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Ciência & Saúde Coletiva ISSN: 1413-8123 [email protected] Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Brasil Cardoso Cabral de Almeida, Maria Helena; Camargo Jr., Kenneth Rochel de; Llerena Jr., Juan Clinton A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico Ciência & Saúde Coletiva, vol. 7, núm. 3, 2002, pp. 555-569 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Rio de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63070313 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Redalyc.A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico

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Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123

[email protected]

Associação Brasileira de Pós-Graduação em

Saúde Coletiva

Brasil

Cardoso Cabral de Almeida, Maria Helena; Camargo Jr., Kenneth Rochel de; Llerena Jr., Juan Clinton

A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico

Ciência & Saúde Coletiva, vol. 7, núm. 3, 2002, pp. 555-569

Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63070313

Como citar este artigo

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Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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A epistemologia narrativa e o exercício clínico do diagnóstico

The narrative epistemology and the clinical diagnosis practice

1 Centro de GenéticaMédica José Carlos Cabralde Almeida, Departamentode Genética, InstitutoFernandes Figueira/Fiocruz. Av. Rui Barbosa716, Flamengo, 22250-020 Rio de Janeiro [email protected] Instituto de MedicinaSocial,Universidade Estadual do Rio de [email protected]

Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso 1

Kenneth Rochel de Camargo Jr. 2

Juan Clinton Llerena Jr. 1

Abstract This study aims to discuss the nar-rative epistemology contained in the medicalpractice. It was based upon a bibliographic re-view and a semiotic analysis of medical chartsbelonging to The Medical Genetic Center JoséCarlos Cabral de Almeida/Genetic Depart-ment/Fernandes Figueira Institute, a mater-nal-infant care unity of The Oswaldo CruzFoundation. All the analysed charts referredto children diagnosed with Down syndromethat are being or were attended in the Down’sSyndrome Outpatient of the above cited uni-ty. The article appraises: the question con-cerning the possible opposition between nar-rative and science; a review of multiple authorsand their works about narrative and medicalknowledge; the narrative epistemology con-tained in the clinical discourse, using as ex-ample of such assumption one chart and onepedigree. The conclusion highlights how nar-rative is important to the process of diagnosisand treatment, and affirms the constructionof a plot, by the physician, where biological,social and cultural interactions make them-selves present.Key words Medicine, Narrative, Medical dis-course, Down syndrome

Resumo Este trabalho objetiva contribuir pa-ra a discussão acerca das características nar-rativas do discurso clínico. Para tanto parte deuma revisão bibliográfica e da análise semió-tica de prontuários do Centro de Genética Mé-dica José Carlos Cabral de Almeida, do Depar-tamento de Genética, do Instituto FernandesFigueira, unidade materno-infantil da Fun-dação Oswaldo Cruz. Todos os prontuários uti-lizados são referentes a portadores da síndromede Down atendidos no Ambulatório Especia-lizado de Síndrome de Down da referida uni-dade. O artigo aborda: a questão da possíveloposição entre narrativa e ciência; a apresen-tação dos principais autores e de seus traba-lhos que versam sobre narrativa e conhecimen-to médico; a exemplificação da epistemologianarrativa embutida no discurso médico, via aapresentação de um prontuário, assim comode um heredograma. A conclusão enfatiza aimportância da narrativa para o processo dediagnose e tratamento, assim como a constru-ção de um enredo por parte do médico onde sefazem presentes complexas interações biológi-cas, culturais e sociais.Palavras-chave Medicina, Narrativa, Dis-curso médico, Síndrome de Down

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Introdução

O presente artigo tem por objetivo contribuirpara a discussão do recurso à narrativa comoconstituinte do saber científico, ao contrário doque o cientificismo positivista, embora bastanteatacado ainda extremamente influente, propug-na. Pretende-se, mais especificamente, focar amedicina, partindo-se para tanto de uma abor-dagem teórica que a articula à história, dentrode um modelo comum de conhecimento, quefoi “batizado” por Carlo Ginzburg (1989; 1991)como “indiciário”. Não se trata aqui de levantartal proposição e debatê-la, o que já foi feito emtrabalho anterior (Cardoso, 2000), mas de re-cortar as questões pertinentes à narração, den-tro do espaço do adoecimento, recorrendo paratal a uma revisão bibliográfica de autores que sedebruçam sobre o tema, assim como à pesquisaem fontes primárias – prontuários de pacientesatendidos no Ambulatório de Síndrome deDown, do Centro de Genética Médica José Car-los Cabral de Almeida, do Departamento de Ge-nética do Instituto Fernandes Figueira, unidadededicada à pesquisa, ensino e assistência mater-no-infantil da Fundação Oswaldo Cruz. Cabetambém salientar que o trabalho vincula-se auma linha de pesquisa voltada para o estudodos discursos médico e leigo sobre adoecimentopor uma condição geneticamente determinada.

De início aborda-se epistemologicamentea questão da narrativa no discurso médico; emseguida operacionaliza-se uma leitura semióti-ca de símbolos e diagramas utilizados pelo dis-curso médico na construção da diagnose e daevolução da doença do paciente; após intenta-se uma síntese da produção mais recente sobreas chamadas “narrativas de doença” e, à guisa deconclusão, recupera-se a articulação entre medi-cina e história, tomando a narrativa como ele-mento característico dos dois tipos de conheci-mento, mostrando a ilusão de se fazer sinonímiaentre narrativa e ficção e oposição entre o fabu-lar e o criar cientificamente.

A narratividade

No que diz respeito à medicina, o diagnósticoque, no dizer de Robert Hooper, em seu tratadoVade-Mecum de 1809, pode ser definido como aarte de transformar sintomas em sinais acabousignificando correlacionar a observação ao pédo leito com as revelações que a moderna tec-nologia médica oferece e manifestações subjeti-

vas com lesões objetivas. E, também implicou atransformação da maneira pessoal de dar con-ta do sofrimento, num discurso médico profis-sional que transcodifica o subjetivismo incoe-rente num texto interpretável. Mas, essa conver-são da investigação semiológica, que se traduz noraciocínio diagnóstico, não pode prescindir danarrativa histórica do paciente e de sua doença(Epstein, 1995).

A problemática da relação da explanaçãohistórica com os mecanismos explanatórios naciência, uma questão importante para a históriaclínica que cada médico produz sobre seu pa-ciente, faz emergir reflexões que, notadamente,nas décadas após a Segunda Guerra, têm sidosistematizadas por pensadores dos mais diver-sos campos do conhecimento. Uma delas, porexemplo, é a do entendimento de que os corposhumanos são portadores não só de agentes pa-togênicos como também de histórias que expli-cam suas vidas. A necessidade de se construir es-sas histórias/narrativas sublinha os modos pe-los quais as noções de saúde e doença são cultu-ralmente produzidas. Todo ser humano, porquedotado de historicidade, participa de uma cole-tividade que não pode ser entendida sem suasconcepções de mundo, apolítica e/ou afastadadas contingências históricas dos sistemas sociaise de crenças.

De acordo com Paul Ricoeur (1988), a his-toricidade e a narratividade possuem uma rela-ção simbiótica e a história é um discurso de ba-ses narrativas, pois fundamenta-se num enredoque é traçado e até determinado pelo historia-dor. Todo entendimento histórico, portanto, deacordo com essa ótica, compreende uma concep-ção de narrativa. O exercício do diagnóstico clí-nico, ancorando-se na história clínica do pa-ciente cujo um dos objetivos é estreitar a mar-gem de possibilidades das desordens, medianteum rígido relato que vai das primeiras impres-sões às hipóteses diagnósticas, contém uma epis-temologia narrativa nos seus esforços para en-capsular tipos específicos de conhecimento acercado corpo (Epstein, 1995). A anamnese, o relatode caso, e o conjunto de informações que com-põem a história clínica não só exigem a trans-formação das queixas dos pacientes em um tex-to clínico, mas também a produção de uma ex-planação diagnóstica que requer funções inter-pretativas.

Uma multidão de significados pode ser en-contrada nos arquivos médicos. As históriasmédicas dos pacientes, em suas múltiplas for-mas, revelam aspectos culturais que organizam,

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institucionalizam e controlam não só os cuida-dos com a saúde, como a própria maneira comose estruturam as especialidades médicas e ashabilidades dos profissionais médicos em lidarcom o sofrimento de seus pacientes. Revelamtambém seus conceitos sobre as doenças e de queforma constróem a narrativa, isto é, como assu-mem sua historicidade, e que consciência histó-rica possuem do mundo e de si.

A narração expositora do diagnóstico e daterapêutica, por sua vez, reverbera sobre a cons-tituição da narrativa histórica que cada doentefaz dos males que o acometem e entrelaçam-sena rede de intrigas que compõe a verdadeira his-tória.

Por outro lado, se a medicina defronta-secom o sofrimento, a história também. Todavia,a interação das duas raramente tem sido cote-jada, quer por médicos, quer por historiadores.Caso se escolha a coletânea mais conhecida so-bre a história das doenças (Le Goff, 1991) vê-seque somente um ensaio (Moulin, 1991) ofereceuma interpretação, baseada em Foucault, querealiza uma discussão de conteúdo, imbricandotécnica médica com atitude crítica/analítica earticulando-as à percepção que os atores sociaiscontemporâneos têm dos progressos na áreabiomédica e de produção de fármacos.

Um historiador como Roy Porter, por exem-plo, que há anos vem se dedicando à história damedicina, sempre faz relações entre ela, as do-enças e os médicos, traçando um painel geral so-bre o desenrolar do exercício clínico. Sua preo-cupação é com a longa duração e com as modi-ficações engendradas ao longo de um continuumevolutivo. O enredamento da medicina com ahistória dá-se pela transformação da primeiraem objeto da segunda, justificado pela visão damedicina como a ciência mais beneficente aogênero humano. A sua capacidade de transfor-mação da própria natureza da vida dá-se tendocomo pano de fundo os credos religiosos, cien-tíficos, filosóficos e políticos da cultura de ca-da época o que, evidentemente, coloca a produ-ção desse autor nos cânones da chamada “his-tória social”, intentando uma abrangência to-tal. Combinando uma enorme erudição com ouso de um número abundante de fontes, Porter(1997) faz uma história épica e ao mesmo tem-po crítica da medicina, mas não trabalha qual-quer relação intrínseca possível entre ela e a dis-ciplina da história.

Seu argumento central é de que a medicinaocidental desenvolveu maneiras próprias deabordar as formas como os corpos humanos

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trabalham na saúde e na doença. Tais aborda-gens mudaram a visão cultural que se faz docorpo na vida humana. A maioria dos povos eculturas em todo o mundo, através da história,construiu a vida – nascimento e morte, doençae saúde –, primeiramente no contexto de en-tender as relações entre homem e cosmos: pla-netas, estrelas, montanhas, rios, espíritos an-cestrais, deuses e demônios, céu e inferno... Opensamento ocidental moderno, todavia, tor-nou-se indiferente a todos esses elementos, de-senvolvendo uma cultura preocupada com o eu(self), com o indivíduo e sua identidade e estaconquista culminou por ser equiparada ou re-duzida ao corpo individual e à personalidadeencarnada, que, por sua vez, expressa-se atravésda linguagem do corpo.

Porter trabalha muito bem a noção de epis-teme, tal como desenvolvida por Foucault, reali-zando uma arqueologia do saber e uma genea-logia do poder, contudo sempre exercitando suacondição de historiador. O arco enciclopédicoda obra, na qual a análise reflexiva imbrica-secom uma periodicidade muito bem recortada,faz da empreitada deste professor inglês de his-tória social da medicina, talvez, a melhor histó-ria sobre ela produzida recentemente. Trata-sede uma grande narrativa essencialmente histó-rica sobre a luta do homem contra as enfermi-dades que acometem seu corpo, discutindo ofato de que nós transformamos médicos em he-róis, no entanto nos sentimos ambíguos em rela-ção a eles (Porter, 1997). A narração é a essênciada sua obra, por isso ele não a discute, simples-mente a faz.

Já o estudo da forma narrativa dos casosmédicos tem em Julia Epstein (1995) e KathyrnMontgomery Hunter (1991) dois expoentes. Aprimeira, preocupada com questões teóricas,freqüentemente se reporta à produção historio-gráfica de Thomas Laqueur e de Roy Porter, as-sim como à abordagem conceitual de Foucault eRicoeur; o foco de sua análise são o corpo e asquestões referentes às ambigüidades de gênero.A segunda trabalha com a noção de a medicinanão poder se constituir como ciência, diante daindividualidade e particularidade com as quaisse depara em seu exercício.

Epstein (1995), desenvolve seu trabalhopensando uma analogia entre o corpo biológi-co e o corpo político, no contexto de desintegra-ção política, étnica, de fronteiras nacionais e desistemas de governo que ocorre na atualidade.Para ela, as noções de identidade, história e ra-zão, tão associadas ao pensamento do iluminis-

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A atomização das pessoas em identidadesétnicas em conflitos, segundo ela, emparelha-seà fragmentação do sistema de assistência médi-ca à saúde em frias “linhas de produção”, da pro-fissão médica em subespecialidades e do corpohumano em sistemas de órgãos. Ao invés de mo-ver-se no sentido de uma compreensão maisunificada de psyche e soma, a organização supe-respecializada dos profissionais médicos traba-lha na direção oposta. Entretanto não é a defesade um “idealismo holístico” que impulsiona otrabalho de Epstein, mas a necessidade episte-mológica de mostrar as influências culturais nalinguagem médica e de como as concepções porela veiculadas pressionam as ideologias sociais,estabelecendo uma certeza acerca de uma defi-nição objetiva do que é “normal” no que tangeao corpo humano.

Nesse sentido, ela centra-se nas históriasmédicas que os clínicos fazem de seus pacien-tes, para mostrar que elas, tanto quanto as et-nográficas, ficcionais ou históricas surgem pordeterminadas razões e exigem práticas interpre-tativas. Embora o corpo humano possa ser des-crito como um conjunto de órgãos, fluidos eprocessos fisiológicos, ele é mais que isso, deven-do, no seu entender, ser estudado como uma su-perfície cultural sobre a qual se mapearam ex-pectativas sociais e significados ideológicos.

Para Epstein, os relatos de casos médicosoperacionalizam as características convencio-nais dos escritos históricos e literários, isto é, danarrativa. Em conseqüência, ela afirma que osucesso ou fracasso do relato clínico, na qualida-de de uma descrição oficial da etiologia e evo-lução da doença, constitui um paradigma geralpara as narrativas sobre o corpo humano. Po-rém, eles não podem e nem devem ser lidos co-mo uma descrição analítica, porque sempre im-plicitamente interpretam no processo de sua es-trutura narrativa. Ao verter a experiência do do-ente num texto clínico, o médico também temque interpretar esta experiência a fim de produ-zir uma explanação da diagnose, assim comopersuadir seus leitores de que o diagnóstico estácorreto na base não só da evidência, mas tam-bém do apelo retórico: as maneiras pelas quaisas rupturas na experiência foram incluídas e emquais reconstruções construiu-se um quadro clí-nico cujos mistérios foram resolvidos (Epstein,1995). É importante sinalizar, diz ela, que so-

mente doenças diagnosticadas, que são plena-mente compreendidas na sua progressão fisio-lógica, operam desta maneira, isto é, tomam umrumo esperado, só que, às vezes, este rumo émodificado por um caso individual.

Ela conclui, numa espécie de retorno aoponto de partida, sublinhando que é o medo docontágio pelo “Outro” que, hoje, todos temem.E esse temor atiça o fogo repressivo das lingua-gens do corpo e aquelas, do corpo político. Aanalogia se restabelece e o círculo se fecha.

Hunter (1991), por sua vez, toma como pon-to de partida para seu trabalho, a articulação en-tre literatura e medicina. Sua ênfase recai sobrea característica eminentemente hermenêuticaembutida na construção do saber médico, via asimilitude do que chama de “círculo diagnósti-co” com o “círculo hermenêutico” proposto porDilthey (Hunter, 1991). Seu “Sherlock-médico”,poder-se-ia dizer, deveria ser um hermeneuta.

Para Hunter, indiscutivelmente, medicinanão é uma ciência, mas, sim, uma atividade ra-cional, utilizadora da ciência, situada entre di-versos níveis disciplinares, e interpretativa. Porisso, segundo ela, para explicar o que é a medici-na e melhor definir sua racionalidade, a litera-tura fornece uma analogia metodológica maisfrutífera do que as ciências naturais e sociais.Porque não só a metáfora da leitura utilizadapara a interpretação do estado do doente é umametáfora literária, mas, sobretudo, porque a me-dicina já possui algo em comum com a literatu-ra e os estudos literários: o uso da linguagem fi-gurativa e da organização narrativa dos eventosda doença. A narrativa do caso médico, afirma,é central para a epistemologia e prática da me-dicina; é um constructo desta epistemologia, ne-cessário à investigação racional num domínioonde a experiência subjetiva (e relatos subjetivosdaquela experiência por outra pessoa) são os da-dos básicos e originais da assistência clínica.

A narração médica da história do paciente,tal como a de Sherlock Holmes ao reconstruirum crime, de acordo com a autora, é a incorpo-ração de uma hipótese diagnóstica, isto é, tam-bém a reconstrução daquilo que aconteceu deerrado. Ela utiliza a apresentação de caso, numasessão clínica, para referendar essa analogia, di-zendo que esta se ordena de acordo com umaconclusão não declarada e prossegue reportan-do “negações” e detalhes “não percebidos”, con-duzindo a audiência além das possibilidadesque foram descartadas, para centrar o foco nossinais de uma conclusiva e lógica diagnose. As-sim, a experimentação estaria vedada tanto ao

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médico quanto ao detetive, porque a ciência deambos seria a observação exercitada após o fato.

Hunter, introduz, tal como Epstein (1995),a epistemologia narrativa dos registros/relatosmédicos. Ambas ligadas ao campo dos estudosliterários, distanciam-se, na articulação entremedicina, literatura e história, da proposta porCarlo Ginzburg (1989), uma vez que, em ambas,o processo de interpretação levado a cabo emtodos os três tipos de saberes é hermenêutico.

A semiótica e o discurso médico

Através da noção de discurso, Ricoeur (1995)demonstra o vínculo entre simbolismo strictusenso e hermenêutica e desta com a questão daverdade que se faz ouvir através dos símbolos,quando se sabe escutá-la. Para ele, o discurso sedá como um evento, simplesmente, porque algoacontece quando alguém fala e essa noção é fun-damental quando se considera a passagem deuma lingüística da linguagem ou dos códigos,para a lingüística dos discursos ou mensagens.Se, diz ele, o “sinal” é a unidade básica da lingua-gem, então a “sentença” é a unidade básica dodiscurso. E dizer que o discurso é um evento éenunciar, antes de mais nada, que este se realizatemporariamente e no presente, enquanto o sis-tema de linguagem é virtual e atemporal. Nessesentido, na proposição de Ricoeur, pode-se di-zer que a instância do discurso é auto-referen-cial, porque este se remete a quem o pronun-cia, por meio de uma intrincada rede de indica-dores, constituindo-se o evento no fato de quealguém falou, alguém se apossou do discurso aofalar. E, por outro lado, os sinais da linguagemreferem-se somente a outros sinais no interiorde um mesmo sistema, de tal modo que a lin-guagem não tem um mundo tanto quanto nãotem um tempo e um sujeito; todavia, o discursodirige-se a um mundo que ele pretende descre-ver, expressar ou representar.

Já para Ginzburg (1989), o signo (na sua as-sunção de sinal) dá sempre a conhecer algo maisatravés da atividade de interpretação. Nesse sen-tido, indícios, pistas, refugos, detalhes, palavrasse abrem para outros sentidos porque compor-tam conotações, mesmo que, por vezes, diferen-ciadas. Por exemplo, o termo firasa, extraído dovocabulário sufi, segundo informa, designavanão só as intuições místicas quanto as formasde discernimento e sagacidade. E, acresça-se, éutilizada por ele para conotar o órgão do saberindiciário.

Eco (1994), operando na moldura peircianade signo, diz que as expressões lingüísticas vei-culam descrições de fatos e que estes podem tor-nar-se sinal de outra coisa, via complicados me-canismos de inferência. Chama a atenção para aexistência de uma atualização da manifestaçãolinear de um texto que é sempre, frisa, coopera-ção para fazer dizer ao texto o que, na superfí-cie, ele não enuncia, mas que quer fazer saber aoseu destinatário. Esta cooperação é da ordem dosocial. Por exemplo, diz ele, só se faz necessáriopronunciar Faz frio nessa sala para que essa as-serção seja lida como um pedido para se fechara janela.

Um exemplo análogo ao de Eco pode serfornecido, tomando por base a análise de umprontuário médico, referente a uma criançaportadora da síndrome de Down.

Nele, além dos dados pessoais do paciente(nome, endereço, idade, cor, sexo, nome do paie da mãe) está contida a história familiar, da ges-tação, do parto e a da própria criança aliada aoregistro dos dados obtidos no seu exame físico,mediante o qual, o diagnóstico de síndrome deDown é estabelecido. O que importa, aqui, é aanotação: firmou a cabeça com 2m (sic!!!). O re-gistro “sic!!!” é o bastante para asseverar ao pes-quisador, ou qualquer outro leitor, que a narra-tiva/texto médico questiona a veracidade dasinformações prestadas pela mãe. Aliás é ele uti-lizado precisamente para isso. Não é a sentença“firmou a cabeça com dois meses” que leva pa-ra a verdade/mundo do médico – isto é, a “ver-dade” de estar a mãe esquecida, fantasiando oumentindo – mas o símbolo “sic” que, no geral,remete, no seio do social, para a idéia de “literal”.

Na semiótica peirciana, o signo pode ser de-nominado de Ícone, Índice e Símbolo, sendo queeste último é descrito como sendo referente aoObjeto que denota, em virtude de uma lei, umaassociação de idéias que opera no sentido de fa-zer com que o símbolo seja interpretado comose referindo àquele objeto. Assim, para Peirce,ele é, em si mesmo, uma lei ou tipo geral, isto éum Lessigno. E esta é uma lei normalmente es-tabelecida pelo homem, não sendo um objetosingular, porém um tipo geral que será signifi-cante (1995).

O “sic!!!” do prontuário funciona, portanto,como um símbolo, uma vez que é simbólico tu-do o que permite a interpretação e a efetivaçãode um sentido indireto, porém não deixa de serum signo. A linguagem é produtora de sentidosindiretos. O modo simbólico não caracteriza umtipo particular de signo, nem uma modalidade

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específica de produção sígnica; ele assinala ape-nas uma modalidade de produção ou interpre-tação textual. Conforme assinala Eco (1994) omodo simbólico pressupõe um processo de “in-venção” aplicado a um “reconhecimento”.

Como em qualquer outra doença cromos-sômica, na síndrome de Down, os dados fami-liares são de fundamental importância à indica-ção da investigação citogenética, com vistas aesclarecer o cariótipo.

Embora os especialistas estejam acostuma-dos a analisar as dispersões cromossômicas di-retamente ao microscópio, por vezes, para me-lhor sistematizar e pesquisar processos que po-dem ser responsáveis por determinadas anoma-lias genéticas, costumam proceder ao recortedos cromossomos de uma fotomicrografia e ar-ranjá-los em pares segundo uma classificaçãopadronizada, internacionalmente acordada. Afigura que se forma é o cariótipo (figura 1), ter-mo também usado para designar o conjuntodos cromossomos de um indivíduo ou de umaespécie (Thompson et al., 1993).

Atualmente, o cariótipo é encarado comointegrante obrigatório do processo de diagnoseda doença (Cunningham, 1996; Stratford &Gunn, 1996; Selikowitz, 1997; Pueschel, 1998;Hassold & Patterson, 1999), apesar deste ser,claramente, na imensa maioria dos casos, feitoa partir do exame físico do paciente.

O cariótipo remete também para a idéia desímbolo. Ele envia não só para o emparelhar dascaracterísticas herdadas do pai e mãe, comopara a imagem do acasalamento. Nele está poispresente a “teologia” do nascimento, a necessi-dade do par homem/mulher para a reproduçãoda espécie. Na célula os cromossomos aparecem,tal como os recursos tecnológicos (cultura ce-lular, técnicas de bandeamento, de hibridizaçãoin situ, microscopia eletrônica, fotomicrografiae etc.) os “revelam”. Eles compõem um textoonde estão escritos os sinais da hereditariedadee da individualidade. São partes constitutivas damaterialidade dos corpos, expressando-se viasuas superfícies. Já o ideograma, utilizando umaimagem análoga a do bastão (figura 2), faz “uso”do primeiro texto – os cromossomos como apa-recem no cariótipo –, como se cada segmentocontivesse toda a verdade, sem contudo, comoé óbvio, permitir a qualquer um enunciar o quequiser a seu respeito. O pensamento da ciênciaé a autoridade que preside a interpretação e pro-duz o texto, nele buscando a legitimidade desuas assunções. E nesse ponto reencontra-se aproposição de Eco (1994): trata-se de um pro-cesso de “invenção” aplicado a um “reconheci-mento”.

Os dados familiares também são dispostosnum diagrama que, em todos os prontuáriosexaminados, precede as anotações referentes aosdados físicos pessoais da criança (peso, altura,perímetro encefálico), a história da gestação,parto e da evolução da doença. É o heredogra-ma composto por símbolos padronizados, ondese tem a utilização de um texto, com base nou-tro – a história familiar do paciente, no qual,mais uma vez, é a autoridade do especialistaquem dita aquilo que ele deve conter e comodeve ser lido.

Os “símbolos” representam objetos ou rela-ções abstratas, como as fórmulas lógicas, quí-micas, algébricas e o diagrama. Se emprega-se apalavra criança, alterando a ordenação das le-tras que a formam, o termo fica irreconhecível.Mas se ela for escrita ou pronunciada de dife-rentes modos (escrita em letra de forma ou cur-siva, por exemplo, assim como pronunciada deacordo com o acento regional), a variedade dasformas de expressão não transforma a compre-ensão do conteúdo, pelo menos no nível maiselementar de significação. Já com o diagramaas operações encetadas na expressão modifi-cam o conteúdo e, variando de acordo com asregras, o resultado fornece informações novassobre este. Eles não são naturais, no sentido de

Figura 1Metáfase com cromossomos

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que contêm elementos de motivação mas, re-correndo-se à semiótica peirciana, icônicos ouanalógicos (Eco, 1994). E, de certa forma, é aanalogia entre o modelo de conhecimento dahistória e da medicina que é recuperada nessediagrama composto por símbolos. É como umreenvio à origem.

Para o historiador a árvore genealógica (fi-gura 3) faz parte da historiografia. A Guerradas Rosas, por exemplo, seria incapaz de sercompreendida sem que as árvores genealógicas,mostrando as relações de parentesco entre oscontestantes, tivessem sido registradas, mesmoque com o objetivo único de louvar a realeza. Oestudo histórico da Bíblia, por questões até deordem teológica, lançou mão da genealogia e deseu traçado esquemático para reconstruir a his-tória das dinastias judaicas, imbricadas à mani-festação de Deus na terra.

Nessa antiga tradição de retroagir para osancestrais mais remotos, como meio a reforçara historicidade dos homens, a genética humanavai inspirar-se para montar o heredograma, aprimeira etapa ao estabelecimento dos padrõesde hereditariedade.

Porém, como nos registros históricos, essediagrama contém uma epistemologia narrativa,tal como a referida por Epstein (1995) ao pro-cesso de diagnóstico. Ao olhar-se o heredogra-ma na figura 4, retirado de um prontuário refe-rente a um paciente atendido no Ambulatóriode Síndrome de Down, do Centro de GenéticaMédica José Carlos Cabral de Almeida, do De-partamento de Genética do Instituto FernandesFigueira, da Fundação Oswado Cruz, uma nar-rativa se desenrola:

O avô paterno da criança com síndrome deDown morreu, mas sua avó está viva. Por partede pai ele possui um tio e uma tia. Seus avós ma-ternos estão vivos e ele tem, por parte de mãe,também um tio e uma tia. Seu pai tem 31 anos esua mãe 27 e ele tem um irmão e duas irmãs. Suairmã mais velha tem sete anos, a do meio seis eseu irmão, cinco. Sua mãe teve dois abortos es-pontâneos antes dela nascer e ela, aos nove mesesfoi diagnosticada como portadora da síndromede Down.

A mesma história poderia ser contada deoutra maneira:

Uma menina de nove meses foi diagnosticadacomo portadora da síndrome de Down. Suas ou-tras duas irmãs, uma com sete e a outra com seisanos, eram normais, assim como seu irmão decinco anos. Sua mãe tinha vinte e sete anos e seupai trinta e um. Sua mãe ficara grávida diversas

vezes e em intervalos de tempo pequenos, umavez que até entre ela e seu irmão de cinco anos,engravidara duas vezes, só que perdera esponta-neamente os bebês. Ela tinha duas tias e dois tios,uma delas e um deles era por parte da mãe, en-quanto os outros dois eram por parte de pai.

Narrativa é uma expressão polissêmica. To-davia, de uma forma geral, pode-se defini-la co-mo a organização de eventos no tempo, elabo-rando-se ou não relações causais entre tais even-tos, normalmente associados a algum tipo demudança. Nos exemplos acima esta forma deordenação torna-se clara através não só da des-crição das gerações, da idade das pessoas, co-mo também da maneira como a mãe da crian-ça com síndrome de Down reportou ao médi-co sua experiência de seis gravidezes, sendo queduas delas abortadas espontaneamente. Todosos nascimentos e os dois abortos obviamenteassociam-se a algum tipo de mudança.

Hunter (1991) expressa muito bem a dife-rença entre as narrativas do médico e as do pa-

Figura 2Diagrama em bastão representando um cromossomo

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ciente, muito embora ambas se refiram à mesmadoença. A história que os pacientes narram é o rela-to originário e motivado que eles (ou os responsá-veis por eles) fazem de suas experiências de adoeci-mento; a do médico é aquela construída a partir de“recortes” das narrativas que lhes foram apresenta-das, salientando as partes da história pessoal e fami-liar do doente que lhes interessam e, também, a par-tir dos sinais e sintomas das enfermidades nos cor-pos. A primeira diz respeito aos efeitos da enfermi-dade numa vida e é uma cronologia simples, comuma etiologia implícita dos acontecimentos da do-ença; a segunda pode não ser estritamente cronológi-ca, porém começando com o passado bem próximo,lança-se ao futuro e conta o processo de diagnose.

O prontuário médico, por outro lado, é o depo-sitório desta primeira narrativa médica. É com ba-

se nele que os casos médicos são apresentados,quer oralmente ou escritos em revistas especia-lizadas. É nele que se encontra o enredo da do-ença e do tratamento, cujo autor é basicamenteo médico. Nesse texto, imagens, números, grá-ficos se misturam. Não parece, tanto quanto oheredograma que dele faz parte, constituir-senuma narração, no entanto, neles o ato de nar-rar é meticuloso, cuidadoso e revelador não sódos fatos físicos, como Hunter (1991) aponta,mas também da inserção social, dos hábitos ali-mentares, da maneira de carrear as queixas e/ou sintomas. Ele é minimalista, econômico, masindubitavelmente individualizado e, por isso,não é um texto atemporal ou supra-histórico.Nele encontram-se dados relativos à moradia,existência ou não de famílias grandes, ocorrên-

Figura 3Árvore genealógica da família de Macabeus

JohnSimon

d. 135 B.C.Judas

d. 160 B.C.Jonathan

d. 142 B.C.

John Hyrcanusd. 104 B.C.

Alexander d. 76B.C.

Alexandra

Eleazar

Aristobulus Id. 103 B.C.

Aristobulus IId. 49 B.C.

Hyrcanus IId. 30 B.C.

Alexandrad. 27 B.C.

Alexanderd. 49 B.C.

Antigonousd. 37 B.C.

Herod the Greatd. 4 B.C.

Aristobulus IIId. 36 B.C.

Mariamned. 29 B.C.

The Maccabean Family

Mattathias

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cias na evolução da doença, progressos e retro-cessos no desenvolvimento da enfermidade, nas-cimento, morte. Os fatos são dispostos e dãoconta de rupturas e continuidades, estabelecen-do relações causais entre umas e outras, nemque seja pelo indício de mudanças de medica-ção e/ou requisição de novos exames.

Não se pretende afirmar que todos os pron-tuários são iguais, até porque nem os pacientes,nem os médicos, nem as doenças, nem as insti-tuições e as circunstâncias e finalidades são asmesmas. Todavia, neles a epistemologia narra-tiva, embutida no processo de diagnose e de to-mada de decisão, se exemplifica, mostrando oquanto ela é formadora da prática clínica.

O que se escreve a seguir, sem dúvidas, éuma metanarrativa. Ela é, uma espécie de histó-ria fatual, do diagnóstico e da evolução de umacriança com síndrome de Down durante umperíodo que vai de antes de seu nascimento atéquase ao final de seu primeiro ano de vida. Estahistória construiu-se em cima dos dados de umprontuário (figura 5), sendo os eventos enca-deados seguindo a mesma ordenação pela qualforam anotados. A única informação inserida fo-ra da ordem dada pela notificação médica é a darazão da consulta, uma vez que ela estava anexa-da ao prontuário, mas também contando umahistória. Tratava-se de um breve relato de umaneurologista, dando conta do encaminhamentoao Ambulatório de Síndrome de Down. É umahistória dos acontecimentos, tingida pelo em-

pírico, no qual o ato de narrar não se reporta aosditames propugnados pelos procedimentos ci-entíficos da história, mas nem por isso deixa deser menos verdadeira.

João nasceu no dia 16 de fevereiro de 1996,pesando 3,350 kg e medindo 52cm. Sua mãe ha-via tido duas filhas antes dele. A mais velha ti-nha 16 anos e a mais nova 12. Porém sua mãe jáhavia ficado grávida e tido dois abortos espontâ-neos. Suas duas irmãs eram filhas do primeirocasamento e ele do segundo. Sua mãe tinha 37anos e seu pai 28. Os dois haviam se separado lo-go no início de sua gestação. Sua mãe afirmavaque em função disso havia tido sangramento e ti-vera que tomar Dactil OB. Ela fizera várias vezeso bHCG sempre com resultado negativo. Confir-mada a gravidez fez o pré-natal completo. Joãonasceu a termo e de parto cesáreo. A pediatra queo atendeu, encaminhou-o a uma neuropediatra eesta ao observar um quadro de hipotonia genera-lizada, presença da prega simiesca palmar e im-plantação capilar deficiente, encaminhou-o parao Ambulatório de Síndrome de Down, do Depar-tamento de Genética do Instituto Fernandes Fi-gueira requisitando o cariótipo para confirmar odiagnóstico de síndrome de Down.

A primeira consulta de João foi no dia 28 dejunho de 1996. O exame revelou presença de epi-canto, redundância de pele cervical incluindo aporção anterior do pescoço, prega simiesca e arcotibial plantar. Diante de tais evidências o diag-nóstico foi confirmado. Recomendou-se: abertura

Figura 4Heredograma representando a família da paciente

V

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de prontuário para torná-lo usuário do Ambula-tório, fisioterapia, estudo ecocardiográfico, ultra-sonografia abdominal e, também, a análise do ca-riótipo.

Ao sair, a mãe de João não o levou até o servi-ço social, mas retornou com ele à consulta seguin-te que havia sido marcada para o dia 27 de no-vembro. Ele havia aumentado de peso, estava embom estado geral e o ecocardiograma era compa-tível com CIA pequena, tipo fossa oval. Ele já es-tava sendo estimulado, fazendo fisioterapia e fo-noaudiologia na ABBR. Estava também sendoacompanhado por uma psicóloga. Já havia firma-do a cabeça aos 5 meses e começava a querer sen-tar. Foi, então, encaminhado para o serviço decardiologia, reforçando-se a necessidade de ultra-sonografia abdominal.

Quando João voltou, passado pouco mais dedois meses, ia fazer um ano. Seu cariótipo aindanão havia ficado pronto. O ecocardiograma con-firmou FO patente e a ultra-sonografia foi consi-derada normal. Durante o intervalo entre as duasconsultas havia sofrido uma internação acompa-nhada pelo pediatra e, atualmente, estava fazen-

do uso de Bactrim. De resto, encontrava-se sau-dável, engatinhava para trás e começava a falar‘papai’ e ‘mamãe’. Ao exame: ótimo.

Narrou-se o prontuário de João, tendo porbase a narração do médico que, por sua vez,embasou-se na narrativa feita pela mãe dele.Apesar de todos os múltiplos níveis narrativos,dos objetivos e visões desiguais de mundo, dasformas distintas da narração, os procedimen-tos médicos, históricos e ficcionais, visualizame apresentam fenômenos da vida humana. Con-substanciam-se em matrizes de discursos, nasquais o relato caracteriza-se por ser ao mesmotempo figurativo – porque comporta persona-gens que levam a cabo ações –, e inscrito dentrode coordenadas espaciais e temporais – predo-minando a última sobre a primeira (Cardoso,1997).

Doença e narrativa

Desde finais da década de 1960 as narrativas dedoenças (illness narratives) assumiram papel

Figura 5Prontuário

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central nos estudos realizados por antropólo-gos, sociólogos, literatos, médicos, psicanalis-tas, psiquiatras, enfermeiras, sendo encaradascomo caminhos ao entendimento dos esforçosdos clientes/pacientes em lidar com suas vidas,sobretudo, face aos problemas de quebra deidentidade que as doenças crônicas acarretam.

Kleinman (1988) – a quem se deve a expres-são illness narratives – tendo como alicerce a ca-tegoria sofrimento e a condição humana, comosocial e culturalmente edificada, postula a nar-rativa como a forma pela qual os doentes mo-delam e dão sentidos aos seus padecimentos.Para este médico, as orientações culturais da co-letividade, dentro da qual se vive, organizam osenso comum sobre como entender e cuidar dasenfermidades, por isso as experiências de adoe-cimento são sempre culturalmente modula-das. Segundo ele, o médico, por também sofreras mesmas influências, pode estabelecer umarelação com o seu paciente, mas ao re-escrever oadoecimento, em termos de teorias da desordemorgânica ou mental, cria a doença; ela é o que elefoi treinado a ver, através das lentes teóricas desua forma particular de prática. Assim, conclui,o clínico reconfigura os males do paciente e desua família (illnesses) como assuntos técnicos,isto é, como “entidades” mórbidas (diseases).

Hydén (1997) afirma que o conceito de nar-rativa primeiro ocupou um espaço periféricono campo do conhecimento sociológico das do-enças mas, hoje, ocupa um lugar predominantepor permitir captar aspectos nucleares da vi-vência do adoecimento em seus contextos so-ciais específicos. Nesse sentido, os trabalhos de-senvolvidos de dez anos para cá sofreram mu-danças temáticas, teóricas e metodológicas. Atransformação temática liga-se ao deslocamen-to da narrativa como meio de estudo das práti-cas médicas, para fio condutor da análise dasexperiências do sofrimento dos doentes; a vira-da teórica reporta-se à possibilidade de estudara realidade da doença à parte das concepções edefinições do discurso biomédico e, por fim, amodificação metodológica remete-se à cons-ciência de que fatores situacionais influenciamas narrativas e que continuamente novas narra-tivas são produzidas pela mesma pessoa, depen-dendo de novos contextos.

Revisando todos os trabalhos já realizados,esse sociólogo ligado ao estudo das enfermida-des e daqueles por elas acometidas, tendo porfio condutor a narrativa de doenças, acaba pro-pondo três tipos de narrativas, fundamentadosem seus aspectos formais, ou seja, nas relações

entre narrador, narrativa e doença. São eles:“doença como narrativa” – narrador, doença enarrativa combinam-se numa só pessoa, no ca-so, portanto, as narrativas que os pacientes fa-zem a seu médico; “narrativas sobre doença” –uma narrativa que traz em si conhecimentos eidéias sobre as doenças, nesse sentido, as que osmédicos fazem de seus pacientes, entretanto, na-da impedindo que os doentes também as façam,misturando-as, em determinados pontos, comàquelas do primeiro tipo e, por fim, “narrativacomo doença”, significando situações nas quaisuma doença gera distúrbios na narração, comono caso descrito por Oliver Sacks de um pacien-te que desenvolveu síndrome de Korsakow e, emconseqüência, perdeu sua capacidade de narrar.

Os trabalhos de Kleinman (1988) e Hydén(1997) se diferenciam, não só em função da au-to-imagem/formação, como também por seusobjetivos. O primeiro, após estabelecer uma re-de analítica de acesso aos sentidos das doençase narrar as experiências de adoecimento de seuspacientes, volta-se para a proposição de umguia aplicável à assistência aos pacientes, visan-do alterar a educação e treinamento médicos. Osegundo, descrevendo e analisando as mais di-ferenciadas propostas, tem por escopo forneceruma abordagem teórica e metodológica dos es-tudos sobre doença. Enquanto um parte do de-terminismo sociocultural moldando os discur-sos médicos e leigos, o outro, das bases episte-mológicas da sociologia, para estatuir as narra-tivas de doença como produtos sociais e cultu-rais, como uma transformação e expressão dosofrimento dos corpos e, sobretudo, como atentativa das pessoas que sofrem de construí-rem um novo contexto para suas vidas.

Arthur Frank (1995), outro sociólogo, tendopor base os teóricos da pós-modernidade e suaprópria experiência com a doença, propõe que o“contador de histórias ferido” (wounded story-teller) fala não sobre seu corpo doente, masatravés dele. A doença crônica estabelece o caose o doente perde sua bússola. A narrativa perso-nalizada, não mais “meta”, ajuda-o a reencon-trar o caminho e o torna participativo, integran-te e conhecedor do próprio adoecimento.

Baseado na sociologia weberiana, ele pro-põe quatro tipos ideais de corpos em sua rela-ção com o adoecer, esclarecendo que esse é ummeio conceitual e reflexivo, uma linguagem pa-ra falar sobre o que é particular, porque, na rea-lidade, cada corpo individualizado representamisturas distintas de tipo ideais (Frank, 1995).Dependendo do tipo, disciplinado (aquele que

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se define em ações de auto-regimentação), es-pelhado (o que se explicita em atos de consuma-ção), dominador (auto-identificado na força) ecomunicativo (aceita a contingência, associa-seconsigo mesmo e existe para o outro: é mensa-gem), variadas formas de narrativas se formam.Para Frank, corpos desiguais possuem, como elepróprio coloca entre aspas, “afinidades eletivas”com distintas formas de narrativa, sendo quetais afinidades não são determinantes, uma vezque os corpos se realizam, criam-se, nas histó-rias que contam.

Não há, portanto, apesar da noção que oideal-tipo carreia, descontextualização, imobi-lidade e transcendência. No trabalho de Frank,devido à sua própria experiência com o câncer,os corpos precisam de vozes e delas se utilizamproduzindo inúmeras narrativas que mudam,assim como também são passíveis de transfor-marem-se as relações do corpo doente com adoença. Os três tipos de linhas narrativas queidentifica são: restituição (o retorno da saúde),caos (negação de qualquer expectativa de me-lhora) e conquista (a doença é motivo de umajornada que se transforma numa conquista, senão da saúde, da própria identidade). Todavia,pode-se dar razão a Hydén (1997), quando, aocomentar a tipologia de Frank, aponta que par-te de seu problema reside no fato de se basearnum cenário limitado de gêneros narrativos, co-mo “caos” e numa meta-narrativa da doença: do“caos” à “conquista”.

Morris (1998), ex-professor de inglês e atual-mente voltado somente para suas atividades deescritor, pugna por uma noção de doença queseja biocultural. Ele segue a concepção teóricapós-modernista de Lyotard, no mesmo moldede Frank (1995), preocupando-se em sugerir anarrativa como instrumento ético de discussãodos rumos tomados pela biotecnologia, assimcomo meio de romper o silêncio imposto aodoente pelo sofrimento.

Como a maioria dos autores desde Klein-man, o progresso das tecnobiociências sombreiatodo o pensamento de Morris. É o avanço delasque traz à tona a preocupação com a cronici-dade, visto que considera os episódios agudosde sofrimento causados por doenças de etiolo-gia virótica ou bacteriana como já superados,não só por meio da melhoria das condições desaneamento, como pela existência das vacinas eda antibioticoterapia. Tais episódios jamais sãovistos como rupturas, uma vez que a recompo-sição da saúde se dá e eles acabam por serem es-quecidos, não acarretando uma experiência

continuada de padecimento. É evidente que do-res causadas, por exemplo, por uma cefaléia re-nitente, por uma hérnia cervical ou lombar oupela depressão, são consideradas no espectro dapermanência, mas sua presença é amenizadaem função de não carrearem a idéia da morte.É, pois, dos esforços para ampliar a vida que es-tes autores falam. Sendo que normalmente estaampliação se dá via o afastamento da morte, enão através da reflexão acerca das técnicas devisualização e individuação do feto que prolon-gam, de forma virtual, a linha da vida do ser nahistória para antes do nascimento.

Por sua vez, Anne Hunsaker Hawkins (1993)encara as narrativas de doença sob a perspecti-va de gênero literário. Seu trabalho conduz oleitor pelo que ela chama de patografias e, so-bretudo, pelos mitos que as embasam. A Histó-ria das Idéias se faz presente, embora encaradasob uma perspectiva interdisciplinar com o es-tudo do campo literário em senso estrito. Para aautora três tipos de argumentação narrativa es-tão presentes nesse tipo de literatura: a “didáti-ca”, baseada numa experiência vivida que é pas-sada aos outros, no sentido de infundir-lhesconfiança e esperança; a “raivosa” (angry), quese volta contra a dor que as técnicas médicasinvasivas produzem nos corpos, sem, contudo,atacar a figura do médico e, finalmente, o quechama de “saudável-mentalidade” (healthy-mindedness), termo que toma emprestado aWilliam James, para caracterizar aquelas queenfatizam a fé religiosa, o poder curativo da na-tureza e o envolvimento ativo do paciente emtodos os aspectos de seu tratamento. Esse últi-mo tipo, inclusive, tenderia a se articular à me-dicina alternativa mais em função de suas ênfa-ses do que em função de um descontentamen-to, puro e simples, com a medicina ortodoxa.

A importância da narrativa na medicina,diante do seu caráter marcante de “ciência deindivíduos” como a chama Hunter (1991), nãose reporta só às formas de escuta necessárias aoexercício da cura ou da melhoria das condiçõesde vida dos doentes, mas é parte epistemológi-ca da construção de um saber que se faz na prá-tica, sem abrir mão, entretanto, da razão cientí-fica, criando hipóteses/abduções que articula-das ao raciocínio dedutivo, necessário para de-terminar o que deve ser, avança na aquisição deconhecimentos. Todavia, Kleinman, Hydén,Frank, Morris e Hawkins, em que pesem as di-ferenças de abordagem, têm razão ao focar a di-mensão da inter-relação comunicacional, pois éesta que cada dia mais tende a se restringir, di-

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ante de uma biomedicina que educa os médicosa se distanciar do sofrimento como forma sinequa non de neutralidade eficaz, ao mesmo tem-po que enfatiza os meios sofisticados de diagno-se, oferecendo-os como instrumentos infalíveisde estabelecimento da verdade do que ocorre deerrado na mais ínfima partícula interiorizadados corpos. Juntos, médicos e pacientes estãoimersos no mercado hipercapitalista das trocase das estratégias flexibilizadas de acumulação(Haraway, 1997), dependentes de velozes ma-nipulações de poder, do discurso sobre aquiloque seus genes são capazes de determinar, dacontingência do que vão expressar, submetidostambém a seus inconscientes e às rápidas e in-cessantes transformações socioculturais (Cas-tiel, 1999).

Sempre narrando histórias

No que diz respeito à prática da escrita da his-tória, fundamentada no ideal da objetividadeda narrativa, dever-se-ia fazer uma escrupulosareconstituição dos fatos que, depois de testadose ordenados, comporiam um relato cronológi-co. Seu estatuto de ciência derivaria do estudocrítico de fontes oficiais, com vistas ao estabele-cimento de sua veracidade. Essa era a ponta vi-sível do pressuposto positivista de que era pos-sível captar o passado, tal ele o fora, a partir daexatidão dos fatos e da absoluta confiabilidadedas fontes. A ênfase nesse modelo e sua correla-ção com a narrativa levaram, a partir do esgota-mento exclusivo do paradigma mecanicista, aoafastamento progressivo da temática da narra-tiva. Stone (1991) tem razão ao afirmar que oshistoriadores sempre contaram “estórias”, masque a história dos grandes acontecimentos aca-bou desqualificando a importância da narrativapara o ofício do historiógrafo.

Depois de Hiroshima e Nagasaki, o mito doprogresso ocidental passou a ser questionado,processando-se uma rachadura na ideologiaherdada do iluminismo, apontando uma pau-latina modificação na maneira de se pensar aciência. Nesse contexto, a reabilitação da narra-tiva, com o desenvolvimento das pesquisas naárea da história sociocultural, representa menosuma volta a um estilo de escrita predominanteno século 19 e mais uma preocupação com o co-tidiano da vida, com o sofrimento e com a dorexperimentada pelos seres humanos comuns.Ora, essa reabilitação também passa a se con-substanciar nos trabalhos não só de médicos –

veja-se Kleinman e Sacks, dentre outros –, masigualmente nos esforços da antropologia, dasociologia e da crítica literária – Frank, Morris,Epstein, Hunter, Hawkins, para ficar com os jácitados – voltados à complexidade com que serevestiu a medicina na atualidade.

Aproximar-se da noção de narrativa comouma forma, entre outras, de manifestação dopensamento e de sua comunicação entre os se-res humanos, é entendê-la, não como um des-vio ou deformação do narrado, mas como ex-tensão dos códigos de uma cultura que dota arealidade da possibilidade de ser narrada. Écom a linguagem que se dá a ordem e é atravésdela que o homem se depara com uma multi-plicidade de maneiras de ordenação.

A possibilidade de uma semiótica narrativadepende de se separar um nível aparente dasnarrações – no qual as significações dão a im-pressão de depender da marca – e um nívelmais profundo cuja consideração faria perceberuma “narratividade” comum e mais geral. Des-se modo, as estruturas narrativas – o troncosubmerso – são anteriores às suas manifestaçõesnas histórias contadas (Cardoso, 1997).

Por proceder dessa maneira é que Laqueur(1992), trabalhando os relatórios de autópsia,na sua forma moderna, e a novela, mostra queambos desenvolveram-se na mesma época e em-pregaram estruturas narrativas, operando aolongo do axioma causa e efeito para prescreverdeterminadas ações preventivas dos “males”.Por isso ele chama os dois tipos de escritos de“narrativas humanitárias” (humanitarian nar-ratives), apontando que serviam ao propósitode conclamar à compaixão pelos corpos sofre-dores, tornando-a um imperativo moral impul-sionador da ação comunitária.

A historiografia e o relato do caso médicotambém compartilham, com a escrita imagina-tiva, uma herança comum de retórica. Tal comoos historiadores, os médicos registram a histó-ria do paciente a partir de conjeturas qualifica-das e iluminadas pela formação profissional,baseando-se numa seleção de inúmeros even-tos e de evidências fornecidas por fontes diver-sas – exames complementares, literatura médi-ca, pesquisas epidemiológicas, dentre outras.As relações causais são freqüentemente inverti-das como, por exemplo, o sentido de um acon-tecimento ou sintoma sendo definido pela se-qüela que deixou. Nesse caso, os efeitos guiampara as etiologias ou para o prenúncio de prog-nósticos mais do que os episódios originais le-vam ao diagnóstico. O movimento, tal como na

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história, é do presente para o passado e destepara o futuro.

Ao exercitarem a função de produzir histó-rias, tanto o historiador como o médico, assu-mem a narrativa como uma modalidade de es-crita sobre a história, incluindo aí, os elementosimaginários que penetram qualquer narração.Isto, pelo contrário, não implica dizer que his-tória e medicina são a mesma coisa e que am-bas são ficção, mas tão somente que, se nas duashá a construção de um enredo, porque relacio-nam elementos dispersos e ligam eventos e/ouacontecimentos isolados, elas assim o fazem deforma constrangida, construindo sua objetivi-dade que é permanentemente confrontada ereformulada por novas e complexas interaçõesbiológicas, culturais, sociais, ecológicas... Acriatividade é fundamental a qualquer posicio-namento que se pretenda científico e os cientis-tas não têm como predicado estar a serviço daverdade, portanto não a traem. Todavia, o seuproblema é com a história. E a verdade, no fun-do, é aquilo que a história faz (Stengers, 1997).

A historiografia da história e a história damedicina demonstram que ambas buscam oargumento mais forte e o mais persuasivo, po-rém nunca vão encontrar o derradeiro. A obje-tividade não lhes é dada, mas sempre construí-da e (re)construída, pela confrontação dos tes-temunhos que arrolam. O arbítrio do historia-

dor e do médico não se confunde com o ato devontade que cria a ficção. História e medicinaestão em aberto, sempre passíveis de revisões. Equem encaminha estas revisões são homens/mulheres, médicos(as) e historiadores(as), queexaminam, interpretam, julgam, argumentam,através de diferenciados métodos, teorias e ca-tegorias. Entretanto, espera-se, com modéstia,isto é, sem a desmesura de quem pretende pro-nunciar a palavra final, que a todos os demaissilencia em nome da verdade total e absoluta.

José Américo Pessanha (1988), ao discutir ocaráter não ficcional da história, porém pon-tuando seu conteúdo narrativo, diz: Porque defato existiu, Napoleão se distingue de James Bond.Mas, o historiador que escreve sobre ele, organi-zando e relacionando informações, interligando“instantâneos”, montando seqüências e elos cau-sais, inevitavelmente cria, imagina, fabula: énarrador.

Os relatos históricos, tal como os médicos,não podem depender somente de seus supostosconteúdos fatuais, pois as explicações que oshomens produzem sobre si, os outros e as coi-sas são, na maioria das vezes, mais determina-das pelo que deixam de fora do que por aquiloque nelas sobressai. E acresça-se, influenciadaspela auto-imagem que cada um faz de si; pelaexigência de procurar por um sentido, portan-to da “fábula” como forma de criação.

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Artigo apresentado em 9/7/2002Versão final apresentada em 11/9/2002Aprovado em 15/9/2002