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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
RAFAEL BEZERRA GASPAR
O TAIM E A CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA: Um estudo sobre as relações entre sociedade e ambiente
SÃO LUÍS 2007
1
RAFAEL BEZERRA GASPAR
O TAIM E A CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA: Um estudo sobre as relações entre sociedade e ambiente
Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do grau de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais Orientador: Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior
SÃO LUÍS 2007
2
RAFAEL BEZERRA GASPAR
O TAIM E A CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA: Um estudo sobre as relações entre sociedade e ambiente
Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do grau em Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais
Aprovado em ____/ ____/ 2007
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________ Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________ Prof. Ms. Elio de Jesus Pantoja Alves
Universidade Federal do Maranhão (1º examinador)
___________________________________________________ Prof. Bartolomeu Rodrigues Mendonça
Universidade Federal do Maranhão (2º examinador)
3
AGRADECIMENTOS
Em muitos momentos de produção deste trabalho senti-me solitário. Percebo que em
rituais como esses, a solidão é companheira do escritor. Mas, a muitos tenho que compartilhar
meus sinceros agradecimentos.
Em especial à minha mãe e minha irmã, pelo intenso carinho, companheirismo e
dedicação, respectivas, ao filho e irmão. Sem elas, eu não concluiria mais este ritual de vida.
As duas são minha família.
A meu orientador, amigo e companheiro de muitas conversas e jornadas acadêmicas,
professor Horácio Antunes, por quem guardo uma grande admiração pelo profissional
competente e sincero que é. Sem dúvida, sua presença foi e é fundamental para a minha
formação como cientista social.
Aos professores Ednalva e Biné que, durante minha graduação, mostraram-me o rigor
suave e a qualidade de serem excelentes profissionais e amigos de muitos debates.
A professora Maristela, que é uma grande mestra do ensino e da vida e em quem me
inspiro no percurso da carreira que escolhi.
A professora Arleth Borges, por me esclarecer todas as dúvidas sobre o trabalho
monográfico e pela profissional dedicada e íntegra que sempre demonstrou ser.
A querida Jana, grande amiga, que mesmo longe de corpo, mas não de alma, nos últimos
tempos, sempre compartilhou alegrias e desabafos. Valeu, Jana, pelos momentos de pesquisa
e aventuras nesses rápidos anos de graduação.
Às queridas Bebel e Mari Vilma, minhas grandes amigas de muitos encontros pela vida
afora. Sem elas, não sustentaria o peso de muitas atribuições e nem sorriria para espantar as
angústias de momentos da vida. Vocês são muito especiais.
Ao senhor Levi e a Elis que sempre foram muito educados e prestativos e, em muitos
momentos aturaram minha impaciência na sala do Centro Acadêmico de Ciências Sociais.
A Eliane Soares, pelas informações cedidas e por ser sempre educada quando visitava-a
no seu emprego para obter dados necessários à pesquisa.
A Gustavo, Carolzinha e Maiâna, pelas trocas e discussões de informações conseguidas
no IBAMA e em campo.
A Beto que, através de sua fala, mostrou-me riquíssimas histórias de vida, de luta e de
sonhos que me fizeram refletir.
Aos analistas ambientais do IBAMA, em especial, a Kátia, Alexandre, Rogério, Mary
Jane, Alice, Bruno e Karina, por esclarecerem todas as minhas dúvidas.
4
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de
hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem
sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.
(Bertold Brecht)
5
RESUMO
O presente trabalho trata da proposta de criação da Reserva Extrativista do Taim, com localização prevista na porção sudoeste da Ilha de São Luís, abrangendo os povoados de Cajueiro, Limoeiro, Porto Grande, Rio dos Cachorros e Taim, parte da Vila Maranhão e a Ilha de Tauá-Mirim. A partir de uma experiência de pesquisa no povoado do Taim e análise de documentos elaborados para fins de criação da referida Resex, desenvolvo um estudo que apresenta alguns aspectos do seu processo sócio-histórico de reivindicação, relacionando com três principais situações: a constituição sócio-histórica e normativa de criação das reservas extrativistas no Brasil; os grandes projetos industriais localizados no Distrito Industrial II da llha de São Luís; e a emergência da categoria populações tradicionais.
Palavras-chave: Reserva Extrativista. Populações Tradicionais. Socioambientalismo. Grandes Projetos. Maranhão.
6
ABSTRACT
The present work deals with the proposal of creation of the Extractive Reserve of the Taim, with localization foreseen in the southwestern portion of the Island of São Luís, enclosing the villages of Cajueiro, Limoeiro, Porto Grande, Rio dos Cachorros, Taim, part of the Vila Maranhão and the Island of Tauá-Mirim. From an experience of research in the village of the Taim and documents analysis elaborated for ends of creation of the related Resex, I develop a study that presents some aspects of its claim social-historical process, relating with three main situations: the social-historical and normative constitution of creation of the extractives reserves in Brazil; the great industrial projects located in Industrial District II of llha of São Luís; and the emergency of the category traditional populations.
Key-words: Extrative Reserves. Traditional Populations. Social-environmentalism. Great Projects. Maranhão.
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 p.
Ruínas no povoado do Taim 36
Ilustração 2
Mapa atualizado da Reserva Extrativista do Taim 43
Ilustração 3
Beto falando com moradores da Ilha de Tauá-Mirim 59
Ilustração 4
Mapa dos limites entre o Distrito Industrial II da Ilha de São Luís e da área
prevista para a Resex do Taim 65
Ilustração 5
Instalações da Companhia Vale do Rio Doce vistas do povoado do Taim 66
9
LISTA DE SIGLAS
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico
CNPT Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Populações
Tradicionais
DESOC Departamento de Sociologia e Antropologia
GEDMMA Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
PPGCS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
RESEX Reserva Extrativista
RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentável
SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação
UC Unidades de Conservação
UICN União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos
Naturais
UFMA Universidade Federal do Maranhão
10
SUMÁRIO
p.
1. INTRODUÇÃO....................................................................................................... 11
2. PERCURSO METODOLÓGICO......................................................................... 17
3. NATUREZA – UMA INVENÇÃO HUMANA.................................................... 23
3.1 O surgimento das chamadas Unidades de Conservação no contexto da cultura
ocidental........................................................................................................................ 23
4. O POVOADO DO TAIM....................................................................................... 30
4.1 Localização............................................................................................................. 30
4.2 Histórico.................................................................................................................. 34
4.3 Relação com outros povoados................................................................................ 37
5. A RESERVA EXTRATIVISTA DO TAIM......................................................... 42
5.1 Aspectos geográficos.............................................................................................. 42
5.2 Situação sócio-econômica: Interpretação............................................................... 46
5.3 Gênese da Resex do Taim: A relação com processos sócio-históricos e normativos
de criação das reservas extrativistas no Brasil.............................................................. 50
5.4 A presença do IBAMA: Considerações sobre usos de categorias.......................... 57
5.5 No limite: Os impactos dos grandes projetos industriais na Ilha de São Luís........ 64
5.6 “Somos populações tradicionais”: História social, conceitos e apropriação política
de uma categoria.......................................................................................................... 74
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 86
7. BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 90
ANEXOS...................................................................................................................... 96
11
1. INTRODUÇÃO
(...) ‘complicar’ o tempo crônico da história confrontando-o
com outro tempo, que é o do próprio discurso,
e que se poderia chamar, por condensação,
o tempo-papel, em suma, a presença, na narrativa
histórica, dos signos explícitos de enunciação.
Visaria a ‘descronologizar’ o fio histórico e a reconstituir,
mesmo a título de mera reminiscência ou nostalgia,
um tempo complexo, paramétrico, de modo algum linear,
cujo espaço profundo lembraria o tempo mítico das antigas
cosmogonias,também ele ligado por essência
à palavra do poeta ou do adivinho.
(Roland Barthes)
Em fins do ano de 2005, comecei a participar do Grupo de Estudos
Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA)1 através da minha graduação
no curso de Ciências Sociais2. Quando iniciei neste grupo, a principal preocupação de seus
coordenadores e dos estudantes era investigar o processo e as conseqüências sociais e
ambientais da implantação de um complexo siderúrgico na porção sudoeste da Ilha de São
Luís, no município de São Luís – MA3, no ano citado acima.
Inserindo-me nessa investigação, meses depois, já no ano de 2006, mais
precisamente entre maio e junho, concorri a uma bolsa de iniciação cientifica através do
projeto de pesquisa Modernidade, Desenvolvimento e Conseqüências Sócio-Ambientais: A
implantação do Pólo Siderúrgico na Ilha de São Luís-MA. A iniciativa deste projeto era de
aprimorar ainda mais a discussão, principalmente, sobre as conseqüências que a implantação
de um complexo siderúrgico produziria para as condições ambientais e sociais na Ilha de São
Luís.
1 Grupo de estudos e pesquisa cadastrado na Plataforma Lattes do CNPq, é vinculado ao Departamento de Sociologia e Antropologia e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFMA). Atualmente, tem como líder o Professor Doutor Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior. 2 Em 2003 ocorreu minha entrada no curso de Ciências Sociais na UFMA. 3 A Ilha de São Luís é composta por quatro municípios: Paço do Lumiar, São José de Ribamar, Raposa e São Luís.
12
Antes mesmo da seleção da bolsa de iniciação cientifica, um outro evento
começou a chamar a atenção dos integrantes do grupo. Estou referindo-me à proposta de
criação de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável4 – a Reserva Extrativista5 do
Taim – em parte da área a que se destinava a implantação do citado complexo siderúrgico.
Envoltos nas discussões que circulavam no grupo de estudos, os coordenadores
junto com os estudantes decidiram, então, investigar, além da instalação do complexo
siderúrgico, a proposta de criação da Reserva Extrativista do Taim, buscando entender esses
dois processos de forma relacional e quais eram os problemas suscitados por esta relação. A
partir desse objetivo e decorrido o processo de seleção da bolsa de iniciação cientifica, em que
fui indicado, eu comecei a investigar quais relações se configuravam entre a implantação de
um complexo industrial e a proposta de uma unidade de conservação de uso sustentável
previstas para se localizarem em uma mesma região.
Com muitos dados que o grupo já havia conseguido sobre a implantação do pólo
siderúrgico, minha primeira iniciativa foi procurar o órgão responsável pela criação das
reservas extrativistas. Acabei entrando em contato com o IBAMA6. Lá, iniciei os primeiros
4 Conforme a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (UICN) apud Brito (2003, p. 19), uma unidade de conservação ou uma área natural protegida é definida como “uma superfície de terra ou mar consagrada à proteção e manutenção da diversidade biológica, assim como dos recursos naturais e dos recursos culturais associados, e manejada através de meios jurídicos e outros eficazes”. Já o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, o SNUC, (lei nº 9.985/2000) institui dois tipos de unidades de conservação: a de proteção integral e a de uso sustentável. A Unidade de Conservação de Uso Sustentável tem como objetivo “compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais”. O SNUC registra sete categorias de Unidades de Conservação de Uso Sustentável: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural. Existem, também, as Unidades de Conservação de Proteção Integral composta pelas seguintes categorias: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre (BRASIL, 2004). 5 Maiores explicações sobre a categoria “Reserva Extrativista” virão em tópicos oportunos dos quais tratarei da proposta de criação desta modalidade de unidade de conservação na Ilha de São Luís. 6 O IBAMA foi criado em 1989 como resultado da consolidação das instituições de meio ambiente anteriormente existentes, como o IBDF (Instituto Brasileiro para o Desenvolvimento Florestal), criado em 1967 e que fazia parte do Ministério da Agricultura, a SEMA (Secretaria Especial do Meio Ambiente) criada em 1973 e as superintendências SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca) e SUDHEVEA (Superintendência do Desenvolvimento da Borracha) que faziam parte do Ministério da Agricultura (BRITO, 2003). No ano de 2007, alguns Centros especializados do Ibama passaram para uma nova instituição, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, criado através da lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007. O Instituto Chico Mendes é uma autarquia federal, de autônima administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio
13
contatos com os analistas ambientais que trabalham no Centro Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Populações Tradicionais (CNPT)7, um dos vários departamentos
administrativos do IBAMA e que trata especificamente da instalação das Unidades de
Conservação de Uso Sustentável e da gestão compartilhada com os moradores que vivem
dentro da área dessas Unidades.
Minha aproximação com os analistas ambientais do CNPT foi bem amistosa e os
mesmos foram atentos quanto às minhas indagações sobre a criação de uma reserva
extrativista na Ilha de São Luís. A partir daí, comecei a colher diversos documentos e passei a
contactar os possíveis informantes para realizar, posteriormente, o trabalho de campo.
Foi a partir de então que a minha pesquisa tomou um novo caminho,
diferenciando-se das preocupações iniciais contidas no projeto Modernidade,
Desenvolvimento e Conseqüências Sócio-Ambientais: A implantação do Pólo Siderúrgico na
Ilha de São Luís-MA.
Em meio à minha participação em reuniões dos analistas ambientais do CNPT na
sede do IBAMA, em encontros com os mesmos na universidade através de iniciativa do
GEDMMA para esclarecimentos sobre a criação de unidades de conservação, em reuniões em
dois povoados que estão inseridos na área da referida Resex e na consulta pública para a
criação da mesma, constatei que a proposta de criação da Resex do Taim despontava para
Ambiente. Este novo órgão significou uma divisão no Ibama, já que uma série de competências do Ibama foram transferidas para o Instituto Chico Mendes. 7 O Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Populações Tradicionais (CNPT) constitui-se de um órgão integrado no IBAMA, criado através da portaria nº 22 de 10/02/1992 e tem a finalidade de promover a elaboração, implantação e implementação de planos, programas, projetos e ações demandadas por grupos sociais classificados como populações tradicionais, através de suas entidades representativas, e/ou indiretamente, através dos órgãos governamentais constituídos para este fim, ou ainda, por meio de organizações não-governamentais. Com a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, através da lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007, o CNPT está, atualmente, integrado a este novo órgão federal. O presente trabalho ainda leva em consideração o contexto de integração do CNPT no IBAMA, salvo em situações que estiver explicito minha referência ao Instituto Chico Mendes. Neste trabalho monográfico, optarei, por questões éticas e por tratar de funcionários públicos, em não citar os nomes dos analistas ambientais nos momentos em que utilizo as falas dos mesmos.
14
além da relação com a implantação do complexo siderúrgico, pois estava atrelada as
problemas de natureza social e ambiental há pelo menos uma década de mobilizações.
Por mais que tenha sido em pouco tempo a minha investida a alguns contextos do
universo real da pesquisa, a mesma começou a colocar-me uma nova inquietação,
distanciando-me do estudo previamente proposto sobre as concretas relações entre a criação
da Resex do Taim e a implantação do Pólo Siderúrgico. Então, acabei decidindo junto com o
orientador do projeto citado, por mudar meu objeto de análise. Direcionei minha atenção para
estudar a proposta de criação da Reserva Extrativista do Taim.
Ciente dessa nova perspectiva criada, tive que superar meus obstáculos de tempo e
de construção de um novo objeto de estudo que viabilizasse a adequação dentro do projeto em
que eu estava inserido.
Acabei percebendo que o choque com o universo da realidade social que buscava
estudar colocou-me diante do desafio que envolve a relação entre pesquisador-objeto. Como
minha aproximação acabou sendo muito mais pertinente e de maior interesse sobre quais
questões podiam ser levantadas a partir da criação da Resex do Taim, acabei tendo que
reconstituir minha proposta investigativa.
Precisava assim, superar esta primeira dificuldade, que foi a mudança do foco
investigativo, para então repensar como o estudo da criação da primeira Reserva Extrativista
na Ilha de São Luís podia ser desdobrado dentro do projeto já citado do qual participava como
bolsista.
Diante desse novo painel investigativo, resolvi prosseguir nesta rota, que de forma
nenhuma exclui as bases de sustentação teórica e empírica do projeto em que me inseri, mas,
pelo contrário, coloca-me em confronto com ampla possibilidade de discutir referências
teóricas na interface entre sociedade e ambiente.
15
O presente trabalho monográfico é o fruto da minha tentativa de expor situações
que me foram visíveis durante minha experiência de pesquisa no estudo da proposta de
criação da Reserva Extrativista do Taim. Para tanto divido este trabalho em três partes que são
apresentadas a seguir:
A primeira parte denominada Natureza – Uma invenção humana diz respeito a
uma reflexão e o resgate de como o mundo natural foi percebido a partir do século XIX no
contexto da cultura ocidental. De forma diacrônica, apresento como as percepções do ser
humano, no caso da cultura ocidental européia, inventaram o mundo natural constituindo
saberes e promovendo ações concretas que vieram a construir espaços de “preservação” e
“conservação” do meio natural, naquilo que conhecemos hoje como Unidades de
Conservação.
Chamo a atenção para o fato de que configurações de mundo natural, como o
surgimento das Unidades de Conservação no contexto ocidental, sempre foram construções
humanas, ou seja, são símbolos de uma forma de pensar (BARRETO FILHO, 2002).
Na segunda parte, dirijo minha atenção para o contexto da minha experiência de
pesquisa sobre a proposta de criação da Resex do Taim. Por isso, nesse segundo momento
denominado O povoado do Taim apresento algumas informações sobre o povoado em que fiz
trabalho de campo, no caso, o Taim. Descrevo seus aspectos geográficos, sócio-econômicos, a
gênese do povoamento e suas relações com outras localidades, a partir do registro
memorialístico de suas lideranças, da observação in loco e de informações em documentos
conseguidos junto ao IBAMA-MA.
A terceira parte é a mais longa, pois trata da proposta de criação da Reserva
Extrativista do Taim. Nessa parte, construo o texto ressaltando aspectos que se tornaram
visíveis para pensar como se configurava a proposta dessa Resex. Primeiramente, apresento
os dados geográficos dessa Resex, para em seguida destacar e fazer a interpretação de
16
informações que me chamaram atenção quanto ao aspecto sócio-econômico que vem
elaborado no Laudo Sócio-Econômico emitido pelo IBAMA-MA.
Após esses itens, destaco quais as situações que estão relacionadas à gênese da
proposta de criação da Resex do Taim, levando em consideração a influência do movimento
socioambientalista no Brasil para o impulso na constituição das primeiras reservas
extrativistas. Nesse item, também, realizo uma crítica à forma como são operados certos
instrumentos de gestão das Resex, caso do plano de uso e do plano de manejo, procurando
lançar luz sobre a análise do trabalho com as diferentes categorias que surgem em
documentos de gestão dessas unidades de conservação, a partir de situações encontradas em
campo e das normas contidas em documentos oficiais.
Por fim, realizo um exercício sobre dois aspectos que figuram como relevantes na
constituição do estudo sobre a criação da referida Resex. Primeiramente, apresento alguns
preocupações de lideranças do Taim com os impactos de longo tempo que os projetos
industriais próximos vêm causando aos ecossistemas locais, destacando que essa situação
fortalece as medidas de reivindicação da Resex do Taim.
E, em segundo lugar, destaco a categoria populações tradicionais como peça
importante na reivindicação de uma liderança do povoado do Taim para a criação da Resex.
Coloco em revista como esta categoria foi construída socialmente e interpreto seu significado
à luz das informações conseguidas com a liderança do Taim.
Espero, apesar das minhas limitações, que este trabalho contribua para chamar
atenção às diversas formas de relações travadas entre sociedade e natureza, e como podemos
pensá-las no caso da situação específica da proposta de criação da Reserva Extrativista do
Taim.
17
2. PERCURSO METODOLÓGICO
O cume da arte, em ciências sociais,
está sem dúvida em ser-se capaz de pôr em jogo
‘coisas teóricas’ muito importantes
a respeito de objectos ditos ‘empíricos’ muito precisos,
frequentemente menores na aparência,
e até mesmo um pouco irrisórios.
(Pierre Bourdieu)
O percurso entre documentos oficiais, laudos e relatórios, na coleção de fotos, nas
idas e vindas a campo para realizar diálogos informais e entrevistas com as partes envolvidas
constituiu-se em um conjunto de esforços destinados à coleta de fragmentos discursivos,
visuais ou resgatados da memória. Esses fragmentos puderam me orientar na montagem de
um painel elucidativo destinados a debater temas visibilizados a partir do estudo da proposta
de criação da Reserva Extrativista do Taim.
Importa deixar bem esclarecido que a montagem dos fragmentos obtidos em fontes
diversas é elaborada a partir de um olhar que não é completo, mas parcial e carregado de
limitações teóricas e metodológicas. Em nenhum momento, almejei um trabalho completo,
perfeito ao extremo e que de forma nenhuma deixasse lacunas para possíveis outras
investigações sobre o objeto que pesquisei.
Confesso que meu olhar é um olhar bem específico, que vê a partir de alguns
ângulos o objeto estudado e que se esforça para tecer e debater aspectos considerados por
mim como fundamentais para o entendimento da realidade social sobre a qual me debrucei.
De acordo com Certeau (2002, p. 81), “tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de
transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira”.
Em outras palavras, o resgate histórico e as discussões dos aspectos que emergem
do conjunto de dados obtidos neste meu estudo são construídos através do percurso de separar
e transformar o que para mim é visto como importante para minha abordagem. Não que seja o
18
roteiro verdadeiro da história que irei construir. Mas esforço-me para arquitetar uma possível
construção em meio a muitas outras que podem ser feitas.
Certeau (2002) afirma, também, que por trás do percurso traçado pelo pesquisador
está implícito qual o lugar e qual a leitura de mundo o mesmo baseia-se para construir seu
texto. Esse autor alega que “uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise
dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente” (CERTEAU, 2002, p. 34).
Uma leitura do presente parte de um lugar, que segundo Certeau (2002), é um
lugar de saber, de uma posição intelectual e social legitimada do pesquisador. Isso,
simbolicamente, é válido para se pensar em quais condições sociais são produzidos os
diversos formatos de produções textuais. Em outras palavras, os aspectos que colocarei para
análise são frutos de um lugar de aprendizado, das trocas e vivências intelectuais que
comungam para alicerçar o texto a ser produzido.
A construção textual do pesquisador pode cair na armadilha de explicar de forma
total o que ele considera como importante para sua análise. Busco evitar, assim, essa
armadilha, esforçando-me para não provocar um olhar que “tudo vê”.
Lévi-Strauss (2002, p. 285) afirma que é fundamental que o pesquisador na análise
dos aspectos que escolhe para debater, supere o encantamento do “olhar que tudo vê”, pois ele
nunca conseguirá reunir tudo, sempre haverá lacunas a serem preenchidas, que mais cedo ou
mais tarde tenderão a serem visíveis. Em uma multidão de indivíduos, cada um constrói em
um momento do seu tempo uma inesgotável riqueza de incidentes, proporcionando uma
variedade de visões, como num caleidoscópio.
Dessa mesma forma, Stephen Bann afirma que (1994, p. 61) “(...) não existe um
único e privilegiado processo para exprimir a realidade do passado”. A criação do
pesquisador, no momento de tecer uma historicidade é ter a possibilidade de compor várias
19
teias textuais, seja numa narração ou numa descrição que, pelo menos, aproxime-se, da
possibilidade de apreensão de uma dada realidade social.
O estudo da criação da Reserva Extrativista do Taim reveste-se de um exercício
que merece uma reflexão além do mero limite de se caracterizar como um fenômeno que
expressa preocupações com o meio ambiente ou que denota configurar-se como um problema
aparentemente ambiental. Importa deixar claro que pensar a Reserva Extrativista neste
trabalho é esforçar-se para perceber quais os sentidos culturais e as formas de pensamento
estão em jogo e como a partir disso posso refleti-la como um problema sociológico.
Os procedimentos metodológicos desenvolvidos no percurso dessa pesquisa
seguiram os seguintes momentos:
Revisão bibliográfica e levantamento de material informativo e documental
(laudos, vistorias prévias, identificação de áreas, ofícios, legislação)8. No tocante ao
levantamento de dados direcionei minhas iniciativas na busca de documentação secundária,
através da aquisição do laudo biológico e sócio-econômico da área destinada à Resex9,
relatórios de reconhecimento territorial da região em que se pretende implementar a mesma,
legislação (leis e decretos) e cadastro de imóveis do povoado do Taim.
Trabalho de campo no povoado do Taim: realização de entrevistas, de conversas
informais, identificação de informantes-chave, observação do cotidiano, registro fotográfico,
identificação dos ecossistemas e dos recursos naturais, registro em caderno de campo.
Participei de quatro reuniões com o IBAMA/CNPT – MA, durante o período da
pesquisa, no intuito de um aprofundamento detalhado das ações desse órgão governamental,
8 Boa parte do material informativo e documental foi obtido através do IBAMA/CNPT-MA. 9 A maior parte das informações sobre as características da área prevista para a Resex estão elaboradas no Laudo Sócio-Econômico e Biológico feito pelos analistas ambientais do CNPT. Este laudo foi elaborado no ano de 2006, após as primeiras vistorias da área, com conseqüente delimitação dos marcos territoriais, com a ajuda de moradores. O laudo está estruturado em oito partes: apresentação do estudo; uma caracterização geral da área pleiteada para a Resex; metodologia; caracterização sócio-econômica; recursos naturais; recursos pesqueiros; conflitos ambientais, recomendações e considerações finais. Este laudo passou por modificações na sua redação, sendo finalizado no mês de setembro de 2007, com a inserção de mais informações oportunas para o conhecimento da área prevista para se localizar a Resex do Taim.
20
visando apreender como se processam suas ações na elaboração dos critérios para a criação de
Unidades de Conservação (UC).
Estive presente na consulta pública para a criação da Resex do Taim, que ocorreu
na sede da Associação do Conjunto Jatobá e Vila Maranhão (ACOJAVIMA), no dia 02 de
agosto do ano de 2006.
A escolha do povoado do Taim, ao invés dos outros povoados que constituem a
área da Resex proposta10, deveu-se principalmente, às condições práticas de elaboração deste
trabalho, já que não disponha de muitos recursos para idas e vindas a todos os outros
povoados constantemente e não tive maior tempo para me deter sobre as realidades dos
mesmos.
Além desta condição prática que envolveu meu trabalho, escolhi o povoado do
Taim levando em consideração dois outros aspectos: em primeiro lugar, chamou-me a atenção
o fato de que foi deste povoado, através da Associação de Moradores, que partiu o pedido
oficial para a criação de uma Reserva Extrativista ao IBAMA; em segundo lugar, é do
povoado do Taim que se destacam as principais lideranças de defesa de criação da Resex
junto aos movimentos sociais e aos órgãos públicos, como no caso do próprio IBAMA.
Fui quatro vezes ao povoado do Taim, sendo que a primeira teve um caráter mais
de conhecimento prévio do povoado, no mês de setembro de 2006. Em outras idas,
acontecidas entre março de 2006 a julho de 2007, tive a oportunidade de conhecer mais
informantes, fazer entrevistas semi-estruturadas e ter acesso a outras áreas, apesar de não
permanecer por períodos longos, ou seja, residindo no local. Permanecia no povoado durante
um dia inteiro e retornava em dias posteriores, no decorrer dos meses de pesquisa.
Na última ida ao povoado fui com alguns analistas ambientais do IBAMA/CNPT–
MA, indicando os possíveis informantes-chave para a realização de entrevistas. Ainda realizei
10 A área prevista, atualmente, para a criação da Reserva Extrativista do Taim abrange, além do Taim, os povoados Cajueiro, Limoeiro, Rio dos Cachorrros, Porto Grande, parte da Vila Maranhão e a Ilha de Tauá-Mirim que, por sua vez, contém cinco povoados.
21
duas visitas à Ilha de Tauá-Mirim. Na primeira visita, participei de uma reunião, no dia 03 de
dezembro do ano de 2006, junto com integrantes do IBAMA/CNPT – MA, no povoado de
Jacamim. Esta reunião teve como propósito a inclusão de cinco povoados que fazem parte
desta Ilha11.
No mês de agosto de 2007, participei da visita ao povoado de Tauá-Mirim,
realizando a aplicação de questionários. Esse último trabalho de campo é resultado de um
convite que recebi dos analistas ambientais do CNPT para colaborar na realização do
mapeamento territorial e do levantamento sócio-econômico dos cinco povoados que
compõem a Ilha de Tauá-Mirim.
Para fins de identificação do Taim recolhi dados contidos, principalmente, nos
seguintes documentos, disponibilizados através do IBAMA/CNPT – MA: o Plano de
Desenvolvimento do Assentamento (PDA) Taim (2002) realizado pelo Instituto de
Colonização e Terras do Maranhão (ITERMA); em um relatório avulso de
fiscalização/vistoria do IBAMA/CNPT – MA (2003)12; no levantamento fundiário de criação
da Resex do Taim elaborado pelo IBAMA/CNPT – MA (2007a)13; e no relatório Reunião de
Trabalho da regularização da Gleba Sul da Ilha de São Luís da Gerência de Estado de
Desenvolvimento da Indústria, Comércio e Turismo (2003)14.
Realizei quatro entrevistas gravadas, além de duas outras em que não utilizei
gravadores. No âmbito do GEDMMA, consegui participar de uma palestra de uma das
lideranças do povoado do Taim, o senhor Alberto Cantanhede15 - conhecido como Beto –
11 Os povoados Jacamim, Amapá, Tauá-Mirim, Portinho e Embaubal.. 12 Relatório de fiscalização/vistoria de 16 de setembro de 2003. 13 Mimeo. 14 Relatório que diz respeito ao “Procedimento para retorno das áreas denominadas ‘Itaqui-Bacanga e Tibiri-Pedrinhas’ de propriedade do Governo do Estado do Maranhão”. Neste relatório estão contidos vários documentos para fins de explicação da regularização das áreas citadas. Mimeo. 15 Alberto Cantanhede é uma das lideranças do povoado do Taim e se auto define como pescador. Conhecido como Beto entre os moradores do povoado, por lideranças locais e por integrantes dos movimentos sociais é membro ativo do MONAPE (Movimento Nacional dos Pescadores), do GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), do Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista de Cururupu (MA) e é um dos assessores do Gabinete da atual Deputada Estadual Helena Barros Heluy (PT-MA). Além disso, Beto participa, desde a década de 80, de
22
realizada no Curso de Ciências Sociais da UFMA, através de atividades promovidas pelo
grupo ora citado. Beto tornou-se o meu principal interlocutor quanto à disponibilidade em
fornecer-me um panorama da realidade que me pus a investigar.
Transformar as informações obtidas através dos registros etnográficos colhidos em
pesquisa de campo, ou através de entrevistas e/ou análise de documentos numa estrutura
textual, não significa realizar uma tarefa menos árdua, mas compreendê-la como
o momento do escrever, marcado por uma interpretação de e no gabinete, [que] faz com que aqueles dados sofram uma nova “refração”, uma vez que todo processo de escrever... está contaminado pelo contexto do being here – a saber, pelas conversas de corredor (....), pelos debates realizados em congressos. (OLIVEIRA, 2000, p. 27. Grifo meu).
Será um movimento que deve levar em consideração as condições que mobilizam
nossa apreensão de análise da disciplina ou área de pesquisa que fazemos parte. Oliveira
(2000) contribui, em suas análises, para refletir sobre a questão da autonomia do
autor/pesquisador na tarefa de converter em algum produto – sejam artigos, ensaios ou teses –
as informações investigados no trabalho de campo.
organizações outras, no Maranhão e em outros estados brasileiros, como o Pará, no combate às iniciativas de depredação dos ecossistemas e recursos naturais.
23
3. NATUREZA – UMA INVENÇÂO HUMANA
Os rios que eu encontro vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca, em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente, outros com nome de bicho,
uns com nome de santo, muitos só com apelido.
Mas todos como a gente que por aqui tenho visto (...).
(João Cabral de Melo Neto)
3.1. O surgimento das chamadas Unidades de Conservação no contexto da cultura
ocidental
A partir das últimas décadas do século XIX e no decorrer do século XX, um
conjunto de concepções sobre a natureza passaram a ser operadas na prática. Nesse momento,
as representações sobre a natureza ganharam um significado que colocava em uso o sentido
ecológico do mundo natural (OLIVEIRA, 2004, p. 109).
O homem europeu ocidental concebe a natureza no sentido de que a mesma
não é mais apenas depositária de recursos econômicos ou destinada a consumo estético ou terapêutico sob a forma de paisagem, mas é detentora de um novo atributo: a “fragilidade”, a vulnerabilidade”. Torna-se um espaço culturalmente definido, cuja durabilidade é preciso garantir (OLIVEIRA, 2004, p. 110).
A natureza vai sendo normatizada, através de decretos e leis públicas nos Estados
Unidos e em alguns países europeus, como a Inglaterra, França e Holanda. Através de outros
termos, como, principalmente, meio ambiente, a natureza, no decorrer das primeiras décadas
do século XX, é pensada atrelada à idéia de uso, preservação e defesa dos recursos.
Conforme Morin (1997, p. 53-54), as representações e termos de concepção do
mundo natural constituíram-se num momento histórico do conhecimento que veio a ser
caracterizado pela formação de uma ciência da ecologia, em torno, principalmente, da noção
de ecossistema.
24
A ecologia ultrapassava a mera rigidez das disciplinas biológicas, compondo uma
série de competências, como a botânica, a geomorfologia, a zoologia, a climatologia, dentre
outras. Essas áreas do conhecimento colocavam para a ciência da ecologia uma possibilidade
de hibridismo, sujeita a interpretações múltiplas da natureza, ressignficada sob o termo meio
ambiente.
De acordo com Oliveira (2004, p. 110), a visão que se fazia do meio natural, no
século XIX, era da concepção de espaços que o homem deveria preservar e que estavam
sendo degradados. Essa nova relação com a natureza provinha de problemas oriundos das
conseqüências do acelerado processo de difusão da civilização industrial urbana,
principalmente, na Europa ocidental.
A Segunda Revolução Industrial, no século XIX, alargou sua esfera de ação da
Europa para outras áreas, caso dos Estados Unidos e deliberadamente promoveu
transformações na percepção de uso dos espaços. Com o aumento gradativo das cidades,
alargamento do sistema ferroviário, construção de grandes projetos, como hidrelétricas,
indústrias de uso e manipulação de aço e aumento da distribuição de energia elétrica,
principalmente, em países da Europa e nos Estados Unidos, cresceram problemas
relacionados à utilização e conservação do meio natural, tanto nas cidades, como nas áreas
rurais.
Paralelamente a essas situações, Morin (1997) indica que, no campo do saber, a
ciência da ecologia passou a adotar uma perspectiva de análise dos processos antropossociais,
pois as mudanças no meio natural não deixavam de estar relacionadas às ações dos homens.
A partir de então, o problema ecológico não se limitava a diferentes ecossistemas
separados, mas tinha implicações em toda biosfera e no conjunto da humanidade (MORIN,
1997, p. 57).
25
A ciência da ecologia possibilitou que se pensassem as relações humanas com a
natureza, considerando-as como um elemento vital para a reprodução social da sociedade.
Assim, pensar a natureza a partir de seus elementos ecológicos, com comprometimento de
preservá-los, tornou possível concebê-la como um espaço de intervenção para uso e
conservação. Segundo Oliveira (2004, p. 110), iniciava-se uma concepção de uso do meio
natural a partir de uma “gestão ambiental”.
O sentido da gestão ambiental estava alicerçado na consolidação de normatizações
que subsidiassem o controle do que vinha sendo formalizado como meio ambiente, com o
intuito da preservação dos recursos naturais e, conseqüentemente, a manutenção dos mesmos
para uso da sociedade. Novas relações, representações e formas de apropriação são
reinventadas sob um discurso de proteção ao chamado meio ambiente.
Dentro dessa nova perspectiva de concepção da natureza, entre as nações
ocidentais dominantes (Inglaterra e Estados Unidos, principalmente), começaram a ser
inventados lugares especiais e delimitados espaços que garantissem a conservação dos
recursos naturais e a preservação de espécies animais e vegetais. Surgiam, então, as chamadas
Unidades de Conservação16 e com elas novas maneiras de se conceber o meio natural e
inventá-lo a partir de formas de pensamento coexistentes e que conflitavam pela legitimidade
de afirmar qual modelo devia ser concretizado.
O marco histórico do estabelecimento de áreas destinadas à preservação dos
recursos naturais, de forma sistemática, com dimensões territoriais maiores e implicações das
normatizações políticas foi a criação do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados
Unidos, em 1872 (BRITO, 2003, pp. 19-20). O conceito de parque nacional constituiu-se,
16 Brito (2003) ressalta que, anterior à criação das chamadas Unidades de Conservação, em fins do século XIX, já tinham existido, na história humana, locais destinados à preservação de espécies vegetais. Na Antiguidade, civilizações como da Mesopotâmia Babilônia e Egito, tinham áreas reservadas, como jardins e alamedas, destinadas a serem espaços de cultivo estético.
26
nesse momento, como uma área natural, selvagem e que era designada por wilderness – vida
natural/selvagem (DIEGUES, 1996).
O propósito da formação dos parques nacionais foi resultado de idéias
preservacionistas que se tornavam importantes nos Estados Unidos, naquele momento.
Segundo Diegues (1996), o movimento de criação dessas “áreas protegidas” tinha como
fundamentação as formulações teóricas de autores como Henry David Thoreau e John Muir.
Para esses autores, as áreas dos parques nacionais eram vistas como áreas
“virgens”, que não deviam ser habitadas por grupos humanos e que deviam permanecer
intocadas, tais como originalmente foram criadas pela ação divina (BRITO, 2003). Diegues
(1996) ressalta que as idéias desses teóricos preservacionistas vinham reafirmar o mito do
paraíso terrestre ou da natureza intocada, recriando um novo mito, o que este autor chama de
neomito – as áreas selvagens que não haviam sofrido a ação dos homens.
Contrário às idéias preservacionistas, Diegues ressalta a ocorrência dos chamados
conservacionistas que acreditavam que a conservação deveria ser construída a partir de três
princípios: “o uso dos recursos naturais pela geração presente; a prevenção de desperdícios;
e o uso dos recursos naturais para beneficio da maioria dos cidadãos (DIEGUES; 1996, p.
29). Dentre os teóricos do preservacionismo destacou-se Gifford Pinchot, que foi um dos
precursores do movimento contra o “desenvolvimento a qualquer custo”
Brito (2003; p. 22) enfatiza que mesmo perante às diferenças conceituais entre
preservacionistas e conservacionistas, estas concepções pensavam a relação ser
humano/natureza, ainda, reforçadas na idéia comum da conservação da biodiversidade e da
não interferência do homem no chamado meio ambiente.
A adoção da criação de unidades de conservação vai se difundir por outras nações,
paulatinamente, nos fins do século XIX e decorrer do século XX. Importada dos Estados
Unidos, a mesma ideologia de proteção de grandes áreas naturais de beleza cênica para
27
usufruto de visitantes de fora da área difundiu-se em vários países e criaram-se os primeiros
parques nacionais no Canadá (1885), Nova Zelândia (1894), África do Sul (1898) e Austrália
(1898).
A criação de parques nacionais e reservas florestais em diversos países acabou
revertendo na prática a ideologia do wilderness – área natural/selvagem. Em muitos casos, as
medidas de implementação dessas áreas em países da América Latina, como Brasil e México,
ou da África e Ásia não levaram em consideração as adaptações das normatizações dos
parques à realidade local.
Devido a isso, um dos maiores problemas que Diegues (1996) afirma que surgiu
foi a expulsão de grupos indígenas e pescadores de suas áreas de origens para a implantação
dos parques e reservas. A idéia de área natural/selvagem acabou justificando o contexto
histórico de expulsão de vários grupos nativos.
Diegues (1996, p. 27) afirma que ocorreram inúmeras expulsões de grupos
indígenas nos Estados Unidos. Este é o caso do primeiro parque nacional do mundo, o de
Yellowstone, com a retirada dos índios Crow, Blackfeet e Shoshone-Bannock.
A reprodução dessa situação em outras realidades, tanto nos Estados Unidos, como
em outras nações, acabou gerando fortes contestações por parte de movimentos sociais, nas
décadas de 1960 e 1970. As organizações chamavam atenção para um problema: como
promover a criação de parques e reservas florestais em áreas já habitadas por grupos
humanos, sem interferir nos seus modos de vida?
Um dos espaços para se discutir esta questão foi a realização de congressos e/ou
assembléias destinadas à avaliação, monitoramento e orientação das áreas criadas em muitos
países. Nesses encontros, paulatinamente, começaram a surgir deliberações que colocavam
em ênfase as implicações dos conflitos com grupos humanos na criação de parques e reservas
florestais.
28
A partir de levantamento feito por Brito (2003), recomponho, sinteticamente,
abaixo os principais encontros com as principais deliberações feitas em relação à presença de
grupos humanos em áreas destinadas à preservação permanente.
• I Conferência Mundial sobre Parques Nacionais – Seattle-Estados Unidos (1962): Pela
primeira vez algumas atividades podiam ser permitidas em pequenas áreas dos
parques, mas não de forma permanente. Essas atividades seriam: direito de habitação,
de agricultura, de pecuária, de prospecção e de caça;
• 11º Assembléia Geral da UICN – Bauff-Canadá (1972): Reconhecimento de que
comunidades humanas com características culturais específicas faziam parte dos
ecossistemas dos parques;
• 12ª Assembléia Geral do UICN – Zaire (1975): Reconhecimento dos direitos das
comunidades indígenas no estabelecimento de áreas naturais protegidas;
• III Congresso Mundial de Parques – Bali-Indonésia (1982): Foram reafirmados os
direitos das comunidades com características culturais específicas; estabelecimento de
recomendações para o exercício do manejo dessas áreas em conjunto com seus
habitantes;
• IV Congresso Mundial de Parques – Caracas-Venezuela (1992): Ratificação de que
sejam respeitados os direitos dos povos indígenas sobre suas terras, mesmo que os
governos as tenham designadas como parques nacionais.
Na América Latina, as primeiras unidades de conservação surgiram no México,
através de reservas florestais, em 1894. No Brasil, em 1937, criou-se o primeiro parque
nacional, o de Itatiaia, com incentivos para a pesquisa cientifica e lazer para moradores de
fora, principalmente, os que moravam nos centros urbanos.
Mesmo antes do estabelecimento do parque de Itatiaia, Diegues (1996, p. 113)
afirma que houve incentivos para a criação de parques nacionais no Brasil, caso das propostas
29
de André Rebouças, que em 1879, propôs, pela primeira vez, a criação de parques nacionais
no Brasil. E um dos problemas que surgiram com a criação de parques nacionais no Brasil, tal
como em outras nações, foi a presença de grupos humanos nas áreas pretendidas, que segundo
Diegues (1996) só vieram a ser solucionados paulatinamente entre as décadas de 1980 e 1990.
Assim, somente, no contexto de elaboração do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC), a partir de 1992, é que foi dada a devida atenção à presença de
agrupamentos humanos em áreas destinadas a se tornarem parques ou reservas florestais.
Através do SNUC, as Unidades de Conservação de Uso Sustentável17 admitiam a presença
humana em casos excepcionais e sob várias restrições ao uso dos ecossistemas, caso das
Áreas de Proteção Ambiental e das Florestas Nacionais. Entretanto, Diegues (1996, p. 123)
ressalta que em situações como da Estação Ecológica da Juréia (uma Unidade de Conservação
de Uso Integral que na legislação não admite grupos humanos), localizada no estado de São
Paulo e com a presença de várias famílias, não houve a expulsão das mesmas de suas área de
ocupação.
Não obstante outras unidades de conservação admitir a presença humana, a grande
inovação da legislação ambiental no Brasil, no sentido de terem os grupos humanos como
participantes da criação de unidades de conservação, veio com a proposta das chamadas
reservas extrativistas, através das lutas dos seringueiros do Acre, em fins da década de 1980.
17 Sobre as Unidades de Conservação de Uso Sustentável vide nota 04.
30
4 – O POVOADO DO TAIM
Como aceitara ir no meu destino de mar, preferi essa estrada,
para lá chegar, que dizem da ribeira e à costa vai dar,
que deste mar de cinza vai a um mar de mar; preferi essa estrada
de muito dobrar, estrada bem segura que não tem errar
pois é a que toda a gente costuma tomar
(na gente que regressa sente-se cheiro de mar).
(João Cabral de Melo Neto)
4.1. Localização
Com o objetivo de investigar como surgiu a proposta de criação da Reserva
Extrativista do Taim, acabei optando por conhecer um dos povoados que irão fazer parte da
mesma. Por razões já explicitadas em “Percurso metodológico”, decidi escolher o povoado do
Taim. Como em um quebra-cabeça, fui colando as peças – as fontes colhidas – de forma que
as mesmas constituem os principais subsídios usados para ilustrar neste tópico uma relativa
noção de como é a vida dos moradores desse povoado, sua história de ocupação e como são
mantidas relações com outros povoados.
O povoado do Taim está localizado na porção sudoeste da Ilha de São Luís,
ficando a cerca de 32 km de distância do centro da cidade de São Luís. De acordo com a
Superintendência de Cadastro Municipal, órgão responsável pelo cadastramento dos imóveis
de bairros e localidades na Ilha de São Luís18, o povoado do Taim está situado na
nomenclatura: Distrito 37, Setor 16, Zona Rural.
Investigando se há imóveis referentes ao Taim, descobri, somente, um imóvel
desse povoado registrado nessa Superintendência, que diz respeito à União de Moradores do
Taim. É interessante que esta União de Moradores está regularizada como pertencente ao
bairro Porto Grande, sendo o Taim categorizado pela Superintendência como um
complemento desse bairro.
18 A Superintendência de Cadastro Municipal é vinculada à SEMTHURB (Secretaria Municipal de Terras, Habitação, Urbanismo e Fiscalização Urbana) do município de São Luís.
31
Para chegar ao Taim, podem-se adotar três vias de acesso: a BR-135 nos dois
sentidos (Porto do Itaqui-Vila Maranhão e Pedrinhas-Vila Maranhão) ou pela localidade
Maracanã19. A via mais utilizada durante a pesquisa foi a da BR-135 no sentido Porto do
Itaqui-Vila Maranhão.
Deslocando-se do centro de São Luís, no sentido Porto do Itaqui-Vila Maranhão,
através de carro, gasta-se aproximadamente 25 a 30 minutos. Existe uma linha de transporte
público denominada “Porto Grande”, a única que entra no povoado. Porém, há grande
dificuldade de utilização do mesmo, pois os horários do ônibus são de intervalos longos,
situação que presenciei algumas vezes.
Chegando à entrada do Porto do Itaqui, a trajetória para chegar ao povoado do
Taim é a seguinte: segue-se a rotatória no sentido contrário da entrada do porto em direção à
Vila Maranhão pela BR-135. Antes de chegar à Vila Maranhão, passa-se por instalações da
Ferrovia Carajás, da Companhia Vale do Rio Doce e pelos povoados São Benedito e Vila
Madureira que ficam à margem da BR-135. Chegando à Vila Maranhão, o deslocamento é
feito por uma estrada à direita ao lado de um posto de combustíveis chamado Posto Bacanga.
Seguindo essa estrada em direção retilínea, que é cortada, logo no início, pela
ferrovia Carajás, desloca-se por aproximadamente 10 minutos até deparar-se com o único
cajueiro no lado esquerdo da mesma, onde é encontrada uma placa escrita “TAIM”, indicando
a direção através de uma seta. A partir disso, desloca-se por uma estrada de terra, por cerca
de, aproximadamente, 400 metros, até chegar ao início do povoado20.
Os limites do Taim são os seguintes: ao norte com manguezais; ao sul com o
povoado Rio dos Cachorros; ao leste com o povoado Limoeiro e a oeste com manguezais. O
19 Existe logo na chegada à Vila Maranhão, no sentido Porto do Itaqui-Vila Maranhão, BR-135, uma rua que se birfuca em duas outras (uma de asfalto e outra de terra) ligando esta localidade ao Maracanã. 20 Sem essa informação da placa no cajueiro, eu só conseguiria chegar ao Taim com a presença de alguém que já conhecia o trajeto do mesmo. Como na primeira vez que fui ao Taim não fui com ninguém que o conhecia, tive que realizar o trajeto, somente, seguindo indicações outrora informadas por um dos moradores contactado.
32
povoado é circundado, em boa parte, por cursos d´água, como o igarapé21 Limoeiro, a leste, o
igarapé Piquizeiro, que fica a sudeste, os igarapés Pitiuaçu e Tanque, que ficam no sudoeste e
o Rio dos Cachorros, que atravessa o Taim e é visível através de seu pequeno porto (PDA
Taim, 2002).
O perímetro da área do Taim é de 4.163,15 metros (PDA Taim, 2002). Este
povoado possui uma área total de 86,73 hectares, informação que se iguala às informações de
três fontes: o PDA Taim (2002) com os dados contidos no levantamento fundiário
(IBAMA/CNPT – MA, 2007a) e aos relatos conseguidos através de Beto.
O PDA Taim (2002) registra que existem 72 famílias residentes, sem mencionar a
quantidade de casas. Em conversa informal com Beto, o mesmo declarou-me que existem,
aproximadamente, 500 pessoas, mas que falta um melhor mapeamento dessa realidade22.
Além disso, mais recentemente, entrei em contato com Dona Rosana23, moradora do povoado
e uma das lideranças, e a mesma informou-me que existem, atualmente, aproximadamente, 90
casas e 80 famílias presentes no Taim.
As formas de ocupação e de aquisição das terras do Taim apresentam versões bem
específicas quando se busca relacioná-las. Confrontando as informações de levantamento
fundiário do IBAMA/CNPT – MA (2007a) para fins de criação da Resex do Taim com o
relatório da Reunião de Trabalho da Gerência de Estado de Desenvolvimento da Indústria,
Comércio e Turismo (2003), constatei que aquele reflete, sinteticamente, as informações do
referido relatório sobre a forma de aquisição das terras do povoado.
As terras do Taim constituem áreas contidas no que o referido relatório designa
como “gleba Itaqui-Bacanga” (Gleba A)24. Esta gleba foi cedida pelo Patrimônio da União ao
Estado do Maranhão, com vistas à intenção de criação do Distrito Industrial de São Luís –
21 Igarapé, para os moradores do Taim, corresponde a uma entrada do mar pelo continente, em forma de rio, sendo, portanto de água salgada. 22 Entrevista realizada em 17/09/2006. 23 Entrevista realizada em 02/08/2007. 24 Existe ainda a Gleba B referente a “Tibiri-Pedrinhas”.
33
DISAL. Esta gleba é referida, sob regime de aforamento, conforme mencionado no artigo
compilado abaixo:
Art. 1º - Fica o serviço do Patrimônio da União autorizado a ceder sob regime de aforamento ao Estado do Maranhão, independentemente do pagamento do valor do domínio útil, os terrenos designados por “Gleba A”, com 243.967,898 m² (duzentos e quarenta e três milhões, novecentos e sessenta e sete mil, oitocentos e noventa e oito metros quadrados) (...) (Decreto Federal nº 66.227, de 18 de fevereiro de 1970 e nº 78.129, de 24 de julho de 1976)25.
Essa concessão da gleba “Itaqui-Bacanga”, na verdade, fazia parte das ações
empreendidas no âmbito do Projeto Grande Carajás (PGC)26. No ano de 1977, muitas famílias
dessa área citada, começaram a ser removidas e proibidas de reformarem e construírem novas
casas, sendo expropriadas para a construção do terminal ferroviário Carajás-Itaqui27 (PAULA
ANDRADE, 1981).
No ano de 2000, a concessão da gleba “Itaqui-Bacanga” feita pela União ao Estado
do Maranhão, sofreu um processo de reversão, retornando ao domínio do Governo Federal.
Isso motivou um novo processo, por parte do governo estadual, em requerer de volta o
domínio útil dessa gleba (RELATÓRIO, 2003). Assim, no ano de 2001, a Gerência de
Planejamento e Desenvolvimento Econômico, à época, solicitou à Secretaria do Patrimônio da
União, o seguinte:
Realização de nova cessão sob regime de aforamento gratuito para o Estado do Maranhão, denominada gleba Sul da Ilha de São Luís, com área aproximadamente igual a somatória das áreas das Glebas Itaqui-Bacanga e Tibiri-Pedrinhas (ATA REUNIÃO DE TRABALHO apud RELATÓRIO, 2003).
25 Segundo o levantamento fundiário feito pelo IBAMA/CNPT-MA, estes decretos estão matriculados no Registro de Imóveis do 2º Ofício sob o nº 1.184, R-01, no livro 2-C, fls. 227, datado de 21.07.77;- Constituição de Condomínio. 26 Para alguns detalhes sobre o Projeto Grande Carajás (PGC) ver neste trabalho subtítulo “No limite: Os impactos dos grandes projetos industriais na Ilha de São Luís”. 27 Este terminal é uma das instalações previstas pelo Programa Grande Carajás (PGC) e integra a Ferrovia citada que se estende desde a Serra dos Carajás, no estado do Pará até o Porto do Itaqui, em São Luís, no Maranhão (MENDONÇA, 2006).
34
Foi, assim, que, no intervalo entre a perda do domínio útil da gleba “Itaqui-
Bacanga” e de sua reversão ao Estado do Maranhão, o povoado do Taim foi regularizado
como assentamento, através de trabalho feito pelo ITERMA28. De acordo com Beto, o Taim
foi considerado pelo Governo do Estado como uma das
ocupações irregulares dos últimos quarenta anos, e ai ele [o Estado] dava um marco que era o período do decreto, o decreto é de 70, dos anos 70, 77, então ele dava isso o marco, ou seja, (...) depois que passou para o Estado. (Entrevista concedida em 24/03/2007).
A situação de ocupação irregular vem, segundo Beto, categorizar como o estado
do Maranhão reconhece e torna visível o povoado, contrariando a outra versão da ocupação
ancestral construída na memória dos atuais moradores.
4.2. Histórico
Segundo informações tanto de Beto quanto do senhor Zé Reinaldo29, a gênese da
ocupação do Taim remonta ao século XIX. Eles declaram que, atualmente, estão na 6ª e 5ª
geração, respectivamente, de moradores que nasceram no Taim.
Para essas lideranças, a ocupação do povoado foi muito antes da formalização dos
decretos de 1970 e 1976 referentes à dominação da gleba “Itaqui-Bacanga”, situação em que
não se reconhecem como ocupantes irregulares, mas como integrantes de um grupo secular
que ocupou aquela área.
Quando remetem aos avôs e bisavôs, recordam que os mesmo moravam na área e
que se, atualmente, estivessem vivos, estariam com mais de cem anos. Confirmam, assim, que
de todas as áreas ocupadas na região sudoeste da Ilha, o Taim é somente mais novo que a Vila
Maranhão, ocupação que data do século XVIII (OTONI, 2006). O senhor Zé Reinaldo vai
28 De acordo com o PDA Taim (2002), o Taim passou oficialmente à categoria de assentamento a partir de 27/09/1997, depois que o Governo do Estado classificou-o como Área de Assentamento, através da regularização feita pelo ITERMA. 29 O senhor José Reinaldo Moraes Ramos, mais conhecido como Zé Reinaldo, é um dos moradores mais antigos do povoado e é o atual vice-presidente da União dos Moradores do Taim. Entrevista concedida por ele em 02/08/2007.
35
além do Taim, quando afirma que este povoado tem “(...) 200 anos, que logo após a Vila
Maranhão é uma das comunidades mais antigas”.
Há dois momentos de ocupação do povoado manifestados através da memória
desses informantes. O primeiro é vinculado à existência de negros escravos africanos
reconhecidos como taino que habitaram e permaneceram temporariamente na região do atual
Taim. O período de permanência desses grupos é vinculado à existência de construções
antepassadas que, segundo Beto, são “(...) alicerces numa área que nunca se identificou o que
é que seria mesmo aquilo, [se] era uma construção para moradia, [ou] era um labirinto para
alguma coisa (...)30”.
Segundo o senhor Zé Reinaldo, as ruínas das construções que remontam ao
período ainda colonial estão localizadas próximo ao igarapé chamado Tanque, que deságua
no Rio dos Cachorros. Tais construções seriam utilizadas para a moradia de pessoas como,
possivelmente, antigos casarões ou locais onde os negros permaneciam alojados, ou também
são rememorados como uma espécie de cais para carga e descarga de mercadorias.31
As atuais ruínas são alicerces, conforme Beto, dispostos no formato retangular e,
atualmente, têm cerca de 50 centímetros acima do solo, cobertos por vegetação e estão
visualizados na imagem abaixo.
30 Entrevista concedida em 24/03/2007. 31 Nos relatos, nem Beto, nem o senhor Zé Reinaldo, souberam identificar se eram casarões ou locais destinados à permanência dos negros para o trabalho escravo no local. E não houve nas entrevistas nenhuma confirmação da precedência das mercadorias citadas por eles.
36
Ilustração 1: Ruínas no povoado do Taim
Estes alicerces concretizam o que vem a ser um símbolo de ocupação ancestral
desses moradores do Taim32, indo de encontro à categorização que o Estado afirma como de
ocupações irregulares de períodos mais recentes. Os chamados “tainos”, recorrentes na
memória de Beto e do seu Zé Reinaldo, teriam construído a base da mistura de pedra, argila e
óleo de mamona.
O segundo momento de ocupação é remetido para uma 2ª geração de descendentes
dos primeiros grupos de negros escravos. O Taim não era reconhecido como Taim, mas com a
denominação Laranjal, devido à existência de grandes quantidades de laranjeiras que
32 Não é minha intenção ampliar a discussão da presença desses alicerces como sociogênese de um possível local de negros escravizados ou fugidos ou que permaneceram no local citado depois de libertos. Além de que as informações coletadas não conseguiram ir além das que elaboro no texto.
37
existiram na região no século XIX, e repovoado, conforme o senhor Zé Reinaldo, a partir da
vinda de pescadores e pequenos agricultores do sul da região de Alcântara.
A partir desse momento, foi que o atual nome – Taim – ficou registrado na
memória dos moradores, por reconhecimento do primeiro povoamento, numa junção do nome
taino, designação recorrente ao grupo de negros que habitaram a área do povoado em épocas
da escravatura e da expressão ita, referente ao tipo de pedra que foi bastante utilizada para
erguer as construções referidas anteriormente.
4.3. Relação com outros povoados
Importa, também, resgatar que o Taim, historicamente, nunca esteve isolado e que
mantinha relações com grupos de povoados próximos ou mesmo com pontos localizados no
centro de São Luís e que estão a longas distâncias. Isso é denunciado nas formas de trocas
econômicas características dos segmentos camponeses (WOLF, 1976) ou em referência à
realização dos rituais festivos, que surgem da memória de seus moradores.
Então, vejamos: nos anos 1960 e 1970, a ligação com a cidade se dava através de
vias de passagens de pessoas formados cotidianamente a pé pelo Gapara, região próxima.
Desse local, conseguia-se uma canoa, e atravessando o rio Anil, chegava-se ao Cavaco, atual
Bairro de Fátima para a troca e venda de alimentos.
Para o contato com o Maracanã, podia-se ir através de canoas ou pelas estradas
que eram abertas manualmente, fazendo a comercialização de carvão, produzido tanto neste
local, quanto no Taim. Além disso, concentravam-se no Maracanã, estoques de carvão que,
posteriormente, podiam ser vendidos por moradores do Taim naquele local ou transportados
de um local para outro. Os momentos de maior dificuldade eram concretizados na relação de
mercado, por se dar a volta pela Baía de São Marcos até chegar à Praia Grande, com a venda
de frutas, como manga, jaca, banana, juçara.
38
Outro produto comercializado era o camarão. Este produto era comercializado na
cidade, passando pelos caminhos de trajeto dos moradores, ora pelo Gapara, ora pelo
Maracanã. A farinha, também não é esquecida. Usada, principalmente, para efeitos de troca
por algum produto que não se tinha no povoado ou mesmo por pescado.
Essa relação de troca é realizada ainda hoje, e é descrita como resultado de um
contato com outros povoados mais distantes, casos citados de Carnaúba, Pindotiua e
Paquatiua, e que se localizam no continente, no lado oposto à Ilha dos Caranguejos33. Em
outra situação, no caso do bairro Cajueiro, próximo ao Taim, Mendonça (2006) mostrou como
alguns moradores daquele bairro mantêm desde há, aproximadamente, cinqüenta anos,
relações de trocas e vendas de mercadorias com outros bairros de São Luís e outros
municípios do interior do Maranhão.
Em relação às festividades, é realizada a festa de São Benedito, há cerca de oitenta
anos, sempre no período da Semana Santa, geralmente no mês de abril de cada ano. Na sua
realização, buscam em Porto Grande e Madureira, povoados próximos, a ajuda de recursos na
preparação dos alimentos. As festas com as chamadas radiolas de reggae34 e as serestas35 são
realizadas após negociação com grupos de fora do povoado.
A festa de São Benedito é compartilhada por grande número de pessoas vindas de
povoados próximos, da Vila Maranhão, Vila Embratel, Anjo da Guarda e adjacências. Em
33 A Ilha dos Caranguejos é uma Área de Proteção Ambiental (APA), sob gestão do Estado do Maranhão, com uma extensão de 1.775,040 ha e fica localizada próximo ao Porto do Itaqui. Essa Ilha fica entre a Ilha de São Luís e a porção ocidental continental do Maranhão, no meio da Baia de São Marcos. Apresenta grande quantidade de manguezais e não há presença de pessoas residentes na Ilha, sendo utilizada periodicamente como local para pesca e extração de caranguejos. Dados extraídos do site www.socioambiental.org em 08/09/2007. 34 O reggae constitui-se em um gênero musical de origem jamaicana, que de acordo com o antropólogo Carlos Benedito da Silva foi “adotado como expressão cultural por amplo segmento da juventude negra, [no Maranhão] (1995, p. 12). Desde meados da década de 70, o reggae proliferou tanto pela capital do Maranhão, como por outros municípios, sendo um movimento característico das camadas mais pobres e localizado, em princípio, cultural e geograficamente, na periferia. As chamadas radiolas são grandes caixas amplificadoras que são montadas a fim de aumentar a potência do som. A grande atração das radiolas são os animadores, chamados DJs, que anunciam as musicas ou cantam um trecho durante a execução das faixas selecionadas. Ver maiores detalhes sobre as radiolas ou o próprio reggae em SILVA (1995). 35 Segundo o senhor Zé Reinaldo, a seresta pode ser organizada no momento de alguma festividade do povoado, como na Festa de São Benedito e corresponde ao um encontro de pessoas do povoado e outras vindas de povoados e bairros próximos. É um momento de sociabilidade com a presença de uma banda ou apenas caixas de som.
39
momentos de outros rituais, a ligação do Taim com outros povoados extrapola as suas
proximidades. Em caso das festividades do Bumba-meu-boi, é feito referência à ida dos
brincantes36 do Boi de Maracanã ao Taim, para a organização da chamada morte do boi e para
a realização do chamado café do boi, na passagem do segundo sábado para o domingo
subseqüente do mês de agosto.
A chamada morte do boi simboliza o encerramento do ciclo anual de festividades
do Bumba meu Boi. No caso do Boi de Maracanã, o mesmo desloca-se até o Taim na
passagem do segundo sábado para o domingo subseqüente do mês de agosto, para em seguida
dirigir-se ao Maracanã, fechando o ritual. Segundo Prado (2006), é através da morte do boi
que se afirma a união do grupo, congregando o final do ciclo. Já o café do boi acontece,
conforme o senhor Zé Reinaldo, há 20 anos, no Taim, e corresponde a uma ajuda mútua de
moradores do Taim, do Maracanã e de povoados próximos para realizar a alimentação dos
chamados brincantes do boi de Maracanã antes dos mesmos seguirem para a chamada morte
do Boi.
Na morte do Boi de Maracanã e no chamado café do boi constitui-se uma forma de
sociabilidade em que os seus integrantes dançam, os responsáveis pelos instrumentos realizam
suas execuções e há distribuição de alimentos como camarão, café, bolos e bebidas, que por
sua vez são conseguidos coletivamente. Em ocasião de outro ritual, como na realização de
alguma comemoração no povoado, como no caso do dia dos pais37, o senhor Zé Reinaldo
relatou-me sobre a presença do terecô38 de Igaraú, povoado que fica ao sul do Taim.
36 Brincante é uma categoria êmica referente aos participantes de festividades populares. No caso do Bumba-meu-Boi, o brincante, em boa parte das festividades, é um homem, geralmente, morador da localidade que nomeia o Boi, vivendo do trabalho da roça e que se situa mais baixo na hierarquia social do grupo. No Boi, um dos nomes que grupos de brincantes recebem é rapaziada, denotando a presença maior de homens e o caráter de masculinidade do grupo. Informações colhidas em PRADO (2006). 37 De acordo com o senhor Zé Reinaldo, os moradores do Taim, a cada ano, realizam comemorações em datas que consideram especiais, como dia das mães (maio) e dia dos pais (agosto). 38 Na entrevista com o senhor Zé Reinaldo, o mesmo informa que o terecô, que é uma vertente da religiosidade afro-brasileira característica, principalmente, de municípios do interior do Maranhão, como Codó, é realizado pelos moradores de Igaraú, misturando a batida da caixa do Divino, que são instrumentos vitais do culto ao Divino Espírito Santo (ritual do catolicismo popular maranhense), com ritmo do tambor de mina, que diz
40
Apesar de fragmentadas (ressalto isso, pois falta uma investigação mais apurada
dessas relações entre o Taim e outros povoados e locais da Ilha de São Luís), as informações
anteriores, demonstram formas bem específicas de vida dos moradores do Taim. As formas de
relações sociais denunciam a configuração de um estreito intercâmbio de recursos, de trocas
de solidariedades e ajuda na realização dos rituais.
O intercâmbio de recursos mostra, pelo menos, como os moradores do Taim
conhecem os caminhos próximos ao seu povoado, os ecossistemas e como usá-los,
confirmando uma lógica própria e específica de apropriação do ambiente.
Assim, temos o igarapé, as chamadas trilhas de mato39, os pequenos locais de
desembarque de canoas, chamados localmente de portos, que ilustram que tais grupos tem
uma percepção particular do uso do território em que vivem. Eles usam os ecossistemas e
reconhecem que os mesmos são entendidos como locais de controle de sua biodiversidade e
manejados de forma a manterem-se relativamente preservados e contribuindo para a
sobrevivência social do grupo.
Não obstante a essas passagens de circulação de pessoas, configura-se uma
circulação de produtos, que saem do povoado, movimentam-se por outros povoados, por
vezes são trocados por outros produtos que chegam para o Taim. Essa circulação e mesmo a
preparação dos rituais, caso da festa, revelam, mais detidamente, como as relações dos
moradores do Taim podem conformar uma possível rede de trocas de favores e ajuda na
manutenção de suas obrigações rituais.
Isso, no mínimo, permite afirmar que o Taim, tão bem como os outros povoados
próximos e que são previstos na constituição da referida Resex, comungam de uma
respeito à manifestação da religiosidade afro-brasileira que surgiu no Maranhão, provavelmente, com as casas das Minas Jeje e Casa de Nagô, fundadas por africanas, em meados do século XIX. Para maiores detalhes sobre o chamado terecô e o tambor de mina consultar os trabalhos de FERRETI, M. (2001) e FERRETI, Sergio Figueiredo (1996). 39 Correspondem, segundo moradores do Taim, a pequenos caminhos criados pelos eles dentro da mata entre um povoado e outro.
41
interdependência que possibilita a materialização do suprimento de suas necessidades
materiais e simbólicas. A circulação de recursos e as trocas de solidariedade contribuem para
afirmar que tais grupos ainda mantém, desde décadas passadas, certas práticas que permitem
configurá-los numa dinâmica própria de reconhecimento de seus territórios e de uso cotidiano,
e/ou em rituais de estratégias efetivas de reprodução social e simbólica. As informações
acabam desmistificando a idéia de que o povoado do Taim e as áreas próximas estão isoladas
e totalmente submetidas à lógica das áreas urbanas (MENDONÇA, 2006).
42
5 – A RESERVA EXTRATIVISTA DO TAIM
Sempre pensara em ir caminho do mar.
Para os bichos e rios nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo e exigente chamar. (João Cabral de Melo Neto)
5.1. Aspectos geográficos
A Reserva Extrativista do Taim ainda não está oficialmente criada. Ela está
prevista para se localizar na porção sudoeste da Ilha de São Luís, contando com uma área,
inicialmente, estabelecida em aproximadamente 16.663,55 hectares e perímetro de 71,21 km
(IBAMA/CNPT-MA, 2006a)40.
De acordo com informações obtidas a partir de reuniões com os analistas
ambientais do CNPT, essas dimensões da Resex já possuem a inclusão da Ilha de Tauá-Mirim
e dimensão territorial do espelho d´água41.
Além da inclusão recente da Ilha de Tauá-Mirim, esta Resex já previa a
abrangência dos povoados Cajueiro, Limoeiro, Porto Grande, Rio dos Cachorros, Taim e
parte territorial do bairro Vila Maranhão. A porção sudoeste da Ilha de São Luís é
caracterizada pela intensa biodiversidade e, geograficamente, está voltada para a Baía de São
Marcos, fazendo parte do Golfão Maranhense, principal acidente geográfico do litoral do
Estado do Maranhão.
40 Durante a elaboração deste trabalho monográfico, mantive contato com os analistas ambientais do IBAMA/CNPT-MA com vista a conseguir dados que mostrassem a quantidade de famílias ou indivíduos que estariam presentes na área prevista para a Resex do Taim. Porém esta informação, não pode ser colocada neste trabalho, já que os analistas não conseguiram informar-me com precisão o total de indivíduos da área da Resex. Segundo eles, falta uma pesquisa mais sistemática que vise à definição de quantos indivíduos e famílias residem na área. 41 Segundo os analistas do CNPT-MA, o espelho d’água corresponde aos limites da superfície contínua de águas. Conforme entrevista com Beto, o espelho d´água para a Resex do Taim estender-se-á até 5 km na linha d’água, partindo da área litorânea da porção sudoeste da Ilha de São Luís até quase o meio da Baía de São Marcos, bem próximo à Ilha dos Caranguejos. Ver Mapa atualizado da área da Resex do Taim.
43
Na ilustração abaixo, segue o mapa, elaborado pelos analistas do CNPT das
dimensões e limites territoriais previstos na configuração da Resex do Taim:
Ilustração 2: Mapa atualizado da Reserva Extrativista do Taim
O Golfão Maranhense forma um grande recorte litorâneo rebaixado e alagadiço
dos estuários afogados dos rios Pindaré, Mearim, Itapecuru e Munim. Possui superfície de
44
7.570 km² e é composto por oito municípios, quais sejam: Alcântara, Axixá, Bacabeira, Icatu,
Morros, Paço do Lumiar, Rosário, Raposa, São José de Ribamar e São Luís. (IBAMA/CNPT-
MA, 2006a).
A região do Golfão pertence ao grupo das 164 áreas prioritárias para a conservação
da biodiversidade nas Zonas Costeira e Marinha brasileiras, sendo considerada área de
conservação da biodiversidade de mamíferos, como o peixe-boi e espécies de peixes, como
cação-bicuda e o mero, ameaçados de extinção (IBAMA/CNPT-MA, 2006a), além da grande
presença de manguezais. Os manguezais, no estado do Maranhão, cobrem uma área de
aproximadamente 500.000 hectares, com florestas que chegam a 40 metros de altura
(IBAMA/CNPT-MA, 2004). Na Ilha de São Luís, os manguezais cobrem aproximadamente
19.000 hectares, abrigando uma quantidade expressiva de espécies animais e vegetais.
A ocorrência desse ecossistema na área prevista para a Resex é grande, com a
presença das espécies vegetais: mangue-vermelho, siriúba, mangue branco e mangue botão
(IBAMA/CNPT-MA, 2006a). Destaca-se, também, a significativa importância para quem
retira desse ecossistema recursos para a sobrevivência. E grande quantidade dos moradores
dos povoados previstos na composição dessa unidade de conservação adotam variadas formas
de uso do mangue. Utilizam-no, principalmente, para a pesca, para a extração de caranguejo,
siri e ostra (apesar de, no povoado do Taim, os casos relatados demonstrarem a diminuição da
prática da extração desses recursos) e para a coleta de seus caules com a finalidade de
construção e manutenção das casas42.
Importa destacar que na região prevista para esta resex ocorre uma grande
quantidade de cursos d’água. Conforme Beto, há um conjunto de pequenos e médios cursos
d´água que comungam para configurar um mosaico de caminhos percorridos por águas entre
os limites dos povoados e no interior deles.
42 Sobre a coleta de caules do mangue, o Laudo Sócio-Econômico e Biológico enfatiza que esta atividade é considerada ilegal, mas reconhece que os moradores dos povoados ora citados não desenvolvem tal prática de forma corriqueira (IBAMA/CNPT-MA, 2006a).
45
É ilustrativa a fala de Beto quando trata de articular como se comungam os vários
caminhos que formam igarapés, pequenos riachos e rios nessa região prevista para a
implantação da Resex:
foi contabilizado [pelo Instituto Hídrico do Estado do Maranhão] 120 nascentes nessas seis comunidades, contando do Taim, Rio dos Cachorros, até o sitio de São Benedito, (...) são pequenos riachos que confluem pro volume de água que saem por exemplo pelo rio do Arapapay que é um grande igarapé, uma mãe de rio, na verdade, pro Rio dos Cachorros que é outro grande rio na verdade pra o igarapé do Bomlusário que é o mais próximo do Itaqui, então essas 120 nascentes confluem para esses grandes igarapés, o Pitiuaçu que está totalmente aqui no Taim, faz divisa do Taim com o Porto Grande. Pitiuaçu é um grande igarapé, o igarapé do Limoeiro que está totalmente na comunidade do Limoeiro (Entrevista realizada em 24/03/2007).
Segundo a descrição de Beto, os caminhos entre os povoados são entrecortados
por meandros d´água e um conjunto de igarapés que nos levam a confirmar que esta área
configura-se como uma das regiões da Ilha de São Luís com potencial de recursos hídricos.
São lugares utilizados para pesca, de trânsito de pequenas embarcações, para as trocas de
alimentos, produtos, como vias de transporte de um povoado a outro ou de um povoado ao
continente (penetrando na Baía de São Marcos) confirmando, assim, a circulação de recursos
naturais e mercadorias.
Os cursos d´água são lugares importantes no cotidiano das pessoas que vivem
nesses locais, como os riachos e as pequenas fontes para abastecimento de água destinados ao
uso na alimentação e para consumo próprio. Esses espaços hídricos percorrem os povoados,
ao mesmo tempo que, também, cortam-nos, mantendo a existência de certas espécies vegetais
e animais que acabam sendo utilizados como recursos alimentares, tais como diversas frutas,
encontradas nos juçareiros43, buritizeiros, mangueiras, cajueiros e as chamadas caças44
encontradas nos mangues e brejos.
43 A juçara é um nome dado localmente ao açaí (Euterpe oleracea), espécie nativa de estados brasileiros, como o Amazonas, Amapá, Acre, Maranhão e Pará. 44 Categoria êmica para designar os animais que são utilizados como recursos alimentares por alguns moradores do povoado.
46
Outro ecossistema que me foi relatado e que está previsto para ser incluído na
Resex, é o que Beto designa por croa de Lanzudos, que corresponde a um banco de areia e
lama localizado no meio da Baía de São Marcos, próximo de povoados como o Taim e Porto
Grande. Neste local, muitos pescadores de povoados próximos e de bairros distantes como
Vila Nova extraem boa quantidade de sururu45 e pescam camarão.
Próxima da Ilha de São Luís, com distância de cerca de 25 km do Porto do Itaqui.
fica a Ilha dos Caranguejos46, que não é habitada por famílias, mas que se constitui num dos
locais de pesca e retirada de madeira. Beto afirma que não só os povoados próximos ao Taim
utilizam-na, mas os municípios do lado oposto, na porção continental, como Anajatuba e
povoados ao sul do Taim, no entorno do Estreito dos Mosquitos deslocam-se para realizarem
a pesca com freqüência nessa Ilha.
Outro local bastante utilizado pelos pescadores dos povoados próximos ao Taim é
a Ilha da Boa Razão que fica na extremidade norte da Ilha de Tauá-Mirim. Conforme Beto,
naquela Ilha, ocorre a presença constante dos chamados ranchos, que são pequenas casas de
palha e madeira construídas para passagens temporárias dos pescadores para realizarem,
principalmente, a pesca do camarão.
5.2. Situação sócio-econômica: Interpretação
Saindo do plano mais geográfico que configura a Resex do Taim e me
direcionando para as condições sócio-econômicas dos povoados que fazem parte dessa
unidade, salientarei como está disposta a caracterização sócio-econômica da área prevista para
a Resex contida em sua principal fonte, o Laudo Sócio-econômico, elaborado pelos analistas
ambientais do IBAMA/CNPT-MA.
45 Espécie de molusco em pequenas conchas que fica incrustado em camadas de areia e lama. 46 Informações sobre a Ilha dos Caranguejos vide nota 33.
47
O tópico sócio-econômico não é bastante explorado no laudo, ficando muito
aquém de um entendimento mais claro a respeito das condições sociais de vida dos moradores
dos locais destinados à composição da Resex. Em reuniões com os analistas ambientais do
CNPT, os mesmos reconheceram que falta um maior esclarecimento sobre as condições
sócio-históricas e culturais de construção das relações entre a reprodução social e cultural dos
grupos humanos e o uso e controle relativamente equilibrado dos recursos naturais.
O que foi destacado no Laudo Sócio-Econômico espelha muito mais amostragens
do que um panorama mais detalhado dos modos de vida das coletividades que vivem nos
povoados previstos na Resex 47.
O Laudo Sócio-Econômico (IBAMA/CNPT-MA, 2007b) está disposto com os
seguintes conteúdos:
• Modo de vida;
• Atividades extrativistas e Agricultura familiar;
• Extração mineral;
• Relação entre idade, escolaridade e nível de renda mensal;
• Segurança alimentar e Sistema de Produção;
• Infra-estrutura;
• Organização Social;
• Cultura
Dessa forma, a parte sócio-econômica presente no laudo vem tratando da
composição etária, de gênero, da escolaridade e de renda mensal (Modo de vida; Relação
entre idade, escolaridade e nível de renda mensal), das atividades desempenhadas
(Atividades extrativistas e agricultura familiar; Extração mineral; Segurança alimentar e
47 Sobre a revisão do Laudo Sócio-econômico no ano de 2007 vide nota 09.
48
Sistema de produção), das condições de moradia, de transporte, das habitações (Infra-
estrutura) e das práticas sociais e culturais (Organização social; Cultura) encontradas nos
povoados consultados para previsão de inclusão na Resex48. Como forma de simplesmente
não reproduzir os dados já elaborados no Laudo, e que estão passando por modificações em
sua redação, pincelarei comentários sobre os conteúdos dos itens que me chamaram atenção.
No item Modo de vida, as categorias apresentadas estão dispostas através de uma
classificação ocupacional dos moradores. Aparecem as seguintes: estudantes (26%), donas de
casa (15%), pescadores (11%), mineradores de areia e pedra (9%), lavradores (6%),
aposentados (4%), desempregados (4%), extratores de lenha (1%). É citada a categoria
outras ocupações, que foi relacionada às pessoas que fazem trabalhos diferentes dos citados,
que vendem produtos e alimentos, e que estão ligadas a trabalhos temporários no setor de
construção civil nas indústrias siderúrgicas próximas.
Interessa notar que as atividades designadas não explicitam outras que porventura
são realizadas em casos bem específicos. Situações como dos jovens estudantes que exercem,
ao mesmo tempo, tarefas de pesca e na roça, e que não são contabilizados como atividades,
pois os mesmos não se auto denominam pescadores, lavradores ou quaisquer outras
categorias nativas. O conteúdo que vem informar sobre a participação de jovens em mais de
uma atividade, somente, aparece no item Relação entre idade, escolaridade e nível de
renda mensal. Devido a isso, falta no Laudo um detalhamento de como e do porque certos
moradores exercem uma atividade num contexto, dificultando sua categorização num só
esquema classificatório.
48 No Laudo Sócio-Econômico, tanto na versão primeira (IBAMA/CNPT-MA, 2006a), quanto na versão final (IBAMA/CNPT-MA, 2007b), há poucas informações sobre a Ilha de Tauá-Mirim, já que foi feito um levantamento sócio-econômico bastante genérico sobre as condições de vida dos moradores que vivem nos povoados dessa Ilha.
49
Em relação ao item Atividades extrativistas e Agricultura familiar, o Laudo
enfatiza que as principais atividades são o extrativismo, caso da pesca e da juçara49 e a
atividade agrícola. É interessante notar que o Laudo faz menção à pesca como principal
atividade extrativista, não citando nenhuma outra atividade que possa ser considerada como
extrativa.
Nisso, o Laudo não deixa claro se são os próprios moradores quem definem qual
tipo de atividade é extrativista, ou seja, se partem do saber nativo para definir uma ou outra
atividade como extrativista. Nesse item, é mencionado, somente, que a produção da farinha
constitui-se como principal recurso alimentar dos moradores. Outras culturas agrícolas não
são mencionadas, mas aparecem citadas em um outro item, o da Segurança alimentar e
Sistema de Produção.
Devido a essas observações, reconheço que o Laudo, no aspecto sócio-econômico,
dar-me-á pouca substância para elucidar com mais rigor como se configura a constituição
social, econômica e cultural das coletividades em questão e como a partir dessa constituição
são mantidas as relações na apropriação e conservação dos recursos naturais.
Essa crítica não pretende menosprezar o esforço de quem se lançou a elaborar o
laudo citado. É evidente que há uma iniciativa, e ela é louvável dentro das condições de
trabalho que os analistas ambientais do CNPT-MA tem disponíveis50. Mas, coloca como
desafio o fato de que os modos de vida das coletividades que vivem na área prevista para a
Resex do Taim são constituídos de relações complexas e que, de forma nenhuma, serão
totalmente conhecidas em um só trabalho técnico, como no caso do Laudo Sócio-econômico
citado.
49 Vide nota 43. 50 Acompanhei, em alguns momentos, reuniões dos analistas ambientais, percebendo as dificuldades dos mesmos em elaborar os laudos e relatórios e em deslocarem-se para trabalhos de campo por conta das dificuldades, principalmente, de natureza logística e financeira.
50
É imprescindível que em casos como este, recorra-se a um trabalho mais extenso e
rigoroso, que esclareça com mais detalhes o entendimento do modus vivendi dessas
coletividades e que sejam acrescentados às informações técnicas. Importa reconhecer que se
está lidando com expectativas e reivindicações várias que serão concretizadas com a adoção
de uma política pública, no caso das unidades de conservação, e que merecem ser enxergadas
a partir da complexidade do universo real de grupos específicos.
5.3. Gênese da Resex do Taim: A relação com processos sócio-históricos e normativos de
criação das reservas extrativistas no Brasil
Depois da caracterização geográfica e de rever como algumas características das
coletividades da área prevista para a Resex do Taim estão dispostas no laudo sócio-
econômico, descreverei de que forma constituiu-se a iniciativa de se implantar esta unidade de
conservação na Ilha de São Luís. O pedido oficial para a criação da Resex do Taim partiu de
iniciativa da União dos Moradores51 do povoado do Taim, no dia 13 de agosto de 2003.
Foi, principalmente, pela crescente mobilização de lideranças deste povoado e pela
participação destas na criação de outras resex que a proposta da Resex veio expandir-se para
os outros povoados próximos, conforme relato abaixo:
No Taim, ela teve uma conotação maior, pelo seguinte: pela minha participação no movimento dos pescadores, que já era maior que do Estado, era o Movimento Nacional dos Pescadores, e com essa participação eu tive oportunidade de tá em vários espaços (...). Eu visitei, nós visitamos (...) a [Reserva] de Frechal, (...), a do Maracanã, no Pará, (...), a de Alter do Chão, também, no Pará, uma reserva coordenada pelo CNS, o Conselho Nacional dos Seringueiros. (...). Nós tivemos daqui do Taim, eu e mais quatro pessoas envolvidas alternadamente nessas visitas, agora das outras comunidades, também teve, do Porto Grande, do Rio dos Cachorros, do Cajueiro, teve pessoas envolvidas nessas visitas, então era coisa de intercâmbio, que eram visitas (...). (Entrevista concedida por Beto em 24/03/2007).
51 A Associação da União dos Moradores do Taim foi fundada, segundo o senhor Zé Reinaldo (entrevista dia 24/03/2007), em 1987, como uma medida jurídica que os moradores adotaram para enfrentar situações de conflitos de terras no povoado, circunstância concretizada em um episódio verídico de privatização de uma área do povoado por uma pessoa, designada pelos moradores do Taim como de fora, que significa quem não nasceu e nem tem familiares no povoado.
51
Conferindo a ata da reunião de 13 de agosto de 200352, notei que dentre os tópicos
que foram discutidos na pauta, constava o anúncio do pedido oficial de criação ao IBAMA da
Reserva Extrativista e a inclusão de povoados vizinhos na área dessa Resex, com a citação a
Rio dos Cachorros, Limoeiro e Porto Grande.
Menos de um mês depois, no dia 08 de agosto de 2003, a União dos Moradores
oficializava, através de documento oficial, o pedido ao IBAMA de criação da Resex53. Extrato
do texto do oficio remetido ao IBAMA declara o seguinte pedido:
Vimos em nome dos moradores (trabalhadores rurais, pescadores e tiradores de caranguejo) da comunidade do Taim situada na Vila Maranhão em São Luís, solicitar a esta Gerência que proceda abertura do processo visando criar a Reserva Extrativista do Taim (...) na região que compreende Taim e demais comunidades do entorno (Ofício nº 15/2003. União dos Moradores do Taim).
Apesar de o pedido oficial ter ocorrido no segundo semestre de 2003, a iniciativa
pela implementação de uma reserva extrativista na Ilha de São Luís, remonta à década de
1990. Foi, mais precisamente, a partir de 1996, que, algumas lideranças dos povoados à
época, em articulação com membros de movimentos sociais, de instituições ambientalistas e
rurais e de intelectuais, começaram a fomentar um debate sobre a proposta de criação de uma
unidade de conservação de uso sustentável na região que engloba os povoados próximos ou
no entorno do bairro da Vila Maranhão.
Essas instituições que colaboravam para pensar uma proposta de criação de reserva
extrativista na Ilha de São Luís foram, conforme Beto, “o pessoal da Sociedade dos Direitos
Humanos, (...) a própria FETAEMA, com técnicos, o Fórum Carajás, Tijupá, (...) [que] se
envolveram , inclusive, inclusive na divulgação, na divulgação” (Entrevista concedida em
24/03/2007).
Assim, a idéia de propor a criação de uma Reserva Extrativista
52 Ata de reunião extraordinário da União de Moradores do Taim. Mimeo. Material colhido no IBAMA/CNPT-MA. 53 Processo 02012.001265/2003-72, com registro de chegada no IBAMA no dia 22 de agosto de 2003.
52
[vinha] de 96, ai a gente foi discutindo muito mais assim, nos espaços maiores, é, por exemplo, quando se reunia a paróquia, né, a paróquia de São João do Bonfim (...). Então, a discussão a miúdo com a comunidade se dá a partir de 1998, que ai a gente começa a ir pra o Rio dos Cachorros, Porto Grande e dizer olha – isso é viável, a gente pode discutir isso (...). (Entrevista concedida por Beto em 24/03/2007).
A gênese da proposta de criar a reserva extrativista do Taim, no período relatado
por Beto, teve dois principais motivos: o primeiro motivo refletia o movimento de
consolidação da legislação normativa e do processo sócio-histórico de afirmação desse tipo de
unidade de conservação no Brasil; e o segundo motivo está relacionado aos impactos que
projetos industriais localizados contíguos á área pretendida para a Resex vem provocando nos
ecossistemas e nos modos de vida das coletividades.
No tocante ao primeiro motivo, importa resgatar que foi na década de 1990, mais
precisamente no seu início, que surgiram as primeiras reservas extrativistas no Brasil, como
uma das categorias de unidades de conservação.
De acordo com Sant’Ana Júnior (2004, p. 69), as Reservas Extrativistas surgiram
intimamente relacionadas ao movimento de seringueiros na Amazônia, particularmente no
Acre. Para este autor, as chamadas ações modernizadoras – incentivos à pecuária extensiva
pelos chamados “paulistas” (denominação referida pelos acreanos aos grandes proprietários
rurais vindos de fora do Acre) – implicaram em muitas ações de “limpeza de área” que
correspondiam á derrubada sucessiva das florestas e retirada daqueles que a habitam.
Os seringueiros eram os principais inimigos dos grandes latifundiários que se
instalavam no Acre. Como respostas ás derrubadas das florestas, aqueles adotaram medidas
próprias de lutas, os chamados empates, que eram uma forma de resistência em que homens e
mulheres reuniam-se e juntos buscavam desmobilizar os desmatamentos, através do
convencimento a quem fazia a derrubada ou mesmo colocando-se a frente das árvores em
caso de situações que chegavam às últimas conseqüências.
53
O movimento dos seringueiros defendia uma proposta de desenvolvimento
alternativo que garantisse a preservação da floresta amazônica (GRZYBOWSKI, 1989). Os
seringueiros procuravam ao mesmo tempo defender os interesses de quem necessitava dos
recursos naturais para a sobrevivência social própria, aliado ao equilibrado uso dos
ecossistemas.
Com a criação, principalmente, do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS),
proposta no I Encontro Nacional dos Seringueiros, ocorrido em Brasília, em 1985, sob
liderança do seringueiro e ativista Chico Mendes e diante das pressões internacionais
contrárias à exploração desordenada das florestas, configurou-se um cenário em que as
chamadas Reservas Extrativistas (Resex) surgiram como um dos resultados do processo de
luta do movimento dos seringueiros. Em relação às Resex, o Conselho Nacional de
Seringueiros pronunciava-se da seguinte maneira:
O conceito de Reserva Extrativista é totalmente diferente da forma concebida pelo governo de Projetos de Assentamentos Extrativistas que mesmo que criados sob influência do movimento, têm administração do INCRA, titulação da terra, pressupõem divisão em lotes etc... (CNS, 1992 (1): vi apud COSTA FILHO, 1995, p. 25-26).
No primeiro momento, as reservas extrativistas surgiram para solucionar a
demanda de reforma agrária dos seringueiros e as primeiras iniciativas legais dirigiam-se para
o Incra e não para o Ibama (Almeida e Carneiro, 2001). As primeiras exigências dos
seringueiros eram pela efetivação de uma reforma agrária diferente da proposta de
distribuição de terras feita pelo Incra, na época. Para os seringueiros, a proposta do Incra não
contemplava suas necessidades, já que a terra dividida em lotes sobreporia a lógica de uso dos
seringais.
Paulatinamente, as reservas extrativistas foram sendo interpretadas pelos
seringueiros como uma alternativa que ia além da efetivação de uma reforma agrária.
Começaram a ser pensadas como uma alternativa para a defesa da sua reprodução social e
54
física, assim como ao mesmo tempo, a defesa dos recursos naturais, na última fronteira – a
Amazônia.
As reservas extrativistas surgiram, assim, alicerçadas na seguinte condição: eram
resultados das lutas de mobilização de segmentos sociais, caso dos seringueiros, que se
reconheciam como extrativistas; e da presença das instituições ambientalistas (a maior parte
organizações não-governamentais) que objetivavam potencializar as disputas pela criação
dessas unidades de conservação aliadas a grupos de intelectuais, destacando-se
antropólogos54, que traduziam os discursos oficiais para os seringueiros, de forma a colocá-los
a par de como outras instâncias – o Estado, as empresas – pensavam a questão ambiental
(LOBÃO, 2006).
É ilustrativa a fala de uma das lideranças dos seringueiros do Acre quando mostra
como a luta pela terra associou-se às mobilizações do movimento ambientalista:
(...) quando esse movimento surgiu, a gente não sabia o que era essa história de ecologia, essa história de defender o meio ambiente. Ai nós descobrimos que os ambientalistas e os ecologistas estavam querendo uma coisa, porque eles explicavam pra gente que se a mata fosse derrubada ia aumentar a temperatura, o que eles chamam de efeito estufa. (...) A gente nem sabia o que diabo era isso, essas coisas. Eles vinham falando essas coisas e a gente mandava depois eles trocarem em miúdo, pra gente, o quê que era isso... Então esse pessoal veio e aí a gente passou a ir descobrindo que eles eram os aliados importantes. Porque a nossa briga aqui era pela reforma agrária. A gente queria o direito de ficar na terra (Entrevista em 05/08/1999 com Osmarino Amâncio apud SANT’ANA JÚNIOR, 2004, p. 218).
As reservas extrativistas são uma categoria de unidade de conservação ambiental
prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC – do Ministério do Meio
54 Dentre os antropólogos que firmaram alianças de assessoria ao movimento dos seringueiros no contexto de criação das primeiras reservas extrativistas no Brasil, destaco dois: Mary Allegretti que se dedicou a estudar o movimento dos seringueiros e assessorá-los, inclusive, agindo, estrategicamente na difusão desse movimento pelo mundo através da sua ligação com os movimentos ambientalistas exteriores, entre suas principais colaborações, agilizou toda a operação em Brasília para a realização do I Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985, como medida para tornar visível a luta desses segmentos no país e no exterior (GRZYBOWSKI, 1989); e Mauro William Barbosa de Almeida, natural do Acre, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tendo atuado como assessor do Conselho Nacional dos Seringueiros, é autor de tese de doutorado sobre os seringueiros do Alto Juruá, intitulada Rubber Tappers of the Upper Juruá River: The
making of a Forest Peasantry (SANT’ANA JÚNIOR, 2004).
55
Ambiente. As resex são classificadas como Unidades de Conservação de Uso Sustentável55,
que, conforme o próprio SNUC, diz respeito a um tipo de unidade que objetiva “(...)
compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos
naturais” (BRASIL, 2004).
A proposta de criação do SNUC remonta ao ano de 1992, quando foi encaminhado
ao Congresso Nacional brasileiro o projeto de lei nº 2.892 que dispunha sobre a criação de um
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (BRITO, 2003, p. 68). Somente oito anos
mais tarde, o SNUC foi instituído através da lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, concebendo
dispositivos para a regulação das complexas relações entre o Estado, os cidadãos e o meio
ambiente, com o objetivo de propiciar uma satisfatória preservação de importantes biomas
brasileiros, considerando seus aspectos naturais e culturais (BRASIL, 2004, p. 07).
Depois de mais dois anos, esta lei chegou a ser regulamentada através do Decreto
nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Esse longo processo entre o inicial pedido do PL nº 2.892,
citado acima, e sua regulamentação em 2002 através do referido Decreto marca a construção
do SNUC como um processo de amplo debate no cenário ambiental brasileiro e,
consequentemente, para a implementação das reserva extrativistas.
De acordo com o SNUC, as reservas extrativistas ficaram definidas como sendo:
(...) uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2004, pp. 19-20).
As reservas extrativistas são espaços territoriais de domínio público que admitem a
presença de grupos humanos, estabelecendo como principal atividade, o extrativismo aliado à
55 Vide Nota 04.
56
pequena agricultura, criação de pequenos animais e a atividade pesqueira56. Abaixo, apresento
uma tabela com as principais medidas exigidas para a criação de uma resex:
Tabela 1: Etapas para criação de uma Reserva Extrativista 1 – Solicitação dos Moradores (abaixo assinado) 2 – Vistoria do IBAMA/CNPT 3 – Organização dos Moradores 4 – Estudos Sócio-Econômico e Biológico 5 – Levantamento Fundiário 6 – Realização de Audiências Públicas 7 – Elaboração de Base Cartográfica Digitalizada 8 – Consultas a FUNAI, INCRA, SPU, Marinha, Governo Federal 9 – Publicação do Decreto no DOU 10 – Cadastramento das Famílias 11 – Conselho Deliberativo (Gestão) 12 – Plano de Manejo da RESEX (elaboração e aprovação) 13 – Contrato de Concessão de Direito Real de Uso 14 – Formação dos Agentes Ambientais Voluntários
Fonte: Cartilha IBAMA/CNPT – MA, 2004.
As resex também são caracterizadas de acordo com o tipo principal de atividade
extrativista desenvolvida pelos grupos localizados em suas áreas. Por isso, depois das
primeiras reservas extrativistas serem instaladas em ecossistemas de floresta (principalmente
na Amazônia), surgiram demandas para a criação desse tipo de unidade de conservação em
áreas litorâneas ou de manguezais.
Os movimentos sociais e as coletividades que reivindicam as resex em áreas
litorâneas acabaram renomeando, nesse caso, a categoria Reservas Extrativistas sob a
denominação de Reservas Extrativistas Marinhas (CHAMY, 2004). Tais resex têm como base
do extrativismo, principalmente, os recursos pesqueiros tais como peixe, camarão, sururu e
caranguejo. Essa situação é que caracteriza e é reivindicada pelas coletividades no caso da
Resex do Taim e expressa na fala de um de seus lideres quando o mesmo afirma que é
“marinha, porque vai ter a ilha de Tauá-Mirim, vai ter os rios envolvidos”57.
56 Importa destacar que além das Reservas Extrativistas, o SNUC (BRASIL, 2004) define outra categoria de unidade de conservação que admite grupos humanos, que é a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS). A principal diferença verificada entre essas duas categorias de unidades de conservação refere-se à expropriação para utilização da terra. Enquanto nas Resex desapropria-se quem não é identificado como extrativista, nas RDS não há expropriação. 57 Entrevista concedida em 24/03/2007.
57
Conforme o SNUC (BRASIL, 2004), os grupos humanos que vivem dentro de
uma reserva extrativista são os responsáveis, em conjunto com o IBAMA, pelas formas de
ocupação do território, pelas regras e práticas de acesso às áreas e aos recursos naturais a
serem explorados e pela comercialização ou não de produtos ou recursos alimentares próprios
em benefício de sua economia.
5.4. A presença do IBAMA: Considerações sobre usos de categorias
Dentre os muitos aspectos relevantes que se traduz na gestão de uma resex quero
destacar aquele que se refere à forma de concessão da área a ser outorgada a uma coletividade
e não à priorização de necessidades individuais (CHAMY, 2004). O contrato de concessão de
direito real de uso de uma resex, somente, legitima-se quando da aprovação do chamado
plano de manejo participativo58. O plano de manejo é ressaltado por Beto quando o mesmo
diz que
(...) o grande, o grande lance da Reserva Extrativista é que a comunidade pode decidir como usar, e ele [o plano de manejo] também pode ser mudado, as regras podem ser mudadas, você estabelece, ela não é estática, ela não é uma mordaça, como muita gente acha (...) (Entrevista concedida em 24/03/2007).
A mudança que o informante citado acima se refere, quanto à decisão das
coletividades envolvidas em uma resex modificarem as regras no uso da sua área e no manejo
dos recursos naturais, corresponde, na verdade, à alternativa de alteração que pode ser
realizada em um plano de manejo. Conforme o SNUC, o plano de manejo é definido como
sendo
58 É pertinente destacar que antes da elaboração de um Plano de Manejo Participativo em uma reserva extrativista, há a realização do Plano de Uso ou Utilização da resex. Este plano acaba fazendo parte do Plano de Manejo, pois é uma de suas bases. De acordo com a Instrução Normativa nº 01 de 18 de setembro de 2007, o Plano de Utilização “consiste nas regras internas construídas, definidas e compactuadas pela população da Unidade quanto às suas atividades tradicionalmente praticadas, o manejo dos recursos naturais, o uso e ocupação da área e a conservação ambiental, considerando-se a legislação vigente. É o documento base para que seja firmado o Termo de Compromisso entre a população tradicional beneficiária da Unidade, que receberá a concessão do direito real de uso, e o Instituto Chico Mendes”. Publicada no Diário Oficial da União nº 182, Seção I, páginas 101 e 102.
58
Documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação de estruturas físicas necessárias à gestão da unidade (BRASIL, 2004).
Ele é formulado através de um roteiro metodológico, pelo órgão gestor, que fixa
diretrizes para diagnóstico da unidade, zoneamento, programas de manejo, prazos de
avaliação e de revisão e fases de implementação59. O plano é aprovado por um Conselho
Deliberativo que, por sua vez, é
constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade” (BRASIL, 2004, p. 20)60.
O plano de manejo é construído no âmbito do coletivo em uma resex, já que é
firmado entre o órgão gestor público em conjunto com as coletividades da unidade de
conservação. Este plano deve indicar quando será revisado não podendo exceder o prazo de
cinco anos.
O plano pode ser readaptado devido a alguma situação demandada pelas
coletividades, o que revela-nos o seu caráter de transitoriedade, e não de imobilidade perante
as necessidades de uso e apropriação das áreas e manejo dos recursos naturais em uma resex.
Essa especificidade de transitoriedade do plano é exemplificada na fala de Beto:
(...) faz assim (...), vocês vão ser proibidos de pescar tal coisa, não é assim, vocês podem estabelecer olha, nesses primeiros cinco anos, nós vamos tirar caranguejo só naquela parte ali do mangue, vamos deixar o restante descansar, nos próximos cinco anos, a gente tira desse outro lado e deixa
59 O Plano de Manejo Participativo está, atualmente, sob responsabilidade do recente órgão federal, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, que por sua vez integrou o CNPT como um dos seus Centros. Para melhor esclarecer do que trata o Instituto Chico Mendes vide nota 06. 60 De acordo como o SNUC (BRASIL, 2004, p. 40), o Conselho Deliberativo terá “a representação dos órgãos públicos e da sociedade civil (...), sempre que possível, paritária, considerando as particularidades regionais”. Entretanto, com a Instrução Normativa nº 02, de 18 de setembro de 2007, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o Conselho Deliberativo de uma Reserva Extrativista passou a ter a maioria de sua composição formada por representantes das chamadas populações tradicionais, conforme disposto no inciso III do artigo 9º desta instrução normativa: “deve-se garantir na composição do Conselho, a maioria de representantes das populações tradicionais da Unidade”. Publicada no Diário Oficial da União nº 182, Seção I, páginas 102, 103 e 104.
59
aquele descansar, (...) mas se a gente perceber que vai ter uma demanda por caranguejo (...) a gente pode ampliar a área, mesmo catando seletivamente, mas pode ampliar a área, então não é uma coisa que fique preso (...) (Entrevista concedida em 24/03/2007).
Ilustração 3: Beto falando com moradores da Ilha de Tauá-Mirim
Em outra fala, agora de um analista ambiental do CNPT, observei como o mesmo
explicava como se elaborava um dos subsídios para o plano de manejo, que é o plano de uso
de uma resex61. Essa observação ocorreu em reunião na mais recente área inserida na Resex
do Taim, a Ilha de Tauá-Mirim, como participante dessa reunião realizada no povoado de
Jacamim62. Os analistas esclareciam como, a partir da criação da Resex do Taim, os
moradores elaborariam regras de uso e controle das áreas que utilizam para as atividades
61 Sobre Plano de Uso vide nota 58. 62 Reunião realizada em 03 de dezembro de 2006.
60
agrícolas, extrativas e, principalmente, pesqueiras, em uma tentativa de deixar clara, uma das
normatizações estabelecidas depois da criação de uma resex.
A fala de uma das analistas ambientais nessa reunião expressa a seguinte tentativa
de explicação do que será um plano de uso
(...) o ideal que a gente possa construir e isso passa na reserva extrativista, é o modelo onde a gente vai poder usar os recursos naturais que a gente continuava usando (...) e a gente vai poder decidir, também, como a gente quer continuar usando e essas decisões que a gente chama de plano de uso ela vale para quem mora aqui dentro e para quem mora de fora e ai a gente vai poder restringir como é, ou seja, dizer como é que a gente acha melhor quem vem de fora poder usar, (...) e essas coisas tem que ser decididas em assembléias comunitárias, em reuniões comunitárias e quando a gente chega a essas decisões todos tem que respeitar, o que vale pra quem mora aqui, vale pra quem mora fora, e o que vale pra quem é presidente da associação, vale pra quem não é presidente da associação (...) (Gravação feita em 03/12/2006).
Rever como o plano de manejo, tal como o plano de uso de uma resex são
definidos na legislação ou como são explicados a um público, abre brecha para pensarmos a
forma como são conduzidas certas categorias presentes em políticas públicas, como no caso
das reservas extrativistas. Chamou-me atenção, o fato de que nessa reunião, além da tentativa
de explicar o que era um plano de uso, ocorreu a divulgação de uma série de categorias que
são utilizadas pelos técnicos e analistas do IBAMA para tratar da apropriação dos recursos
naturais, e que, muitas das vezes, não difíceis de serem entendidas pelos moradores de uma
área de unidade de conservação.
Vejamos as categorias que recolhi dessa reunião: plano de manejo, populações
tradicionais, extrativismo, agricultura de subsistência, recursos naturais, biodiversidade,
recursos pesqueiros, populações extrativistas, ecossistema, degradação ambiental,
conservação dos recursos naturais, uso sustentável dos recursos, exploração sustentável63
.
Constatei, ainda na reunião, que houve tentativas dos analistas ambientais em
traduzir essas categorias em expressões que pudessem estar inteligíveis para os moradores,
63 Anotações em caderno de campo a partir de observação in loco.
61
caso observado com as categorias extrativismo e conservação dos recursos naturais.
Entretanto, o que predominou na fala dos analistas ambientais do IBAMA foi um domínio das
categorias que registrei, sem um explicação coerente do que as mesmas significam e como
podiam ser entendidas pelos moradores.
A situação do uso de certas categorias que não permeiam o vocabulário cotidiano
de certas coletividades, como no caso exposto acima, coloca a questão de atentar para
problemas que a falta de distinção entre categorias pode provocar ou problemas que o uso das
mesmas pode gerar quando colocadas a quem não as entende. Gostaria de explicitar três
implicações decorrentes disso.
Um primeiro problema, já apontado em outros estudos (PAULA ANDRADE,
2003), diz respeito em como distinguir e em como operacionalizar em público o que seriam
categorias analíticas, aquelas elaboradas como ferramentas teóricas para compreender
realidades, das categorias de imposição externa, que neste caso, são categorias jurídicas,
aquelas elaboradas por representantes de certas coletividades ou pelos órgãos públicos, das
categorias nativas, aquelas adotadas pelas próprias coletividades para se autodefinir ou definir
situações que vivem no dia a dia.
É preocupante notar que as categorias expostas na reunião acabam sendo
categorias de imposição externa mescladas com categorias analíticas, divulgadas sob a
perspectiva de que as mesmas devem, em algum momento, ser apropriadas, naturalmente,
pelas coletividades que nunca sequer ouviram falar delas. É fundamental que haja um
esclarecimento dessas categorias em situações como a citada. Isso acabaria implicando no fato
de que Lobão (2006) chama atenção quanto à elaboração de documentos como o Plano de
Uso ou o Plano de Manejo. Para tal autor, estes documentos apresentam um grau de
sofisticação e distanciamento da realidade das coletividades em áreas de unidades de
conservação de uso sustentável. Lobão (2006) considera problemática a tentativa de
62
pescadores ou pequenos agricultores conseguirem ter condições de entendê-las durante todo o
processo de constituição de quaisquer desses planos.
Um segundo problema corresponde à imposição que tais categorias acabam
provocando em situações específicas de vida de certas coletividades. É notório e preocupante
que nas falas dos analistas ambientais, observadas na reunião citada, e em documentos oficiais
investigados por mim quanto à implementação das unidades de conservação, predomina a
adoção de categorias que fogem às usadas por quem vai ser dirigida a política pública de
criação dessas unidades. É difícil serem citados nos documentos, categorias e termos próprios
da vida das coletividades no seu cotidiano ou que mesmo possam ser esclarecidas dentro do
contexto de vida dos mesmos.
Em discussão sobre categorias analíticas e nativas utilizadas quanto a coletividades
específicas, como no caso dos chamados remanescente de quilombo ou quilombola, Paula
Andrade (2003, p. 40) enfatiza que
se não atentarmos para a distinção entre categorias analíticas e categorias nativas, estaremos, simplesmente, substituindo o modelo do ator por aquele do observador, enquadrando todas as situações empíricas em tipologias pré-construídas (...).
Para esta autora, o domínio do enquadramento de certas categorias exógenas ao
cotidiano de certas coletividades levam ao que Bourdieu (apud PAULA ANDRADA, 2003)
chama de linguagem vencida64
. Ou seja, as coletividades acabam vendo-se obrigadas a
adotarem a linguagem externa, constituindo uma marca simbólica da relação dominador (os
órgãos gestores) e dominado (as próprias coletividades). Lobão (2006, p. 59) chega a afirmar
que as coletividades estão sob “mecanismos de inculcação e resistência típicos de relações em
uma situação colonial”. É urgente refletir a declaração desses autores mesmo quando uma
reserva extrativista ainda não está criada, caso da Resex do Taim.
64 BOURDIEU, P. Las finalitats de la sociologia reflexiva (el seminari de Chicago). In: Per a una sociologia
reflexiva. Barcelona. Herder. 1994. pp. 45-187.
63
Por trás disso, denota-se o que Bourdieu (2003) enfatiza como de uma violência
simbólica, não marcada pela agressão física, mas uma violência mais sofisticada, constituída
por meio do
poder de impor – e mesmo de inculcar – instrumentos de conhecimentos e de expressão (taxionomias) arbitrários – embora ignorados como tais na realidade social”. (...) [é] o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia. (BOURDIEU, 2003, pp.12-15).
E por último, um terceiro problema que levo em consideração é pautado nas
observações que Lobão (2006) faz sobre as definições de certas categorias, algumas
explicitadas através da reunião que citei anteriormente e que centralizam muito mais os
aspectos ambientais do que a ênfase no saber e formas consuetudinários de convívio das
coletividades em áreas de reservas extrativistas. Categorias jurídicas como manejo, uso
sustentável ou extrativismo, só para citar essas três, aparecem definidas em documentos
oficiais, caso do SNUC, dando ênfase maior aos aspectos naturais tal como transcrevo abaixo:
manejo: todo e qualquer procedimento que vise assegurar a conservação da diversidade biológica e dos ecossistemas; uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável; extrativismo: sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis. (BRASIL, 2004, p. 10, art. 2ª, incisos VIII, XI, XII, respectivamente).
Não que essas definições sejam irrelevantes, mas é fundamental levantar esta
questão que atravessa a operacionalização de certas categorias quando destinadas a serem
reproduzidas pelas coletividades quando estas reivindicam uma política pública de criação de
reservas extrativistas. É preocupante detectar que tais categorias vão sendo introduzidas,
paulatinamente, e acabam confirmando a ressalva de Lobão (2006, p. 52) sobre o fato de que
“sumiu o conceito de uso, ou utilização, de recursos naturais renováveis consagrado pelo
saber tradicional das [chamadas] populações tradicionais”.
64
Vemos através das definições contidas no SNUC (BRASIL, 2004) que elementos
referidos ao meio natural, à prática da conservação da natureza e à diversidade biológica
acabam sobressaindo-se como as definições centrais que devem envolver os processos de
gestão das áreas de unidade de conservação65.
Essas três implicações que destaquei reforçam muito mais uma posição de alerta
que procuro deixar transparente e de abordá-las à luz das dificuldades geradas pelo confronto
da normatização (a legislação) com as regras do cotidiano de uma coletividade66. Mesmo sem
ainda ter sido criada, a Resex do Taim possibilita pensar tais implicações que merecem ser
amadurecidas no seu processo de construção.
5.5. No limite: Os impactos dos grandes projetos industriais na Ilha de São Luís
Os impactos de projetos industriais localizados na área industrial da Ilha de São
Luís surgiram como um outro principal motivo para o pedido de criação da Reserva
Extrativista do Taim. A área proposta para localização dessa Resex situa-se, em parte, dentro
do chamado Distrito Industrial II (Itaqui-Bacanga) e, em parte, limitando com este Distrito,
conforme vemos no mapa abaixo:
65 Entre os analistas ambientais do CNPT/IBAMA – MA que mantive contato detectei que apenas um deles tem formação na área de humanidades. Os outros membros dividem-se entre formados em áreas biológicas e tecnológicas. 66 Deixo claro que não estou baseando minhas considerações na recente legislação, no caso, Instruções Normativas, que foram oficializadas com a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Natureza. Baseio-me na análise do SNUC, aprovado no ano de 2000 (BRASIL, 2004).
65
Ilustração 4: Mapa dos limites entre o Distrito Industrial II da Ilha de São Luís e da área prevista para a Resex do Taim.
Legenda das delimitações: vermelha: área da Resex do Taim; azul: Distrito Industrial da Ilha de São Luís.
Segundo informações contidas no Relatório (2003, p. 14) elaborado pela Gerência
de Estado de Desenvolvimento da Indústria, Comércio e Turismo, o Distrito Industrial de São
Luís67 foi elaborado, no início da década de 1970 com a expectativa de possuir
(...) excelentes instalações Portuárias, a implantação do Projeto Carajás, a implantação do Consorcio Alumar e outras circunstâncias diversas entre quais o corredor Centro/Norte que compreende um conjunto multi/moldal de transportes, interligando o Brasil Central ao Norte/Nordeste, através da hidrovia Araguaia-Tocantins, da ferrovia Norte/Sul e da Estrada de Ferro Carajás (...).
Sem intenção de discutir os processos de implantação desses projetos na Ilha de
São Luís68, é notório, que alguns deles acabaram sendo implantados. Atualmente, na área
67 Para efeitos de esclarecimento, o Distrito Industrial I refere-se a área de Tibiri-Pedrinhas, que por ora não está sendo referido neste trabalho.
66
pretendida para a criação da Resex do Taim temos a presença de empreendimentos como a
Ferrovia Carajás destinada à vinda de matéria bruta, principalmente, minério de ferro e
bauxita da serra de Carajás, no Pará. E próxima da área prevista para a Resex, temos grandes
indústrias minero-metalúrgicas como o consórcio ALCOA/ALUMAR e a Companhia Vale do
Rio Doce, além da existência do Porto do Itaqui, grande estabelecimento que agrega uma
ramificação de sucursais administrativas de indústrias. Do povoado do Taim, constatei a
proximidade de um desses empreendimentos, caso da Companhia Vale do Rio Doce,
conforme visto na ilustração:
Ilustração 5: Instalações da Companhia Vale do Rio Doce vistas do povoado do Taim
68 A respeito disso, ver Mendonça (2006) e Paula Andrade (1981). Um trabalho monográfico realizado no âmbito do curso de Ciências Sociais da UFMA sobre os projetos industriais na Ilha de São Luís foi o de FERREIRA (1997).
67
Essas grandes indústrias foram implantadas dentro do chamado Programa Grande
Carajás (PGC) que segundo Mendonça (2006, pp. 32-33)
(...) ambicionou transformar as áreas em torno dos quase 900 km percorridos pela Estrada de Ferro Carajás (EFC), da Serra dos Carajás [no Pará] até São Luís, num grande complexo agroindustrial que atrairia investimentos para os mais diversos setores da economia como agroindústria, pecuária e indústrias das mais diversas, desde mineração até fabricação de laminados e peças automobilísticas, o que deveria ser capaz de garantir o desenvolvimento (...). (Grifo meu).
O PGC surgiu no contexto dos governos militares no Brasil com a perspectiva de
integrar a Amazônia à dinâmica econômica do país. Para os técnicos dos governos militares,
esta área era vista como um grande vazio demográfico, de grandes potenciais hídricos, de
recursos minerais e florestais, sendo considerada, assim, uma grande região estratégica para o
desenvolvimento do país.
Os planejadores governamentais passaram, dessa forma, a promover subsídios e
isenções fiscais com a finalidade da construção de grandes projetos, quais sejam, minero-
metalúrgicos e de agricultura de base empresarial. Para o suporte dos projetos firmava-se uma
infra-estrutura necessária com a construção de grandes estradas, hidrelétricas, ferrovias,
portos.
Por trás do conjunto de medidas de implantação do PGC, está a ideologia de
legitimação do desenvolvimento como o único caminho a ser seguido para o alcance do bem
estar e para a consolidação de uma ordem que privilegiava as ações de um Estado capitalista.
Segundo Escobar (1996), o conceito de desenvolvimento é um dos mais imbuídos de
ideologias e preconceitos que emergiram no século XX. Para este autor, os discursos de
defesa do desenvolvimento passaram a confundir duas concepções distintas: uma concepção
que relaciona o desenvolvimento a um processo histórico de transição a uma economia
moderna, industrial e capitalista; e outra que relaciona desenvolvimento à idéia de aumento da
qualidade de vida, erradicação da pobreza e melhores indicadores de bem estar material.
68
A ideologia do desenvolvimento teve como mito fundador o discurso de posse do
presidente estadunidense Harry Truman, em 20 de agosto de 1949, e tinha como pressupostos:
a fé na ciência, o crescente poder dos tecnocratas, a crença num inevitável domínio da cultura
ocidental e a caminhada messiânica do etnocentrismo. Esses pressupostos formularam a base
para a acelerada capitalização das normas e vidas cotidianas, para a exploração ilimitada dos
recursos naturais e para a subjugação de culturas que não se enquadravam nos modus vivendi
do que é considerado moderno ocidental.
A palavra desenvolvimento transformava-se, assim, de acordo com Escobar
(1996), num fetiche desejado por governos e corporações capitalistas, que se baseavam em
dois principais pilares: o economicismo – que identifica desenvolvimento como efeito do
crescimento econômico; e eurocentrismo – que media todos os povos do planeta através do
modelo ocidental de progresso. Ao mesmo tempo em que se criavam os desenvolvidos,
também, construía-se a concepção dos chamados subdesenvolvidos – meio milhão de pessoas
em todo o globo – a quem, de acordo com os ideólogos do desenvolvimento, eram
caracterizados por uma vida primitiva e miserável e que deveriam ser ajudados pelos
chamados desenvolvidos, no caso as nações ricas.
Entretanto, os efeitos do desenvolvimento não concretiza uma melhora na
qualidade de vida e nem promove o processo de igualdade e liberdade. Desde a década de
1970, aumenta o questionamento sobre as diversas formas e medidas desenvolvimentistas
adotadas através das grandes construções de estradas, ferrovias, barragens, manutenção de
produção agroexportadora e intensa industrialização e tecnologia. A intelectualidade ligada a
uma crítica pós-colonial (CASTRO-GÓMEZ, 2005) passaram a questionar os pressupostos
que sustentavam essas medidas, buscando com isso descolonizar o saber que estava imbuído
das interferências eurocêntricas de afirmação do desenvolvimento como único caminho para
toda a humanidade (LANDER, 2005).
69
O desenvolvimento como uma ideologia de domínio de uma forma de pensamento
(européia ocidental) e de ações intervencionistas (produção capitalista industrial) passou a ser
criticado, dentre outros motivos, pelas ações e impactos provocados nas diferentes
coletividades dos chamados países subdesenvolvidos. Criticam-se, assim, ao mesmo tempo, as
bases que erguem o desenvolvimento como ideologia centrada na razão única, universal,
cientifica e que se considera “neutra”.
A ocupação da Amazônia esteve e ainda está atrelada às investidas de
capitalização, com a exploração de recursos destinados, principalmente, ao comércio externo
e constituída de uma elite que prega o discurso “modernizante” das práticas e costumes
europeus, pretendendo legitimar ações de caráter desenvolvimentista (CLEARY, 1994;
SANT’ANA JÚNIOR, 2004). Grandes grupos capitalistas e conglomerados industriais
conduziram e ainda conduzem atividades na região amazônica produzindo grande
interferência na lógica sócio-cultural das coletividades que a habitam.
No Maranhão, o processo de instalação de grandes projetos baseados nessa
ideologia do desenvolvimento coincide com a chamada Lei de Terras nº 2.979, de 1969,
criada pelo então Governador do Estado, José Sarney. Esta Lei determinava que as terras
devolutas, existentes em grande porção do território estadual e ocupadas por pequenos
produtores rurais e extrativistas passariam a ser vendidas, constituindo-se em um mercado
formal de terras, favorecendo a grandes e médios empreendimentos baseados em uma
agricultura de base empresarial (SANT’ANA JÚNIOR e ALVES, 2006).
O Distrito Industrial II da Ilha de São Luís faz parte da estratégia de implantação
dos grandes projetos no Maranhão, baseada na ideologia do desenvolvimento. Na década de
1970, este Distrito foi pensado para a instalação das indústrias, dos escritórios
administrativos, das áreas de trânsito e deslocamento de matéria bruta, caso da implantação de
70
ferrovia, além de estar rodeado pela Baía de São Marcos que favorece a vinda de navios com
até 200 metros de envergadura.
Esse Distrito provocou grande processo de retiradas de famílias para a construção,
na década de 1970, de duas principais indústrias na Ilha: o Consórcio ALCOA/ALUMAR e a
Companhia Vale do Rio Doce69. Segundo Mendonça (2006), esta última destinada à
estocagem do minério de ferro vindo do Estado do Pará através da Ferrovia Carajás,
garantindo o transporte na rota internacional do minério e, a primeira destinada a receber a
bauxita oriunda da Serra de Carajás, no Pará, para transformá-la em alumina e/ou alumínio
com destino à exportação através do Porto do Itaqui.
Com a implantação, principalmente, dessas duas indústrias na porção sudoeste da
Ilha de São Luís, esta área começa a sofrer alterações oriundas das atividades vindas desses
empreendimentos. Isso foi sendo notado na fala de Beto, liderança do Taim, quando tratava de
ressaltar a diminuição de recursos naturais usados como alimentos e a poluição dos rios e
igarapés. Quando fala sobre a poluição dos rios, afirma que
(...) quando a ALCOA fez seu primeiro lago, era do lado de cá da BR, (...) então, ta na cabeceira de dois igarapés, grandes, que é o igarapé do Andiroba, e o igarapé da Ribeira, que nasce depois de Pedrinhas, mas tem, né afluentes, braços dele que tocam dentro da planta [da Alcoa]. (...) Então, esses dois igarapés sofreram um impacto enorme nos anos 87, já pra o início dos anos 90, vez por outra, a gente percebia a coloração da água do rio mudar e a gente não conseguia atribuir isso a nada (Entrevista concedida em 24/03/2007).
A degradação desses ecossistemas por sua vez aumentava a dificuldade dos
moradores em manterem sua subsistência através dos recursos naturais encontrados nos
mangues, no decorrer dos anos, após a implantação das indústrias no Distrito citado. A pesca
iniciava um período de diminuição em áreas como do Taim, devido ao que Beto chama de
fuga dos peixes como relatado a seguir:
69 Vulgarmente conhecida no Estado do Maranhão como apenas “Vale”.
71
(...) a gente percebia a fuga dos peixes, você não tinha mais tainha, você não tinha mais, a sardinha vinha, tem um período da sardinha que ela fica de maio até outubro mais ou menos, novembro quando começa a chover, ai ela foge, mas ela fica esse período todinho, e ela engorda, ela cresce ela reproduz, e desse período pra cá [inicio anos 90], ela deixou de fazer esse ciclo, quando ela vem, ela passa no máximo dois meses e ela não consegue ganhar tamanho, né, não consegue crescer, acho que nem reproduz, mais dentro do rio (...) (Entrevista concedida em 24/03/2007).
Não somente os peixes diminuíram como outros recursos não muito usados na
dieta alimentar dos moradores do Taim, passaram a ter seu ciclo reprodutivo modificado,
como no caso dos caranguejos e ostras, crustáceos e moluscos, respectivamente, presentes nos
mangues que rodeiam essa área, mas que não são mais encontrados com tanta facilidade como
bem ressaltado no seguinte trecho:
(...) ai o recurso que a gente não utilizava muito no dia a dia é o caranguejo, a gente não consegue, a gente não tem o hábito de consumir o caranguejo no dia a dia, mas ai percebeu que o tamanho dele começou a estabilizar muito, né. É, a ostra que é, que a gente ia buscar muito mais por esporte, ah, vamo buscar a ostra para tira gosto então ia lá e tira um pouco de ostra. Ostra tinha muito, né, e hoje você não vê, são raros os igarapés (...) (Entrevista concedida por Beto em 24/03/2007).
Esses recursos escasseiam, principalmente, em cursos d´água afetados pelo
derramamento de resíduos químicos, seja sólidos ou líquidos, e pelo escoamento de material
industrial vindo das descargas de esgoto de indústrias próximas ou distantes. Em casos
extremos, chega-se a cogitar o desaparecimento de alguns igarapés, conforme nos foi
relatado:
(...) a gente percebe quais são os igarapés que vem da Coca Cola, quais são os igarapés que vem da Cervejaria Equatorial, quase são os igarapés que saem da ALCOA, esses igarapés não têm ostras. (...) O igarapé da Andiroba, ele era uma, ele era uma referência pra pescaria, quando não dava em lugar nenhum no rio, tava ruim, você ainda ia no igarapé do Andiroba, tinha um poço, inclusive, ele subiu o nível do fundo dele e não tem mais, ele ficou raso mesmo, até o poço desapareceu, então são coisas que tão na prática (...) (Entrevista concedida por Beto em 24/03/2007).
A diminuição gradativa de importantes recursos utilizados na dieta alimentar das
famílias de povoados como o Taim e próximos, além da perda gradativa dos ecossistemas
72
que, historicamente, davam viabilidade para que essas famílias pudessem apropriar-se dos
peixes, ostras, caranguejos e outros mariscos, mantendo-os como recursos alimentares, ou
usados para a venda ou para a troca desencadeou preocupações por parte das famílias que
moram na área prevista para a criação da Resex do Taim.
As primeiras medidas adotadas pelas famílias foram articuladas no diálogo
participativo destas em encontros, tal como o Seminário Internacional “Carajás –
Desenvolvimento e Destruição”. Este evento foi promovido em São Luís e reuniu, em maio
de 1995, trabalhadores rurais e urbanos, além de representantes de comunidades indígenas da
região afetada pelos projetos do Programa Grande Carajás, como também representantes da
Igreja, empresas, órgãos oficiais do Brasil e da Alemanha e entidades de apoio e assessoria
desses dois países.
Lideranças do Taim, como o senhor Zé Reinaldo e Alberto Cantanhede,
confirmaram-me que, a partir de encontros como esse, buscavam-se soluções para o crescente
desastre que assolava os ecossistemas e as relações dos moradores com estes, na apropriação
de alguns recursos básicos usados na alimentação e em outras atividades econômicas. Dentre
as primeiras alternativas elaboradas almejava-se a criação de um Centro de Referência de
Acidentes de Trabalho, para que as famílias próximas às fabricas, às áreas de extração de
pedras e dos lagos de contenção de produtos químicos, da ferrovia e das máquinas de base de
transformação tivessem uma maior participação no controle das atividades.
A proposta desse Centro destinava-se a acompanhar “os incidentes, a progressão
de doenças, fazer exame do acúmulo de cabelo, do acúmulo de alumínio , (...) do acúmulo
acima permitido de alumínio no sangue a partir do cabelo” (Entrevista concedida em
17/09/2006).
Entretanto, a proposta de criação de um Centro de Referência de acidentes de
trabalho acabou não se concretizando, devido à dificuldade que as famílias locais acabaram
73
tendo diante da decisão de participarem como membros de fiscalização. Segundo Beto, o
próprio Governo Estadual não apoiou a idéia, já que a idéia dos moradores locais era de que
fosse estabelecido
(...) um Centro de Referência, mas que [teria] uma outra postura, onde o Poder Público, a empresa mais a comunidade [tivesse] acesso às informações e inclusive na indicação dos técnicos que irão pra lá. (...) quando chegou nessa parte, (...) morreu a discussão (...) (Entrevista concedida em 17/09/2006).
Uma outra proposta ocorreu com a tentativa de uma articulação entre os
representantes dos povoados que eram impactados pelos projetos industriais com o Conselho
Estadual de Meio Ambiente, nos idos entre 1995 e 1996, com o intuito de criar condições de
potencializá-lo através da instalação de instrumentos de monitoramento das emissões de gases
através de filtros instalados nas indústrias nos povoados em locais estratégicos. Essas medidas
visavam saber qual a capacidade de emissão de gases das chaminés das indústrias espalhadas
próximas a povoados como Taim, Cajueiro e Porto Grande e seriam fiscalizados em conjunto
pelos moradores locais, pelos técnicos das fabricas e indústrias próximas e por integrantes do
órgão governamental.
A proposta de instalação de instrumentos de monitoramento da quantidade de
gases emitidos pelas indústrias foi inspirada em outras indústrias que já promoviam essa
medida, de outras localidades do país, e até de outros países, como no caso da Alemanha. Isso
foi sendo discutido a partir da participação que representantes dos povoados realizaram junto
aos debates promovidos no âmbito do já mencionado Seminário Internacional Carajás.
Entretanto, essa possibilidade de articular ações conjuntas com o Conselho
Estadual de Meio Ambiente não se concretizou, devido às dificuldades dos representantes dos
povoados em obterem recursos para a compra de equipamentos e pela falta de incentivos tanto
das próprias indústrias que não desejavam, segundo Beto, o monitoramento, e nem do
Governo estadual que, por sua vez, não teria a influência total na deliberação de mudanças ou
74
não das atividades de emissão, já que dividiria essa responsabilidade com as interferências
dos representantes dos povoados, de associações de bairros e de entidades de assessoria e
apoio às iniciativas das famílias locais.
Tanto com o Centro de Referência de Acidentes de Trabalho quanto com as
medidas para potencializar o Conselho Estadual de Meio Ambiente, no sentido de uma
participação maior das famílias das localidades próximas às indústrias, o que estava em jogo
era a perspectiva de buscar alternativas para o combate à poluição gradativa dos ecossistemas,
aos problemas de saúde dos moradores e para iniciar estratégias de luta pelos direitos
trabalhistas de quem sofria pelas péssimas condições de trabalho.
5.6. “Somos populações tradicionais”: História social, conceitos e apropriação política de
uma categoria
A categoria populações tradicionais despontou com maior ênfase nos discursos
oficiais, na luta dos movimentos sociais e entre os debates intelectuais, paralelamente, à
constituição das reservas extrativistas no Brasil, no início da década de 1990. Apesar disso,
alguns autores (DIEGUES, 1996; LOBÃO, 2006) apontam que, na década de 1980, já tinham
surgido categorias sinônimas de populações tradicionais, caso do termo indigenous presentes
em documentos oficiais do Banco Mundial que significava povos nativos. Ou em documentos,
como Nosso Futuro Comum, da Comissão da Organização das Nações Unidas (ONU), que se
referia a povos tradicionais definindo-os como “minorias culturalmente distintas da maioria
da população que estão quase que inteiramente fora da economia de mercado” (apud
DIEGUES, 1996, p. 104).
A categoria populações tradicionais deve ser vista como uma construção sócio-
histórica surgida de múltiplos embates, apropriações e ressignificações e que vem sendo
utilizada em diversos discursos. Pensar este elemento sugere um resgate de sua história social
75
e dos seus conceitos normativos e sócio-antropológicos, bem como as implicações
decorrentes dos mesmos.
Conforme Diegues (1996, p. 125), no caso do Brasil, “a preocupação com as
chamadas ‘populações tradicionais’ que vivem em unidades de conservação é relativamente
recente”. Essas populações, até a primeira metade do século XX, eram consideradas “casos de
polícia” e deveriam ser expulsas para a preservação dos parques e reservas florestais.
Até a década de 1980, a união efetiva entre as preocupações com o social e com o
ambiental ainda não havia se concretizado no Brasil. O que existia era um movimento
ambientalista caracterizado pelos momentos de denúncia e ajustamento das primeiras
organizações que tentavam mapear as principais questões que envolviam uma problemática
ambiental no Brasil (VIOLA, 1992).
A relação com o “social” não tinha tanto preocupação para os interesses do
movimento ambientalista, que defendia plenamente a fauna e a flora contra as ações
predatórias às mesmas. Contudo, em fins dos anos 1980 e princípios dos anos 1990, em meio
à efervescência redemocrática do país e com a realização da Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO 92 – realizada no Rio de Janeiro, o
movimento ambientalista começou a ganhar um novo corpo.
Essa nova fase do ambientalismo brasileiro firmava a adoção gradativa, por parte
das suas principais organizações, de um sentido relacional entre a defesa do meio ambiente e
das condições sociais em usufruí-lo (VIOLA, 1992). As preocupações do ambientalismo,
neste momento, também visavam à colaboração com os movimentos sociais que
apresentassem políticas estratégicas de defesa do uso equilibrado do meio ambiente.
Com isso, segundo Viola (1992), o ambientalismo passou a apoiar e efetivamente
traçar ações conjuntas com alguns movimentos sociais como o movimento dos atingidos pelas
barragens (MAB), o movimento dos seringueiros, os movimentos indígenas e alguns setores
76
do movimento dos trabalhadores rurais. Para a atual ministra do Meio Ambiente, Marina
Silva (2001), as mudanças em curso na cultura política do Brasil, nos anos 1990, transformou
a “questão ambiental”, até então preocupada com fauna e flora, em “questão socioambiental”.
Articulando os interesses dos ambientalistas que defendiam a paralisação das
derrubadas das florestas, principalmente, na Amazônia com o apoio às lutas de vários
segmentos sociais que viviam e necessitavam dos recursos das florestas – caso dos
seringueiros e indígenas – firmou-se uma nova proposta societária de movimento social. Era o
socioambientalismo. E que, no Brasil, construía uma imagem de singularidade em relação aos
movimentos de cunho ambiental de outros países.
Santilli (2004) reconhece que o socioambientalismo ainda é um movimento
recente e de pouca exploração analítica por parte de quem o investiga. Ele surgiu como
resultado da articulação das idéias de inclusão de políticas públicas ao meio ambiente e que
envolvessem os grupos locais das florestas e campos e que são considerados pelos adeptos do
socioambientalismo como detentores de práticas de baixo impacto aos ecossistemas.
O socioambientalismo foi se constituindo de novas práticas e instrumentos de
legitimação de um novo processo dentro dos movimentos sociais, aliado às reivindicações de
segmentos sociais amazônicos, caso, principalmente, dos seringueiros do Acre. Ao mesmo
tempo em que conceitos, elaborações teóricas e dispositivos legais eram produzidos para
materializar os efeitos de tal movimento societário, as lutas sociais que refletiam este novo
movimento eram desencadeadas na realidade.
Com a mobilização pela criação das primeiras reservas extrativistas no Brasil70, a
categoria populações tradicionais começou a ganhar visibilidade, e foi inventada,
principalmente, a partir da criação do Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável das
70 Conforme Costa Filho (1995, p.26), em 1990, foram criadas as primeiras quatro Reservas Extrativistas do Brasil: a Reserva do Alto Juruá (Acre), a Reserva Chico Mendes (Acre), a Reserva do Rio Ouro Preto (Rondônia) e Reserva do Rio Cajari (Amapá).
77
Populações Tradicionais (CNPT)71, em 1992, no âmbito do Ibama. Segundo Lobão (2006), os
seringueiros passaram a extrativistas quando ainda dominavam a interpretação do processo de
implementação das primeiras reservas extrativistas, mas depois, com o CNPT, passam a ser
definidos como populações tradicionais.
No site do IBAMA, na Internet, figura um histórico do CNPT que apresenta dentre
suas atribuições: “criar, implantar, consolidar, gerenciar e desenvolver as Reservas
Extrativistas em conjunto com as populações tradicionais que as ocupam”72. As chamadas
populações tradicionais passaram a existir, sendo apropriadas para outros contextos,
dependendo da situação em que eram evocadas.
O antropólogo Paul Little (2002) argumenta que se constituiu um vocabulário
semântico com a combinação de palavras que se firmaram em vários discursos definindo
coletividades, tal como a categoria que utilizo aqui – populações tradicionais. Assim,
juntaram-se categorias como populações, comunidades, povos, sociedades e culturas com
adjetivos tais como tradicionais, autóctones, rurais, locais, residentes, criando um léxico que
significa a identificação de grupos humanos com específicos modos de vida espalhados no
país.
No âmbito normativo, um momento histórico de definição do que seria populações
tradicionais ocorreu na elaboração da lei nº 9.985/2000 que institui o SNUC. Conforme
Sant’Anna (2003), durante os debates para a elaboração do SNUC, surgiram problemas de
duas ordem quanto á inclusão da categoria populações tradicionais no referido documento.
Inicialmente, população tradicional seria definida como uma “população
culturalmente diferenciada”73. Porém, essa expressão foi contestada, principalmente, por
71 Maiores detalhes sobre o CNPT vide nota 07. 72 Acessado em 10/10/2007. www.ibama.gov.br/resex/cnpt.htm 73 Conforme Sant’Anna (2003), as primeiras definições de populações tradicionais vieram através de substitutivos do projeto de lei do SNUC. Mas, devido a sérias críticas às definições de população tradicional, a mesma acabou não permanecendo no texto final da lei.
78
antropólogos, dentre eles Henyo Barreto Filho74, que chamava atenção para a possibilidade de
ter “uma posição que [afirmasse]: ‘não, culturalmente diferenciadas são as populações
indígenas’” (apud Sant’Anna, 2003, p. 121). Dessa forma, surgiam implicações que podiam
questionar quais populações mereciam estar inseridas nas unidades de conservação de uso
sustentável e qual o sentido deveria ser reconhecido para o termo tradicional.
Esta autora afirma que a categoria acabou não sendo colocada no texto final do
SNUC, devido à dificuldade de definição do que seria uma população tradicional e que
ambientalistas, antropólogos, parlamentares e representantes de movimentos sociais
negociaram pelo veto presidencial à mesma. Nesse aspecto, Sant’Anna (2003, p. 123) salienta
que
Para muitos que se envolveram na elaboração do SNUC, o veto representou a melhor solução possível naquele momento, pois não restringia ou generalizava, mas abria espaço para que cada grupo social interessado em participar do sistema de unidades de conservação fosse avaliado segundo seu caso específico.
Passado o veto da definição final de populações tradicionais no SNUC, em 07 de
fevereiro de 2007 foi publicado o Decreto nº 6.04075, em que consta a mais recente definição
normativa dessa categoria e que reproduz a mesma definição presente na Instrução Normativa
nº 0176 do recém criado Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade77,
transcrita abaixo:
população tradicional: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais; que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (...).
74 Antropólogo, atualmente, pesquisador e professor de Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB). 75 Decreto Federal que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm. Extraído em 20/06/2007. 76 Instrução Normativa nº 01 de 18 de setembro de 2007. Publicada no Diário Oficial da União nº 182, Seção I, páginas 101 e 102. 77 Sobre o Instituto Chico Mendes vide nota 06.
79
É pertinente apontar que nesta mais recente definição a expressão – “grupos
culturalmente diferenciados” – continua semelhante à que constava na definição vetada do
SNUC. Apesar de acrescentada da expressão – “e que se reconhecem como tais” –, questiono
se não surgirá alguma implicação para o fato de que ainda nessa recente definição – “grupos
culturalmente diferenciados” podem surgir decisões que levem em consideração, somente, os
grupos indígenas, permanecendo o impasse na definição de qual coletividade é ou não
população tradicional. Em quais critérios estarão baseados quem afirmar que tal grupo é
culturalmente diferenciado e que se reconhece como tal? Não proponho respostas, porém
importa refletir no momento.
No âmbito da definição sócio-antropológica, Lobão (2006) enfatiza que o conceito
de populações tradicionais, no Brasil, inicialmente, tinha um sentido ligado à história dos
povos amazônicos, já que foi da Amazônia, que surgiu o movimento de construção de
visibilidade dessa categoria ao público em geral, decorrente da luta dos seringueiros. De
acordo com este autor, até a década de 1980, os povos amazônicos eram classificados em três
grupos: índios, caboclos ou ribeirinhos e colonos.
Entretanto, para os antropólogos Almeida e Carneiro (2001, p. 184) os povos
indígenas não estariam incluídos na categoria populações tradicionais, tal como construída
dentro da legislação do SNUC. Os povos indígenas foram construídos como coletividades
distintas há algumas décadas antes de 1980 na legislação brasileira. Na definição
constitucional, os povos indígenas tiveram seus territórios – as chamadas terras indígenas –
como uma categoria jurídica estabelecida pelo Estado brasileiro e que foram demarcadas no
decorrer da segunda metade do século XX (LITTLE, 2002).
Assim, diferente do conceito de populações tradicionais, que foi construído
relacionado à idéia de equilíbrio dos recursos naturais, o que se consolidou na legislação
80
brasileira foi que os direitos indígenas não eram qualificados em termos de “conservação”,
mesmo que suas terras fossem consideradas relevantes locais de conservação ambiental78.
Almeida e Carneiro (2001, p. 184) argumentam que, em fins da década de 1990, a
inclusão de mais coletividades enquadradas como populações tradicionais dever-se-ia ao fato
de que o significado da categoria foi ser ampliado “de maneira ‘extensional’, isto é,
enumerando seus ‘membros’ atuais ou candidatos a ‘membros’”.
No texto da 2ª Reunião Ordinária da Comissão Nacional da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT)79, foi relatado,
de acordo com informações do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, que ¼ do
território nacional brasileiro é ocupado por povos ou populações tradicionais, compondo uma
estimativa de quase 5 milhões de pessoas, e que, segundo o antropólogo Paul Little, existem
26 grupos específicos classificados como populações tradicionais. Porém, essas informações
são muito mais referências do que dados precisos, pois ainda é precária a disponibilização de
dados (MMA, 2006).
Esse texto destaca uma informação importante ocorrida durante o I Encontro
Nacional de Populações Tradicionais realizado na cidade de Luziânia, em Goiás, no período
de 17 a 19 de agosto de 2005 (MMA, 2006). Nesse encontro, firmaram-se 15 categorias de
auto-identificação que, conforme enfatizado por Almeida e Cunha (2001), incluíram novas
categorias, confirmando o que esses autores ressaltam por vertente “extensional” de
enumeração de membros como integrantes de populações tradicionais. São as seguintes:
sertanejos, seringueiros, comunidades de fundo de pasto, quilombolas, agroextrativistas da
78 Importa destacar que Almeida e Carneiro (2001, p. 187) enfatizam que as chamadas populações tradicionais
não são necessariamente conservacionistas, crença que resultou, durante algum tempo, entre ideólogos do movimento ambiental e até de intelectuais, na essencialização do chamado “bom selvagem ecológico”. Esses autores argumentam que, em primeiro lugar, algumas coletividades podem seguir “regras culturais para o uso dos recursos naturais que dada a densidade populacional e o território em que se aplicam são sustentáveis”. E, em segundo lugar, eles consideram que, embora algumas “culturas tradicionais” já tenham articulado suas necessidades com a economia de mercado e encontrado mudanças no modo de vida, os mesmos não necessariamente provocarão uma superexploração dos recursos naturais já que “a situação equilibrada anterior ao contato, manteria um papel importante na conservação” (2001, p. 188). 79 Disponível para download através da página www.mma.gov.br.
81
Amazônia, faxinais, pescadores artesanais, comunidades de terreiros, cigana, pomeranos,
indígena, pantaneiros, quebradeiras de côco babaçu, caiçaras e gerazeiros. Outras categorias
podem existir ou serem construídas além destas, mas é interessante que ainda falta uma
investigação mais detalhada desta situação complexa (MMA, 2006).
Alguns autores recentes, principalmente aqueles que se utilizam de uma explicação
sócio-antropológica da categoria populações tradicionais, enfatizam que a visibilidade dessas
coletividades está consolidando-se a partir das várias disputas e eclosão de conflitos
decorrentes da diversidade territorial que existe no país. Nesse sentido, um elemento
importante que subsidia as reivindicações e conflitos dessas coletividades diz respeito à noção
de território.
Definições várias tentam dar sentido para a noção de território. Assim, para Castro
(1997, p. 223), território é conceituado como “o espaço sobre o qual um certo grupo garante
aos seus membros direitos estáveis de acesso, de uso e de controle sobre os recursos e sua
disponibilidade no tempo”. Já para Raffestin (1993, p. 144), que envolve a noção de território
com as lutas pelo poder, território é “um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e
informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder”.
Diegues (1996) ressalta que o território é marcadamente constituído por relações
sociais e que as mesmas definem as formas de ocupação e de apropriação dos recursos
naturais. Este autor destaca que o território de coletividades tradicionais não é contínuo, pois
é construído através das formas de ocupação, tais como o uso do mar, das terras agricultáveis
e das áreas para coleta e extração de produtos da floresta. O território, para Diegues, é
formado, assim, por um sentido coletivo, pois é usado e defendido para o grupo todo ou para a
maioria de seus integrantes.
Através dessas definições, nota-se que o território apresenta um caráter coletivo,
necessário para a apropriação dos recursos naturais e, conseqüentemente, para garantir a
82
reprodução física, social, cultural e econômica e de manter um certo nível de poder. Existem
diversificados territórios sociais no país, ocupados por coletividades específicas, que ainda
não estão reconhecidos oficialmente e que, em muitos casos, enfrentam a posição da
hegemonia territorial imposta pelo Estado-Nação (LITTLE, 2006).
Historicamente, no Brasil, a ocupação e afirmação territorial passou pelo que Little
(2006) e outros autores (ALMEIDA, 2006) enfatizam como territorialidade, que de acordo
com aquele autor (2006, p. 03) é “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar,
controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico (...)”. Esse
esforço coletivo de ocupação e afirmação territorial também está, historicamente, no Brasil,
associada à emergência das populações tradicionais, através de três momentos de eclosão de
disputas e conflitos (LOBÃO, 2006; LITTLE, 2006).
Esses três momentos, segundo Little (2006), estão constituídos no contexto
ambientalista, de criação das primeiras Unidades de Conservação de proteção integral, quando
ocorreu o discurso de ataque à presença de grupos humanos; em um segundo contexto, com a
presença do Estado-Nação estimulando grandes projetos, como indústrias, portos, ferrovias,
hidrovias e hidrelétricas, que vieram sobrepor territórios sociais de específicas coletividades;
e um terceiro momento, ocorrendo, conforme já explicitado, a emergência do movimento
socioambiental, que, inicialmente, reivindicado por grupos extrativistas, como os
seringueiros, defendia a reprodução social dos grupos atrelados ao uso equilibrado das
florestas, situação que concretizar-se-ia com a criação de reservas extrativistas.
O relato de Beto, quando questionado sobre como ele e outras lideranças
argumentariam pela defesa imediata da criação da Resex do Taim, surgiu a seguinte
informação:
Nós não nos enquadramos enquanto assentamento, nós nos enquadramos enquanto população tradicional, então não é assentamento, é uma comunidade histórica, com mais de cem anos, quase duzentos, então, nós não nos enquadramos nesse aspecto com um assentamento, nem muito menos como ocupação (...). (Entrevista concedida em 24/03/2007).
83
Por trás desse comentário, o interlocutor está criticando o fato de que os órgãos
oficiais estaduais classificam as coletividades que reivindicam a criação da Resex do Taim
como assentados ou ocupantes irregulares80. Essa situação é vista por Beto como uma
desconsideração às condições históricas de vida das coletividades a serem inseridos na Resex
e não contribui para afirmar o sentido de população ou grupo tradicional que, para ele, traduz
essas condições e legitima a luta pela implementação dessa unidade de conservação.
Apesar de estar registrada duas categorias de auto-identificação – lavradores e
pescadores – na ata em que a Associação dos Moradores do Taim81 afirma o pedido de
criação da Resex e sua necessidade de envio ao IBAMA, o que está por trás da situação acima
relatada por Beto é a apropriação de uma categoria que se constituiu, em diversos casos, como
decisiva na luta de diversas coletividades pela reivindicação de direitos, pela emergência de
conflitos e por demandar políticas públicas, tal como no caso de uma reserva extrativista.
Dessa forma, a afirmação de Beto não merece ser vista como algo essencial.
Reivindicando a criação da Reserva Extrativista do Taim, esse interlocutor não se
vê e nem percebe as coletividades em jogo na área definida para esta Resex sem estar
relacionadas à idéia de população tradicional. Essa medida, corresponde ao meu ver, em um
instrumento de eficácia simbólica que este interlocutar reafirma a partir do momento em que
percebe que tal categoria é mobilizadora e vem ganhando “membros”, conforme enfatizam
Almeida e Carneiro (2001).
Beto busca legitimar tanto a condição de população tradicional quanto a criação
da Resex do Taim tecendo elementos que refletem a construção desse tipo de unidade de
conservação no Brasil. E nisso ele vai afirmando junto com outras lideranças dos povoados
que
80 Ver o título “O povoado do Taim” que detalha mais informações sobre a classificação assentados e ocupação
irregular. 81 Vide nota 51.
84
(...) pra chegar na Reserva Extrativista mesmo, (...) começamos a aprofundá-la em 98, mas quando começamos a aprofundá-la em 98, nós já tínhamos por exemplo, o Centro Nacional de Populações Tradicionais, o CNPT, que subsidiava muito essa discussão, a partir das reservas do Acre que nós nunca conseguimos ir lá, mas eles traziam essas informações nas discussões de Unidades de Conservação. Toda assembléia do GTA [Grupo de Trabalho Amazônico], (...), todas as assembléias do CNS [Conselho Nacional dos Seringueiros], todas as assembléias da COIAB [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira], que são os povos indígenas, todos esses grupos, todas as assembléias desses grupos incluía na pauta as Unidades de Conservação, então a gente tava nesses debates (...). (Entrevista concedida em 24/03/2007).
Além de aspectos que possam vir a definir as coletividades presentes na área
prevista para a Resex do Taim como tradicionais, tal como explicitado no caso do povoado
do Taim, existe uma apropriação, a partir da fala acima, do sentido de luta que veio
subsidiando a categoria populações tradicionais no decorrer dos fins da década de 1990. Uma
luta que faz referência à ocupação e reafirmação do território social.
Como ressaltada por alguns autores (DIEGUES, 1996; LITTLE, 2002), a
afirmação do território está intimamente baseado na constituição de relações com os recursos
naturais e na definição coletiva de seu uso. Retornando com as palavras de Beto, o mesmo
enfatiza que
(...) a gente tem a posse da terra, é eu posso ter o meu documento da minha terra, eu tenho hectare, o outro pode ter um pouquinho mais (...). Na unidade de conservação, ele [o hectare] é uma propriedade nivelada de todo mundo, você estabelece as áreas de uso, estabelece as formas de uso e você tem o controle sobre esse uso porque é o que ta estabelecido. E porque exemplo, ninguém pode ter o título dentro da Reserva, o título pessoal, você tem uma área demarcada pro uso pessoal da sua família, o resto são áreas comuns (Entrevista concedida em 24/03/2007).
Essa atitude merece ser interpretada a partir da argumentação de Little (2002)
sobre os usos políticos que a luta pela afirmação de ser população tradicional traduz,
articulada à defesa de territórios sociais. Apropriando-se dessa categoria e reafirmando que o
uso do território caracteriza-se pelo caráter coletivo, as afirmações de Beto resultam no que
Little (2002, p. 23) aponta como a dimensão política da categoria populações tradicionais, ou
85
seja, utilizá-la no plano de reivindicações territoriais de grupos sociais específicos que lutam
pelo “reconhecimento da legitimidade [de] seus regimes de propriedade comum”.
Assim, não é por acaso, por coincidência ou por puro essencialismo que Beto vem
afirmar que as coletividades da área prevista para a Resex do Taim são populações
tradicionais. Na verdade, constituiu-se de um plano político construído por lutas que vem
ganhando solidificação no terreno histórico de grupos, como no caso do Taim, que defrontam-
se com adversidades para manterem sua reprodução social, física e cultural presente nos dias
de hoje.
86
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chartres é feita de pedra e vidro, mas não é apenas pedra e vidro
é uma catedral, e não somente uma catedral, mas uma catedral
particular, construída num tempo particular por certos membros
de uma sociedade particular. Para compreender o que isso significa,
para perceber o que isso é exatamente, você precisa conhecer mais do que
as propriedades genéricas da pedra e do vidro e bem mais do que é comum a todas
as catedrais. Você precisa compreender também – e, em minha opinião,
da forma mais critica – os conceitos específicos das relações entre Deus, o homem
e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram
a sua criação. Não é diferente com os homens: eles também, até o último deles,
são artefatos culturais
(Clifford Geertz)
O estudo da proposta de criação da Reserva Extrativista do Taim na Ilha de São
Luís apontou-me alguns aspectos que merecem considerações. É relevante destacar que esta
proposta colocou-me diante de uma complexa problemática de cunho sócio-ambiental no
interior da Ilha de São Luís, o que me faz desvelar que seu estudo necessita de muito mais
investigação, e que o exercício por ora apresentado dá um impulso para pensar outras
questões.
Primeiramente, importa destacar que a proposta da Resex do Taim não surgiu por
acaso, mas levada por situações que, desde a década de 1990, mostram os avanços da
reivindicação de coletividades, tais como pequenos produtores rurais, extrativistas e
pescadores pela adoção de instrumentos de defesa de suas terras e dos ecossistemas que os
mesmos se apropriam. Isso é decorrente de lutas travadas pela defesa da posse de terras, na
elaboração de normas (caso do SNUC), de conceitos (como de populações tradicionais) e de
alternativas que possam superar os efeitos antagônicos de intervenção do capital sobre áreas
de grande biodiversidade e recursos naturais.
É pertinente pensar que a Resex do Taim vem se configurando como uma
construção, uma invenção decorrente de interesses que são apropriados pelos seus principais
defensores, no caso, as lideranças dos povoados que a reivindicam. Temos, assim, o uso
87
constante de categorias, caso da afirmação de populações tradicionais na área prevista para a
Resex, como uma das formas de legitimar a criação de tal unidade. Observo, também, como a
criação das reservas extrativistas no Brasil ainda permanece muito mais atrelada aos discursos
das lideranças do que ao conhecimento de todos os moradores que serão atingidos por esta
política pública. Isso acabou sendo percebido no caso da Ilha de Tauá-Mirim, onde grande
parte dos moradores desconhecem tal instrumento e, mesmo ainda, nem entenderam os
objetivos de sua implementação, já que se defrontam com categorias fora de seus contextos de
vida.
Em segundo lugar, no caso especifico da reivindicação pela Reserva Extrativista
do Taim, as lutas decorrem em torno das disputas pela utilização dos recursos naturais e pelo
controle de um território82. Destaco que na área prevista para a criação da Reserva Extrativista
do Taim uma série de problemas sociais, ambientais e outros, como fundiários e de trabalho,
estão sendo desencadeados desde há trinta anos. Essa área – a porção sudoeste da Ilha – ainda
apresenta uma grande diversidade florestal, faunística e hídrica, o que chama atenção para a
relação entre a apropriação desta diversidade com as necessidades de sobrevivência das
coletividades que residem neste local.
São recursos naturais vindos dos igarapés, dos mangues, das matas, das roças, das
inúmeras árvores nativas que são extraídos para consumo próprio e para a comercialização em
localidades próximas ou mesmo distantes ou que fazem parte da preparação dos rituais, de
festividades, mas que estão ameaçados devido ao avanço da poluição dos rios, dos pequenos
cursos d´água, do cercamento de áreas utilizadas para a agricultura de pequenos produtos, do
aumento de resíduos químicos no ar e nos igarapés. Isso em decorrência dos grandes projetos
que buscam cada vez mais espaços para expandirem suas atividades ou para manterem o
controle de áreas próximas às suas atuais instalações.
82 Penso a idéia de território a partir das contribuições de Little (2006) e Raffestin (1993) como sendo o resultado da construção de relações sociais em determinado espaço, com vistas à disputa e legitimação de poder através do uso e controle do ambiente biofísico.
88
Em terceiro lugar, essa problemática sócio-ambiental a que me refiro tem por trás
de si o confronto de lógicas desiguais de apropriação do ambiente. De um lado, os grandes
projetos industriais exploram de forma intensa os recursos florestais e hídricos a partir de uma
tecnologia que por vezes degrada o ambiente e, no caso, do Maranhão, vêem desde o período
militar, mais precisamente, nos anos 1970, ocupando territórios que de forma nenhuma
estavam “vazios” ou que eram descritos como de ocupação irregular.
A concepção de território que prevalece a partir dos grandes projetos industriais é
de uma orientação unilinear e homogênea em que a natureza aparece com um novo
significado, preso a um fluxo contínuo de uma rede de exploração destinada à realização da
produtividade econômica capitalista. Nesse sentido, a lógica de apropriação dos recursos
naturais e do território está atrelada à sustentação de formas de exploração existentes com as
atividades industriais do Distrito Industrial II da Ilha de São Luis.
Por outro lado, a apropriação do território pelas coletividades dos povoados que
lutam pela Resex revela-se sob diferentes concepções, como, por exemplo, no uso das áreas
naturais para diversas necessidades (trabalho agrícola, pesca, extração e outras), que
viabilizam manter a reprodução material e social dos grupos, bom como a manutenção
equilibrada das relações com os ecossistemas.
Nesse sentido, considero que a partir da emergência de criação de uma Reserva
Extrativista na área estudada, possibilita-se pensar em um cenário de conflito sócio-ambiental
(ACSELRAD, 2004).
As coletividades que buscam a criação de uma Resex e os projetos industriais que
buscam expandir suas formas de uso dos recursos naturais e ocupação dos territórios colocam
em confronto desiguais poderes que mostram, na verdade, lutas pela afirmação de sentidos
culturais. Esse confronto é visto, segundo Acserald (2004), como uma construção variável no
tempo e no espaço que viabilizam as ações e/ou construções discursivas, sejam dos grupos
89
que defendem a Resex, através de sua identificação como populações tradicionais, sejam dos
grandes projetos legitimando sua autoridade através de um discurso de desenvolvimento e
progresso para o Estado.
90
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ANEXOS
I - Oficio da União dos Moradores do Taim com pedido ao IBAMA para criação da Reserva Extrativista do Taim