs categorias que movimentavam

    aquele agonizante universo de trabalho: alguns que trabalhavam por vaidade; outros por

    necessidade; e uns por fatuidade.

  • 38

    Quanto primeira categoria, nela perfilavam-se os empregados no comrcio e no

    funcionalismo pblico, quase sempre indivduos arrogantes e pedantes, imitadores

    contumazes das idiossincrasias dos patres. Geralmente pertenciam ou descendiam das

    antigas famlias do Estado.

    A segunda categoria, por sua vez, era constituda de guarda-livros, empregados de

    escritrios, gerentes de grandes casas comerciais. Geralmente indivduos de baixa extrao

    social que, custa de muitas privaes e dedicao absoluta ao trabalho, acabavam por galgar

    posies compensadoras e postos importantes em sua profisso.

    A terceira categoria era formada pelos proprietrios de casas comerciais, diretores

    de banco, proprietrios e capitalistas. Via de regra eram portugueses aqui chegados sob os

    auspcios de patrcios j radicados e em posio econmica confortvel.

    Uma das mais cadentes snteses da viso do mundo com que Nascimento Moraes

    constituiu Vencidos e Degenerados, encontra-se nos dilogos travados entre os personagens

    Joo Olivier e Carlos Bento Pereira. Este, o mestre de vrias geraes, derrotado pelas

    injues polticas locais, vivendo miseravelmente. Aquele, um jovem intelectual, mestio,

    guarda-livros de uma grande casa comercial, que conquistara um lugar no jornalismo indgena

    aps vencer inumerveis e inenarrveis dificuldades. O ex-aluno agora, por gratido

    intelectual, amparava aquela referncia viva e interlocutora de vrias geraes.

    Os dilogos referidos, decorrentes da apreciao de um planfeto produzido por

    Bento tinham, por temtica a fase horrorosa, medonha, porque passava o Maranho. Em

    resumo, asseveravam, para vencer aquela conjuntura,

    os fatos exigiro que os homens faam da fraqueza fora e que, abandonando a posio censurvel em que at hoje tm mantido, procurarem enfim os que podem com energia e competncia intelectual, e firmados em princpios morais, reconstruir o templo arruinado. (MOARES, 2000, p. 76, grifo nosso).

    Na verdade, ambos viram esfumar-se as esperanas nutridas pelas idias

    defendidas pelos prceres dos movimentos que culminaram no 13 de maio e no 15 de

    novembro; no ocorrera a renovao social almejada porque no foram verdadeiros

    republicanos os que se apossaram do poder [...]. (MOARES, 2000, p. 77).

    Concordavam, todavia, que a partir de 13 de maio

    comeou o Maranho a decair, [sobrevindo] a terrvel e esmagadora opresso moral-social, que a mais e mais se estreita nesta terra destruindo energias, aniquilando vontades, esfacelando msculos. [Entretanto], a crise, ou melhor, esta tenebrosa fase que o Estado atravessa, fase de decadncia moral, intelectual e

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    material, [resultava em grande parte do] indiferentismo esmagador dos homens da governana, pelos bces que entravam as foras ativas de toda a coletividade e o desprezo que lhe votam, igual ao cuidado que egoisticamente se dispensam e aos amigos da grei, beneficiando-os. (MORAES, 2000, p. 79, 80,81).

    Por outro lado, advogavam, a decadncia refletia uma srie de problemas

    historicamente localizados que conjugavam-se naquele momento. Por isso

    que O Estado a olhos nus definha: a exportao uma misria [...]. As fbricas foram a pior

    cafifa que nos podiam vir acagibar. Quanto capital empatado e brevemente perdido! [...] e as

    companhias [...] outras desgraas que ns temos. (MOARES, 2000, p. 89).

    Ademais, a decadncia no podia ser creditada sempre propalada falta de braos

    para a lavoura, pois eram eles compatveis com a necessidade de ento, mas porque em

    grande parte no entendiam de lavoura e criao os que acudiam aos honrosos qualificativos

    de lavradores, agricultores e fazendeiros, considerando que viviam do desfrute da riqueza

    amealhada a partir da atividade daquele que realmente aplicava cincia e arte na agropecuria:

    o feitor, verdadeiro consultor, administrador, confidente, amigo convencional e indispensvel

    do senhor. (MOARES, 2000, p. 81-83).

    A decadncia poderia ser creditada, conforme preconizava Bento, finalizando a

    leitura de seu panfleto: ausncia de imigrao estrangeira no Estado; ao exerccio quase

    monopolstico do comrcio pelos portugueses, secundados pelos srios e turcos; ao controle

    exclusivo da administrao pblica pelos descendentes de antigas famlias da provncia,

    [estes] frutos estarrecidos, minados pela cancula do clima tropical, [que] vegetam abaixo

    da mediocridade vadia; a emigrao espontnea ou forada de intelectuais o sul est

    repleto de maranhenses ilustres, a Amaznia um viveiro deles; deficincia da educao,

    em geral, e do ensino de artes e ofcios, em particular; os partidarismos exarcebados;

    hipocrisia no trato das questes raciais, entre outros. (MOARES, 2000, p. 203-205).

    Vrias outras questes igualmente importantes foram tematizadas por Nascimento

    Moraes, no decurso de sua obra. Vale mencionar as fraturas expostas pelos desarranjos sociais

    advindos da proclamao da Abolio, que facultou foros de igualdade a indivduos

    identificados historicamente em posies antpodas. A essa experincia de cada um dos

    personagens, num contexto rico de significaes como esse, ganhou uma dimenso que vale

    como um retrato em preto e branco particular de cenas coletivas componentes do quadro mais

    geral do concerto social ludovicense e maranhense daquela poca.

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    Raimundo Lopes da Cunha

    A ideologia da decadncia tambm perpassou uma das mais importantes obras da

    messe neo-ateniense: O torro maranhense, de Raimundo Lopes, publicada em 1916

    (intitulada Uma regio tropical em reedio de 1970).

    A obra foi devidamente informada pelos conceitos cientificistas e positivistas

    operados por larga parcela dos intelectuais brasileiros envolvidos com as ingentes tarefas de

    construo de um Brasil moderno.

    Tendo como objeto de estudo o fato regional, o torro maranhense, Lopes visou

    analis-lo cientificamente, conforme preconizava a moderna Geografia. Nesse sentido,

    embassou seu estudo a partir do conceito de Geografia do todo, entendendo ser aquele que

    melhor se adequava para realizar uma sntese total dos fenmenos do planeta neste caso,

    os fenmenos prprios da realidade maranhense. Afinal, se as anlises cientficas

    praticamente excluram o Maranho de suas preocupaes, quando abordavam as terras

    brasileiras, precisava o autor aplicar, na medida do possvel, os princpios da Geografia

    moderna a este recanto do pas. (LOPES, 1970, p. 1).

    Construiu, pois, uma obra de carter abrangente, direcionada a mapear as

    entranhas da terra das palmeiras em seus mais variados aspectos, baseando-se tanto nos

    progressos cientficos conquistados pelo conhecimento geogrfico at ento, quanto nas

    contribuies de ponta de outro