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7/27/2019 Redes Da Criacao Cecilia Almeida Sales (1)
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REDES DA CRIAO
construo da obra de arte
CECILIA ALMEIDA SALLES
Registro na Biblioteca Nacional 359.234
Livro 663 Folha 394
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PARA NINI, MARIA, MARIANA E BEL
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Agradecimentos
Muito especiais, a Luiz Ruffato e a Heloisa Prieto pelo apoio incondicional.
A Daniel Senise, Igncio de Loyola Brando e Evandro Carlos Jardim pela generosidadede abrir suas gavetas.
A Marlene Gomes Mendes pelo trabalho amigo.
A Amlio Pinheiro, Joo Carlos Goldberg, Cludio Galperin, Vincent Colapietro e Vitor Kisil,companheiros de conversas indispensveis.
Aos amigos do Centro de Estudos de Crtica Gentica pelas imprescindveis interaesintersemiticas
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SUMRIO
INTRODUO
CRIAO COMO REDE
RUAS E ESCRITRIOS
OLHARES, LEMBRANAS E MODOS DE FAZER
TRAMAS DO PENSAMENTO: DILOGOS DE LINGUAGENS
TRAMAS DO PENSAMENTO: INTERAES COGNITIVAS
DESDOBRAMENTOS E A CRTICA DE PROCESSO
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INTRODUO
Redes da Criao tem como objetivo dar continuidade proposta iniciada no livro
Gesto Inacabado: Processo de criao artstica (Annablume, 1998), que procurava
compreender o modo como se desenvolvem os diferentes processos de construode obras de arte. Assim como nessas primeiras reflexes, toda a discusso
sustentada pelas pesquisas dedicadas ao acompanhamento desses percursos de
criao, a partir dos documentos deixados pelos artistas: dirios, anotaes,
esboos, rascunhos, maquetes, projetos, roteiros, copies etc. Na relao
entre esses registros e a obra entregue ao pblico, encontramos um
pensamento em construo.
Pretendemos, com as reflexes que esses documentos proporcionam,
oferecer uma outra maneira de se aproximar da arte, que incorpora seu
movimento construtivo. Trata-se de uma discusso das obras como
objetos mveis e inacabados, que difere significativamente dos estudos
sobre os fenmenos comunicativos, em suas diversas manifestaes,
que discutem produtos considerados finalizados ou acabados. Uma
abordagem cultural em dilogo com interrogaes contemporneas (Biasi,1993), que encontra eco nas cincias que discutem verdades inseridas em
seus processos de busca e, portanto, no absolutas e finais.
Cabe queles que se interessam pela criao artstica entender os
procedimentos que tornam essa construo possvel. Os documentos dos
processos instigam um mtodo de pesquisa fiel experincia guardada nesses
registros. As descobertas5
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feitas saem, portanto, de dentro dos prprios processos, isto , so alimentadas
pelos documentos que pareceram necessrios aos artistas ao longo de suas
produes. Podemos perceber um interesse crescente por esses materiais, que fica
patente nas inmeras exposies nacionais e internacionais de esboos, rascunhos
ou cadernos de artistas. Esses documentos oferecem um grande potencial de
explorao que ultrapassa, sem dvida alguma, o olhar curioso atrado pelo fetiche
que os envolve. Os ndices de pensamento em processo precisam encontrar modos
de leitura. isso que propomos.
O estudo de documentos de artistas diversos nos permite encontrar alguns
procedimentos de natureza geral, que ganham nuances em processos especficos.
So essas variaes que nos levam s singularidades dos procedimentos de um
artista determinado. Muitos artigos, teses, dissertaes dedicam-se a esses
estudos como, por exemplo, o acompanhamento de obras de Daniel Senise,
Igncio de Loyola Brando, Evandro Carlos Jardim, Regina Silveira, Graciliano
Ramos, Carlos V. Fadon, Lucas Bambozzi, Eugne Delacroix, Paul Gauguin, Joan
Mir, Luis Paulo Baravelli, Roberto Santos, Elizabeth Bishop, Cildo Meireles, Caio
Reisewitz, para citarmos somente alguns. No entanto, nesta publicao estou
particularmente interessada nas recorrncias e algumas de suas gradaes, que
nos levam a discutir o processo criativo de modo mais abrangente. Para alcanar
esse objetivo, recorremos a documentos de reas diversas: registros de escultores,
cineastas, videomakers, escritores, pintores, coregrafos, arquitetos etc. As
diferentes manifestaes artsticas se cruzam nessas reflexes sobre modos de
criao. O que nos instiga, nesse momento, so esses procedimentos deconstruo. Abrindo assim dilogo com todos aqueles que, por motivos os mais
diversos, se interessam pela criao artstica.
importante ressaltar que, por necessidade de delimitao do mbito desta
publicao, o enfoque ser o objeto artstico; no entanto, essas discusses tm se
provado tambm adequadas para o debate sobre a construo de outros objetos
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da comunicao. Estamos, portanto, abordando a arte, em dilogo com aqueles
que, como Arlindo Machado (1999), defendem a abordagem da comunicao em
mbito expandido, por perceber que se trata de um conceito-chave no mundo
contemporneo, pois d conta de alguns processos vitais que definem esse mesmo
mundo, mas est longe de ser um conceito consensual. Alguns o tomam num
sentido mais restritivo, abrangendo apenas o campo de atuao das mdias de
massa, outros preferem dar maior extenso ao conceito, incluindo no seu campo
semntico todas as formas de semiose, ou seja, de circulao e intercmbio de
mensagens, inclusive at fora do mbito do social e do humano, no nvel
molecular, por exemplo, ou na linguagem das mquinas. Sob esse prisma, as
discusses sobre os percursos de construo de obras no esto restritas ao
campo da arte, abarcando outros processos comunicativos.
O processo de criao, com o auxlio da semitica peirceana, pode ser descrito
como um movimento falvel com tendncias, sustentado pela lgica da incerteza,
englobando a interveno do acaso e abrindo espao para a introduo de idias
novas. Um processo no qual no se consegue determinar um ponto inicial, nem
final. No Gesto Inacabado, demos destaque a esse trajeto com tendncias incertas
e indeterminadas, que direcionam o artista em sua incansvel busca pela
construo de obras que satisfaam seu grande projeto potico; construo essa,
fortemente marcada por questes comunicativas. A busca do artista encontra suas
concretizaes possveis, em complexos processos de construes de obras. Em
um segundo momento, o percurso criador foi enfocado sob cinco pontos de vista,
como: ao transformadora, movimento tradutrio, processo de conhecimento,construo de verdades artsticas e percurso de experimentao.
Para o leitor do Gesto Inacabado, ficar claro que muitos temas so retomados,
em outras perspectivas, a partir do que j foi discutido anteriormente. Da os
trechos familiares ou citaes recuperadas. Minhas reflexes, inevitavelmente em
rede, interagem na tentativa de ampliar seu campo de ao.
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Para desenvolver tais discusses, estabelecemos dilogos entre pensadores
da filosofia e da arte e os prprios artistas. Seguiremos aqui o mesmo
caminho, chamando, sempre que parecer necessrio, tericos como Edgar
Morin, Iuri Lotman, Charles S. Peirce, entre tantos outros. Acredito que o
objeto que nos instiga compreender merece primazia. Os instrumentais
tericos devem ser convocados de acordo com as necessidades do andamento
das reflexes, para que os documentos dos artistas no se transformem em
meras ilustraes das teorias. Nestes casos, os conceitos perderiam seu poder
heurstico, ou seja, a pesquisa ofereceria muito pouco retorno no que diz
respeito a descobertas sobre o ato criador. Por outro lado, se o que
buscamos a melhor compreenso da complexidade que envolve o
processo criativo, no podemos lanar mo de conceitos tericos isolados,
como, por exemplo, percepo ou acaso (ou quaisquer outros). Acredito que
devemos discutir a criao com o auxlio de um corpo terico de conceitos
organicamente inter-relacionados.
Todos aqueles aspectos da criao foram discutidos anteriormente na densidade
que nossas observaes, naquela fase da pesquisa, permitiam. O tempo passou e
proporcionou novas leituras e maior exposio experincia dos artistas, gerada
por minhas prprias pesquisas e as de meus alunos. Assim, novas perspectivas de
leitura, que exigiam reflexes e descobertas de novos modos de apresentao,
comearam a se apresentar. Desenvolveremos, mais uma vez, essa discusso
mantendo dilogo permanente com os documentos dos artistas. Seus relatos,
desse modo, trazem de volta a experincia mltipla e vvida que alimentou toda areflexo. Esses exemplos devem ser vistos como selees que fiz daqueles
considerados mais significativos para ampliar a compreenso sobre o processo
criativo.
O Gesto Inacabado se propunha a pensar a criao artstica em uma abordagem
processual, mas estava, provavelmente, indo alm dos limites desse
objeto8
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especfico. Pretendia, naquele momento, oferecer mais do que um simples
relato de uma pesquisa, mas uma possibilidade de se olhar para os
fenmenos em uma perspectiva de processo. Estvamos, de certo modo,
oferecendo instrumentos para uma teorizao que se ocupa dos fenmenos em
sua mobilidade.
Acredito que essas discusses tornaram-se fundamentais para pensarmos certas
questes contemporneas, que envolvem, por exemplo, a autoria e a intrincada
relao obra processo. As reflexes tericas que trazem essa perspectiva
processual para a arte ultrapassam os ditos bastidores da criao. Da
percebermos que estvamos diante de recursos tericos para desenvolver uma
critica de processo1, que parecia abranger mais do que a critica gentica. Muitas
questes de extrema importncia para se discutir a arte em geral e aquela
produzida nas ltimas dcadas, de modo especial, necessitam de um olhar que
seja capaz de abarcar o movimento, dado que leituras de objetos estticos no se
mostram satisfatrias ou eficientes.
Algumas obras, incluindo todo o potencial que as mdias digitais oferecem,
parecem exigir novas abordagens. Ao mesmo tempo, muitas dessas obras exigem
novas metodologias de acompanhamento de seus processos construtivos e no
somente a tradicional coleta de documentos, no momento posterior
apresentao da obra publicamente, isto , a abertura das gavetas dos artistas
para conhecer os registros das histrias das obras. Muitos crticos de processos
passaram a conviver com o percurso construtivo em tempo real. Algumas obrascontemporneas (mas no s) geram, assim, novas metodologias para abordar
seus processos de criao, enquanto que os resultados desses estudos mudam, de
alguma maneira, os modos de abord-las sob o ponto de vista crtico.
1 No posso deixar de mencionar a importncia dos debates desenvolvidos no Centro de Estudo de CriticaGentica (Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC/SP) para chegar a essasconcluses.
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Essas novas questes, que pareciam merecer maior ateno, exigiam novas
formas de desenvolvimento do pensamento que dessem conta de mltiplas
conexes em permanente mobilidade. Foi assim que chegamos s redes.
A proposta central deste livro, portanto, parte da necessidade de pensar a criao
como rede de conexes, cuja densidade est estreitamente ligada multiplicidade
das relaes que a mantm. No caso do processo de construo de uma obra,
podemos falar que, ao longo desse percurso, a rede ganha complexidade medida
que novas relaes vo sendo estabelecidas.
Pierre Musso (2004), ao discutir redes, diz se preocupar com a exploso desse
conceito que, de certo modo, o supervaloriza em metforas. Com a mesma
preocupao, tambm levo adiante essa perspectiva, por acreditar que seja
necessria para a compreenso da plasticidade do pensamento em criao, que se
d justamente nesse seu potencial de estabelecer nexos. Essa abordagem do
processo criativo talvez seja responsvel pela viabilizao de leituras no lineares e
libertas das dicotomias, tais como: intelectual e sensvel, externo e interno, autoria
e no autoria, acabado e inacabado, objetivo e subjetivo e movimento prospectivo
e retrospectivo.
Como afirma Andr Parente (2004, p. 9), a noo de rede vem despertando um tal
interesse nos trabalhos tericos e prticos de campos to diversos como a cincia,
a tecnologia e a arte, que temos a impresso de estar diante de um novo
paradigma, ligado, sem dvida, a um pensamento das relaes emoposio a um pensamento das essncias. Incorporo, desse modo, tambm o
conceito de rede, que parece ser indispensvel para abranger caractersticas
marcantes dos processos de criao, tais como: simultaneidade de aes, ausncia
de hierarquia, no linearidade e intenso estabelecimento de nexos. Este conceito
refora a conectividade e a proliferao de conexes, associadas ao
desenvolvimento do pensamento em criao e ao modo como os artistas se
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relacionam com seu entorno. Contudo, no podemos deixar de mencionar a fora
da imagem da rede da criao artstica que nos incita a explor-la.
O livro est organizado em seis segmentos. Comeamos com uma apresentao
do conceito de criao como rede, recomendando que esse primeiro momento
dessa apresentao linear funcione como um lembrete sobre o contexto no qual
toda a discusso se insere. Seria o clima conceitual que permeia toda a reflexo.
Fica claro que a tentativa de sistematizar, sob a forma de livro, um pensamento
processual e relacional 2pode ser frustrada.
Faremos, depois, um percurso, com o auxlio de uma espcie de cmera de
observao, que se inicia com um olhar utilizando uma grande angular, para
discutir as macro relaes do artista com a cultura. Aos poucos nos
aproximaremos do sujeito em seu espao e tempo, e das questes relativas
memria, percepo e recursos de criao. Em seguida, fazendo uso de lentes
macro, tentaremos compreender os modos de conexo das redes do
pensamento em criao. So, assim, oferecidas condies de chegar, em tomconclusivo, a algumas reflexes sobre autoria, a partir desse olhar interno ao
percurso da criao; sobre relaes entre obra e processo, a partir dessa
perspectiva processual, e sobre a crtica de processo.
2 O livro Caminhos de Kiarostami (2004) de Jean-Claude Bernadet um exemplo do encontro de uma soluoextremamente interessante.
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CRIAO COMO REDE
As reflexes aqui desenvolvidas partem do conceito de criao como rede em
processo. Para compreender as implicaes de adotar essa perspectiva ao se
pensar a criao artstica, discutiremos os conceitos que vo nos guiar. Os pilaresdesse pensamento aparecero, de um modo mais ou menos sistemtico, ao longo
do livro; no entanto, acredito na relevncia de passar por essas noes, nesse
primeiro momento. Coloc-las lado a lado cumprir a funo de nos levar a uma
espcie de imerso em um universo conceitual.
Comecemos essa apresentao proposta, com toda a dificuldade de flagrar pontos
iniciais em discusses dessa natureza. A criao artstica marcada por suadinamicidade que nos pe, portanto, em contato com um ambiente que se
caracteriza pela flexibilidade, no fixidez, mobilidade e plasticidade.
Recorro propositalmente a aparentes sinnimos para conseguir nos transportar
para esse ambiente dos inmeros e infindveis cortes, substituies, adies ou
deslocamentos. Isso nos leva, por exemplo, a diferentes possibilidades de obra
apresentadas nas sries de rascunhos, tratamentos de roteiros, esboos etc.;
propostas de obras se modificando ao longo do processo; partes de uma obrareaparecendo em outras do prprio artista; ou ainda fatos lembrados ou livros
lidos sendo levados para obras em construo. Uma memria criadora em
ao que tambm deve ser vista nessa perspectiva da mobilidade: no como um
local de armazenamento de informaes, mas um processo dinmico que se
modifica com o tempo. Novas percepes sensveis de um olhar, que no
conhece fixidez, impe modificaes e novas conexes, como veremos.
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Esse percurso contnuo em permanente mobilidade nos leva ao conceito de
inacabamento, que sustenta nossa reflexo. No se trata do no acabamento
provocado por restries externas, como, por exemplo, a morte do artista. No
estamos tambm enfocando, aqui, o inacabamento como opo esttica ou, como
Jean-Claude Bernadet (2003) denomina, esttica do esboo. Aquela que, como
lembra James Lord (1998, p.119), j era manifesta no tempo de Michelngelo: o
carter non finito de certas obras de arte, que pode ser parte integrante do efeito
imaginrio deliberadamente concebido e realizado pelo artista.
Estamos falando do inacabamento intrnseco a todos os processos, em outras
palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse - seja
um romance, uma pea publicitria, uma escultura, um artigo cientfico ou
jornalstico como uma possvel verso daquilo que pode vir a ser ainda
modificado. Tomando a continuidade do processo e a incompletude que lhe
inerente, h sempre uma diferena entre aquilo que se concretiza e o projeto do
artista que est por ser realizado. Sabemos que onde h qualquer possibilidade de
variao contnua, a preciso absoluta impossvel. Nesse contexto, no possvel
falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca,
no fluxo da continuidade, sempre incompleta e o prprio projeto que envolve a
produo das obras, em sua variao contnua, muda ao longo do tempo. O que
move essa busca talvez seja a iluso do encontro da obra que satisfaa
plenamente.
Em conversa com James Lord, Giacometti (1998, p.27) fala desse inacabamento
que est visceralmente associado insatisfao que o enfrentamento da
impreciso acarreta: Durante todos esses anos expus coisas que no estavam
terminadas (...). Mas, por outro lado, se no tivesse exposto teria parecido
covardia, como se eu no ousasse mostrar o que tinha feito, o que no era
verdade. o inacabamento como inevitvel fatalidade.
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Fica claro que essa questo fazia parte do universo de indagaes de Giacometti,
tanto que o fato de Czanne considerar suas telas como inacabadas e abandon-
las lhe era extremamente atraente. (Lord, 1998, p. 44). Ao mesmo tempo, durante
a produo do retrato de James Lord, Giacometti diz, em vrios momentos, que
ainda vai continuar trabalhando, porque a obra no abandonada enquanto h
chance (Lord, 1998, p.124). O inevitvel inacabamento impulsionador.
O objeto que est sendo criado, se tomado nessa viso temporal, mutvel;
construir esse objeto, que permanentemente flui no tempo, implica ser algo que
tende a escapar. Transitoriedade acarreta inacessibilidade (Colapietro,
2004). A relao entre o que se tem e o que se quer reverte-se em contnuos
gestos aproximativos - adequaes que buscam a sempre inatingvel completude.
O artista lida com sua obra em estado de contnuo inacabamento, o que
experienciado como insatisfao. No entanto, a incompletude traz consigo tambm
valor dinmico, na medida em que gera busca que se materializa nesse processo
aproximativo, na construo de uma obra especfica e na criao de outras obras,
mais outras e mais outras. O objeto dito acabado pertence, portanto, a um
processo inacabado. No se trata de uma desvalorizao da obra entregue
ao pblico, mas da dessacralizao dessa como final e nica forma
possvel.
Essas afirmaes baseiam-se nos dados pblicos oferecidos pelos prprios artistas,
como verses diversas de um livro em edies diferentes, filmes com mais de umamontagem, citaes clssicas como a de Carlyle, sempre lembrada por Borges, que
diz que publicamos para no passar a vida corrigindo. H ainda histrias como
aquela atribuda a Bonnard que, quando j era um pintor famoso, entrava
escondido nos museus, com pincis e tintas, e quando os guardas no estavam
olhando, retocava os prprios quadros. Ao mesmo tempo, acompanhar o processo
de um artista nos permite, ou mais ainda, nos obriga a enfrentar documentos
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privados que mostram um objeto literrio, por exemplo, recebendo ajustes dia
aps dia, mesmo depois de entregue ao editor. H tambm inmeras anotaes
que registram o ponto final do romance, seguidas de novos apontamentos, falando
de problemas ou insatisfaes em relao ao texto que geram, por sua vez,
modificaes. Seguindo essa lgica, o que nos d a certeza de que se o livro fosse
entregue, digamos, um ms depois, no teria alteraes e seria, portanto,
diferente daquele que est nas livrarias?
Assim como Morin (2000, p. 39) constata que na cincia uma teoria cientfica tem
sempre incerteza de seus resultados, ainda que possa fundar-se em dados que
sejam certos, o artista tambm enfrenta um processo que no permite previso e
predio, em outras palavras, opera no universo da incerteza, da
mutabilidade, da impreciso e do inacabamento.
Isso fica extremamente claro ao lermos cartas ou dirios que so mantidos por
artistas, ao longo de suas vidas ou durante a construo de uma obra. Esses
documentos registram essas incertezas como uma espcie de permanente msica
de fundo das anotaes, relatos e notcias. James Lord (1998, p. 120), que foi
modelo e crtico do processo de Giacometti durante algumas semanas, observa
esse clima com acuidade, quando diz que participou de sua luta e de seus esforos
para atingir o inatingvel.
A incompletude do processo destaca tambm a sobrevivncia de qualquer
elemento a partir da inter-relao com outros. Observamos que uma anotao secompleta em outra ou em uma fala de um personagem; um problema no
desenvolvimento da obra se completa em leituras ou conversas com amigos etc.
Essa viso do processo de criao nos coloca em pleno campo relacional, sem
vocao para o isolamento de seus componentes, exigindo, portanto, permanente
ateno a contextualizaes e ativao das relaes que o mantm como sistema
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complexo. Discutiremos essas questes com mais vagar, a seguir, ao
apresentarmos o conceito de rede.
O estado de dinamicidade organiza-se na confluncia de tendncias e acasos,
tendncias essas que direcionam, de algum modo, as aes, nesse universo de
vagueza e impreciso. So rumos vagos que orientam, como condutores
maleveis, o processo de construo das obras. O movimento dialtico entre
rumo e incerteza gera trabalho, que se caracteriza como uma busca de
algo que est por ser descoberto uma aventura em direo ao quase
desconhecido. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento do processo vai levando a
determinadas tomadas de deciso que propiciam a formao de linhas de fora.
Essas passam a sustentar as obras em construo e balizam, de algum modo, as
avaliaes do artista. Os percursos apresentam tendncias que podem ser
observadas como atratores, que funcionam como uma espcie de campo
gravitacional e indicam a possibilidade que determinados eventos ocorram
(cf.Bunge, 2002).
Nesse percurso, tendncias se cruzam com o acidental, causando possveis
modificaes de rumo. Essa interveno do acaso observada nos relatos dos
artistas dos imprevistos externos e internos ao processo, que so enfrentados de
diferentes maneiras e recebem tratamentos diversos; podem, porm, ser
responsveis por interessantes descobertas. Aceitar a interveno do imprevisto
implica compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de modo
diferente daquele que fez; ao assumir que h concretizaes alternativas, admite-se que outras obras teriam sido possveis. Chegamos, desse modo,
possibilidade de que mais de uma obra satisfaa as tendncias de um processo.
Retomando a dinamicidade e a incerteza do percurso criador, no h segurana
que as alteraes levem sempre melhora dos objetos em construo, da as idas
e vindas, retomadas, adequaes, possibilidades de obra aguardando novas
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avaliaes, reaproveitamentos e novas rejeies. Alguns dos documentos dos
processos, com os quais lidamos, so testemunhas dessa caracterstica da criao:
so guardados rascunhos, anotaes ou esboos, ou seja, tentativas de obras que
podem um dia vir a ser recuperadas. Os atos de rejeitar, adequar ou reaproveitar
so permeados por critrios, que nos interessam conhecer, e refletem modos de
desenvolvimento de pensamento, que nos instigam a compreender, descrever e
nomear. Diante dessas aes mltiplas e diversas, fica bastante claro que lidamos
com um tempo da criao artstica em uma perspectiva no linear, como veremos
mais adiante.
Essa no linearidade nos leva ao conceito de rede, embora este abarque muitas
outras questes. Pierre Musso (2004) fala da exploso deste conceito que, como j
mencionamos na apresentao, parece ser um novo paradigma ligado a um
pensamento das relaes. Para nosso interesse especfico, muito nos atrai a
associao de rede a um modo de pensamento. De maneira especular, precisamos
construir uma rede para falarmos de uma rede em construo. interessante,
portanto, destacar que essas reflexes que estamos desenvolvendo tm esse
conceito de rede como norteador, em mo dupla. Queremos ressaltar que, por um
lado, todos os pesquisadores que se interessam pela compreenso dos processos
de criao esto falando de uma rede que se constri e esses pensadores da
criao, por sua vez, necessitam de uma abordagem que esteja tambm nesse
paradigma relacional. O modo de apreenso de um pensamento em rede s pode
se dar tambm em rede. Da retomarmos, em muitos momentos, conceitos e
citaes que precisam ser revistos em novos ambientes, gerando outras conexes.
Musso (2004, p. 31) prope uma definio de rede que, embora faa permanente
referncia a estruturas (que nos parecem ser muito mais associveis a
paradigmas de sistemas fechados), nos oferece vrias portas de entrada profcuas
para esse debate. Vamos aos aspectos ressaltados pelo autor que, acredito, nos
auxiliaro a caracterizar as redes da criao. Musso fala em elementos de
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interao, interconexo instvel no tempo e variabilidade de acordo com regras de
funcionamento.
Os elementos de interao so os picos ou ns da rede, ligados entre si:
um conjunto instvel e definido em um espao de trs dimenses. Morin
(2002b, p. 72) descreve interaes, em outro contexto, como aes recprocas que
modificam o comportamento ou a natureza dos elementos envolvidos; supem
condies de encontro, agitao, turbulncia e tornam-se, em certas condies,
inter-relaes, associaes, combinaes, comunicaes etc, ou seja, do origem a
fenmenos de organizao. Morin fala tambm em jogo de interaes, cujas
regras podem parecer como as leis da natureza. H algo nas propriedades
associadas interatividade, em ambas as definies, que nos parece ser
importante de se destacar para compreendermos as conexes da rede da criao:
influncia mtua, algo agindo sobre outra coisa e algo sendo afetado por outros
elementos.
Ao adotarmos o paradigma da rede estamos pensando o ambiente das
interaes, dos laos, da interconectividade, dos nexos e das relaes,
que se opem claramente quele apoiado em segmentaes e
disjunes. Estamos assim em plena tentativa de lidar com a complexidade e as
conseqncias de enfrentar esse desafio. Por que estamos desarmados perante a
complexidade?, pergunta-se Morin (2002a, p. 11). Ele mesmo responde: porque
nossa educao nos ensinou a separar e isolar as coisas. Separamos seus objetos
de seus contextos, separamos a realidade em disciplinas compartimentadas umasdas outras. A realidade, no entanto, feita de laos e interaes, e nosso
conhecimento incapaz de perceber o complexus aquilo que tecido em
conjunto. Temos, segundo Morin, um velho paradigma que nos obriga a disjuntar,
a simplificar, a reduzir sem poder conceber a complexidade e buscamos outro
capaz de reunir, de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, capaz de
reconhecer o singular, o individual, o concreto (voltaremos a essa discusso mais
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adiante). Assim como ecologistas que estudam as interaes formando sistemas
(Morin, 2000), estamos preocupados com as interaes, tanto internas como
externas aos processos, responsveis pela construo de obras, pois so
sistemas abertos que interagem tambm com o meio ambiente. Coloca-se
assim em crise o conhecimento do objeto fechado, esttico e isolado.
Kastrup (2004, p. 81), referindo-se ao principio da conexo3, fala que essas
interaes da rede se do por contato, contgio mtuo ou aliana, crescendo por
todos os lados e em todas as direes. importante pensarmos nessa expanso
do pensamento criador, no nosso caso, sendo ativada por elementos exteriores e
interiores ao sistema em construo. Essas conexes podem ser responsveis pela
inventividade, como veremos.
Tomemos a imagem de protenas interagindo no fermento, o que talvez nos auxilie
a visualizar essa ao de um elemento sobre o outro, que queremos enfatizar.
interessante observar a conseqncia dessa interao sob a forma de ramificao
de novas possibilidades uma ao geradora.
Mapa de interaes protena-protena4
3A autora estabelece dilogo com o pensamento de Gilles Deleuze e Flix Guattari. No nos aprofundaremosnessas relaes, aqui, embora, sejam extremamente instigantes para essa discusso.
4http://www.cnd.edu/~networks/cell
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http://www.cnd.edu/~networks/cellhttp://www.cnd.edu/~networks/cellhttp://www.cnd.edu/~networks/cell7/27/2019 Redes Da Criacao Cecilia Almeida Sales (1)
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Hawoong Jeong
O pensamento em criao manifesta-se, em muitos momentos, por meios bastante
semelhantes a esse que aqui vemos. Uma conversa com um amigo, uma leitura,
um objeto encontrado ou at mesmo um novo olhar para a obra em
construo pode gerar esse mesma reao: vrias novas possibilidades que podem
ser levadas adiante ou no. As interaes so muitas vezes responsveis por essa
proliferao de novos caminhos: provocam uma espcie de pausa no fluxo da
continuidade, um olhar retroativo e avaliaes, que geram uma rede de
possibilidades de desenvolvimento da obra. Essas possibilidades levam a selees
e ao conseqente estabelecimento de critrios.
A interatividade , portanto, uma das propriedades da rede indispensvel para
falarmos dos modos de desenvolvimento de um pensamento em criao. Em
nossas preocupaes relativas construo dos objetos artsticos como
objetos de comunicao, essas interaes devem ser especialmente
observadas, pois as indagaes recaem sobre esse pensamento, que se constri
nas inter-relaes, ou seja, como chamamos ateno acima, o processo de criao
est localizado no campo relacional. importante pensarmos no ato criador como
um processo inferencial,no qual toda ao, que d forma ao novo sistema, est
relacionada a outras aes de igual relevncia, ao se pensar o processo como um
todo. Estamos, assim, tomando inferncia como um modo de desenvolvimento do
pensamento ou obteno de conhecimento novo a partir da considerao de
questes j, de algum modo, conhecidas. O destaque est na viso evolutiva dopensamento que enfatiza as relaes entre elementos j existentes. Sob esse
ponto de vista, qualquer momento do processo simultaneamente gerado e
gerador (Colapietro, 2003) e a regresso e a progresso so infinitas. Foge-se,
assim, da busca pela origem da obra e relativiza-se a noo de concluso. Cada
verso contm, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final
representa, de forma potencial, tambm, apenas um dos momentos do processo.
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Os artistas caem, por vezes, na tentao da busca pelo ponto de partida daquela
obra, ao afirmar que o romance, por exemplo, nasceu de um conto, mas tambm
de uma cena vivida, de um texto lido etc. Do mesmo modo, o artista se v diante
da impossibilidade de determinar o ponto final absoluto, o final de um processo,
que representaria um momento que o agrada o suficiente para poder mostrar
publicamente (um ponto final suportvel). Ele pode j estar entrando em um novo
processo que, de algum modo, mantm dialogo com o processo anterior, ou pode,
tambm, retomar essa obra em outros momentos das mais diversas maneiras. Se o
pensamento relacional, h sempre signos prvios e futuros. Esta abordagem do
movimento criador, como uma complexa rede de inferncias, refora a
contraposio viso da criao como uma inexplicvel revelao sem histria, ou
seja, uma descoberta sem passado, s com um futuro glorioso que a obra
materializa.
Morin (2000, p. 207) enfatiza tambm os problemas acarretados pela
especializao abstrata: extrai um objeto de seu contexto e do seu conjunto,
rejeita os laos e as intercomunicaes com seu meio e o insere num
compartimento, que aquele da disciplina cujas fronteiras destroem
arbitrariamente a sistematicidade (a relao de uma parte com o todo) e a
multidimensionalidade dos fenmenos. Este pensamento, segundo o autor,
revela a inanidade do reducionismo que dissolve os sistemas para considerar
somente suas partes, e do atomismo que concebe seus objetos de maneira
isolada; e produz o restabelecimento dos conjuntos constitudos a partir deinteraes, retroaes, inter-retroaes, que constituem um tecido complexo.
Da a necessidade de se pensar a criao artstica no contexto da complexidade,
romper o isolamento dos objetos ou sistemas, impedindo sua descontextualizao
e ativar as relaes que os mantm como sistemas complexos. Uma deciso do
artista tomada em determinado momento tem relao com outras anteriores e
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posteriores. Do mesmo modo, a obra vai se desenvolvendo por meio de uma srie
de associaes ou estabelecimento de relaes. A anotao no guardanapo do
bar no nada mais, muitas vezes, do que a tentativa de no deixar uma
associao se perder.
Vale ressaltar que falamos dessas relaes no contexto da no-linearidade. Daniel
Ferrer (1994), em seu texto La toque de Clementis, ressalta a orientao dupla
da gnese: movimentos prospectivo e retroativo. No se avana sem interpretar e
avaliar o que j foi produzido. Essa dicotomia, no entanto, no suficiente para
tratarmos da complexidade dos processos criativos. Assumindo o conceito de rede,
essa dicotomia naturalmente superada: abrange-se a simultaneidade de aes e
a ausncia de hierarquia, e intenso estabelecimento de nexos.
O critico, ao estabelecer nexos a partir do material estudado, procura refazer e
compreender a rede do pensamento do artista. Vejamos um exemplo que talvez
esclarea essa conexo entre os diferentes documentos do processo.
Daniel Senise 5 relata, em determinado momento de seus cadernos, um sonho que
teve:
O avio comeou a fazer as manobras de aproximao sobre um mar cheio de
pequenos barcos com cabine.
Nesse momento Senise adiciona certas imagens. Vejamos essa anotao:
5Estudei os dezessete cadernos de anotaes de Daniel Senise, produzidos no perodo de 1988 a 1999.
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Mais adiante no relato, o sonho transforma o avio em bumerangue:
O avio ia fazer um pouso de emergncia na gua. J no era mais um avio e
sim duas longas asas tipo bumerangue.
Em inmeras outras pginas de seus cadernos, encontramos desenhos que fazem
referncia verbal/visual a bumerangues. Podemos perceber que no h mais o
objeto, mas seu rastro ou movimento.
bumerangues 11-94 Rio
fazer percurso c/ pregos
precisa ser muito grande
calcular tam.dos pregos
proporcional com o tam. da tela
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Em outras pginas, encontramos anotaes como: a minha paisagem no contm
nada alm de restos. um sto com objetos pessoais (...) restos de memria,
de cultura que vieram parar na minha praia-sto. Ou ainda: Sudrio e
memria no so dois temas, mas dois plos que estabelecem uma relao da
pintura (plstica, portanto fsica) com uma questo humana (e memria). O
sudrio o registro de um evento. A pintura como sudrio ao mesmo tempo a
representao e o objeto e Uma questo que vou desenvolver no meu trabalho
a do sudrio.
Encontramos tambm em seus documentos imagens do processo de
enferrujamento de pregos para construo de algumas de suas obras:
PROCESSO DE ENFERRUJAMENTO
E observamos a sua srie de obras chamada Bumerangue
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Srie Bumerangue (1994)
Ao relacionar esses dados oferecidos pelos documentos, percebemos que o
conceito de memria, com o qual o artista lida, ganha complexidade na srie
Bumerangue, medida que os objetos do sonho so apagados como tal e deixam
suas sobras no movimento, ou seja, fica a memria do objeto, como na imagem
do sudrio. Ao mesmo tempo, o prego, quando enferrujado, levado para a tela
como memria de sua materialidade. Ao relacionar diferentes momentos dos
cadernos, registros do processo de enferrujamento e obras, chegamos a alguns
dos procedimentos adotados por esse artista, rumo a suas telas, abordando a
memria por meio de resduos: memria do bumerangue em seus rastros e
memria do prego na ferrugem.
Esse exemplo nos fala da interatividade de gestos do artista, registradas em seus
documentos, reativada pelo olhar do critico; no entanto, a interatividade ao longo
da criao artstica observada em mbitos diversos. No se pode deixar de levar
em conta, por exemplo, as interaes entre indivduos como um dos motores do
desenvolvimento do pensamento: conversas com amigos, aulas com mestres
respeitados ou opinies de leitores ou espectadores particulares. Uso o termo
leitor particular assim como Cortazar (1991) define algumas pessoas, escolhidas
pelo artista, para terem um acesso preliminar s obras, recm-terminadas ou
ainda em processo. Uma relao que envolve confiana. As obras de outros
artistas e cientistas travam tambm contnuos dilogos com criaes em processo
e explicitam assim conversas com a histria da arte e da cincia. Essas interaes
so sempre instigantes e provocam reaes.
Devemos pensar, portanto, a obra em criao como um sistema aberto que
troca informaes com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interaes
envolvem tambm as relaes entre espao e tempo social e individual, em outras
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palavras, envolvem as relaes do artista com a cultura, na qual est inserido e
com aquelas que ele sai em busca. A criao alimenta-se e troca informaes com
seu entorno em sentido bastante amplo. Damos destaque, desse modo, aos
aspectos comunicativos da criao artstica.
Voltando definio de rede, Musso (2004, p.31) fala de sua interconexo instvel
no tempo: a gnese de uma rede (de um elemento de uma rede) e sua transio
de uma rede simples para outra mais complexa so consubstanciais a sua
definio. A estrutura da rede inclui sua dinmica. Arnheim (1976, p.149)
percebe algo semelhante ao acompanhar os esboos de Picasso para Guernica: a
combinao de crescimento e execuo, no processo criativo, leva a um
procedimento que no pode ser descrito como a elaborao sucessiva de
fragmentos ou partes, mas sim a elaborao de entidades particulares, cada uma
das quais atua dialeticamente sobre a outra. Uma interao de interferncias,
modificaes, restries e compensaes conduz gradualmente complexidade do
todo da composio.
James Lord (1998, p.39) percebe essa mesma relao do trabalho com um
fragmento e a conseqente alterao do todo do retrato que Giacometti estava
fazendo. Quando finalmente decidiu parar no fim de um dia de trabalho, a
pintura tinha feito um progresso real, bastante perceptvel, ainda que s a cabea
tivesse mudado. Ela estava agora mais reta e mais delineada, com uma sensao
de perspectiva e de volume marcada. Nesse caso, o acompanhamento do
processo feito por J. Lord que nos oferece essa informao, pois no h esboos,como no caso de Picasso e Arnheim. O estudo integrado obra, isto , as
tentativas de obra, quando no so bem avaliadas pelo artista, tomam o carter
de esboos ou estudos.
Sob esse prisma, interessante pensar que a rede da criao se define em seu
prprio processo de expanso: so as relaes que vo sendo
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estabelecidas, durante o processo, que constituem a obra. O artista cria
um sistema, a partir de determinadas caractersticas que vai atribuindo em um
processo de apropriaes, transformaes e ajustes, que vai ganhando
complexidade medida que novas relaes vo sendo estabelecidas. O que
buscamos a compreenso da tessitura desse movimento, para assim entrar na
complexidade do processo.
Quanto obedincia a regras de funcionamento da rede, mencionada por Musso,
diante do que vimos discutindo, podemos falar no processo de criao artstica
como uma rede dinmica guiada pela tendencialidade. As interaes so norteadas
por tendncias, rumos ou desejos vagos. O artista, impulsionado a vencer o
desafio, sai em busca da satisfao de sua necessidade, seduzido pela
concretizao desse desejo que, por ser operante, o leva ao, ou seja,
construo de suas obras. A tendncia indefinida, mas o artista fiel a esta
vagueza. O trabalho caminha para um maior discernimento daquilo que se quer
elaborar. No h tendncias fixas, mas h aquelas historicamente manifestas, em
determinados momentos da obra de um artista, que se desenvolvem e se
modificam.
A leitura dos dirios de Paul Klee (1990), por exemplo, nos coloca diante de sua
incansvel busca pela cor e tonalidade, constatando, de modo angustiado, que
tinha em seus olhos e em suas mos s linhas. James Lord (1998) relata a
tentativa incessante de Giacometti de reproduzir ou representar o que via e suas
frustraes diante desse desafio. Temos, nesses dois casos, a descrio da grandebusca desses dois artistas plsticos onde a percepo visual, como vemos, tem um
papel primordial no grande projeto ou tendncia dos dois processos. Fica bastante
claro que, ao tentarmos compreender o que significa ver cor e no linhas e um
modo especfico de ver os objetos do mundo, estamos entrando nesse universo
das vagas tendncias pessoais.
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De modo semelhante, o videomaker Bill Viola (1998, p 148) diz, em uma de
suas anotaes, que tem estado bastante alerta em seu trabalho ao fato de que a
cmera a representao de um ponto de vista, ou seja, um ponto de conscincia.
A relao assim estabelecida: Ponto de vista, localizao perceptiva no
espao, pode ser ponto de conscincia. Esse parece ser um dos
direcionamentos de seus trabalhos.
Para ns, observadores de processos, a vagueza desses direcionamentos ganha
algum grau de definio e delimitao, ao estabelecermos relaes entre os dados
oferecidos pelos documentos e as obras, assim como foram entregues ao pblico.
Voltando interatividade que mantm as redes em contnua expanso, pensemos
nas interaes responsveis pela gerao de novas idias ou
possibilidades de obras. O processo inferencial destaca as relaes, como
vimos; no entanto, para compreender melhor o ato criador, interessa-nos a
natureza destes vnculos, isto , do que so feitas as inferncias, suas tessituras.
De um modo geral, poderamos observar essas inferncias sob o ponto de vista da
transformao (ou transformaes) que opera(m), na medida em que as
interaes, como aes recprocas, modificam o comportamento ou a natureza
dos elementos envolvidos (Morin, 2002b, p.72). Essas modificaes nos levam a
um novo campo semntico que nos parece ser de grande importncia: dar nova
forma, ou feio; tornar diferente do que era; mudar, alterar, modificar,
transfigurar, converter, metamorfosear. Essa caracterstica das interaes vai
guiar muito da nossa discusso, se pudermos pensar, de modo abrangente, queestaremos nos aproximando da maneira como essas transformaes acontecem:
nos modos como estas operam na percepo do artista, nas estratgias da
memria, nos procedimentos artsticos agindo sobre seus materiais e na fora da
imaginao. Estamos, assim, nos instrumentando para observar sujeitos em ao
e autorias se constituindo.
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A natureza inferencial do processo, associada a seu aspecto
transformador, nos remete ao raciocnio responsvel por idias novas ou
pela formulao de hipteses, diante de problemas enfrentados (abduo, em
termos peirceanos). A criao como processo relacional mostra que os elementos
aparentemente dispersos esto interligados; j a ao transformadora envolve o
modo como um elemento inferido atado a outro. Os elementos selecionados j
existiam, a inovao est no modo como so colocados juntos, ou seja, na
maneira como so transformados. A inovao da inferncia encontra-se na
singularidade da transformao: algumas dessas combinaes so inusitadas. A
atividade esttica tem o poder de reunir o mundo disperso, lembra Bakhtin (1992).
As construes de novas realidades, pelas quais o processo criador responsvel,
se do, portanto, por meio de um percurso de transformaes, que envolve
selees e combinaes.
importante ressaltar que h uma confluncia de fatores influenciando estas
transformaes. O produto em construo um sistema aberto que troca
informaes com seu meio ambiente, como j discutimos. Com auxlio de Morin
(1998), constata-se que cultura e sociedade esto em relao geradora mtua.
Ao discutir essa relao, no entanto, a sociologia do conhecimento, para Morin, no
pode apenas detectar as limitaes sociais, culturais e histricas que imobilizam e
aprisionam o conhecimento imprinting cultural -, mas tambm considerar as
condies que o mobilizam ou liberam, isto , as condies que permitem a
autonomia e as inovaes do pensamento. Por um lado, o imprinting, anormalizao, a invarincia, a reproduo; por outro lado, os enfraquecimentos
locais do imprinting, as brechas na normalizao, o surgimento dos desvios, a
evoluo do conhecimento, as modificaes nas estruturas de reproduo (Morin,
1998, p. 37/38). O privilgio de encontrar brechas e de desenvolver um
pensamento responsvel pelo desvio de normas no se restringe, sob esse ponto
de vista, ao artista.
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Entramos assim na discusso sobre a novidade nos processos de produo.
Questes relativas inovao nos levam sempre ao campo da arte; por esse
motivo, o termo criao radicalmente questionado quando aplicado aos processos
de comunicao social, por exemplo. Parece que s a arte digna desta
qualificao. Acreditamos que muito desse ponto de vista se nutre de um conceito
de criao que toma como referncia a viso romntica do artista, como aquele
que concebe obras a partir de sopros de inspirao. No entanto, essa viso que
estamos aqui discutindo, reforada pelos estudos genticos, nos coloca diante da
criao como resultado de trabalho, que abarca o raciocnio responsvel pela
introduo de idias novas, que abarca, por sua vez, essa perspectiva de
transformao. Acreditamos que, desse modo, pode-se falar que h criao em um
espectro maior dos processos de produo, sejam eles concretizados nas artes ou
em qualquer outro meio de comunicao. O que difere, entre muitos aspectos, a
tendncia do processo, a natureza dos elementos conectados e os recursos
utilizados para tais associaes.
Um outro aspecto que envolve a criao que a continuidade do processo, aliada
a sua natureza de busca e de descoberta, nos leva a encontrar formulaes
novas, trazidas por este elemento sensorial do pensamento, ao longo de todo o
processo. Sob esta perspectiva, todos os registros deixados pelo artista so
importantes, na medida em que podem oferecer informaes significativas sobre o
ato criador. A obra no fruto de uma grande idia localizada em momentos
iniciais do processo, mas est espalhada pelo percurso. H criao em dirios,
anotaes e rascunhos.
Quais as conseqncias de se abordar o processo de criao sob esta perspectiva
que acabamos de apresentar? Tomamos como plataforma para nossos saltos
interpretativos o conceito de rede em processo associado dinamicidade e
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transformao. Para nos aproximar dessa rede em construo, devemos levar em
conta a condio de inacabamento no campo da incerteza, a multiplicidade de
interaes e a tenso entre tendncias e acasos.
Em uma critica de processo, temos que conseguir reativar o movimento da rede.
Para tal empreitada, devemos abrir mo de pressupostos e hbitos que, outras
posturas, preocupadas com os objetos estticos, adotam. Nada mas est
sendo. A forma nominal associada a processos o gerndio.
Antes de mais nada, temos que nos entregar dedicada e aguada observao
dos documentos com os quais lidamos e tirar os procedimentos de criao, que
buscamos, de dentro deles. Para que isso acontea devemos nos apropriar de um
olhar interpretativo relacional, que seja capaz de superar nossas tendncias para a
segmentao das anlises e que se habilite a estabelecer nexos e nome-los. As
descries de segmentos isolados devem, assim, abrir espao para interpretaes
das relaes que os conectam. Narrar o que acontece de um gesto para outro no
leva tambm compreenso do movimento. Queremos entender como se constri
o objeto artstico e no recontar como se deu a seqncia dos eventos ou das
aes do artista. Estes eventos, por sua vez, no podem ser tomados como
etapas, em uma perspectiva linear, mas como ns ou picos da rede, que podem
ser retomados a qualquer momento pelo artista. Nossa leitura deve ser capaz de
interconectar esses pontos e localiz-los em um corpo terico formado por
conceitos organicamente inter-relacionados, como falvamos na apresentao.
Esse movimento do olhar do crtico deve reverter em uma maior compreensosobre os modos de desenvolvimento de obras e, conseqentemente, sobre os
procedimentos de um pensamento em criao.
Devemos aprender a lidar com a criao na perspectiva temporal onde tudo se d
na continuidade, ao longo do tempo no universo do inacabamento. Para tal,
precisamos estar alertas sua insero na histria e na cultura, compreender sua
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relao com o futuro e lidar com a impossibilidade de se definir incio e fim, entre
tantas outras questes. A continuidade no cega, mas tem tendncias, que
enfrentam a interveno de acasos. Buscamos a compreenso dessas tendncias
(o que os artistas querem de suas obras) e seus modos de ao (como vo
manuseando e amoldando seus desejos e seus materiais). Na contnua
transformao, uma coisa passa a ser outra. Olhando para o processo em uma
perspectiva ampla, que tipo de movimento est sendo estabelecido? Do que so
feitas as tendncias desse movimento?
Para tais respostas, no se pode perder de vista um outro ponto de extrema
importncia: as relaes entre geral e especfico. O pensamento da
complexidade, como vimos, deve estar apto a reunir, contextualizar, globalizar; no
entanto deve estar apto tambm para reconhecer o singular, o individual, o
concreto. Destacamos dois aspectos relativos a esse tema relevantes para os
crticos de processo. Ao caminhar em direo a uma teorizao sobre processos de
criao, em uma perspectiva mais geral, estamos em pleno campo da globalizao,
tomando como referncia para tais generalizaes os documentos singulares e
individuais de uma grande multiplicidade de artistas. Sob esse ponto de vista,
reunir a diversidade singular possibilita termos um olhar de natureza mais geral: a
generalizao , assim, alimentada pelos processos especficos. Ao mesmo tempo,
as discusses sobre caractersticas que so gerais a todos os processos devem
contemplar ou abrir espao para compreender aquilo que especfico de cada
sujeito que est envolvido em percursos criativos. Os estudos sobre a criao se
estabelecem, sob esse prisma, nessa inter-relao do geral e do especfico, isto ,sem perder de vista essas duas dimenses.
Munidos desse universo conceitual, que sustenta o modo como abordamos a
criao, comeamos nosso percurso para conhecer mais de perto essa complexa
rede em construo. Observamos as macro-relaes do artista com a
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cultura e, aos poucos, nos aproximaremos do sujeito em seu espao de
transformaes.
RUAS E ESCRITRIOS
Para compreender o tempo e o espao do processo criativo, falemos das redes
culturais. Morin (1998) oferece um caminho interessante para observamos o artista
inserido, inevitavelmente, na efervescncia da cultura, onde h intensidade e
multiplicidade de trocas e confrontos entre opinies, idias e concepes. As
inovaes do pensamento, segundo o autor, s podem ser introduzidas por este
calor cultural, j que a existncia de uma vida cultural e intelectual dialgica, na
qual convive uma grande pluralidade de pontos de vista, possibilita o intercmbio
de idias, que produz enfraquecimento dos dogmatismos e normalizaes e o
conseqente crescimento do pensamento. A dialgica cultural favorece o calor
cultural que, por sua vez, a propicia. H uma relao recproca de causa e efeito
entre o enfraquecimento do imprinting (normalizaes), a atividade dialgica e a
possibilidade de expresso de desvios, que so os modos de evoluo inovadora,
reconhecidos e saudados como originalidade.
nesse ambiente cultural que os documentos de processo e obras, que chegam as
nossas mos, esto inseridos. Todos os processos de criao so parte dessa
efervescente atividade dialgica, que atua nas brechas - nas tentativas de
expresso de desvios proporcionados e, ao mesmo tempo, responsveis por esse
clima em ebulio. De modo semelhante, Colapietro (1989) discute, sob o ponto
de vista semitico, o sujeito como um ser histrico e concreto, culturalmente
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sobre-determinado, inserido em uma rede de relaes. Ns estamos sempre j no
meio de outras pessoas e de outros significados; nossa funo definida, ao
menos parcialmente, em termos de nosso tempo e espao.
Vale ressaltar que Morin discute essa turbulncia presente em todas as culturas,
sem deixar de destacar algumas onde o calor mais intenso, como as culturas da
Amrica Latina. Trata-se, portanto, de um aspecto relevante, ao discutirmos os
diversos processos de criao como parte e, ao mesmo tempo, responsveis por
essa efervescncia cultural.
Tendo essas questes postas, nossas indagaes recaem sobre como os processos
criativos interagem com a cultura. Como se constri a obra nesse contexto de
intensas interaes? Com quem dialoga, de que modo, para qu? Essas so
algumas perguntas que fazemos ao pensar no tempo e no espao da criao. Isto
nos leva a no poder discutir esses processos de modo descontextualizado, mas
imersos nessa atmosfera. De modo mais especfico, isto nos leva a acompanhar os
modos como se travam as interaes com a cultura.
Para que haja organizao, na macro-estrutura da cultura, segundo Morin,
preciso que haja interaes; para que haja essas conexes so necessrios
encontros; e para que haja encontros preciso agitao, turbulncia. Isso nos
leva a fazer uma relao da atmosfera cultural descrita por Morin, com o
pensamento em criao que age de modo bastante similar. O acompanhamento
de processos de criao nos mostra que a efervescncia cultural incita o artista. Oprofundo comprometimento com as obras em construo o pe em condies
propcias para encontros nessa turbulncia cultural. Os documentos registram
muitos momentos de intensidade, nos quais relaes ficam claras: ele tudo olha,
recolhe o que possa parecer de interesse, acolhe e rejeita, faz montagens,
organiza, idias se associam, formas alternativas proliferam e pesquisas integram
a obra em construo. Enfim, um turbilho de possibilidades interativas.
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Imerso e sobre-determinado pela sua cultura (que por seu estado de efervescncia
possibilita o encontro de brechas para a manifestao de desvios inovadores) e
dialogando com outras culturas, est o artista em criao. Ele interage com seu
entorno, sendo que a obra, esse sistema aberto em construo, age como
detonadora de uma multiplicidade de conexes. Estamos falando da tendncia do
processo em seu aspecto social: o percurso criador alimenta-se do outro, visto de
modo bastante geral.
Alguns documentos dos artistas conseguem mostrar com maior facilidade os
registros que fazem desse clima que os envolve: anotaes em suportes os mais
diversos, dirios, correspondncia e notas de viagem, biblioteca, por exemplo, so
ricos para observarmos como se configuram essas relaes culturais.
Quanto ao convvio com a efervescncia cultural, interessante observar que o
artista parece necessitar, de modo vital, desse clima. Se no o encontra, sai em
busca, como tantos que foram para Paris nas primeiras dcadas do sculo XX. Nas
cartas que John Cage troca com Boulez (Nattiez, 1993, p.46), de 1949 a 1954, o
msico norte-americano fala exatamente dessa necessidade e da conseqente
importncia da correspondncia para ele, pois um dos problemas que enfrentava
nos Estados Unidos era a ausncia de vida intelectual, que tanto procurava. Em
outro comentrio, compreendemos melhor o que ele quer dizer com isso: sem
notcias suas, fico sem notcias de msica e voc sabe que amo profundamente a
msica . interessante notar que Cage comentava, inmeras vezes, o intensodilogo com pessoas como Merce Cunnigham; naquele momento, no entanto, era
de troca musical que ele parecia sentir falta, em um contexto dominado pela
rotina e pelo neoclassicismo, como lembra Nattiez (1993, p.6), na apresentao
da publicao destas cartas.
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De modo semelhante, mais para o fim da correspondncia entre os dois msicos
(setembro de 1962), Boulez (Nattiez,1993, p.153) faz referncia a sua ida para a
Alemanha, como busca por outra atmosfera cultural. Ele diz no ter espao poltico
(entre aspas) na nobre cidade-luz, que rapidamente estava se tornando cidade da
escurido e do obscurantismo.
Pensando, ainda, nessas interlocues, no podemos deixar de relacionar o
fascnio por cidades em estado de maior turbulncia cultural e a atrao similar
por locais com clima diferente e nova luminosidade. A histria da arte est repleta
de exemplos dessas viagens em busca da luz. Os dirios de Paul Klee registram, de
modo emocionado, sua passagem pela Tunsia, quando finalmente encontra a cor
e torna-se pintor.
Essa busca por ambientes culturais mais propcios s trocas ou aos dilogos parece
estar sustentada por necessidade de interlocuo em sentido bastante amplo.
interessante observar as referncias que alguns artistas fazem aos modos de
driblar a experincia do processo de criao como monlogo ou percurso solitrio.O escritor John Steinbeck (1990), por exemplo, ao longo da produo de seu livro
East of Eden, escrevia cartas, quase que diariamente, para seu amigo e editor
Pascal Covici, que nunca lhe foram enviadas. As anotaes funcionavam, segundo
o escritor, como um perodo de aquecimento e de articulao de idias. Mondrian,
por sua vez, escreveu textos sob forma de dilogo, criando assim um espao
virtual de interlocuo.
Volto imagem de rede para compreender o modo como o artista se envolve com
a cultura, isto , os dilogos que ele estabelece se interconectam em uma trama,
que o insere em determinadas vertentes ou linhagens. Da a relevncia de se
acompanhar as escolhas responsveis pela formao dessa trama.
assim que vamos compreender a relao do artista com a tradio. Cada obra ou
cada manuseio de determinada matria estabelece interlocues com a histria da
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arte, da cincia e da cultura de uma maneira geral, assim como se remete ao
futuro. Em jogos interativos, o artista e sua obra alimentam-se de tudo que os
envolve e indiciam algumas escolhas.
Os relatos sobre o estabelecimento dessa relao com o passado encontram
momentos especiais em viagens de certos artistas. Paul Klee (1990) fala em seus
dirios de viagens de estudo, para a Itlia e para a Frana, onde ele aprende seu
lugar na histria da arte, na medida em que vai entendendo o que o atrai ou no,
vai fazendo suas escolhas, conhecendo suas preferncias e averses e
compreendendo, desse modo, a sua arte. Sabemos o que e quem eles admiram e,
de algum modo, o que procuram, por meio dos comentrios, das selees,
crticas e comparaes. Tomamos, assim, conhecimento de afinidades eletivas.
No s no caso das artes visuais, mas especialmente para os artistas dessa rea, o
papel dos museus de extrema relevncia no estabelecimento das conexes com
a tradio. Henry Moore (2002, p.44/45), em uma de suas anotaes, faz um
relato emocionado de sua primeira visita ao British Museum em 1921:tudo era fascinante um novo mundo em cada canto. Passou a primeira tarde
com esculturas assrias, egpcias e negras. Um pouco antes do horrio de
fechamento descobriu a sala de gravuras com o material japons: uma alegria por
vir.
Depois ele explica, em mais detalhes, a importncia desse museu para a histria
de suas obras. As trs visitas semanais eram mais significativas do que o cursoque estava fazendo no The Royal College of Art. Voc tem tudo que veio atrs de
voc; e est livre para encontrar seu caminho e, depois de um tempo, encontrar o
que mais o atrai. E ele explicita suas escolhas: Depois da excitao inicial, eram
a arte antiga mexicana, junto com a arte romnica europia e britnica, as mais
significativas para mim. Admito que a arte antiga mexicana formou minha viso de
entalhamento mais do que qualquer outra coisa que pudesse ter feito.
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Pelas cartas de Van Gogh6, conhecemos tambm sua forte ligao com a arte de
inmeros artistas, cujas obras so mencionadas e comentadas de modo
aguadamente crtico. H alguns com quem os elos so mais slidos como Millet,
Delacroix, Gainsborough, Corot, Mauve, Ruysdael, Rembrandt, Thijs Maris, Israels,
Drer, Jules Breton, Daumier, Gustave Dor, Daubigny, Frans Hals, Velsquez,
Rubens e Goya.
Louise Bourgeois (2000), em entrevistas, fala da diferena de suas obras e as de
Giacometti; de sua admirao pela coragem de Lger em transformar figuras no
que ele queria; e da influncia decisiva de seu professor, o tapeceiro Roger
Bissire.
Essa insero na tradio tambm feita por meio de leituras, da a importncia
das bibliotecas dos artistas para a compreenso da construo de suas obras.
Encontramos nesses locais no s os livros que, por algum motivo, foram lidos e
passaram a fazer parte das tantas camadas que envolvem os processos de criao,mas tambm os modos de apropriao dessas leituras, refletidos nas anotaes
marginais e em outras notas. As bibliotecas integram a histria das obras em
construo, deixando rastros da pesquisa artstica. A biblioteca de um artista, com
todas as variaes possveis, preserva essa insero do artista na linha do tempo.
A vasta pesquisa de Tel Ancona Lopez sobre a biblioteca de Mrio de Andrade
prdiga de ilustraes desses dilogos. O potencial de criao guardado nas
leituras e notas faz a pesquisadora nomear sua biblioteca como seara e celeiro.(Lopez, 2002)
6As citaes das cartas de Van Gogh para seu irmo, Theo, tm duas referncias: o site
http://www.vangoghgallery.com/letters e a publicao Cartas a Tho. Porto Alegre: L&PM, 2002, cujaspginas so citadas.
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http://www.vangoghgallery.com/lettershttp://www.vangoghgallery.com/letters7/27/2019 Redes Da Criacao Cecilia Almeida Sales (1)
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Alguns artistas fazem desse dilogo com a tradio sua matria-prima. O Jogo da
Parlenda, de Heloisa Prieto (2005), por exemplo, explicita o modo como as rimas
infantis, que nos acompanham desde sempre, vm sendo construdas ao longo do
tempo. O jogo se instaura nas relaes da tradio com as inovaes individuais e
annimas, que so absorvidas em um processo silencioso. Alis, muito da obra
dessa autora explicado nesse embate frtil com a histria universal da narrativa.
Percebemos que alguns sentem necessidade dessa busca explcita pela obteno
de conhecimento sobre questes as mais diversas temtica ou relativas a
tcnicas de explorao de uma determinada matria, entre tantas outras. Isto
fica claro em muitos auto-comandos que observamos em algumas anotaes: no
esquecer de fotografar tal coisa ou preciso pesquisar mais sobre tal assunto.
Assim essa coleta de informaes escancarada.
Thomas Mann (2001, p. 111) oferece um timo exemplo dessa pesquisa
bibliogrfica, enquanto escrevia Dr. Fausto. Conta que leu A lenda do Fausto:
livros populares, teatro popular, teatro de marionete, tormentos infernais e livros
de magia de J. Scheible (1847). Diz ter encontrado nessa mauda antologia de
manifestaes do tema popular, todas as consideraes imaginveis sobre o tema
do Fausto, como o ensaio de Grres, sobre o aspecto mgico da lenda, o
exorcismo de espritos e a aliana com o Mal. Nesse caso, vemos a necessidade de
conhecer o que j tinha sido feito sobre o tema que pretendia desenvolver em seu
romance.
As pesquisas passam a ser mais um meio condutor de dilogos externos, que
trazem para dentro do processo outras vozes, muitas vezes chamadas de
influncias. Do modo como estamos tratando esses dilogos, aqui, no vemos essa
questo com o peso negativo da falta de originalidade, mas da diversidade de
referncias, que constitui a trama de que feita a histria de cada artista.
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Mrio de Andrade (1982, p.31) acalma o amigo Carlos Drummond de Andrade, que
se dizia angustiado diante da ascendncia de Mrio sobre ele. Em ltima anlise
tudo influncia neste mundo. Cada individuo fruto de alguma coisa. E em
seguida aponta um aspecto importante nessa discusso, que a dificuldade de
distino entre essas ditas influncias e a revelao do que somos: muitas vezes
um livro revela pr gente um lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendncia,
processo de expresso, tudo. O livro no faz que apressar a apropriao do que
da gente.
O escultor Isamu Noguchi (1987, p.104), de modo semelhante, ao comentar sobre
sua obra She, diz que enquanto a estava produzindo, algum lhe disse que estava
parecendo muito Brancusi e que ele no deveria se permitir tanta influncia. Ao
contrrio, sentia-me lisonjeado de ser reconhecido dessa maneira a continuidade
de seu passado uma espcie de validao. O reconhecimento da linhagem
viabiliza julgamento e apreciao do que revolucionrio ou o que adicionado
por aquele artista. No me sinto subordinado aos outros, nem aprisionado a meu
passado.
Os cadernos de Daniel Senise parecem cumprir, em determinados momentos, a
funo de registrar algumas dessas tentativas do pintor de manter dilogo com
outros artistas, no qual ele parece encontrar brechas nas diferenas. Diz ele:
Estou tentando pensar nas coisas que so essenciais para o meu trabalho.Primeiro surgiu: o mistrio da imagem. Mas este princpio j me deixa claro o
que diferencia o trabalho de Sigmar Polke i.e. o que no meu trabalho relevante
e que no passa pelo dele. Pelo menos diretamente. No seu trabalho pode ser uma
conseqncia. Para mim a ressonncia da imagem fundamental. [...] No entanto,
no identifico meu trabalho com artistas como Ray Smith. Porque R.S. no discute
a superfcie na sua poca. At Picabia o fez. Isto d ao trabalho de Ray um clima
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de dej vu. No sendo injusto com Ray, em alguns trabalhos em madeira ele deixa
a superfcie exposta. Acho que ele poderia explorar mais as propriedades fsicas
do quadro. Mas neste caso no seria mais o Ray Smith. Fui ver Ed Ruscha e ele
no se preocupa muito com esta questo da fisicalidade da pintura. E o resultado
o mximo. Alemanha, Frana e Estados Unidos, fim do sculo XIX e sculo XX, se
encontram na discusso sobre a superfcie da pintura.
Senise relaciona-se tambm com a literatura e alguns filsofos; no entanto, o
dilogo mais vigoroso aquele com a histria das artes visuais, principalmente
com a pintura, no s como uma forma de reflexo sobre sua obra e seu papelcomo artista, mas tambm na prpria natureza de suas imagens e a escolha
daquelas que o afetam de modo especial e passam a integrar, de alguma
maneira, suas obras. Como exemplo disso temos uma imagem de Giotto (Morte e
ascenso de So Francisco afresco da Capela Bardi da Igreja de Santa Cruz em
Florena) e outra de Whistler. (Arrangement in grey and black Portrait of the
painters mother , 1871)
No projeto de Lina Bo Bardi do Teatro Oficina, a arquiteta faz muitas anotaes em
seus esboos. Uma delas diz respeito, exatamente, a esses dilogos, no caso, com
a cultura japonesa. Parece fazer um lembrete do que quer de seu projeto:
simplicidade e clareza. Como num N japons.
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Croqui de Lina Bo Bardi / Projeto do Teatro Oficina de So Paulo
Como vimos, aprendemos muito da busca dos artistas nesses comentrios sobre
seus antecessores, mas no s; a arte que est sendo praticada peloscontemporneos tambm referncia para discusses e atua como uma espcie
de formadores de parmetros para suas prprias buscas. Thomas Mann (2001, p.
75) relata que temia que seu Dr. Fausto em construo, "comparado ao
vanguardismo excntrico de Joyce, parecesse de tradicionalismo insosso. E
explicita que, com essas escolhas, buscava um vnculo tradio, ainda que
matizado de pardia, que permitiria um acesso mais imediato, facilitando o alcance
de uma certa popularidade. Steinbeck (1990, p. 29), de modo similar, diz,enquanto escrevia East of Eden, temer que este fosse considerado antiquado:
para perceber as inovaes precisa ser observado bem de perto. Em termos de
ritmo, seu romance estava mais prximo de Fielding do que de Hemingway.
Aqueles que gostam de Hemingway no vo gostar desse livro.
Van Gogh (2002, p.298) comenta, com seu irmo Theo, algo semelhante em
relao a seus contemporneos. O que ser que Seurat anda fazendo ? Euno me atreveria a lhe mostrar os estudos j enviados, mas gostaria que ele visse
os dos girassis, dos cabars e dos jardins; penso freqentemente em seu
sistema. Contudo no o seguirei. Mas ele um colorista original e o mesmo vale
para Signac, mas num outro nvel. Os pontilistas descobriram algo de novo e
apesar de tudo eu gosto muito deles. Sua busca, no entanto, ia em outra direo
que, segundo ele, eram as cores significativas, que Delacroix e Monticelli embora
no tivessem falado sobre elas, j as usavam.
As conversas com amigos, que podem tomar vrias formas como cartas, e-mails
ou registros em anotaes ou dirios, parecem cumprir um papel importante como
espao de articulao e troca de idias com contemporneos.
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Nas cartas de Helio Oiticica e Lygia Clark (Figueiredo, 1996, p.74/76), por
exemplo, acompanhamos, em 1968, esse tipo de dilogo. Oiticica comenta sobre a
inovao que eles estavam tentando fazer, em dilogo com a Semana de 22.
Chama para reflexo o pensamento de Marcuse e indica a leitura de Frantz Fanon.
O dilogo que Cage e Boulez travam ao longo de cartas deixa transparecer que um
instiga o trabalho do outro. Boulez explicita isso, em novembro de 1949: voc
a nica pessoa que se empolgou com os materiais sonoros com os quais trabalho.
Encontrar voc me fez pr fim a um perodo clssico do meu quarteto, que j
ficou para trs. Agora precisamos lidar com delirium real em som e
experimentao com sons como Joyce faz com palavras.
Trocam textos que produziram, falam de suas composies em processo, enviam
gravaes inacabadas, comentam a obra de Stockahusen e livros como o de
Schaffer sobre msica concreta. As respostas so repletas de comentrios
elogiosos, cobranas de novidade e constataes de que esto em estgio
semelhante de pesquisa. O clima de respeito e interesse mtuos.
Boulez estimula o dilogo do amigo com a literatura e com o acaso. Cage (Nattiez,
1993, p. 96), quando estava compondo Imaginary Landscape No IV (maio de
1951), conta que o texto de Boulez sobre o Jogo de Dados de Mallarm lhe serviu
de estimulo. E diz tambm ter lido muito Artaud por causa de indicaes do amigo.
Como vemos, as cartas captam a entrada do acaso no dilogo entre eles. Emdezembro de 1950, Boulez fala de um trabalho em construo que seria uma
coleo de 14 ou 21 polifonias, na qual cada intrprete poderia selecionar a que
preferisse. Trata-se da primeira meno de Boulez relativa a alguma forma de
operao do acaso. Em maio de 1951, Cage escreve sobre sua busca, naquele
momento que se sustentava na tenso entre a mobilidade e a imobilidade. Esta
seria a base do I-Ching para obteno dos orculos. Como todos sabemos essa
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uma experincia que Cage leva adiante e que se reverte no grande motivo de
discrdia entre eles. Boulez, comentando o rumo que as obras de Cage toma, diz
que a nica coisa com a qual no est contente o mtodo do acaso absoluto,
porque ele contra a facilidade e total falta de controle da escrita automtica.
Entraremos em mais detalhes sobre esse embate travado entre eles, quando
falarmos sobre o acaso.
Quando se discute essas relaes com a efervescncia cultural, a tradio e os
amigos, importante compreendermos o que o artista escolhe e como tudo isso
passa a integrar suas obras. Sabemos que so acessadas diferentes sries
culturais: artes visuais, literatura, filosofia e jornalismo, s para citar alguns
exemplos. Vimos msicos e pintores falando de sua relao com a literatura. O
videomaker Bill Viola constata sua relao com a poesia de Rainer M.Rilke e com o
budismo; Steinbeck com o jornal e Thomas Mann com a filosofia de Adorno.
Acompanhemos com mais vagar esse dilogo de Mann e Adorno, bastante
esclarecedor para compreendermos esses modos de integrao. O escritor relata
que ouviu Adorno tocar, na ntegra e do modo instrutivo, a Sonata opus 111,
enquanto ele estava escrevendo Dr. Fausto, ele diz: Nunca estive to atento
quanto naqueles instantes. Na manh seguinte, levantei-me cedo, e durante trs
dias dediquei-me a uma reelaborao e reestruturao rigorosas da palestra 43
sobre as sonatas, o que significou um enriquecimento e um embelezamento no
s do capitulo, mas do livro inteiro. Ao compor os pequenos versos para elucidar o
tema da arieta, inclu, como discreta demonstrao de gratido, o nomeWiesengrund (sobrenome paterno de Adorno).
Meses depois, Adorno passa a ser um leitor bem especial de Mann. O escritor leu
para ele os trs primeiros captulos do romance e o episdio da Opus 111. A
reao foi extraordinria. Adorno, tocado pelo aspecto musical e enternecido pela
pequena lembrana de sua aula, disse: Eu poderia passar a noite ouvindo! A
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partir da Mann manteve Adorno sempre por perto de seu romance em processo
como leitor crtico, sabendo que precisaria de sua assistncia, e s dela, ao
alcanar as profundezas ainda longnquas daquela obra. Ao mesmo tempo, Mann
fala do modo como os manuscritos do texto de Adorno sobre Schnberg foram
importantes para seu romance, no que dizia respeito lucidez de sua viso sobre
a crise geral da cultura, que ele pretendia extrair como elemento bsico para o
prprio tema do livro: a ameaa da esterilidade, o desespero inato predispondo
ao pacto com o diabo. Mas no s isso. Mann fala de um paralelismo entre o
construtivismo musical, discutido por Adorno, e o ideal formal que ele buscava:
pressentia que meu livro deveria ser aquilo mesmo de que ele tratava, ou seja,
msica construtivista.
Mann conta ter escrito uma carta para Adorno desculpando-se, na medida do
possvel, pelos emprstimos inopinados-impensados que fez de sua filosofia da
msica, confiante de que toda essa apropriao, tudo o que ali aprendera,
ganharia uma funo autnoma e uma vida simblica prpria em sua composio,
permanecendo intacta em seu contexto original.
interessante discutir essa observao de Thomas Mann, pois ele ressalta
questes importantes para a compreenso dos modos como os dilogos, com a
filosofia nesse caso, se relacionam com a obra literria em construo. Primeiro,
ele destaca o ato de fazer emprstimos. As apropriaes, das mais diversas
naturezas, so constantemente flagradas nos documentos dos artistas e so
matria prima de muitos (ou talvez de todos) processos criadores. Mann vai almda mera constatao e fala da nova funo que esses emprstimos passam a
exercer no novo contexto que integram, onde novas relaes so estabelecidas.
No se pode, portanto, negligenciar os vestgios deixados pelo mundo que envolve
um artista especfico, sem observarmos o processo de transformao que essas
marcas sofrem ao penetrarem o mundo ficcional em criao.
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Vejamos um outro exemplo interessante que diz respeito tambm a esses
dilogos. Trata-se da relao entre arte e sociologia no trabalho de Kiko Goifman
(2005)7, que no s fica clara em suas escolhas temticas, como as prises, mas
principalmente na metodologia adotada em seus documentrios. Ele diz que se
apropriou do modo como as pesquisas em sociologia, sua rea de formao, so
desenvolvidas: toma vrios casos individuais e busca o que tm em comum, para
assim retirar critrios para a edio.
claro que nem todas as transformaes geram resultados interessantes sob o
ponto de vista esttico. Parece ser isso a que Gabriel Garcia Mrquez (1997, p.
137) se refere, quando comenta, durante uma oficina de roteiros, que uma
determinada idia tinha sido roubada de Borges mas bem roubada. O que est
implcito nessa afirmao que pode haver peas mal apropriadas.
No h, como vemos, uma necessria delimitao dessa espcie de coleta sensvel
(ou sensorial, como chama Joo Carlos Goldberg) ao meio no qual o artista se
manifesta. Todo o processo de apreenso do mundo feito, normalmente, emfuno de uma obra ou de um projeto que vai alm da construo de uma obra
especfica. Conhecer os procedimentos criativos envolve, sob esse ponto de vista,
a compreenso do modo como os processos culturais se cruzam e interagem nos
processos criativos: como esses ndices culturais passam a pertencer s obras em
construo. Algo certo, essas interaes abrigam o que vem de fora em um
complexo intercruzamento refratrio s leituras dicotmicas que esbarram em
embates de oposies entre, por exemplo, original ou cpia e autoria ou noautoria.
interessante notar que quanto mais apontamos para a importncia de
localizarmos o tempo e o espao nos quais o processo de um artista est inserido,
7Depoimento no curso Criao de Imagem e Som em Meios Eletrnicos" do Senac-SP, junho de 2005
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mais nos aproximamos de uma indeterminao destes. Isto fica claro no modo no
linear, como sries, linguagens, autores e idias so coletados. Momentos
histricos diversos so associados e travam dilogo em nome dos interesses e
indagaes de um determinado artista.
Uma mesma pgina de um dirio pode colocar lado a lado fatos jornalsticos,
imagens da histria da arte, trechos de discusses filosficas recentes, que, por
sua vez, podem remeter a pensadores clssicos. Mais uma vez, quando se pensa
em determinao, encontra-se disperso. Quando nos aproximamos de alguns
pontos de referncia, nos deparamos com novas interaes das redes, ou seja,
suas ramificaes, divises e subdivises. Todo esse movimento impulsionado
pelas obras ou pelas indagaes que instigam o artista.
A rua embrenha-se pelo escritrio
Em nossa proposta de caminhar do ambiente social para aquele de natureza mais
individual, pode-se dizer que, de modo tanto metafrico quanto literal, a rua vai
para dentro do escritrio de trabalho. O termo escritrio est sendo usado em
referncia a qualquer local de trabalho, independentemente do nome que receba:
ateli, estdio, redao, sala etc. O artista observa o mundo e recolhe aquilo que,
por algum motivo, o interessa. Trata-se de um percurso sensvel e epistemolgico
de coleta: o artista recolhe aquilo que de alguma maneira toca sua sensibilidade e
porque quer conhecer. s vezes, os prprios objetos, livros, jornais ou imagens
que pertencem rua so coletados e preservados. Em outros casos, encontradauma grande diversidade de instrumentos mediadores, como os cadernos de
desenhos ou anotaes, dirios, notas avulsas para registrar essa coleta que pode
incluir, por exemplo, frases entrecortadas ouvidas na rua, inscries em muros,
publicidades, fotos ou anotaes de leitura de livros e jornais. Esse
armazenamento parece ser importante, pois funciona como um potencial a ser, a
qualquer momento, explorado; atua como uma memria para obras. Assim os
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crticos de processos conhecem muito sobre o percurso criador nos registros, ou
seja, nas extenses de um pensamento em construo. Sob esse ponto de vista,
tanto escritrios como anotaes desempenham essa funo e se transformam em
eloqentes documentos dos processos.
Volto a ressaltar que o mais importante para compreender os mecanismos criativos
o estabelecimento DE RELAES que o crtico faz entre esses dados e as obras
em construo. S assim temos acesso aos modos de aproveitamento desse
entorno. importante saber o que aproveitado e o que no , e de que maneira
se d a transformao dessa coleta quando passa a pertencer obra em criao.
Por um lado, interessam-nos os procedimentos cognitivos responsveis pelo
desenvolvimento do pensamento; assim como os recursos literrios, plsticos,
musicais etc. responsveis pela natureza da apropriao. Muito da criao se d
nesse campo de interao que se estabelece na relao com o outro, tomado em
sentido vasto.
Tomando, por exemplo, a cidade como eixo de comparao entre trs processos
que venho acompanhando h algum tempo.
Igncio de Loyola Brando8 e Evandro Carlos Jardim9 mostram, ao longo de seus
processos criativos, estarem imersos na cidade de So Paulo, alimentando-se de
sua diversidade, anotando (visual e verbalmente) o que os atrai.
Loyola capta uma So Paulo megalpole: papis entregues nas ruas, imensosedifcios e engarrafamentos. J So Paulo, assim como traduzida por Jardim,
acontece no limiar entre o urbano e o rural que abrange do Largo 13 de Santo
Amaro ao Pico do Jaragu. Porm, ambos se atm, em outros momentos, ao
8 Estudei os documentos de processo (rascunhos, dirios, anotaes, jornais, fotos, mapas) de Igncio deLoyola Brando produzidos para a construo de seu romance No Vers Pas Nenhum.9 Esses estudos foram gerados por diversas visitas ao ateli do artista.
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interior das casas. De modo metonmico, lmpadas da estante de Loyola e tinteiros
Parker de Jardim so bons exemplos de objetos deste escritrio apreendidos por
eles e emprestados a seus projetos em construo.
As obras dos dois artistas absorvem So Paulo de modo transformado. So as
cidades de cada um deles, ou melhor, de suas obras. Em No Vers Pas Nenhum,
especialmente, e em outros romances, contos e crnicas, Loyola leva essa
urbanidade a seu extremo: observa, revolta-se, anota e exacerba seus horrores. A
cidade passa a ser no s o espao onde a histria se desenvolve ou o cenrio da
ao, mas adquire status de personagem ao impor restries, de modo inevitvel,
a seus habitantes ficcionais. Ao observar muitas das reflexes que envolvem a
construo dessas cida