Raymundo Faoro - quando o mais é menos

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    RAIMUNDO FAORO: QUANDO O MAIS MENOS

    Maria Aparecida Azevedo ABREU1

    RESUMO: O objeto do trabalho o pensamento poltico deRaymundo Faoro. A partir da leitura de sua obra e da de outrosautores que, se no dialogam diretamente com Faoro, tm com elepontos em comum, sero apontados alguns entraves para que a

    tese central de Faoro seja aceita sem reservas. Tal tese a daexistncia, na formao nacional brasileira, de um patrimonialismoestamental exercido atravs de um estamento burocrtico que

    teria sua origem em Portugal e permanecido ao longo de toda ahistria brasileira. A presena deste estamento burocrtico teriadado causa separao entre nao e Estado que, segundo Faoro,marcou os diversos perodos da Histria do Brasil. A sugesto a de que, ao buscar algo que caracterizasse a identidadenacional, Faoro acabou enfraquecendo o seu mais forte insight,

    tornando-o alvo fcil de crticas e dificultando a apropriao desuas observaes para uma interpretao da conjuntura do Brasilnas ltimas trs dcadas. Buscando enfrentar essa dificuldade,pretende-se apontar uma possvel atualidade da anlise de Faoro,confrontando-a principalmente com anlises do quadro scio-poltico brasileiro realizadas recentemente.

    PALAVRAS-CHAVE:Patrimonialismo. Estamento burocrtico. Pensamentopoltico brasileiro. Brasil. Portugal

    Introduo

    O objeto deste trabalho so os textos polticos deRaymundo Faoro. A partir da leitura de sua obra, pretendo traar1 Mestra e doutoranda em Cincia Poltica Departamento de Cincia Poltica USP - Universidade de

    So Paulo 05508-900 SP Brasil. Email: [email protected].

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    observaes acerca dos aspectos que julguei mais relevantespara a compreenso da importncia que este autor tem para opensamento poltico brasileiro.

    Para a realizao dessa pretenso, foram lidos os seusprincipais textos, bem como o de outros autores que, se nodialogam diretamente com Faoro, tm com ele pontos em comumque coincidem com os aspectos que procurei ressaltar neste

    trabalho. A partir dessa leitura, em primeiro lugar, abordo a tesecentral adotada por Faoro no s em Os Donos do Poder, seu livromais conhecido, como em toda sua obra sobre o Brasil, que aexistncia, na formao nacional brasileira, de um patrimonialismoestamental exercido atravs de um estamento burocrtico que

    teria sua origem em Portugal e permanecido ao longo de todaa histria brasileira. A existncia deste estamento burocrtico

    teria dado causa separao entre nao e Estado que, segundoFaoro, marcou os diversos perodos da histria do Brasil.

    Em seguida, relaciono a sua tese central com o tema daidentidade nacional, procurando destacar a pretenso de Faoro,ao abordar esse tema, em inserir-se na seara dos intrpretes da

    formao social brasileira que buscaram em sua interpretaoa identidade ou o carter nacional. Nesta seara, Faoro se inserenuma vertente especial, na medida em que o autor que maisdetidamente enfoca o Estado brasileiro e o papel determinantedeste nas relaes sociais.

    A minha sugesto a de que, ao buscar algo que caracterizassea identidade nacional, Faoro acabou enfraquecendo o seu maisforte insight, tornando-o alvo fcil de crticas e dificultando aapropriao de suas observaes para uma interpretao daconjuntura do Brasil nas ltimas trs dcadas.

    Esta minha ltima formulao apresentada em forma desugesto, a partir das crticas feitas tese central de Faoro. E,no que concerne possvel apropriao de suas observaes,a sugesto feita sem qualquer embasamento emprico maisdetalhado, apenas seguindo a pista das crticas que so feitas gesto do Estado brasileiro nos ltimos anos.

    A tese central de Faoro

    O livro considerado mais importante de Raymundo Faoro, sem dvida, Os Donos do Poder. Lanado em sua primeira

    edio em 1958, s veio a ter uma grande repercusso no meioacadmico em sua segunda edio, em 1975, bastante ampliadae com diferenas de abordagem que no modificaram a estruturada obra e seus principais argumentos 2. Embora a segunda edio

    tenha sido examinada para algumas comparaes que seroapontadas neste trabalho, a principal referncia utilizada pormim a da primeira edio.

    A tese central do livro a de que na formao scio-polticobrasileira h a permanncia de um patrimonialismo estamental,no tradicional, que tem sua origem em Portugal, caracterizadopela presena de um estamento burocrtico. Patrimonialismoestamental e estamento so categorias tomadas explicitamentede Weber e apropriadas por Faoro para descrever um conjunto derelaes que, segundo ele, teria permanecido na estrutura scio-poltica brasileira durante toda a sua formao at o momento daanlise feita pelo autor.

    A dominao3 patrimonial, na definio de Weber (2002), aquela em que os direitos senhoriais e as possibilidades delesdecorrentes so tratados como se fossem atributos privados.

    Na dominao patrimonial-estamental, mais especialmente,h a apropriao de poderes judiciais e militares para justificar

    juridicamente os privilgios estamentais daqueles que seapropriam das possibilidades econmicas, inclusive fiscais, comose privadas fossem (WEBER, 2002). Quanto situao estamental,

    tal como Weber a definiu, deve ser considerada como a pretensode privilgios positivos ou negativos, fundada no modo de vidadaqueles que pretendem o privilgio; em maneiras formais deeducao, ou em um prestgio hereditrio ou profissional. Nestesentido, estamento o conjunto de homens que aspiram a um

    tratamento social exclusivo ou a um monoplio exclusivo decarter estamental (WEBER, 2002)4.

    Tomando estas categorias weberianas, Faoro (1958) defendeque, desde a Revoluo de Avis em Portugal, passando pelo2 Para um breve comentrio em relao comparao entre as duas edies ver texto de Marcelo Jasmin

    (2003).

    3 Vale ressaltar que dominao, na terminologia weberiana, deve ser entendida como a probabilidade de

    encontrar obedincia dentro de um grupo determinado para mandatos especficos (ou para toda classe de

    mandatos). (WEBER, 2002, p. 170).

    4 A formulao realizada por Weber (2002) , obviamente, bem mais extensa e complexa do que a aqui

    descrita. Apenas descrevi estas breves definies com o intuito de clarear as categorias utilizadas por Faoro

    (1993) que, em texto publicado na Revista da USP, afirmou ter se apropriado das categorias weberianas

    e ter dado a eles um sentido que no correspondia exatamente ao definido por Weber. Em relao a isso,

    Marcelo Jasmin (2003) observa, em seu artigo j citado aqui, que no h grandes diferenas entre a

    utilizao das categorias weberianas por Faoro e a definio que o prprio Weber lhes deu.

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    perodo colonial, pelo Imprio, pela Repblica e atingindo oBrasil ps-Estado Novo, o que caracterizou a formao nacionalbrasileira foi a existncia de um poder central muito forte queinibiu qualquer formao social espontnea e que determinou

    todas as mudanas sociais de cima para baixo. Isto possibilitouum descolamento entre Estado e sociedade, ou, entre Estado enao brasileiros. Com o descolamento, as relaes entre Estado

    e nao no so mediadas pela representao de classes, emrazo da existncia de um estamento burocrtico, que Faoro(1958, p.44) define como [...] uma capa social rgida, com oexerccio de privilgios jurdicos assegurados pela lei ou pela

    tradio [...], autnoma nao. Neste sentido, o estamentoburocrtico no se confunde com a elite dirigente, pois esta um reflexo do povo, e no se confunde com a burocracia, poisesta apenas um [...] aparato da mquina governamental [...](FAORO, 1958, p. 261). Segundo o autor, esse estamento teria sidoalgo permanente na histria brasileira e este carter permanentefoi alvo de severas crticas, como demonstra esta observao deSimon Schwartzman (1988, p. 70-71), citando Antnio Paim: [...]

    a principal crtica que se pode fazer a Faoro a sua tendncia deatribuir ao patrimonialismo poltico brasileiro um carter absolutoe imutvel no tempo. Procurando defender Faoro destas crticas,Ktia Mendona Barreto (1995, p.185) observa sobre a tese deFaoro:

    O que parece estar subjacente ao raciocnio de Faoro na constituioda relao estamental que no interessa tanto quem a constitui,at porque os atores vo sendo substitudos durante a histria. Mascomo se constitui. As prticas que so relevantes.

    Alm da existncia desse estamento burocrtico, Faoro

    (1958) ressalta que a relao deste com o Estado que o mantm patrimonial, na medida em que no h a ntida separao entre opblico e o privado por aqueles que exercem o poder estatal e poraqueles que detm os privilgios. Assim, a formao brasileiraseria marcada pelo patrimonialismo estamental, que marcadopela confuso entre o pblico e o privado, e pela existnciade privilgios para um determinado grupo de indivduos queno so necessariamente uma classe nem emergem da nao.So escolhidos pelo arbtrio daqueles que ocupam os cargosestatais.

    Em Os Donos do Poder, Faoro (1958) demonstra a sua tesecentral fazendo a genealogia da formao do Estado brasileiro,procurando indicar nos diversos momentos decisivos de suahistria que, ainda que pudesse parecer que iria surgir umasociedade de classes que influiria na formao do Estado, oestamento burocrtico se reforava e voltava a caracterizar asrelaes entre Estado e sociedade. Assim, o estamento burocrtico

    algo que permaneceu como elemento caracterizador do Estado,ainda que houvesse alguma tentativa social de organizar-seespontaneamente, o que acarretaria o enfraquecimento doestamento. Um desses momentos foi o Segundo Reinado, emque Faoro (1958) identificou a possibilidade do surgimento deuma sociedade de classes, se constituindo num momento de

    transio, mas que o estamento burocrtico retornou com suafora formatando as relaes entre Estado e sociedade.

    O Segundo Reinado objeto especfico de Faoro (2001) emMachado de Assis: a Pirmide e o Trapzio5, em que utiliza aobra de Machado de Assis como o meio para analisar as relaessociais e entre Estado e sociedade no Brasil naquele perodo.

    O ncleo que une os dois livros a compreenso da dimensoestamental da sociedade brasileira, no caso de Machado, comovimos, em meio passagem complicada para a sociedade declasses. (WAIZBORT, 2002, p. 109).

    Vendo o que Machado no v, Faoro (2001) procura demonstrarque a descrio das classes por Machado de Assis sugere queali seria um momento de transio entre o patrimonialismoestamental e uma sociedade de classes.

    J nas primeiras pginas do livro, Faoro (2001, p. 14, grifonosso) enuncia:

    Ningum se engane com o painel aparente da sociedade na obrade Machado de Assis. Enchem a vista do leitor desprevenido asfiguras dominantes, bares, conselheiros, comendadores e patentesda Guarda Nacional. Ministros, regentes, bares, conselheiros,comendadores e patentes da Guarda Nacional. Ministros, regentese bares perpassam na superfcie, sobretudo os ministros, alvo deambies caladas e de ambies descobertas. Em nvel prximo,

    5 Em relao ao ttulo do livro, h uma interessante observao de Leopoldo Waizbort (2002, p. 110): Uma

    das epgrafes do livro fala das pirmides do Egito, algo que imutvel, mas muda; e outra do trapzio na

    cabea de Brs, no qual se dependurou a idia fixa, algo que no muda, mantm-se, balanando. Ora, a

    chave est em Os Donos do Poder: as pirmides do Egito so a sociedade, que espera por sua salvao; a

    idia fixa dependurada no trapzio o estamento, balanando nos seis sculos de histria.

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    vm os banqueiros, capitalistas, fazendeiros e comerciantes. Todos,bares e capitalistas, conselheiros e banqueiros, comendadores ecomerciantes, coronis e fazendeiros todos esto, para quem olhade longe, no pice da pirmide, confundidos e misturados, como sefossem membros de uma s confraria.Nitidamente, h uma estrutura de classes banqueiros comerciantese fazendeiros sobre outra estrutura de titulares, encobrindo-a e

    esfumando-lhe os contornos. a camada da penumbra que decideos destinos polticos, designa deputados e distribui empregospblicos. So as influncias, os homens que mandam, que seentendem com os executores e dirigentes das decises do Estado.Duas faixas se separam, com clareza, no contedo e no conceito,na ao social, no raro entrecruzando-se e se confundindo. Parasimplificar e com antecipao: a classe em ascenso coexiste com oestamento; muitas vezes, a classe perde sua autonomia e desvia-se de seu destino para mergulhar no estamento poltico, queorienta e comanda o Segundo Reinado.

    O trecho acima, embora bastante longo, foi escolhido para ser

    citado porque explicita o projeto de Faoro ao escrever A Pirmidee o Trapzio. Se analisarmos o trecho final destacado em itlicoveremos que no se trata de nada mais do que a aplicao aoSegundo Reinado da tese desenvolvida por Faoro em Os Donos doPoder. Como este livro foi escrito mais de quinze anos antes do livrosobre Machado de Assis, podemos concordar com a observaode Leopoldo Waizbort (2002, p. 92): Poderamos dizer, um poucoprovocativamente, que Faoro possui sua histria j pronta deantemo. Alm disso, no trecho acima tambm fica claro que oprojeto de Faoro no somente analisar o que Machado de Assisviu, mas ver o que no est na obra do romancista, ver o queMachado no v (WAIZBORT, 2002, p. 100).

    A descrio da trilha seguida por Faoro neste livro no fcil,pois ele faz um panorama dos cerca de cinqenta anos que durouo Segundo Reinado a partir de aspectos da poltica da poca eda obra de Machado de Assis. Ora Faoro fala por si prprio, ora Machado quem fala, de forma selecionada por Faoro. Partindo doque Machado v, Faoro (2001) traa um painel das classes sociais edos elementos que compem o jogo poltico do Segundo Reinado,e seu primeiro alvo so os partidos, que no so representativosde qualquer classe, pois No havia, fora do governo, quase quenenhuma atividade poltica capaz de animar as imaginaes.Os partidos eram instrumentos de governo, sem vnculos com o

    eleitorado, murchos sem o poder e vazios de iniciativas. (FAORO,2001, p.85)6. Todas as tentativas de tornar as eleies um reflexoda vontade do povo foram vs. Sem partidos que representassemefetivamente setores sociais, restava ao imperador exercer opoder poltico, que era exercido na forma de arbtrio, como bemcaracteriza um exerccio patrimonial de poder:

    A Constituio no rege as relaes polticas, seno como praxe

    ou convenincia de livre observncia. Isto importa em reconhecerque, ausente a lei ou a conveno, fica apenas o arbtrio, arbtriodesptico ou benevolente, exercido este pelo imperador. (FAORO,2001, p. 75).

    Ainda sobre a relao entre imperador e partidos:

    O imperador promovia, realava ou derrubava os partidos, rbitro doseu destino. No os dirigia interiormente, entregues ao mecanismoprprio, independente, com os chefes de maior expresso aninhadosno Senado, no exerccio de uma posio vitalcia de poder. Influa,porm, na composio do corpo vitalcio, em concorrncia com o

    prprio Senado, que validava ou anulava as eleies. (FAORO, 2001,p. 150).

    Com o destaque adquirido pela Cmara dos Deputados com aentrada de Gaspar Silveira Martins para essa Casa em 1872, comoapontado por Faoro, houve uma esperana de que os partidospassassem a representar, de fato, as classes sociais. No entanto,os requisitos para a eleio na Cmara eram tais que acarretaramuma rotatividade dos Deputados, o que, segundo Faoro (2001),ao invs de significar um afastamento das oligarquias, refletia afora do estamento, pois, com a rotatividade os deputados no

    tinham rendimentos permanentes, o que atraa para a Cmara

    pessoas que no dependiam daqueles rendimentos: fazendeiros,comerciantes, mdicos e profissionais liberais em geral que nodependiam da remunerao proveniente da atividade poltica.

    Alm da relao entre poder central, partidos e demaisinstituies polticas, merece destaque a anlise feita porFaoro da relao entre a classe lucrativa nacional, o Estado e ocapital estrangeiro. Nessa intrincada relao, os investimentosnecessrios para a industrializao eram obtidos pelo Estado,por meio do capital estrangeiro que aqui ingressava tendo comocontrapartida uma srie de privilgios. Com isso, foram possveis6 Sobre a relao entre fraqueza dos partidos e centralizao do poder, ver ainda Faoro (2001, p. 144).

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    os melhoramentos urbanos e os investimentos necessrios paraa expanso econmica do pas (FAORO, 2001). Como se v, nossocapitalismo foi criado de cima para baixo, com a construo deestradas de ferro e outros investimentos, levando Faoro (2001,p.294) a citar mais uma vez Weber para aproveitar a expressocapitalismo politicamente orientado.

    Por fim, cabe ainda frisar a anlise de Faoro acerca de algumas

    mudanas ocorridas com o estamento. No Segundo Reinado,houve a emergncia dos bacharis provenientes dos primeiroscursos de Direito e Medicina do pas, criados em 1827 e 18337,respectivamente. Os bacharis, muitos deles filhos de pessoas daclasse poltica, tiveram ingresso fcil nessa atividade e tinham aidentificao educacional propcia integrao do estamento. Noentanto, o predomnio dos bacharis no durou muito, pois

    O estamento dos bacharis, incapaz de se renovar e de se enriquecer,cede lugar ao estamento dos militares, transitoriamente, at queas oligarquias estaduais entrem na cena. No fundo dos sucessos,a preservao da unidade nacional, a conquista duradoura dasucesso de categorias polticas, ameaada diante da desagregaoinstitucional. (FAORO, 2001, p. 401).

    O fortalecimento da classe dos militares se deu principalmenteem decorrncia do fortalecimento da Guarda Nacional e daascenso do exrcito aps a Guerra do Paraguai. Por sua vez,como o prprio Faoro (2001) aponta, o predomnio dos militares

    tambm no durou muito, s at que as oligarquias regionais sefortalecessem. Mas a j estamos no perodo republicano, que no alvo de Faoro nesse livro.

    A tese da permanncia do estamento burocrtico e docentralismo do Estado na formao poltica brasileira tambm

    o pano de fundo de seu artigo, que deu tambm ttulo a umlivro (Existe um Pensamento Poltico Brasileiro?). Neste texto,o caminho traado para a descrio do pensamento polticobrasileiro semelhante quele percorrido em Os Donos do Poder.Ou seja, a formao do patronato poltico brasileiro passou pelomesmo processo da formao do pensamento poltico, da Faoro(2001) concluir que as vertentes de pensamento significativaseram todas voltadas para o Estado e a principal conseqnciadisso destacada por Faoro foi a submerso do liberalismo, queestagnou o movimento poltico.

    7 Em 1808 j havia sido criada a Escola de Cirurgia da Bahia.

    Assim, se em Os Donos do Poder Faoro (1958) parecelamentar a impossibilidade de ter se desenvolvido uma formasocial genuinamente liberal, no Brasil, em Existe um PensamentoPoltico Brasileiro? Faoro parece lamentar a impossibilidade de

    ter se desenvolvido aqui o liberalismo poltico.Como se v, a tese que Faoro (1958) defende em os Donos do

    Poder percorre a sua obra mais significativa, dando ao leitor dos

    demais livros aquela sensao, descrita por Waizbort (2002), deque, ao escrever estes livros, Faoro j tinha uma histria prontae apenas buscava agregar argumentos sua tese j enunciada.Isto sem dvida no retira o valor destes livros, mas apenasindica que estes devem ser lidos luz do pensamento iniciadoem Os Donos do Poder.

    Patrimonialismo e identidade nacional

    A tese de Faoro descrita no captulo anterior sofreu diversascrticas, principalmente em relao ao fato de ele ter pretendidodemonstrar a constncia de uma histria de mais de quatro

    sculos. Ktia Mendona Barreto (1995) procurou defender Faorodesta crtica, mas seu argumento no afasta um elemento queparece indefensvel na tese de Faoro: a existncia de um podercentral existente desde a Revoluo de Avis portuguesa, que teriamarcado a formao poltica brasileira. Demonstrar a existnciade um poder central nas diversas fases histricas que se seguiram

    talvez seja impossvel. Da a severa crtica de Antonio Paim,citada por Schwartzman (1988, p. 70-71), a Faoro, apontando quenosso autor ficou to encantado com a sua teoria que procuroudemonstr-la a qualquer custo: [...] ofuscado pela magnitudeda prpria descoberta, inclina-se por tornar uma espcie de leiinexorvel de nosso desenvolvimento, ou ento uma herana a

    repudiar em sua inteireza. Mas, sem pretender defender a tesede Faoro, talvez seja possvel explicar o seu projeto.

    Em 1958, ano da primeira verso de Os Donos do Poder opas passava por um perodo de construo da democracia queencontrava srias dificuldades, em decorrncia da estruturainstitucional herdada do Estado Novo e tambm da comentadae recomentada fraqueza dos partidos. Este cenrio detalhadamente descrito no livro Estado e Partidos Polticos noBrasil, de Maria do Carmo Campello de Souza (1976) . Em relao

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    a este cenrio, parece no haver crticas severas anlise deFaoro.

    No entanto, no cenrio intelectual da poca as refernciasprincipais da reflexo acerca de nosso pas eram as obras dosensastas do incio do sculo XX e mais especificamente dadcada de 1930. Para que uma obra ingressasse nesse seletogrupo, era necessrio que ela identificasse algo na formao

    histrica do pas que compusesse a sua identidade. Em outraspalavras, era necessrio indicar algo no carter nacional que nohouvesse sido indicado antes.

    Nesse empreendimento, Faoro (1958) filia-se tese de que naformao econmica do Brasil no houve feudalismo8 e apropria-se de teses de Weber, tal como j havia sido feito antes por SergioBuarque de Holanda embora Faoro reivindique o seu pioneirismona utilizao do patrimonialismo, como ser visto adiante , massem dvida apresenta um ponto de vista novo, na medida em quecoloca o Estado como o foco irradiador dos problemas histricosdo Brasil.

    Na segunda edio, com mais razo a tese de Faoro ganha

    fora, pois estvamos ainda no perodo da ditadura militar, emque alguns argumentos de Faoro, como o do arbtrio, inclusivepatrimonial, dos membros que integravam o poder, eramfacilmente demonstrveis.

    Com isto, parece que Faoro foi capaz de traar um diagnsticodefensvel da conjuntura brasileira no momento das duas ediesde Os Donos do Poder. Mas isto o faria apenas um bom analista deconjuntura. Era necessrio juntar-se ao grupo seleto9, e entoFaoro parece ter se lanado num projeto retrospectivo procurandoidentificar como imanente formao brasileira algo que eraconjuntural. Mas esse modo de construir uma teoria acerca daformao brasileira no foi somente seguido por Faoro. AdrinLavalle (2004) analisa a formao da idia de vida pblica no

    8 Neste sentido, encontra-se em posio oposta de Nestor Duarte (1966) em A Ordem Privada e a

    Organizao Poltica Nacional, e filiando-se linhagem de interpretao econmica do Brasil de Caio

    Prado Jnior (2000) em Formao Econmica do Brasil.

    9 Esta pretenso de Faoro parece estar contida na seguinte observao feita por ele prprio: Quando

    apareceu, em 1958, o livro Os Donos do Poder, ao pretender que o conceito de patrimonialismo fosse a

    chave da histria brasileira, nesta includas as suas origens ibricas, introduziu nos estudos sociais uma

    tese hertica. O campo estava tomado por duas correntes: uma, que valorizava a tradio, embora com

    um sopro liberal que vinha de uma descontnua corrente de historiadores brasileiros, cujo padroeiro era

    Gilberto Freyre, e outra, de base marxista, que ainda vivia sob o pioneirismo de Caio Prado Jnior.

    (FAORO, 1993, p. 19)

    Brasil e verifica a sua associao com as teses sobre a identidadebrasileira, observando que

    [...] uma tentao muito comum queles que dedicaram boa partede sua obra a inventariar e inventar a identidade nacional o carternacional se remontar a tempos ancestrais nos quais no existia anao e sequer a noo de um ns brasileiro. (LAVALLE, 2004, p.65, grifo do autor).

    Parafraseando e estendendo a observao de Lavalle (2004)e aplicando a Faoro, pode-se dizer que este aplica as idias depoder central e Estado quando essas noes ou no existiamou no eram verificveis. E, numa observao que poderia serperfeitamente aplicada a Faoro, mas que no se volta somentepara este autor:

    [...] a tentativa de historizar lanando mo do expediente dedescobrir e datar influncias remotas, quanto mais longnquas no

    tempo aparentemente mais originais e valiosas, visa desentranharos elementos constantes que permitem alinhar longa sucesso de

    pensadores; entretanto, essa tentativa produz no mesmo ensejoa constncia visada, mas de forma retrospectiva, como efeito decontinuidade, como inveno da memria de uma linhagem isto ,como constructo anacrnico cuja legitimidade histrica garantidamediante sua insero historiogrfica no mbito da tradio.Assim, a reapropriao que faz possvel a realizao do efeito decontinuidade, ao intermediar entre a disponibilidade dos temas eas exigncias dos problemas, que, postos no presente, levam osautores a explorar determinadas perspectivas da leitura do passado.(LAVALLE, 2004, p. 70-71, grifo do autor).

    O foco de Faoro no Estado fez com que Werneck Vianna (1999)

    filiasse Faoro numa vertente que denominou patrimonialismode Estado em contraposio ao patrimonialismo da sociedade.Werneck Vianna tambm filia Faoro a uma tradio iniciada porTavares Bastos segundo a qual a modernizao do pas dependeriade uma reforma institucional que precederia s mudanassociais. Werneck Vianna (1999) aponta ainda que a diferenaentre um patrimonialismo de Estado para um patrimonialismoda sociedade uma diferena de perspectiva, a primeira a partirdas instituies polticas e a segunda a partir da sociologia. Naperspectiva institucional, segundo o mesmo autor, os interessesestariam ligados ao particularismo na forma do Estado. Embora

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    procura indicar a nossa relao com a norma e a transgresso.Se copiamos um sistema de normas, ou seja, se estas chegamdepois aqui, a transgresso aqui vem antes, justamente por se

    tratar de cpia que no se ajusta nova realidade sobre a qual oconjunto de regras deve incidir. Isto coloca os pases perifricosnuma posio de vanguarda na identificao das inconsistnciasde um sistema de normas copiado. Segundo Francisco de Oliveira

    (1998, p. 208), [...] a vanguarda do atraso consiste em chegar aosmesmos limites superiores do capitalismo desenvolvido, sem teratingido seus patamares mnimos. Assim, atraso e vanguarda,nos pases perifricos, tm uma relao de convivncia.

    Em contrapartida, ao tentar forar a caracterizao dealguns perodos da histria portuguesa e brasileira, Faoro parece

    ter cado nas armadilhas apontadas por Lavalle (2004). Nestesentido, parece que a busca por um elemento imutvel na histriabrasileira, que caracterizasse a sua formao desde a formao doEstado nacional portugus, ao invs de fortalecer a tese de Faoro,a enfraqueceu e a transformou numa tese que no reconhece amudana nos processos histricos12. Enfraqueceu, embora no

    impea absolutamente, a defesa da atualidade, ao menos emparte, de sua tese. E a atualidade de sua tese o assunto quepasso a abordar.

    Uma possvel atualidade de Faoro

    J foi dito aqui que a tese de Faoro (1958) exposta em OsDonos do Poder e pano de fundo de seus textos mais relevantes,na poca em que foi levada a pblico, era uma tese bastantesustentvel para descrever a realidade do pas nos momentos desuas duas edies. Mas possvel defender que o patrimonialismoestamental, praticado a partir da existncia de um estamento

    burocrtico, continuou marcando a realidade poltica brasileiranos anos que se seguiram segunda edio de Os Donos doPoder.

    Com a abertura democrtica e a promulgao da Constituiode 1988, o tema da refundao nacional veio tona parapermanecer at o momento da eleio de Lula em 2002 e houvea esperana, manifestada por Faoro (1986), em Assemblia12 A respeito da questo da identidade nacional, h observaes bastante instigantes de Evaldo Cabral de

    Mello (2004, p. 98): A noo de identidade nacional, to em moda hoje (menos por culpa dos historiadores

    do que dos antroplogos), o abastardamento grotesco da iluso sobre a existncia de um contedo ntico

    na histria. [...] A noo de identidade nacional uma inveno ideolgica, cujo xito se aplica pelo fato

    de que atende a gregos e troianos.

    Constituinte; a legitimidade recuperada, de que despontassemmecanismos de estmulo a foras sociais que atenuassem adistncia entre Estado e nao que caracterizava o pas atento. No entanto, com a eleio do primeiro presidente eleito em1999 Fernando Collor , nada mudou muito, como j consensonas avaliaes sobre este perodo da poltica brasileira. Com adisputa presidencial seguinte, entre Fernando Henrique Cardoso

    e Lus Incio da Silva Lula, pertencentes a partidos cujos ncleospolticos eram de So Paulo e, mais do que isso, emergentes demovimentos e partidos de oposio ao regime militar, a esperanase renovou e mais uma vez restou frustrada. Alm da alianacom o PFL, partido inequivocamente de direita e cujos quadroshaviam ocupado cargos estatais no perodo ditatorial, o PSDBrealizou reformas administrativas que burocratizaram ainda maisa estrutura administrativa do pas, com a criao de agnciasde regulao, necessrias em decorrncia dos processos deprivatizao das empresas nacionais, de estruturas complexaspara a execuo de programas sociais e fortalecendo o chamadoterceiro setor, formado por Organizaes No Governamentais

    (ONGs) e Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico(OSCIPs), e ainda, fortalecendo empresas de assessoria formadaspor profissionais altamente qualificados que passaram a realizarestudos tcnicos e muitas vezes planos de gesto para osdiversos setores da administrao pblica. Sem dvida alguma,nunca houve tantos quadros cuja origem era a universidadeno s ocupando cargos no governo, mas influenciando as suasdecises.

    A aliana PSDB/PFL governou o pas por oito anos e aestrutura brevemente descrita no pargrafo anterior foi irradiadapor todas as esferas da federao: Estados e Municpios passarama se integrar no mesmo tipo de burocratizao. E no podia serdiferente. Linhas de crdito oferecidas pelo Banco Interamericanode Desenvolvimento e pelo Banco Mundial, quase sempre comexigncias de contrapartida, ou de determinadas regras queatendam estritamente o programa desses Bancos, demandaramcada vez mais uma estrutura burocrtica que valorizava tcnicosde perfil muito pouco poltico e cada vez mais especializado.

    Com a vitria do PT, embora o partido tenha apresentadomudanas significativas desde 1989 at 2002, esperava-se quealgumas das estruturas desenvolvidas pela gesto anterior, aindaque no fossem eliminadas, fossem ao menos enfraquecidas. Mas

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    parece no ter ocorrido isso. Francisco de Oliveira (2003, p. 146-147, grifo do autor) descreveu o que parece ter realmente ocorridoem seu artigo Ornitorrinco:

    A representao de classe perdeu sua base e o poder poltico a partirdela estiolou-se. Nas especficas condies brasileiras, tal perda

    tem um enorme significado: no est vista a ruptura com a longavia passiva brasileira, mas j no mais o subdesenvolvimento.

    A estrutura de classes tambm foi truncada ou modificada: ascapas mais altas do antigo proletariado converteram-se, emparte, no que Robert Reich chamou de analistas simblicos: soadministradores de fundos de previdncia complementar, oriundosdas antigas empresas estatais, dos quais o mais poderoso o Previ,dos funcionrios do Banco do Brasil, ainda estatal; fazem partedos conselhos de administrao, como o do BNDES, a ttulo derepresentantes dos trabalhadores. [...] Ironicamente, foi assim que aFora Sindical conquistou o sindicato da ento Siderrgica Nacional,que era ligado CUT, formando um clube de investimento parafinanciar a privatizao da empresa; ningum perguntou depoiso que aconteceu com as aes dos trabalhadores, que ou viraramp ou foram aambarcadas pelo grupo Vicunha, que controla aSiderrgica. isso que explica recentes convergncias pragmticasentre o PT e o PSDB, o aparente paradoxo de que o governo deLula realiza o programa de FHC, radicalizando-o: no se trata deequvoco, nem de tomada de emprstimo de programa, mas deuma verdadeira nova classe social, que se estrutura sobre, de umlado, tcnicos e economistas doublsde banqueiros, ncleo duro doPSDB e trabalhadores transformados em operadores de fundo deprevidncia, ncleo duro do PT.

    Chico de Oliveira (2003) indica, como mostra o trechoacima, que esta nova classe se descolou de sua base social,principalmente no que se refere aos trabalhadores que ocuparamchefias na administrao de fundos de previdncia. Mas noseria esta nova classe descrita por Chico de Oliveira nada maisque o estamento burocrtico descrito por Faoro? No se trata deum sistema burocrtico e administrativo que se [...] caracterizapela apropriao de funes, rgos e rendas pblicas porsetores privados, que permanecem, no entanto, subordinados edependentes do poder central. (SCHWARTZMAN, 1988, p. 14)Alm disso, no se trata tambm, nesse processo de ocupao decargos de alto escalo nos fundos previdencirios por ex-lderes

    sindicais da cooptao que Faoro tanto apontou ao longo de suainterpretao da formao histrica brasileira13?

    A resposta parece ser positiva e para a verificao dessaresposta convm comparar o tratamento dado por Oliveira sclasses sociais e o dado por Faoro ao estamento. Quando formulasua anlise em Ornitorrinco, Oliveira tem como pano defundo toda sua reflexo sobre o papel dos fundos pblicos para

    o sistema capitalista brasileiro elaborada ao longo de diversosartigos, vrios deles compilados em Os Direitos doAntivalor.Na sua formulao, o fundo pblico gnero do qual os fundosprevidencirios so espcies um complexo que tomou o lugar daauto-regulao do capitalismo e tem como funo [...] potenciara acumulao para alm dos limites impostos pela gerao delucro, utilizando uma riqueza pblica que no capital e que,portanto, na equao geral no remunerada. (OLIVEIRA, 1998,p. 90).

    Segundo o autor, o fundo pblico, antivalor, possibilitou aindaque os interesses privados fossem assegurados pelo Estado, mascom a roupagem de interesses pblicos (OLIVEIRA, 1998 p. 51).

    Com isto, a representao dos interesses privados no se dmais pela forma representativa tradicional, com representanteseleitos que defendem os interesses de elites na arena polticanacional. Na gesto desses fundos pblicos possibilitou-seque uma camada de dirigentes os anis burocrticos deFernando Henrique Cardoso, ou as capas mais altas do antigoproletariado, que se converteram em analistas simblicos, comosugere Oliveira definisse o destino de recursos de grande monta,cuja arrecadao tem como fundamento a garantia de um estadode bem-estar para os trabalhadores.

    Com a permanncia de um tal grupo que, independentementedos partido que o compe mantm suas caractersticas, tem-seque no faz sentido, no campo da disputa pela gesto dos fundospblicos, falar em disputa entre as classes:

    [...] as relaes entre as classes sociais no so mais relaesque buscam a anulao da alteridade, mas somente se perfazemnuma perequao mediada pelo fundo pblico em que apossibilidade da defesa de interesses privados requer desde oincio o reconhecimento de que os outros interesses no apenas so

    13 Neste aspecto vale lembrar trecho de citao j transcrita aqui: [...] a classe em ascenso coexiste com

    o estamento; muitas vezes, a classe perde sua autonomia e desvia-se de seu destino para mergulhar no

    estamento poltico, que orienta e comanda o Segundo Reinado. (FAORO, 2001, p. 14)

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    legtimos, mas necessrios para a reproduo social em escala maisampla. A democracia representativa o espao institucional noqual, alm das classes e grupos diretamente interessados, intervmoutras classes e grupos, constituindo o terreno do pblico, do queest acima do privado. (OLIVEIRA, 1998, p. 41, grifo do autor).

    Este novo grupo social, que Francisco de Oliveira chama declasse, no tem qualquer respaldo numa classe social especfica,

    assim como o estamento de que fala Faoro (1958, p.44) e j citadoaqui: [...] uma capa social rgida, com o exerccio de privilgios

    jurdicos assegurados pela lei ou pela tradio [...], autnoma nao. A nova classe de que fala Oliveira tambm podeser considerada alheia aos segmentos que compem a nao e

    tambm buscam privilgios, os de gerir o fundo pblico e definiro destino de seus recursos.

    Como se v, a descrio feita por Oliveira (1998, 2003) deuma capa dirigente descolada da base social que a representavaque ocupa posies estratgicas na organizao administrativanacional muito semelhante descrio de estamento feita por

    Faoro nos diversos momentos da histria brasileira analisadospor ele.

    Concluso: Quando o mais menos

    A tentativa que se operou neste texto foi a de resgatar aslinhas centrais da obra de Raymundo Faoro, desenvolvidas em

    toda a sua obra, mas principalmente em Os Donos do Podereconferir a algumas dessas linhas uma certa atualidade. Comcerteza o resgate foi realizado de forma bem mais detalhada que averificao da atualidade, que neste texto restou apenas indicada.Para tal verificao detalhada seria necessria a descrio mais

    minuciosa da estrutura burocrtica que foi se consagrando nopas nos ltimos anos e uma investigao tambm minuciosa dosocupantes das posies nessa mesma estrutura.

    De qualquer forma, a simples indicao de que parte das tesesde Faoro pode ser atual sugere que seu pensamento no podeser descartado apenas com a crtica de que Faoro, ao estabeleceruma estrutura permanente em seis sculos de histria, nomnimo forou interpretaes histricas. Sugere, tambm, queo esforo empreendido por Faoro para essa demonstrao deseis sculos acabou sendo um chamariz negativo da sua obra.Em outras palavras, a busca pela identificao de um elemento

    caracterizador da identidade nacional parece ter ofuscadoFaoro, para aproveitar a palavra utilizada por Antonio Paim paracriticar a estratgia de Os Donos do Poder.

    Com isto, parece ser possvel dizer que a busca de nossoautor por ampliar o alcance de sua descoberta a existncia noBrasil de um patrimonialismo de Estado na segunda metade dosculo XX acabou a enfraquecendo. Cabe aos crticos recuperarsua fora naquilo que de fato forte.

    ABREU, Maria Aparecida Azevedo. Raimundo Faoro: when more is less.Perspectivas, So Paulo, v.26, p.169-189, jan./jun. 2006.

    ABSTRACT: The aim of this work is Raymundo Faoros political thought.

    From the reading of his work and of the authors, if they are not directly

    related with Faoro, they have points in common with him, there will be

    some obstacles pointed out for the acceptance of Faoros thesis without

    reservations. The thesis is about the existence in the Brazilian national

    formation, of a patrimonialismo of castes, carried out by a bureaucraticcaste that, supposedly, had its origin in Portugal and lasted through the

    whole Brazilian history. The presence of this bureaucratic caste would

    probably have been the reason of the separation between nation and

    State that, according to Faoro, marked the various periods of Brazilian

    history. My hypothesis is that, in the extent that by searching for

    something that could characterize the national identity, Faoro ended up

    weakening his strongest insight, making it an easy target of criticism

    and threatening the validity of his interpretation of Brazil in the last

    three decades. Trying to confront this difficulty, I intend to point out a

    probable update of the Faoros analysis, comparing it mainly to the

    analysis recently done about the Brazilian social-political situation.

    KEYWORDS: Patrimonialism. Bureaucratic caste. Brazilian political

    thought. Brazil. Portugal.

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