Redes Da Criacao Cecilia Almeida Sales (1)

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    REDES DA CRIAO

    construo da obra de arte

    CECILIA ALMEIDA SALLES

    Registro na Biblioteca Nacional 359.234

    Livro 663 Folha 394

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    PARA NINI, MARIA, MARIANA E BEL

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    Agradecimentos

    Muito especiais, a Luiz Ruffato e a Heloisa Prieto pelo apoio incondicional.

    A Daniel Senise, Igncio de Loyola Brando e Evandro Carlos Jardim pela generosidadede abrir suas gavetas.

    A Marlene Gomes Mendes pelo trabalho amigo.

    A Amlio Pinheiro, Joo Carlos Goldberg, Cludio Galperin, Vincent Colapietro e Vitor Kisil,companheiros de conversas indispensveis.

    Aos amigos do Centro de Estudos de Crtica Gentica pelas imprescindveis interaesintersemiticas

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    SUMRIO

    INTRODUO

    CRIAO COMO REDE

    RUAS E ESCRITRIOS

    OLHARES, LEMBRANAS E MODOS DE FAZER

    TRAMAS DO PENSAMENTO: DILOGOS DE LINGUAGENS

    TRAMAS DO PENSAMENTO: INTERAES COGNITIVAS

    DESDOBRAMENTOS E A CRTICA DE PROCESSO

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    INTRODUO

    Redes da Criao tem como objetivo dar continuidade proposta iniciada no livro

    Gesto Inacabado: Processo de criao artstica (Annablume, 1998), que procurava

    compreender o modo como se desenvolvem os diferentes processos de construode obras de arte. Assim como nessas primeiras reflexes, toda a discusso

    sustentada pelas pesquisas dedicadas ao acompanhamento desses percursos de

    criao, a partir dos documentos deixados pelos artistas: dirios, anotaes,

    esboos, rascunhos, maquetes, projetos, roteiros, copies etc. Na relao

    entre esses registros e a obra entregue ao pblico, encontramos um

    pensamento em construo.

    Pretendemos, com as reflexes que esses documentos proporcionam,

    oferecer uma outra maneira de se aproximar da arte, que incorpora seu

    movimento construtivo. Trata-se de uma discusso das obras como

    objetos mveis e inacabados, que difere significativamente dos estudos

    sobre os fenmenos comunicativos, em suas diversas manifestaes,

    que discutem produtos considerados finalizados ou acabados. Uma

    abordagem cultural em dilogo com interrogaes contemporneas (Biasi,1993), que encontra eco nas cincias que discutem verdades inseridas em

    seus processos de busca e, portanto, no absolutas e finais.

    Cabe queles que se interessam pela criao artstica entender os

    procedimentos que tornam essa construo possvel. Os documentos dos

    processos instigam um mtodo de pesquisa fiel experincia guardada nesses

    registros. As descobertas5

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    feitas saem, portanto, de dentro dos prprios processos, isto , so alimentadas

    pelos documentos que pareceram necessrios aos artistas ao longo de suas

    produes. Podemos perceber um interesse crescente por esses materiais, que fica

    patente nas inmeras exposies nacionais e internacionais de esboos, rascunhos

    ou cadernos de artistas. Esses documentos oferecem um grande potencial de

    explorao que ultrapassa, sem dvida alguma, o olhar curioso atrado pelo fetiche

    que os envolve. Os ndices de pensamento em processo precisam encontrar modos

    de leitura. isso que propomos.

    O estudo de documentos de artistas diversos nos permite encontrar alguns

    procedimentos de natureza geral, que ganham nuances em processos especficos.

    So essas variaes que nos levam s singularidades dos procedimentos de um

    artista determinado. Muitos artigos, teses, dissertaes dedicam-se a esses

    estudos como, por exemplo, o acompanhamento de obras de Daniel Senise,

    Igncio de Loyola Brando, Evandro Carlos Jardim, Regina Silveira, Graciliano

    Ramos, Carlos V. Fadon, Lucas Bambozzi, Eugne Delacroix, Paul Gauguin, Joan

    Mir, Luis Paulo Baravelli, Roberto Santos, Elizabeth Bishop, Cildo Meireles, Caio

    Reisewitz, para citarmos somente alguns. No entanto, nesta publicao estou

    particularmente interessada nas recorrncias e algumas de suas gradaes, que

    nos levam a discutir o processo criativo de modo mais abrangente. Para alcanar

    esse objetivo, recorremos a documentos de reas diversas: registros de escultores,

    cineastas, videomakers, escritores, pintores, coregrafos, arquitetos etc. As

    diferentes manifestaes artsticas se cruzam nessas reflexes sobre modos de

    criao. O que nos instiga, nesse momento, so esses procedimentos deconstruo. Abrindo assim dilogo com todos aqueles que, por motivos os mais

    diversos, se interessam pela criao artstica.

    importante ressaltar que, por necessidade de delimitao do mbito desta

    publicao, o enfoque ser o objeto artstico; no entanto, essas discusses tm se

    provado tambm adequadas para o debate sobre a construo de outros objetos

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    da comunicao. Estamos, portanto, abordando a arte, em dilogo com aqueles

    que, como Arlindo Machado (1999), defendem a abordagem da comunicao em

    mbito expandido, por perceber que se trata de um conceito-chave no mundo

    contemporneo, pois d conta de alguns processos vitais que definem esse mesmo

    mundo, mas est longe de ser um conceito consensual. Alguns o tomam num

    sentido mais restritivo, abrangendo apenas o campo de atuao das mdias de

    massa, outros preferem dar maior extenso ao conceito, incluindo no seu campo

    semntico todas as formas de semiose, ou seja, de circulao e intercmbio de

    mensagens, inclusive at fora do mbito do social e do humano, no nvel

    molecular, por exemplo, ou na linguagem das mquinas. Sob esse prisma, as

    discusses sobre os percursos de construo de obras no esto restritas ao

    campo da arte, abarcando outros processos comunicativos.

    O processo de criao, com o auxlio da semitica peirceana, pode ser descrito

    como um movimento falvel com tendncias, sustentado pela lgica da incerteza,

    englobando a interveno do acaso e abrindo espao para a introduo de idias

    novas. Um processo no qual no se consegue determinar um ponto inicial, nem

    final. No Gesto Inacabado, demos destaque a esse trajeto com tendncias incertas

    e indeterminadas, que direcionam o artista em sua incansvel busca pela

    construo de obras que satisfaam seu grande projeto potico; construo essa,

    fortemente marcada por questes comunicativas. A busca do artista encontra suas

    concretizaes possveis, em complexos processos de construes de obras. Em

    um segundo momento, o percurso criador foi enfocado sob cinco pontos de vista,

    como: ao transformadora, movimento tradutrio, processo de conhecimento,construo de verdades artsticas e percurso de experimentao.

    Para o leitor do Gesto Inacabado, ficar claro que muitos temas so retomados,

    em outras perspectivas, a partir do que j foi discutido anteriormente. Da os

    trechos familiares ou citaes recuperadas. Minhas reflexes, inevitavelmente em

    rede, interagem na tentativa de ampliar seu campo de ao.

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    Para desenvolver tais discusses, estabelecemos dilogos entre pensadores

    da filosofia e da arte e os prprios artistas. Seguiremos aqui o mesmo

    caminho, chamando, sempre que parecer necessrio, tericos como Edgar

    Morin, Iuri Lotman, Charles S. Peirce, entre tantos outros. Acredito que o

    objeto que nos instiga compreender merece primazia. Os instrumentais

    tericos devem ser convocados de acordo com as necessidades do andamento

    das reflexes, para que os documentos dos artistas no se transformem em

    meras ilustraes das teorias. Nestes casos, os conceitos perderiam seu poder

    heurstico, ou seja, a pesquisa ofereceria muito pouco retorno no que diz

    respeito a descobertas sobre o ato criador. Por outro lado, se o que

    buscamos a melhor compreenso da complexidade que envolve o

    processo criativo, no podemos lanar mo de conceitos tericos isolados,

    como, por exemplo, percepo ou acaso (ou quaisquer outros). Acredito que

    devemos discutir a criao com o auxlio de um corpo terico de conceitos

    organicamente inter-relacionados.

    Todos aqueles aspectos da criao foram discutidos anteriormente na densidade

    que nossas observaes, naquela fase da pesquisa, permitiam. O tempo passou e

    proporcionou novas leituras e maior exposio experincia dos artistas, gerada

    por minhas prprias pesquisas e as de meus alunos. Assim, novas perspectivas de

    leitura, que exigiam reflexes e descobertas de novos modos de apresentao,

    comearam a se apresentar. Desenvolveremos, mais uma vez, essa discusso

    mantendo dilogo permanente com os documentos dos artistas. Seus relatos,

    desse modo, trazem de volta a experincia mltipla e vvida que alimentou toda areflexo. Esses exemplos devem ser vistos como selees que fiz daqueles

    considerados mais significativos para ampliar a compreenso sobre o processo

    criativo.

    O Gesto Inacabado se propunha a pensar a criao artstica em uma abordagem

    processual, mas estava, provavelmente, indo alm dos limites desse

    objeto8

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    especfico. Pretendia, naquele momento, oferecer mais do que um simples

    relato de uma pesquisa, mas uma possibilidade de se olhar para os

    fenmenos em uma perspectiva de processo. Estvamos, de certo modo,

    oferecendo instrumentos para uma teorizao que se ocupa dos fenmenos em

    sua mobilidade.

    Acredito que essas discusses tornaram-se fundamentais para pensarmos certas

    questes contemporneas, que envolvem, por exemplo, a autoria e a intrincada

    relao obra processo. As reflexes tericas que trazem essa perspectiva

    processual para a arte ultrapassam os ditos bastidores da criao. Da

    percebermos que estvamos diante de recursos tericos para desenvolver uma

    critica de processo1, que parecia abranger mais do que a critica gentica. Muitas

    questes de extrema importncia para se discutir a arte em geral e aquela

    produzida nas ltimas dcadas, de modo especial, necessitam de um olhar que

    seja capaz de abarcar o movimento, dado que leituras de objetos estticos no se

    mostram satisfatrias ou eficientes.

    Algumas obras, incluindo todo o potencial que as mdias digitais oferecem,

    parecem exigir novas abordagens. Ao mesmo tempo, muitas dessas obras exigem

    novas metodologias de acompanhamento de seus processos construtivos e no

    somente a tradicional coleta de documentos, no momento posterior

    apresentao da obra publicamente, isto , a abertura das gavetas dos artistas

    para conhecer os registros das histrias das obras. Muitos crticos de processos

    passaram a conviver com o percurso construtivo em tempo real. Algumas obrascontemporneas (mas no s) geram, assim, novas metodologias para abordar

    seus processos de criao, enquanto que os resultados desses estudos mudam, de

    alguma maneira, os modos de abord-las sob o ponto de vista crtico.

    1 No posso deixar de mencionar a importncia dos debates desenvolvidos no Centro de Estudo de CriticaGentica (Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC/SP) para chegar a essasconcluses.

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    Essas novas questes, que pareciam merecer maior ateno, exigiam novas

    formas de desenvolvimento do pensamento que dessem conta de mltiplas

    conexes em permanente mobilidade. Foi assim que chegamos s redes.

    A proposta central deste livro, portanto, parte da necessidade de pensar a criao

    como rede de conexes, cuja densidade est estreitamente ligada multiplicidade

    das relaes que a mantm. No caso do processo de construo de uma obra,

    podemos falar que, ao longo desse percurso, a rede ganha complexidade medida

    que novas relaes vo sendo estabelecidas.

    Pierre Musso (2004), ao discutir redes, diz se preocupar com a exploso desse

    conceito que, de certo modo, o supervaloriza em metforas. Com a mesma

    preocupao, tambm levo adiante essa perspectiva, por acreditar que seja

    necessria para a compreenso da plasticidade do pensamento em criao, que se

    d justamente nesse seu potencial de estabelecer nexos. Essa abordagem do

    processo criativo talvez seja responsvel pela viabilizao de leituras no lineares e

    libertas das dicotomias, tais como: intelectual e sensvel, externo e interno, autoria

    e no autoria, acabado e inacabado, objetivo e subjetivo e movimento prospectivo

    e retrospectivo.

    Como afirma Andr Parente (2004, p. 9), a noo de rede vem despertando um tal

    interesse nos trabalhos tericos e prticos de campos to diversos como a cincia,

    a tecnologia e a arte, que temos a impresso de estar diante de um novo

    paradigma, ligado, sem dvida, a um pensamento das relaes emoposio a um pensamento das essncias. Incorporo, desse modo, tambm o

    conceito de rede, que parece ser indispensvel para abranger caractersticas

    marcantes dos processos de criao, tais como: simultaneidade de aes, ausncia

    de hierarquia, no linearidade e intenso estabelecimento de nexos. Este conceito

    refora a conectividade e a proliferao de conexes, associadas ao

    desenvolvimento do pensamento em criao e ao modo como os artistas se

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    relacionam com seu entorno. Contudo, no podemos deixar de mencionar a fora

    da imagem da rede da criao artstica que nos incita a explor-la.

    O livro est organizado em seis segmentos. Comeamos com uma apresentao

    do conceito de criao como rede, recomendando que esse primeiro momento

    dessa apresentao linear funcione como um lembrete sobre o contexto no qual

    toda a discusso se insere. Seria o clima conceitual que permeia toda a reflexo.

    Fica claro que a tentativa de sistematizar, sob a forma de livro, um pensamento

    processual e relacional 2pode ser frustrada.

    Faremos, depois, um percurso, com o auxlio de uma espcie de cmera de

    observao, que se inicia com um olhar utilizando uma grande angular, para

    discutir as macro relaes do artista com a cultura. Aos poucos nos

    aproximaremos do sujeito em seu espao e tempo, e das questes relativas

    memria, percepo e recursos de criao. Em seguida, fazendo uso de lentes

    macro, tentaremos compreender os modos de conexo das redes do

    pensamento em criao. So, assim, oferecidas condies de chegar, em tomconclusivo, a algumas reflexes sobre autoria, a partir desse olhar interno ao

    percurso da criao; sobre relaes entre obra e processo, a partir dessa

    perspectiva processual, e sobre a crtica de processo.

    2 O livro Caminhos de Kiarostami (2004) de Jean-Claude Bernadet um exemplo do encontro de uma soluoextremamente interessante.

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    CRIAO COMO REDE

    As reflexes aqui desenvolvidas partem do conceito de criao como rede em

    processo. Para compreender as implicaes de adotar essa perspectiva ao se

    pensar a criao artstica, discutiremos os conceitos que vo nos guiar. Os pilaresdesse pensamento aparecero, de um modo mais ou menos sistemtico, ao longo

    do livro; no entanto, acredito na relevncia de passar por essas noes, nesse

    primeiro momento. Coloc-las lado a lado cumprir a funo de nos levar a uma

    espcie de imerso em um universo conceitual.

    Comecemos essa apresentao proposta, com toda a dificuldade de flagrar pontos

    iniciais em discusses dessa natureza. A criao artstica marcada por suadinamicidade que nos pe, portanto, em contato com um ambiente que se

    caracteriza pela flexibilidade, no fixidez, mobilidade e plasticidade.

    Recorro propositalmente a aparentes sinnimos para conseguir nos transportar

    para esse ambiente dos inmeros e infindveis cortes, substituies, adies ou

    deslocamentos. Isso nos leva, por exemplo, a diferentes possibilidades de obra

    apresentadas nas sries de rascunhos, tratamentos de roteiros, esboos etc.;

    propostas de obras se modificando ao longo do processo; partes de uma obrareaparecendo em outras do prprio artista; ou ainda fatos lembrados ou livros

    lidos sendo levados para obras em construo. Uma memria criadora em

    ao que tambm deve ser vista nessa perspectiva da mobilidade: no como um

    local de armazenamento de informaes, mas um processo dinmico que se

    modifica com o tempo. Novas percepes sensveis de um olhar, que no

    conhece fixidez, impe modificaes e novas conexes, como veremos.

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    Esse percurso contnuo em permanente mobilidade nos leva ao conceito de

    inacabamento, que sustenta nossa reflexo. No se trata do no acabamento

    provocado por restries externas, como, por exemplo, a morte do artista. No

    estamos tambm enfocando, aqui, o inacabamento como opo esttica ou, como

    Jean-Claude Bernadet (2003) denomina, esttica do esboo. Aquela que, como

    lembra James Lord (1998, p.119), j era manifesta no tempo de Michelngelo: o

    carter non finito de certas obras de arte, que pode ser parte integrante do efeito

    imaginrio deliberadamente concebido e realizado pelo artista.

    Estamos falando do inacabamento intrnseco a todos os processos, em outras

    palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse - seja

    um romance, uma pea publicitria, uma escultura, um artigo cientfico ou

    jornalstico como uma possvel verso daquilo que pode vir a ser ainda

    modificado. Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe

    inerente, h sempre uma diferena entre aquilo que se concretiza e o projeto do

    artista que est por ser realizado. Sabemos que onde h qualquer possibilidade de

    variao contnua, a preciso absoluta impossvel. Nesse contexto, no possvel

    falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca,

    no fluxo da continuidade, sempre incompleta e o prprio projeto que envolve a

    produo das obras, em sua variao contnua, muda ao longo do tempo. O que

    move essa busca talvez seja a iluso do encontro da obra que satisfaa

    plenamente.

    Em conversa com James Lord, Giacometti (1998, p.27) fala desse inacabamento

    que est visceralmente associado insatisfao que o enfrentamento da

    impreciso acarreta: Durante todos esses anos expus coisas que no estavam

    terminadas (...). Mas, por outro lado, se no tivesse exposto teria parecido

    covardia, como se eu no ousasse mostrar o que tinha feito, o que no era

    verdade. o inacabamento como inevitvel fatalidade.

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    Fica claro que essa questo fazia parte do universo de indagaes de Giacometti,

    tanto que o fato de Czanne considerar suas telas como inacabadas e abandon-

    las lhe era extremamente atraente. (Lord, 1998, p. 44). Ao mesmo tempo, durante

    a produo do retrato de James Lord, Giacometti diz, em vrios momentos, que

    ainda vai continuar trabalhando, porque a obra no abandonada enquanto h

    chance (Lord, 1998, p.124). O inevitvel inacabamento impulsionador.

    O objeto que est sendo criado, se tomado nessa viso temporal, mutvel;

    construir esse objeto, que permanentemente flui no tempo, implica ser algo que

    tende a escapar. Transitoriedade acarreta inacessibilidade (Colapietro,

    2004). A relao entre o que se tem e o que se quer reverte-se em contnuos

    gestos aproximativos - adequaes que buscam a sempre inatingvel completude.

    O artista lida com sua obra em estado de contnuo inacabamento, o que

    experienciado como insatisfao. No entanto, a incompletude traz consigo tambm

    valor dinmico, na medida em que gera busca que se materializa nesse processo

    aproximativo, na construo de uma obra especfica e na criao de outras obras,

    mais outras e mais outras. O objeto dito acabado pertence, portanto, a um

    processo inacabado. No se trata de uma desvalorizao da obra entregue

    ao pblico, mas da dessacralizao dessa como final e nica forma

    possvel.

    Essas afirmaes baseiam-se nos dados pblicos oferecidos pelos prprios artistas,

    como verses diversas de um livro em edies diferentes, filmes com mais de umamontagem, citaes clssicas como a de Carlyle, sempre lembrada por Borges, que

    diz que publicamos para no passar a vida corrigindo. H ainda histrias como

    aquela atribuda a Bonnard que, quando j era um pintor famoso, entrava

    escondido nos museus, com pincis e tintas, e quando os guardas no estavam

    olhando, retocava os prprios quadros. Ao mesmo tempo, acompanhar o processo

    de um artista nos permite, ou mais ainda, nos obriga a enfrentar documentos

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    privados que mostram um objeto literrio, por exemplo, recebendo ajustes dia

    aps dia, mesmo depois de entregue ao editor. H tambm inmeras anotaes

    que registram o ponto final do romance, seguidas de novos apontamentos, falando

    de problemas ou insatisfaes em relao ao texto que geram, por sua vez,

    modificaes. Seguindo essa lgica, o que nos d a certeza de que se o livro fosse

    entregue, digamos, um ms depois, no teria alteraes e seria, portanto,

    diferente daquele que est nas livrarias?

    Assim como Morin (2000, p. 39) constata que na cincia uma teoria cientfica tem

    sempre incerteza de seus resultados, ainda que possa fundar-se em dados que

    sejam certos, o artista tambm enfrenta um processo que no permite previso e

    predio, em outras palavras, opera no universo da incerteza, da

    mutabilidade, da impreciso e do inacabamento.

    Isso fica extremamente claro ao lermos cartas ou dirios que so mantidos por

    artistas, ao longo de suas vidas ou durante a construo de uma obra. Esses

    documentos registram essas incertezas como uma espcie de permanente msica

    de fundo das anotaes, relatos e notcias. James Lord (1998, p. 120), que foi

    modelo e crtico do processo de Giacometti durante algumas semanas, observa

    esse clima com acuidade, quando diz que participou de sua luta e de seus esforos

    para atingir o inatingvel.

    A incompletude do processo destaca tambm a sobrevivncia de qualquer

    elemento a partir da inter-relao com outros. Observamos que uma anotao secompleta em outra ou em uma fala de um personagem; um problema no

    desenvolvimento da obra se completa em leituras ou conversas com amigos etc.

    Essa viso do processo de criao nos coloca em pleno campo relacional, sem

    vocao para o isolamento de seus componentes, exigindo, portanto, permanente

    ateno a contextualizaes e ativao das relaes que o mantm como sistema

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    complexo. Discutiremos essas questes com mais vagar, a seguir, ao

    apresentarmos o conceito de rede.

    O estado de dinamicidade organiza-se na confluncia de tendncias e acasos,

    tendncias essas que direcionam, de algum modo, as aes, nesse universo de

    vagueza e impreciso. So rumos vagos que orientam, como condutores

    maleveis, o processo de construo das obras. O movimento dialtico entre

    rumo e incerteza gera trabalho, que se caracteriza como uma busca de

    algo que est por ser descoberto uma aventura em direo ao quase

    desconhecido. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do processo vai levando a

    determinadas tomadas de deciso que propiciam a formao de linhas de fora.

    Essas passam a sustentar as obras em construo e balizam, de algum modo, as

    avaliaes do artista. Os percursos apresentam tendncias que podem ser

    observadas como atratores, que funcionam como uma espcie de campo

    gravitacional e indicam a possibilidade que determinados eventos ocorram

    (cf.Bunge, 2002).

    Nesse percurso, tendncias se cruzam com o acidental, causando possveis

    modificaes de rumo. Essa interveno do acaso observada nos relatos dos

    artistas dos imprevistos externos e internos ao processo, que so enfrentados de

    diferentes maneiras e recebem tratamentos diversos; podem, porm, ser

    responsveis por interessantes descobertas. Aceitar a interveno do imprevisto

    implica compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de modo

    diferente daquele que fez; ao assumir que h concretizaes alternativas, admite-se que outras obras teriam sido possveis. Chegamos, desse modo,

    possibilidade de que mais de uma obra satisfaa as tendncias de um processo.

    Retomando a dinamicidade e a incerteza do percurso criador, no h segurana

    que as alteraes levem sempre melhora dos objetos em construo, da as idas

    e vindas, retomadas, adequaes, possibilidades de obra aguardando novas

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    avaliaes, reaproveitamentos e novas rejeies. Alguns dos documentos dos

    processos, com os quais lidamos, so testemunhas dessa caracterstica da criao:

    so guardados rascunhos, anotaes ou esboos, ou seja, tentativas de obras que

    podem um dia vir a ser recuperadas. Os atos de rejeitar, adequar ou reaproveitar

    so permeados por critrios, que nos interessam conhecer, e refletem modos de

    desenvolvimento de pensamento, que nos instigam a compreender, descrever e

    nomear. Diante dessas aes mltiplas e diversas, fica bastante claro que lidamos

    com um tempo da criao artstica em uma perspectiva no linear, como veremos

    mais adiante.

    Essa no linearidade nos leva ao conceito de rede, embora este abarque muitas

    outras questes. Pierre Musso (2004) fala da exploso deste conceito que, como j

    mencionamos na apresentao, parece ser um novo paradigma ligado a um

    pensamento das relaes. Para nosso interesse especfico, muito nos atrai a

    associao de rede a um modo de pensamento. De maneira especular, precisamos

    construir uma rede para falarmos de uma rede em construo. interessante,

    portanto, destacar que essas reflexes que estamos desenvolvendo tm esse

    conceito de rede como norteador, em mo dupla. Queremos ressaltar que, por um

    lado, todos os pesquisadores que se interessam pela compreenso dos processos

    de criao esto falando de uma rede que se constri e esses pensadores da

    criao, por sua vez, necessitam de uma abordagem que esteja tambm nesse

    paradigma relacional. O modo de apreenso de um pensamento em rede s pode

    se dar tambm em rede. Da retomarmos, em muitos momentos, conceitos e

    citaes que precisam ser revistos em novos ambientes, gerando outras conexes.

    Musso (2004, p. 31) prope uma definio de rede que, embora faa permanente

    referncia a estruturas (que nos parecem ser muito mais associveis a

    paradigmas de sistemas fechados), nos oferece vrias portas de entrada profcuas

    para esse debate. Vamos aos aspectos ressaltados pelo autor que, acredito, nos

    auxiliaro a caracterizar as redes da criao. Musso fala em elementos de

    17

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    interao, interconexo instvel no tempo e variabilidade de acordo com regras de

    funcionamento.

    Os elementos de interao so os picos ou ns da rede, ligados entre si:

    um conjunto instvel e definido em um espao de trs dimenses. Morin

    (2002b, p. 72) descreve interaes, em outro contexto, como aes recprocas que

    modificam o comportamento ou a natureza dos elementos envolvidos; supem

    condies de encontro, agitao, turbulncia e tornam-se, em certas condies,

    inter-relaes, associaes, combinaes, comunicaes etc, ou seja, do origem a

    fenmenos de organizao. Morin fala tambm em jogo de interaes, cujas

    regras podem parecer como as leis da natureza. H algo nas propriedades

    associadas interatividade, em ambas as definies, que nos parece ser

    importante de se destacar para compreendermos as conexes da rede da criao:

    influncia mtua, algo agindo sobre outra coisa e algo sendo afetado por outros

    elementos.

    Ao adotarmos o paradigma da rede estamos pensando o ambiente das

    interaes, dos laos, da interconectividade, dos nexos e das relaes,

    que se opem claramente quele apoiado em segmentaes e

    disjunes. Estamos assim em plena tentativa de lidar com a complexidade e as

    conseqncias de enfrentar esse desafio. Por que estamos desarmados perante a

    complexidade?, pergunta-se Morin (2002a, p. 11). Ele mesmo responde: porque

    nossa educao nos ensinou a separar e isolar as coisas. Separamos seus objetos

    de seus contextos, separamos a realidade em disciplinas compartimentadas umasdas outras. A realidade, no entanto, feita de laos e interaes, e nosso

    conhecimento incapaz de perceber o complexus aquilo que tecido em

    conjunto. Temos, segundo Morin, um velho paradigma que nos obriga a disjuntar,

    a simplificar, a reduzir sem poder conceber a complexidade e buscamos outro

    capaz de reunir, de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de

    reconhecer o singular, o individual, o concreto (voltaremos a essa discusso mais

    18

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    adiante). Assim como ecologistas que estudam as interaes formando sistemas

    (Morin, 2000), estamos preocupados com as interaes, tanto internas como

    externas aos processos, responsveis pela construo de obras, pois so

    sistemas abertos que interagem tambm com o meio ambiente. Coloca-se

    assim em crise o conhecimento do objeto fechado, esttico e isolado.

    Kastrup (2004, p. 81), referindo-se ao principio da conexo3, fala que essas

    interaes da rede se do por contato, contgio mtuo ou aliana, crescendo por

    todos os lados e em todas as direes. importante pensarmos nessa expanso

    do pensamento criador, no nosso caso, sendo ativada por elementos exteriores e

    interiores ao sistema em construo. Essas conexes podem ser responsveis pela

    inventividade, como veremos.

    Tomemos a imagem de protenas interagindo no fermento, o que talvez nos auxilie

    a visualizar essa ao de um elemento sobre o outro, que queremos enfatizar.

    interessante observar a conseqncia dessa interao sob a forma de ramificao

    de novas possibilidades uma ao geradora.

    Mapa de interaes protena-protena4

    3A autora estabelece dilogo com o pensamento de Gilles Deleuze e Flix Guattari. No nos aprofundaremosnessas relaes, aqui, embora, sejam extremamente instigantes para essa discusso.

    4http://www.cnd.edu/~networks/cell

    19

    http://www.cnd.edu/~networks/cellhttp://www.cnd.edu/~networks/cellhttp://www.cnd.edu/~networks/cell
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    Hawoong Jeong

    O pensamento em criao manifesta-se, em muitos momentos, por meios bastante

    semelhantes a esse que aqui vemos. Uma conversa com um amigo, uma leitura,

    um objeto encontrado ou at mesmo um novo olhar para a obra em

    construo pode gerar esse mesma reao: vrias novas possibilidades que podem

    ser levadas adiante ou no. As interaes so muitas vezes responsveis por essa

    proliferao de novos caminhos: provocam uma espcie de pausa no fluxo da

    continuidade, um olhar retroativo e avaliaes, que geram uma rede de

    possibilidades de desenvolvimento da obra. Essas possibilidades levam a selees

    e ao conseqente estabelecimento de critrios.

    A interatividade , portanto, uma das propriedades da rede indispensvel para

    falarmos dos modos de desenvolvimento de um pensamento em criao. Em

    nossas preocupaes relativas construo dos objetos artsticos como

    objetos de comunicao, essas interaes devem ser especialmente

    observadas, pois as indagaes recaem sobre esse pensamento, que se constri

    nas inter-relaes, ou seja, como chamamos ateno acima, o processo de criao

    est localizado no campo relacional. importante pensarmos no ato criador como

    um processo inferencial,no qual toda ao, que d forma ao novo sistema, est

    relacionada a outras aes de igual relevncia, ao se pensar o processo como um

    todo. Estamos, assim, tomando inferncia como um modo de desenvolvimento do

    pensamento ou obteno de conhecimento novo a partir da considerao de

    questes j, de algum modo, conhecidas. O destaque est na viso evolutiva dopensamento que enfatiza as relaes entre elementos j existentes. Sob esse

    ponto de vista, qualquer momento do processo simultaneamente gerado e

    gerador (Colapietro, 2003) e a regresso e a progresso so infinitas. Foge-se,

    assim, da busca pela origem da obra e relativiza-se a noo de concluso. Cada

    verso contm, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final

    representa, de forma potencial, tambm, apenas um dos momentos do processo.

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    Os artistas caem, por vezes, na tentao da busca pelo ponto de partida daquela

    obra, ao afirmar que o romance, por exemplo, nasceu de um conto, mas tambm

    de uma cena vivida, de um texto lido etc. Do mesmo modo, o artista se v diante

    da impossibilidade de determinar o ponto final absoluto, o final de um processo,

    que representaria um momento que o agrada o suficiente para poder mostrar

    publicamente (um ponto final suportvel). Ele pode j estar entrando em um novo

    processo que, de algum modo, mantm dialogo com o processo anterior, ou pode,

    tambm, retomar essa obra em outros momentos das mais diversas maneiras. Se o

    pensamento relacional, h sempre signos prvios e futuros. Esta abordagem do

    movimento criador, como uma complexa rede de inferncias, refora a

    contraposio viso da criao como uma inexplicvel revelao sem histria, ou

    seja, uma descoberta sem passado, s com um futuro glorioso que a obra

    materializa.

    Morin (2000, p. 207) enfatiza tambm os problemas acarretados pela

    especializao abstrata: extrai um objeto de seu contexto e do seu conjunto,

    rejeita os laos e as intercomunicaes com seu meio e o insere num

    compartimento, que aquele da disciplina cujas fronteiras destroem

    arbitrariamente a sistematicidade (a relao de uma parte com o todo) e a

    multidimensionalidade dos fenmenos. Este pensamento, segundo o autor,

    revela a inanidade do reducionismo que dissolve os sistemas para considerar

    somente suas partes, e do atomismo que concebe seus objetos de maneira

    isolada; e produz o restabelecimento dos conjuntos constitudos a partir deinteraes, retroaes, inter-retroaes, que constituem um tecido complexo.

    Da a necessidade de se pensar a criao artstica no contexto da complexidade,

    romper o isolamento dos objetos ou sistemas, impedindo sua descontextualizao

    e ativar as relaes que os mantm como sistemas complexos. Uma deciso do

    artista tomada em determinado momento tem relao com outras anteriores e

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    posteriores. Do mesmo modo, a obra vai se desenvolvendo por meio de uma srie

    de associaes ou estabelecimento de relaes. A anotao no guardanapo do

    bar no nada mais, muitas vezes, do que a tentativa de no deixar uma

    associao se perder.

    Vale ressaltar que falamos dessas relaes no contexto da no-linearidade. Daniel

    Ferrer (1994), em seu texto La toque de Clementis, ressalta a orientao dupla

    da gnese: movimentos prospectivo e retroativo. No se avana sem interpretar e

    avaliar o que j foi produzido. Essa dicotomia, no entanto, no suficiente para

    tratarmos da complexidade dos processos criativos. Assumindo o conceito de rede,

    essa dicotomia naturalmente superada: abrange-se a simultaneidade de aes e

    a ausncia de hierarquia, e intenso estabelecimento de nexos.

    O critico, ao estabelecer nexos a partir do material estudado, procura refazer e

    compreender a rede do pensamento do artista. Vejamos um exemplo que talvez

    esclarea essa conexo entre os diferentes documentos do processo.

    Daniel Senise 5 relata, em determinado momento de seus cadernos, um sonho que

    teve:

    O avio comeou a fazer as manobras de aproximao sobre um mar cheio de

    pequenos barcos com cabine.

    Nesse momento Senise adiciona certas imagens. Vejamos essa anotao:

    5Estudei os dezessete cadernos de anotaes de Daniel Senise, produzidos no perodo de 1988 a 1999.

    22

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    Mais adiante no relato, o sonho transforma o avio em bumerangue:

    O avio ia fazer um pouso de emergncia na gua. J no era mais um avio e

    sim duas longas asas tipo bumerangue.

    Em inmeras outras pginas de seus cadernos, encontramos desenhos que fazem

    referncia verbal/visual a bumerangues. Podemos perceber que no h mais o

    objeto, mas seu rastro ou movimento.

    bumerangues 11-94 Rio

    fazer percurso c/ pregos

    precisa ser muito grande

    calcular tam.dos pregos

    proporcional com o tam. da tela

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    Em outras pginas, encontramos anotaes como: a minha paisagem no contm

    nada alm de restos. um sto com objetos pessoais (...) restos de memria,

    de cultura que vieram parar na minha praia-sto. Ou ainda: Sudrio e

    memria no so dois temas, mas dois plos que estabelecem uma relao da

    pintura (plstica, portanto fsica) com uma questo humana (e memria). O

    sudrio o registro de um evento. A pintura como sudrio ao mesmo tempo a

    representao e o objeto e Uma questo que vou desenvolver no meu trabalho

    a do sudrio.

    Encontramos tambm em seus documentos imagens do processo de

    enferrujamento de pregos para construo de algumas de suas obras:

    PROCESSO DE ENFERRUJAMENTO

    E observamos a sua srie de obras chamada Bumerangue

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    Srie Bumerangue (1994)

    Ao relacionar esses dados oferecidos pelos documentos, percebemos que o

    conceito de memria, com o qual o artista lida, ganha complexidade na srie

    Bumerangue, medida que os objetos do sonho so apagados como tal e deixam

    suas sobras no movimento, ou seja, fica a memria do objeto, como na imagem

    do sudrio. Ao mesmo tempo, o prego, quando enferrujado, levado para a tela

    como memria de sua materialidade. Ao relacionar diferentes momentos dos

    cadernos, registros do processo de enferrujamento e obras, chegamos a alguns

    dos procedimentos adotados por esse artista, rumo a suas telas, abordando a

    memria por meio de resduos: memria do bumerangue em seus rastros e

    memria do prego na ferrugem.

    Esse exemplo nos fala da interatividade de gestos do artista, registradas em seus

    documentos, reativada pelo olhar do critico; no entanto, a interatividade ao longo

    da criao artstica observada em mbitos diversos. No se pode deixar de levar

    em conta, por exemplo, as interaes entre indivduos como um dos motores do

    desenvolvimento do pensamento: conversas com amigos, aulas com mestres

    respeitados ou opinies de leitores ou espectadores particulares. Uso o termo

    leitor particular assim como Cortazar (1991) define algumas pessoas, escolhidas

    pelo artista, para terem um acesso preliminar s obras, recm-terminadas ou

    ainda em processo. Uma relao que envolve confiana. As obras de outros

    artistas e cientistas travam tambm contnuos dilogos com criaes em processo

    e explicitam assim conversas com a histria da arte e da cincia. Essas interaes

    so sempre instigantes e provocam reaes.

    Devemos pensar, portanto, a obra em criao como um sistema aberto que

    troca informaes com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interaes

    envolvem tambm as relaes entre espao e tempo social e individual, em outras

    25

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    palavras, envolvem as relaes do artista com a cultura, na qual est inserido e

    com aquelas que ele sai em busca. A criao alimenta-se e troca informaes com

    seu entorno em sentido bastante amplo. Damos destaque, desse modo, aos

    aspectos comunicativos da criao artstica.

    Voltando definio de rede, Musso (2004, p.31) fala de sua interconexo instvel

    no tempo: a gnese de uma rede (de um elemento de uma rede) e sua transio

    de uma rede simples para outra mais complexa so consubstanciais a sua

    definio. A estrutura da rede inclui sua dinmica. Arnheim (1976, p.149)

    percebe algo semelhante ao acompanhar os esboos de Picasso para Guernica: a

    combinao de crescimento e execuo, no processo criativo, leva a um

    procedimento que no pode ser descrito como a elaborao sucessiva de

    fragmentos ou partes, mas sim a elaborao de entidades particulares, cada uma

    das quais atua dialeticamente sobre a outra. Uma interao de interferncias,

    modificaes, restries e compensaes conduz gradualmente complexidade do

    todo da composio.

    James Lord (1998, p.39) percebe essa mesma relao do trabalho com um

    fragmento e a conseqente alterao do todo do retrato que Giacometti estava

    fazendo. Quando finalmente decidiu parar no fim de um dia de trabalho, a

    pintura tinha feito um progresso real, bastante perceptvel, ainda que s a cabea

    tivesse mudado. Ela estava agora mais reta e mais delineada, com uma sensao

    de perspectiva e de volume marcada. Nesse caso, o acompanhamento do

    processo feito por J. Lord que nos oferece essa informao, pois no h esboos,como no caso de Picasso e Arnheim. O estudo integrado obra, isto , as

    tentativas de obra, quando no so bem avaliadas pelo artista, tomam o carter

    de esboos ou estudos.

    Sob esse prisma, interessante pensar que a rede da criao se define em seu

    prprio processo de expanso: so as relaes que vo sendo

    26

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    estabelecidas, durante o processo, que constituem a obra. O artista cria

    um sistema, a partir de determinadas caractersticas que vai atribuindo em um

    processo de apropriaes, transformaes e ajustes, que vai ganhando

    complexidade medida que novas relaes vo sendo estabelecidas. O que

    buscamos a compreenso da tessitura desse movimento, para assim entrar na

    complexidade do processo.

    Quanto obedincia a regras de funcionamento da rede, mencionada por Musso,

    diante do que vimos discutindo, podemos falar no processo de criao artstica

    como uma rede dinmica guiada pela tendencialidade. As interaes so norteadas

    por tendncias, rumos ou desejos vagos. O artista, impulsionado a vencer o

    desafio, sai em busca da satisfao de sua necessidade, seduzido pela

    concretizao desse desejo que, por ser operante, o leva ao, ou seja,

    construo de suas obras. A tendncia indefinida, mas o artista fiel a esta

    vagueza. O trabalho caminha para um maior discernimento daquilo que se quer

    elaborar. No h tendncias fixas, mas h aquelas historicamente manifestas, em

    determinados momentos da obra de um artista, que se desenvolvem e se

    modificam.

    A leitura dos dirios de Paul Klee (1990), por exemplo, nos coloca diante de sua

    incansvel busca pela cor e tonalidade, constatando, de modo angustiado, que

    tinha em seus olhos e em suas mos s linhas. James Lord (1998) relata a

    tentativa incessante de Giacometti de reproduzir ou representar o que via e suas

    frustraes diante desse desafio. Temos, nesses dois casos, a descrio da grandebusca desses dois artistas plsticos onde a percepo visual, como vemos, tem um

    papel primordial no grande projeto ou tendncia dos dois processos. Fica bastante

    claro que, ao tentarmos compreender o que significa ver cor e no linhas e um

    modo especfico de ver os objetos do mundo, estamos entrando nesse universo

    das vagas tendncias pessoais.

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    De modo semelhante, o videomaker Bill Viola (1998, p 148) diz, em uma de

    suas anotaes, que tem estado bastante alerta em seu trabalho ao fato de que a

    cmera a representao de um ponto de vista, ou seja, um ponto de conscincia.

    A relao assim estabelecida: Ponto de vista, localizao perceptiva no

    espao, pode ser ponto de conscincia. Esse parece ser um dos

    direcionamentos de seus trabalhos.

    Para ns, observadores de processos, a vagueza desses direcionamentos ganha

    algum grau de definio e delimitao, ao estabelecermos relaes entre os dados

    oferecidos pelos documentos e as obras, assim como foram entregues ao pblico.

    Voltando interatividade que mantm as redes em contnua expanso, pensemos

    nas interaes responsveis pela gerao de novas idias ou

    possibilidades de obras. O processo inferencial destaca as relaes, como

    vimos; no entanto, para compreender melhor o ato criador, interessa-nos a

    natureza destes vnculos, isto , do que so feitas as inferncias, suas tessituras.

    De um modo geral, poderamos observar essas inferncias sob o ponto de vista da

    transformao (ou transformaes) que opera(m), na medida em que as

    interaes, como aes recprocas, modificam o comportamento ou a natureza

    dos elementos envolvidos (Morin, 2002b, p.72). Essas modificaes nos levam a

    um novo campo semntico que nos parece ser de grande importncia: dar nova

    forma, ou feio; tornar diferente do que era; mudar, alterar, modificar,

    transfigurar, converter, metamorfosear. Essa caracterstica das interaes vai

    guiar muito da nossa discusso, se pudermos pensar, de modo abrangente, queestaremos nos aproximando da maneira como essas transformaes acontecem:

    nos modos como estas operam na percepo do artista, nas estratgias da

    memria, nos procedimentos artsticos agindo sobre seus materiais e na fora da

    imaginao. Estamos, assim, nos instrumentando para observar sujeitos em ao

    e autorias se constituindo.

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    A natureza inferencial do processo, associada a seu aspecto

    transformador, nos remete ao raciocnio responsvel por idias novas ou

    pela formulao de hipteses, diante de problemas enfrentados (abduo, em

    termos peirceanos). A criao como processo relacional mostra que os elementos

    aparentemente dispersos esto interligados; j a ao transformadora envolve o

    modo como um elemento inferido atado a outro. Os elementos selecionados j

    existiam, a inovao est no modo como so colocados juntos, ou seja, na

    maneira como so transformados. A inovao da inferncia encontra-se na

    singularidade da transformao: algumas dessas combinaes so inusitadas. A

    atividade esttica tem o poder de reunir o mundo disperso, lembra Bakhtin (1992).

    As construes de novas realidades, pelas quais o processo criador responsvel,

    se do, portanto, por meio de um percurso de transformaes, que envolve

    selees e combinaes.

    importante ressaltar que h uma confluncia de fatores influenciando estas

    transformaes. O produto em construo um sistema aberto que troca

    informaes com seu meio ambiente, como j discutimos. Com auxlio de Morin

    (1998), constata-se que cultura e sociedade esto em relao geradora mtua.

    Ao discutir essa relao, no entanto, a sociologia do conhecimento, para Morin, no

    pode apenas detectar as limitaes sociais, culturais e histricas que imobilizam e

    aprisionam o conhecimento imprinting cultural -, mas tambm considerar as

    condies que o mobilizam ou liberam, isto , as condies que permitem a

    autonomia e as inovaes do pensamento. Por um lado, o imprinting, anormalizao, a invarincia, a reproduo; por outro lado, os enfraquecimentos

    locais do imprinting, as brechas na normalizao, o surgimento dos desvios, a

    evoluo do conhecimento, as modificaes nas estruturas de reproduo (Morin,

    1998, p. 37/38). O privilgio de encontrar brechas e de desenvolver um

    pensamento responsvel pelo desvio de normas no se restringe, sob esse ponto

    de vista, ao artista.

    29

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    Entramos assim na discusso sobre a novidade nos processos de produo.

    Questes relativas inovao nos levam sempre ao campo da arte; por esse

    motivo, o termo criao radicalmente questionado quando aplicado aos processos

    de comunicao social, por exemplo. Parece que s a arte digna desta

    qualificao. Acreditamos que muito desse ponto de vista se nutre de um conceito

    de criao que toma como referncia a viso romntica do artista, como aquele

    que concebe obras a partir de sopros de inspirao. No entanto, essa viso que

    estamos aqui discutindo, reforada pelos estudos genticos, nos coloca diante da

    criao como resultado de trabalho, que abarca o raciocnio responsvel pela

    introduo de idias novas, que abarca, por sua vez, essa perspectiva de

    transformao. Acreditamos que, desse modo, pode-se falar que h criao em um

    espectro maior dos processos de produo, sejam eles concretizados nas artes ou

    em qualquer outro meio de comunicao. O que difere, entre muitos aspectos, a

    tendncia do processo, a natureza dos elementos conectados e os recursos

    utilizados para tais associaes.

    Um outro aspecto que envolve a criao que a continuidade do processo, aliada

    a sua natureza de busca e de descoberta, nos leva a encontrar formulaes

    novas, trazidas por este elemento sensorial do pensamento, ao longo de todo o

    processo. Sob esta perspectiva, todos os registros deixados pelo artista so

    importantes, na medida em que podem oferecer informaes significativas sobre o

    ato criador. A obra no fruto de uma grande idia localizada em momentos

    iniciais do processo, mas est espalhada pelo percurso. H criao em dirios,

    anotaes e rascunhos.

    Quais as conseqncias de se abordar o processo de criao sob esta perspectiva

    que acabamos de apresentar? Tomamos como plataforma para nossos saltos

    interpretativos o conceito de rede em processo associado dinamicidade e

    30

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    transformao. Para nos aproximar dessa rede em construo, devemos levar em

    conta a condio de inacabamento no campo da incerteza, a multiplicidade de

    interaes e a tenso entre tendncias e acasos.

    Em uma critica de processo, temos que conseguir reativar o movimento da rede.

    Para tal empreitada, devemos abrir mo de pressupostos e hbitos que, outras

    posturas, preocupadas com os objetos estticos, adotam. Nada mas est

    sendo. A forma nominal associada a processos o gerndio.

    Antes de mais nada, temos que nos entregar dedicada e aguada observao

    dos documentos com os quais lidamos e tirar os procedimentos de criao, que

    buscamos, de dentro deles. Para que isso acontea devemos nos apropriar de um

    olhar interpretativo relacional, que seja capaz de superar nossas tendncias para a

    segmentao das anlises e que se habilite a estabelecer nexos e nome-los. As

    descries de segmentos isolados devem, assim, abrir espao para interpretaes

    das relaes que os conectam. Narrar o que acontece de um gesto para outro no

    leva tambm compreenso do movimento. Queremos entender como se constri

    o objeto artstico e no recontar como se deu a seqncia dos eventos ou das

    aes do artista. Estes eventos, por sua vez, no podem ser tomados como

    etapas, em uma perspectiva linear, mas como ns ou picos da rede, que podem

    ser retomados a qualquer momento pelo artista. Nossa leitura deve ser capaz de

    interconectar esses pontos e localiz-los em um corpo terico formado por

    conceitos organicamente inter-relacionados, como falvamos na apresentao.

    Esse movimento do olhar do crtico deve reverter em uma maior compreensosobre os modos de desenvolvimento de obras e, conseqentemente, sobre os

    procedimentos de um pensamento em criao.

    Devemos aprender a lidar com a criao na perspectiva temporal onde tudo se d

    na continuidade, ao longo do tempo no universo do inacabamento. Para tal,

    precisamos estar alertas sua insero na histria e na cultura, compreender sua

    31

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    relao com o futuro e lidar com a impossibilidade de se definir incio e fim, entre

    tantas outras questes. A continuidade no cega, mas tem tendncias, que

    enfrentam a interveno de acasos. Buscamos a compreenso dessas tendncias

    (o que os artistas querem de suas obras) e seus modos de ao (como vo

    manuseando e amoldando seus desejos e seus materiais). Na contnua

    transformao, uma coisa passa a ser outra. Olhando para o processo em uma

    perspectiva ampla, que tipo de movimento est sendo estabelecido? Do que so

    feitas as tendncias desse movimento?

    Para tais respostas, no se pode perder de vista um outro ponto de extrema

    importncia: as relaes entre geral e especfico. O pensamento da

    complexidade, como vimos, deve estar apto a reunir, contextualizar, globalizar; no

    entanto deve estar apto tambm para reconhecer o singular, o individual, o

    concreto. Destacamos dois aspectos relativos a esse tema relevantes para os

    crticos de processo. Ao caminhar em direo a uma teorizao sobre processos de

    criao, em uma perspectiva mais geral, estamos em pleno campo da globalizao,

    tomando como referncia para tais generalizaes os documentos singulares e

    individuais de uma grande multiplicidade de artistas. Sob esse ponto de vista,

    reunir a diversidade singular possibilita termos um olhar de natureza mais geral: a

    generalizao , assim, alimentada pelos processos especficos. Ao mesmo tempo,

    as discusses sobre caractersticas que so gerais a todos os processos devem

    contemplar ou abrir espao para compreender aquilo que especfico de cada

    sujeito que est envolvido em percursos criativos. Os estudos sobre a criao se

    estabelecem, sob esse prisma, nessa inter-relao do geral e do especfico, isto ,sem perder de vista essas duas dimenses.

    Munidos desse universo conceitual, que sustenta o modo como abordamos a

    criao, comeamos nosso percurso para conhecer mais de perto essa complexa

    rede em construo. Observamos as macro-relaes do artista com a

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    cultura e, aos poucos, nos aproximaremos do sujeito em seu espao de

    transformaes.

    RUAS E ESCRITRIOS

    Para compreender o tempo e o espao do processo criativo, falemos das redes

    culturais. Morin (1998) oferece um caminho interessante para observamos o artista

    inserido, inevitavelmente, na efervescncia da cultura, onde h intensidade e

    multiplicidade de trocas e confrontos entre opinies, idias e concepes. As

    inovaes do pensamento, segundo o autor, s podem ser introduzidas por este

    calor cultural, j que a existncia de uma vida cultural e intelectual dialgica, na

    qual convive uma grande pluralidade de pontos de vista, possibilita o intercmbio

    de idias, que produz enfraquecimento dos dogmatismos e normalizaes e o

    conseqente crescimento do pensamento. A dialgica cultural favorece o calor

    cultural que, por sua vez, a propicia. H uma relao recproca de causa e efeito

    entre o enfraquecimento do imprinting (normalizaes), a atividade dialgica e a

    possibilidade de expresso de desvios, que so os modos de evoluo inovadora,

    reconhecidos e saudados como originalidade.

    nesse ambiente cultural que os documentos de processo e obras, que chegam as

    nossas mos, esto inseridos. Todos os processos de criao so parte dessa

    efervescente atividade dialgica, que atua nas brechas - nas tentativas de

    expresso de desvios proporcionados e, ao mesmo tempo, responsveis por esse

    clima em ebulio. De modo semelhante, Colapietro (1989) discute, sob o ponto

    de vista semitico, o sujeito como um ser histrico e concreto, culturalmente

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    sobre-determinado, inserido em uma rede de relaes. Ns estamos sempre j no

    meio de outras pessoas e de outros significados; nossa funo definida, ao

    menos parcialmente, em termos de nosso tempo e espao.

    Vale ressaltar que Morin discute essa turbulncia presente em todas as culturas,

    sem deixar de destacar algumas onde o calor mais intenso, como as culturas da

    Amrica Latina. Trata-se, portanto, de um aspecto relevante, ao discutirmos os

    diversos processos de criao como parte e, ao mesmo tempo, responsveis por

    essa efervescncia cultural.

    Tendo essas questes postas, nossas indagaes recaem sobre como os processos

    criativos interagem com a cultura. Como se constri a obra nesse contexto de

    intensas interaes? Com quem dialoga, de que modo, para qu? Essas so

    algumas perguntas que fazemos ao pensar no tempo e no espao da criao. Isto

    nos leva a no poder discutir esses processos de modo descontextualizado, mas

    imersos nessa atmosfera. De modo mais especfico, isto nos leva a acompanhar os

    modos como se travam as interaes com a cultura.

    Para que haja organizao, na macro-estrutura da cultura, segundo Morin,

    preciso que haja interaes; para que haja essas conexes so necessrios

    encontros; e para que haja encontros preciso agitao, turbulncia. Isso nos

    leva a fazer uma relao da atmosfera cultural descrita por Morin, com o

    pensamento em criao que age de modo bastante similar. O acompanhamento

    de processos de criao nos mostra que a efervescncia cultural incita o artista. Oprofundo comprometimento com as obras em construo o pe em condies

    propcias para encontros nessa turbulncia cultural. Os documentos registram

    muitos momentos de intensidade, nos quais relaes ficam claras: ele tudo olha,

    recolhe o que possa parecer de interesse, acolhe e rejeita, faz montagens,

    organiza, idias se associam, formas alternativas proliferam e pesquisas integram

    a obra em construo. Enfim, um turbilho de possibilidades interativas.

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    Imerso e sobre-determinado pela sua cultura (que por seu estado de efervescncia

    possibilita o encontro de brechas para a manifestao de desvios inovadores) e

    dialogando com outras culturas, est o artista em criao. Ele interage com seu

    entorno, sendo que a obra, esse sistema aberto em construo, age como

    detonadora de uma multiplicidade de conexes. Estamos falando da tendncia do

    processo em seu aspecto social: o percurso criador alimenta-se do outro, visto de

    modo bastante geral.

    Alguns documentos dos artistas conseguem mostrar com maior facilidade os

    registros que fazem desse clima que os envolve: anotaes em suportes os mais

    diversos, dirios, correspondncia e notas de viagem, biblioteca, por exemplo, so

    ricos para observarmos como se configuram essas relaes culturais.

    Quanto ao convvio com a efervescncia cultural, interessante observar que o

    artista parece necessitar, de modo vital, desse clima. Se no o encontra, sai em

    busca, como tantos que foram para Paris nas primeiras dcadas do sculo XX. Nas

    cartas que John Cage troca com Boulez (Nattiez, 1993, p.46), de 1949 a 1954, o

    msico norte-americano fala exatamente dessa necessidade e da conseqente

    importncia da correspondncia para ele, pois um dos problemas que enfrentava

    nos Estados Unidos era a ausncia de vida intelectual, que tanto procurava. Em

    outro comentrio, compreendemos melhor o que ele quer dizer com isso: sem

    notcias suas, fico sem notcias de msica e voc sabe que amo profundamente a

    msica . interessante notar que Cage comentava, inmeras vezes, o intensodilogo com pessoas como Merce Cunnigham; naquele momento, no entanto, era

    de troca musical que ele parecia sentir falta, em um contexto dominado pela

    rotina e pelo neoclassicismo, como lembra Nattiez (1993, p.6), na apresentao

    da publicao destas cartas.

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    De modo semelhante, mais para o fim da correspondncia entre os dois msicos

    (setembro de 1962), Boulez (Nattiez,1993, p.153) faz referncia a sua ida para a

    Alemanha, como busca por outra atmosfera cultural. Ele diz no ter espao poltico

    (entre aspas) na nobre cidade-luz, que rapidamente estava se tornando cidade da

    escurido e do obscurantismo.

    Pensando, ainda, nessas interlocues, no podemos deixar de relacionar o

    fascnio por cidades em estado de maior turbulncia cultural e a atrao similar

    por locais com clima diferente e nova luminosidade. A histria da arte est repleta

    de exemplos dessas viagens em busca da luz. Os dirios de Paul Klee registram, de

    modo emocionado, sua passagem pela Tunsia, quando finalmente encontra a cor

    e torna-se pintor.

    Essa busca por ambientes culturais mais propcios s trocas ou aos dilogos parece

    estar sustentada por necessidade de interlocuo em sentido bastante amplo.

    interessante observar as referncias que alguns artistas fazem aos modos de

    driblar a experincia do processo de criao como monlogo ou percurso solitrio.O escritor John Steinbeck (1990), por exemplo, ao longo da produo de seu livro

    East of Eden, escrevia cartas, quase que diariamente, para seu amigo e editor

    Pascal Covici, que nunca lhe foram enviadas. As anotaes funcionavam, segundo

    o escritor, como um perodo de aquecimento e de articulao de idias. Mondrian,

    por sua vez, escreveu textos sob forma de dilogo, criando assim um espao

    virtual de interlocuo.

    Volto imagem de rede para compreender o modo como o artista se envolve com

    a cultura, isto , os dilogos que ele estabelece se interconectam em uma trama,

    que o insere em determinadas vertentes ou linhagens. Da a relevncia de se

    acompanhar as escolhas responsveis pela formao dessa trama.

    assim que vamos compreender a relao do artista com a tradio. Cada obra ou

    cada manuseio de determinada matria estabelece interlocues com a histria da

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    arte, da cincia e da cultura de uma maneira geral, assim como se remete ao

    futuro. Em jogos interativos, o artista e sua obra alimentam-se de tudo que os

    envolve e indiciam algumas escolhas.

    Os relatos sobre o estabelecimento dessa relao com o passado encontram

    momentos especiais em viagens de certos artistas. Paul Klee (1990) fala em seus

    dirios de viagens de estudo, para a Itlia e para a Frana, onde ele aprende seu

    lugar na histria da arte, na medida em que vai entendendo o que o atrai ou no,

    vai fazendo suas escolhas, conhecendo suas preferncias e averses e

    compreendendo, desse modo, a sua arte. Sabemos o que e quem eles admiram e,

    de algum modo, o que procuram, por meio dos comentrios, das selees,

    crticas e comparaes. Tomamos, assim, conhecimento de afinidades eletivas.

    No s no caso das artes visuais, mas especialmente para os artistas dessa rea, o

    papel dos museus de extrema relevncia no estabelecimento das conexes com

    a tradio. Henry Moore (2002, p.44/45), em uma de suas anotaes, faz um

    relato emocionado de sua primeira visita ao British Museum em 1921:tudo era fascinante um novo mundo em cada canto. Passou a primeira tarde

    com esculturas assrias, egpcias e negras. Um pouco antes do horrio de

    fechamento descobriu a sala de gravuras com o material japons: uma alegria por

    vir.

    Depois ele explica, em mais detalhes, a importncia desse museu para a histria

    de suas obras. As trs visitas semanais eram mais significativas do que o cursoque estava fazendo no The Royal College of Art. Voc tem tudo que veio atrs de

    voc; e est livre para encontrar seu caminho e, depois de um tempo, encontrar o

    que mais o atrai. E ele explicita suas escolhas: Depois da excitao inicial, eram

    a arte antiga mexicana, junto com a arte romnica europia e britnica, as mais

    significativas para mim. Admito que a arte antiga mexicana formou minha viso de

    entalhamento mais do que qualquer outra coisa que pudesse ter feito.

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    Pelas cartas de Van Gogh6, conhecemos tambm sua forte ligao com a arte de

    inmeros artistas, cujas obras so mencionadas e comentadas de modo

    aguadamente crtico. H alguns com quem os elos so mais slidos como Millet,

    Delacroix, Gainsborough, Corot, Mauve, Ruysdael, Rembrandt, Thijs Maris, Israels,

    Drer, Jules Breton, Daumier, Gustave Dor, Daubigny, Frans Hals, Velsquez,

    Rubens e Goya.

    Louise Bourgeois (2000), em entrevistas, fala da diferena de suas obras e as de

    Giacometti; de sua admirao pela coragem de Lger em transformar figuras no

    que ele queria; e da influncia decisiva de seu professor, o tapeceiro Roger

    Bissire.

    Essa insero na tradio tambm feita por meio de leituras, da a importncia

    das bibliotecas dos artistas para a compreenso da construo de suas obras.

    Encontramos nesses locais no s os livros que, por algum motivo, foram lidos e

    passaram a fazer parte das tantas camadas que envolvem os processos de criao,mas tambm os modos de apropriao dessas leituras, refletidos nas anotaes

    marginais e em outras notas. As bibliotecas integram a histria das obras em

    construo, deixando rastros da pesquisa artstica. A biblioteca de um artista, com

    todas as variaes possveis, preserva essa insero do artista na linha do tempo.

    A vasta pesquisa de Tel Ancona Lopez sobre a biblioteca de Mrio de Andrade

    prdiga de ilustraes desses dilogos. O potencial de criao guardado nas

    leituras e notas faz a pesquisadora nomear sua biblioteca como seara e celeiro.(Lopez, 2002)

    6As citaes das cartas de Van Gogh para seu irmo, Theo, tm duas referncias: o site

    http://www.vangoghgallery.com/letters e a publicao Cartas a Tho. Porto Alegre: L&PM, 2002, cujaspginas so citadas.

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    http://www.vangoghgallery.com/lettershttp://www.vangoghgallery.com/letters
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    Alguns artistas fazem desse dilogo com a tradio sua matria-prima. O Jogo da

    Parlenda, de Heloisa Prieto (2005), por exemplo, explicita o modo como as rimas

    infantis, que nos acompanham desde sempre, vm sendo construdas ao longo do

    tempo. O jogo se instaura nas relaes da tradio com as inovaes individuais e

    annimas, que so absorvidas em um processo silencioso. Alis, muito da obra

    dessa autora explicado nesse embate frtil com a histria universal da narrativa.

    Percebemos que alguns sentem necessidade dessa busca explcita pela obteno

    de conhecimento sobre questes as mais diversas temtica ou relativas a

    tcnicas de explorao de uma determinada matria, entre tantas outras. Isto

    fica claro em muitos auto-comandos que observamos em algumas anotaes: no

    esquecer de fotografar tal coisa ou preciso pesquisar mais sobre tal assunto.

    Assim essa coleta de informaes escancarada.

    Thomas Mann (2001, p. 111) oferece um timo exemplo dessa pesquisa

    bibliogrfica, enquanto escrevia Dr. Fausto. Conta que leu A lenda do Fausto:

    livros populares, teatro popular, teatro de marionete, tormentos infernais e livros

    de magia de J. Scheible (1847). Diz ter encontrado nessa mauda antologia de

    manifestaes do tema popular, todas as consideraes imaginveis sobre o tema

    do Fausto, como o ensaio de Grres, sobre o aspecto mgico da lenda, o

    exorcismo de espritos e a aliana com o Mal. Nesse caso, vemos a necessidade de

    conhecer o que j tinha sido feito sobre o tema que pretendia desenvolver em seu

    romance.

    As pesquisas passam a ser mais um meio condutor de dilogos externos, que

    trazem para dentro do processo outras vozes, muitas vezes chamadas de

    influncias. Do modo como estamos tratando esses dilogos, aqui, no vemos essa

    questo com o peso negativo da falta de originalidade, mas da diversidade de

    referncias, que constitui a trama de que feita a histria de cada artista.

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    Mrio de Andrade (1982, p.31) acalma o amigo Carlos Drummond de Andrade, que

    se dizia angustiado diante da ascendncia de Mrio sobre ele. Em ltima anlise

    tudo influncia neste mundo. Cada individuo fruto de alguma coisa. E em

    seguida aponta um aspecto importante nessa discusso, que a dificuldade de

    distino entre essas ditas influncias e a revelao do que somos: muitas vezes

    um livro revela pr gente um lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendncia,

    processo de expresso, tudo. O livro no faz que apressar a apropriao do que

    da gente.

    O escultor Isamu Noguchi (1987, p.104), de modo semelhante, ao comentar sobre

    sua obra She, diz que enquanto a estava produzindo, algum lhe disse que estava

    parecendo muito Brancusi e que ele no deveria se permitir tanta influncia. Ao

    contrrio, sentia-me lisonjeado de ser reconhecido dessa maneira a continuidade

    de seu passado uma espcie de validao. O reconhecimento da linhagem

    viabiliza julgamento e apreciao do que revolucionrio ou o que adicionado

    por aquele artista. No me sinto subordinado aos outros, nem aprisionado a meu

    passado.

    Os cadernos de Daniel Senise parecem cumprir, em determinados momentos, a

    funo de registrar algumas dessas tentativas do pintor de manter dilogo com

    outros artistas, no qual ele parece encontrar brechas nas diferenas. Diz ele:

    Estou tentando pensar nas coisas que so essenciais para o meu trabalho.Primeiro surgiu: o mistrio da imagem. Mas este princpio j me deixa claro o

    que diferencia o trabalho de Sigmar Polke i.e. o que no meu trabalho relevante

    e que no passa pelo dele. Pelo menos diretamente. No seu trabalho pode ser uma

    conseqncia. Para mim a ressonncia da imagem fundamental. [...] No entanto,

    no identifico meu trabalho com artistas como Ray Smith. Porque R.S. no discute

    a superfcie na sua poca. At Picabia o fez. Isto d ao trabalho de Ray um clima

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    de dej vu. No sendo injusto com Ray, em alguns trabalhos em madeira ele deixa

    a superfcie exposta. Acho que ele poderia explorar mais as propriedades fsicas

    do quadro. Mas neste caso no seria mais o Ray Smith. Fui ver Ed Ruscha e ele

    no se preocupa muito com esta questo da fisicalidade da pintura. E o resultado

    o mximo. Alemanha, Frana e Estados Unidos, fim do sculo XIX e sculo XX, se

    encontram na discusso sobre a superfcie da pintura.

    Senise relaciona-se tambm com a literatura e alguns filsofos; no entanto, o

    dilogo mais vigoroso aquele com a histria das artes visuais, principalmente

    com a pintura, no s como uma forma de reflexo sobre sua obra e seu papelcomo artista, mas tambm na prpria natureza de suas imagens e a escolha

    daquelas que o afetam de modo especial e passam a integrar, de alguma

    maneira, suas obras. Como exemplo disso temos uma imagem de Giotto (Morte e

    ascenso de So Francisco afresco da Capela Bardi da Igreja de Santa Cruz em

    Florena) e outra de Whistler. (Arrangement in grey and black Portrait of the

    painters mother , 1871)

    No projeto de Lina Bo Bardi do Teatro Oficina, a arquiteta faz muitas anotaes em

    seus esboos. Uma delas diz respeito, exatamente, a esses dilogos, no caso, com

    a cultura japonesa. Parece fazer um lembrete do que quer de seu projeto:

    simplicidade e clareza. Como num N japons.

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    Croqui de Lina Bo Bardi / Projeto do Teatro Oficina de So Paulo

    Como vimos, aprendemos muito da busca dos artistas nesses comentrios sobre

    seus antecessores, mas no s; a arte que est sendo praticada peloscontemporneos tambm referncia para discusses e atua como uma espcie

    de formadores de parmetros para suas prprias buscas. Thomas Mann (2001, p.

    75) relata que temia que seu Dr. Fausto em construo, "comparado ao

    vanguardismo excntrico de Joyce, parecesse de tradicionalismo insosso. E

    explicita que, com essas escolhas, buscava um vnculo tradio, ainda que

    matizado de pardia, que permitiria um acesso mais imediato, facilitando o alcance

    de uma certa popularidade. Steinbeck (1990, p. 29), de modo similar, diz,enquanto escrevia East of Eden, temer que este fosse considerado antiquado:

    para perceber as inovaes precisa ser observado bem de perto. Em termos de

    ritmo, seu romance estava mais prximo de Fielding do que de Hemingway.

    Aqueles que gostam de Hemingway no vo gostar desse livro.

    Van Gogh (2002, p.298) comenta, com seu irmo Theo, algo semelhante em

    relao a seus contemporneos. O que ser que Seurat anda fazendo ? Euno me atreveria a lhe mostrar os estudos j enviados, mas gostaria que ele visse

    os dos girassis, dos cabars e dos jardins; penso freqentemente em seu

    sistema. Contudo no o seguirei. Mas ele um colorista original e o mesmo vale

    para Signac, mas num outro nvel. Os pontilistas descobriram algo de novo e

    apesar de tudo eu gosto muito deles. Sua busca, no entanto, ia em outra direo

    que, segundo ele, eram as cores significativas, que Delacroix e Monticelli embora

    no tivessem falado sobre elas, j as usavam.

    As conversas com amigos, que podem tomar vrias formas como cartas, e-mails

    ou registros em anotaes ou dirios, parecem cumprir um papel importante como

    espao de articulao e troca de idias com contemporneos.

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    Nas cartas de Helio Oiticica e Lygia Clark (Figueiredo, 1996, p.74/76), por

    exemplo, acompanhamos, em 1968, esse tipo de dilogo. Oiticica comenta sobre a

    inovao que eles estavam tentando fazer, em dilogo com a Semana de 22.

    Chama para reflexo o pensamento de Marcuse e indica a leitura de Frantz Fanon.

    O dilogo que Cage e Boulez travam ao longo de cartas deixa transparecer que um

    instiga o trabalho do outro. Boulez explicita isso, em novembro de 1949: voc

    a nica pessoa que se empolgou com os materiais sonoros com os quais trabalho.

    Encontrar voc me fez pr fim a um perodo clssico do meu quarteto, que j

    ficou para trs. Agora precisamos lidar com delirium real em som e

    experimentao com sons como Joyce faz com palavras.

    Trocam textos que produziram, falam de suas composies em processo, enviam

    gravaes inacabadas, comentam a obra de Stockahusen e livros como o de

    Schaffer sobre msica concreta. As respostas so repletas de comentrios

    elogiosos, cobranas de novidade e constataes de que esto em estgio

    semelhante de pesquisa. O clima de respeito e interesse mtuos.

    Boulez estimula o dilogo do amigo com a literatura e com o acaso. Cage (Nattiez,

    1993, p. 96), quando estava compondo Imaginary Landscape No IV (maio de

    1951), conta que o texto de Boulez sobre o Jogo de Dados de Mallarm lhe serviu

    de estimulo. E diz tambm ter lido muito Artaud por causa de indicaes do amigo.

    Como vemos, as cartas captam a entrada do acaso no dilogo entre eles. Emdezembro de 1950, Boulez fala de um trabalho em construo que seria uma

    coleo de 14 ou 21 polifonias, na qual cada intrprete poderia selecionar a que

    preferisse. Trata-se da primeira meno de Boulez relativa a alguma forma de

    operao do acaso. Em maio de 1951, Cage escreve sobre sua busca, naquele

    momento que se sustentava na tenso entre a mobilidade e a imobilidade. Esta

    seria a base do I-Ching para obteno dos orculos. Como todos sabemos essa

    43

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    uma experincia que Cage leva adiante e que se reverte no grande motivo de

    discrdia entre eles. Boulez, comentando o rumo que as obras de Cage toma, diz

    que a nica coisa com a qual no est contente o mtodo do acaso absoluto,

    porque ele contra a facilidade e total falta de controle da escrita automtica.

    Entraremos em mais detalhes sobre esse embate travado entre eles, quando

    falarmos sobre o acaso.

    Quando se discute essas relaes com a efervescncia cultural, a tradio e os

    amigos, importante compreendermos o que o artista escolhe e como tudo isso

    passa a integrar suas obras. Sabemos que so acessadas diferentes sries

    culturais: artes visuais, literatura, filosofia e jornalismo, s para citar alguns

    exemplos. Vimos msicos e pintores falando de sua relao com a literatura. O

    videomaker Bill Viola constata sua relao com a poesia de Rainer M.Rilke e com o

    budismo; Steinbeck com o jornal e Thomas Mann com a filosofia de Adorno.

    Acompanhemos com mais vagar esse dilogo de Mann e Adorno, bastante

    esclarecedor para compreendermos esses modos de integrao. O escritor relata

    que ouviu Adorno tocar, na ntegra e do modo instrutivo, a Sonata opus 111,

    enquanto ele estava escrevendo Dr. Fausto, ele diz: Nunca estive to atento

    quanto naqueles instantes. Na manh seguinte, levantei-me cedo, e durante trs

    dias dediquei-me a uma reelaborao e reestruturao rigorosas da palestra 43

    sobre as sonatas, o que significou um enriquecimento e um embelezamento no

    s do capitulo, mas do livro inteiro. Ao compor os pequenos versos para elucidar o

    tema da arieta, inclu, como discreta demonstrao de gratido, o nomeWiesengrund (sobrenome paterno de Adorno).

    Meses depois, Adorno passa a ser um leitor bem especial de Mann. O escritor leu

    para ele os trs primeiros captulos do romance e o episdio da Opus 111. A

    reao foi extraordinria. Adorno, tocado pelo aspecto musical e enternecido pela

    pequena lembrana de sua aula, disse: Eu poderia passar a noite ouvindo! A

    44

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    partir da Mann manteve Adorno sempre por perto de seu romance em processo

    como leitor crtico, sabendo que precisaria de sua assistncia, e s dela, ao

    alcanar as profundezas ainda longnquas daquela obra. Ao mesmo tempo, Mann

    fala do modo como os manuscritos do texto de Adorno sobre Schnberg foram

    importantes para seu romance, no que dizia respeito lucidez de sua viso sobre

    a crise geral da cultura, que ele pretendia extrair como elemento bsico para o

    prprio tema do livro: a ameaa da esterilidade, o desespero inato predispondo

    ao pacto com o diabo. Mas no s isso. Mann fala de um paralelismo entre o

    construtivismo musical, discutido por Adorno, e o ideal formal que ele buscava:

    pressentia que meu livro deveria ser aquilo mesmo de que ele tratava, ou seja,

    msica construtivista.

    Mann conta ter escrito uma carta para Adorno desculpando-se, na medida do

    possvel, pelos emprstimos inopinados-impensados que fez de sua filosofia da

    msica, confiante de que toda essa apropriao, tudo o que ali aprendera,

    ganharia uma funo autnoma e uma vida simblica prpria em sua composio,

    permanecendo intacta em seu contexto original.

    interessante discutir essa observao de Thomas Mann, pois ele ressalta

    questes importantes para a compreenso dos modos como os dilogos, com a

    filosofia nesse caso, se relacionam com a obra literria em construo. Primeiro,

    ele destaca o ato de fazer emprstimos. As apropriaes, das mais diversas

    naturezas, so constantemente flagradas nos documentos dos artistas e so

    matria prima de muitos (ou talvez de todos) processos criadores. Mann vai almda mera constatao e fala da nova funo que esses emprstimos passam a

    exercer no novo contexto que integram, onde novas relaes so estabelecidas.

    No se pode, portanto, negligenciar os vestgios deixados pelo mundo que envolve

    um artista especfico, sem observarmos o processo de transformao que essas

    marcas sofrem ao penetrarem o mundo ficcional em criao.

    45

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    Vejamos um outro exemplo interessante que diz respeito tambm a esses

    dilogos. Trata-se da relao entre arte e sociologia no trabalho de Kiko Goifman

    (2005)7, que no s fica clara em suas escolhas temticas, como as prises, mas

    principalmente na metodologia adotada em seus documentrios. Ele diz que se

    apropriou do modo como as pesquisas em sociologia, sua rea de formao, so

    desenvolvidas: toma vrios casos individuais e busca o que tm em comum, para

    assim retirar critrios para a edio.

    claro que nem todas as transformaes geram resultados interessantes sob o

    ponto de vista esttico. Parece ser isso a que Gabriel Garcia Mrquez (1997, p.

    137) se refere, quando comenta, durante uma oficina de roteiros, que uma

    determinada idia tinha sido roubada de Borges mas bem roubada. O que est

    implcito nessa afirmao que pode haver peas mal apropriadas.

    No h, como vemos, uma necessria delimitao dessa espcie de coleta sensvel

    (ou sensorial, como chama Joo Carlos Goldberg) ao meio no qual o artista se

    manifesta. Todo o processo de apreenso do mundo feito, normalmente, emfuno de uma obra ou de um projeto que vai alm da construo de uma obra

    especfica. Conhecer os procedimentos criativos envolve, sob esse ponto de vista,

    a compreenso do modo como os processos culturais se cruzam e interagem nos

    processos criativos: como esses ndices culturais passam a pertencer s obras em

    construo. Algo certo, essas interaes abrigam o que vem de fora em um

    complexo intercruzamento refratrio s leituras dicotmicas que esbarram em

    embates de oposies entre, por exemplo, original ou cpia e autoria ou noautoria.

    interessante notar que quanto mais apontamos para a importncia de

    localizarmos o tempo e o espao nos quais o processo de um artista est inserido,

    7Depoimento no curso Criao de Imagem e Som em Meios Eletrnicos" do Senac-SP, junho de 2005

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    mais nos aproximamos de uma indeterminao destes. Isto fica claro no modo no

    linear, como sries, linguagens, autores e idias so coletados. Momentos

    histricos diversos so associados e travam dilogo em nome dos interesses e

    indagaes de um determinado artista.

    Uma mesma pgina de um dirio pode colocar lado a lado fatos jornalsticos,

    imagens da histria da arte, trechos de discusses filosficas recentes, que, por

    sua vez, podem remeter a pensadores clssicos. Mais uma vez, quando se pensa

    em determinao, encontra-se disperso. Quando nos aproximamos de alguns

    pontos de referncia, nos deparamos com novas interaes das redes, ou seja,

    suas ramificaes, divises e subdivises. Todo esse movimento impulsionado

    pelas obras ou pelas indagaes que instigam o artista.

    A rua embrenha-se pelo escritrio

    Em nossa proposta de caminhar do ambiente social para aquele de natureza mais

    individual, pode-se dizer que, de modo tanto metafrico quanto literal, a rua vai

    para dentro do escritrio de trabalho. O termo escritrio est sendo usado em

    referncia a qualquer local de trabalho, independentemente do nome que receba:

    ateli, estdio, redao, sala etc. O artista observa o mundo e recolhe aquilo que,

    por algum motivo, o interessa. Trata-se de um percurso sensvel e epistemolgico

    de coleta: o artista recolhe aquilo que de alguma maneira toca sua sensibilidade e

    porque quer conhecer. s vezes, os prprios objetos, livros, jornais ou imagens

    que pertencem rua so coletados e preservados. Em outros casos, encontradauma grande diversidade de instrumentos mediadores, como os cadernos de

    desenhos ou anotaes, dirios, notas avulsas para registrar essa coleta que pode

    incluir, por exemplo, frases entrecortadas ouvidas na rua, inscries em muros,

    publicidades, fotos ou anotaes de leitura de livros e jornais. Esse

    armazenamento parece ser importante, pois funciona como um potencial a ser, a

    qualquer momento, explorado; atua como uma memria para obras. Assim os

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    crticos de processos conhecem muito sobre o percurso criador nos registros, ou

    seja, nas extenses de um pensamento em construo. Sob esse ponto de vista,

    tanto escritrios como anotaes desempenham essa funo e se transformam em

    eloqentes documentos dos processos.

    Volto a ressaltar que o mais importante para compreender os mecanismos criativos

    o estabelecimento DE RELAES que o crtico faz entre esses dados e as obras

    em construo. S assim temos acesso aos modos de aproveitamento desse

    entorno. importante saber o que aproveitado e o que no , e de que maneira

    se d a transformao dessa coleta quando passa a pertencer obra em criao.

    Por um lado, interessam-nos os procedimentos cognitivos responsveis pelo

    desenvolvimento do pensamento; assim como os recursos literrios, plsticos,

    musicais etc. responsveis pela natureza da apropriao. Muito da criao se d

    nesse campo de interao que se estabelece na relao com o outro, tomado em

    sentido vasto.

    Tomando, por exemplo, a cidade como eixo de comparao entre trs processos

    que venho acompanhando h algum tempo.

    Igncio de Loyola Brando8 e Evandro Carlos Jardim9 mostram, ao longo de seus

    processos criativos, estarem imersos na cidade de So Paulo, alimentando-se de

    sua diversidade, anotando (visual e verbalmente) o que os atrai.

    Loyola capta uma So Paulo megalpole: papis entregues nas ruas, imensosedifcios e engarrafamentos. J So Paulo, assim como traduzida por Jardim,

    acontece no limiar entre o urbano e o rural que abrange do Largo 13 de Santo

    Amaro ao Pico do Jaragu. Porm, ambos se atm, em outros momentos, ao

    8 Estudei os documentos de processo (rascunhos, dirios, anotaes, jornais, fotos, mapas) de Igncio deLoyola Brando produzidos para a construo de seu romance No Vers Pas Nenhum.9 Esses estudos foram gerados por diversas visitas ao ateli do artista.

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    interior das casas. De modo metonmico, lmpadas da estante de Loyola e tinteiros

    Parker de Jardim so bons exemplos de objetos deste escritrio apreendidos por

    eles e emprestados a seus projetos em construo.

    As obras dos dois artistas absorvem So Paulo de modo transformado. So as

    cidades de cada um deles, ou melhor, de suas obras. Em No Vers Pas Nenhum,

    especialmente, e em outros romances, contos e crnicas, Loyola leva essa

    urbanidade a seu extremo: observa, revolta-se, anota e exacerba seus horrores. A

    cidade passa a ser no s o espao onde a histria se desenvolve ou o cenrio da

    ao, mas adquire status de personagem ao impor restries, de modo inevitvel,

    a seus habitantes ficcionais. Ao observar muitas das reflexes que envolvem a

    construo dessas cida