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Introdução O caso que se apresenta é um bom exemplo do que foi referido. Estudos arqueológicos recentes efe- tuados na zona Norte de Portugal depararam com lacunas de informação geográf ica em territórios de interesse arqueológico devido à existência de gran- des extensões inundadas por albufeiras de barragens hidroeléctricas al i construídas nos anos 50 e 60 do século passado. O recurso a fotograf ia aérea ant iga de data anterior à construção das barragens permi- t iu, por processos fotogramétricos, recuperar vir- tualmente paisagens que já não existem, oferecen- do ao arqueólogo um modelo georreferenciado onde é possível visual izar, anal isar e local izar ob- jectos e sít ios de interesse, permit indo o cruzamen- to em ambiente SIG com outra informação georre- ferenciada. A fotograf ia aérea histórica const itui nestes casos a única via de estudar esses objectos (Cowley & Stichelbaut, 2012) Os casos estudados, Venda Nova e Alto Rabagão, local izam-se na municipal idade de Montalegre, no norte de Portugal (figura 1) e const ituem duas gran- des áreas submersas ao longo do vale do rio Raba- gão. A construção das barragens originou albufeiras que submergiram diversos elementos do patrimó- Recuperação de paisagens submersas a partir de fotografia aérea histórica Recuperação de paisagens submersas a partir de fotografia aérea histórica Por opção dos autores, este art igo está redigido segundo os instru- mentos ortográf icos anteriores ao Acordo Ortográf ico da Língua Por- tuguesa de 1990. Paula Redweik 1,2 Leonor Vila Lobos 1 Mário Fil ipe 1 João Fonte 3 José Alberto Gonçalves 4 1 Departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia – Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 2 Centro de Geologia - Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 3 Inst itute of Heritage Sciences (Incipit), Spanish Nat ional Re- search Council (CSIC), Sant iago de Compostela, Spain 4 Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenam ento do Território - Faculdade de Ciências da Universidade do Porto A fotograf ia aérea, normalmente con- siderada apenas como uma fonte de infor- mação cartográfica ou qualitat iva prezan- do-se, em geral, a sua actualidade, alberga uma outra valiosa vertente que é a de cons- t ituir uma testemunha visual do terreno na época em que foi obt ida. Esta vertente da fotograf ia, para a qual se preza antes a sua ant iguidade, começa a ser explorada em di- versas partes do mundo e deu origem a vá- rios projectos de digitalização em massa de f ilmes existentes em arquivos. Tais operações, ainda que nem sempre enquadradas nos esquemas produt ivos das inst ituições, são de extrema importância cultural, pois por um lado salvaguarda-se as imagens ant igas da destruição definit iva devida à alteração do suporte da emulsão, geralmente contendo nitrocelulose, e por outro lado dá-se-lhes uma segunda vida em formato digital, fácil de processar em esta- ções fotogramétricas modernas, permit in- do-lhes voltarem a ser fonte de informação cartográfica nos dias de hoje após mais de meio século de hibernação. 30 boletim N.º 74| Novembro | 2012

Recuperação de paisagens submersas a partir de fotografia ... · tuguesa de 1990. Paula Redweik 1,2 Leonor Vila Lobos1 ... (Incipit), Spanish National Re - search Council ... de

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Introdução

O caso que se apresenta é um bom exemplo doque foi referido. Estudos arqueológicos recentes efe-tuados na zona Norte de Portugal depararam comlacunas de informação geográfica em territórios deinteresse arqueológico devido à existência de gran-des extensões inundadas por albufeiras de barragenshidroeléctricas al i construídas nos anos 50 e 60 doséculo passado. O recurso a fotografia aérea antigade data anterior à construção das barragens permi-t iu, por processos fotogramétricos, recuperar vir-tualmente paisagens que já não existem, oferecen-do ao arqueólogo um modelo georreferenciadoonde é possível visual izar, anal isar e local izar ob-jectos e sít ios de interesse, permitindo o cruzamen-to em ambiente SIG com outra informação georre-ferenciada. A fotograf ia aérea histórica const ituinestes casos a única via de estudar esses objectos(Cowley & St ichelbaut, 2012)

Os casos estudados, Venda Nova e Alto Rabagão,local izam-se na municipal idade de Montalegre, nonorte de Portugal (figura 1) e constituem duas gran-des áreas submersas ao longo do vale do rio Raba-gão. A construção das barragens originou albufeirasque submergiram diversos elementos do patrimó-

Recuperação de paisagens submersasa partir de fotografia aérea histórica

Recuperação de paisagens submersas a partir de fotografia aérea histórica

Por opção dos autores, este artigo está redigido segundo os instru-

mentos ortográficos anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Por-

tuguesa de 1990.

Paula Redweik1,2

Leonor Vila Lobos1

Mário Fil ipe1

João Fonte3

José Alberto Gonçalves4

1 Departamento de Engenharia Geográfica, Geofísica e Energia

– Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa2 Centro de Geologia - Faculdade de Ciências da Universidade de

Lisboa3 Institute of Heritage Sciences (Incipit), Spanish National Re-

search Council (CSIC), Santiago de Compostela, Spain

4 Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do

Território - Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

A fotografia aérea, normalmente con-siderada apenas como uma fonte de infor-mação cartográfica ou qualitativa prezan-do-se, em geral, a sua actualidade, albergauma outra valiosa vertente que é a de cons-tituir uma testemunha visual do terreno naépoca em que foi obtida. Esta vertente dafotografia, para a qual se preza antes a suaantiguidade, começa a ser explorada em di-versas partes do mundo e deu origem a vá-rios projectos de digitalização em massa defilmes existentes em arquivos.

Tais operações, ainda que nem sempreenquadradas nos esquemas produtivos dasinst ituições, são de extrema importânciacultural, pois por um lado salvaguarda-se asimagens antigas da destruição definit ivadevida à alteração do suporte da emulsão,geralmente contendo nitrocelulose, e poroutro lado dá-se-lhes uma segunda vida emformato digital, fácil de processar em esta-ções fotogramétricas modernas, permitin-do-lhes voltarem a ser fonte de informaçãocartográfica nos dias de hoje após mais demeio século de hibernação.

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nio cultural desde então inacessíveis. Em VendaNova, a barragem de 97m de altura foi completadaem 1951 e submergiu 400 hectares, alargando osmeandros originais do rio encaixados nas montanhas.Quanto ao Alto Rabagão, a barragem tem 94m de al-tura e foi inaugurada em 1964, submergindo 2212hectares de território. A escolha destas duas zonasfoi motivada pela busca do traçado da Via RomanaXVII que passava pelo vale do Rabagão e que const i-tuía uma das principais vias no nordeste da Penínsu-la Ibérica, l igando Bracara Augusta (actualmenteBraga) com Asturica Augusta (Astorga) passando porAquae Flaviae (Chaves). Para além da via romana,também se pretendia local izar nestas zonas um con-junto de povoações romanas e da Idade do Ferro.

Metodologia

A recuperação da paisagem tal como era antes dainundação iniciou-se com a procura de fotograf iaaérea antiga da região. Primeiramente foi adquiridafotografia aérea do voo de 1958 da United States AirForce (USAF) à escala 1:26000, que apresenta a al-bufeira do Alto Rabagão ainda a seco, e do voo daBrit ish Royal Airforce (RAF) de 1947 que inicialmentecobria todo o país à escala 1:30000 e que na zona deVenda Nova está l ivre de albufeira. No entanto, para

além da escala não ser favorável ao t ipo de pesqui-sa, confirmou-se o que já t inha resultado de estudosanteriores com estes voos, nomeadamente a fracaqual idade geométrica e radiométrica das imagens adificultar a obtenção de informação cartográfica f i-dedigna. Tais fotos serviram antes como base decomparação temporal. Mais tarde, os autores local i-zaram nos arquivos do Inst ituto Geográfico do Exér-cito (IGeoE) uma das primeiras coberturas aero-foto-gráficas real izadas em Portugal com o object ivo deproduzir cartografia, nomeadamente para produzira primeira carta mil itar do país à escala 1:25000, ta-refa real izada pelo Serviço Cartográfico do Exército,antecessor do IGeoE. Nessa cobertura, toda a paisa-gem do vale das actuais duas barragens está visível.

A qual idade cartográf ica destas fotograf ias ját inha sido comprovada em estudos com fotografiasda zona de Lisboa (Redweik et al. 2010) obtidas coma mesma câmara, pelo que se optou pela ut il izaçãodestas para a recuperação fotogramétrica da paisagem.

As regiões de interesse estão cobertas por váriasfaixas de orientação Norte-Sul com as sobreposiçõesideais para formarem um bloco regular cobrindo aárea de cada albufeira. Como apurado em projectosanteriores, as fotografias foram obtidas com uma câ-mara alemã Carl Zeiss Jena RMK S1818, com uma ob-ject iva Orthometar 1:4.5 e distância focal de 21cm,disponibil izada desde 1935 pela f irma Zeiss-Aeroto-pograph em Jena, Alemanha (Redweik et al. 2010).Apresentam um formato de 18cm x 18cm e qual ida-de fotogramétrica com marcas f iduciais perfeita-mente mensuráveis (pontos brancos em fundopreto). Infel izmente, como é típico para voos históricos,não existe cert if icado de cal ibração, o que leva ine-vitavelmente a uma deficiente recuperação da orien-tação interna das imagens.

O bloco de Venda Nova é composto por 34 foto-grafias em 4 faixas (f igura 2), enquanto o bloco doAlto Rabagão inclui 7 faixas com um total de 60 fotos(figura 3). As fotos são a preto e branco e, segundoum cartograma antigo também encontrado nos mes-

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Figura 1- Localização das áreas de estudo

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A orientação espacial dos dois blocos foiconseguida através de aerotriangulação por fei-xes perspect ivos baseada num conjunto depontos fotogramétricos (PFs), os quais foramescolhidos atendendo a uma série de critérios.Para além de serem conspícuos tanto no terre-no actual como nas fotos ant igas deveriam seracessíveis para acelerar a missão de coordena-ção no campo, ou seja, estarem perto de estra-das actuais e evidentemente não estarem sub-mersos. Devido às característ icas rudes da pai-sagem em estudo, a qual sofreu um abandonoparcial de estruturas rurais existentes devido àemigração dos anos sessenta, e devido ao in-tervalo de tempo de mais de seis décadas entreas fotos e a actual idade, a tarefa de encontrarpontos adequados não foi fácil. Um conjunto de14 PFs em Venda Nova (f igura 4) e 25 PFs noAlto Rabagão (f igura 5) foram determinados nocampo por meio de posicionamento com GPSem sessões de estacionamento de 10 minutos. Osinal de uma rede GPS permanente (SERVIR)não pôde ser ut il izado para um posicionamen-to com RTK (Real T ime Kinemat ic) porque a ne-cessária cobertura pela rede de telemóvel erainsuf iciente na região. Os pontos coordenadosapresentam uma precisão sub-decimétrica,mais do que suf iciente para os object ivos doprojecto.

mos arquivos, elas foram obtidas em 1949. A escaladas fotos é aproximadamente 1:16000 o que se coa-duna com os object ivos da pesquisa.

Figura 3- Disposição do bloco em Alto Rabagão sobrecartograf ia 1:25000 recente

Figura 4- Distribuição de PFs em Venda Nova

Figura 2- Disposição do bloco em Venda Nova sobre cartografia de1951 mostrando já cartografada a paisagem inundada.

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Com base nos DSMs gerados produziram-se doisortomosaicos com resolução de 0.5 m (figuras 8 e 9),após o que se criaram dois modelos 3D com textura rea-l ista (em tons de cinzento) permit indo a navegaçãoe anál ise de paisagens que já não existem, por meiode uma representação virtual georreferenciada.

Os parâmetros de orientação externa obtidos daaerotriangulação foram util izados na geração de ummodelo digital de superfície (DSM) por correlação au-tomát ica de imagem com malha de 5m para cadauma das zonas de estudo. Deste modo recuperou-sea forma original dos vales antes da inundação (figu-ras 6 e 7). Uma anál ise da precisão dos DSMs gera-dos foi real izada comparando cotas est imadas porestes modelos com cotas num DTM gerado a partir decartografia recente à escala 1: 10000.

Para amostras de 100 pontos arbitrariamente dis-tribuídos (fora das áreas inundadas) em cada zona,obt iveram-se diferenças de cotas com um erromédio quadrát ico (RMSE) de 2.2m no caso do AltoRabagão e de 2.7 m em Venda Nova. Esta anál iseconfirma que, apesar das dificuldades no processa-mento de fotografias antigas, os resultados são com-paráveis ao que se consegue actualmente em carto-graf ia de média escala. De mencionar ainda que acomparação foi real izada entre um DSM provenien-te da correlação das imagens e um DTM provenienteda cartografia, o que poderá enviesar os resultados,apesar de não exist ir vegetação muito abundante nazona, ou seja, as duas superfícies, DSM e DTM, nãoserem muito dist intas.

Figura 6- DSM de Venda Nova em 1949

Figura 7- DSM do Alto Rabagão em 1949

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Figura 5- Distribuição de PFs no Alto Rabagão

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Exploração dos resultados

Os modelos 3D das paisagens e os respect ivosortomosaicos foram anal isados sob o ponto de vistaarqueológico e os resultados que se apresentam sãoapenas prel iminares e não esgotam a informaçãopassível de ser ret irada dos produtos gerados. Ilus-tra-se, a título exempl ificativo, a recuperação digitaldo traçado da Via Romana XVII nas zonas inundadaspelas albufeiras (f iguras 10 e 11) e outros casos par-t iculares relacionados com duas povoações da Idadedo Ferro, cuja estrutura foi especialmente afectada pelaconstrução das barragens (f iguras 12 e 13). A f igura14 mostra uma ponte romana associada à Via XVII,posta recentemente a descoberto por uma descidado nível das águas na barragem de Venda Nova.

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Figura 10- Reconstrução da Via Romana XVII em venda Nova1949

Figura 11- Reconstrução da Via Romana XVII no Alto Rabagão

Figura 8- DSM de Venda Nova em 1949

Figura 9- Reconstrução da paisagem do Alto Rabagão em 1949

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Agradecimentos

São devidos agradecimentos ao Inst ituto Geo-gráf ico do Exército em Lisboa pela autorização deutil ização das fotografias aéreas históricas e por todoo apoio prestado aos autores na execução deste pro-jecto.

Referências Bibliográficas

Cowley D, & Stichelbaut, B, 2012. Historic Aerial Photographic Archives

for European Archaeology. Journal of European Archaeology, 15-2: 217-236.

Redweik P, D Roque, A Marques, R Matildes & F Marques, 2010. Triangu-

lating the Past: Recovering Portugal's Aerial Images Repository. Photo-

grammetric E ngineering & Remote Sensing, 76-9: 1007-1018.

Figura 14- A Ponte do Arco romana em Venda Nova

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Recuperação de paisagens submersas a partir de fotografia aérea histórica

Figura 12- Forte de São Vicente da Chã no alto Rabagão (esq. atualmente, dir. 1949)

Figura 13- Forte de Codeçoso em venda Nova. (esq. atualmente, dir. 1949)

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