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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho Florianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004 GT História da Mídia Sonora Coordenação: Prof. Ana Baum (UFF) 1

Rádio e sino: a hora do Angelus

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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de CarvalhoFlorianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004

GT História da Mídia SonoraCoordenação: Prof. Ana Baum (UFF)

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RÁDIO E SINO: A HORA DO ANGELUS

Cida Golin e Bárbara Salvatti1

Resumo

O presente texto ilumina as mensagens radiofônicas vespertinas, atualização do milenar ritual do Angelus e da popular devoção mariana. Tais módulos apontam para a influência da Igreja Católica, sobretudo pela ação da Ordem dos Capuchinhos, na história e na consolidação do rádio na serra gaúcha, centro da imigração italiana do sul do Brasil. O recorte faz parte da pesquisa O rádio é a cidade: a identidade do rádio na região colonial italiana do RS, em desenvolvimento na Universidade de Caxias do Sul, com apoio da FAPERGS e CNPq, buscando mapear as peculiaridades da radiofonia regional.

Palavras-chave: história do rádio regional – rádio e religião – culto mariano – Angelus

A pequena tela O Angelus (1858-9 – Museu D’Orsay) de François Millet, com a

imagem de um casal na lavoura, mãos cruzadas e a cabeça baixa em sinal de reverência,

registra, às vésperas do movimento impressionista, a luz e a dimensão religiosa do

calendário. A cena naturalista e poética, associada a um ritual de base sonora, conquistou o

público oitocentista e foi amplamente difundida em cartões postais e almanaques. A prece

alude à passagem bíblica da Anunciação do Anjo Gabriel à Virgem Maria; oração essa que,

paulatinamente, incorporou-se ao culto católico como eixo meditativo do início (6h), meio

(12h) e final (18h15min) de um dia, regulando a disciplina dos corpos e das mentes.

A temporalidade cronometrada pela ação da Igreja, cujo índice sonoro se traduz no

toque do sino, marcou boa parte da trajetória do rádio no século XX, quando era hábito uma

prece ou o canto no crepúsculo, seja nas pequenas emissoras, nos alto-falantes das cidades

do interior ou mesmo nas capitais. A lembrança do famoso carrilhão da Jornal do Brasil/

AM - que até os anos 50 soou de 15 em 15 minutos, ao meio-dia e na hora da Ave-Maria

1 Cida Golin é Doutora em Letras, Professora do Departamento de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul e editora de publicações do Museu de Arte do RS (POA). Coordena a pesquisa O rádio é a cidade na UCS. Bárbara Salvatti é bolsista de iniciação científica da FAPERGS. Também colaborou para a construção desse texto o bolsista BIC-UCS Luiz Fernando Oliveira.

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-,2confirma o assentimento da mídia ao ritmo do tempo profano e sagrado, do tempo livre e

do trabalho. Havia, no período, livros com mensagens reflexivas para a transmissão do

ritual seguido pela recitação do Angelus e das três Ave-Marias.3 A rádio do Vaticano foi

inaugurada em 11 de fevereiro de 1958, enfatizando pela voz do Papa, exatamente ao meio-

dia, o Angelus Domini.4

Em Caxias do Sul, região serrana do Rio Grande do Sul e centro da imigração

italiana no sul do Brasil, não foi diferente. Até hoje, é visível a forte influência da religião

na consolidação do rádio, atribuindo a essa mídia a função de propagar rituais celebrativos

como missas, preces meditativas ou anúncios fúnebres.5 O primeiro programa veiculado

pela Igreja, na cidade, foi a Hora da Ave-Maria, às seis da tarde, na rádio Caxias, emissora

laica e precursora da radiodifusão local. Com duração de quatro minutos, apresentava o

canto mariano, um comentário para reflexão e meditação, além de avisos.6 Posteriormente,

criou-se A hora da prece, um módulo voltado às crianças e apresentado sempre às

21h30min, provavelmente buscando o pequeno ouvinte antes do adormecer. A iniciativa

não teve vida longa, ao contrário de outros projetos que se consolidaram como o Rosário

em Família do Círculo Operário Caxiense. O rádio, desde o seu estabelecimento na região,

empenhou-se na transmissão de procissões, seja na irradiação de missas solenes como a da

Páscoa ou até mesmo a do aniversário do Bispo.7

A reza vespertina, ainda presente em boa parte da grade de programação de

emissoras regionais,8 aponta não só para a popular e milenar devoção mariana, mas também

para uma expressiva característica regional advinda da experiência imigratória do século

XIX. Sabe-se que boa parte dos 20 milhões de retirantes do Norte da Itália emigraram num

período de extremo conflito entre os liberais e os católicos. Foi um tempo de

2 BAUMWORCEL, Ana. 2003, p.533 Entrevistas com os Frei Rovílio Costa e Frei Renato Borghetti em 2003. Segundo Frei Borghetti, a mensagem era seguida de um comentário que induzia a uma reflexão e, embora não tivesse o propósito específico de evangelizar, sempre oferecia ao ouvinte alguma passagem do Evangelho.4 Cf. o termo Angelus Domini, Dicionário de Mariologia 5 MATTIA e LAZAROTTO, 1996: 1386 GASPARET, 1997: 497 GASPARET,1997: 508 Na cidades abrangidas pela presente pesquisa, encontramos os seguintes programas: Caxias do Sul: Rádio São Francisco AM: Momento de Paz (17h55min); Mais Nova FM: Momento Espiritual de Final de Tarde (18h); Rádio Mãe de Deus AM e FM: A comunidade faz a festa com Maria (reza do terço) (18 às 18h30min); Garibaldi: Rádio Garibaldi AM: Hora da Ave-Maria (18h) e a reza do terço (18h30min); Farroupilha: Rádio Miriam AM: Récita do terço (18 às 18h30min); Terço do Círculo Operário Caxiense (18h30min à 19h).

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anticlericalismo, laicização do Estado e confisco de bens das ordens religiosas. Durante

mais de seis décadas, até 1929, os fiéis permaneceram à margem da vida política,

obedecendo apenas às ordens do Papa Pio IX. Com essa experiência nos seus horizontes

culturais, os colonos buscaram reconstruir, em solo gaúcho, o mundo campesino, a

temporalidade das aldeias, reconfigurando suas tradições e a sociabilidade em torno da

Igreja.9 Para Olívio Manfrói, a religião, o dialeto, festas e rituais religiosos preencheram o

vazio cultural de uma identidade fraturada pelo trauma da imigração: assistiu-se, então, a

uma “explosão da catolicidade”.10

A oração consistiu num hábito incorporado ao dia-a-dia do imigrante, tão

fundamental quanto trabalhar, comer, dormir e levantar. Na medida em que foram

dominando um território hostil, a religiosidade não ficou restrita somente ao âmbito

privado. Segundo De Boni, “num ambiente em que o único sistema de referência é o

sagrado, em que as normas e valores profanos legitimam-se pelas normas e valores

religiosos, compreende-se a importância que adquiriu, para cada linha11, a construção da

capela”.12 As comunidades, portanto, sempre tiveram como prioridade um local comum

para a reza coletiva. Primeiro, o terço rezado embaixo de árvores; depois os capitéis, e, por

fim, as capelas, centros das atividades religiosas, comunitárias e sociais.13

A circulação das capelinhas, que se tornou comum a partir dos anos 40, refletindo a

forte devoção à Nossa Senhora, e a presença da programação religiosa no rádio dirigiu boa

parte dos rituais, novamente, para o interior dos domicílios. Battistel conta que a

popularização dos receptores, nos anos 50, retomou as reuniões domésticas em torno das

transmissões de terços, sermões, missas, leituras e cantos, na sua grande maioria, feitas em

língua portuguesa. No início, havia uma reverência na escuta: a postura corporal (sujeitos

ajoelhados em meditação), por exemplo, era idêntica ao templo. Aos poucos, o elemento

sagrado, baseado na audição, perdeu sua condição contemplativa; ganhou o contorno laico

de sua mídia, passando a ser pano de fundo. Ficou em segundo plano, cedendo terreno a

outras atividades realizadas pelos ouvintes.14

O culto mariano 9 MANFRÓI, Olívio. 1999: 48-5110 MANFRÓI, Olívio. 1999: 5211 Travessão ou linha eram os espaços de contato e de encontro entre colonos.12 DE BONI, Luís, 1980: 23513 BATTISTEL, Arlindo. 1980:3814 BATTISTEL, Arlindo. 1980: 53

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Dentro da vivência da religiosidade popular, o culto à Maria, configurada como uma

figura materna protetora, vigilante e poderosa, capaz de interceder pelos fiéis, ocupava o

centro do cotidiano familiar. Os rituais pontuavam o dia: o levantar, a hora do Angelus, a

reza noturna do terço, assim como o deitar. As mulheres adaptavam um núcleo narrativo

comum (proteção, salvação, desvelo e amor aos filhos devotos) no ensinamento e

transmissão das preces às novas gerações. Havia um acento pragmático norteando os rituais

religiosos, característica do horizonte imigrante e camponês de vida, sempre em busca de

soluções para problemas imediatos.15

Entre os descendentes italianos, a devoção mariana é uma devoção familiar. A reza do terço em família foi durante quase um século um costume generalizado que simboliza as famílias de bons cristãos. Tute le sere, co a mama, se pregava el rosário e de le olte la nona, intanto rosário, a dimandava: Gavio ligá i vedéi? O sinó: Ave Maria, gratia plena, Dominus Tecum... Gavio metesto in móia i fasói? Lora, darente el lumin ghe gera a nona che a disea el rosário e dopo noantre, prima me sorele pí vécie, dopo noántri tosatéi e dopo i sérvi adrio. Todas as noites, com a mãe, rezava-se o terço e, às vezes, a avó, enquanto se rezava o terço, perguntava: Amarraram os terneiros? Ou, então, Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco... Colocaram de molho o feijão? Perto do lampião ficava a avó que puxava o terço, depois nós, antes minhas irmãs mais velhas, depois nós as crianças e, depois ainda, os empregados.16

Do espaço doméstico, o culto à Maria ganhou uma dimensão pública a partir do

ideário ultramontano,17 dominante em Roma no final do século XIX, que garantia a

infalibilidade papal, a independência da Igreja em relação ao poder civil, além da defesa de

uma moral rígida e conservadora. Durante o século mariano, entre 1830 e 1933, numa

resposta ao contexto racionalista e à crescente secularização, pelo menos sete aparições

foram consideradas legítimas pela Cúria romana.18 Em 16 de julho de 1930, Pio XI

consagrou Nossa Senhora Aparecida como padroeira oficial do Brasil. Sua imagem foi

transportada em procissão pelas ruas do Rio de Janeiro em maio de 1931, mesmo período

da inauguração do monumento ao Cristo Redentor.19 Após a década de 30, pelo menos mais 15 COSTA, Rovílio. 1990: 531-54416 FIN, Rosaglia apud COSTA, Rovílio. 1990: 53317 O ideário ultramontano consiste na reordenação interna da Igreja (hierarquia eclesiástica e orientação tridentina baseada na doutrina e nos ritos do Concílio de Trento do século XVI, valorizando os sacramentos e combatendo a religiosidade popular, o sincretismo) e nas relações com o Estado, ao buscar uma independência do poder civil e “certo poder ao menos indireto sobre o Estado”. Cf. WERNER, Augustin, 1986: 178.18 STEIL, Carlos Alberto et al. 2003: 27-2919 DIAS, Romualdo. 1996: 129.

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de duzentas aparições da Virgem ganharam repercussão internacional, provocando

polêmicas entre devotos de movimentos como os Carismáticos e a hierarquia do Vaticano.20

Ao contrário das grandes cidades, as colônias da imigração italiana vivenciaram o

chamado catolicismo rural, adaptado ao ritmo lento e cíclico do cotidiano. Tal experiência

veio ao encontro do preceito ultramontano que via no mundo camponês um espaço idílico

para uma sociedade “regenerada”. A economia da pequena propriedade, por sua vez, exigia

uma rígida disciplina física e mental visando o trabalho produtivo de subsistência e

acumulação de capital.21

O espaço sagrado comum, a igreja, logo se tornou um meio eficaz de transmissão de

mensagens comunitárias, concentrando a atenção dos fiéis para além do espaço privado.

Cada capela tinha um campanário, onde estão os sinos, além de um encarregado de tocá-lo

nos horários pontuais do dia: às seis da manhã, ao meio-dia e às 18 horas. Nesses

momentos, nos conventos e comunidades italianas, evocava-se a oração do Angelus, através

de três repiques de três badaladas de cada um.22 O nome Angelus é originário das palavras

do Anjo Gabriel registradas no primeiro capítulo do Evangelho de Lucas, o mais longo

relato bíblico a respeito da Virgem: Angelus Domini ad Mariam, Ave gratia plena...

A popularização da saudação angélica se consolidou ao longo da Idade Média, sem

uma relação obrigatória entre a récita meditativa e o repicar dos sinos. Em 1269, a Ordem

dos Frades Menores determinou que os frades deveriam imitar Francisco de Assis e dizer

uma Ave-Maria em resposta ao badalar da campana e da reza vespertina23, hora suposta do

Anúncio e do mistério da Encarnação. No século XIV, Roma passou a conceder

indulgências a quem se dedicasse ao exercício piedoso de rezar três Ave-Marias de joelhos.

O Angelus do meio-dia, por sua vez, é posterior (sec. XV) e foi estimulado como uma

oração pela paz, na medida em que a cristandade se encontrava ameaçada pelo domínio dos

turcos, associação essa que permaneceu nos períodos posteriores. No final dos setecentos, o

hábito já estava tão consolidado no horizonte cultural europeu que não havia uma só família

cristã que não recitasse o Angelus quando ouvisse o som do campanário.24

20 Cf. STEIL, Carlos Alberto et al. 200321 BIASOLI, Vitor. Catolicismo e imigração italiana na Quarta Colônia, 200322 DE BONI, Luís & COSTA, Rovílio. 1984: 14823 PELIKAN, Jaroslav. 2000: 139-4024 Cf. Angelus Domini. Dicionário de mariologia

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Na colônia, o toque do final da tarde marcava o fim da labuta. Nesse momento, as

mulheres já se encontravam em casa; e os homens, caso ainda estivessem na lavoura,

descobririam a cabeça (tal como na tela de Millet), fariam o sinal da cruz e rezariam a prece

angelical.25 Substituto do relógio num tempo em que poucos o possuíam, o sino possuía seu

código: pancadas únicas e secas para avisar que o culto estava por começar; um toque

diferente para os falecimentos e outro para determinados eventos importantes como, por

exemplo, a chegada do padre na colônia.26

Os Capuchinhos

Enquanto na Europa a Igreja do final do século XIX enfrentava problemas para

manter o domínio cultural, político e econômico, os relatórios sobre o sul do Brasil

acentuavam a fé simples do imigrante italiano e a alegria e reverência com que recebiam os

sacerdotes.27 Para atender a essa demanda explícita, a Ordem dos Frades Menores

Capuchinhos (movimento franciscano reformista de 1525) chegou na vila de Conde d’Eu

(atual Garibaldi), na serra gaúcha, em janeiro de 1896. Os primeiros religiosos, que se

estabeleceram entre os quase mil colonos, vinham da França. Dentro do ideário de sua

Ordem, buscavam aproximar o sacerdócio do cotidiano dos camponeses. Na medida em

cresceram em estrutura física e institucional, os Capuchinhos logo perceberam a

importância da comunicação pastoral; organizaram-se em torno de uma impressora,

produziram brochuras simples, levando às famílias trechos comentados do Evangelho, na

língua materna, conselhos de agricultura e indicações para o cotidiano.28 Em 1921,

adquiriram o jornal Stafetta Riograndense.29 Esse jornal escrito em italiano nasceu em

1909 das mãos do pároco de Caxias, D. Carmine Fasulo. Chamava-se La Libertá e, em

menos de dois anos, passou a ser impresso nas gráficas de Garibaldi, transformou-se no

periódico de maior circulação regional, divulgando as premissas católicas sob o nome de Il

Colono Italiano (até 1910, quando trocou o nome para Stafetta Riograndense).30 Durante o

projeto de nacionalização conduzido pelo Estado Novo, passou a chamar-se Correio

Riograndense, nome que carrega até hoje.

25 FOCHESATTO, Iloni. 1977:24.26 DE BONI, Luís & COSTA, Rovílio. 1984: 148; BATTISTEL, Arlindo. 1980: 43.27 DE BONI, Luís, 1980: 241-242 28 DE BONI, Luís & COSTA, Rovílio. 1996:24129 ADAMATTI, Leandro. 2001: 20-2130 POZENATO, Kênia e GIRON, Loraine. 2003

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Foi nos anos 60, entretanto, que a Ordem dos Capuchinhos decidiu investir com

mais rigor na amplitude da mensagem sonora, capaz de atingir públicos heterogêneos além

do púlpito e do domínio da leitura. Em 1963, por exemplo, já administravam rádios em

Soledade, Marau, Garibaldi, Veranópolis e Lagoa Vermelha.31 Em Garibaldi, por exemplo,

a emissora foi inaugurada em 1951, substituindo o serviço de alto-falantes da Igreja Matriz,

onde diariamente os estudantes de teologia realizavam o programa da Ave-Maria.32

A concessão para o canal radiofônico em Caxias do Sul foi dada aos Freis em 17 de

dezembro de 1965, mas somente em 1967 a rádio São Francisco entrou no ar, vinte um

anos depois da emissora pioneira na cidade, a rádio Caxias. Segundo Frei Colombo, “a

proposta inicial da emissora era ser uma extensão do alto-falante da Igreja Imaculada

Conceição do bairro Rio Branco. Os capuchinhos pretendiam, com a rádio, ampliar as

informações aos paroquianos, utilizando a emissora como um veículo de evangelização”.33

Além do comprometimento religioso, a São Francisco transmitia programas gauchescos,

boletins hospitalares e notícias. Voltava-se a parcelas desfavorecidas da população. A partir

dos anos 80, segmentou-se em torno do jornalismo, destinando a programação musical para

sua congênere em FM.

Rede Católica de Rádio

A rádio São Francisco articulou-se após experiências decisivas da Igreja no campo

radiofônico. Segundo levantamento do setor de comunicação da CNBB, até hoje o rádio

constitui-se como a mídia mais utilizada pelos religiosos no Brasil. Cerca de 58% das

dioceses possuem emissoras,34 confirmando as características do veículo que se prestam ao

trabalho pastoral: baixo custo, rapidez, participação, possibilidade de sugerir uma conversa

individual e companhia; é baseado no som, elemento envolvente, que estimula a emoção e

imaginação, além de atingir com facilidade camadas sociais excluídas.35

A maioria das emissoras católicas no Brasil surgiu entre as décadas de 40 e 60,

processo posteriormente estimulado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1963), cujo

documento Inter Mirifíca ratificou a mídia como um instrumento indispensável à ação

pastoral. Em 1961, um convênio entre o Ministério da Educação e Cultura e a CNBB

31 ZOTTIS, Alexandra. 1999: 14-15 32 DE BONI, Luís & COSTA, Rovílio. 1996: 24033 SGORLA, Celso Antônio. 1999:1934 SOUZA, Luiz Alberto. 2003:17835 BELTRAMI, Arnaldo. 1996: 213

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oficializou o Movimento de Educação de Base (MEB), tendo as escolas radiofônicas como

instrumentos estratégicos para atingir populações com alto índice de analfabetismo em

regiões subdesenvolvidas.36

No final da década de 60, as rádios católicas entraram num período de decadência.

O declínio do MEB, a inoperância para atingir o mercado publicitário, a falta de

investimentos em pessoal e equipamentos, além da censura imposta pelo governo militar a

partir de 1964, estão entre as causas do sucateamento das emissoras.37 Entre as tentativas de

recuperação e renovação está a criação da UNDA brasileira. Fundada em 28 de abril de

1976, com o intuito de reunir emissoras católicas de rádio no país, sucedeu a RENEC que,

criada em 1959, encerrou seus trabalhos em 1968.

A São Francisco, em Caxias do Sul, é uma das geradoras da Rede Católica de

Rádio, reunião de emissoras para operação via satélite digital com fins comerciais e

pastorais.38 O surgimento da RCR insere-se no contexto de reação dos católicos ao avanço

de seitas e das igrejas evangélicas a partir da década de 80.39 Além da emissora caxiense, a

RCR agrupa, como geradoras, as rádios Aparecida (São Paulo), Difusora (Goiânia),

Imaculada Conceição (Milícia, SP), Clube Paranaense (Curitiba) e Canção Nova

(Cachoeira Paulista). O site da Rede informa que 191 emissoras, no País, estão ligadas às

seis bases de transmissão.40 Cada afiliada fica livre para escolher aquilo que irá retransmitir

a partir de uma relação dos programas disponíveis elaborada pelo Conselho Deliberativo da

RCR.41 A transmissão de alguns programas como o Jornal dos Jornais, das 7h30min às 8h,

e o Jornal Brasil Hoje, das 7h às 7h30min são obrigatórios.42 A Hora da Ave-Maria,

celebrada em diversos formatos, mantém-se como uma das âncoras comuns à rede.

36 HARTMANN, Jorge e MUELLER, Nélson. 1998: 20; cf. Comunicação e igreja no Brasil, Estudos da CNBB, 9. 68-82.37 HARTMANN, Jorge e Mueller, Nélson. 1998: 21.38 A RCR é uma decorrência da atuação da CNBB e da UNDA brasileira. A primeira fase da rede situa-se no contrato da rádio Aparecida com a Embratel, em 1992, para transmissão da chamada Igreja SAT, congregando rádios afins em canal analógico. A rádio Aparecida administrou e viabilizou financeiramente, produzindo praticamente sozinha a programação via satélite até 1994 quando oficializou a desistência do projeto na Assembléia dos Bispos em abril daquele ano.Novas articulações, impulsionadas pela UNDA e pelo setor de Comunicação da CNBB, dão origem à Rede Católica de Rádio em 10 de novembro de 1994, registrada pelo nome UNDA-BR. A nova rede, com um investimento de cerca de 35 mil dólares rateado entre 80 bispos brasileiros, fez a transição do sistema analógico para o digital e foi agregando os núcleos regionais de transmissão.39 Cf. Sônia Virgínia Moreira.40 Dados obtidos no site da RCR em novembro de 2003.41 Entrevista com Antônio Celso Pinelli, presidente da Unda/Br e Conselheiro da Rede Católica de Rádio.42 Entrevista com Antônio Celso Pinelli, presidente da Unda/Br e Conselheiro da Rede Católica de Rádio.

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Cada geradora pode conduzir outra rede. É o caso da Milícia Sat e, no Rio Grande

do Sul, da São Francisco Sat que transmite programação via satélite para fora do Estado,

mas, principalmente, para suas treze afiliadas gaúchas43 em razão da maior compatibilidade

entre a realidade das comunidades. Segundo o superintendente da rede, Frei Edílio José

Soliman, a prestação de serviços, característica da programação, tem por objetivo

incrementar a grade e aumentar a qualidade das emissoras que ainda não têm a qualificação

necessária para tal, sem eliminar o espaço dedicado à produção local inserida no contexto

comunitário de cada afiliada.44 Ou seja, por meio da participação em uma rede, as pequenas

emissoras suprem sua carência qualitativa e de mão-de-obra, sem grandes investimentos

operacionais. Ao reestruturar de forma pragmática e organizacional as emissoras a partir de

1999, os Capuchinhos deram curso às prioridades da evangelização e da rentabilidade

econômica a partir da suposta preferência medida por pesquisas de audiência.45

As mensagens de final de tarde

Os religiosos têm a exata noção da distância que separa a dimensão reduzida do

púlpito sagrado e a amplitude que pode alcançar uma mensagem evangelizadora de apenas

cinco minutos transmitida num estúdio sem maiores cerimônias. Como diz o Frei

Capuchinho Nestor Ferronatto, em entrevista a João Brito de Almeida na dissertação O

rádio dos capuchinhos no Rio Grande do Sul: a evangelização em rede (2002), “se Jesus

Cristo viesse hoje, pode ter certeza, utilizaria uma câmera de televisão, um microfone de

rádio, estaria nos jornais”46 Ou seja, as religiosidades contemporâneas são

institucionalizadas e adquirem identidade nos rituais comunicativos da cultura midiática.

Os novos formatos simbólicos, produzidos para além do limite tradicional e sacralizado,

são estratégicos na ação pastoral, na produção de mensagens e na interferência no cotidiano

dos fiéis.

43 A Rede Sul de Rádio é formada pela Rádio Universidade AM de Pelotas, Rádio Medianeira AM de Santa Maria, Rádio Planalto AM de Passo Fundo, Rádio Alvorada AM de Marau, Rádio Cacique AM de Lagoa Vermelha, Rádio Cristal AM de Soledade, Rádio Fátima AM de Vacaria, Rádio Garibaldi AM de Garibaldi, Rádio Luz e Alegria AM de Frederico Westphalen, Rádio Maristela AM de Torres, Rádio Tramandaí AM de Tramandaí e Rádio Veranense AM de Veranópolis. A cobertura atinge 114 municípios, envolvendo 3.611.803 habitantes. No segmento Rede MaisnovaFM, participam afiliadas de Vacaria, Soledade, Marau, Santo Ângelo e Garibaldi. Segundo dados da emissora, 63 municípios são atingidos pela programação, envolvendo 2.389.678 habitantes. 44 Entrevista com Frei Edílio José Soliman, superintendente da Rádio São Francisco AM e da Rede Mais Nova FM.45 BRITTO DE ALMEIDA, João. 200246 BRITTO DE ALMEIDA, João. 2002: 114.

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Ao atualizar vínculos com um ideário ancestral, as instituições apropriam-se de

procedimentos laicos. No mundo regido pela urgência e pelo espetáculo, a elaboração das

mensagens religiosas deve atender aos pré-requisitos do código acessível, das grandes

tiragens e do maior alcance das emissoras de rádio e televisão. A doutrina precisa ser

traduzida e simplificada em conceitos básicos. Nesse segmento de mídia, a aparência de

objetividade informativa, muitas vezes, oculta a dimensão das representações doutrinárias.47

Sabe-se o quanto o rádio se presta para a evocação de rituais arcaicos munido de

uma estratégia única, a evocação da fala e a ativação dos vínculos imaginários pela

tatilidade, pela intimidade do envolvimento sonoro e a possibilidade de significados

subliminares. As palavras adquirem significados e texturas diferentes no psíquico de cada

ouvinte. Objeto que está dentro e fora, o som não pode ser tocado diretamente, mas atinge o

sujeito com precisão. Roland Barthes escreveu que escutar é o verbo evangélico por

excelência; afinal, é na escuta da palavra divina que a fé se restabelece. Nos vestígios da

história da religião cristã, a escuta está presente pondo em relação dois sujeitos.48 O

medievalista Paul Zumthor, por sua vez, sublinhou a relação dramatizada que o homo

religious conferia à voz no espaço sagrado. Cabia a ela intervir como poder e como

verdade; não é à toa que o início dos sermões são marcados pelo imperativo Ouçam.49

Situadas num horário pontual (18h), divisor da grade de programação, as mensagens

chamam a atenção na medida em que são uma espécie de freio no ritmo urbano acelerado

que comanda tanto a vertente AM como a FM da Rede Sul de Rádio. O programa Momento

de Paz (Rádio São Francisco AM), veiculado há cerca de uma década entre um radiojornal

(Resumo Geral) e o programa de esportes, é apresentado pelo Frei Renato Zanolla50 e dura

quatro minutos em média. A estrutura repetitiva caracteriza-se pela temporalidade, ou seja,

o enunciado alimenta-se de temas da agenda do ouvinte, eventos do calendário,

contextualizados cronologicamente e comentados com base nos fundamentos do

catolicismo.

47 Cf. MARTINO, Luís Mauro Sá. 2003.48 BARTHES, Roland. 1984: 20449 ZUMTHOR, Paul. 1993: 77-7950 Segundo o depoimento de Frei Renato Zanolla, o programa não busca a conversão do público, mas “apenas uma breve mensagem com sabor de paz, cura interior, libertação, bênção, alegria. Quer aliviar as tensões acumuladas de quem vive o peso, a correria e o duro suor da jornada. Um respiro da alma, um conforto espiritual. Oferece ao ouvinte um espaço para sentir-se gente, amado, sujeito, não escravo dos fatos.”

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A você que esteve conosco neste dia, na construção de um mundo mais feliz, o convite, agora, para um Momento de Paz. Obrigado, Deus, por toda a bênção, graça e proteção, e aos amigos, por se tornarem irmãos.

Quarta-feira, 6 de novembro. Corrente de paz e de solidariedade. Enquanto o mundo inteiro está voltado para o terrorismo, para o medo, pois, há uma incrível reação positiva promovendo paz, justiça e solidariedade. A juventude sai às ruas com seu canto de paz. Esportistas ditam gestos de paz nos estádios. Empresas imprimem camisetas para seus funcionários com slogans de amor e paz. A proclamação nas comunidades proclama a paz como direito. Todos querem a paz, caminhando lado a lado com a justiça.

A melhor maneira de promover a paz é fazer justiça. Lembremos que pacificadores como Madre Teresa de Calcutá, Elder Câmara, Luther King, Gandhi, Betinho. Tantos, tantos outros, promoveram a paz social, através de direitos básicos do ser humano: liberdade, saúde, alimentação, moradia, lazer, educação. Essa é a condição básica para a existência da paz.

Agora temos novas promessas de paz a partir do social também aqui no país. Tomara que dê certo. Ainda há pouco, João Paulo II, também, por sua vez, pediu a corrente pela paz:

(...) Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Amém.51

Momento de Paz repete a ordem de apresentação: identificação do programa,

agradecimento pelo dia, comentário sobre um fato atual, posicionamento cristão perante o

mesmo e bênção final. A entonação grave do locutor busca encurtar a distância entre

narrador – ouvinte, conferindo à narração um tom de colóquio particular, mais penetrante e

persuasivo, com a permissão do improviso.

Enquanto o Momento de Paz induz o ouvinte à reflexão por meio do comentário,

Momento Espiritual de Fim de Tarde baseia-se na sintaxe da prece: a audição automática e

assimilação mecânica dos valores e preceitos em seus conceitos abstratos. O curioso é que

esse módulo, transmitido há quatro anos pela Rede Mais Nova FM, situa-se num dos

horários de maior audiência de um público jovem, antes do ranking musical As mais

pedidas do dia.52 Caracteriza-se pela atemporalidade do enunciado; cada programa constitui

uma célula à parte, sem qualquer ligação com os anteriores ou preocupação com a

atualidade. A temática predominante relaciona-se aos conceitos cristãos e valores

universais.53

51 O programa foi exibido dia 06 de novembro de 2002, às 17 horas e 55 minutos, pela Rádio São Francisco AM.52 Depoimento de Frei Jaime Betega, apresentador do programa: “ele ‘quebra’ bruscamente com a seqüência da programação, mas, a grande maioria, confirma que ‘faz bem’ um momento de interiorização no final da tarde e no início da manhã, uma vez que o programa tem curta duração. As características do programa ajudam para que os ouvintes se sintam em paz e como certos da proteção divina.”

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Rede Mais Nova FM. Momento Espiritual de Fim de Tarde. Reflexão com Frei Jaime Bettega.

Amigos da Rede Mais Nova Fm. A luz deste dia vai, aos poucos, cedendo lugar para a noite que anuncia a sua chegada. E nós nos encontramos para nossa prece. Senhor, Deus de ternura e de misericórdia, vossa bondade nos permitiu viver atentamente este dia. Houve momentos de alegria e de paz. Mas os momentos de incerteza também se fizeram presentes. No entanto, vossa proteção em nenhum momento se afastou de nós. Assim, nos sentimos seguros e fortalecidos, conseguindo enfrentar as dificuldades que sempre insistem em se fazer presentes em nossa vida. Mas só pelo fato de sabermos que sois nosso Pai e que cuidais de todos nós, isso nos ajuda a caminharmos atentamente nos caminhos que a vossa bondade vai indicando a todos nós. Obrigado, Senhor, por mais este dia. Ajudais-nos a permanecer na vigilância do vosso amor. Só assim seremos, de fato, felizes e realizados e ajudaremos os outros a encontrarem esse caminho de amor.

A bênção de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.Rede Mais Nova FM. Momento Espiritual de Fim de Tarde. Reflexão com Frei

Jaime Bettega. 54

A abertura marca, invariavelmente, a temporalidade vespertina (No entardecer deste

dia, Antes que a noite se aproxime, Enquanto o dia vai anunciando o seu término...). As

formas verbais, majoritariamente no presente do indicativo, aparecem conjugadas na

segunda pessoa do plural (vós), raramente empregada na comunicação oral ou no discurso

coloquial. A escolha pronominal realça o caráter de pregação religiosa, uma vez que impõe

formalidade e reverência. A ausência de expressões populares, ou vícios de linguagem

durante a narração, torna o texto rígido, inflexível.

O conjunto obedece a uma seqüência imutável (convite para a oração,

agradecimento pelo dia, pedidos ao Senhor e bênção final), com pouca variação, sobretudo

no vocabulário empregado. A mecanicidade da leitura da mensagem implica numa suposta

recepção automática; portanto, sem grande penetração no ouvinte de atenção flutuante. Sua

audição assemelha-se à repetição das palavras na reza, cuja significação é a realização do

próprio ato em si, sem que a devida atenção seja destinada à compreensão daquilo que é

dito. Apesar do ritmo acelerado, a repetição dos elementos sonoros lembra uma ladainha; o

conjunto de elementos impessoais e cerimoniosos é um contraponto à agitada programação

radiofônica vigente naquele momento.

Numa breve digressão, é possível associar os dois tipos de módulos (um

cronológico, outro atemporal) ao próprio Cristianismo como uma religião do homem

53 Os mais recorrentes são agradecimentos pelo dia que chega ao fim, pedidos de proteção, saúde e auxílio na consecução de objetivos e realização de atividades, a propagação da paz, do amor e da justiça.54 Programa exibido dia 06 de novembro de 2002, às 18 horas e 02 minutos, pela Rede Mais Nova FM.

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histórico, integrado na cronologia e que descobre o tempo contínuo em vez do paraíso da

repetição. Por outro lado, no mesmo calendário que segue em direção ao progresso, a Igreja

projeta seus mitos por meio dos ritos cíclicos da criação e da salvação (Advento,

Natividade, Quaresma, Paixão e Pentecostes). 55

As diferenças entre as mensagens estão relacionadas à emissora pela qual cada uma

é veiculada e o público-alvo a que se destinam. Ambos os programas são resultantes do

período pós-conciliar e do incentivo às práticas religiosas mais participativas e pregações

analíticas e críticas, além da apropriação dos códigos radiofônicos para simplificação dos

conteúdos. Situados no tradicional horário da reza da Ave-Maria, os programas não

estabelecem uma referência obrigatória à figura da Virgem. O programa AM, cujo caráter

religioso é mais forte, vale-se de recursos que evoquem a fé cristã dos ouvintes.56 Em

oposição, a mensagem de FM busca um maior distanciamento da doutrina por meio de

textos mais reflexivos e da meditação.57

Uma pesquisa realizada em regiões metropolitanas do Brasil sobre várias questões

relativas aos hábitos religiosos, pesquisadores da CERIS, ligada à CNBB, constataram um

percentual significativo de desconhecimento, ou mesmo não acompanhamento, da

programação católica de rádio pelos ouvintes, incluindo aí os que professam a prática dessa

religião. É possível que a mesma desatenção ocorra com os ouvintes das mensagens

radiofônicas de final de tarde em função da sua condição fugidia e anacronismo em relação

à programação vespertina. Porém, a diferença do enunciado (voz pausada e solene, a

música meditativa) atualiza de alguma forma o sagrado, presente de forma atávica no

imaginário de cada sujeito, mesmo o mais distraído, algo como a “experiência religiosa sem

Deus” de que falava Manuel Bandeira, resíduos de uma sacralidade arcaica.

Considerações finais

E o morro inteiro no fim do diaReza uma prece Ave Maria

55 LE GOFF, Jacques. 1992.56 Pesquisa Ibope setembro 2003: O horário das 17h às 19h, na Rádio São Francisco AM, é um de menor número absoluto de ouvintes por minuto: 17h-18h (425) e 18h-19h (647).57 O perfil compreende o ouvinte que sintoniza a Rede Mais nova FM no período compreendido entre 15 e 19 horas. Prevalece o público feminino (64%), das classes AB (54%) e C (37%), nas faixas etárias de 29 a 30 anos (24%), de 19 a 20 anos (16%) e de 34 a 35 anos (15%). Ouvintes com idade superior a 60 não fazem parte do público ouvinte. Informações retiradas do site da emissora.

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Ave Maria... AveE quando o morro escurece

Elevo a Deus uma preceAve Maria

(Ave Maria no morro - Herivelto Martins)

Os efêmeros fragmentos aqui iluminados registram um culto arraigado no

imaginário popular, e que o rádio deu vazão durante boa parte do século XX ao incluir a

Hora da Ave-Maria como uma dos vértices de sua programação, envolvendo a figura

feminina mais representada na história, nas artes e na música. Como escreve Luís da

Camara Cascudo, em Superstição no Brasil, desde o século II, “vibrou uma delirante

simpatia pela Mãe de Deus, resgatando-a do laconismo dos Evangelhos canônicos”,58

atualizando, a partir de cada horizonte histórico, o paradoxo da castidade e da maternidade.

Jaroslav Pelikan supõe que a prece angélica, “pelo número de vezes em que foi repetida, só

perde para a Oração do Senhor”.59 No caso do Brasil, a consagração de Nossa Senhora

como padroeira ocorre justamente nos anos 30, época de fortalecimento do Estado e início

da popularização do rádio, veículo que irá se engajar no projeto de construção e

transmissão do sentimento de nacionalidade. Nada mais natural, portanto, que a evocação à

mais emblemática figura feminina tenha tido seu horário assegurado no veículo que

amalgamou idiossincrasias regionais.

No livro A imigração esquecida, Silvino Santin utiliza o sino como alegoria da

Quarta Colônia de imigração italiana, situada no Vale Vêneto no Rio Grande do Sul, região

que não viveu a mesma ascensão econômica da serra gaúcha: “O imigrante, perdido e

abandonado na imensa solidão das florestas brasileiras, fez do sino seu porta voz”,60

expondo uma típica narrativa que formou o imaginário da experiência da imigração italiana

no sul do Brasil, dando-lhe a dramaticidade exigida pelo deslocamento definitivo. As

organizações religiosas, investidas na disciplina do sagrado, fizeram do rádio o seu porta-

voz, garantindo a recepção muito além da abrangência de um sino, objeto que, na Idade

Média, estabelecia a fronteira e o limite de uma cidade. Sinal sonoro mais significativo de

uma comunidade cristã, o sino uniu-se ao relógio mecânico a partir do século XIV,

58 1985: 36259 2000: 3160 1986, p.8.

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transformando-se numa espécie de calendário acústico ao marcar a festa, o nascimento, a

morte ou a guerra.61

No contexto da pesquisa em desenvolvimento sobre a história do rádio regional, e

no qual insere-se o presente recorte, tais módulos radiofônicos apontam para o quanto a

Igreja católica, em especial a Ordem Franciscana dos Capuchinhos, influiu no caminho e na

consolidação dessa mídia, comandando até hoje inúmeras emissoras da serra gaúcha a

partir das novas estratégias de evangelização frente ao crescimento das religiosidades

concorrentes.

A relação entre o rádio e o sino é recorrente nos diversos relatos locais, ou seja, está

na matriz da trajetória do veículo numa cultura marcada pela oralidade, pelo alto índice de

analfabetismo e pela utilização de um dialeto próprio resultante da mescla língua

portuguesa e dos diversos dialetos italianos. A instalação das primeiras emissoras na região

ocorreu em pleno apogeu do rádio nacional, após a Segunda Guerra Mundial. O rádio

serviu, em cada comunidade, para ampliar a ação do púlpito, dos alto-falantes das Igrejas

ou da praça central, experiência essa ainda vigente em determinadas comunidades.

Ao perseguir os vínculos entre a ação pastoral católica e o percurso do rádio, é

possível aproximar, no universo de nossa investigação, o presente estudo de outro caso

envolvendo o culto religioso aos mortos e sua propagação numa emissora laica. O formato

do principal e mais antigo radiojornal da cidade de Caxias do Sul, o Formolo, transmitido

ao meio-dia, e que prioriza os anúncios fúnebres locais (e pagos) em detrimento da

reportagem jornalística, resiste apesar da queda consecutiva dos índices de audiência. Até

2002, o radiojornal Formolo era apresentado por Vivaldo Vargas, que se despedia dos

ouvintes da rádio Caxias com a intimidade da frase “Até amanhã, se Deus quiser”.62 Ambos

são fragmentos remanescentes do quanto cada emissora assumiu a função do campanário,

tangenciando a carga simbólica presente no movimento das horas. Envolvido na complexa

teia de devoção e território, retomando a cena inicial da tela de François Millet, o rádio

ainda refrata, como num prisma, o quanto a religião serviu de esteio para a conquista

econômica e legitimação cultural de uma terra.

61 SHAFER, Murray. 2001:86-89.62 Cf. GOLIN, Cida & KREISNER, Maria da Graça. 2002.

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