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REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA R E C I F E DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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REDES D

E VALO

RIZAÇÃ

O D

A VID

A R

ECIFE

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDAR E C I F E

observatório de favelas

O Observatório é uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à produção de conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e os fenômenos urbanos. Foi criado em 2001, e em 2003 tornou-se uma organização da sociedade civil de interesse público (oscip), com sede na Maré, Rio de Janeiro.

É missão do Observatório de Favelas elaborar conceitos, projetos, programas e práticas que contribuam na formulação e avaliação de políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades sociais. Para isso, o Observatório atua em três áreas distintas: Comunicação e Cultura, Desenvolvimento Territorial e Direitos Humanos.

Para o Observatório, Direitos Humanos são parâmetros éticos, jurídicos e políticos, construídos por lutas sociais emancipatórias. É a partir dessa concepção que o Observatório de Favelas busca desenvolver seus projetos e propor metodologias que sirvam de exemplo para a redução da violência e contribuam para a valorização da vida.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 7

A P R E S E N TA Ç Ã O

ANA CAROLINA SENNA1

ANA FLÁVIA FERRAZ2

Os números de homicídios ocorridos em território nacional são alar-mantes. Nos últimos anos se matou mais no Brasil do que nos confl itos armados de Angola, Serra Leoa, Vietnã. Os índices se comparam aos de países em guerra. Embora o Brasil não esteja em guerra, seus números revelam uma espécie de guerra velada, que se expressa na elevação de um grupo específi co como “inimigo interno”. Apesar da fragilidade nas coletas de dados referentes ao assunto, quando são consultadas prioritariamente duas fontes: a Polícia Civil3 e o Sistema Único de Saúde4, pode-se identifi car esse “inimigo”: ele tem raça, idade e lugar de moradia bastante defi nidos. São, em sua maioria, homens jovens, negros e pardos e moradores das áreas estigmatizadas da cidade. Isso indica que, além da desigualdade na distribuição de bens e serviços, essa parcela da população também é vítima de um outro tipo de desigualdade: a distribuição da violência letal.

Segundo o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros publicado em 2008, em 2006 ocorreram 17.312 homicídios de jovens entre 15 e 24 anos no país, e 13.186 em 1996, o que representa um crescimento de 31,3% em dez anos. Esses números superam a taxa de homicídios da população geral, que teve uma alta de 20% no mesmo período. Além do recorte etário, racial e territorial das vítimas, os índices de violência

Ana Carolina Senna é formada em 1. Comunicação Social pela Universi-dade Federal de Pernambuco onde atualmente cursa o Mestrado em Comunicação. Sua experiência profissional está especialmente vinculada à atuação como edu-cadora e pesquisadora na área de comunicação nos movimentos sociais, mídia livre e comunitária.

Ana Flavia Ferraz é formada em 2. jornalismo, pela Universidade Católica e Pernambuco, e mestra em Comunicação pelo Instituto Tecnologico de Estudios Superiores del Occidente- ITESO- de Guada-lajara, México. Jornalista, videasta e educadora, com experiência nas interfaces entre comunicação, educação e segurança pública.

Os dados da Polícia Civil são base-3. ados nos Boletins de Ocorrência e, por questões jurídicas, os homicí-dios nem sempre são computados como tal, a exemplo dos latrocínios, morte seguida de roubo.

Através do Sistema de Informações 4. sobre Mortes, do DataSus, com base nos certifi cados de óbitos.

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDAR E C I F E

ORGANIZADORES

FERNANDO LANNES FERNANDES

ANA FLAVIA FERRAZ

ANA CAROLINA SENNA

Rio de Janeiro · 2009

4 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 5

S U M Á R I O

Apresentação

Redes de Valorização da Vida

Juventude, exclusão e processos de mudança: uma análise das políticas de juventude

“Aprender a ser” como um dos caminhos de promoção da resiliência

A vida que a mídia não vê

A guerra e os criminosos

7

15

43

63

79

93

Todos os direitos desta edição reservados ao Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

Rua Teixeira Ribeiro, 535 Parque Maré • MaréRio de Janeiro • RJ • cep: 21044-251

www.observatoriodefavelas.org.brcontato@observatoriodefavelas.org.br

Redes de valorização da vida – Recife / Fernando Lannes Fernandes, Ana Flávia Ferraz, Ana Carolina Senna (organizadores). – Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2009.

108 p. ; 18 cm

Inclui bibliografi a.

ISBN: 9788598881065

1. Serviço social com crianças – Recife. 2. Direitos das crianças – Recife. 3. Assistência a menores – Recife. 4. Adolescentes – Assistência em instituições – Recife. 5. Crime contra as crianças - Recife. 7. Crime contra o jovem – Recife. I. Fernandes, Fernando Lannes. II. Ferraz, Ana Flávia. III. Senna, Ana Carolina.

CDD: 362.795

Copyright © Observatório de Favelas do Rio de Janeiro 2009

4 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 5

S U M Á R I O

Apresentação

Redes de Valorização da Vida

Juventude, exclusão e processos de mudança: uma análise das políticas de juventude

“Aprender a ser” como um dos caminhos de promoção da resiliência

A vida que a mídia não vê

A guerra e os criminosos

7

15

43

63

79

93

Todos os direitos desta edição reservados ao Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

Rua Teixeira Ribeiro, 535 Parque Maré • MaréRio de Janeiro • RJ • cep: 21044-251

www.observatoriodefavelas.org.brcontato@observatoriodefavelas.org.br

Redes de valorização da vida – Recife / Fernando Lannes Fernandes, Ana Flávia Ferraz, Ana Carolina Senna (organizadores). – Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2009.

108 p. ; 18 cm

Inclui bibliografi a.

ISBN: 9788598881065

1. Serviço social com crianças – Recife. 2. Direitos das crianças – Recife. 3. Assistência a menores – Recife. 4. Adolescentes – Assistência em instituições – Recife. 5. Crime contra as crianças - Recife. 7. Crime contra o jovem – Recife. I. Fernandes, Fernando Lannes. II. Ferraz, Ana Flávia. III. Senna, Ana Carolina.

CDD: 362.795

Copyright © Observatório de Favelas do Rio de Janeiro 2009

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 105

OBSERVATÓRIO DE FAVELAS

COORDENAÇÃO GERAL

Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz Barbosa

COORDENAÇÃO EXECUTIVA

Elionalva Sousa e Silva Erasmo CastroFernando Lannes Fernandes

COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL

Marianna AraujoVitor Monteiro de Castro

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE

ORGANIZAÇÃO DA PUBLICAÇÃO

Fernando Lannes FernandesAna Flavia FerrazAna Carolina Senna

EQUIPE

COORDENAÇÃO

Raquel Willadino Andréa Rodriguez

SUPERVISÃO TÉCNICA

José Lopes da CunhaAna Flavia Ferraz

AVALIAÇÃO E MONITORAMENTO

Solange Dacach

Amanda Senna Ana Carolina Senna Ana Flavia Ferraz Valéria Albuquerque

PARCERIA

Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Patrícia Oliveira

C R É D I T O S

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A P R E S E N TA Ç Ã O

ANA CAROLINA SENNA1

ANA FLÁVIA FERRAZ2

Os números de homicídios ocorridos em território nacional são alar-mantes. Nos últimos anos se matou mais no Brasil do que nos confl itos armados de Angola, Serra Leoa, Vietnã. Os índices se comparam aos de países em guerra. Embora o Brasil não esteja em guerra, seus números revelam uma espécie de guerra velada, que se expressa na elevação de um grupo específi co como “inimigo interno”. Apesar da fragilidade nas coletas de dados referentes ao assunto, quando são consultadas prioritariamente duas fontes: a Polícia Civil3 e o Sistema Único de Saúde4, pode-se identifi car esse “inimigo”: ele tem raça, idade e lugar de moradia bastante defi nidos. São, em sua maioria, homens jovens, negros e pardos e moradores das áreas estigmatizadas da cidade. Isso indica que, além da desigualdade na distribuição de bens e serviços, essa parcela da população também é vítima de um outro tipo de desigualdade: a distribuição da violência letal.

Segundo o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros publicado em 2008, em 2006 ocorreram 17.312 homicídios de jovens entre 15 e 24 anos no país, e 13.186 em 1996, o que representa um crescimento de 31,3% em dez anos. Esses números superam a taxa de homicídios da população geral, que teve uma alta de 20% no mesmo período. Além do recorte etário, racial e territorial das vítimas, os índices de violência

Ana Carolina Senna é formada em 1. Comunicação Social pela Universi-dade Federal de Pernambuco onde atualmente cursa o Mestrado em Comunicação. Sua experiência profissional está especialmente vinculada à atuação como edu-cadora e pesquisadora na área de comunicação nos movimentos sociais, mídia livre e comunitária.

Ana Flavia Ferraz é formada em 2. jornalismo, pela Universidade Católica e Pernambuco, e mestra em Comunicação pelo Instituto Tecnologico de Estudios Superiores del Occidente- ITESO- de Guada-lajara, México. Jornalista, videasta e educadora, com experiência nas interfaces entre comunicação, educação e segurança pública.

Os dados da Polícia Civil são base-3. ados nos Boletins de Ocorrência e, por questões jurídicas, os homicí-dios nem sempre são computados como tal, a exemplo dos latrocínios, morte seguida de roubo.

Através do Sistema de Informações 4. sobre Mortes, do DataSus, com base nos certifi cados de óbitos.

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letal no Brasil também se caracterizam por uma profunda desigualdade entre estados e cidades brasileiras. Apenas 10% do total de municípios concentram 73,3% dos homicídios praticados em todo o país. E Recife ocupa uma posição de destaque no cenário nacional como a terceira cidade da federação com maior índice de homicídios na população total, sendo também a terceira em número absoluto de jovens vítimas de morte violentas (636 em 2006), e ocupando, ainda, o segundo lugar nacional com a taxa de homicídios juvenis, que alcança 214,3 para 100 mil5, segundo dados de 2006.

Em todo o estado de Pernambuco foram mortas 1.156 pessoas com idade entre 15 e 24 anos em 2007, 501 desses homicídios ocorreram no Recife e os 655 restantes na Região Metropolitana, segundo dados da Gerência de Análise Criminal e Estatística, da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco.

Mas esses números também mostram uma radiografi a da vitimização do recifense, através da qual seria possível delinear uma “geografi a da morte”: os dois bairros onde mais morreram jovens em 2007, Ibura e Santo Amaro (com 31 mortes cada, representando 12,38% das mortes na cidade) são áreas que se defi nem pela desigual distribuição e péssima qualidade de políticas públicas, vítimas de representações conservadoras, discriminatórias e discricionárias. Este cenário tem contribuído para uma atuação violenta e violadora dos direitos por parte dos órgãos de segurança pública e, também, para a conformação de grupos criminosos locais. Nestes grupos, muitos jovens se expõem a situações de violência, seja contra outros jovens, seja em confrontos com a polícia. Ocorre, todavia, que nem sempre as vítimas são vinculadas ao mundo do crime, o que revela a forte criminalização dos jovens que vivem nestas áreas.

São esses jovens, moradores do Ibura, Santo Amaro e Coque (que

ocupou o oitavo lugar em número de mortes violentas em 2007) os

que mais morrem e, ao mesmo tempo, os que as mortes parecem menos

importar, chocar ou sensibilizar a sociedade. Em geral, estes jovens

são apresentados pela mídia de uma maneira criminalizante, onde se

busca identifi cá-los a partir de uma “suposta” ligação com o mundo

do crime e, na maior parte das vezes, a repercussão de suas mortes

é tomada pela sociedade como “um problema a menos”, revelando

um sentimento de desprezo, rejeição e indiferença. Tal invisibilidade

social revela um cenário de forte estigmatização do local de moradia

associado à baixa auto-estima.

O EXEMPLO DO COQUE – ESTIGMA E REALIDADE

No Recife, o Observatório de Favelas escolheu o Coque com área

de implementação do projeto Redes de Valorização da Vida, a partir

de parceria com o Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de

Francisco de Assis). O Coque, embora não ocupe o topo do ranking de

bairros mais violentos da cidade, possui a particularidade de ocupar esse

lugar no imaginário social do Recife. Difi cilmente o nome é associado

pela mídia a outro elemento que não a violência ou o perigo – e

quando o é, é apenas para ser representado como objeto de alguma

ação salvadora, seja do Estado ou de iniciativas altruístas externas à

população ali residente.

Situado no coração da cidade do Recife, o Coque é uma comunidade

localizada na Ilha de Joana Bezerra, a cerca de 2,5 km do Centro. O

acesso ao bairro é feito pela Avenida Agamenon Magalhães, uma das

principais vias da cidade, em direção à importante estação de metrô Joana

Bezerra. O bairro surgiu a partir da ocupação irregular e aterramentos do

manguezal. Segundo Freitas (2005), durante o século XVIII, os antigos

jagunços, que vigiavam o transporte de mercadorias da Zona da Mata

ou Sertão ao litoral, foram se fi xando nas proximidades do Porto do

Recife, na localidade onde hoje se situa o Coque. Possivelmente, sua

“fama” de “um local de gente violenta” remonta à época. Mas com o

passar do tempo, ampliou-se a migração e o local cresceu.

NÚMERO DE HOMICÍDIOS JUVENIS 15 A 24 ANOS BAIRROS DA CIDADE DO RECIFE – 2007

Ibura 31 6,19% Afogados 17 3,39%

Santo Amaro 31 6,19% Beberibe 13 2,59%

Cohab 29 5,79% Jardim São Paulo 13 2,59%

Campo Grande 23 4,59% Água Fria 12 2,40%

Imbiribeira 23 4,59% Casa Amarela 12 2,40%

Boa Viagem 21 4,19% Dois Mundos 12 2,40%

Iputinga 21 4,19% São José 12 2,40%

Ilha Joana Bezerra 20 3,99% Pina 11 2,20%

Fonte: Infopol/SDS-PE

Mapa da Violência dos Municípios 5. Brasileiros 2008

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letal no Brasil também se caracterizam por uma profunda desigualdade entre estados e cidades brasileiras. Apenas 10% do total de municípios concentram 73,3% dos homicídios praticados em todo o país. E Recife ocupa uma posição de destaque no cenário nacional como a terceira cidade da federação com maior índice de homicídios na população total, sendo também a terceira em número absoluto de jovens vítimas de morte violentas (636 em 2006), e ocupando, ainda, o segundo lugar nacional com a taxa de homicídios juvenis, que alcança 214,3 para 100 mil5, segundo dados de 2006.

Em todo o estado de Pernambuco foram mortas 1.156 pessoas com idade entre 15 e 24 anos em 2007, 501 desses homicídios ocorreram no Recife e os 655 restantes na Região Metropolitana, segundo dados da Gerência de Análise Criminal e Estatística, da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco.

Mas esses números também mostram uma radiografi a da vitimização do recifense, através da qual seria possível delinear uma “geografi a da morte”: os dois bairros onde mais morreram jovens em 2007, Ibura e Santo Amaro (com 31 mortes cada, representando 12,38% das mortes na cidade) são áreas que se defi nem pela desigual distribuição e péssima qualidade de políticas públicas, vítimas de representações conservadoras, discriminatórias e discricionárias. Este cenário tem contribuído para uma atuação violenta e violadora dos direitos por parte dos órgãos de segurança pública e, também, para a conformação de grupos criminosos locais. Nestes grupos, muitos jovens se expõem a situações de violência, seja contra outros jovens, seja em confrontos com a polícia. Ocorre, todavia, que nem sempre as vítimas são vinculadas ao mundo do crime, o que revela a forte criminalização dos jovens que vivem nestas áreas.

São esses jovens, moradores do Ibura, Santo Amaro e Coque (que

ocupou o oitavo lugar em número de mortes violentas em 2007) os

que mais morrem e, ao mesmo tempo, os que as mortes parecem menos

importar, chocar ou sensibilizar a sociedade. Em geral, estes jovens

são apresentados pela mídia de uma maneira criminalizante, onde se

busca identifi cá-los a partir de uma “suposta” ligação com o mundo

do crime e, na maior parte das vezes, a repercussão de suas mortes

é tomada pela sociedade como “um problema a menos”, revelando

um sentimento de desprezo, rejeição e indiferença. Tal invisibilidade

social revela um cenário de forte estigmatização do local de moradia

associado à baixa auto-estima.

O EXEMPLO DO COQUE – ESTIGMA E REALIDADE

No Recife, o Observatório de Favelas escolheu o Coque com área

de implementação do projeto Redes de Valorização da Vida, a partir

de parceria com o Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de

Francisco de Assis). O Coque, embora não ocupe o topo do ranking de

bairros mais violentos da cidade, possui a particularidade de ocupar esse

lugar no imaginário social do Recife. Difi cilmente o nome é associado

pela mídia a outro elemento que não a violência ou o perigo – e

quando o é, é apenas para ser representado como objeto de alguma

ação salvadora, seja do Estado ou de iniciativas altruístas externas à

população ali residente.

Situado no coração da cidade do Recife, o Coque é uma comunidade

localizada na Ilha de Joana Bezerra, a cerca de 2,5 km do Centro. O

acesso ao bairro é feito pela Avenida Agamenon Magalhães, uma das

principais vias da cidade, em direção à importante estação de metrô Joana

Bezerra. O bairro surgiu a partir da ocupação irregular e aterramentos do

manguezal. Segundo Freitas (2005), durante o século XVIII, os antigos

jagunços, que vigiavam o transporte de mercadorias da Zona da Mata

ou Sertão ao litoral, foram se fi xando nas proximidades do Porto do

Recife, na localidade onde hoje se situa o Coque. Possivelmente, sua

“fama” de “um local de gente violenta” remonta à época. Mas com o

passar do tempo, ampliou-se a migração e o local cresceu.

NÚMERO DE HOMICÍDIOS JUVENIS 15 A 24 ANOS BAIRROS DA CIDADE DO RECIFE – 2007

Ibura 31 6,19% Afogados 17 3,39%

Santo Amaro 31 6,19% Beberibe 13 2,59%

Cohab 29 5,79% Jardim São Paulo 13 2,59%

Campo Grande 23 4,59% Água Fria 12 2,40%

Imbiribeira 23 4,59% Casa Amarela 12 2,40%

Boa Viagem 21 4,19% Dois Mundos 12 2,40%

Iputinga 21 4,19% São José 12 2,40%

Ilha Joana Bezerra 20 3,99% Pina 11 2,20%

Fonte: Infopol/SDS-PE

Mapa da Violência dos Municípios 5. Brasileiros 2008

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Durante as décadas de 1970 e 1980, o Coque era uma das comunidades que mais possuia a atuação de movimentos populares resistentes à ditadura militar (FREITAS, 2005). No mesmo período prevaleceu, entretanto, com ajuda do jornalismo da época, o enquadramento do bairro como “reduto de bandidos” – dentre os quais o mais famoso foi o “Galeguinho do Coque”, um jovem que com menos de vinte anos chegou a ser um dos criminosos mais procurados no Nordeste.

À má fama do bairro somou-se um intenso processo de especulação política e imobiliária, justamente pelo fato da comunidade, com cerca de 40.000 habitantes (EMLURB, 2000 apud FREITAS, 2005), estar situada na passagem central entre importantes pólos econômicos do Recife (Ilha do Leite, Ilha Paissandu, Centro, Boa Viagem, Ilha do Retiro). Vizinhos ao Coque foram construídos o Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano e o maior Complexo Hospitalar privado do estado. Agora, anuncia-se, na mesma área, a instalação da nova sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a construção da sede única do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), numa área de sete mil metros quadrados cedida pela prefeitura onde serão erguidas duas torres de 11 andares.

O desenvolvimento nos arredores não implicou, porém, em qualquer melhoria nas condições de vida dos moradores do Coque. Pelo contrário, apenas evidencia as desigualdades: a Ilha Paissandu, vizinha, possui 99,6% de crianças entre 5 e 9 anos alfabetizadas. Já a ilha do Coque possui apenas 29,5%, constituindo o menor índice de alfabetização da cidade. Outro vizinho do Coque, o Bairro de Boa Viagem, concentra em sua orla, até o Pina, um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) maior que o da Noruega. Já o mesmo índice no bairro dos “cocudos” concentra novamente o pior IDH do Recife, aproximando-se de países devastados pelo HIV-Aids como o Gabão, na África subsaariana (VALE NETO, 2007, p. 28).

O cenário histórico de exclusão social do Coque agravou-se, no fi nal da década de 1980, com as transformações globais em curso no período: maior precarização do mundo do trabalho, abertura dos mercados e intensifi cação da cultura de consumo, principalmente entre os jovens (BAUMAN, 1998). Investigações sociológicas recentes realizadas no bairro (FREITAS, 2005) apontam que a escalada da violência na juventude está conectada, muitas vezes, à associação de parte dos jovens da comunidade a grupos dispostos a se fazerem ‘visíveis’ para o resto da sociedade, seja a partir do consumo de bens materiais e simbólicos, seja a partir da criação de grupos (gangues) por meio dos quais se dá o ‘aprendizado’ de atividades ilícitas que trazem retorno fi nanceiro imediato associado a uma ilusória mudança de condição social.

A mídia e os seus processos de linguagem realizam um papel determinante na construção e reiteração do que é possível ou não ser visto sobre a comunidade. Pesquisando três décadas de manchetes jornalísticas sobre o bairro, no jornal Diário de Pernambuco, um projeto ligado à Rede Coque Vive (SILVA, 2008) constatou maior freqüência de manchetes como Coque não muda: fome, crime e promiscuidade. Mas continua divertido. (19.09.1976),

Rota do medo (29.03.2004). Os discursos das mídias sobre o Coque têm contribuído, decisivamente, para alimentar um ciclo vicioso de exclusão em torno do bairro. Segundo depoimento, os moradores experienciam essa dimensão do pertencimento: “como se todos nós fôssemos ex-presidiários que não podemos conviver com o resto da sociedade. Mesmo sem ter cometido nenhum crime, o morador do Coque é obrigado a carregar esse fardo”. (FREITAS, 2005)

Por causa do preconceito, os jovens do Coque têm sido sistematicamente desconsiderados nas ofertas de emprego, segundo constatação do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA) após dedicar-se durante meses a um curso profi ssionalizante envolvendo jovens altamente capacitados da comunidade para trabalharem no complexo hospitalar vizinho. O curso, que partira de uma pesquisa de mercado na qual se identifi cou a existência de uma demanda profi ssional, sobretudo na área de recepção e atendimento, não foi sufi ciente, por si só, para criar condições para o acesso ao mercado de trabalho: a forte estigmatização dos jovens formados foi um fator que os impediu de acessarem os hospitais, não tendo sido, sequer, selecionados para estágios.

Isso confi rma uma estratégia comum utilizada por moradores do lugar, de colocar em seus currículos o endereço de parentes que moram em outras partes da cidade na hora de procurar um emprego. Percebe-se assim que uma alteração relacional com o resto da cidade, no que tange ao imaginário coletivo que marca as referências sobre a comunidade, se faz tão urgente quanto a melhoria de índices como os de educação ou escolarização para efetivar chances reais para os jovens ali residentes.

REDE COQUE VIVE

A partir da articulação de alguns grupos em atuação no Coque, confi gura-se a nascente “Rede Coque Vive”, que tem como objetivo transformar a realidade local a partir do estabelecimento de relações positivas dentro da comunidade, valorização da memória e fortalecimento mútuo das ações. Trata-se de uma rede de promoção social que tem permitido a realização de eventos, pesquisas e circuitos culturais que problematizam as representações sociais do Coque por meio de exposições e exibições, apresentações artísticas

e instalações, ofi cinas, produções de mídia, seminários e debates6.Fonte: www.coquevive.org6.

10 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 11

Durante as décadas de 1970 e 1980, o Coque era uma das comunidades que mais possuia a atuação de movimentos populares resistentes à ditadura militar (FREITAS, 2005). No mesmo período prevaleceu, entretanto, com ajuda do jornalismo da época, o enquadramento do bairro como “reduto de bandidos” – dentre os quais o mais famoso foi o “Galeguinho do Coque”, um jovem que com menos de vinte anos chegou a ser um dos criminosos mais procurados no Nordeste.

À má fama do bairro somou-se um intenso processo de especulação política e imobiliária, justamente pelo fato da comunidade, com cerca de 40.000 habitantes (EMLURB, 2000 apud FREITAS, 2005), estar situada na passagem central entre importantes pólos econômicos do Recife (Ilha do Leite, Ilha Paissandu, Centro, Boa Viagem, Ilha do Retiro). Vizinhos ao Coque foram construídos o Fórum Desembargador Rodolfo Aureliano e o maior Complexo Hospitalar privado do estado. Agora, anuncia-se, na mesma área, a instalação da nova sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a construção da sede única do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), numa área de sete mil metros quadrados cedida pela prefeitura onde serão erguidas duas torres de 11 andares.

O desenvolvimento nos arredores não implicou, porém, em qualquer melhoria nas condições de vida dos moradores do Coque. Pelo contrário, apenas evidencia as desigualdades: a Ilha Paissandu, vizinha, possui 99,6% de crianças entre 5 e 9 anos alfabetizadas. Já a ilha do Coque possui apenas 29,5%, constituindo o menor índice de alfabetização da cidade. Outro vizinho do Coque, o Bairro de Boa Viagem, concentra em sua orla, até o Pina, um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) maior que o da Noruega. Já o mesmo índice no bairro dos “cocudos” concentra novamente o pior IDH do Recife, aproximando-se de países devastados pelo HIV-Aids como o Gabão, na África subsaariana (VALE NETO, 2007, p. 28).

O cenário histórico de exclusão social do Coque agravou-se, no fi nal da década de 1980, com as transformações globais em curso no período: maior precarização do mundo do trabalho, abertura dos mercados e intensifi cação da cultura de consumo, principalmente entre os jovens (BAUMAN, 1998). Investigações sociológicas recentes realizadas no bairro (FREITAS, 2005) apontam que a escalada da violência na juventude está conectada, muitas vezes, à associação de parte dos jovens da comunidade a grupos dispostos a se fazerem ‘visíveis’ para o resto da sociedade, seja a partir do consumo de bens materiais e simbólicos, seja a partir da criação de grupos (gangues) por meio dos quais se dá o ‘aprendizado’ de atividades ilícitas que trazem retorno fi nanceiro imediato associado a uma ilusória mudança de condição social.

A mídia e os seus processos de linguagem realizam um papel determinante na construção e reiteração do que é possível ou não ser visto sobre a comunidade. Pesquisando três décadas de manchetes jornalísticas sobre o bairro, no jornal Diário de Pernambuco, um projeto ligado à Rede Coque Vive (SILVA, 2008) constatou maior freqüência de manchetes como Coque não muda: fome, crime e promiscuidade. Mas continua divertido. (19.09.1976),

Rota do medo (29.03.2004). Os discursos das mídias sobre o Coque têm contribuído, decisivamente, para alimentar um ciclo vicioso de exclusão em torno do bairro. Segundo depoimento, os moradores experienciam essa dimensão do pertencimento: “como se todos nós fôssemos ex-presidiários que não podemos conviver com o resto da sociedade. Mesmo sem ter cometido nenhum crime, o morador do Coque é obrigado a carregar esse fardo”. (FREITAS, 2005)

Por causa do preconceito, os jovens do Coque têm sido sistematicamente desconsiderados nas ofertas de emprego, segundo constatação do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA) após dedicar-se durante meses a um curso profi ssionalizante envolvendo jovens altamente capacitados da comunidade para trabalharem no complexo hospitalar vizinho. O curso, que partira de uma pesquisa de mercado na qual se identifi cou a existência de uma demanda profi ssional, sobretudo na área de recepção e atendimento, não foi sufi ciente, por si só, para criar condições para o acesso ao mercado de trabalho: a forte estigmatização dos jovens formados foi um fator que os impediu de acessarem os hospitais, não tendo sido, sequer, selecionados para estágios.

Isso confi rma uma estratégia comum utilizada por moradores do lugar, de colocar em seus currículos o endereço de parentes que moram em outras partes da cidade na hora de procurar um emprego. Percebe-se assim que uma alteração relacional com o resto da cidade, no que tange ao imaginário coletivo que marca as referências sobre a comunidade, se faz tão urgente quanto a melhoria de índices como os de educação ou escolarização para efetivar chances reais para os jovens ali residentes.

REDE COQUE VIVE

A partir da articulação de alguns grupos em atuação no Coque, confi gura-se a nascente “Rede Coque Vive”, que tem como objetivo transformar a realidade local a partir do estabelecimento de relações positivas dentro da comunidade, valorização da memória e fortalecimento mútuo das ações. Trata-se de uma rede de promoção social que tem permitido a realização de eventos, pesquisas e circuitos culturais que problematizam as representações sociais do Coque por meio de exposições e exibições, apresentações artísticas

e instalações, ofi cinas, produções de mídia, seminários e debates6.Fonte: www.coquevive.org6.

12 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 13

A Rede, constituída pelo Neimfa, Mabi e outros grupos locais, e mobilizada por um grupo

extensionista da Universidade Federal de Pernambuco, foi animada pela parceria com o

Observatório de Favelas em 2008, e seus principais atores, que descrevemos brevemente a

seguir, contribuíram para a feitura desta publicação.

O Neimfa é uma associação que atua há mais de 20 anos na comunidade7, principalmente

na área de formação de valores humanos e educação integral. Atende, hoje, a mais de 300

famílias do Coque, com ações voltadas a todas as faixas etárias, tais como: Formação em

Valores Humanos e Cultura de Paz (encontros semanais com cerca de 200 pessoas de

várias idades); Formação de Educadores Holísticos (com duração de 5 anos para jovens da

comunidade, preparando inclusive para o ingresso na universidade); Formação de Agentes de

Desenvolvimento Comunitário; Assistência a Gestantes (desde 1987) e a formação do grupo

Cor do Coque, coletivo de reciclagem de papel e produção de cadernos, caixas, e material

de escritório em geral, fundamentado em princípios da economia solidária. As atividades são

abrigadas em sede própria, localizada nas imediações da Estação Joana Bezerra. O quadro de

profi ssionais da casa é composto em sua quase totalidade de voluntários, entre professores,

pedagogos, médicos, psicólogos, estudantes universitários e moradores do bairro.

Graças à atuação longeva e à credibilidade conquistada junto à comunidade, a instituição

tornou-se um agente aglutinador de vários outros atores sociais interessados na transformação

do Coque. O Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), por exemplo, tem como

alguns de seus mais atuantes participantes ex-alunos de cursos no Neimfa. O MABI é um

movimento essencialmente juvenil, cujos integrantes têm como objetivo construir discursos sobre

o bairro mais de acordo com suas visões e reais interesses, protestando contra a estigmatização

e a criminalização. Um dos principais meios para isso é a música, mais especifi camente o

rock’n’roll, gênero dentro do qual compõem músicas como “Não sou condenado a não poder viver

/ Estou tentando não morrer aos poucos”. Os integrantes são em sua quase totalidade rapazes, entre

17 e 29 anos, cuja escolaridade varia entre o ensino superior (no qual apenas um conseguiu

ingressar) e o ensino médio completo e incompleto.

A partir de 2005, um trabalho na área de comunicação começou a ser desenvolvido no

Neimfa, por sugestão de um integrante do MABI a um estudante de jornalismo da Uni-

versidade Federal de Pernambuco, que realizava voluntariamente atividades na instituição.

A idéia era produzir um jornal que representasse a comunidade não apenas através dos

óculos estreitos da violência factual. O jornal, mediante acordo com o Departamento de

Comunicação Social da UFPE, foi realizado como atividade regular do curso de Jornalismo,

contando com a participação de uma turma inteira. Foi construído com metodologia

colaborativa, veiculando textos tanto dos alunos quanto de jovens moradores do coque, em

sua maioria participantes do MABI, que ajudaram os repórteres no

trânsito na comunidade, e receberam destes últimos ajuda pra escrever

seus próprios textos. A experiência motivou a criação de um projeto

de extensão já em 2006, e rendeu o prêmio caixa de jornalismo na

categoria universitário em 2007.

Atualmente o projeto conta com cerca de 15 participantes (estudantes

e professora), nas mais diversas funções: entre dar aulas, realizar vídeos,

contribuir com a gestão de uma biblioteca comunitária construída

coletivamente, promover eventos e espaços de refl exão e vivência tanto

na comunidade quanto na universidade.

Em 2008, com a chegada do Observatório de Favelas para atuar no

Coque, completou-se o círculo que iria dar vida às atividades do projeto

Redes de Valorização da Vida no Recife. A parceria do Observatório

com o Neimfa e demais envolvidos com a Rede Coque Vive – MABI e

Departamento de Comunicação da UFPE – convidava a todos a pensar

de maneira mais focada a questão da letalidade juvenil no Coque e sua

relação com as práticas que estavam sendo desenvolvidas efetiva ou

potencialmente. Para o Observatório de Favelas, a parceria convidava

a olhar melhor, a partir de um ator inserido na comunidade há mais

de 20 anos, o contexto de enfrentamento à violência letal no Recife,

seus limites e desafi os, tomando o Coque por referência.

Embora um ano seja um tempo curto para uma tarefa tão grande, foi

possível realizar um conjunto de ações que apontaram nessa direção.

O suporte e realização de ofi cinas no Neimfa; a realização de ciclos

formativos com os atores envolvidos para trocar olhares, experiências

e referências; e a produção conjunta do Cine Coque Vive, no qual

debatemos fi lmes relacionados à violência e criação de alternativas são

exemplos de atividades realizadas com esse fi m.

A presente publicação representa a culminância desse processo aqui

brevemente descrito. É um fruto do processo, e não pretende sistematizá-lo.

Pretende antes reunir os principais elementos que aprendemos uns com

os outros nesse período juntos e compartilhá-los com todos os leitores

e cúmplices das mesmas preocupações e sonhos que temos de uma

sociedade em que nossos jovens possam verdadeiramente viver.

Criado em 1987 como instituição 7. religiosa, o Neimfa ampliou suas atividades, constituindo-se for-malmente em 1998 como uma associação educativa.

12 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 13

A Rede, constituída pelo Neimfa, Mabi e outros grupos locais, e mobilizada por um grupo

extensionista da Universidade Federal de Pernambuco, foi animada pela parceria com o

Observatório de Favelas em 2008, e seus principais atores, que descrevemos brevemente a

seguir, contribuíram para a feitura desta publicação.

O Neimfa é uma associação que atua há mais de 20 anos na comunidade7, principalmente

na área de formação de valores humanos e educação integral. Atende, hoje, a mais de 300

famílias do Coque, com ações voltadas a todas as faixas etárias, tais como: Formação em

Valores Humanos e Cultura de Paz (encontros semanais com cerca de 200 pessoas de

várias idades); Formação de Educadores Holísticos (com duração de 5 anos para jovens da

comunidade, preparando inclusive para o ingresso na universidade); Formação de Agentes de

Desenvolvimento Comunitário; Assistência a Gestantes (desde 1987) e a formação do grupo

Cor do Coque, coletivo de reciclagem de papel e produção de cadernos, caixas, e material

de escritório em geral, fundamentado em princípios da economia solidária. As atividades são

abrigadas em sede própria, localizada nas imediações da Estação Joana Bezerra. O quadro de

profi ssionais da casa é composto em sua quase totalidade de voluntários, entre professores,

pedagogos, médicos, psicólogos, estudantes universitários e moradores do bairro.

Graças à atuação longeva e à credibilidade conquistada junto à comunidade, a instituição

tornou-se um agente aglutinador de vários outros atores sociais interessados na transformação

do Coque. O Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), por exemplo, tem como

alguns de seus mais atuantes participantes ex-alunos de cursos no Neimfa. O MABI é um

movimento essencialmente juvenil, cujos integrantes têm como objetivo construir discursos sobre

o bairro mais de acordo com suas visões e reais interesses, protestando contra a estigmatização

e a criminalização. Um dos principais meios para isso é a música, mais especifi camente o

rock’n’roll, gênero dentro do qual compõem músicas como “Não sou condenado a não poder viver

/ Estou tentando não morrer aos poucos”. Os integrantes são em sua quase totalidade rapazes, entre

17 e 29 anos, cuja escolaridade varia entre o ensino superior (no qual apenas um conseguiu

ingressar) e o ensino médio completo e incompleto.

A partir de 2005, um trabalho na área de comunicação começou a ser desenvolvido no

Neimfa, por sugestão de um integrante do MABI a um estudante de jornalismo da Uni-

versidade Federal de Pernambuco, que realizava voluntariamente atividades na instituição.

A idéia era produzir um jornal que representasse a comunidade não apenas através dos

óculos estreitos da violência factual. O jornal, mediante acordo com o Departamento de

Comunicação Social da UFPE, foi realizado como atividade regular do curso de Jornalismo,

contando com a participação de uma turma inteira. Foi construído com metodologia

colaborativa, veiculando textos tanto dos alunos quanto de jovens moradores do coque, em

sua maioria participantes do MABI, que ajudaram os repórteres no

trânsito na comunidade, e receberam destes últimos ajuda pra escrever

seus próprios textos. A experiência motivou a criação de um projeto

de extensão já em 2006, e rendeu o prêmio caixa de jornalismo na

categoria universitário em 2007.

Atualmente o projeto conta com cerca de 15 participantes (estudantes

e professora), nas mais diversas funções: entre dar aulas, realizar vídeos,

contribuir com a gestão de uma biblioteca comunitária construída

coletivamente, promover eventos e espaços de refl exão e vivência tanto

na comunidade quanto na universidade.

Em 2008, com a chegada do Observatório de Favelas para atuar no

Coque, completou-se o círculo que iria dar vida às atividades do projeto

Redes de Valorização da Vida no Recife. A parceria do Observatório

com o Neimfa e demais envolvidos com a Rede Coque Vive – MABI e

Departamento de Comunicação da UFPE – convidava a todos a pensar

de maneira mais focada a questão da letalidade juvenil no Coque e sua

relação com as práticas que estavam sendo desenvolvidas efetiva ou

potencialmente. Para o Observatório de Favelas, a parceria convidava

a olhar melhor, a partir de um ator inserido na comunidade há mais

de 20 anos, o contexto de enfrentamento à violência letal no Recife,

seus limites e desafi os, tomando o Coque por referência.

Embora um ano seja um tempo curto para uma tarefa tão grande, foi

possível realizar um conjunto de ações que apontaram nessa direção.

O suporte e realização de ofi cinas no Neimfa; a realização de ciclos

formativos com os atores envolvidos para trocar olhares, experiências

e referências; e a produção conjunta do Cine Coque Vive, no qual

debatemos fi lmes relacionados à violência e criação de alternativas são

exemplos de atividades realizadas com esse fi m.

A presente publicação representa a culminância desse processo aqui

brevemente descrito. É um fruto do processo, e não pretende sistematizá-lo.

Pretende antes reunir os principais elementos que aprendemos uns com

os outros nesse período juntos e compartilhá-los com todos os leitores

e cúmplices das mesmas preocupações e sonhos que temos de uma

sociedade em que nossos jovens possam verdadeiramente viver.

Criado em 1987 como instituição 7. religiosa, o Neimfa ampliou suas atividades, constituindo-se for-malmente em 1998 como uma associação educativa.

14 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 15

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

FREITAS, A. S. Fundamentos para uma sociologia crítica da formação humana: um estudo sobre as redes associacionistas

da sociedade civil. Tese (Doutorado em Sociologia) – UFPE, Recife, 2005.

VALE NETO, J. P. Coque: a morada do vínculo. Monografi a (Conclusão de curso – Comunicação Social) –

UFPE, Recife, 2007.

SILVA, R. F. S. da. Coque Vive: uma investigação sobre o repertório sociohistórico de uma comunidade da periferia do

Recife (PE, Brasil). Relatório fi nal de pesquisa (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais-FLACSO).

Recife, 2008.

I N T R O D U Ç Ã O

Redes de Valorização da Vida

Traçando estratégias de prevenção à violência e criação de alternativas entre adolescentes

e jovens no Rio de Janeiro e Recife

Este texto tem por objetivo apresentar a experiência do Observatório

de Favelas no âmbito do tema da violência contra adolescentes e jovens,

com um olhar específi co para as lições aprendidas no projeto Redes

de Valorização da Vida, desenvolvido entre dezembro de 2007 e maio

de 2009, com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos

da Presidência da República, através da Subsecretaria de Promoção

dos Direitos da Criança e do Adolescente.

O projeto Redes de Valorização da Vida teve o papel de difundir para

organizações parceiras do Rio de Janeiro e de Recife, a metodologia

desenvolvida pelo Observatório de Favelas entre os anos de 2004 e

2007 no programa Rotas de Fuga a partir de um trabalho voltado para

a prevenção e a criação de alternativas sustentáveis para adolescentes e

jovens envolvidos nas redes do ilícito. Procurou-se ainda contribuir com

a Política de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte

nas áreas de sua intervenção, através da articulação e do fortalecimento

de redes pautadas na valorização da vida.

14 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 15

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

FREITAS, A. S. Fundamentos para uma sociologia crítica da formação humana: um estudo sobre as redes associacionistas

da sociedade civil. Tese (Doutorado em Sociologia) – UFPE, Recife, 2005.

VALE NETO, J. P. Coque: a morada do vínculo. Monografi a (Conclusão de curso – Comunicação Social) –

UFPE, Recife, 2007.

SILVA, R. F. S. da. Coque Vive: uma investigação sobre o repertório sociohistórico de uma comunidade da periferia do

Recife (PE, Brasil). Relatório fi nal de pesquisa (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais-FLACSO).

Recife, 2008.

I N T R O D U Ç Ã O

Redes de Valorização da Vida

Traçando estratégias de prevenção à violência e criação de alternativas entre adolescentes

e jovens no Rio de Janeiro e Recife

Este texto tem por objetivo apresentar a experiência do Observatório

de Favelas no âmbito do tema da violência contra adolescentes e jovens,

com um olhar específi co para as lições aprendidas no projeto Redes

de Valorização da Vida, desenvolvido entre dezembro de 2007 e maio

de 2009, com o apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos

da Presidência da República, através da Subsecretaria de Promoção

dos Direitos da Criança e do Adolescente.

O projeto Redes de Valorização da Vida teve o papel de difundir para

organizações parceiras do Rio de Janeiro e de Recife, a metodologia

desenvolvida pelo Observatório de Favelas entre os anos de 2004 e

2007 no programa Rotas de Fuga a partir de um trabalho voltado para

a prevenção e a criação de alternativas sustentáveis para adolescentes e

jovens envolvidos nas redes do ilícito. Procurou-se ainda contribuir com

a Política de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte

nas áreas de sua intervenção, através da articulação e do fortalecimento

de redes pautadas na valorização da vida.

16 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 17

O OBSERVATÓRIO DE FAVELAS: TRILHANDO CAMINHOS PARA O DIREITO À CIDADE

O fenômeno da favelização nas cidades brasileiras tem se colocado como um dos grandes

desafi os para a nossa sociedade. Expressão material e simbólica das profundas desigualdades

sociais que marcam a sociedade brasileira, as favelas constituem, desde a sua origem, espaços

que exprimem as contradições da urbanização socialmente desigual e, ao mesmo tempo, a

capacidade criadora e de superação de seus moradores, expressa a partir de um conjunto de

experiências culturais, econômicas e sociais que singularizam as favelas enquanto território

da dialética entre alegria e dor na cidade.

A história das favelas confunde-se com a história das cidades, sendo elas um produto

indissociável dos modelos de produção do urbano na sociedade brasileira. Por esta razão,

pensar as favelas é pensar a cidade, na sua totalidade e complexidade. Apesar disso, não tem

sido desta maneira que as favelas têm sido identifi cadas e tratadas ao longo de sua história.

Marcada por um processo sistemático de estigmatização e distanciamento, as favelas têm sido

concebidas como um problema: seja à luz da estética da paisagem, segundo a qual sua forma

e suas expressões simbólicas e materiais não encontram lugar numa concepção ordenada

e elitizada de cidade, seja à luz do lugar social de seus moradores, cuja estigmatização mais

recorrente tem sido a sua identifi cação como criminosos ou cúmplices destes.

A estigmatização, somada ao lugar de menor valor simbólico e econômico na cidade,

contribuíram muito para a fragilização destes territórios, que no decorrer de sua trajetória,

pouco puderam contar com investimentos públicos e privados que lhes pudessem ajudar a

reduzir as distinções territoriais em relação ao conjunto da cidade. Como resultado, observa-se

a reprodução da desigualdade no plano da localização e oferta dos equipamentos e serviços

públicos, assim como indicadores sociais inferiores a outras áreas da cidade.

Apesar de ter sido alvo de inúmeros processos repressivos, que visavam ora seu controle

social, ora sua eliminação, culminando em sua precarização, as favelas atravessaram mais de

100 anos resistindo às investidas dos setores mais retrógrados da sociedade. Deve-se aos seus

moradores um conjunto de melhorias e de soluções encontradas em um ambiente de escassez

e limitação de recursos. Da autoconstrução, à prestação de serviços no mercado informal e

à produção artística, os moradores das favelas buscaram soluções para seus problemas dentro

daquilo que lhes era possível. A difi culdade em melhorar as condições de vida, todavia,

esbarrou nas limitações políticas e sociais de cada período de sua existência.

Ao longo dos anos 80 e 90, uma conjunção de fatores acirrou as contradições entre alegria

e dor nas favelas. Ao mesmo tempo em que se acompanha um processo marcante de

melhoria das condições sociais, com investimentos em equipamentos

públicos, saneamento, rede elétrica e telefonia, além de uma melhoria

nos indicadores sociais, observa-se o crescimento e fortalecimento de

grupos criminosos armados que passam a se territorializar naquelas áreas

tendo como principal atividade o comércio varejista de drogas ilícitas.

Com efeito, esse processo impulsionou ações repressivas do Estado,

que eclodiram no aumento da violência policial e numa crescente

criminalização dos moradores de favelas, especialmente os mais jovens,

identifi cados como “trafi cantes” ou “potenciais criminosos”.

Esse misto de “ganhos e perdas” não apenas aumentou as contradições

como também revelou à cidade uma favela até então percebida apenas

como um problema estético e imobiliário. Com isso, a favela passa a

adquirir uma centralidade nunca antes vista nos debates sobre problemas

urbanos, realimentando velhos mitos sobre sua composição social e as

soluções que deveriam ser implementadas visando o controle de seu

crescimento, a melhoria das condições de vida de seus moradores e o

enfrentamento da criminalidade. De grupos mais progressistas aos mais

conservadores, foram propostas ações, implementadas intervenções e

alimentadas esperanças em torno de uma cidade melhor, cuja utopia era

atravessada por distintos cenários: fosse uma cidade limpa e socialmente

ordenada, livre das favelas – na visão dos mais conservadores -, fosse

uma cidade mais democrática, aberta às diferenças, menos desigual – na

perspectiva dos grupos mais progressistas.

O Observatório de Favelas surge no âmbito dessas mudanças e da

construção de utopias urbanas possíveis para o Rio de Janeiro e outras

cidades brasileiras. Cientes de que as favelas deveriam não apenas ser

pensadas como cidade, como também deveriam ser um lugar a partir

do qual é indispensável pensar soluções para a cidade, seus fundadores

criaram a instituição com a expectativa de que esta fosse uma referência

na construção de novos olhares sobre as favelas e de proposição de

políticas públicas para a cidade. Ao valorizar a presença e participação

de quadros de origem popular, o Observatório de Favelas, desde sua

fundação, buscou estabelecer nexos entre o possível e o utópico, na

perspectiva de uma cidade mais justa, democrática e onde as favelas

sejam reconhecidas como parte integrante e indissociável do tecido

espacial e social da cidade.

16 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 17

O OBSERVATÓRIO DE FAVELAS: TRILHANDO CAMINHOS PARA O DIREITO À CIDADE

O fenômeno da favelização nas cidades brasileiras tem se colocado como um dos grandes

desafi os para a nossa sociedade. Expressão material e simbólica das profundas desigualdades

sociais que marcam a sociedade brasileira, as favelas constituem, desde a sua origem, espaços

que exprimem as contradições da urbanização socialmente desigual e, ao mesmo tempo, a

capacidade criadora e de superação de seus moradores, expressa a partir de um conjunto de

experiências culturais, econômicas e sociais que singularizam as favelas enquanto território

da dialética entre alegria e dor na cidade.

A história das favelas confunde-se com a história das cidades, sendo elas um produto

indissociável dos modelos de produção do urbano na sociedade brasileira. Por esta razão,

pensar as favelas é pensar a cidade, na sua totalidade e complexidade. Apesar disso, não tem

sido desta maneira que as favelas têm sido identifi cadas e tratadas ao longo de sua história.

Marcada por um processo sistemático de estigmatização e distanciamento, as favelas têm sido

concebidas como um problema: seja à luz da estética da paisagem, segundo a qual sua forma

e suas expressões simbólicas e materiais não encontram lugar numa concepção ordenada

e elitizada de cidade, seja à luz do lugar social de seus moradores, cuja estigmatização mais

recorrente tem sido a sua identifi cação como criminosos ou cúmplices destes.

A estigmatização, somada ao lugar de menor valor simbólico e econômico na cidade,

contribuíram muito para a fragilização destes territórios, que no decorrer de sua trajetória,

pouco puderam contar com investimentos públicos e privados que lhes pudessem ajudar a

reduzir as distinções territoriais em relação ao conjunto da cidade. Como resultado, observa-se

a reprodução da desigualdade no plano da localização e oferta dos equipamentos e serviços

públicos, assim como indicadores sociais inferiores a outras áreas da cidade.

Apesar de ter sido alvo de inúmeros processos repressivos, que visavam ora seu controle

social, ora sua eliminação, culminando em sua precarização, as favelas atravessaram mais de

100 anos resistindo às investidas dos setores mais retrógrados da sociedade. Deve-se aos seus

moradores um conjunto de melhorias e de soluções encontradas em um ambiente de escassez

e limitação de recursos. Da autoconstrução, à prestação de serviços no mercado informal e

à produção artística, os moradores das favelas buscaram soluções para seus problemas dentro

daquilo que lhes era possível. A difi culdade em melhorar as condições de vida, todavia,

esbarrou nas limitações políticas e sociais de cada período de sua existência.

Ao longo dos anos 80 e 90, uma conjunção de fatores acirrou as contradições entre alegria

e dor nas favelas. Ao mesmo tempo em que se acompanha um processo marcante de

melhoria das condições sociais, com investimentos em equipamentos

públicos, saneamento, rede elétrica e telefonia, além de uma melhoria

nos indicadores sociais, observa-se o crescimento e fortalecimento de

grupos criminosos armados que passam a se territorializar naquelas áreas

tendo como principal atividade o comércio varejista de drogas ilícitas.

Com efeito, esse processo impulsionou ações repressivas do Estado,

que eclodiram no aumento da violência policial e numa crescente

criminalização dos moradores de favelas, especialmente os mais jovens,

identifi cados como “trafi cantes” ou “potenciais criminosos”.

Esse misto de “ganhos e perdas” não apenas aumentou as contradições

como também revelou à cidade uma favela até então percebida apenas

como um problema estético e imobiliário. Com isso, a favela passa a

adquirir uma centralidade nunca antes vista nos debates sobre problemas

urbanos, realimentando velhos mitos sobre sua composição social e as

soluções que deveriam ser implementadas visando o controle de seu

crescimento, a melhoria das condições de vida de seus moradores e o

enfrentamento da criminalidade. De grupos mais progressistas aos mais

conservadores, foram propostas ações, implementadas intervenções e

alimentadas esperanças em torno de uma cidade melhor, cuja utopia era

atravessada por distintos cenários: fosse uma cidade limpa e socialmente

ordenada, livre das favelas – na visão dos mais conservadores -, fosse

uma cidade mais democrática, aberta às diferenças, menos desigual – na

perspectiva dos grupos mais progressistas.

O Observatório de Favelas surge no âmbito dessas mudanças e da

construção de utopias urbanas possíveis para o Rio de Janeiro e outras

cidades brasileiras. Cientes de que as favelas deveriam não apenas ser

pensadas como cidade, como também deveriam ser um lugar a partir

do qual é indispensável pensar soluções para a cidade, seus fundadores

criaram a instituição com a expectativa de que esta fosse uma referência

na construção de novos olhares sobre as favelas e de proposição de

políticas públicas para a cidade. Ao valorizar a presença e participação

de quadros de origem popular, o Observatório de Favelas, desde sua

fundação, buscou estabelecer nexos entre o possível e o utópico, na

perspectiva de uma cidade mais justa, democrática e onde as favelas

sejam reconhecidas como parte integrante e indissociável do tecido

espacial e social da cidade.

18 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 19

A origem do Observatório de Favelas remete à constituição do CEASM – Centro de

Estudos e Ações Solidárias da Maré1, criado em 1997 por moradores e ex-moradores da

Maré que, tendo alcançado o Ensino Superior, se organizaram em torno da criação de uma

organização que estivesse voltada para iniciativas no campo da educação e da pesquisa sobre

a realidade social da Maré. Em 2000 o CEASM realizou aquele que pode ser considerado

o primeiro censo realizado por uma organização comunitária no Brasil. O “Censo Maré

2000” foi base para o levantamento de importantes informações que permitiram uma

refl exão mais aprofundada sobre a Maré e o desenvolvimento de ações mais focalizadas,

tanto por parte do CEASM, quanto por parte de outras organizações sociais e do Governo.

O censo foi formulado e coordenado por pessoas que mais tarde atuariam diretamente na

criação do Observatório de Favelas. No processo de desenvolvimento do censo, foi criado

um grupo formado por pesquisadores de origem popular, com vínculo universitário,

moradores da Maré, que deram origem ao “Observatório Social da Maré”, núcleo de

referência que serviu de inspiração para uma iniciativa independente e com escala ampliada

de atuação. Foi assim que em 2001, abrigado como um programa do Instituto de Estudos

Trabalho e Sociedade – IETS, com o apoio institucional da Fundação Ford, foi criado o

“Observatório Social de Favelas”, sob coordenação de Jailson de Souza e Silva. A partir de

agosto de 2003, em função da ampliação progressiva de suas ações, tornou-se uma entidade

autônoma, estando constituída como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse

Público – OSCIP, adotando o nome de “Observatório de Favelas do Rio de Janeiro”, ou,

simplesmente, “Observatório de Favelas”.

A entidade é integrada por pesquisadores e estudantes vinculados a diferentes instituições

acadêmicas e organizações comunitárias. Seus principais coordenadores são moradores ou

ex-moradores de espaço populares do Rio de Janeiro que atingiram uma formação universitária

e conseguiram preservar seus vínculos e identidades com seus territórios de origem.

Ao contrário de outras entidades que atuam na “ponta”, com foco no atendimento direto, o

Observatório de Favelas tem como estratégia fundamental a formulação e o desenvolvimento

de metodologias que possam se tornar políticas públicas, bem como o monitoramento e a

avaliação de políticas sociais. Para tanto, a organização tem como princípio metodológico

o estímulo ao trabalho em rede, entendendo que esse é o melhor caminho para formular,

implantar e difundir práticas “exemplares”, que possam servir como referência para a

formulação de ações mais abrangentes e regulares assumidas pelo Estado.

No processo de construção de sua identidade institucional, o Observatório de Favelas

defi niu como eixos centrais de atuação o trabalho com três temas entrelaçados: Políticas

Sociais; Violência Urbana, em particular a letal, e Direitos Humanos; sendo os territórios

populares o espaço privilegiado de atuação nesses campos. Esses temas

são desenvolvidos a partir de quatro estratégias: a formação de qua-

dros técnicos e políticos nas comunidades populares; a produção de

informações sobre o espaço urbano, em particular sobre os territórios

populares; a comunicação, através de variadas linguagens, estudos e

experiências desenvolvidas em favelas e periferias; e a assessoria a

grupos comunitários locais e órgãos públicos, em especial na elaboração

de diagnósticos sociais e implantação de projetos de proteção à vida.

Estas estratégias estruturam-se em torno de três vertentes que hoje

organizam e orientam as ações da organização: Direitos Humanos,

Desenvolvimento Territorial e Comunicação e Cultura.

O OBSERVATÓRIO DE FAVELAS NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA URBANA

Desde a sua fundação, o Observatório de Favelas tem atuado no campo

dos Direitos Humanos partindo da premissa de que não há condições

nos grandes centros urbanos do País de tratar de políticas sociais sem

considerar o quadro de violência, em especial, as formas de violência que

atingem os moradores dos espaços populares. Nesse sentido, a instituição

tem desenvolvido estudos e proposições de políticas a partir do eixo de

valorização da vida, visando a formulação de estratégias de enfrentamento

da violência urbana que reúnam a Sociedade Civil e o Estado e que

tenham potencial para se constituir em políticas públicas.

A atuação do Observatório nesta área estrutura-se a partir do reco-

nhecimento da violência letal como um grave problema no Brasil, que

obstaculiza o desenvolvimento social, econômico e humano. A violência

letal e o conjunto de fatores a ela associados, difi culta o exercício da

cidadania e as perspectivas de uma vida melhor para grande parte da

população do país, em especial os adolescentes e jovens moradores de

áreas fortemente estigmatizadas, como as favelas, onde a incidência da

violência letal tem sido mais severa. Nos últimos 20 anos, os homicídios

de adolescentes e jovens aumentaram de maneira brutal, revelando que

a melhoria relativa das condições de vida observada neste período, no

que tange ao acesso a serviços e equipamentos públicos, vem sendo

O CEASM foi extinto em 2007, 1. dando origem a outra organização, a “Redes de Desenvolvimento da Maré – REDES da Maré”.

18 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 19

A origem do Observatório de Favelas remete à constituição do CEASM – Centro de

Estudos e Ações Solidárias da Maré1, criado em 1997 por moradores e ex-moradores da

Maré que, tendo alcançado o Ensino Superior, se organizaram em torno da criação de uma

organização que estivesse voltada para iniciativas no campo da educação e da pesquisa sobre

a realidade social da Maré. Em 2000 o CEASM realizou aquele que pode ser considerado

o primeiro censo realizado por uma organização comunitária no Brasil. O “Censo Maré

2000” foi base para o levantamento de importantes informações que permitiram uma

refl exão mais aprofundada sobre a Maré e o desenvolvimento de ações mais focalizadas,

tanto por parte do CEASM, quanto por parte de outras organizações sociais e do Governo.

O censo foi formulado e coordenado por pessoas que mais tarde atuariam diretamente na

criação do Observatório de Favelas. No processo de desenvolvimento do censo, foi criado

um grupo formado por pesquisadores de origem popular, com vínculo universitário,

moradores da Maré, que deram origem ao “Observatório Social da Maré”, núcleo de

referência que serviu de inspiração para uma iniciativa independente e com escala ampliada

de atuação. Foi assim que em 2001, abrigado como um programa do Instituto de Estudos

Trabalho e Sociedade – IETS, com o apoio institucional da Fundação Ford, foi criado o

“Observatório Social de Favelas”, sob coordenação de Jailson de Souza e Silva. A partir de

agosto de 2003, em função da ampliação progressiva de suas ações, tornou-se uma entidade

autônoma, estando constituída como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse

Público – OSCIP, adotando o nome de “Observatório de Favelas do Rio de Janeiro”, ou,

simplesmente, “Observatório de Favelas”.

A entidade é integrada por pesquisadores e estudantes vinculados a diferentes instituições

acadêmicas e organizações comunitárias. Seus principais coordenadores são moradores ou

ex-moradores de espaço populares do Rio de Janeiro que atingiram uma formação universitária

e conseguiram preservar seus vínculos e identidades com seus territórios de origem.

Ao contrário de outras entidades que atuam na “ponta”, com foco no atendimento direto, o

Observatório de Favelas tem como estratégia fundamental a formulação e o desenvolvimento

de metodologias que possam se tornar políticas públicas, bem como o monitoramento e a

avaliação de políticas sociais. Para tanto, a organização tem como princípio metodológico

o estímulo ao trabalho em rede, entendendo que esse é o melhor caminho para formular,

implantar e difundir práticas “exemplares”, que possam servir como referência para a

formulação de ações mais abrangentes e regulares assumidas pelo Estado.

No processo de construção de sua identidade institucional, o Observatório de Favelas

defi niu como eixos centrais de atuação o trabalho com três temas entrelaçados: Políticas

Sociais; Violência Urbana, em particular a letal, e Direitos Humanos; sendo os territórios

populares o espaço privilegiado de atuação nesses campos. Esses temas

são desenvolvidos a partir de quatro estratégias: a formação de qua-

dros técnicos e políticos nas comunidades populares; a produção de

informações sobre o espaço urbano, em particular sobre os territórios

populares; a comunicação, através de variadas linguagens, estudos e

experiências desenvolvidas em favelas e periferias; e a assessoria a

grupos comunitários locais e órgãos públicos, em especial na elaboração

de diagnósticos sociais e implantação de projetos de proteção à vida.

Estas estratégias estruturam-se em torno de três vertentes que hoje

organizam e orientam as ações da organização: Direitos Humanos,

Desenvolvimento Territorial e Comunicação e Cultura.

O OBSERVATÓRIO DE FAVELAS NO CONTEXTO DA VIOLÊNCIA URBANA

Desde a sua fundação, o Observatório de Favelas tem atuado no campo

dos Direitos Humanos partindo da premissa de que não há condições

nos grandes centros urbanos do País de tratar de políticas sociais sem

considerar o quadro de violência, em especial, as formas de violência que

atingem os moradores dos espaços populares. Nesse sentido, a instituição

tem desenvolvido estudos e proposições de políticas a partir do eixo de

valorização da vida, visando a formulação de estratégias de enfrentamento

da violência urbana que reúnam a Sociedade Civil e o Estado e que

tenham potencial para se constituir em políticas públicas.

A atuação do Observatório nesta área estrutura-se a partir do reco-

nhecimento da violência letal como um grave problema no Brasil, que

obstaculiza o desenvolvimento social, econômico e humano. A violência

letal e o conjunto de fatores a ela associados, difi culta o exercício da

cidadania e as perspectivas de uma vida melhor para grande parte da

população do país, em especial os adolescentes e jovens moradores de

áreas fortemente estigmatizadas, como as favelas, onde a incidência da

violência letal tem sido mais severa. Nos últimos 20 anos, os homicídios

de adolescentes e jovens aumentaram de maneira brutal, revelando que

a melhoria relativa das condições de vida observada neste período, no

que tange ao acesso a serviços e equipamentos públicos, vem sendo

O CEASM foi extinto em 2007, 1. dando origem a outra organização, a “Redes de Desenvolvimento da Maré – REDES da Maré”.

20 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 21

obscurecida pelos efeitos da violência. Muitos jovens que sobreviveram à mortalidade infantil hoje têm suas vidas perdidas pela força das armas de fogo, que respondem pela maior parte dos casos de homicídio.

A compreensão mais apurada do fenômeno deve levar em conta a existência de disparidades socioespaciais no interior das cidades que historicamente tem se refl etido em uma ação diferenciada do Poder Público em determinados territórios. Também, cada vez mais, a violência é produzida pelos próprios adolescentes e jovens, em especial por integrantes de facções rivais que disputam entre si áreas de infl uência, mercado e poder. Esse fato amplifi ca a escala e a gravidade dos confl itos. Uma das principais causas das mortes provocadas e sofridas por adolescentes e jovens é o fato de os grupos criminosos usarem a demarcação territorial como estratégia na disputa por poder. Os mecanismos utilizados por eles para estabelecer limites e demarcação de seus lugares e, por conseguinte, suas fronteiras reais e simbólicas, acabam defi nindo a sua identidade e o seu campo de ação.

No Rio de Janeiro, a principal atividade desses grupos ainda é o tráfi co de drogas ilícitas no varejo. No entanto, eles vêm ampliando seu leque de atuação, através do desenvolvimento de outras atividades nos territórios dominados como: venda de gás; transporte alternativo; segu-rança privada, etc. Tais grupos têm funcionado para muitos jovens como rede de socialização, reconhecimento e visibilidade social. Além disso, muitas vezes são compreendidos como uma alternativa para o acesso ao consumo a partir da realização de atividades ilícitas.

Com efeito, uma das questões centrais no âmbito das refl exões e proposições que o Ob-servatório vem produzindo diz respeito à territorialização de grupos criminosos armados em favelas e outras áreas segregadas das cidades, onde há baixo poder de regulação da vida social pelo Estado, caracterizadas por um défi cit histórico de investimentos por parte deste e pela fragilidade da presença de suas instituições2. Nestas áreas, o domínio territorial empreendido por grupos criminosos armados tem se manifestado como o principal obstáculo ao desenvolvimento da cidadania, à consolidação da democracia e da efetivação dos direitos. O Observatório compreende e acredita que somente uma presença efetiva do Estado, com o conjunto de suas instituições, e a partir do reconhecimento dos moradores de favelas como cidadãos plenos, será capaz de criar as possibilidades de um novo cenário para estas áreas.

Neste contexto, o Observatório busca chamar a atenção não apenas para os efeitos dos processos de territorialização dos grupos armados nas áreas onde atuam, como também procura identifi car os segmentos que se encontram em situação de maior fragilidade. A análise dos dados sobre letalidade no Brasil, por exemplo, evidenciam uma forte exposição de jovens negros do sexo masculino a esta forma de violência.

A situação dos jovens envolvidos nas redes do ilícito – das quais se destaca a do tráfi co de

drogas no varejo -, tem mobilizado a sociedade e o Estado em duas

direções antagônicas. Por um lado, se estabelecem ações de controle e

contenção sócio-espacial, cujo resultado tem sido políticas que con-

cebem o jovem como potencial criminoso, manifesta pela violência

indiscriminada empreendida por forças de segurança pública que atuam

pautadas na lógica do confronto e da “guerra às drogas” e por projetos

de caráter assistencialista cuja motivação é impedir seu ingresso no

crime, percebido como destino quase “natural”. De outro, se estruturam

ações voltadas para a promoção e garantia de direitos, buscando romper

com os processos de estigmatização e criminalização, percebendo estes

jovens como cidadãos destituídos de oportunidades, cujo desafi o de

superação das lacunas se coloca no campo da criação de alternativas e

de sua inserção efetiva na vida da cidade.3

Para esse segundo campo de abordagem, no qual o Observatório de Favelas

se insere, tem se colocado o desafi o de se pensar políticas e ações focalizadas,

mas que ao mesmo tempo se estruturem a partir da perspectiva de univer-

salização de direitos. Com efeito, ao longo de sua história, o Observatório

organizou estudos e pesquisas voltados para uma melhor compreensão das

condições de vida e reais demandas de adolescentes e jovens envolvidos

em redes ilícitas, ao mesmo tempo em que reconhecia a necessidade de se

pensar políticas estruturantes, no campo da segurança pública vista como

segurança cidadã, ou seja, a segurança em todas as suas dimensões, e colocada

de maneira igual para todos na cidade. Assim, pensar segurança nas favelas

representa para o Observatório pensar ações que se estruturem a partir da

promoção dos direitos em sua integralidade e indivisibilidade. Trata-se, em

síntese, da produção de um olhar sobre o enfrentamento da violência na

perspectiva dos Direitos Humanos – elemento que estrutura as ações e

refl exões da instituição.

A INTERVENÇÃO DO OBSERVATÓRIO NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA CONTRA ADOLESCENTES E JOVENS

Com base no cenário apresentado, o Observatório de Favelas, desde

a sua origem, vem buscando desenvolver ações e articular atores na

busca por soluções que contribuam para o enfrentamento do quadro de

SILVA. Jailson de Souza; FER-2. NANDES, Fernando Lannes & WILLADINO, Raquel (2008). Grupos Criminosos Armados com Domínio de Território. Refl exões sobre s Territorialidade do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. In JUSTIÇA GLOBAL (org). Segurança, Tráfi co e Milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fun-dação Heinrich Boll, pp. 16-24

FERNANDES, Fernando Lannes 3. (2009). Violência, medo e estigma. Efeitos sócio-espaciais da “atualiza-ção” do “mito da marginalidade” no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografi a, UFRJ.

20 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 21

obscurecida pelos efeitos da violência. Muitos jovens que sobreviveram à mortalidade infantil hoje têm suas vidas perdidas pela força das armas de fogo, que respondem pela maior parte dos casos de homicídio.

A compreensão mais apurada do fenômeno deve levar em conta a existência de disparidades socioespaciais no interior das cidades que historicamente tem se refl etido em uma ação diferenciada do Poder Público em determinados territórios. Também, cada vez mais, a violência é produzida pelos próprios adolescentes e jovens, em especial por integrantes de facções rivais que disputam entre si áreas de infl uência, mercado e poder. Esse fato amplifi ca a escala e a gravidade dos confl itos. Uma das principais causas das mortes provocadas e sofridas por adolescentes e jovens é o fato de os grupos criminosos usarem a demarcação territorial como estratégia na disputa por poder. Os mecanismos utilizados por eles para estabelecer limites e demarcação de seus lugares e, por conseguinte, suas fronteiras reais e simbólicas, acabam defi nindo a sua identidade e o seu campo de ação.

No Rio de Janeiro, a principal atividade desses grupos ainda é o tráfi co de drogas ilícitas no varejo. No entanto, eles vêm ampliando seu leque de atuação, através do desenvolvimento de outras atividades nos territórios dominados como: venda de gás; transporte alternativo; segu-rança privada, etc. Tais grupos têm funcionado para muitos jovens como rede de socialização, reconhecimento e visibilidade social. Além disso, muitas vezes são compreendidos como uma alternativa para o acesso ao consumo a partir da realização de atividades ilícitas.

Com efeito, uma das questões centrais no âmbito das refl exões e proposições que o Ob-servatório vem produzindo diz respeito à territorialização de grupos criminosos armados em favelas e outras áreas segregadas das cidades, onde há baixo poder de regulação da vida social pelo Estado, caracterizadas por um défi cit histórico de investimentos por parte deste e pela fragilidade da presença de suas instituições2. Nestas áreas, o domínio territorial empreendido por grupos criminosos armados tem se manifestado como o principal obstáculo ao desenvolvimento da cidadania, à consolidação da democracia e da efetivação dos direitos. O Observatório compreende e acredita que somente uma presença efetiva do Estado, com o conjunto de suas instituições, e a partir do reconhecimento dos moradores de favelas como cidadãos plenos, será capaz de criar as possibilidades de um novo cenário para estas áreas.

Neste contexto, o Observatório busca chamar a atenção não apenas para os efeitos dos processos de territorialização dos grupos armados nas áreas onde atuam, como também procura identifi car os segmentos que se encontram em situação de maior fragilidade. A análise dos dados sobre letalidade no Brasil, por exemplo, evidenciam uma forte exposição de jovens negros do sexo masculino a esta forma de violência.

A situação dos jovens envolvidos nas redes do ilícito – das quais se destaca a do tráfi co de

drogas no varejo -, tem mobilizado a sociedade e o Estado em duas

direções antagônicas. Por um lado, se estabelecem ações de controle e

contenção sócio-espacial, cujo resultado tem sido políticas que con-

cebem o jovem como potencial criminoso, manifesta pela violência

indiscriminada empreendida por forças de segurança pública que atuam

pautadas na lógica do confronto e da “guerra às drogas” e por projetos

de caráter assistencialista cuja motivação é impedir seu ingresso no

crime, percebido como destino quase “natural”. De outro, se estruturam

ações voltadas para a promoção e garantia de direitos, buscando romper

com os processos de estigmatização e criminalização, percebendo estes

jovens como cidadãos destituídos de oportunidades, cujo desafi o de

superação das lacunas se coloca no campo da criação de alternativas e

de sua inserção efetiva na vida da cidade.3

Para esse segundo campo de abordagem, no qual o Observatório de Favelas

se insere, tem se colocado o desafi o de se pensar políticas e ações focalizadas,

mas que ao mesmo tempo se estruturem a partir da perspectiva de univer-

salização de direitos. Com efeito, ao longo de sua história, o Observatório

organizou estudos e pesquisas voltados para uma melhor compreensão das

condições de vida e reais demandas de adolescentes e jovens envolvidos

em redes ilícitas, ao mesmo tempo em que reconhecia a necessidade de se

pensar políticas estruturantes, no campo da segurança pública vista como

segurança cidadã, ou seja, a segurança em todas as suas dimensões, e colocada

de maneira igual para todos na cidade. Assim, pensar segurança nas favelas

representa para o Observatório pensar ações que se estruturem a partir da

promoção dos direitos em sua integralidade e indivisibilidade. Trata-se, em

síntese, da produção de um olhar sobre o enfrentamento da violência na

perspectiva dos Direitos Humanos – elemento que estrutura as ações e

refl exões da instituição.

A INTERVENÇÃO DO OBSERVATÓRIO NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA CONTRA ADOLESCENTES E JOVENS

Com base no cenário apresentado, o Observatório de Favelas, desde

a sua origem, vem buscando desenvolver ações e articular atores na

busca por soluções que contribuam para o enfrentamento do quadro de

SILVA. Jailson de Souza; FER-2. NANDES, Fernando Lannes & WILLADINO, Raquel (2008). Grupos Criminosos Armados com Domínio de Território. Refl exões sobre s Territorialidade do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. In JUSTIÇA GLOBAL (org). Segurança, Tráfi co e Milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fun-dação Heinrich Boll, pp. 16-24

FERNANDES, Fernando Lannes 3. (2009). Violência, medo e estigma. Efeitos sócio-espaciais da “atualiza-ção” do “mito da marginalidade” no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografi a, UFRJ.

22 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 23

violência urbana e de violação dos direitos dos moradores de espaços populares e, em especial, de

crianças, adolescentes e jovens. São três as ações estruturantes que o Observatório desenvolveu

no âmbito desta problemática: o Programa Rotas de Fuga, o Projeto Redes de Valorização da

Vida e o Programa de Redução da Violência Letal contra adolescentes e jovens.

No campo específi co de atuação que diz respeito à situação de crianças, adolescentes e

jovens envolvidos em redes ilícitas, o Observatório de Favelas desenvolveu, entre 2004 e

2007, o programa Rotas de Fuga.

O Programa “Rotas de Fuga” previa a elaboração, implementação e sistematização de

metodologias que contribuíssem para o enfrentamento ao ingresso e participação de crianças,

adolescentes e jovens em atividades ilícitas, e em particular, no tráfi co de drogas no varejo.

Este programa se estruturou a partir dos desdobramentos de uma refl exão que se inicia em

2001, quando a equipe que hoje compõe o Observatório4 realizou um diagnóstico rápido

sobre o trabalho de crianças no tráfi co de drogas sob encomenda da OIT5. Tal diagnóstico

permitiu a inserção do Observatório em um debate pouco amadurecido no cenário nacional,

e criou as bases para a formulação do programa Rotas de Fuga, que teve início em 2004,

estruturando-se em torno de quatro eixos:

Um trabalho de 1. pesquisa longitudinal - envolvendo 230 crianças, adolescentes e

jovens que trabalhavam na rede do tráfi co em 34 favelas do Rio - que teve como

objetivo compreender a dinâmica da rede social do tráfi co de drogas tendo em

vista obter subsídios para o desenvolvimento de ações voltadas para a prevenção

e a criação de alternativas sustentáveis ao trabalho de crianças, adolescentes e

jovens em redes ilícitas.

Ações de 2. sensibilização da sociedade sobre o fenômeno da violência letal contra

crianças, adolescentes e jovens, visando criar um ambiente favorável à construção

de alternativas não-violentas e à valorização da vida, especialmente no que se

refere ao combate ao tráfi co de drogas no varejo nos grandes centros urbanos.

Ações de 3. prevenção por meio do projeto denominado “Rede de apoio integral

a famílias socialmente vulneráveis”, que desenvolveu ações integradas de caráter

educacional, profi ssionalizante e psicossocial junto a famílias em situação de

vulnerabilidade social em áreas selecionadas do Complexo da Maré.

Formulação de uma metodologia destinada à 4. criação de alternativas sustentáveis

para crianças, adolescentes e jovens inseridos em redes ilícitas, e em especial no

tráfi co de drogas, que manifestaram o desejo de sair desta rede.

A partir destes quatro eixos, foram priorizadas duas estratégias:

A integração e o fortalecimento de uma ampla rede que 1.

materialize de forma plena o sistema de garantia dos direitos

da criança e adolescente, e que tenha o papel logístico de

atender às demandas de crianças, adolescentes e jovens de

espaços populares e suas famílias;

A sensibilização, mobilização e articulação de diferentes 2.

setores da sociedade tendo em vista a elaboração e proposição

de políticas públicas para o enfrentamento do trabalho de

crianças, adolescentes e jovens na rede ilícita.

Nesta perspectiva, a identifi cação e integração das ações existentes foi

fundamental para criar formas inovadoras de enfrentamento ao tráfi co de

drogas e às graves conseqüências que ele traz para os moradores dos espaços

populares, como os altos índices de letalidade de adolescentes e jovens.

A partir desta premissa, o Observatório tem se esforçado em um amplo

movimento que potencialize a aproximação e a troca entre diferentes

experiências de pesquisa e intervenção desenvolvidas em favelas onde

crianças, adolescentes e jovens têm sido atingidos de maneira sistemática

pela violência, visando produzir novas formas de abordagem dos fenôme-

nos assinalados que tenham como princípio fundamental a valorização

da vida. Consideramos que é necessário qualifi car as ações já existentes,

para, a partir daí, articulá-las e fortalecer uma rede integrada.

Um dos desdobramentos do programa Rotas de Fuga foi a articulação da

Rede Rotas, que reúne organizações do Rio de Janeiro que atuam direta

ou indiretamente com a temática de adolescentes e jovens envolvidos

nas redes do ilícito. A Rede Rotas tem exercido um papel importante

no que se refere ao fortalecimento de ações específi cas direcionadas

para a criação de alternativas. Ao longo do ano de 2008, a Rede

Rotas se organizou em torno da necessidade de maior aproximação e

articulação de ações em um território específi co, tendo sido a Maré

a área escolhida. Ali se estabeleceu contato com organizações locais,

dentre ONGs e escolas, que têm possibilitado o desenvolvimento de

atividades de sensibilização e formação até o momento atual.

O Observatório de Favelas, como 4. foi mencionado no histórico da instituição, se institucionaliza em 2003. Antes disso, funcionava como um programa vinculado ao Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, IETS.

SILVA, Jailson de Souza e & 5. URANI, André (2002) Crianças no Narcotráfi co: um diagnóstico rápido. Brasília: Organização Internacional do Trabalho; Ministério do Traba-lho e Emprego.

22 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 23

violência urbana e de violação dos direitos dos moradores de espaços populares e, em especial, de

crianças, adolescentes e jovens. São três as ações estruturantes que o Observatório desenvolveu

no âmbito desta problemática: o Programa Rotas de Fuga, o Projeto Redes de Valorização da

Vida e o Programa de Redução da Violência Letal contra adolescentes e jovens.

No campo específi co de atuação que diz respeito à situação de crianças, adolescentes e

jovens envolvidos em redes ilícitas, o Observatório de Favelas desenvolveu, entre 2004 e

2007, o programa Rotas de Fuga.

O Programa “Rotas de Fuga” previa a elaboração, implementação e sistematização de

metodologias que contribuíssem para o enfrentamento ao ingresso e participação de crianças,

adolescentes e jovens em atividades ilícitas, e em particular, no tráfi co de drogas no varejo.

Este programa se estruturou a partir dos desdobramentos de uma refl exão que se inicia em

2001, quando a equipe que hoje compõe o Observatório4 realizou um diagnóstico rápido

sobre o trabalho de crianças no tráfi co de drogas sob encomenda da OIT5. Tal diagnóstico

permitiu a inserção do Observatório em um debate pouco amadurecido no cenário nacional,

e criou as bases para a formulação do programa Rotas de Fuga, que teve início em 2004,

estruturando-se em torno de quatro eixos:

Um trabalho de 1. pesquisa longitudinal - envolvendo 230 crianças, adolescentes e

jovens que trabalhavam na rede do tráfi co em 34 favelas do Rio - que teve como

objetivo compreender a dinâmica da rede social do tráfi co de drogas tendo em

vista obter subsídios para o desenvolvimento de ações voltadas para a prevenção

e a criação de alternativas sustentáveis ao trabalho de crianças, adolescentes e

jovens em redes ilícitas.

Ações de 2. sensibilização da sociedade sobre o fenômeno da violência letal contra

crianças, adolescentes e jovens, visando criar um ambiente favorável à construção

de alternativas não-violentas e à valorização da vida, especialmente no que se

refere ao combate ao tráfi co de drogas no varejo nos grandes centros urbanos.

Ações de 3. prevenção por meio do projeto denominado “Rede de apoio integral

a famílias socialmente vulneráveis”, que desenvolveu ações integradas de caráter

educacional, profi ssionalizante e psicossocial junto a famílias em situação de

vulnerabilidade social em áreas selecionadas do Complexo da Maré.

Formulação de uma metodologia destinada à 4. criação de alternativas sustentáveis

para crianças, adolescentes e jovens inseridos em redes ilícitas, e em especial no

tráfi co de drogas, que manifestaram o desejo de sair desta rede.

A partir destes quatro eixos, foram priorizadas duas estratégias:

A integração e o fortalecimento de uma ampla rede que 1.

materialize de forma plena o sistema de garantia dos direitos

da criança e adolescente, e que tenha o papel logístico de

atender às demandas de crianças, adolescentes e jovens de

espaços populares e suas famílias;

A sensibilização, mobilização e articulação de diferentes 2.

setores da sociedade tendo em vista a elaboração e proposição

de políticas públicas para o enfrentamento do trabalho de

crianças, adolescentes e jovens na rede ilícita.

Nesta perspectiva, a identifi cação e integração das ações existentes foi

fundamental para criar formas inovadoras de enfrentamento ao tráfi co de

drogas e às graves conseqüências que ele traz para os moradores dos espaços

populares, como os altos índices de letalidade de adolescentes e jovens.

A partir desta premissa, o Observatório tem se esforçado em um amplo

movimento que potencialize a aproximação e a troca entre diferentes

experiências de pesquisa e intervenção desenvolvidas em favelas onde

crianças, adolescentes e jovens têm sido atingidos de maneira sistemática

pela violência, visando produzir novas formas de abordagem dos fenôme-

nos assinalados que tenham como princípio fundamental a valorização

da vida. Consideramos que é necessário qualifi car as ações já existentes,

para, a partir daí, articulá-las e fortalecer uma rede integrada.

Um dos desdobramentos do programa Rotas de Fuga foi a articulação da

Rede Rotas, que reúne organizações do Rio de Janeiro que atuam direta

ou indiretamente com a temática de adolescentes e jovens envolvidos

nas redes do ilícito. A Rede Rotas tem exercido um papel importante

no que se refere ao fortalecimento de ações específi cas direcionadas

para a criação de alternativas. Ao longo do ano de 2008, a Rede

Rotas se organizou em torno da necessidade de maior aproximação e

articulação de ações em um território específi co, tendo sido a Maré

a área escolhida. Ali se estabeleceu contato com organizações locais,

dentre ONGs e escolas, que têm possibilitado o desenvolvimento de

atividades de sensibilização e formação até o momento atual.

O Observatório de Favelas, como 4. foi mencionado no histórico da instituição, se institucionaliza em 2003. Antes disso, funcionava como um programa vinculado ao Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, IETS.

SILVA, Jailson de Souza e & 5. URANI, André (2002) Crianças no Narcotráfi co: um diagnóstico rápido. Brasília: Organização Internacional do Trabalho; Ministério do Traba-lho e Emprego.

24 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 25

Um dos aspectos mais relevantes observados na dinâmica de vida dos jovens envolvidos nas redes

do ilícito e da própria dinâmica de vida dos jovens que vivem nas áreas estigmatizadas dos grandes

centros urbanos, diz respeito aos altos índices de letalidade. Este quadro, evidenciado tanto pela

pesquisa direta com jovens do tráfi co, como pelas experiências das organizações parceiras da

Rede Rotas e outras redes com as quais o Observatório de Favelas se relaciona, tem mobilizado a

organização para uma refl exão mais direcionada para o fenômeno dos homicídios de adolescentes

e jovens. Partindo, assim, dos marcos conceituais e metodológicos aprendidos e desenvolvidos no

programa Rotas de Fuga, o Observatório se dedica, a partir de 2007, à construção de um programa

voltado para a redução da violência letal contra crianças, adolescentes e jovens, especialmente os

que vivem em favelas e periferias de áreas metropolitanas brasileiras.

O reconhecimento da gravidade do problema da violência letal entre jovens moradores de

espaços populares tem se colocado como um desafi o para o Observatório de Favelas e sua

rede de parceiros. O alto grau de exposição dos jovens moradores de favelas à violência,

dada a sua condição estigmatizada, se coloca de uma maneira ainda mais dramática para

aqueles envolvidos com as redes ilícitas, como demonstrou a experiência do Rotas de

Fuga. Em função disso, o Observatório de Favelas formulou duas novas ações voltadas

para o enfrentamento da letalidade de adolescentes e jovens no Brasil: o Projeto Redes de

Valorização da Vida, que originou esta publicação, e o Programa de Redução da Violência

Letal contra adolescentes e jovens, que teve início no segundo semestre de 2007.

O Programa de Redução da Violência Letal contra adolescentes e jovens no Brasil é

coordenado pelo Observatório de Favelas, desenvolvido em parceria com o Laboratório

de Análise de Violência da UERJ e conta com o apoio do UNICEF, da Secretaria Especial

dos Direitos Humanos e da ICCO. Está estruturado em três grandes eixos:

articulação política/1. advocacy nacional;

produção de indicadores visando à construção de mecanismos de monitoramento da le-2.

talidade de adolescentes e jovens que possam subsidiar políticas públicas preventivas;

levantamento, análise e difusão de metodologias de prevenção e redução da 3.

violência letal desenvolvidas em 11 regiões metropolitanas.

O PROJETO REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

Neste contexto, o projeto Redes de Valorização da Vida se insere dentro de uma estratégia

articulada entre a difusão dos marcos conceituais e metodológicos desenvolvidos pelo

Programa Rotas de Fuga – vinculada ao fortalecimento de organizações

parceiras locais - e a estruturação de novas práticas voltadas para a

prevenção da violência letal.

Em 2008, o Programa Rotas de Fuga se encontrava em um momento

de ampliação. A expectativa do Observatório de Favelas quanto à

metodologia desenvolvida no Rotas de Fuga, era a de que ela pudesse ser

difundido e monitorado, cabendo sua execução a organizações parceiras

que estivessem voltadas para a intervenção direta junto a crianças,

adolescentes e jovens envolvidos em redes ilícitas e que tivessem como

principal objetivo prevenir e criar alternativas sustentáveis para este

público. Nesta perspectiva, o Observatório de Favelas estabeleceu uma

parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, no âmbito do

projeto Redes de Valorização da Vida, com o intuito de se disseminar

os marcos conceituais e metodológicos do programa Rotas de Fuga

como estratégia de fortalecimento da política de proteção a crianças e

adolescentes ameaçados de morte no Recife e no Rio de Janeiro.

O projeto Redes de Valorização da Vida teve como objetivo o desen-

volvimento das seguintes ações:

Transferir a metodologia a partir de um processo de for-1.

mação;

Realizar o monitoramento do processo e a avaliação de seus 2.

resultados junto à organização receptora e;

Trabalhar para a articulação, sensibilização e o fortalecimento 3.

de redes que contribuíssem com as políticas de proteção e

promoção de direitos de crianças, adolescentes e jovens mais

vulneráveis à violência letal.

Como a proposta do projeto era a difusão dos marcos conceituais e

metodológicos do programa Rotas de Fuga como estratégia de fortale-

cimento da política de proteção a criança e adolescentes ameaçados de

morte, as ações no Rio e no Recife tiveram por base, primeiramente,

a seleção de uma organização local que estivesse aberta a esse processo

de troca e, ao mesmo tempo, que incorporasse o desafi o de se pensar

ações em torno da prevenção da violência e da criação de alternativas.

No Rio de Janeiro, a organização parceira foi o Instituto Vida Real,

24 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 25

Um dos aspectos mais relevantes observados na dinâmica de vida dos jovens envolvidos nas redes

do ilícito e da própria dinâmica de vida dos jovens que vivem nas áreas estigmatizadas dos grandes

centros urbanos, diz respeito aos altos índices de letalidade. Este quadro, evidenciado tanto pela

pesquisa direta com jovens do tráfi co, como pelas experiências das organizações parceiras da

Rede Rotas e outras redes com as quais o Observatório de Favelas se relaciona, tem mobilizado a

organização para uma refl exão mais direcionada para o fenômeno dos homicídios de adolescentes

e jovens. Partindo, assim, dos marcos conceituais e metodológicos aprendidos e desenvolvidos no

programa Rotas de Fuga, o Observatório se dedica, a partir de 2007, à construção de um programa

voltado para a redução da violência letal contra crianças, adolescentes e jovens, especialmente os

que vivem em favelas e periferias de áreas metropolitanas brasileiras.

O reconhecimento da gravidade do problema da violência letal entre jovens moradores de

espaços populares tem se colocado como um desafi o para o Observatório de Favelas e sua

rede de parceiros. O alto grau de exposição dos jovens moradores de favelas à violência,

dada a sua condição estigmatizada, se coloca de uma maneira ainda mais dramática para

aqueles envolvidos com as redes ilícitas, como demonstrou a experiência do Rotas de

Fuga. Em função disso, o Observatório de Favelas formulou duas novas ações voltadas

para o enfrentamento da letalidade de adolescentes e jovens no Brasil: o Projeto Redes de

Valorização da Vida, que originou esta publicação, e o Programa de Redução da Violência

Letal contra adolescentes e jovens, que teve início no segundo semestre de 2007.

O Programa de Redução da Violência Letal contra adolescentes e jovens no Brasil é

coordenado pelo Observatório de Favelas, desenvolvido em parceria com o Laboratório

de Análise de Violência da UERJ e conta com o apoio do UNICEF, da Secretaria Especial

dos Direitos Humanos e da ICCO. Está estruturado em três grandes eixos:

articulação política/1. advocacy nacional;

produção de indicadores visando à construção de mecanismos de monitoramento da le-2.

talidade de adolescentes e jovens que possam subsidiar políticas públicas preventivas;

levantamento, análise e difusão de metodologias de prevenção e redução da 3.

violência letal desenvolvidas em 11 regiões metropolitanas.

O PROJETO REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

Neste contexto, o projeto Redes de Valorização da Vida se insere dentro de uma estratégia

articulada entre a difusão dos marcos conceituais e metodológicos desenvolvidos pelo

Programa Rotas de Fuga – vinculada ao fortalecimento de organizações

parceiras locais - e a estruturação de novas práticas voltadas para a

prevenção da violência letal.

Em 2008, o Programa Rotas de Fuga se encontrava em um momento

de ampliação. A expectativa do Observatório de Favelas quanto à

metodologia desenvolvida no Rotas de Fuga, era a de que ela pudesse ser

difundido e monitorado, cabendo sua execução a organizações parceiras

que estivessem voltadas para a intervenção direta junto a crianças,

adolescentes e jovens envolvidos em redes ilícitas e que tivessem como

principal objetivo prevenir e criar alternativas sustentáveis para este

público. Nesta perspectiva, o Observatório de Favelas estabeleceu uma

parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, no âmbito do

projeto Redes de Valorização da Vida, com o intuito de se disseminar

os marcos conceituais e metodológicos do programa Rotas de Fuga

como estratégia de fortalecimento da política de proteção a crianças e

adolescentes ameaçados de morte no Recife e no Rio de Janeiro.

O projeto Redes de Valorização da Vida teve como objetivo o desen-

volvimento das seguintes ações:

Transferir a metodologia a partir de um processo de for-1.

mação;

Realizar o monitoramento do processo e a avaliação de seus 2.

resultados junto à organização receptora e;

Trabalhar para a articulação, sensibilização e o fortalecimento 3.

de redes que contribuíssem com as políticas de proteção e

promoção de direitos de crianças, adolescentes e jovens mais

vulneráveis à violência letal.

Como a proposta do projeto era a difusão dos marcos conceituais e

metodológicos do programa Rotas de Fuga como estratégia de fortale-

cimento da política de proteção a criança e adolescentes ameaçados de

morte, as ações no Rio e no Recife tiveram por base, primeiramente,

a seleção de uma organização local que estivesse aberta a esse processo

de troca e, ao mesmo tempo, que incorporasse o desafi o de se pensar

ações em torno da prevenção da violência e da criação de alternativas.

No Rio de Janeiro, a organização parceira foi o Instituto Vida Real,

26 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 27

que atua desde 2005 na Maré, onde desenvolve trabalhos junto a adolescentes e jovens

envolvidos com as redes do ilícito. Trata-se de uma organização com forte enraizamento

local e excelente reputação na comunidade, mas que carecia de uma maior estruturação de

sua abordagem metodológica.

O Vida Real já mantinha relações de trabalho, de articulação local e de identifi cação política

com o Observatório de Favelas, tendo tido um forte diálogo com a equipe do Rotas de

Fuga desde 2004, encaminhando grande parte de seus participantes. Portanto, sua escolha se

deve à inserção de referência que mantém nas comunidades da Maré, à abertura apresentada

para a incorporação da metodologia do Rotas de Fuga e a demandas levantadas no campo

da qualifi cação técnica.

No Recife, a organização parceira foi o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis

(NEIMFA), que atua na favela do Coque há mais de uma década. Ali, o desafi o era uma aposta

da instituição em querer incorporar de maneira mais estruturada e sistemática, um debate sobre a

violência letal em sua abordagem, haja vista o cenário marcantemente violento do Recife – que

ocupa as primeiras posições nos índices de letalidade entre as capitais brasileiras.

A aproximação entre o NEIMFA e o Observatório de Favelas também foi anterior ao

projeto Redes de Valorização da Vida tendo se iniciado em 2006, através da colaboração

em alguns eventos chamados de “Ciranda Filosófi ca”, organizados pelo departamento de

Filosofi a da UFPE. As aproximações subseqüentes se deram em razão de uma identidade

política e social com esta instituição.

Desde então existe o apoio do Observatório de Favelas a uma série de iniciativas, projetos,

debates e movimentos juvenis nos quais o NEIMFA participa ou promove. A partir desta relação,

gradativamente o NEIMFA foi incorporando uma refl exão mais voltada para a violência local -

principalmente entre os jovens – e a temática de Direitos Humanos que já trabalhavam a partir

do foco da formação humana. A parceria que buscamos no campo da refl exão sobre a violência

urbana, foi sendo construída gradativamente, no dia a dia das práticas e ações em desenvolvimento,

já que este tema não era central para a organização em seus projetos anteriores, embora a vivência

da violência no Coque sempre tenha atravessado o cotidiano da instituição.

OS MARCOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DIFUNDIDOS NO ÂMBITO DO PROJETO REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

A difusão dos marcos conceituais e metodológicos desenvolvidos pelo programa Rotas

de Fuga foi a estratégia adotada para o diálogo entre o projeto Redes de Valorização da

Vida e as organizações parceiras. A partir dos marcos conceituais e

metodológicos, poder-se-ia não apenas apresentar as lições aprendidas

e os acúmulos do Rotas de Fuga, como também ter contato com a

visão que cada organização mantinha sobre conceitos e métodos que

a equipe do projeto entendia que eram centrais para o fortalecimento

da ação daquelas organizações.

Os marcos conceituais e metodológicos foram difundidos através de um

conjunto de atividades que envolveram os gestores, técnicos e educadores

das organizações, além de um trabalho específi co desenvolvido junto

aos adolescentes e jovens através de ofi cinas temáticas. Foram realizados

ciclos formativos que possibilitaram a troca entre a equipe do RVV e das

organizações parceiras. Numa perspectiva dialógica estes ciclos forma-

tivos, conduzidos pela equipe do Projeto Redes de Valorização da Vida,

partem do reconhecimento de que um dos grandes aportes do programa

Rotas de Fuga reside em seu campo conceitual. Assim, as atividades de

formação prevêem a qualifi cação de todos os atores envolvidos, bem

como o fortalecimento da intervenção das instituições parceiras a partir

da disseminação de conceitos e estratégias metodológicas. Os temas e

as formas de abordagem dos mesmos nos ciclos formativos foram parte

de um plano, decidido em conjunto, a partir das demandas e interesses

de ambas as instituições, havendo, por esta razão, uma conjugação entre

os marcos conceituais e metodológicos apresentados pelo RVV e temas

específi cos levantados pelas organizações.

OS MARCOS CONCEITUAIS

Os marcos conceituais dizem respeito aos conceitos, temas e pressupostos

que sustentaram as ações do Rotas de Fuga. Estes marcos orientaram

o trabalho da equipe tendo como elemento central o reconhecimento

do adolescente e jovem como um sujeito de direitos, inserido em um

contexto social específi co cujas demandas e intervenções deveriam se dar

em torno do reconhecimento de suas especifi cidades e do entendimento

de que o trabalho em rede e a mobilização das disposições subjetivas dos

jovens eram aspectos indispensáveis para a criação de alternativas.

26 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 27

que atua desde 2005 na Maré, onde desenvolve trabalhos junto a adolescentes e jovens

envolvidos com as redes do ilícito. Trata-se de uma organização com forte enraizamento

local e excelente reputação na comunidade, mas que carecia de uma maior estruturação de

sua abordagem metodológica.

O Vida Real já mantinha relações de trabalho, de articulação local e de identifi cação política

com o Observatório de Favelas, tendo tido um forte diálogo com a equipe do Rotas de

Fuga desde 2004, encaminhando grande parte de seus participantes. Portanto, sua escolha se

deve à inserção de referência que mantém nas comunidades da Maré, à abertura apresentada

para a incorporação da metodologia do Rotas de Fuga e a demandas levantadas no campo

da qualifi cação técnica.

No Recife, a organização parceira foi o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis

(NEIMFA), que atua na favela do Coque há mais de uma década. Ali, o desafi o era uma aposta

da instituição em querer incorporar de maneira mais estruturada e sistemática, um debate sobre a

violência letal em sua abordagem, haja vista o cenário marcantemente violento do Recife – que

ocupa as primeiras posições nos índices de letalidade entre as capitais brasileiras.

A aproximação entre o NEIMFA e o Observatório de Favelas também foi anterior ao

projeto Redes de Valorização da Vida tendo se iniciado em 2006, através da colaboração

em alguns eventos chamados de “Ciranda Filosófi ca”, organizados pelo departamento de

Filosofi a da UFPE. As aproximações subseqüentes se deram em razão de uma identidade

política e social com esta instituição.

Desde então existe o apoio do Observatório de Favelas a uma série de iniciativas, projetos,

debates e movimentos juvenis nos quais o NEIMFA participa ou promove. A partir desta relação,

gradativamente o NEIMFA foi incorporando uma refl exão mais voltada para a violência local -

principalmente entre os jovens – e a temática de Direitos Humanos que já trabalhavam a partir

do foco da formação humana. A parceria que buscamos no campo da refl exão sobre a violência

urbana, foi sendo construída gradativamente, no dia a dia das práticas e ações em desenvolvimento,

já que este tema não era central para a organização em seus projetos anteriores, embora a vivência

da violência no Coque sempre tenha atravessado o cotidiano da instituição.

OS MARCOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DIFUNDIDOS NO ÂMBITO DO PROJETO REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

A difusão dos marcos conceituais e metodológicos desenvolvidos pelo programa Rotas

de Fuga foi a estratégia adotada para o diálogo entre o projeto Redes de Valorização da

Vida e as organizações parceiras. A partir dos marcos conceituais e

metodológicos, poder-se-ia não apenas apresentar as lições aprendidas

e os acúmulos do Rotas de Fuga, como também ter contato com a

visão que cada organização mantinha sobre conceitos e métodos que

a equipe do projeto entendia que eram centrais para o fortalecimento

da ação daquelas organizações.

Os marcos conceituais e metodológicos foram difundidos através de um

conjunto de atividades que envolveram os gestores, técnicos e educadores

das organizações, além de um trabalho específi co desenvolvido junto

aos adolescentes e jovens através de ofi cinas temáticas. Foram realizados

ciclos formativos que possibilitaram a troca entre a equipe do RVV e das

organizações parceiras. Numa perspectiva dialógica estes ciclos forma-

tivos, conduzidos pela equipe do Projeto Redes de Valorização da Vida,

partem do reconhecimento de que um dos grandes aportes do programa

Rotas de Fuga reside em seu campo conceitual. Assim, as atividades de

formação prevêem a qualifi cação de todos os atores envolvidos, bem

como o fortalecimento da intervenção das instituições parceiras a partir

da disseminação de conceitos e estratégias metodológicas. Os temas e

as formas de abordagem dos mesmos nos ciclos formativos foram parte

de um plano, decidido em conjunto, a partir das demandas e interesses

de ambas as instituições, havendo, por esta razão, uma conjugação entre

os marcos conceituais e metodológicos apresentados pelo RVV e temas

específi cos levantados pelas organizações.

OS MARCOS CONCEITUAIS

Os marcos conceituais dizem respeito aos conceitos, temas e pressupostos

que sustentaram as ações do Rotas de Fuga. Estes marcos orientaram

o trabalho da equipe tendo como elemento central o reconhecimento

do adolescente e jovem como um sujeito de direitos, inserido em um

contexto social específi co cujas demandas e intervenções deveriam se dar

em torno do reconhecimento de suas especifi cidades e do entendimento

de que o trabalho em rede e a mobilização das disposições subjetivas dos

jovens eram aspectos indispensáveis para a criação de alternativas.

28 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 29

Favela e Cidade

As favelas foram, historicamente, objeto de um olhar homogeneizador, com base em pressupostos

sociocêntricos. Essa homogeneização se manifesta quando, nos estudos e/ou ações nas favelas, se

desconsidera a historicidade e a especifi cidade de cada espaço popular, as formas de resolução

dos confl itos cotidianos e, sobretudo, os diversos grupos sociais que as constituem. Por outro

lado, o sociocêntrismo afi rma-se quando as práticas individuais e coletivas nos espaços populares

são avaliadas a partir de parâmetros afi rmados pelos grupos sociais com maior poder econômico,

político e cultural da cidade. As favelas passam a ser caracterizadas pelo que, aparentemente,

elas não teriam em termos materiais e/ou culturais da urbanidade. Os discursos da “carência”

e da “ausência” permanecem exageradamente fortalecidos.6

O Observatório de Favelas sustenta a busca de novos olhares sobre esses espaços, bem

como a necessidade de superação dos estereótipos construídos em torno das favelas e ainda

da idéia de favela contrapondo-se à idéia de cidade. Assim, procura-se desenvolver uma

percepção da favela como lugar da diversidade, da alegria e da dor, da criação de sentidos,

valores, saberes e práticas.

Nesse sentido, trabalhamos com a idéia de cidade acessível a todos, como espaço que deve

proporcionar o debate político e a participação dos cidadãos nas diversas esferas de decisão. A

cidade entendida como lugar do encontro, das tensões, da alteridade. Desse modo, investimos

em um debate amplo sobre um novo projeto de cidade que rompa com a lógica da “cidade

partida”, a cisão entre “favela” e “asfalto”, a hierarquização do valor da vida e da cidadania.

É preciso reconhecer que só pode haver uma cidade e um cidadão, a partir de uma nova

apropriação do espaço urbano que incorpore os espaços populares no centro de uma agenda

política voltada para a superação das desigualdades sociais.

Presentifi cação e Particularização da existência

Em diversas metrópoles brasileiras, a população vem estreitando, progressivamente, seus

tempos e espaços existenciais. Esse movimento se manifesta através de dois tipos de práticas

sociais: a presentifi cação e a particularização. No caso do primeiro termo, podemos defi ni-lo

como uma prática social dominada pela cotidianidade. Envolve a construção de estratégias

de vivências centradas no imediato. A particularização signifi ca o estreitamento das referências

temporais e se associa ao particularismo espacial. A vivência em um território restrito, sem

parâmetros mais abrangentes de inserção na cidade, contribui para que o lugar seja o ponto

de partida e de chegada da existência.7

Os moradores da favela, muitas vezes, não se reconhecem, como inte-

grante da cidade em sua dimensão política. Nesse processo, muitos deles

tende a basear sua vivência na adesão a regras particulares de convivência,

que difi cultam a construção de uma dimensão plena de cidadania. A

democracia se fragiliza e torna-se cada vez mais raro o contato com

a diferença, com o outro. Há uma progressiva perda, então, do sentido

da vida coletiva. Sua conseqüência é o aumento da intolerância, da

sensação de insegurança, além da difi culdade em incorporar uma ética

de responsabilidade em relação ao espaço público.

A presentifi cação e a particularização da existência são práticas sociais

que contribuem para a (re)produção da desigualdade social e para

o estreitamento do campo de possibilidades sociais dos moradores

dos espaços populares, em particular os jovens. O estreitamento das

referências temporais e espaciais dos adolescentes e jovens limita sua

circulação pela cidade e o estabelecimento de novas redes sociais. Por

isso, a intervenção proposta desenvolveu estratégias que possibilitassem

a ampliação da relação dos adolescentes e jovens com o tempo e com

o espaço, contribuindo assim para a ampliação de suas redes sociais e

para o exercício do direito à cidade.

Trabalho em Rede

As chamadas “redes” são sistemas organizacionais fl exíveis e cadenciados, ca-

pazes de reunir indivíduos e instituições, de forma democrática e participativa,

em torno de objetivos e/ou temáticas comuns. As redes se estabelecem e se

sustentam em relações horizontais e em dinâmicas que supõem o trabalho

colaborativo e participativo, a partir da vontade e da afi nidade entre seus

integrantes, se constituindo como um signifi cativo recurso, tanto para as

relações pessoais, quanto para a estruturação social como um todo.8

O trabalho em rede estaria, portanto, diretamente relacionado à arti-

culação entre os diversos campos da sociedade, tais como a escola, as

instituições presentes dentro e fora das comunidades, à rede de amigos

e de apoio dos participantes, a família, a rede de serviços oferecidos,

entre outros. Desse modo, parte-se da compreensão de que a mudança

da realidade local e da cidade implica na produção de iniciativas arti-

culadas e abrangentes, que envolvam diferentes atores sociais em sua

SILVA, Jailson de Souza & BAR-6. BOSA, Jorge Luiz (2005). Favela: alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Editora SENAC.

SILVA, Jailson de Souza (2002). 7. Um espaço em busca de seu lugar: as favelas para além dos estereótipos. In: Programa de Pós-Graduação em Geografi a/Universidade Federal Fluminense. Território. Territórios. Niterói: EdUFF.

RITS.8. O que são redes? Rede de informações para o terceiro setor. AMARAL, Vivianne. Desafi os do trabalho em rede. Rio de Janeiro, 2008; AYRES, Bruno R. C. Redes Organizacionais no Terceiro Setor - um olhar sobre suas articulações. Rio de Janeiro, 2008. Disponíveis no site: Rede de Informações para o Ter-ceiro Setor (www.rits.org.br).

28 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 29

Favela e Cidade

As favelas foram, historicamente, objeto de um olhar homogeneizador, com base em pressupostos

sociocêntricos. Essa homogeneização se manifesta quando, nos estudos e/ou ações nas favelas, se

desconsidera a historicidade e a especifi cidade de cada espaço popular, as formas de resolução

dos confl itos cotidianos e, sobretudo, os diversos grupos sociais que as constituem. Por outro

lado, o sociocêntrismo afi rma-se quando as práticas individuais e coletivas nos espaços populares

são avaliadas a partir de parâmetros afi rmados pelos grupos sociais com maior poder econômico,

político e cultural da cidade. As favelas passam a ser caracterizadas pelo que, aparentemente,

elas não teriam em termos materiais e/ou culturais da urbanidade. Os discursos da “carência”

e da “ausência” permanecem exageradamente fortalecidos.6

O Observatório de Favelas sustenta a busca de novos olhares sobre esses espaços, bem

como a necessidade de superação dos estereótipos construídos em torno das favelas e ainda

da idéia de favela contrapondo-se à idéia de cidade. Assim, procura-se desenvolver uma

percepção da favela como lugar da diversidade, da alegria e da dor, da criação de sentidos,

valores, saberes e práticas.

Nesse sentido, trabalhamos com a idéia de cidade acessível a todos, como espaço que deve

proporcionar o debate político e a participação dos cidadãos nas diversas esferas de decisão. A

cidade entendida como lugar do encontro, das tensões, da alteridade. Desse modo, investimos

em um debate amplo sobre um novo projeto de cidade que rompa com a lógica da “cidade

partida”, a cisão entre “favela” e “asfalto”, a hierarquização do valor da vida e da cidadania.

É preciso reconhecer que só pode haver uma cidade e um cidadão, a partir de uma nova

apropriação do espaço urbano que incorpore os espaços populares no centro de uma agenda

política voltada para a superação das desigualdades sociais.

Presentifi cação e Particularização da existência

Em diversas metrópoles brasileiras, a população vem estreitando, progressivamente, seus

tempos e espaços existenciais. Esse movimento se manifesta através de dois tipos de práticas

sociais: a presentifi cação e a particularização. No caso do primeiro termo, podemos defi ni-lo

como uma prática social dominada pela cotidianidade. Envolve a construção de estratégias

de vivências centradas no imediato. A particularização signifi ca o estreitamento das referências

temporais e se associa ao particularismo espacial. A vivência em um território restrito, sem

parâmetros mais abrangentes de inserção na cidade, contribui para que o lugar seja o ponto

de partida e de chegada da existência.7

Os moradores da favela, muitas vezes, não se reconhecem, como inte-

grante da cidade em sua dimensão política. Nesse processo, muitos deles

tende a basear sua vivência na adesão a regras particulares de convivência,

que difi cultam a construção de uma dimensão plena de cidadania. A

democracia se fragiliza e torna-se cada vez mais raro o contato com

a diferença, com o outro. Há uma progressiva perda, então, do sentido

da vida coletiva. Sua conseqüência é o aumento da intolerância, da

sensação de insegurança, além da difi culdade em incorporar uma ética

de responsabilidade em relação ao espaço público.

A presentifi cação e a particularização da existência são práticas sociais

que contribuem para a (re)produção da desigualdade social e para

o estreitamento do campo de possibilidades sociais dos moradores

dos espaços populares, em particular os jovens. O estreitamento das

referências temporais e espaciais dos adolescentes e jovens limita sua

circulação pela cidade e o estabelecimento de novas redes sociais. Por

isso, a intervenção proposta desenvolveu estratégias que possibilitassem

a ampliação da relação dos adolescentes e jovens com o tempo e com

o espaço, contribuindo assim para a ampliação de suas redes sociais e

para o exercício do direito à cidade.

Trabalho em Rede

As chamadas “redes” são sistemas organizacionais fl exíveis e cadenciados, ca-

pazes de reunir indivíduos e instituições, de forma democrática e participativa,

em torno de objetivos e/ou temáticas comuns. As redes se estabelecem e se

sustentam em relações horizontais e em dinâmicas que supõem o trabalho

colaborativo e participativo, a partir da vontade e da afi nidade entre seus

integrantes, se constituindo como um signifi cativo recurso, tanto para as

relações pessoais, quanto para a estruturação social como um todo.8

O trabalho em rede estaria, portanto, diretamente relacionado à arti-

culação entre os diversos campos da sociedade, tais como a escola, as

instituições presentes dentro e fora das comunidades, à rede de amigos

e de apoio dos participantes, a família, a rede de serviços oferecidos,

entre outros. Desse modo, parte-se da compreensão de que a mudança

da realidade local e da cidade implica na produção de iniciativas arti-

culadas e abrangentes, que envolvam diferentes atores sociais em sua

SILVA, Jailson de Souza & BAR-6. BOSA, Jorge Luiz (2005). Favela: alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Editora SENAC.

SILVA, Jailson de Souza (2002). 7. Um espaço em busca de seu lugar: as favelas para além dos estereótipos. In: Programa de Pós-Graduação em Geografi a/Universidade Federal Fluminense. Território. Territórios. Niterói: EdUFF.

RITS.8. O que são redes? Rede de informações para o terceiro setor. AMARAL, Vivianne. Desafi os do trabalho em rede. Rio de Janeiro, 2008; AYRES, Bruno R. C. Redes Organizacionais no Terceiro Setor - um olhar sobre suas articulações. Rio de Janeiro, 2008. Disponíveis no site: Rede de Informações para o Ter-ceiro Setor (www.rits.org.br).

30 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 31

construção. Assim, para que as nossas ações ganhem sustentabilidade, visibilidade e força

política, entendemos a construção, a expansão e o fortalecimento de redes como uma

estratégia metodológica essencial.

O tráfi co de drogas

Trabalha-se com uma compreensão ampliada do tráfi co de drogas enquanto uma rede

social, com extensas ramifi cações, que na maior parte das vezes extrapola o comércio de

drogas ilícitas. Por conta disso, o Observatório de Favelas opta por utilizar o termo “Grupos

criminosos armados com domínio de território”.

Em relação à dinâmica da vida no tráfi co, identifi ca-se que o ingresso e permanência de

adolescentes e jovens nesta atividade devem ser entendidos como algo que extrapola a visão

simplista de que isso ocorra em função de sua condição de pobreza, ou pelo fato de se morar

em uma favela ou área periférica dos grandes centros. Não se desconsidera que alguns elementos

de ordem estrutural contribuam ao ingresso no tráfi co, mas sozinhos, sem que se conheça o

processo, extremamente complexo de ingresso, permanência e afastamento do tráfi co, esses

elementos não dizem muito. No entanto, o imaginário coletivo da maior parte da população

relaciona os jovens de comunidades populares à situação de extrema pobreza e, portanto, com

elevadas chances de se envolver em atividades ilícitas. O tráfi co é apresentado, então, como

a “única” saída que lhe resta, um forte agente local que “alicia” jovens e adolescentes para o

cumprimento de tarefas em seus postos de trabalho. Essa lógica vem se mostrando limitada

para explicar a conjuntura e a estrutura do tráfi co de drogas na cidade, e daí a importância

em se aprofundar a compreensão sobre estes grupos e sua dinâmica.

Cidadania/Sujeito de Direitos

A Cidadania é um reconhecimento político, social e jurídico de homens e mulheres no qual

estão fundados os direitos e deveres de pertencimento a uma sociedade. A cidadania não

está vinculada exclusivamente ao Estado, à nacionalidade ou mesmo às dimensões étnicas de

indivíduos ou grupos. A cidadania signifi ca a inserção social plena de sujeitos de direitos e

deveres na vida pública, constituindo condições de liberdade e autonomia para o exercício

individual e coletivo de ser/estar em sociedade.

Ser cidadão não é apenas gozar do status legal, defi nido por leis e normativas que asseguram

direitos e responsabilidades (cidadania formal). Ser cidadão é também uma identidade

com o público e, sem dúvida, uma relação de pertencimento a uma comunidade política

(cidadania substancial).

A cidadania pode ser defi nida como arte de viver com outros – diferentes de nós mesmos - mas que compartilham os mesmos direitos à vida e à felicidade. Compartilhar é atribuir signifi cado às nossas idéias e práticas, assim como ter uma existência fundada em relações múltiplas – materiais e simbólicas – que nos vinculam ao ser e estar no mundo.

Desse modo, a inserção plena dos territórios populares no conjunto da cidade implica em deixar de perceber os moradores de favelas como meros objetos de ações e reconhecê-los como sujeitos de direitos que devem ter protagonismo na formulação de propostas transformadoras.

Criação de Alternativas

Optamos por trabalhar com a idéia de “criação de alternativas” ao invés da utilização de termos como “retirada” do tráfi co ou “resgate”, por entender que os adolescentes e jovens que ingressam no tráfi co de drogas são, antes de tudo, sujeitos dotados de certo grau de autonomia sobre suas decisões e escolhas.

A investigação desse universo revela que a proposta de “retirar” os jovens do tráfi co é enganosa e não se sustenta. O que a prática mostra é que o jovem precisa ser visto como sujeito do movimento de saída do tráfi co de drogas e não mero objeto de ações que visem “resgatá-lo” ou “salvá-lo” de sua condição. Trata-se de um processo de construção coletiva de diversos atores e instâncias sociais para o fortalecimento de alternativas sustentáveis para a vida daqueles que têm o desejo de se ver fora da atividade.

Devemos pensar o ingresso no tráfi co como um conjunto de fatores que partem tanto de questões de ordem estrutural – como a pobreza, a baixa escolaridade e a falta de emprego – como de questões de ordem mais subjetiva – como a busca por reconhecimento social, visibilidade, uma identidade de grupo, prestígio e poder.

A lógica salvacionista e assistencialista, equivocada, acaba por funda-mentar uma série de discursos sobre as favelas e os projetos sociais nela desenvolvidos, sustentando a necessidade de ocupar o tempo “ocioso” dos jovens. Essa ocupação do tempo é percebida como solução ao risco de eles ingressarem automaticamente no tráfi co, o que remete à favela como um lugar violento por natureza, onde as trajetórias de vida tenderiam naturalmente para o mundo do crime.

30 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 31

construção. Assim, para que as nossas ações ganhem sustentabilidade, visibilidade e força

política, entendemos a construção, a expansão e o fortalecimento de redes como uma

estratégia metodológica essencial.

O tráfi co de drogas

Trabalha-se com uma compreensão ampliada do tráfi co de drogas enquanto uma rede

social, com extensas ramifi cações, que na maior parte das vezes extrapola o comércio de

drogas ilícitas. Por conta disso, o Observatório de Favelas opta por utilizar o termo “Grupos

criminosos armados com domínio de território”.

Em relação à dinâmica da vida no tráfi co, identifi ca-se que o ingresso e permanência de

adolescentes e jovens nesta atividade devem ser entendidos como algo que extrapola a visão

simplista de que isso ocorra em função de sua condição de pobreza, ou pelo fato de se morar

em uma favela ou área periférica dos grandes centros. Não se desconsidera que alguns elementos

de ordem estrutural contribuam ao ingresso no tráfi co, mas sozinhos, sem que se conheça o

processo, extremamente complexo de ingresso, permanência e afastamento do tráfi co, esses

elementos não dizem muito. No entanto, o imaginário coletivo da maior parte da população

relaciona os jovens de comunidades populares à situação de extrema pobreza e, portanto, com

elevadas chances de se envolver em atividades ilícitas. O tráfi co é apresentado, então, como

a “única” saída que lhe resta, um forte agente local que “alicia” jovens e adolescentes para o

cumprimento de tarefas em seus postos de trabalho. Essa lógica vem se mostrando limitada

para explicar a conjuntura e a estrutura do tráfi co de drogas na cidade, e daí a importância

em se aprofundar a compreensão sobre estes grupos e sua dinâmica.

Cidadania/Sujeito de Direitos

A Cidadania é um reconhecimento político, social e jurídico de homens e mulheres no qual

estão fundados os direitos e deveres de pertencimento a uma sociedade. A cidadania não

está vinculada exclusivamente ao Estado, à nacionalidade ou mesmo às dimensões étnicas de

indivíduos ou grupos. A cidadania signifi ca a inserção social plena de sujeitos de direitos e

deveres na vida pública, constituindo condições de liberdade e autonomia para o exercício

individual e coletivo de ser/estar em sociedade.

Ser cidadão não é apenas gozar do status legal, defi nido por leis e normativas que asseguram

direitos e responsabilidades (cidadania formal). Ser cidadão é também uma identidade

com o público e, sem dúvida, uma relação de pertencimento a uma comunidade política

(cidadania substancial).

A cidadania pode ser defi nida como arte de viver com outros – diferentes de nós mesmos - mas que compartilham os mesmos direitos à vida e à felicidade. Compartilhar é atribuir signifi cado às nossas idéias e práticas, assim como ter uma existência fundada em relações múltiplas – materiais e simbólicas – que nos vinculam ao ser e estar no mundo.

Desse modo, a inserção plena dos territórios populares no conjunto da cidade implica em deixar de perceber os moradores de favelas como meros objetos de ações e reconhecê-los como sujeitos de direitos que devem ter protagonismo na formulação de propostas transformadoras.

Criação de Alternativas

Optamos por trabalhar com a idéia de “criação de alternativas” ao invés da utilização de termos como “retirada” do tráfi co ou “resgate”, por entender que os adolescentes e jovens que ingressam no tráfi co de drogas são, antes de tudo, sujeitos dotados de certo grau de autonomia sobre suas decisões e escolhas.

A investigação desse universo revela que a proposta de “retirar” os jovens do tráfi co é enganosa e não se sustenta. O que a prática mostra é que o jovem precisa ser visto como sujeito do movimento de saída do tráfi co de drogas e não mero objeto de ações que visem “resgatá-lo” ou “salvá-lo” de sua condição. Trata-se de um processo de construção coletiva de diversos atores e instâncias sociais para o fortalecimento de alternativas sustentáveis para a vida daqueles que têm o desejo de se ver fora da atividade.

Devemos pensar o ingresso no tráfi co como um conjunto de fatores que partem tanto de questões de ordem estrutural – como a pobreza, a baixa escolaridade e a falta de emprego – como de questões de ordem mais subjetiva – como a busca por reconhecimento social, visibilidade, uma identidade de grupo, prestígio e poder.

A lógica salvacionista e assistencialista, equivocada, acaba por funda-mentar uma série de discursos sobre as favelas e os projetos sociais nela desenvolvidos, sustentando a necessidade de ocupar o tempo “ocioso” dos jovens. Essa ocupação do tempo é percebida como solução ao risco de eles ingressarem automaticamente no tráfi co, o que remete à favela como um lugar violento por natureza, onde as trajetórias de vida tenderiam naturalmente para o mundo do crime.

32 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 33

Sob esse viés, é possível observar a compreensão do adolescente morador de espaços

populares como trafi cante em potencial, que necessita ser “salvo” deste destino. Portanto,

todas as ações desenvolvidas nesses espaços tornam-se preventivas ao ingresso dos jovens

no tráfi co. Prevalece, assim, o discurso do senso comum que associa diretamente a pobreza

e a favela com a criminalidade.

Direitos Humanos, Território e Políticas Públicas

As distintas formas de violência, arbítrio e desrespeito aos espaços populares e seus moradores,

demonstram a necessária centralidade da formulação de proposições e práticas de garantia,

promoção e exercício dos Direitos Humanos no sentido da criação de uma sociedade

democrática, fraterna e solidária.

Os Direitos Humanos foram construídos através de movimentos de inspiração emancipatória

pautados em valores de liberdade, igualdade, solidariedade e diversidade. Isso signifi ca que

antes de serem reconhecidos por leis, tiveram origem em lutas sociais concretas.

No que se refere ao conceito, podemos defi nir Direitos Humanos como um patrimônio

ético, jurídico e político aberto construído pelas lutas libertárias da humanidade. Nesse

sentido, se confi guram como parâmetros que orientam arranjos sociais e condições políticas

para a efetiva realização da dignidade humana.9

Entre as características fundamentais dos direitos humanos destacamos: a indivisibilidade, a

interdependência, a exigibilidade e a justiciabilidade. A indivisibilidade como impossibilidade

de hierarquização dos direitos. A interdependência implica que a realização de um direito

exige a realização dos demais. Assim, o conjunto dos Direitos Humanos constitui um todo

que exige a construção de vias para a efetivação de cada direito como direito humano e de

todos os direitos como realização da dignidade humana. Neste contexto, a universalidade

dos direitos é afi rmada como nosso horizonte em uma sociedade marcada por profundas

desigualdades sociais e distinções territoriais.

Dessa forma, os Direitos Humanos se confi guram como importantes instrumentos de

luta e emancipação, na medida em que procuram abarcar as diferentes dimensões da vida

e da dignidade humana em seus aspectos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e

ambientais sobre a existência concreta de sujeitos corporifi cados de direitos. A construção

dos Direitos Humanos se faz nos processos políticos e práticas sociais de sujeitos concretos

que não só afi rmam como inovam direitos.

Uma agenda de políticas públicas fundamentada nos direitos deve partir de uma visão clara

das obrigações assumidas pelo Estado e, por outro lado, das violações

ou não realizações de direitos nos territórios. Assim, a refl exão acerca

da efetivação dos direitos humanos, na perspectiva de elaboração,

acompanhamento e avaliação de políticas públicas, deve necessariamente

contemplar a relação estabelecida entre território e cidadania.

As lutas pela institucionalização dos direitos geram condições para que

possam ser exigidos publicamente, mas não devem fragilizar os processos

de geração de novos conteúdos e sentidos10. Além das estratégias de

exigibilidade jurídica (ação civil pública, ação popular, etc), é funda-

mental destacar que a exigibilidade também tem um conteúdo social

e político; ou seja, a realização de direitos implica participação ativa

da sociedade. Nesta perspectiva, as práticas sociais é que dão sentido e

conteúdo aos direitos e às políticas.

Assim, entendemos que os processos de formulação e avaliação das políticas

públicas devem realizar um cruzamento dos instrumentos de Direitos

Humanos com as vivências sociais observadas nos diferentes territórios,

respeitando suas especifi cidades e visando o estabelecimento de prioridades

e a construção de alternativas coerentes com as demandas sociais.

Juventude e Protagonismo

O conceito de juventude não possui em si contornos precisos, sendo

geralmente concebido como uma etapa da vida situada entre a matu-

ridade biológica e a maturidade social.

Segundo defi nição proposta pela UNESCO11, o termo juventude se

refere ao “período do ciclo da vida em que as pessoas passam da infância

à condição de adultos e, durante o qual, se produzem importantes

mudanças biológicas, psicológicas, sociais e culturais, que variam segundo

as sociedades, as culturas, as etnias, as classes sociais e o gênero”. Desse

modo, a maneira como o jovem se vê, depende dos contextos nos

quais se encontra inserido. Cada ator social atribui um sentido à sua

“juventude”, entendendo que nem todas as pessoas de uma mesma

idade percorrem este período da mesma forma.

Assim, ao invés de procurarmos afi rmar a existência de um conceito

fechado de juventude, de cunho homogeneizador, procuramos entender

MNDH. 9. Caderno de Estudos. Sis-tema Nacional de Direitos Humanos. Brasília: 2004.

Carbonari, Paulo César. 10. Aproxima-ções conceituais sobre Direitos Huma-nos, Democracia e Desenvolvimento. RS: MNDH. 2005.

UNESCO. 11. Políticas de/para/com juventudes. Brasília: UNESCO, 2004.

32 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 33

Sob esse viés, é possível observar a compreensão do adolescente morador de espaços

populares como trafi cante em potencial, que necessita ser “salvo” deste destino. Portanto,

todas as ações desenvolvidas nesses espaços tornam-se preventivas ao ingresso dos jovens

no tráfi co. Prevalece, assim, o discurso do senso comum que associa diretamente a pobreza

e a favela com a criminalidade.

Direitos Humanos, Território e Políticas Públicas

As distintas formas de violência, arbítrio e desrespeito aos espaços populares e seus moradores,

demonstram a necessária centralidade da formulação de proposições e práticas de garantia,

promoção e exercício dos Direitos Humanos no sentido da criação de uma sociedade

democrática, fraterna e solidária.

Os Direitos Humanos foram construídos através de movimentos de inspiração emancipatória

pautados em valores de liberdade, igualdade, solidariedade e diversidade. Isso signifi ca que

antes de serem reconhecidos por leis, tiveram origem em lutas sociais concretas.

No que se refere ao conceito, podemos defi nir Direitos Humanos como um patrimônio

ético, jurídico e político aberto construído pelas lutas libertárias da humanidade. Nesse

sentido, se confi guram como parâmetros que orientam arranjos sociais e condições políticas

para a efetiva realização da dignidade humana.9

Entre as características fundamentais dos direitos humanos destacamos: a indivisibilidade, a

interdependência, a exigibilidade e a justiciabilidade. A indivisibilidade como impossibilidade

de hierarquização dos direitos. A interdependência implica que a realização de um direito

exige a realização dos demais. Assim, o conjunto dos Direitos Humanos constitui um todo

que exige a construção de vias para a efetivação de cada direito como direito humano e de

todos os direitos como realização da dignidade humana. Neste contexto, a universalidade

dos direitos é afi rmada como nosso horizonte em uma sociedade marcada por profundas

desigualdades sociais e distinções territoriais.

Dessa forma, os Direitos Humanos se confi guram como importantes instrumentos de

luta e emancipação, na medida em que procuram abarcar as diferentes dimensões da vida

e da dignidade humana em seus aspectos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e

ambientais sobre a existência concreta de sujeitos corporifi cados de direitos. A construção

dos Direitos Humanos se faz nos processos políticos e práticas sociais de sujeitos concretos

que não só afi rmam como inovam direitos.

Uma agenda de políticas públicas fundamentada nos direitos deve partir de uma visão clara

das obrigações assumidas pelo Estado e, por outro lado, das violações

ou não realizações de direitos nos territórios. Assim, a refl exão acerca

da efetivação dos direitos humanos, na perspectiva de elaboração,

acompanhamento e avaliação de políticas públicas, deve necessariamente

contemplar a relação estabelecida entre território e cidadania.

As lutas pela institucionalização dos direitos geram condições para que

possam ser exigidos publicamente, mas não devem fragilizar os processos

de geração de novos conteúdos e sentidos10. Além das estratégias de

exigibilidade jurídica (ação civil pública, ação popular, etc), é funda-

mental destacar que a exigibilidade também tem um conteúdo social

e político; ou seja, a realização de direitos implica participação ativa

da sociedade. Nesta perspectiva, as práticas sociais é que dão sentido e

conteúdo aos direitos e às políticas.

Assim, entendemos que os processos de formulação e avaliação das políticas

públicas devem realizar um cruzamento dos instrumentos de Direitos

Humanos com as vivências sociais observadas nos diferentes territórios,

respeitando suas especifi cidades e visando o estabelecimento de prioridades

e a construção de alternativas coerentes com as demandas sociais.

Juventude e Protagonismo

O conceito de juventude não possui em si contornos precisos, sendo

geralmente concebido como uma etapa da vida situada entre a matu-

ridade biológica e a maturidade social.

Segundo defi nição proposta pela UNESCO11, o termo juventude se

refere ao “período do ciclo da vida em que as pessoas passam da infância

à condição de adultos e, durante o qual, se produzem importantes

mudanças biológicas, psicológicas, sociais e culturais, que variam segundo

as sociedades, as culturas, as etnias, as classes sociais e o gênero”. Desse

modo, a maneira como o jovem se vê, depende dos contextos nos

quais se encontra inserido. Cada ator social atribui um sentido à sua

“juventude”, entendendo que nem todas as pessoas de uma mesma

idade percorrem este período da mesma forma.

Assim, ao invés de procurarmos afi rmar a existência de um conceito

fechado de juventude, de cunho homogeneizador, procuramos entender

MNDH. 9. Caderno de Estudos. Sis-tema Nacional de Direitos Humanos. Brasília: 2004.

Carbonari, Paulo César. 10. Aproxima-ções conceituais sobre Direitos Huma-nos, Democracia e Desenvolvimento. RS: MNDH. 2005.

UNESCO. 11. Políticas de/para/com juventudes. Brasília: UNESCO, 2004.

34 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 35

esse período da vida a partir de uma perspectiva plural de múltiplas origens e conformações,

diretamente relacionadas a cada contexto sócio-cultural vivenciado. Diante disso, concebemos

a co-existência de várias ‘juventudes’, segundo um ponto de vista que integra as diversas

infl uências e referências biológicas, subjetivas, sociais, econômicas e culturais na construção

e compreensão desse conceito.

Chegamos desse modo à noção de protagonismo. Esse conceito diz respeito a uma forma

de participação na sociedade de maneira autônoma e propositiva, assumindo o papel

principal nas diversas formas de ação e intervenção política, a partir da livre expressão de

suas demandas e especifi cidades.

Dessa forma, a noção de protagonismo nos remete à percepção dos adolescentes e jovens

como sujeitos de direitos e não meros objetos sobre os quais incidem as políticas. Destacamos,

portanto, a necessidade de investirmos na criação e no fortalecimento de dispositivos que

incluam os jovens no planejamento e execução das atividades, propiciando não somente a

expressão de suas demandas, mas também a discussão e co-autoria do processo, propondo

atividades e rumos, a partir do diálogo e da construção coletiva.

OS MARCOS METODOLÓGICOS12

Pesquisa13

A pesquisa desenvolvida no Programa Rotas de Fuga consistiu em um estudo longitudinal

que envolveu o acompanhamento da trajetória de 230 crianças, adolescentes e jovens que

trabalhavam no tráfi co de drogas no varejo em 34 favelas do Rio de Janeiro entre os anos de

2004 e 2006.

O eixo da pesquisa foi fundamental no programa Rotas de Fuga, pelos seguintes motivos:

Para se obter dados (qualitativos e quantitativos) sobre o perfi l e as práticas de •

crianças, adolescentes e jovens que atuam na rede ilícita; sobre as condições de

ingresso e permanência de crianças, adolescentes e jovens nas redes do tráfi co de

drogas no varejo com o objetivo de subsidiar as ações de prevenção e criação de

alternativas da instituição, de outras instituições e dos governos;

Para se conhecer ou questionar as formas atuais de organização e atuação do tráfi co •

de drogas, assim como a maneira como este problema vem sendo enfrentado e

relacionado ao panorama atual da violência urbana;

Para possibilitar o investimento na formação de pesquisadores • de origem popular e articuladores locais;

Para trazer subsídios para a defi nição e o planejamento das • demais ações/eixos do programa.

Sensibilização

As ações de sensibilização partiram do princípio de que só é possível intervir sobre uma realidade se a sociedade estiver sensibilizada, e, se forem criados mecanismos capazes de mobilizar e articular atores em torno da problemática.

A proposta deste eixo é, essencialmente, sensibilizar, mobilizar e articular os diversos setores da sociedade civil e do poder público tendo em vista contribuir com a elaboração e proposição de políticas públicas para o enfrentamento do trabalho de crianças, adolescentes e jovens no tráfi co de drogas e para a valorização da vida.

Torna-se fundamental para este fi m, a ocupação de espaços de debates, seminários, mesas redondas, eventos acadêmicos, fóruns políticos e demais atividades que possam dar visibilidade para as ações do programa como uma ação política fundamental para a articulação e conquista de novos atores e parceiros em torno do tema e da forma de abordagem proposta. A isso se somam ações de comunicação, que podem ir desde intervenções na grande imprensa à produção de materiais alternativos voltados para o fortalecimento de uma mídia cidadã.

A partir deste trabalho de sensibilização, é possível a articulação de vários atores sociais em rede, envolvidos nesta temática, com o objetivo de promover ações de atendimento, promoção e garantia dos direitos, assim como realizar o monitoramento e a proposição de políticas públicas.

Prevenção

O eixo da prevenção tem por norte desenvolver ações que contribuam para a prevenção e a redução das situações que inserem as crianças, adolescentes e jovens no trabalho do tráfi co de drogas ou em outras atividades ilícitas que possam envolver risco de vida.

Maiores detalhes sobre os marcos 12. metodológicos do programas Rotas de Fuga podem ser obtidos na publicação que sistematiza a experiência: “Rotas de Fuga: Lições aprendidas no desenvolvimento de metodologias de prevenção e criação de alternativas para ado-lescentes e jovens no tráfico de drogas”, e que se encontra dispo-nível no site da instituição (www.observatoriodefavelas.org.br)

Maiores detalhes sobre a pesquisa 13. podem ser obtidos na publicação: “Rotas de Fuga: encruzilhadas de jovens no tráfi co de drogas”, de autoria coletiva de pesquisadores do Observatório de Favelas, e que se encontra disponível no site da instituição (www.observatoriode-favelas.org.br)

34 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 35

esse período da vida a partir de uma perspectiva plural de múltiplas origens e conformações,

diretamente relacionadas a cada contexto sócio-cultural vivenciado. Diante disso, concebemos

a co-existência de várias ‘juventudes’, segundo um ponto de vista que integra as diversas

infl uências e referências biológicas, subjetivas, sociais, econômicas e culturais na construção

e compreensão desse conceito.

Chegamos desse modo à noção de protagonismo. Esse conceito diz respeito a uma forma

de participação na sociedade de maneira autônoma e propositiva, assumindo o papel

principal nas diversas formas de ação e intervenção política, a partir da livre expressão de

suas demandas e especifi cidades.

Dessa forma, a noção de protagonismo nos remete à percepção dos adolescentes e jovens

como sujeitos de direitos e não meros objetos sobre os quais incidem as políticas. Destacamos,

portanto, a necessidade de investirmos na criação e no fortalecimento de dispositivos que

incluam os jovens no planejamento e execução das atividades, propiciando não somente a

expressão de suas demandas, mas também a discussão e co-autoria do processo, propondo

atividades e rumos, a partir do diálogo e da construção coletiva.

OS MARCOS METODOLÓGICOS12

Pesquisa13

A pesquisa desenvolvida no Programa Rotas de Fuga consistiu em um estudo longitudinal

que envolveu o acompanhamento da trajetória de 230 crianças, adolescentes e jovens que

trabalhavam no tráfi co de drogas no varejo em 34 favelas do Rio de Janeiro entre os anos de

2004 e 2006.

O eixo da pesquisa foi fundamental no programa Rotas de Fuga, pelos seguintes motivos:

Para se obter dados (qualitativos e quantitativos) sobre o perfi l e as práticas de •

crianças, adolescentes e jovens que atuam na rede ilícita; sobre as condições de

ingresso e permanência de crianças, adolescentes e jovens nas redes do tráfi co de

drogas no varejo com o objetivo de subsidiar as ações de prevenção e criação de

alternativas da instituição, de outras instituições e dos governos;

Para se conhecer ou questionar as formas atuais de organização e atuação do tráfi co •

de drogas, assim como a maneira como este problema vem sendo enfrentado e

relacionado ao panorama atual da violência urbana;

Para possibilitar o investimento na formação de pesquisadores • de origem popular e articuladores locais;

Para trazer subsídios para a defi nição e o planejamento das • demais ações/eixos do programa.

Sensibilização

As ações de sensibilização partiram do princípio de que só é possível intervir sobre uma realidade se a sociedade estiver sensibilizada, e, se forem criados mecanismos capazes de mobilizar e articular atores em torno da problemática.

A proposta deste eixo é, essencialmente, sensibilizar, mobilizar e articular os diversos setores da sociedade civil e do poder público tendo em vista contribuir com a elaboração e proposição de políticas públicas para o enfrentamento do trabalho de crianças, adolescentes e jovens no tráfi co de drogas e para a valorização da vida.

Torna-se fundamental para este fi m, a ocupação de espaços de debates, seminários, mesas redondas, eventos acadêmicos, fóruns políticos e demais atividades que possam dar visibilidade para as ações do programa como uma ação política fundamental para a articulação e conquista de novos atores e parceiros em torno do tema e da forma de abordagem proposta. A isso se somam ações de comunicação, que podem ir desde intervenções na grande imprensa à produção de materiais alternativos voltados para o fortalecimento de uma mídia cidadã.

A partir deste trabalho de sensibilização, é possível a articulação de vários atores sociais em rede, envolvidos nesta temática, com o objetivo de promover ações de atendimento, promoção e garantia dos direitos, assim como realizar o monitoramento e a proposição de políticas públicas.

Prevenção

O eixo da prevenção tem por norte desenvolver ações que contribuam para a prevenção e a redução das situações que inserem as crianças, adolescentes e jovens no trabalho do tráfi co de drogas ou em outras atividades ilícitas que possam envolver risco de vida.

Maiores detalhes sobre os marcos 12. metodológicos do programas Rotas de Fuga podem ser obtidos na publicação que sistematiza a experiência: “Rotas de Fuga: Lições aprendidas no desenvolvimento de metodologias de prevenção e criação de alternativas para ado-lescentes e jovens no tráfico de drogas”, e que se encontra dispo-nível no site da instituição (www.observatoriodefavelas.org.br)

Maiores detalhes sobre a pesquisa 13. podem ser obtidos na publicação: “Rotas de Fuga: encruzilhadas de jovens no tráfi co de drogas”, de autoria coletiva de pesquisadores do Observatório de Favelas, e que se encontra disponível no site da instituição (www.observatoriode-favelas.org.br)

36 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 37

Na sua premissa busca realizar algum tipo de intervenção que interfi ra positivamente no sentido

de provocar um distanciamento da rede ilícita, aproximando-os de outras redes sociais.

Em geral, o trabalho de prevenção é indicado para sujeitos que mantêm, em algum nível, re-

lações indiretas com a rede do tráfi co, seja por laços de amizade ou mesmo de parentesco.

Além disso, esse eixo acolhe famílias em situação de alta vulnerabilidade social, com rede social

muito fragilizada e aquelas famílias dos benefi ciários diretos da ação de criação de alternativas.

Criação de alternativas

A criação de alternativas para adolescentes e jovens inseridos no tráfi co de drogas é um

desafi o, uma vez que se entende que o processo de mudança do indivíduo em busca de um

novo caminho deve levar em conta alternativas possíveis dentro de seu contexto sociocultural

e sistema de valores.

Com este eixo pretende-se:

Contribuir para a disseminação de estratégias de acompanhamento direto daqueles •

envolvidos no tráfi co de drogas, e outras redes de trabalho ilícitas, que desejem

abandonar essas atividades.

Construir e criar alternativas nos mais diferentes campos (saúde, educação, âmbito •

jurídico, qualifi cação profi ssional, geração de trabalho e renda, âmbito familiar

e comunitário, entre outros) voltados para o enfrentamento direto da questão

e que contribuam efetivamente para o afastamento de crianças, adolescentes e

jovens deste universo.

Elaborar proposições e articulações que possam contribuir para políticas públicas •

de proteção e valorização da vida.

LIÇÕES APRENDIDAS E PRINCIPAIS RESULTADOS DO PROJETO REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

Em processos como o vivido pelos atores do projeto Redes de Valorização da Vida, as

diferentes dinâmicas em cada organização parceira/comunidade/cidades, são fruto de um

cotidiano (onde nem tudo é previsível) e das relações intra-equipe e inter-equipes, sejam de

planejamento, execução e avaliação. O processo de troca metodológica e disseminação dos

conceitos do Programa Rotas de Fuga no projeto permitiu que os nossos

parceiros, tanto no Rio de Janeiro como em Recife, com autonomia

e liberdade, construíssem e colocassem a sua marca em todo o trajeto

percorrido. A construção das linhas de adequação no que se refere à

disseminação de metodologia, estratégias e marcos conceituais respeitou

as condições locais e os princípios de cada instituição parceira.

Ao fi nal, o que foi trabalhado na parceria com organizações das duas

cidades tendo em vista a articulação, o fortalecimento e a consolidação

de redes de prevenção à violência letal contra adolescentes e jovens,

é de todos aqueles que se comunicaram, realizaram e avaliaram o

projeto. O que foi disseminado e apreendido no exercício de troca

metodológica e conceitual produziu a ampliação do olhar sobre os

adolescentes e jovens que vivem nos espaços populares – como a Maré

e o Coque – reiterando o seu potencial.

Em relação ao fortalecimento da atuação das organizações parceiras o

projeto provocou uma refl exão interna sobre os elementos constituintes

de cada cidade/realidade no que diz respeito aos diferentes olhares

construídos sobre os espaços populares e os aspectos da violência e

da letalidade de adolescentes e jovens numa perspectiva que buscou

sempre a prática cidadã de sujeitos de direitos.

Um dos principais resultados metodológicos do trabalho foi a ação

participativa, dialógica e de construção conjunta, entre todos os atores

envolvidos. A comunicação horizontal entre os diferentes segmentos do

projeto e nas próprias instituições considerou igualmente o protagonismo

e a participação juvenil essenciais à formação cidadã.

Os Ciclos Formativos realizados pelo projeto junto às organizações

parceiras nas duas cidades já foram incorporados ao calendário e

planejamento das mesmas. Dessa forma, um dos frutos do Redes de

Valorização da Vida foi incentivar uma cultura de refl exão sobre as

dinâmicas locais relacionadas à violência que afeta adolescentes e jovens

visando qualifi car as ações desenvolvidas por cada organização.

Em relação aos profi ssionais/educadores das ofi cinas apoiadas pelo

projeto podemos dizer que suas práticas pedagógicas e visão de mundo

foram ampliadas sem que deixássemos de considerar todo o arcabouço

36 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 37

Na sua premissa busca realizar algum tipo de intervenção que interfi ra positivamente no sentido

de provocar um distanciamento da rede ilícita, aproximando-os de outras redes sociais.

Em geral, o trabalho de prevenção é indicado para sujeitos que mantêm, em algum nível, re-

lações indiretas com a rede do tráfi co, seja por laços de amizade ou mesmo de parentesco.

Além disso, esse eixo acolhe famílias em situação de alta vulnerabilidade social, com rede social

muito fragilizada e aquelas famílias dos benefi ciários diretos da ação de criação de alternativas.

Criação de alternativas

A criação de alternativas para adolescentes e jovens inseridos no tráfi co de drogas é um

desafi o, uma vez que se entende que o processo de mudança do indivíduo em busca de um

novo caminho deve levar em conta alternativas possíveis dentro de seu contexto sociocultural

e sistema de valores.

Com este eixo pretende-se:

Contribuir para a disseminação de estratégias de acompanhamento direto daqueles •

envolvidos no tráfi co de drogas, e outras redes de trabalho ilícitas, que desejem

abandonar essas atividades.

Construir e criar alternativas nos mais diferentes campos (saúde, educação, âmbito •

jurídico, qualifi cação profi ssional, geração de trabalho e renda, âmbito familiar

e comunitário, entre outros) voltados para o enfrentamento direto da questão

e que contribuam efetivamente para o afastamento de crianças, adolescentes e

jovens deste universo.

Elaborar proposições e articulações que possam contribuir para políticas públicas •

de proteção e valorização da vida.

LIÇÕES APRENDIDAS E PRINCIPAIS RESULTADOS DO PROJETO REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA

Em processos como o vivido pelos atores do projeto Redes de Valorização da Vida, as

diferentes dinâmicas em cada organização parceira/comunidade/cidades, são fruto de um

cotidiano (onde nem tudo é previsível) e das relações intra-equipe e inter-equipes, sejam de

planejamento, execução e avaliação. O processo de troca metodológica e disseminação dos

conceitos do Programa Rotas de Fuga no projeto permitiu que os nossos

parceiros, tanto no Rio de Janeiro como em Recife, com autonomia

e liberdade, construíssem e colocassem a sua marca em todo o trajeto

percorrido. A construção das linhas de adequação no que se refere à

disseminação de metodologia, estratégias e marcos conceituais respeitou

as condições locais e os princípios de cada instituição parceira.

Ao fi nal, o que foi trabalhado na parceria com organizações das duas

cidades tendo em vista a articulação, o fortalecimento e a consolidação

de redes de prevenção à violência letal contra adolescentes e jovens,

é de todos aqueles que se comunicaram, realizaram e avaliaram o

projeto. O que foi disseminado e apreendido no exercício de troca

metodológica e conceitual produziu a ampliação do olhar sobre os

adolescentes e jovens que vivem nos espaços populares – como a Maré

e o Coque – reiterando o seu potencial.

Em relação ao fortalecimento da atuação das organizações parceiras o

projeto provocou uma refl exão interna sobre os elementos constituintes

de cada cidade/realidade no que diz respeito aos diferentes olhares

construídos sobre os espaços populares e os aspectos da violência e

da letalidade de adolescentes e jovens numa perspectiva que buscou

sempre a prática cidadã de sujeitos de direitos.

Um dos principais resultados metodológicos do trabalho foi a ação

participativa, dialógica e de construção conjunta, entre todos os atores

envolvidos. A comunicação horizontal entre os diferentes segmentos do

projeto e nas próprias instituições considerou igualmente o protagonismo

e a participação juvenil essenciais à formação cidadã.

Os Ciclos Formativos realizados pelo projeto junto às organizações

parceiras nas duas cidades já foram incorporados ao calendário e

planejamento das mesmas. Dessa forma, um dos frutos do Redes de

Valorização da Vida foi incentivar uma cultura de refl exão sobre as

dinâmicas locais relacionadas à violência que afeta adolescentes e jovens

visando qualifi car as ações desenvolvidas por cada organização.

Em relação aos profi ssionais/educadores das ofi cinas apoiadas pelo

projeto podemos dizer que suas práticas pedagógicas e visão de mundo

foram ampliadas sem que deixássemos de considerar todo o arcabouço

38 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 39

já existente. Ocorreu o aprofundamento e a vivência de que as práticas que partem dos territórios podem impactar e concretizar-se em políticas favoráveis aos grupos que neles residem. Desse modo, se tornaram mais atentos para a relação de suas ações com o campo das políticas públicas e a discussão sobre o direito à cidade.

Em relação ao trabalho desenvolvido com os adolescentes e jovens, a experiência deixou clara a importância de se reforçar uma educação em direitos humanos nas escolas, principalmente nos espaços populares, onde uma série desses direitos são violados. É necessário que a escola se comprometa com essa temática e crie condições para uma ação transformadora.

Por outro lado, foi possível a ampliação de suas redes sociais a partir de uma maior circulação e apropriação da cidade e da interlocução com outros jovens. Esta integração entre grupos de várias áreas viabilizou troca intensa de pontos de vistas e vivências comuns e diferentes. Além disso, houve o estímulo e a construção de práticas articuladas com seus pares numa perspectiva de participação na sociedade de maneira autônoma e propositiva. O que nos remete à percepção dos adolescentes e jovens como sujeitos de direitos e não meros objetos sobre os quais incidem as políticas. Nossa perspectiva foi a de contribuir na promoção de uma mobilização e articulação de jovens que ampliassem a compreensão dos seus direitos.

Nas ofi cinas desenvolvidas com os adolescentes e jovens conseguiu-se articular aspectos cognitivos, subjetivos, de refl exão de si, do outro e da comunidade, com processos de formação política relacionados às possibilidades de ação dos adolescentes no campo da exigibilidade e garantia de direitos. Desta forma, potencializou-se a vida pública dos adolescentes, fazendo-os compreender os direitos formalmente garantidos pelo Estado, bem como os mecanismos que podem ser acionados para sua efetivação, estimulando o comprometimento desses adolescentes com a promoção de direitos na comunidade.

As ações em rede nas duas cidades seguiram caminhos diferentes. No Rio de Janeiro já existia uma rede articulada em torno da questão dos adolescentes e jovens inseridos em redes de trabalho ilícito, em especial o tráfi co de drogas – a Rede Rotas. Esta articulação se manteve e foi potencializada pelo projeto.

Em Recife optou-se por buscar espaços nas redes e articulações já existentes na cidade, onde pautou-se a temática da letalidade juvenil visando a construção de alternativas para a prevenção da violência letal entre adolescentes e jovens e a discussão de políticas voltadas para a juventude.

Nesta articulação buscou-se identifi car e analisar as políticas públicas que incidiam sobre a temática, qual o seu grau de abrangência e o que de fato estava sendo implementado. O objetivo era construir canais de diálogo, objetivando a proposição, monitoramento e

avaliação destas políticas, com participação dos atores sociais locais, acentuado a importância

da proposição e do diálogo, em lugar da simples crítica.

A atuação dos integrantes do projeto Redes de Valorização da Vida

em articulações em rede permitiu a percepção de novos espaços e

possibilidades de abordar a problemática da letalidade entre adolescentes

e jovens. Esta abordagem se deu a partir de discussões mais amplas

sobre o contexto local, bem como em refl exões focadas na inserção

destes grupos no tráfi co de drogas e outras atividades ilícitas, buscando

a partir da intervenção de cada ator e da dinâmica de cada rede e/ou

articulação, sensibilizar e provocar o debate sobre os homicídios de

adolescentes e jovens, que tanto no Recife como no Rio de Janeiro

alcançam índices muito elevados.

O interesse neste debate tem crescido desde o inicio do projeto, o que

indica a importância de continuidade e ampliação desta ação, incorpo-

rando novos atores e novas abordagens, principalmente relacionadas à

formulação e monitoramento de políticas públicas que incidam sobre

este problema.

Dois aspectos merecem especial destaque em relação às práticas sociais

dos atores, redes e articulações envolvidas no projeto:

A necessidade de apoiar e favorecer organizações de jovens, •

para que sejam protagonistas dos processos de enfrentamento

da violência que os atinge;

A intervenção no cenário de políticas públicas no nível local, •

de forma a garantir alternativas sustentáveis de garantia de

direitos e ações de valorização da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do projeto Redes de Valorização da Vida nas duas cidades,

bem como as diversas articulações e dinâmicas sociais que ocorreram

no período, estiveram voltadas para o campo dos Direitos Humanos e

das Juventudes. Isso permitiu colocar na pauta dos debates a temática

da violência, assim como, buscar formas de participar e infl uenciar

coletivamente políticas públicas de prevenção da violência e de pro-

moção de direitos.

38 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 39

já existente. Ocorreu o aprofundamento e a vivência de que as práticas que partem dos territórios podem impactar e concretizar-se em políticas favoráveis aos grupos que neles residem. Desse modo, se tornaram mais atentos para a relação de suas ações com o campo das políticas públicas e a discussão sobre o direito à cidade.

Em relação ao trabalho desenvolvido com os adolescentes e jovens, a experiência deixou clara a importância de se reforçar uma educação em direitos humanos nas escolas, principalmente nos espaços populares, onde uma série desses direitos são violados. É necessário que a escola se comprometa com essa temática e crie condições para uma ação transformadora.

Por outro lado, foi possível a ampliação de suas redes sociais a partir de uma maior circulação e apropriação da cidade e da interlocução com outros jovens. Esta integração entre grupos de várias áreas viabilizou troca intensa de pontos de vistas e vivências comuns e diferentes. Além disso, houve o estímulo e a construção de práticas articuladas com seus pares numa perspectiva de participação na sociedade de maneira autônoma e propositiva. O que nos remete à percepção dos adolescentes e jovens como sujeitos de direitos e não meros objetos sobre os quais incidem as políticas. Nossa perspectiva foi a de contribuir na promoção de uma mobilização e articulação de jovens que ampliassem a compreensão dos seus direitos.

Nas ofi cinas desenvolvidas com os adolescentes e jovens conseguiu-se articular aspectos cognitivos, subjetivos, de refl exão de si, do outro e da comunidade, com processos de formação política relacionados às possibilidades de ação dos adolescentes no campo da exigibilidade e garantia de direitos. Desta forma, potencializou-se a vida pública dos adolescentes, fazendo-os compreender os direitos formalmente garantidos pelo Estado, bem como os mecanismos que podem ser acionados para sua efetivação, estimulando o comprometimento desses adolescentes com a promoção de direitos na comunidade.

As ações em rede nas duas cidades seguiram caminhos diferentes. No Rio de Janeiro já existia uma rede articulada em torno da questão dos adolescentes e jovens inseridos em redes de trabalho ilícito, em especial o tráfi co de drogas – a Rede Rotas. Esta articulação se manteve e foi potencializada pelo projeto.

Em Recife optou-se por buscar espaços nas redes e articulações já existentes na cidade, onde pautou-se a temática da letalidade juvenil visando a construção de alternativas para a prevenção da violência letal entre adolescentes e jovens e a discussão de políticas voltadas para a juventude.

Nesta articulação buscou-se identifi car e analisar as políticas públicas que incidiam sobre a temática, qual o seu grau de abrangência e o que de fato estava sendo implementado. O objetivo era construir canais de diálogo, objetivando a proposição, monitoramento e

avaliação destas políticas, com participação dos atores sociais locais, acentuado a importância

da proposição e do diálogo, em lugar da simples crítica.

A atuação dos integrantes do projeto Redes de Valorização da Vida

em articulações em rede permitiu a percepção de novos espaços e

possibilidades de abordar a problemática da letalidade entre adolescentes

e jovens. Esta abordagem se deu a partir de discussões mais amplas

sobre o contexto local, bem como em refl exões focadas na inserção

destes grupos no tráfi co de drogas e outras atividades ilícitas, buscando

a partir da intervenção de cada ator e da dinâmica de cada rede e/ou

articulação, sensibilizar e provocar o debate sobre os homicídios de

adolescentes e jovens, que tanto no Recife como no Rio de Janeiro

alcançam índices muito elevados.

O interesse neste debate tem crescido desde o inicio do projeto, o que

indica a importância de continuidade e ampliação desta ação, incorpo-

rando novos atores e novas abordagens, principalmente relacionadas à

formulação e monitoramento de políticas públicas que incidam sobre

este problema.

Dois aspectos merecem especial destaque em relação às práticas sociais

dos atores, redes e articulações envolvidas no projeto:

A necessidade de apoiar e favorecer organizações de jovens, •

para que sejam protagonistas dos processos de enfrentamento

da violência que os atinge;

A intervenção no cenário de políticas públicas no nível local, •

de forma a garantir alternativas sustentáveis de garantia de

direitos e ações de valorização da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do projeto Redes de Valorização da Vida nas duas cidades,

bem como as diversas articulações e dinâmicas sociais que ocorreram

no período, estiveram voltadas para o campo dos Direitos Humanos e

das Juventudes. Isso permitiu colocar na pauta dos debates a temática

da violência, assim como, buscar formas de participar e infl uenciar

coletivamente políticas públicas de prevenção da violência e de pro-

moção de direitos.

40 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 41

Desta forma, entende-se que ocorreu uma abertura de espaços de diálogo entre organizações

comunitárias, movimentos sociais e instituições governamentais, o que amplia as possibilidades

de enfrentamento dos altos índices de violência e letalidade que afetam adolescentes e

jovens, através de ações articuladas e potencializadas pelo conjunto das forças políticas que

os atores sociais incorporam.

Espera-se com a sistematização do Projeto Redes de Valorização da Vida contribuir para

qualifi car a ação e redimensionar a prática das organizações envolvidas a partir dos conhe-

cimentos que o exercício de troca conceitual e metodológica proporcionou.

Tivemos como princípio fundamental de nossas ações a valorização da vida, alicerce do

projeto. O direito a vida foi situado como premissa fundamental da existência coletiva.

Neste percurso, algumas pontuações dos parceiros envolvidos (organizações, jovens, edu-

cadores e redes) nos remetem à certeza de que valeu a pena este caminhar e a necessidade

de continuidade do processo, que depende agora do esforço de cada organização para a

sustentabilidade de tudo o que foi acrescido ao conjunto de suas práticas e saberes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMO, Helen Wendel. Condição Juvenil no Brasil Contemporâneo. In: ABRAMO, Helen Wendel & BRANCO,

Pedro Paulo. Retratos da Juventude Brasileira. São Paulo: Instituto Cidadania / Editora Fundação Perseu

Abramo, 2005.

AYRES, Bruno R. C. Redes Organizacionais no Terceiro Setor - um olhar sobre suas articulações. Rio de Janeiro,

2008. Retirado do site: Rede de Informações para o Terceiro Setor (www.rits.org.br).

ARCE, Jose Manuel Valenzuela. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafi te. Rio de Janeiro: UFRJ,

1999.

BRASIL. Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 2 – Programa de Ação -2002

-2007. Brasília: Ministério da Justiça, 2002

FERNANDES, Fernando Lannes (2009). Violência, medo e estigma. Efeitos sócio-espaciais da “atualização” do “mito da

marginalidade” no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografi a, UFRJ.

FREITAS, Maria Virgínia. Os jovens e a garantia de direitos no Brasil. Rio de Janeiro: PAD, 2007.

GROPPO, Luis Antonio. Juventude: ensaios sobre sociologia e a História das Juventudes Modernas. Rio de Janeiro,

Editora BCD S.A., 2000.

INESC. Plano Nacional de Direitos Humanos: falta executar. Nota técnica nº 89, junho

de 2004.

MNDH. Atualização do PNDH II. Proposta do Movimento Nacional de Direitos Humanos

(MNDH) para uma metodologia. Brasília: junho de 2007.

RITS. O que são redes? Rede de informações para o terceiro setor. AMARAL, Vivianne.

Desafi os do trabalho em rede. Rio de Janeiro, 2008

SILVA, Jailson de Souza (2006). A Cultura da Esperança. In: MENDES, Cândido

et alli. Refl exões sobre a Violência Urbana (In) Segurança e (Des) Esperança. Rio de

Janeiro: Mauad X.

SILVA, Jailson de Souza & BARBOSA, J. (2005). Favela: alegria e dor na cidade. RJ

Editora Senac.

SILVA, Jailson de Souza & URANI, A. (2002). Crianças no Narcotráfi co: um diagnóstico

rápido. Brasília: Organização Internacional do Trabalho; Ministério do Trabalho

e Emprego.

SILVA, Jailson de Souza (2002). Um espaço em busca de seu lugar: as favelas para além dos

estereótipos. In: Programa de Pós-Graduação em Geografi a/Universidade Federal

Fluminense. Território. Territórios. Niterói: EdUFF.

SILVA. Jailson de Souza; FERNANDES, Fernando Lannes & WILLADINO, Raquel (2008).

Grupos Criminosos Armados com Domínio de Território. Refl exões sobre s Territorialidade do

crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. In JUSTIÇA GLOBAL (org). Segurança,

Tráfi co e Milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, pp.

16-24.

UNESCO. Políticas de/para/com juventudes. Brasília: UNESCO, 2004.

40 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 41

Desta forma, entende-se que ocorreu uma abertura de espaços de diálogo entre organizações

comunitárias, movimentos sociais e instituições governamentais, o que amplia as possibilidades

de enfrentamento dos altos índices de violência e letalidade que afetam adolescentes e

jovens, através de ações articuladas e potencializadas pelo conjunto das forças políticas que

os atores sociais incorporam.

Espera-se com a sistematização do Projeto Redes de Valorização da Vida contribuir para

qualifi car a ação e redimensionar a prática das organizações envolvidas a partir dos conhe-

cimentos que o exercício de troca conceitual e metodológica proporcionou.

Tivemos como princípio fundamental de nossas ações a valorização da vida, alicerce do

projeto. O direito a vida foi situado como premissa fundamental da existência coletiva.

Neste percurso, algumas pontuações dos parceiros envolvidos (organizações, jovens, edu-

cadores e redes) nos remetem à certeza de que valeu a pena este caminhar e a necessidade

de continuidade do processo, que depende agora do esforço de cada organização para a

sustentabilidade de tudo o que foi acrescido ao conjunto de suas práticas e saberes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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marginalidade” no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografi a, UFRJ.

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estereótipos. In: Programa de Pós-Graduação em Geografi a/Universidade Federal

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crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. In JUSTIÇA GLOBAL (org). Segurança,

Tráfi co e Milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, pp.

16-24.

UNESCO. Políticas de/para/com juventudes. Brasília: UNESCO, 2004.

42 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 43

Juventude, exclusão e processos de mudança:

uma análise das políticas de juventude

ALEXANDRE SIMÃO DE FREITAS1

Nos últimos anos procuramos investigar iniciativas que têm adotado a juventude como um eixo articulador de políticas públicas focalizadas na Região Metropolitana do Recife, verifi cando o grau de compreensão que os atores e agentes institucionais locais tem sobre a natureza e reproduções dos problemas da condição juvenil na contemporaneidade. Mais especifi camente procuramos verifi car os modos de articulação e o nível de solidariedade sócio-institucional existente entre governos e organizações da sociedade civil com vistas a uma melhor compreensão dos impactos dessas políticas.

Integrando as atividades do Núcleo de Pesquisa em Política Educa-cional, Planejamento e Gestão da Educação (NEPPE) do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPE), essas pesquisas têm sido desenvolvidas com o concurso de alunos do mestrado e da graduação, mediante articulação de dois grandes subprojetos. O primeiro visando mapear os desenhos institucionais, construídos pelos governos muni-cipais, para a gestão das políticas de segurança, investigando as imagens construídas sobre os jovens destinatários das iniciativas e as formas utilizadas pelos gestores locais para a interação com esses segmentos. O segundo priorizando estudos de caso para entender o impacto das

políticas de juventude do ponto de vista dos atores.

Pedagogo, Mestre em Educação e 1. Doutor em Sociologia pela Uni-versidade Federal de Pernambuco, onde é professor no Programa de Pos-graduação em Educação. É um dos fundadores do Neimfa e possui larga experiência em edu-cação não formal e movimentos sociais.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA44 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 45

O interesse mais amplo insere-se no debate recente a respeito dos vínculos entre a democra-

tização das instituições públicas e os problemas relativos à exclusão social. No seu conjunto,

a proposta pretende avançar sobre os estudos de vitimização de jovens, já produzidos no

País, apontando um caminho alternativo de análise da gestão social das políticas públicas

de juventude que vá além da apresentação dos chamados “mapas da violência”, a partir da

operacionalização do conceito de rede de defesa social, cuja fi nalidade consiste em oferecer

indicadores para uma avaliação mais adequada dessas políticas, subsidiando os rumos a serem

trilhados na democratização social, em consonância com o papel que cabe à produção do

conhecimento no âmbito da sociedade civil organizada e da própria universidade pública.

INTRODUÇÃO

Na última década a institucionalização de políticas públicas, no Brasil, passou a incorporar novas variáveis quando da abordagem dos problemas relativos à condição juvenil pelas agendas governamentais. Diferindo do que predominou em períodos anteriores, passou a prevalecer o entendimento de que as questões que afetam os jovens exigem a formulação e a implementação de políticas específi cas (ABRAMO & FRANCO, 2004; NOVAES E VANUCCHI, 2003; SALES, MATOS, LEAL, 2004; CASTRO & ABROMOVAY, 2002). A prioridade da agenda política e do planejamento concernentes passa a confi gurar-se pela busca de novos dispositivos que consideram simultaneamente o próprio ciclo de vida das políticas públicas e as expressões coletivas dos jovens.

Há um consenso de que as políticas públicas devem incluir as temáticas e os problemas específi cos desse segmento, bem como tratá-lo como ator ativo nesse processo. Mas antes de abordarmos as implicações subjacentes à noção de juventude aplicada ao campo das políticas públicas de segurança, é importante lembrar o padrão que tem orientado as políticas relativas a este campo, e que está suscitando as iniciativas a serem focalizadas por este projeto, ou seja, problematizar o lugar da juventude nesse âmbito.

Para SPOSITO (2007), a forma como a juventude vem sendo tematizada, enquanto objeto específi co de intervenção do Estado, nas últimas décadas, inter-relaciona os processos mais amplos de mudança econômica e social com os episódios recentes de natureza violenta envolvendo os jovens, evidenciando as difi culdades de “políticas públicas adequadas aos jovens em confl ito com a lei ou em processo de exclusão social” (p. 07). A associação entre juventude e violência tem mobilizado as representações específi cas que passam a desencadear ações públicas, através da idéia de vulnerabilidade pessoal e social dos jovens.

Essa vinculação consolida a noção de uma juventude potencialmente perigosa, ao mesmo

tempo em que favorece a disseminação de sentimentos de insegurança

pública (IANNI, 2004; VELHO & ALVITO, 2000). Um diagnóstico

que vem, comumente, acompanhado de uma crítica às instituições

públicas. A compreensão é que

a redemocratização no Brasil não se limitou a um mero fato político,

posto que veio imbricada em um conjunto de outras mudanças. Tendo

como pano de fundo uma crise econômica prolongada, os contornos

dessas mudanças foram em muito obscurecidas. A violência generalizada

que as acompanhou situa-se na confl uência de duas lógicas, que é

importante distinguir. A primeira refere-se a transformações no plano

social propriamente e aos efeitos que daí derivam, do ponto de vista

da formação de uma confl itualidade urbana de novo tipo. A segunda

refere-se à inépcia das instituições encarregadas de garantir a ordem

pública e ao seu despreparo diante das novas exigências da vida na

democracia (PERALVA, 2000, p. 177).

Em resposta a essa problemática, o Governo Federal iniciou, no ano

2000, um Plano de Integração e Acompanhamento dos Programas

Sociais de Prevenção à Violência (Piaps), com o objetivo de concentrar

ações de inclusão social nos municípios apontados como líderes em

homicídios. O Piaps materializou a medida de número 121 do Plano

Nacional de Segurança Pública, e tinha por alvo aglutinar 49 programas

sociais pulverizados em 13 Ministérios. O Plano apontou, dentre outros

elementos, a necessidade de articular consensos que favorecessem a

ampliação da relação do Estado com os espaços da sociedade civil,

enquanto caminho para pensar novos parâmetros de atuação do poder

público face ao caráter endêmico da violência urbana no país.2

Os impactos dessas orientações, contudo, não se fi zeram sentir junto

aos diferentes segmentos juvenis, o que, segundo PERALVA (2000),

pode está relacionado com a escassez de investigações que considerem

na experiência dos jovens “a menor importância relativa do trabalho na

estruturação da experiência coletiva, o maior peso relativo da educação

como apoio das escolhas individuais, bem como a maior participação do

consumo de massa” (p. 84). Mudanças que estariam na base de uma nova

confl itualidade urbana, marcada por expressões violentas da juventude

pobre que derivariam de uma nova experiência de integração social.

Vale lembrar que o crescimento da 2. mortalidade por causas externas, no Brasil, fi gura como a segunda causa de mortalidade. Os homicí-dios já ultrapassam os acidentes de tráfego. Isso faz com que o Brasil ocupe o terceiro lugar no mundo em assassinato de jovens entre 15 e 24 anos, especialmente os do sexo masculino. Assim como os indi-cadores de renda, a distribuição da violência também revela um forte caráter regional. De acordo com a Pesquisa Mapa da Violência IV (UNESCO, 2004), dos nove estados da região Nordeste, dois (Pernambuco e Alagoas) aparecem no ranking dos mais violentos. En-tre as capitais, Recife lidera com 90,5 homicídios para cada 100 mil habitantes, seguida por Maceió (61,3) e Aracajú (54,4).

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA44 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 45

O interesse mais amplo insere-se no debate recente a respeito dos vínculos entre a democra-

tização das instituições públicas e os problemas relativos à exclusão social. No seu conjunto,

a proposta pretende avançar sobre os estudos de vitimização de jovens, já produzidos no

País, apontando um caminho alternativo de análise da gestão social das políticas públicas

de juventude que vá além da apresentação dos chamados “mapas da violência”, a partir da

operacionalização do conceito de rede de defesa social, cuja fi nalidade consiste em oferecer

indicadores para uma avaliação mais adequada dessas políticas, subsidiando os rumos a serem

trilhados na democratização social, em consonância com o papel que cabe à produção do

conhecimento no âmbito da sociedade civil organizada e da própria universidade pública.

INTRODUÇÃO

Na última década a institucionalização de políticas públicas, no Brasil, passou a incorporar novas variáveis quando da abordagem dos problemas relativos à condição juvenil pelas agendas governamentais. Diferindo do que predominou em períodos anteriores, passou a prevalecer o entendimento de que as questões que afetam os jovens exigem a formulação e a implementação de políticas específi cas (ABRAMO & FRANCO, 2004; NOVAES E VANUCCHI, 2003; SALES, MATOS, LEAL, 2004; CASTRO & ABROMOVAY, 2002). A prioridade da agenda política e do planejamento concernentes passa a confi gurar-se pela busca de novos dispositivos que consideram simultaneamente o próprio ciclo de vida das políticas públicas e as expressões coletivas dos jovens.

Há um consenso de que as políticas públicas devem incluir as temáticas e os problemas específi cos desse segmento, bem como tratá-lo como ator ativo nesse processo. Mas antes de abordarmos as implicações subjacentes à noção de juventude aplicada ao campo das políticas públicas de segurança, é importante lembrar o padrão que tem orientado as políticas relativas a este campo, e que está suscitando as iniciativas a serem focalizadas por este projeto, ou seja, problematizar o lugar da juventude nesse âmbito.

Para SPOSITO (2007), a forma como a juventude vem sendo tematizada, enquanto objeto específi co de intervenção do Estado, nas últimas décadas, inter-relaciona os processos mais amplos de mudança econômica e social com os episódios recentes de natureza violenta envolvendo os jovens, evidenciando as difi culdades de “políticas públicas adequadas aos jovens em confl ito com a lei ou em processo de exclusão social” (p. 07). A associação entre juventude e violência tem mobilizado as representações específi cas que passam a desencadear ações públicas, através da idéia de vulnerabilidade pessoal e social dos jovens.

Essa vinculação consolida a noção de uma juventude potencialmente perigosa, ao mesmo

tempo em que favorece a disseminação de sentimentos de insegurança

pública (IANNI, 2004; VELHO & ALVITO, 2000). Um diagnóstico

que vem, comumente, acompanhado de uma crítica às instituições

públicas. A compreensão é que

a redemocratização no Brasil não se limitou a um mero fato político,

posto que veio imbricada em um conjunto de outras mudanças. Tendo

como pano de fundo uma crise econômica prolongada, os contornos

dessas mudanças foram em muito obscurecidas. A violência generalizada

que as acompanhou situa-se na confl uência de duas lógicas, que é

importante distinguir. A primeira refere-se a transformações no plano

social propriamente e aos efeitos que daí derivam, do ponto de vista

da formação de uma confl itualidade urbana de novo tipo. A segunda

refere-se à inépcia das instituições encarregadas de garantir a ordem

pública e ao seu despreparo diante das novas exigências da vida na

democracia (PERALVA, 2000, p. 177).

Em resposta a essa problemática, o Governo Federal iniciou, no ano

2000, um Plano de Integração e Acompanhamento dos Programas

Sociais de Prevenção à Violência (Piaps), com o objetivo de concentrar

ações de inclusão social nos municípios apontados como líderes em

homicídios. O Piaps materializou a medida de número 121 do Plano

Nacional de Segurança Pública, e tinha por alvo aglutinar 49 programas

sociais pulverizados em 13 Ministérios. O Plano apontou, dentre outros

elementos, a necessidade de articular consensos que favorecessem a

ampliação da relação do Estado com os espaços da sociedade civil,

enquanto caminho para pensar novos parâmetros de atuação do poder

público face ao caráter endêmico da violência urbana no país.2

Os impactos dessas orientações, contudo, não se fi zeram sentir junto

aos diferentes segmentos juvenis, o que, segundo PERALVA (2000),

pode está relacionado com a escassez de investigações que considerem

na experiência dos jovens “a menor importância relativa do trabalho na

estruturação da experiência coletiva, o maior peso relativo da educação

como apoio das escolhas individuais, bem como a maior participação do

consumo de massa” (p. 84). Mudanças que estariam na base de uma nova

confl itualidade urbana, marcada por expressões violentas da juventude

pobre que derivariam de uma nova experiência de integração social.

Vale lembrar que o crescimento da 2. mortalidade por causas externas, no Brasil, fi gura como a segunda causa de mortalidade. Os homicí-dios já ultrapassam os acidentes de tráfego. Isso faz com que o Brasil ocupe o terceiro lugar no mundo em assassinato de jovens entre 15 e 24 anos, especialmente os do sexo masculino. Assim como os indi-cadores de renda, a distribuição da violência também revela um forte caráter regional. De acordo com a Pesquisa Mapa da Violência IV (UNESCO, 2004), dos nove estados da região Nordeste, dois (Pernambuco e Alagoas) aparecem no ranking dos mais violentos. En-tre as capitais, Recife lidera com 90,5 homicídios para cada 100 mil habitantes, seguida por Maceió (61,3) e Aracajú (54,4).

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA46 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 47

Dessa ótica,

“nem todos os jovens favelados são bandidos. Mas as famílias sabem que há hoje entre eles um

potencial importante de engajamento na criminalidade e uma grande indeterminação pesa, nesse

sentido, sobre o seu futuro. A juventude favelada como tal participa de uma experiência comum,

e é a partir desse pano de fundo comum que escolhas individuais são efetuadas. As fronteiras se

tornaram menos claras do que no passado, quando trabalhadores e malandros constituíam duas

categorias de indivíduos opostas uma à outra. Essa identifi cação é em primeiro lugar característica

de uma geração: o bandido é um jovem e recruta entre os jovens” (PERALVA, 2000, p. 129).

A matriz atual da violência estaria assumindo uma característica peculiar: a participação

ativa e, cada vez mais, precoce de adolescentes e jovens, disseminando-se como estilo

cultural e meio econômico de vida. Um fenômeno que altera, simultaneamente, as regras

de reciprocidade e reconhecimento nas redes sociais de pertencimento. Nessa direção,

qualquer que seja o critério metodológico adotado para se analisar a nova fenomenologia

da violência, entre jovens, é preciso levar em conta os processos de formação das identidades

sociais, uma vez que

“a formação da identidade para os jovens é um processo penoso e complicado. A construção de

si é bem mais difícil que escolher uma roupa, ainda que a analogia não seja de todo má, uma

vez que o interesse por uma camisa de marca, pelo tênis de marca, corresponde a um esforço

para ser diferente e para ser igual, para ser diferente-igual aos outros, isto é, igual àqueles que

merecem a admiração (...). Roupas, posturas e imagens compõem uma linguagem simbólica

inseparável dos valores” (SOARES, 2004, p. 137).

De fato, no Brasil, a dinâmica de formação das identidades não tem sido objeto explícito

de tematização pelos formuladores de políticas públicas (PERALVA, 1997; VELHO, 1986).

Situação que contribui para obscurecer o fato de que a formação da identidade depende do

reconhecimento dos outros3. A problematização da identidade permite analisar as questões

relativas à igualdade social de uma forma distinta do paradigma redistributivo dominante

(TAYLOR, 2007; HONNETH, 2007, FRASER, 2007), com implicações diretas na

interpretação dos confl itos sociais.

Nessa perspectiva, SENNETT (2004) ressalta que, nas comunidades pobres, os jovens estão

sempre pressionados pelas mais variadas formas de discriminação, o que os torna muito

“sensíveis a ser ‘desfeitos’, isto é, desrespeitados”. Pois em lugares onde há poucos recursos e

o reconhecimento está em falta, a “honra social é frágil” (p. 51), potencializando as múltiplas

formas de exclusão. Em outros termos, a ausência de reconhecimento estaria na base da crise

do vínculo social, fazendo-se acompanhar por uma perda de signifi cação das experiências

de aprendizagem que são realizadas nas redes sociais formais e não

formais. Essa perda de sentido carrega pelo menos uma conseqüência

importante para o nosso estudo. A primeira é a redução da função social

da educação à lógica e aos critérios econômico-utilitaristas.

O objetivo da educação, aqui, seria preparar univocamente para o

mercado de trabalho. O problema é que ao não perceberem a viabilidade concreta dessa meta, os alunos vivenciariam um processo desafi liação simbólica (CASTEL, 1998) dos sistemas de ensino. O conteúdo socia-lizador veiculado pelas escolas não os mobilizaria. Esse é o cenário mais amplo em que a juventude adquire densidade política, nas últimas décadas, mediante um trabalho de visibilidade centrado na idéia de que a violência praticada e sofrida pelos jovens constitui um problema social que demanda soluções específi cas por parte do Estado.

Com efeito, a polaridade entre o desenvolvimento econômico e os graus de exclusão e seletividade nas esferas do político e do social constitui-se em uma das principais características que marca a condição juvenil na contemporaneidade. Subsumir, contudo, as políticas públicas de juventude na cifra da violência, de acordo com SPOSITO (2007), não deixa de ser também uma decisão política, produzindo programas de ação que acentuam “certas atribuições calcadas em imagens positivas ou negativas que funcionam como modelos normativos, muitas vezes distantes dos jovens reais e de seus modos de vida” (p. 10-11). As ações dos poderes públicos acabam por engendrar formas de governo que pretendem qualifi car um contingente populacional apreendido ora como “incluídos” ora como “excluídos” do sistema de direitos sociais.

Como ressalta FOUCAULT (2000), essa polarização constitui um subproduto do racismo de estado4, decorrente, ele mesmo, de uma nova tecnologia de poder denominada de “biopolítica”. Um tipo de poder que se dirige aos indivíduos na medida em que formam uma massa global, ou seja, uma população. O nascimento da biopolítica (FOUCAULT, 2007) integra-se às duas outras invenções da modernidade: a norma e a disciplina, e toma a vida dos sujeitos como uma propriedade coletiva. Dessa ótica, ao traçar um panorama do tratamento governamental dado às temáticas relacionadas aos jovens no Brasil, no campo da segurança pública preventiva, pretende-se interrogar em que medida é possível falar, de fato, em políticas públicas de segurança para os jovens, ou

Embora a noção de reconheci-3. mento esteja no centro do debate político, na atualidade, ainda são escassos os trabalhos no campo educativo que têm utilizado essa categoria como modelo compre-ensivo das lutas sociais.

Racismo de estado, segundo 4. FOUCAULT (2000), consiste numa forma de regulamentação que visa apagar as diferenças so-ciais pelo controle de sua aparição, mediante discursos e práticas de inclusão.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA46 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 47

Dessa ótica,

“nem todos os jovens favelados são bandidos. Mas as famílias sabem que há hoje entre eles um

potencial importante de engajamento na criminalidade e uma grande indeterminação pesa, nesse

sentido, sobre o seu futuro. A juventude favelada como tal participa de uma experiência comum,

e é a partir desse pano de fundo comum que escolhas individuais são efetuadas. As fronteiras se

tornaram menos claras do que no passado, quando trabalhadores e malandros constituíam duas

categorias de indivíduos opostas uma à outra. Essa identifi cação é em primeiro lugar característica

de uma geração: o bandido é um jovem e recruta entre os jovens” (PERALVA, 2000, p. 129).

A matriz atual da violência estaria assumindo uma característica peculiar: a participação

ativa e, cada vez mais, precoce de adolescentes e jovens, disseminando-se como estilo

cultural e meio econômico de vida. Um fenômeno que altera, simultaneamente, as regras

de reciprocidade e reconhecimento nas redes sociais de pertencimento. Nessa direção,

qualquer que seja o critério metodológico adotado para se analisar a nova fenomenologia

da violência, entre jovens, é preciso levar em conta os processos de formação das identidades

sociais, uma vez que

“a formação da identidade para os jovens é um processo penoso e complicado. A construção de

si é bem mais difícil que escolher uma roupa, ainda que a analogia não seja de todo má, uma

vez que o interesse por uma camisa de marca, pelo tênis de marca, corresponde a um esforço

para ser diferente e para ser igual, para ser diferente-igual aos outros, isto é, igual àqueles que

merecem a admiração (...). Roupas, posturas e imagens compõem uma linguagem simbólica

inseparável dos valores” (SOARES, 2004, p. 137).

De fato, no Brasil, a dinâmica de formação das identidades não tem sido objeto explícito

de tematização pelos formuladores de políticas públicas (PERALVA, 1997; VELHO, 1986).

Situação que contribui para obscurecer o fato de que a formação da identidade depende do

reconhecimento dos outros3. A problematização da identidade permite analisar as questões

relativas à igualdade social de uma forma distinta do paradigma redistributivo dominante

(TAYLOR, 2007; HONNETH, 2007, FRASER, 2007), com implicações diretas na

interpretação dos confl itos sociais.

Nessa perspectiva, SENNETT (2004) ressalta que, nas comunidades pobres, os jovens estão

sempre pressionados pelas mais variadas formas de discriminação, o que os torna muito

“sensíveis a ser ‘desfeitos’, isto é, desrespeitados”. Pois em lugares onde há poucos recursos e

o reconhecimento está em falta, a “honra social é frágil” (p. 51), potencializando as múltiplas

formas de exclusão. Em outros termos, a ausência de reconhecimento estaria na base da crise

do vínculo social, fazendo-se acompanhar por uma perda de signifi cação das experiências

de aprendizagem que são realizadas nas redes sociais formais e não

formais. Essa perda de sentido carrega pelo menos uma conseqüência

importante para o nosso estudo. A primeira é a redução da função social

da educação à lógica e aos critérios econômico-utilitaristas.

O objetivo da educação, aqui, seria preparar univocamente para o

mercado de trabalho. O problema é que ao não perceberem a viabilidade concreta dessa meta, os alunos vivenciariam um processo desafi liação simbólica (CASTEL, 1998) dos sistemas de ensino. O conteúdo socia-lizador veiculado pelas escolas não os mobilizaria. Esse é o cenário mais amplo em que a juventude adquire densidade política, nas últimas décadas, mediante um trabalho de visibilidade centrado na idéia de que a violência praticada e sofrida pelos jovens constitui um problema social que demanda soluções específi cas por parte do Estado.

Com efeito, a polaridade entre o desenvolvimento econômico e os graus de exclusão e seletividade nas esferas do político e do social constitui-se em uma das principais características que marca a condição juvenil na contemporaneidade. Subsumir, contudo, as políticas públicas de juventude na cifra da violência, de acordo com SPOSITO (2007), não deixa de ser também uma decisão política, produzindo programas de ação que acentuam “certas atribuições calcadas em imagens positivas ou negativas que funcionam como modelos normativos, muitas vezes distantes dos jovens reais e de seus modos de vida” (p. 10-11). As ações dos poderes públicos acabam por engendrar formas de governo que pretendem qualifi car um contingente populacional apreendido ora como “incluídos” ora como “excluídos” do sistema de direitos sociais.

Como ressalta FOUCAULT (2000), essa polarização constitui um subproduto do racismo de estado4, decorrente, ele mesmo, de uma nova tecnologia de poder denominada de “biopolítica”. Um tipo de poder que se dirige aos indivíduos na medida em que formam uma massa global, ou seja, uma população. O nascimento da biopolítica (FOUCAULT, 2007) integra-se às duas outras invenções da modernidade: a norma e a disciplina, e toma a vida dos sujeitos como uma propriedade coletiva. Dessa ótica, ao traçar um panorama do tratamento governamental dado às temáticas relacionadas aos jovens no Brasil, no campo da segurança pública preventiva, pretende-se interrogar em que medida é possível falar, de fato, em políticas públicas de segurança para os jovens, ou

Embora a noção de reconheci-3. mento esteja no centro do debate político, na atualidade, ainda são escassos os trabalhos no campo educativo que têm utilizado essa categoria como modelo compre-ensivo das lutas sociais.

Racismo de estado, segundo 4. FOUCAULT (2000), consiste numa forma de regulamentação que visa apagar as diferenças so-ciais pelo controle de sua aparição, mediante discursos e práticas de inclusão.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA48 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 49

apenas de um conjunto de programas focalizados nos diferentes grupos de jovens, tratados quase sempre de forma estereotipada. Assume-se, então, que as políticas implementadas

caracterizam-se ainda por serem reparatórias e compensatórias.

Isso implica discutir o próprio processo de formulação das políticas, destinadas aos jovens,

uma vez que essas políticas não podem ser originadas da lógica setorial (SPOSITO, 2007).

Uma intervenção pública baseada em critérios etários sugere uma lógica transversal capaz

de articular as demais políticas setoriais (educação, saúde, emprego, etc.). No entanto, as

difi culdades desse processo não podem ser minimizadas. Os sistemas estatal e social possuem

lógicas específi cas de ordenamento (CHANIAL, 2001; WAUTHIER, 2001). Os governos,

ao conceberem políticas de juventude como políticas sociais setoriais, nada mais fazem do

que buscar\legitimar uma regulação externa de “públicos” (GODBOUT, 2002), mediante

dispositivos que muitas vezes não levam em consideração os modelos comunitários e

associativos que formam as bases identitárias dos sujeitos afetados.

Esse posicionamento ajuda a entender os motivos pelos quais determinadas políticas não

conseguem obter adesão dos sujeitos implicados com sua implementação, uma vez que sua

efetividade depende da capacidade do desenho institucional obter uma colaboração ativa

dos atores, nos campos propositivos e operacionais. Mais ainda: a densidade das redes de

pertencimento dos sujeitos produz processos organizativos signifi cativos, contrabalançando

os efeitos de dominação e instrumentalização das práticas de intervenção pública. Uma

questão vital quando da análise dos processos de constituição da agenda pública voltada

para os jovens, conforme problematizaremos a seguir.

A JUVENTUDE COMO QUESTÃO SOCIALMENTE PROBLEMATIZADA

O tema da juventude, mesmo na área da Educação, ainda é um objeto de estudo pouco

consolidado no âmbito da pesquisa. Por essa razão, inicialmente, é importante levar em consideração os problemas da produção de conhecimento sobre juventude (HADDAD & SPOSITO, 1999; SPOSITO, 1997), pois a primeira questão que se apresenta para os pesquisadores desse campo temático é a própria indefi nição da categoria juventude5. Os trabalhos mais recentes sobre a temática tendem a se orientar mais fortemente no campo denominado de “sociologia da juventude”, incorporando estudos sobre o mundo do trabalho, mídia, etnia, participação política e violência (ver tabela ao lado).

Entretanto, a produção acadêmica permanece fortemente atrelada ao universo escolar, provocando uma forte adesão dos estudos sobre os grupos juvenis a partir da condição de

alunos (PAIS, 1990). Essa ênfase faz com que os estudos se mantenham

nos marcos analíticos de uma sociologia da escola, cujo limite revela-se

na ausência de nexos empíricos e teóricos capazes de absorver outras

dimensões da experiência socializadora e da sociabilidade dos jovens.

Um foco relevante de estudo concentra-se nos aspectos psicossociais

do comportamento dos jovens, integralizando 19,7% da produção.

Mas a força das relações dos jovens com as formas institucionais do processo

educativo é evidente, compreendendo 47,6 % dos assuntos abordados. A

temática dos jovens em processo de exclusão social recobriu 16,5 da produção,

cabendo destacar um conjunto de temas emergentes como é o caso dos

jovens em sua relação com a mídia, os grupos juvenis e a violência6.

DISTRIBUIÇÃO DA PRODUÇÃO EM JUVENTUDE POR TEMAS/PERÍODOS

TEMAS% PERÍODO

80/84 85/89 90/94 95/98 Total

Jovem, trabalho e escola 21,4 19,3 36,9 14,3 20,7

Aspectos Psicossociais adolescentes

35,7 21,9 11,9 17 19,7

Adolescentes em processo de exclusão social

10,7 8,2 9,2 24,8 16,6

Estudantes e jovens universitários

16,1 17,8 15,8 11 14

Juventude e escola 12,5 16,4 13,1 11,6 13

Jovens e Participação Política

0 6,8 5,3 7,7 5,9

Mídia e Juventude 1,8 4,1 2,6 3,8 3,4

Jovens e violência 1,8 1,4 3,9 3,3 2,8

Grupos Juvenis 0 1,4 1,3 3,8 2,1

Jovens e adolescentes negros

0 0 0 2,2 1

Outros 0 2,7 0 0,5 0,8

Total 100 100 100 100 100

Fonte: SPOSITO, S\D

De acordo com SPOSITO (2007), 5. a defi nição da categoria juventude, em si mesma, encerra um proble-ma passível de investigação.

No entanto surpreende a pouca 6. participação da temática racial ou étnica nas pesquisas sobre os jovens. Segundo SPOSITO (s\d), esse aspecto crucial para o enten-dimento da sociedade brasileira e das desigualdades educacionais concentrou apenas 1% da produ-ção sobre juventude.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA48 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 49

apenas de um conjunto de programas focalizados nos diferentes grupos de jovens, tratados quase sempre de forma estereotipada. Assume-se, então, que as políticas implementadas

caracterizam-se ainda por serem reparatórias e compensatórias.

Isso implica discutir o próprio processo de formulação das políticas, destinadas aos jovens,

uma vez que essas políticas não podem ser originadas da lógica setorial (SPOSITO, 2007).

Uma intervenção pública baseada em critérios etários sugere uma lógica transversal capaz

de articular as demais políticas setoriais (educação, saúde, emprego, etc.). No entanto, as

difi culdades desse processo não podem ser minimizadas. Os sistemas estatal e social possuem

lógicas específi cas de ordenamento (CHANIAL, 2001; WAUTHIER, 2001). Os governos,

ao conceberem políticas de juventude como políticas sociais setoriais, nada mais fazem do

que buscar\legitimar uma regulação externa de “públicos” (GODBOUT, 2002), mediante

dispositivos que muitas vezes não levam em consideração os modelos comunitários e

associativos que formam as bases identitárias dos sujeitos afetados.

Esse posicionamento ajuda a entender os motivos pelos quais determinadas políticas não

conseguem obter adesão dos sujeitos implicados com sua implementação, uma vez que sua

efetividade depende da capacidade do desenho institucional obter uma colaboração ativa

dos atores, nos campos propositivos e operacionais. Mais ainda: a densidade das redes de

pertencimento dos sujeitos produz processos organizativos signifi cativos, contrabalançando

os efeitos de dominação e instrumentalização das práticas de intervenção pública. Uma

questão vital quando da análise dos processos de constituição da agenda pública voltada

para os jovens, conforme problematizaremos a seguir.

A JUVENTUDE COMO QUESTÃO SOCIALMENTE PROBLEMATIZADA

O tema da juventude, mesmo na área da Educação, ainda é um objeto de estudo pouco

consolidado no âmbito da pesquisa. Por essa razão, inicialmente, é importante levar em consideração os problemas da produção de conhecimento sobre juventude (HADDAD & SPOSITO, 1999; SPOSITO, 1997), pois a primeira questão que se apresenta para os pesquisadores desse campo temático é a própria indefi nição da categoria juventude5. Os trabalhos mais recentes sobre a temática tendem a se orientar mais fortemente no campo denominado de “sociologia da juventude”, incorporando estudos sobre o mundo do trabalho, mídia, etnia, participação política e violência (ver tabela ao lado).

Entretanto, a produção acadêmica permanece fortemente atrelada ao universo escolar, provocando uma forte adesão dos estudos sobre os grupos juvenis a partir da condição de

alunos (PAIS, 1990). Essa ênfase faz com que os estudos se mantenham

nos marcos analíticos de uma sociologia da escola, cujo limite revela-se

na ausência de nexos empíricos e teóricos capazes de absorver outras

dimensões da experiência socializadora e da sociabilidade dos jovens.

Um foco relevante de estudo concentra-se nos aspectos psicossociais

do comportamento dos jovens, integralizando 19,7% da produção.

Mas a força das relações dos jovens com as formas institucionais do processo

educativo é evidente, compreendendo 47,6 % dos assuntos abordados. A

temática dos jovens em processo de exclusão social recobriu 16,5 da produção,

cabendo destacar um conjunto de temas emergentes como é o caso dos

jovens em sua relação com a mídia, os grupos juvenis e a violência6.

DISTRIBUIÇÃO DA PRODUÇÃO EM JUVENTUDE POR TEMAS/PERÍODOS

TEMAS% PERÍODO

80/84 85/89 90/94 95/98 Total

Jovem, trabalho e escola 21,4 19,3 36,9 14,3 20,7

Aspectos Psicossociais adolescentes

35,7 21,9 11,9 17 19,7

Adolescentes em processo de exclusão social

10,7 8,2 9,2 24,8 16,6

Estudantes e jovens universitários

16,1 17,8 15,8 11 14

Juventude e escola 12,5 16,4 13,1 11,6 13

Jovens e Participação Política

0 6,8 5,3 7,7 5,9

Mídia e Juventude 1,8 4,1 2,6 3,8 3,4

Jovens e violência 1,8 1,4 3,9 3,3 2,8

Grupos Juvenis 0 1,4 1,3 3,8 2,1

Jovens e adolescentes negros

0 0 0 2,2 1

Outros 0 2,7 0 0,5 0,8

Total 100 100 100 100 100

Fonte: SPOSITO, S\D

De acordo com SPOSITO (2007), 5. a defi nição da categoria juventude, em si mesma, encerra um proble-ma passível de investigação.

No entanto surpreende a pouca 6. participação da temática racial ou étnica nas pesquisas sobre os jovens. Segundo SPOSITO (s\d), esse aspecto crucial para o enten-dimento da sociedade brasileira e das desigualdades educacionais concentrou apenas 1% da produ-ção sobre juventude.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA50 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 51

Por outro lado, o exame dos autores que têm se dedicado ao tema, no âmbito da sociologia

(BRITO, 1968a; 1968b; 1968c; 1968d; FORACCHI, 1972; EISENSTADT, 1976; MAN-

NHEIM, 1982), revela que ora a juventude é abordada como um grupo etário identifi cado aos modelos culturais, enfatizando-se, nesse caso, os aspectos geracionais, ora a juventude é questionada enquanto categoria específi ca. Nesse sentido, DUBET (1996) observa que para se estabelecer um tratamento analítico adequado sobre a noção é preciso reconhecer que a condição do jovem encerra uma tensão intrínseca.

A experiência juvenil seria construída em torno da formação de um mundo juvenil relativamente autônomo e, ao mesmo tempo, como momento de distribuição dos indivíduos na estrutura social. Por essa razão, a universalidade da categoria juventude exige o reconhecimento de sua historicidade, pois as defi nições e as expectativas que as sociedades constroem sobre os jovens adquirem contornos no bojo de disputas políticas, econômicas e culturais, as quais condicionam como as sociedades reconhecem as diferentes fases da vida (FREITAS & PAPA, 2003). Assim, se nos anos 1960, a juventude era defi nida como protagonista de uma crise de valores e de um confl ito de gerações, a partir da década de 1970 os problemas de emprego e de entrada na vida ativa tomaram progressivamente a dianteira nos estudos sobre a juventude. Nos anos 1980, por sua vez, ocorre uma infl exão signifi cativa nas pesquisas sobre jovens em processo de exclusão social. Emerge o reconhecimento da interdependência entre os processos de exclusão social que atingem diferentes segmentos juvenis e os mecanismos sociais relacionados aos atos de violência.

Ao mesmo tempo, nos anos 1990, na conjuntura pós-Estatuto da Criança e do Adolescente, estimula-se uma investigação em torno das condições e modos de vida de adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade pessoal e social, agora investidos simbolicamente na condição de sujeito de direitos. Combinados, esses fatores confl uíram em um conjunto multifacetado de ações intersetoriais com o objetivo de consolidar o campo das políticas públicas de juventude no fi nal da década. Nesse contexto, o principal desafi o consiste em articular projetos

e ações que assegurem igualdade de direitos, valorização da diversidade e respostas

concretas às demandas recentes da condição juvenil. A conjugação desses aspectos

não constitui uma tarefa simples, implicando o uso de novos paradigmas analíticos no

âmbito das políticas públicas.

De acordo com KERBAUY (2005), trata-se de apreender as políticas de juventude

menos como políticas governamentais e mais como políticas públicas. Esse alargamento da compreensão em torno das políticas públicas supõe relacionar esse campo com as

investigações sobre as ações coletivas e os movimentos sociais dos segmentos juvenis

na sociedade brasileira (SPOSITO, 2000). A articulação entre esses dois campos analíticos é crucial para se avaliar o impacto das ações, uma vez que as pesquisas têm indicado a ocorrência de um padrão dicotômico recorrente no processo de formulação e implemen-

tação das políticas públicas de juventude. Por um lado, constroem-se intervenções que apreendem o jovem como uma “ameaça social”, e, por outro, observam-se ações que reconhecem os jovens como sujeitos de direitos (CARRANO & SPOSITO, 2003).

Isso signifi ca que a tônica da intervenção pública está associada com o conceito que os gestores governamentais têm de juventude, deixando muitas vezes de contemplar outras fi gurações possíveis que emergem do campo de forças e disputas que constituem os jovens como atores políticos nos espaços públicos da sociedade. Assim, na atualidade,

“no campo da construção social da juventude, como categoria a mobilizar

a ação pública, fi ca evidente o seu conteúdo normativo. De algum modo

as iniciativas tomam por pressuposto o que seria desejável para os jovens

em função de certa concepção de suas necessidades, que poderão ser,

eventualmente, transformadas em acesso a programas, equipamentos e

serviços e consolidar uma esfera própria de direitos” (p. 06).

Não é casual, portanto, que a visibilidade da categoria juventude, no âmbito das políticas públicas, carregue a idéia de vulnerabilidade como elemento caracterizador da condição dos jovens pobres. No entanto, defendemos que o nexo produzido entre juventude e violência pode ser melhor compreendido quando se insere a lógica articulatória das políticas de juventude em um continuum histórico mais amplo. Como lembra FOUCAULT (2006), a disseminação de sentimentos de insegurança, atrelados à idéia de grupos populacionais perigosos inscreve-se no marco de novas formas de regulamentação do Estado baseados em padrões normativos naturalizados que constituem determinados segmentos sociais como objeto de tematização política, produzindo um confl ito social permanente que se manifesta, por exemplo, na recusa de determinados sujeitos em assumir as representações e imagens supostamente consensuais

que lhes são endereçadas desde o âmbito político.

AS REDES EDUCATIVAS DA SOCIEDADE CIVIL E A GESTÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE

O fenômeno da globalização tem propiciado a emergência de outros espaços educativos, para além das redes escolares institucionalizadas.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA50 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 51

Por outro lado, o exame dos autores que têm se dedicado ao tema, no âmbito da sociologia

(BRITO, 1968a; 1968b; 1968c; 1968d; FORACCHI, 1972; EISENSTADT, 1976; MAN-

NHEIM, 1982), revela que ora a juventude é abordada como um grupo etário identifi cado aos modelos culturais, enfatizando-se, nesse caso, os aspectos geracionais, ora a juventude é questionada enquanto categoria específi ca. Nesse sentido, DUBET (1996) observa que para se estabelecer um tratamento analítico adequado sobre a noção é preciso reconhecer que a condição do jovem encerra uma tensão intrínseca.

A experiência juvenil seria construída em torno da formação de um mundo juvenil relativamente autônomo e, ao mesmo tempo, como momento de distribuição dos indivíduos na estrutura social. Por essa razão, a universalidade da categoria juventude exige o reconhecimento de sua historicidade, pois as defi nições e as expectativas que as sociedades constroem sobre os jovens adquirem contornos no bojo de disputas políticas, econômicas e culturais, as quais condicionam como as sociedades reconhecem as diferentes fases da vida (FREITAS & PAPA, 2003). Assim, se nos anos 1960, a juventude era defi nida como protagonista de uma crise de valores e de um confl ito de gerações, a partir da década de 1970 os problemas de emprego e de entrada na vida ativa tomaram progressivamente a dianteira nos estudos sobre a juventude. Nos anos 1980, por sua vez, ocorre uma infl exão signifi cativa nas pesquisas sobre jovens em processo de exclusão social. Emerge o reconhecimento da interdependência entre os processos de exclusão social que atingem diferentes segmentos juvenis e os mecanismos sociais relacionados aos atos de violência.

Ao mesmo tempo, nos anos 1990, na conjuntura pós-Estatuto da Criança e do Adolescente, estimula-se uma investigação em torno das condições e modos de vida de adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade pessoal e social, agora investidos simbolicamente na condição de sujeito de direitos. Combinados, esses fatores confl uíram em um conjunto multifacetado de ações intersetoriais com o objetivo de consolidar o campo das políticas públicas de juventude no fi nal da década. Nesse contexto, o principal desafi o consiste em articular projetos

e ações que assegurem igualdade de direitos, valorização da diversidade e respostas

concretas às demandas recentes da condição juvenil. A conjugação desses aspectos

não constitui uma tarefa simples, implicando o uso de novos paradigmas analíticos no

âmbito das políticas públicas.

De acordo com KERBAUY (2005), trata-se de apreender as políticas de juventude

menos como políticas governamentais e mais como políticas públicas. Esse alargamento da compreensão em torno das políticas públicas supõe relacionar esse campo com as

investigações sobre as ações coletivas e os movimentos sociais dos segmentos juvenis

na sociedade brasileira (SPOSITO, 2000). A articulação entre esses dois campos analíticos é crucial para se avaliar o impacto das ações, uma vez que as pesquisas têm indicado a ocorrência de um padrão dicotômico recorrente no processo de formulação e implemen-

tação das políticas públicas de juventude. Por um lado, constroem-se intervenções que apreendem o jovem como uma “ameaça social”, e, por outro, observam-se ações que reconhecem os jovens como sujeitos de direitos (CARRANO & SPOSITO, 2003).

Isso signifi ca que a tônica da intervenção pública está associada com o conceito que os gestores governamentais têm de juventude, deixando muitas vezes de contemplar outras fi gurações possíveis que emergem do campo de forças e disputas que constituem os jovens como atores políticos nos espaços públicos da sociedade. Assim, na atualidade,

“no campo da construção social da juventude, como categoria a mobilizar

a ação pública, fi ca evidente o seu conteúdo normativo. De algum modo

as iniciativas tomam por pressuposto o que seria desejável para os jovens

em função de certa concepção de suas necessidades, que poderão ser,

eventualmente, transformadas em acesso a programas, equipamentos e

serviços e consolidar uma esfera própria de direitos” (p. 06).

Não é casual, portanto, que a visibilidade da categoria juventude, no âmbito das políticas públicas, carregue a idéia de vulnerabilidade como elemento caracterizador da condição dos jovens pobres. No entanto, defendemos que o nexo produzido entre juventude e violência pode ser melhor compreendido quando se insere a lógica articulatória das políticas de juventude em um continuum histórico mais amplo. Como lembra FOUCAULT (2006), a disseminação de sentimentos de insegurança, atrelados à idéia de grupos populacionais perigosos inscreve-se no marco de novas formas de regulamentação do Estado baseados em padrões normativos naturalizados que constituem determinados segmentos sociais como objeto de tematização política, produzindo um confl ito social permanente que se manifesta, por exemplo, na recusa de determinados sujeitos em assumir as representações e imagens supostamente consensuais

que lhes são endereçadas desde o âmbito político.

AS REDES EDUCATIVAS DA SOCIEDADE CIVIL E A GESTÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE

O fenômeno da globalização tem propiciado a emergência de outros espaços educativos, para além das redes escolares institucionalizadas.

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA52 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 53

Apesar de não anularem o sentido da escolarização formal, os novos movimentos sociais têm

denunciado seus limites e contradições. Falar da existência de educação no interior de processos

que se desenvolvem fora dos canais institucionais escolares implica uma concepção ampliada

de educação que deixa de se restringir ao aprendizado de conteúdos específi cos.

A democratização deixa de ser passageira e funcional para tornar-se forma permanente e processo

de ajuste entre legalidade e legitimidade, entre moral e lei. Esta nova interpretação abre espaço

para os movimentos sociais e associações da sociedade civil na compreensão mesma do processo

de democratização, incorporando novos conceitos, destacando-se o de esfera pública. Os processos

de reprodução sociocultural se convertem em forma política no espaço público.

As associações civis absorvem iniciativas sociais difusas, encaminhando-as ao espaço público

para o embate político (VIEIRA, 2001, p. 74)7. A participação nos espaços organizativos da

sociedade produz efeitos sobre o sistema de governo e sobre os próprios indivíduos, permitindo

que, por um lado, os cidadãos exponham suas necessidades e demandas ao sistema estatal, e, por

outro, difunde hábitos de cooperação e habilidades práticas para atuar na vida pública. Com

isso, elas produzem mudanças na forma de vivenciar a sociabilidade pela criação de novos

territórios de ação coletiva (SCHERER-WARREN, 1993), resultando em outras formas

de apreender os bens públicos. A categoria relevante é a de pertencimento, entendida como

sentimento de identidade que gera motivação para a ação coletiva. Uma dimensão essencial

quando se aborda a gestão de políticas públicas de segurança preventiva no âmbito local.

Nas teorias democráticas tradicionais, o governo local assume como enfoque primordial a análise

da governabilidade das unidades administrativas do Estado. Os atores coletivos são apreendidos

apenas como consumidores ou benefi ciários dos bens ou serviços ofertados. Na lógica das

redes sociais, ao contrário, o governo local diz respeito a uma nova forma de participação

e organização, abarcando a questão do comunitário e do associativismo. A formação para a

cidadania é pensada em articulação com os movimentos sociais. A indiferença com relação a

essa questão está na raiz dos problemas encontrados na formação das agendas políticas, fazendo

com que as políticas públicas elaboradas pelos governos, em geral, apresentem-se como políticas

regulamentadoras. Situação que transparece na constituição da agenda pública voltada aos

jovens, onde o desenho das políticas aparece subordinado ao tema da questão social.

Não é estranha a reiteração das problemáticas da vulnerabilidade, do risco e da violência,

como fatores que desencadeiam a ação tanto do Executivo municipal como do federal, a

partir de meados dos anos de 1990. Ou seja, as políticas de juventude no país não nascem a

partir da constituição de um espaço de visibilidade da condição juvenil moderna, incluindo

sua diversidade, e uma concepção ampliada de direitos (...). Por essas razões, a inserção

das ações de forma predominantemente no âmbito dos organismos de assistência traduz

alguma coerência que difi culta, no entanto, a alteração de imagens que

condensam estereótipos negativos em relação aos adolescentes pobres

(SPOSITO, CARVALHO E SILVA, SOUZA, 2006, p. 242). Esse

referencial normativo pode ser localizado na segunda gestão do governo

Fernando Henrique Cardoso, sendo retomadas de modo expressivo após

a eleição de Lula (SPOSITO & CARRANO, 2004). Assim, em 2003,

no âmbito do Poder Legislativo, foi instalada a Comissão Especial de

Políticas Públicas de Juventude, que passa a realizar várias audiências

públicas que culminam com a elaboração de um Plano Nacional de

Juventude. Em 2004, as ações adquirem novo impulso com a criação

do Grupo de Trabalho Interministerial para monitorar as intervenções

governamentais dirigidas à juventude, ao mesmo tempo em que se

instituem a Secretaria Nacional de Juventude, o Conselho Nacional

da Juventude e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens. Uma

investigação ampla sobre as repercussões desse novo marco institucio-

nal foi conduzida por uma equipe de pesquisadores coordenada por

SPOSITO (2007), a qual analisou sua potencialidade na proposição

de novos canais de interação com os segmentos juvenis. A pesquisa

conclui afi rmando que grande parte das ações voltadas aos jovens,

em 74 cidades brasileiras de regiões metropolitanas, desenvolvidas no

período de 2004 a 2007, ainda resulta de uma “lógica eminentemente

calcada na idéia de uma formação complementar, institucionalizada

compulsória” (p. 35), ou seja,

a participação (dos jovens nos programas) não altera, signifi cativamente, as

difi culdades experimentadas no presente e não responde a um conjunto

de demandas represadas, sobretudo quando se trata de jovens pobres,

os mais atingidos pelos efeitos perversos das condições de desigualdade

presente nos modelos econômico-sociais dominantes (p. 36).

As propostas desencadeadas ainda parecem oferecer condições restritas,

sobretudo no que diz respeito à abertura de novos espaços públicos

que promovam a experimentação, a mobilidade e a circulação dos

diferentes segmentos juvenis. Mesmo constatando uma maior abertura

da temática juventude na agenda política dos governos, observa-se uma

baixa participação de atores externos às municipalidades na concepção

das ações (SPOSITO, CARVALHO E SILVA, SOUZA, 2006, p. 248),

confi rmando o paradigma dominante que tem no Estado a instancia

Essa concepção societár ia de 7. democratização afasta-se da visão republicanista clássica que subestima o papel do fenômeno associacionista por seu enrai-zamento na esfera pré-política (CHANIAL, 2001).

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA52 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 53

Apesar de não anularem o sentido da escolarização formal, os novos movimentos sociais têm

denunciado seus limites e contradições. Falar da existência de educação no interior de processos

que se desenvolvem fora dos canais institucionais escolares implica uma concepção ampliada

de educação que deixa de se restringir ao aprendizado de conteúdos específi cos.

A democratização deixa de ser passageira e funcional para tornar-se forma permanente e processo

de ajuste entre legalidade e legitimidade, entre moral e lei. Esta nova interpretação abre espaço

para os movimentos sociais e associações da sociedade civil na compreensão mesma do processo

de democratização, incorporando novos conceitos, destacando-se o de esfera pública. Os processos

de reprodução sociocultural se convertem em forma política no espaço público.

As associações civis absorvem iniciativas sociais difusas, encaminhando-as ao espaço público

para o embate político (VIEIRA, 2001, p. 74)7. A participação nos espaços organizativos da

sociedade produz efeitos sobre o sistema de governo e sobre os próprios indivíduos, permitindo

que, por um lado, os cidadãos exponham suas necessidades e demandas ao sistema estatal, e, por

outro, difunde hábitos de cooperação e habilidades práticas para atuar na vida pública. Com

isso, elas produzem mudanças na forma de vivenciar a sociabilidade pela criação de novos

territórios de ação coletiva (SCHERER-WARREN, 1993), resultando em outras formas

de apreender os bens públicos. A categoria relevante é a de pertencimento, entendida como

sentimento de identidade que gera motivação para a ação coletiva. Uma dimensão essencial

quando se aborda a gestão de políticas públicas de segurança preventiva no âmbito local.

Nas teorias democráticas tradicionais, o governo local assume como enfoque primordial a análise

da governabilidade das unidades administrativas do Estado. Os atores coletivos são apreendidos

apenas como consumidores ou benefi ciários dos bens ou serviços ofertados. Na lógica das

redes sociais, ao contrário, o governo local diz respeito a uma nova forma de participação

e organização, abarcando a questão do comunitário e do associativismo. A formação para a

cidadania é pensada em articulação com os movimentos sociais. A indiferença com relação a

essa questão está na raiz dos problemas encontrados na formação das agendas políticas, fazendo

com que as políticas públicas elaboradas pelos governos, em geral, apresentem-se como políticas

regulamentadoras. Situação que transparece na constituição da agenda pública voltada aos

jovens, onde o desenho das políticas aparece subordinado ao tema da questão social.

Não é estranha a reiteração das problemáticas da vulnerabilidade, do risco e da violência,

como fatores que desencadeiam a ação tanto do Executivo municipal como do federal, a

partir de meados dos anos de 1990. Ou seja, as políticas de juventude no país não nascem a

partir da constituição de um espaço de visibilidade da condição juvenil moderna, incluindo

sua diversidade, e uma concepção ampliada de direitos (...). Por essas razões, a inserção

das ações de forma predominantemente no âmbito dos organismos de assistência traduz

alguma coerência que difi culta, no entanto, a alteração de imagens que

condensam estereótipos negativos em relação aos adolescentes pobres

(SPOSITO, CARVALHO E SILVA, SOUZA, 2006, p. 242). Esse

referencial normativo pode ser localizado na segunda gestão do governo

Fernando Henrique Cardoso, sendo retomadas de modo expressivo após

a eleição de Lula (SPOSITO & CARRANO, 2004). Assim, em 2003,

no âmbito do Poder Legislativo, foi instalada a Comissão Especial de

Políticas Públicas de Juventude, que passa a realizar várias audiências

públicas que culminam com a elaboração de um Plano Nacional de

Juventude. Em 2004, as ações adquirem novo impulso com a criação

do Grupo de Trabalho Interministerial para monitorar as intervenções

governamentais dirigidas à juventude, ao mesmo tempo em que se

instituem a Secretaria Nacional de Juventude, o Conselho Nacional

da Juventude e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens. Uma

investigação ampla sobre as repercussões desse novo marco institucio-

nal foi conduzida por uma equipe de pesquisadores coordenada por

SPOSITO (2007), a qual analisou sua potencialidade na proposição

de novos canais de interação com os segmentos juvenis. A pesquisa

conclui afi rmando que grande parte das ações voltadas aos jovens,

em 74 cidades brasileiras de regiões metropolitanas, desenvolvidas no

período de 2004 a 2007, ainda resulta de uma “lógica eminentemente

calcada na idéia de uma formação complementar, institucionalizada

compulsória” (p. 35), ou seja,

a participação (dos jovens nos programas) não altera, signifi cativamente, as

difi culdades experimentadas no presente e não responde a um conjunto

de demandas represadas, sobretudo quando se trata de jovens pobres,

os mais atingidos pelos efeitos perversos das condições de desigualdade

presente nos modelos econômico-sociais dominantes (p. 36).

As propostas desencadeadas ainda parecem oferecer condições restritas,

sobretudo no que diz respeito à abertura de novos espaços públicos

que promovam a experimentação, a mobilidade e a circulação dos

diferentes segmentos juvenis. Mesmo constatando uma maior abertura

da temática juventude na agenda política dos governos, observa-se uma

baixa participação de atores externos às municipalidades na concepção

das ações (SPOSITO, CARVALHO E SILVA, SOUZA, 2006, p. 248),

confi rmando o paradigma dominante que tem no Estado a instancia

Essa concepção societár ia de 7. democratização afasta-se da visão republicanista clássica que subestima o papel do fenômeno associacionista por seu enrai-zamento na esfera pré-política (CHANIAL, 2001).

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA54 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 55

defi nidora da formulação e implementação destas políticas. Além disso, para RUA (1998),

as políticas públicas de segurança padecem da competição inter-burocrática, fazendo com

que os gestores atuem em resposta a certas ofertas e não a demandas específi cas, o que

revela a não existência de canais de interlocução com os próprios jovens, destinatários das

propostas. Essa situação nos levou a interrogar as políticas públicas de segurança através da

investigação dos espaços de interlocução entre o Estado e a sociedade civil.

Com isso, pretende-se discutir o conteúdo e o próprio conceito de gestão social das políticas

públicas (FREITAS, 2007; RUIZ, 2004; SCHIONET, 1999), exatamente para evitar que

as experiências mais bem sucedidas, nesse âmbito, sejam absorvidas (seqüestradas) por um

modelo de racionalidade governamental que resulta em programas e projetos reativos e não

propositivos. Nesse percurso, recorremos a outros referenciais teórico-metodológicos que

incorporam os usos políticos associados à noção de segurança, sem cair nos reducionismos

próprios das pesquisas nesse âmbito, a qual freqüentemente identifi ca os jovens a partir da

condição de estrita de delinqüentes.

Um dos principais desafi os, nessa direção, reside na superação do imaginário restringido

da política reduzida à gestão do Estado. Diferentemente da visão que forja a operação

de poder no campo político, exclusivamente em termos de interesses individuais que

competem entre si, trata-se de enfatizar as maneiras pelas quais o poder opera para formar

nossa compreensão cotidiana das relações sociais e para orquestrar as maneiras em que

consentimos (e reproduzimos) suas relações tácitas.

Essa visão afi rma a complexidade dos processos de formulação e implementação das agendas

políticas, mediante a construção de novos espaços públicos ancorados no fortalecimento

da sociedade civil em todas suas expressões e formas de organização (NOGUEIRA, 2004;

GRAU, 1998; GOHN, 2005; COSTA, 2002). Ou seja, o Estado não pode ser considerado o

único avalista das solidariedades sociais, desafi ando a sociedade civil a produzir juízos de valor

e formular escolhas que não se limitem ao pré-estabelecido pela ação governamental.

A investigação dessas novas formas de gestão pública demanda novos instrumentos analíticos que

incluam, simultaneamente, a dimensão da identidade e da cultura política (MARTINS, 2004;

DAGNINO, 2004). O paradigma das redes sociais, embora ainda pouco utilizado pelo público

acadêmico brasileiro, constitui-se como uma abordagem que atualiza a discussão sobre exclusão

e novas solidariedades em um contexto de presenças simultâneas de processos de mercantilização

e de democratização da sociedade. O modelo das redes sociais tem a fi nalidade de explicitar

os processos de formulação das políticas públicas, em geral, e das políticas de segurança, em

particular, pois parte do pressuposto de que a dinâmica das relações interpessoais e das tramas

simbólicas participam efetivamente em todas as etapas de formulação das políticas.

BIOPOLÍTICA E RESISTÊNCIA: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE NA CONTEMPORANEIDADE

A perspectiva aberta pela analítica do poder de Michel Foucault vai impor um deslocamento em relação às análises tradicionais sobre o papel do Estado. Para Foucault, o Estado não tem o privilégio que as análises políticas tradicionais lhe têm garantido. Para ele, o que se observa é que a partir da consolidação do Estado Nacional, como forma de organização política, procede-se a uma captura de focos de

poder pelos aparelhos do Estado. Como ele assevera:

“É certo que nas nossas sociedades o Estado não é simplesmente uma

das formas especifi cas de exercício do poder – mesmo se for a mais

importante – mas, de um certo modo, todas as formas de relações de

poder devem a ele se referir. Todavia isto não se dá porque elas se derivam

do Estado; mas porque as relações de poder vem sendo paulatinamente

colocadas sob o controle do Estado” (FOUCAULT, 1982, p. 224).

A analítica do poder de Foucault impõe, portanto, uma ruptura em relação à racionalidade política ao identifi car a existência de uma série de relações de poder que se colocam fora do Estado e que não podem de maneira alguma ser analisadas em termos de soberania, de proibição ou de imposição de uma lei (FOUCAULT, 1980a, p. 187). Mas, vale ressaltar, não se negligencia o papel do Estado, apenas este

papel é deslocado em relação às análises tradicionais.

Eu não quero dizer que o Estado não é importante; o que quero

dizer é que as relações de poder, e, conseqüentemente, sua análise, se

estendem além dos limites do Estado. Em dois sentidos: em primeiro

lugar porque o Estado, com toda a onipotência do seu aparato, está

longe de ser capaz de ocupar todo o campo de reais relações de poder,

e principalmente porque o Estado apenas pode operar com base em

outras relações de poder já existentes. O Estado é a superestrutura

em relação a toda uma série de redes de poder que investem o corpo,

sexualidade, família, parentesco, conhecimento, tecnologia e etc. (grifos

nossos) (FOUCAULT, 1980a, p. 122).

Assim, Foucault procurará retraçar a trajetória das diversas tecnologias de poder que se desenvolveram no Ocidente a partir do fi nal do século

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA54 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 55

defi nidora da formulação e implementação destas políticas. Além disso, para RUA (1998),

as políticas públicas de segurança padecem da competição inter-burocrática, fazendo com

que os gestores atuem em resposta a certas ofertas e não a demandas específi cas, o que

revela a não existência de canais de interlocução com os próprios jovens, destinatários das

propostas. Essa situação nos levou a interrogar as políticas públicas de segurança através da

investigação dos espaços de interlocução entre o Estado e a sociedade civil.

Com isso, pretende-se discutir o conteúdo e o próprio conceito de gestão social das políticas

públicas (FREITAS, 2007; RUIZ, 2004; SCHIONET, 1999), exatamente para evitar que

as experiências mais bem sucedidas, nesse âmbito, sejam absorvidas (seqüestradas) por um

modelo de racionalidade governamental que resulta em programas e projetos reativos e não

propositivos. Nesse percurso, recorremos a outros referenciais teórico-metodológicos que

incorporam os usos políticos associados à noção de segurança, sem cair nos reducionismos

próprios das pesquisas nesse âmbito, a qual freqüentemente identifi ca os jovens a partir da

condição de estrita de delinqüentes.

Um dos principais desafi os, nessa direção, reside na superação do imaginário restringido

da política reduzida à gestão do Estado. Diferentemente da visão que forja a operação

de poder no campo político, exclusivamente em termos de interesses individuais que

competem entre si, trata-se de enfatizar as maneiras pelas quais o poder opera para formar

nossa compreensão cotidiana das relações sociais e para orquestrar as maneiras em que

consentimos (e reproduzimos) suas relações tácitas.

Essa visão afi rma a complexidade dos processos de formulação e implementação das agendas

políticas, mediante a construção de novos espaços públicos ancorados no fortalecimento

da sociedade civil em todas suas expressões e formas de organização (NOGUEIRA, 2004;

GRAU, 1998; GOHN, 2005; COSTA, 2002). Ou seja, o Estado não pode ser considerado o

único avalista das solidariedades sociais, desafi ando a sociedade civil a produzir juízos de valor

e formular escolhas que não se limitem ao pré-estabelecido pela ação governamental.

A investigação dessas novas formas de gestão pública demanda novos instrumentos analíticos que

incluam, simultaneamente, a dimensão da identidade e da cultura política (MARTINS, 2004;

DAGNINO, 2004). O paradigma das redes sociais, embora ainda pouco utilizado pelo público

acadêmico brasileiro, constitui-se como uma abordagem que atualiza a discussão sobre exclusão

e novas solidariedades em um contexto de presenças simultâneas de processos de mercantilização

e de democratização da sociedade. O modelo das redes sociais tem a fi nalidade de explicitar

os processos de formulação das políticas públicas, em geral, e das políticas de segurança, em

particular, pois parte do pressuposto de que a dinâmica das relações interpessoais e das tramas

simbólicas participam efetivamente em todas as etapas de formulação das políticas.

BIOPOLÍTICA E RESISTÊNCIA: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE NA CONTEMPORANEIDADE

A perspectiva aberta pela analítica do poder de Michel Foucault vai impor um deslocamento em relação às análises tradicionais sobre o papel do Estado. Para Foucault, o Estado não tem o privilégio que as análises políticas tradicionais lhe têm garantido. Para ele, o que se observa é que a partir da consolidação do Estado Nacional, como forma de organização política, procede-se a uma captura de focos de

poder pelos aparelhos do Estado. Como ele assevera:

“É certo que nas nossas sociedades o Estado não é simplesmente uma

das formas especifi cas de exercício do poder – mesmo se for a mais

importante – mas, de um certo modo, todas as formas de relações de

poder devem a ele se referir. Todavia isto não se dá porque elas se derivam

do Estado; mas porque as relações de poder vem sendo paulatinamente

colocadas sob o controle do Estado” (FOUCAULT, 1982, p. 224).

A analítica do poder de Foucault impõe, portanto, uma ruptura em relação à racionalidade política ao identifi car a existência de uma série de relações de poder que se colocam fora do Estado e que não podem de maneira alguma ser analisadas em termos de soberania, de proibição ou de imposição de uma lei (FOUCAULT, 1980a, p. 187). Mas, vale ressaltar, não se negligencia o papel do Estado, apenas este

papel é deslocado em relação às análises tradicionais.

Eu não quero dizer que o Estado não é importante; o que quero

dizer é que as relações de poder, e, conseqüentemente, sua análise, se

estendem além dos limites do Estado. Em dois sentidos: em primeiro

lugar porque o Estado, com toda a onipotência do seu aparato, está

longe de ser capaz de ocupar todo o campo de reais relações de poder,

e principalmente porque o Estado apenas pode operar com base em

outras relações de poder já existentes. O Estado é a superestrutura

em relação a toda uma série de redes de poder que investem o corpo,

sexualidade, família, parentesco, conhecimento, tecnologia e etc. (grifos

nossos) (FOUCAULT, 1980a, p. 122).

Assim, Foucault procurará retraçar a trajetória das diversas tecnologias de poder que se desenvolveram no Ocidente a partir do fi nal do século

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA56 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 57

XVI até constituírem a sofi sticada estrutura de poder que envolve o homem contemporâneo,

mapeando processos que acarretaram uma progressiva organização da vida social, através de

meticulosos rituais de poder que tem como objetivo o corpo, e que ele caracterizou como

biopoder. Sob esta denominação, Foucault designará principalmente dois níveis de exercício

do poder: de um lado, as técnicas que têm como objetivo um treinamento “ortopédico” dos

corpos, as disciplinas; de outro lado, o corpo entendido como pertencente a uma espécie

(a população) com suas leis e regularidades.

Quando Foucault fala, portanto, da biopolítica, está se referindo à forma de poder que “se

situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população”

(Foucault, 1979b, p. 129). Cabe precisar, entretanto, o seguinte: Foucault não afi rma que foi

no século XVIII que pela primeira vez, a população surgiu como objeto de atuação do poder.

Já na antiguidade clássica, observou-se a existências de políticas visando à regulamentação

da dinâmica populacional, através de leis estimulando casamento ou isenção de impostos

para famílias numerosas, por exemplo. Porém, é no século das luzes que a população começa

a ser estudada, analisada e esquadrinhada com o suporte das ciências humanas. Trata-se de

uma nova tecnologia de poder que

começa a ser desenhada: estimativas demográfi cas, o cálculo de pirâmides etárias, diferentes

expectativas de vida e níveis de mortalidade, estudos das recíprocas relações entre crescimento da

população e crescimento da riqueza, medidas de incentivo ao casamento e procriação, desenvol-

vimento de formas de educação e treinamento profi ssional (FOUCAULT, 1980b, p. 171).

Dessa ótica, assumimos que a institucionalização das políticas públicas de juventude, no Brasil,

confi gura-se exatamente com uma busca de novos dispositivos de regulamentação biopolítica

das expressões coletivas dos jovens. Assim, não é casual que a associação entre juventude

e violência passe a mobilizar as representações específi cas que passam a desencadear ações

públicas, através da idéia de vulnerabilidade pessoal e social dos jovens. Essa vinculação, de

acordo com SPOSITO (2007), não deixa de ser uma decisão política, produzindo programas

de ação que acentuam “modelos normativos, muitas vezes distantes dos jovens reais e de

seus modos de vida” (p. 10-11).

A gênese desses discursos pode ser localizada no interior de uma nova racionalidade

governamental, através da qual pretende-se dirigir a conduta de determinados segmentos da

população, através da ampliação das estratégias de segregação punitiva por parte do Estado8.

No Brasil, a preocupação com a violência juvenil se tornou um objeto privilegiado na

agenda pública. Estigmatiza-se os adolescentes e os jovens, sobretudo, os pobres, em vez de

se problematizar a violência estrutural (a desigualdade e a exclusão social).

A razão governamental, a fi m de garantir a contenção das desordens geradas

pela retração da proteção social, utiliza-se da estratégia de criminalização

dos grupos considerados potencialmente perigosos (WACQUANT,

2003, p. 30). É nesse contexto que o sub-projeto pretende se faz neces-

sário problematizar o conceito de biopolítica na análise das políticas de

juventude. Essa noção visa investigar a inclusão da “vida dos jovens” nos

mecanismos de gestão do Estado, sistematizando novos marcos analíticos

para a pesquisa sobre jovens e juventude em nosso país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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As medidas que confi guram tal 8. postura são pouco originais e singularmente violentas: condena-ções mais severas, encarceramento massivo, aplicação de legislação cr iminal adulta aos menores de dezesseis anos, políticas de segurança zero, etc. Enfim, são medidas que evidenciam a falência do primado das proteções sociais (GARLAND, 2005).

JUVENTUDE, EXCLUSÃO E PROCESSOS DE MUDANÇA56 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 57

XVI até constituírem a sofi sticada estrutura de poder que envolve o homem contemporâneo,

mapeando processos que acarretaram uma progressiva organização da vida social, através de

meticulosos rituais de poder que tem como objetivo o corpo, e que ele caracterizou como

biopoder. Sob esta denominação, Foucault designará principalmente dois níveis de exercício

do poder: de um lado, as técnicas que têm como objetivo um treinamento “ortopédico” dos

corpos, as disciplinas; de outro lado, o corpo entendido como pertencente a uma espécie

(a população) com suas leis e regularidades.

Quando Foucault fala, portanto, da biopolítica, está se referindo à forma de poder que “se

situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população”

(Foucault, 1979b, p. 129). Cabe precisar, entretanto, o seguinte: Foucault não afi rma que foi

no século XVIII que pela primeira vez, a população surgiu como objeto de atuação do poder.

Já na antiguidade clássica, observou-se a existências de políticas visando à regulamentação

da dinâmica populacional, através de leis estimulando casamento ou isenção de impostos

para famílias numerosas, por exemplo. Porém, é no século das luzes que a população começa

a ser estudada, analisada e esquadrinhada com o suporte das ciências humanas. Trata-se de

uma nova tecnologia de poder que

começa a ser desenhada: estimativas demográfi cas, o cálculo de pirâmides etárias, diferentes

expectativas de vida e níveis de mortalidade, estudos das recíprocas relações entre crescimento da

população e crescimento da riqueza, medidas de incentivo ao casamento e procriação, desenvol-

vimento de formas de educação e treinamento profi ssional (FOUCAULT, 1980b, p. 171).

Dessa ótica, assumimos que a institucionalização das políticas públicas de juventude, no Brasil,

confi gura-se exatamente com uma busca de novos dispositivos de regulamentação biopolítica

das expressões coletivas dos jovens. Assim, não é casual que a associação entre juventude

e violência passe a mobilizar as representações específi cas que passam a desencadear ações

públicas, através da idéia de vulnerabilidade pessoal e social dos jovens. Essa vinculação, de

acordo com SPOSITO (2007), não deixa de ser uma decisão política, produzindo programas

de ação que acentuam “modelos normativos, muitas vezes distantes dos jovens reais e de

seus modos de vida” (p. 10-11).

A gênese desses discursos pode ser localizada no interior de uma nova racionalidade

governamental, através da qual pretende-se dirigir a conduta de determinados segmentos da

população, através da ampliação das estratégias de segregação punitiva por parte do Estado8.

No Brasil, a preocupação com a violência juvenil se tornou um objeto privilegiado na

agenda pública. Estigmatiza-se os adolescentes e os jovens, sobretudo, os pobres, em vez de

se problematizar a violência estrutural (a desigualdade e a exclusão social).

A razão governamental, a fi m de garantir a contenção das desordens geradas

pela retração da proteção social, utiliza-se da estratégia de criminalização

dos grupos considerados potencialmente perigosos (WACQUANT,

2003, p. 30). É nesse contexto que o sub-projeto pretende se faz neces-

sário problematizar o conceito de biopolítica na análise das políticas de

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62 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 63

“Aprender a ser” como um dos caminhos de promoção da resiliência

AURINO LIMA FERREIRA1

A complexidade acerca da temática juventude e violência tem se

intensifi cado ao longo dos últimos anos, e o lugar comum de promover

uma associação direta entre ambas tem recebido severas críticas. Essas

se devem ao fato de que essa associação direta legitima e reifi ca o senso

comum, tornando a discussão esvaziada de sentido político e ético

emancipador, o que impede refl exões que coloquem a juventude para

além dos estereótipos.

Por outro lado, apesar dessas críticas crescentes e da intensa pesquisa que

tem sido realizada sobre a temática da violência, permanecem escassos

os estudos que tratam dos potenciais presentes na juventude, que mesmo

exposta a situações de opressão, resistem, mantendo-se resilientes. Nesse

sentido, os diálogos realizados entre o Núcleo Educacional Irmãos

Menores de Francisco de Assis (NEIMFA), instituição que realiza

trabalhos há 22 anos na comunidade do Coque, Recife, Pernambuco,

na qual atuo como conselheiro e facilitador, e o Observatório das

Favelas propiciaram um excelente material para refl exão, pois ambas

trabalham com o objetivo de potencializar saídas humanas e éticas para

os jovens frente à violência.

Neste texto procurarei destacar que estes potenciais de resiliência fazem

É Psicólogo, mestre em Psicolo-1. gia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Educação pela mesma institui-ção. Atua como psicólogo clínico, além de pesquisador e professor voluntário da UFPE, professor da Universidade Federal de Sergipe e professor do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA64 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 65

parte do processo de humanização do ser e que podem ser aprendidos, já que o humano precisa, no seu processo de desenvolvimento, ampliar suas estratégias de “cuidado de si”

favorecendo o desdobramento de suas múltiplas possibilidades.

RESILIÊNCIA

A palavra resiliência apresenta várias defi nições de acordo com a área em que se emprega o termo. Tem origem no latim resílio, que signifi ca retornar a um estado anterior (MONTEIRO et al., 2001). O conceito de resiliência é oriundo do campo da Física, no qual signifi ca a capacidade dos materiais de resistirem aos choques, designando a propriedade que possuem de voltar ao normal depois de submetidos à máxima tensão.

A Psicologia, por sua vez, ressalta a importância das relações familiares, sobretudo na infância, enquanto vetores fundamentais na formação dos indivíduos, gerando a capacidade deles suportarem crises, bem como superá-las. Nesse contexto, a resiliência representa a capacidade concreta das pessoas não só retornarem ao estado de sanidade, superando situações críticas, mas também de utilizá-las em seus processos de desenvolvimento pessoal, sem se deixarem afetar negativamente, capitalizando as forças confl itivas de forma construtiva.

Para Sampaio (2005), os resilientes buscam no autoconhecimento o equilíbrio necessário para aprender a transformar emoções negativas em positivas. O resiliente não se abate facilmente, não culpa os outros pelos seus fracassos e tem um humor invejável2. Porém, não são todos os seres humanos que conseguem ultrapassar momentos de crise. O próprio sofrimento físico e psicológico pode inibir e, de certa forma, alterar a resposta resiliente do sujeito. O ser resiliente não signifi ca alguém que consegue resistir a todas as pressões do meio, isto é, o indivíduo, por muito resiliente que seja, pode chegar a um ponto em que não tolere mais a pressão externa, o que encontra paralelo com a própria Física, que explica que a propriedade de resistência dos materiais tem limites.

Recentemente, o conceito de resiliência foi assimilado pelo campo da Saúde Pública, ganhando uma conotação voltada para a promoção da saúde, do bem-estar e da qualidade de vida. A noção de resiliência segue, portanto, paralelamente ao movimento contemporâneo pela promoção da saúde da criança e do adolescente. Tal perspectiva modifi ca a forma de olhar a adolescência, jogando para o passado o determinismo das experiências infantis

malsucedidas, iluminando novos caminhos de fl exibilidade. Assim,

a noção de resiliência vem complexifi cando-se, sendo abordada como um processo dinâmico que

envolve a interação entre processos sociais e intrapsíquicos de risco e proteção. O desenvolvimento

do constructo enfatiza a interação entre eventos adversos da vida e fatores

de proteção internos e externos ao indivíduo. (ASSIS, PESCE & AVANCI,

2006: 19)

À medida que se potencializa a resiliência, reduz-se a vulnerabilidade e vice-versa. Alguns fatores agem como facilitadores da vulnerabilidade infanto-juvenil, enquanto outros agem proativamente, funcionando como mecanismos de proteção (ver Quadro 01). As redes sociais, por exemplo, são

fundamentais para a promoção da resiliência. Elas podem ser defi nidas

como a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como

signifi cativas ou defi ne como diferenciadas da massa anônima da

sociedade. Essa rede corresponde ao nicho interpessoal da pessoa e

contribui substancialmente para seu próprio reconhecimento como

indivíduo e para sua auto-imagem. (SLUZKI, 1997, 41-42)

Essa compreensão é importante, haja vista que não se pode ser resiliente sozinho. Um dos fatores mais necessários para o desenvolvimento da resiliência é o apoio e o acolhimento pelos membros de sua rede pessoal e social. Essas pessoas atuam como “tutores de resiliencia” (CYRULNIK, 2004) ou “fi guras de apego” (BOLWBY, 2002). A resiliência sintetiza, na verdade, o resultado de intervenções de apoio, de otimismo, de dedicação e amor que perpassam as relações intra e inter-humanas. Blum (1997, p.17), destaca um conjunto de componentes de risco e

de resiliência que podem ser visto no quadro a seguir.

Vários pesquisadores estão investindo na capacidade de se promover a

resiliência, obtendo resultados satisfatórios (MONTEIRO, et al., 2001),

sugerindo algumas estratégias centradas na pessoa, tais como:

Redirecionamento do impacto de risco;1.

Redirecionamento da reação que se faria por uma trajetória 2.

negativa;

Desenvolvimento da auto-estima e do poder de ações po-3.

sitivas, por meio de relações pessoais, de novas experiências

e de aprendizagem para suplantar desafi os;

Criação de oportunidades que permitam ao indivíduo ter 4.

acesso a recursos.

O trabalho voluntário, por exem-2. plo, constitui um ótimo apren-dizado de resiliência na medida em que se observa pessoas em situações piores que a sua e que mesmo assim ainda são capazes de sorrir.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA64 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 65

parte do processo de humanização do ser e que podem ser aprendidos, já que o humano precisa, no seu processo de desenvolvimento, ampliar suas estratégias de “cuidado de si”

favorecendo o desdobramento de suas múltiplas possibilidades.

RESILIÊNCIA

A palavra resiliência apresenta várias defi nições de acordo com a área em que se emprega o termo. Tem origem no latim resílio, que signifi ca retornar a um estado anterior (MONTEIRO et al., 2001). O conceito de resiliência é oriundo do campo da Física, no qual signifi ca a capacidade dos materiais de resistirem aos choques, designando a propriedade que possuem de voltar ao normal depois de submetidos à máxima tensão.

A Psicologia, por sua vez, ressalta a importância das relações familiares, sobretudo na infância, enquanto vetores fundamentais na formação dos indivíduos, gerando a capacidade deles suportarem crises, bem como superá-las. Nesse contexto, a resiliência representa a capacidade concreta das pessoas não só retornarem ao estado de sanidade, superando situações críticas, mas também de utilizá-las em seus processos de desenvolvimento pessoal, sem se deixarem afetar negativamente, capitalizando as forças confl itivas de forma construtiva.

Para Sampaio (2005), os resilientes buscam no autoconhecimento o equilíbrio necessário para aprender a transformar emoções negativas em positivas. O resiliente não se abate facilmente, não culpa os outros pelos seus fracassos e tem um humor invejável2. Porém, não são todos os seres humanos que conseguem ultrapassar momentos de crise. O próprio sofrimento físico e psicológico pode inibir e, de certa forma, alterar a resposta resiliente do sujeito. O ser resiliente não signifi ca alguém que consegue resistir a todas as pressões do meio, isto é, o indivíduo, por muito resiliente que seja, pode chegar a um ponto em que não tolere mais a pressão externa, o que encontra paralelo com a própria Física, que explica que a propriedade de resistência dos materiais tem limites.

Recentemente, o conceito de resiliência foi assimilado pelo campo da Saúde Pública, ganhando uma conotação voltada para a promoção da saúde, do bem-estar e da qualidade de vida. A noção de resiliência segue, portanto, paralelamente ao movimento contemporâneo pela promoção da saúde da criança e do adolescente. Tal perspectiva modifi ca a forma de olhar a adolescência, jogando para o passado o determinismo das experiências infantis

malsucedidas, iluminando novos caminhos de fl exibilidade. Assim,

a noção de resiliência vem complexifi cando-se, sendo abordada como um processo dinâmico que

envolve a interação entre processos sociais e intrapsíquicos de risco e proteção. O desenvolvimento

do constructo enfatiza a interação entre eventos adversos da vida e fatores

de proteção internos e externos ao indivíduo. (ASSIS, PESCE & AVANCI,

2006: 19)

À medida que se potencializa a resiliência, reduz-se a vulnerabilidade e vice-versa. Alguns fatores agem como facilitadores da vulnerabilidade infanto-juvenil, enquanto outros agem proativamente, funcionando como mecanismos de proteção (ver Quadro 01). As redes sociais, por exemplo, são

fundamentais para a promoção da resiliência. Elas podem ser defi nidas

como a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como

signifi cativas ou defi ne como diferenciadas da massa anônima da

sociedade. Essa rede corresponde ao nicho interpessoal da pessoa e

contribui substancialmente para seu próprio reconhecimento como

indivíduo e para sua auto-imagem. (SLUZKI, 1997, 41-42)

Essa compreensão é importante, haja vista que não se pode ser resiliente sozinho. Um dos fatores mais necessários para o desenvolvimento da resiliência é o apoio e o acolhimento pelos membros de sua rede pessoal e social. Essas pessoas atuam como “tutores de resiliencia” (CYRULNIK, 2004) ou “fi guras de apego” (BOLWBY, 2002). A resiliência sintetiza, na verdade, o resultado de intervenções de apoio, de otimismo, de dedicação e amor que perpassam as relações intra e inter-humanas. Blum (1997, p.17), destaca um conjunto de componentes de risco e

de resiliência que podem ser visto no quadro a seguir.

Vários pesquisadores estão investindo na capacidade de se promover a

resiliência, obtendo resultados satisfatórios (MONTEIRO, et al., 2001),

sugerindo algumas estratégias centradas na pessoa, tais como:

Redirecionamento do impacto de risco;1.

Redirecionamento da reação que se faria por uma trajetória 2.

negativa;

Desenvolvimento da auto-estima e do poder de ações po-3.

sitivas, por meio de relações pessoais, de novas experiências

e de aprendizagem para suplantar desafi os;

Criação de oportunidades que permitam ao indivíduo ter 4.

acesso a recursos.

O trabalho voluntário, por exem-2. plo, constitui um ótimo apren-dizado de resiliência na medida em que se observa pessoas em situações piores que a sua e que mesmo assim ainda são capazes de sorrir.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA66 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 67

COMPONENTES DE RISCO E RESILIÊNCIA

FATORES RISCO RESILIÊNCIA

Predisponentes Estresse pré e perinatal•

Expressão verbal pobre•

Defeito ou defi ciência física•

Temperamento agressivo •

Necessidade de controle externo •

Baixo nível de inteligência

Difi culdade de aprendizagem•

Mudanças puberais•

Acreditar em algo maior do que •

em si mesmo

Bom traquejo social dirigido a •

outra pessoa

Autocontrole•

Alto nível de inteligência•

Autoconceito positivo •

Alto nível de auto-estima•

Familiares Baixo nível de educação materna•

Desarmonia familiar•

Alto nível de estresse materno•

Pobreza•

Doença mental na família;•

Superpressão;•

Ausência de relação mãe-fi lho •

positiva;

Ambiente familiar caótico;•

Família numerosa•

“Conexão” com pelo menos um •

dos pais

Coesão familiar•

Família estruturada (entendida •

como aquela que apresenta um

adulto signifi cativo capaz de

oferecer cuidados)

União entre os irmãos•

Externos Pequeno ou nenhum apoio •

externo

Mais do que quatro eventos •

estressantes na vida.

Cuidado por adulto além dos pais•

Envolvimento com a escola e/ou •

comunidade

Trabalho em grupo de amigos •

Poucos eventos negativos na vida

Acreditar em algo fora de si •

mesmo

A resiliência, portanto, é um fenômeno que pode ser promovido/aprendido. Costa (1995,

p.12) enfatiza que a resiliência não é privilégio de alguns.

O estudo sistemático da resiliência nas pessoas e nas organizações revelou que ela não é uma

qualidade única e extraordinária, característica intransferível de um grupo especial de pessoas.

Não. A resiliência é antes de tudo a resultante de qualidades comuns que a maioria das pessoas

já possui, mas que precisam estar corretamente articuladas e sufi cientemente desenvolvidas.

Vicente (1996) aponta a existência de três fatores que promovem a resiliência: o modelo do

desafi o, os vínculos afetivos e o sentido de propósito no futuro. Para esse autor, as características

centrais encontradas nas pessoas resilientes são: o reconhecimento da

verdadeira dimensão do problema; o reconhecimento das possibilidades

de enfrentamento, e o estabelecimento de metas para sua resolução.

Sobre os vínculos afetivos, ele afi rma que: “A aceitação incondicional

do indivíduo enquanto pessoa, principalmente pela família, assim como a presença de redes sociais de apoio, permitem o desenvolvimento de condutas resilientes” (idem, p. 9). Em relação ao sentimento de propósito no futuro, Vicente identifi cou que além do sentimento de autonomia e confi ança, encontram-se características como: expectativas saudáveis, direcionamento de objetivos, construção de metas para alcançar tais objetivos, motivação para os sucessos e fé em um futuro melhor.

Nessa ótica, ajudar alguém a desenvolver a resiliência consiste em conhecer a história do indivíduo, procurar analisá-lo em seu contexto, para então intervir de maneira apropriada, buscando as razões capazes de motivá-lo e fortifi cá-lo. O aprendizado da resiliência, mais que pelo discurso das palavras, ocorre pelas práticas e vivências. É pelo curso dos acontecimentos que as pessoas incorporam a capacidade de resistir à adversidade e utilizá-la para o seu crescimento pessoal, social e profi ssional.

Para Azevedo (2000), a resiliência funda-se numa interação entre a pessoa, enquanto ser humano, e o seu eu, enquanto produto de desenvolvimento, situado num contexto ambiental que o infl uencia e que por ele é também infl uenciado. Assim, se entendermos a resiliência como uma capacidade universal, para que esta se desenvolva, é necessário utilizar os próprios recursos e trabalhá-los em estreita ligação com o

seu meio social e cultural.

HISTÓRIAS RESILIENTES

Antes de tratarmos do aprender a ser como uma possibilidade de pro-

moção da resiliência, apresentaremos três histórias: uma história narrada

por Rubem Alves3 com base em suas lembranças da leitura de Gabriel

Garcia Márquez; uma segunda, apresentada por Augusto Boal; e, por

fi m, uma narrada no diário do jovem Pedro, 15 anos, residente em

uma comunidade pobre do Recife chamada Coque, e que participou

da minha pesquisa de doutoramento. As três histórias foram adaptadas

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA66 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 67

COMPONENTES DE RISCO E RESILIÊNCIA

FATORES RISCO RESILIÊNCIA

Predisponentes Estresse pré e perinatal•

Expressão verbal pobre•

Defeito ou defi ciência física•

Temperamento agressivo •

Necessidade de controle externo •

Baixo nível de inteligência

Difi culdade de aprendizagem•

Mudanças puberais•

Acreditar em algo maior do que •

em si mesmo

Bom traquejo social dirigido a •

outra pessoa

Autocontrole•

Alto nível de inteligência•

Autoconceito positivo •

Alto nível de auto-estima•

Familiares Baixo nível de educação materna•

Desarmonia familiar•

Alto nível de estresse materno•

Pobreza•

Doença mental na família;•

Superpressão;•

Ausência de relação mãe-fi lho •

positiva;

Ambiente familiar caótico;•

Família numerosa•

“Conexão” com pelo menos um •

dos pais

Coesão familiar•

Família estruturada (entendida •

como aquela que apresenta um

adulto signifi cativo capaz de

oferecer cuidados)

União entre os irmãos•

Externos Pequeno ou nenhum apoio •

externo

Mais do que quatro eventos •

estressantes na vida.

Cuidado por adulto além dos pais•

Envolvimento com a escola e/ou •

comunidade

Trabalho em grupo de amigos •

Poucos eventos negativos na vida

Acreditar em algo fora de si •

mesmo

A resiliência, portanto, é um fenômeno que pode ser promovido/aprendido. Costa (1995,

p.12) enfatiza que a resiliência não é privilégio de alguns.

O estudo sistemático da resiliência nas pessoas e nas organizações revelou que ela não é uma

qualidade única e extraordinária, característica intransferível de um grupo especial de pessoas.

Não. A resiliência é antes de tudo a resultante de qualidades comuns que a maioria das pessoas

já possui, mas que precisam estar corretamente articuladas e sufi cientemente desenvolvidas.

Vicente (1996) aponta a existência de três fatores que promovem a resiliência: o modelo do

desafi o, os vínculos afetivos e o sentido de propósito no futuro. Para esse autor, as características

centrais encontradas nas pessoas resilientes são: o reconhecimento da

verdadeira dimensão do problema; o reconhecimento das possibilidades

de enfrentamento, e o estabelecimento de metas para sua resolução.

Sobre os vínculos afetivos, ele afi rma que: “A aceitação incondicional

do indivíduo enquanto pessoa, principalmente pela família, assim como a presença de redes sociais de apoio, permitem o desenvolvimento de condutas resilientes” (idem, p. 9). Em relação ao sentimento de propósito no futuro, Vicente identifi cou que além do sentimento de autonomia e confi ança, encontram-se características como: expectativas saudáveis, direcionamento de objetivos, construção de metas para alcançar tais objetivos, motivação para os sucessos e fé em um futuro melhor.

Nessa ótica, ajudar alguém a desenvolver a resiliência consiste em conhecer a história do indivíduo, procurar analisá-lo em seu contexto, para então intervir de maneira apropriada, buscando as razões capazes de motivá-lo e fortifi cá-lo. O aprendizado da resiliência, mais que pelo discurso das palavras, ocorre pelas práticas e vivências. É pelo curso dos acontecimentos que as pessoas incorporam a capacidade de resistir à adversidade e utilizá-la para o seu crescimento pessoal, social e profi ssional.

Para Azevedo (2000), a resiliência funda-se numa interação entre a pessoa, enquanto ser humano, e o seu eu, enquanto produto de desenvolvimento, situado num contexto ambiental que o infl uencia e que por ele é também infl uenciado. Assim, se entendermos a resiliência como uma capacidade universal, para que esta se desenvolva, é necessário utilizar os próprios recursos e trabalhá-los em estreita ligação com o

seu meio social e cultural.

HISTÓRIAS RESILIENTES

Antes de tratarmos do aprender a ser como uma possibilidade de pro-

moção da resiliência, apresentaremos três histórias: uma história narrada

por Rubem Alves3 com base em suas lembranças da leitura de Gabriel

Garcia Márquez; uma segunda, apresentada por Augusto Boal; e, por

fi m, uma narrada no diário do jovem Pedro, 15 anos, residente em

uma comunidade pobre do Recife chamada Coque, e que participou

da minha pesquisa de doutoramento. As três histórias foram adaptadas

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA68 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 69

para ilustrar os argumentos defendidos ao longo desta refl exão e favorecer a apresentação

da relação entre resiliência e juventude.

A primeira história, de Rubem Alves3, descreve uma vila de pescadores perdida. Uma vila

onde já havia se instaurado uma rotina monótona, assim, “cada novo dia já nascendo velho,

igual a todos os outros, as mesmas palavras vazias, os mesmos gestos vazios, as mesmas faces

vazias, os mesmos corpos vazios, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais

se lembrava” (ALVES, 2001, p. 42). Certo dia, enquanto todos realizavam suas atividades

costumeiras, um menino viu uma coisa estranha fl utuando no mar e gritou avisando a todos.

Instalou-se uma correria. Um burburinho intenso tomou conta da vila.

Dizia-se que num lugar como aquele até mesmo as coisas estranhas vindas do fundo do mar “eram motivos para festa”. Todos fi caram ansiosamente aguardando até que a “coisa estranha” chegasse à praia. Um dia, dois, três... Até que fi nalmente chegou. Era um cadáver. Após muita confusão, decidiram enterrar o cadáver. Todos se prepararam e estavam velando aquele corpo desconhecido, em total silêncio, quando, repentinamente, alguém quebrou o silêncio. “Se ele tivesse vivido entre nós, teria de ter curvado sempre a cabeça ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto[...]”. De novo o silêncio, até que outra voz se fez ouvir: “Fico pensando em como teria sido sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas?[..]”. E outra voz foi ouvida: “Estas mãos... Que será que fi zeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? [..]”4. Depois disso, apenas o silêncio. Finalmente, o cadáver foi enterrado. Mas aquela vila de pescadores nunca mais foi a mesma, pois a presença de um outro, mesmo na forma de um cadáver, levou os

seus moradores a repensar o sentido de suas próprias existências.

A segunda história5 vem de Boal (1996), relatando o surgimento do Teatro do Oprimido, que

no início dos anos sessenta viajava pelo interior do Brasil levando seu “Teatro de Arena” como

uma forma de resistência à opressão.

No teatro os atores interpretavam; ora se revoltavam, ora se indignavam e sofriam. “Éramos heróicos ao escrevê-las e sublimes ao representá-las: peças que terminavam quase sempre com os atores cantando em coro canções exortativas, canções que terminavam sempre com frases do tipo ‘Derramemos nosso sangue pela liberdade! Derramemos nosso sangue pela nossa terra! Derramemos nosso sangue, derramemos!”6. Eles estimulavam, por meio do teatro, os “oprimidos” a lutar e a encontrar novas formas de resistir a seus “opressores”. Até que, em uma apresentação para uma liga de camponeses de um vilarejo do Nordeste, se depararam com um camponês que, emocionado, quase chorando, lhes disse: “É uma beleza

ver vocês, gente da cidade, que pensa igualzinho que nem a gente. A gente também acha

isso, que tem que dar o sangue pela terra.”7

Boal destaca a satisfação que sentiram por terem conseguido passar

a “mensagem”, contudo o camponês Virgílio – era assim que ele se

chamava –, continuou: “E já que vocês pensam igualzinho que nem

a gente, vamos fazer assim: primeiro a gente almoça (era meio-dia),

depois vamos todos juntos, vocês com esses fuzis de vocês e nós com

os nossos, vamos desalojar os jagunços do coronel que invadiram a roça

de um companheiro nosso, puseram fogo na casa e ameaçaram matar

a família inteira! Mas primeiro vamos comer.”8

Nesse ponto, surgiu uma enorme tensão entre o camponês e os atores,

que tentaram explicar que os fuzis eram objetos do teatro, e não armas

de verdade. “‘Fuzil que não dá tiro???’ – perguntou espantadíssimo. ‘então

pra que é que serve?’ – ‘Pra fazer teatro. São fuzis que não disparam.

Nós somos artistas sérios que dizemos o que pensamos, somos gente

verdadeira, mas os fuzis são falsos’”9. No meio da pressão, surgiram

respostas que foram seguidas por novos questionamentos: “Se os fuzis

são de mentira, pode jogar fora, mas vocês são gente de verdade, eu vi

vocês cantando pra derramar o sangue, sou testemunha. Vocês são de

verdade, então venham com a gente assim mesmo, porque nós temos

fuzis pra todo mundo.”10

A tensão ganhou, assim, dimensões gigantescas, pois era difícil para

os atores explicar como estavam sendo sinceros e verdadeiros, mesmo

empunhando fuzis que não disparavam. Eles eram artistas, não sabiam

atirar, seria um problema incluí-los na luta - buscaram argumentar.

Por fi m, o camponês Virgílio, compreendendo tudo, concluiu: “Então

aquele sangue que vocês acham que a gente deve derramar é o nosso,

não é o de vocês...?”11 Ao que Boal respondeu, tentando ainda explicar:

“Porque nós somos verdadeiros sim, mas somos verdadeiros artistas,

e não verdadeiros camponeses... Virgílio, volta aqui, vamos continuar

conversando... volta. ... Nunca mais encontrei Virgílio”12.

Essa história contada aqui é uma tentativa de expressar a necessidade

do engajamento/incorporação dos pensamentos, tornando-os coerentes

com as ações. Não pretendemos aqui indicar uma aliança com caminhos

de resistência por meio da violência.

A experiência com Virgílio marcou Boal, ajudando-o a compreender

que o seu gênero teatral era válido como um instrumento efi caz na luta

Agradeço ao meu fi lho Cleiton 3. por ter me apresentado esta história.

ALVES, 4. Lições de feitiçaria. 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 42.

Agradeço ao grupo da Casa da 5. Criatividade do Coque por me apresentar esta história.

BOAL, 6. O arco íris do desejo: o método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p.17.

Ibid., p. 18.7.

Loc. cit.8.

Loc. cit.9.

Ibid., p. 18.10.

Ibid., p. 19.11.

BOAL, Ibid., p. 19.12.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA68 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 69

para ilustrar os argumentos defendidos ao longo desta refl exão e favorecer a apresentação

da relação entre resiliência e juventude.

A primeira história, de Rubem Alves3, descreve uma vila de pescadores perdida. Uma vila

onde já havia se instaurado uma rotina monótona, assim, “cada novo dia já nascendo velho,

igual a todos os outros, as mesmas palavras vazias, os mesmos gestos vazios, as mesmas faces

vazias, os mesmos corpos vazios, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais

se lembrava” (ALVES, 2001, p. 42). Certo dia, enquanto todos realizavam suas atividades

costumeiras, um menino viu uma coisa estranha fl utuando no mar e gritou avisando a todos.

Instalou-se uma correria. Um burburinho intenso tomou conta da vila.

Dizia-se que num lugar como aquele até mesmo as coisas estranhas vindas do fundo do mar “eram motivos para festa”. Todos fi caram ansiosamente aguardando até que a “coisa estranha” chegasse à praia. Um dia, dois, três... Até que fi nalmente chegou. Era um cadáver. Após muita confusão, decidiram enterrar o cadáver. Todos se prepararam e estavam velando aquele corpo desconhecido, em total silêncio, quando, repentinamente, alguém quebrou o silêncio. “Se ele tivesse vivido entre nós, teria de ter curvado sempre a cabeça ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto[...]”. De novo o silêncio, até que outra voz se fez ouvir: “Fico pensando em como teria sido sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas?[..]”. E outra voz foi ouvida: “Estas mãos... Que será que fi zeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? [..]”4. Depois disso, apenas o silêncio. Finalmente, o cadáver foi enterrado. Mas aquela vila de pescadores nunca mais foi a mesma, pois a presença de um outro, mesmo na forma de um cadáver, levou os

seus moradores a repensar o sentido de suas próprias existências.

A segunda história5 vem de Boal (1996), relatando o surgimento do Teatro do Oprimido, que

no início dos anos sessenta viajava pelo interior do Brasil levando seu “Teatro de Arena” como

uma forma de resistência à opressão.

No teatro os atores interpretavam; ora se revoltavam, ora se indignavam e sofriam. “Éramos heróicos ao escrevê-las e sublimes ao representá-las: peças que terminavam quase sempre com os atores cantando em coro canções exortativas, canções que terminavam sempre com frases do tipo ‘Derramemos nosso sangue pela liberdade! Derramemos nosso sangue pela nossa terra! Derramemos nosso sangue, derramemos!”6. Eles estimulavam, por meio do teatro, os “oprimidos” a lutar e a encontrar novas formas de resistir a seus “opressores”. Até que, em uma apresentação para uma liga de camponeses de um vilarejo do Nordeste, se depararam com um camponês que, emocionado, quase chorando, lhes disse: “É uma beleza

ver vocês, gente da cidade, que pensa igualzinho que nem a gente. A gente também acha

isso, que tem que dar o sangue pela terra.”7

Boal destaca a satisfação que sentiram por terem conseguido passar

a “mensagem”, contudo o camponês Virgílio – era assim que ele se

chamava –, continuou: “E já que vocês pensam igualzinho que nem

a gente, vamos fazer assim: primeiro a gente almoça (era meio-dia),

depois vamos todos juntos, vocês com esses fuzis de vocês e nós com

os nossos, vamos desalojar os jagunços do coronel que invadiram a roça

de um companheiro nosso, puseram fogo na casa e ameaçaram matar

a família inteira! Mas primeiro vamos comer.”8

Nesse ponto, surgiu uma enorme tensão entre o camponês e os atores,

que tentaram explicar que os fuzis eram objetos do teatro, e não armas

de verdade. “‘Fuzil que não dá tiro???’ – perguntou espantadíssimo. ‘então

pra que é que serve?’ – ‘Pra fazer teatro. São fuzis que não disparam.

Nós somos artistas sérios que dizemos o que pensamos, somos gente

verdadeira, mas os fuzis são falsos’”9. No meio da pressão, surgiram

respostas que foram seguidas por novos questionamentos: “Se os fuzis

são de mentira, pode jogar fora, mas vocês são gente de verdade, eu vi

vocês cantando pra derramar o sangue, sou testemunha. Vocês são de

verdade, então venham com a gente assim mesmo, porque nós temos

fuzis pra todo mundo.”10

A tensão ganhou, assim, dimensões gigantescas, pois era difícil para

os atores explicar como estavam sendo sinceros e verdadeiros, mesmo

empunhando fuzis que não disparavam. Eles eram artistas, não sabiam

atirar, seria um problema incluí-los na luta - buscaram argumentar.

Por fi m, o camponês Virgílio, compreendendo tudo, concluiu: “Então

aquele sangue que vocês acham que a gente deve derramar é o nosso,

não é o de vocês...?”11 Ao que Boal respondeu, tentando ainda explicar:

“Porque nós somos verdadeiros sim, mas somos verdadeiros artistas,

e não verdadeiros camponeses... Virgílio, volta aqui, vamos continuar

conversando... volta. ... Nunca mais encontrei Virgílio”12.

Essa história contada aqui é uma tentativa de expressar a necessidade

do engajamento/incorporação dos pensamentos, tornando-os coerentes

com as ações. Não pretendemos aqui indicar uma aliança com caminhos

de resistência por meio da violência.

A experiência com Virgílio marcou Boal, ajudando-o a compreender

que o seu gênero teatral era válido como um instrumento efi caz na luta

Agradeço ao meu fi lho Cleiton 3. por ter me apresentado esta história.

ALVES, 4. Lições de feitiçaria. 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 42.

Agradeço ao grupo da Casa da 5. Criatividade do Coque por me apresentar esta história.

BOAL, 6. O arco íris do desejo: o método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p.17.

Ibid., p. 18.7.

Loc. cit.8.

Loc. cit.9.

Ibid., p. 18.10.

Ibid., p. 19.11.

BOAL, Ibid., p. 19.12.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA70 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 71

política, contudo o que estava errado era sua utilização, pois “não éramos capazes de seguir

o nosso próprio conselho”13, ou seja, havia uma desincorporação, em que o pensado não se

aproximava do vivido e fugia de se tornar carne quando confrontado com a morte.

A história do jovem Pedro, por sua vez, começa com uma tentativa de fazer emergir um Ser

segundo o reconhecimento daquilo que não se quer para si, a saber: a tentativa de torná-lo

Não-Ser ou uma “coisa objetifi cada”. Nesse sentido, o jovem nos diz: “As pessoas passam

pelo viaduto, olham para o Coque e pensam: ali moram marginais, prostitutas e ladrões. As

crianças criadas na carência, na falta de tudo, não têm futuro. Nosso destino está preso neste

olhar”. Indicando como o olhar de exclusão chega à escola pelos extremos da vitimização

(“pobrezinhos, vítimas”) ou do posicionamento de algoz (“marginais”), o jovem continua:

“Os professores da escola chegam com este olhar, ora querem salvar, somos os pobrezinhos,

as vítimas, ora nos enxergam como marginais. Não importa como trate, falta o olhar de

interesse, falta ver que somos humanos”14.

O “somos humanos” indica a busca por um reconhecimento, por uma formação inclusiva,

ao mesmo tempo que denuncia a presença de ações não humanizantes nos caminhos da

sua formação. A necessidade de pertencimento a uma dimensão humana mais ampla e

de resgate das experiências que o constituíram como “gente”, leva-o a desabafar: “Somos

gente, sabia! Minha mãe morreu, ela lavava roupa, às vezes cinco lavagens por dia para nos

sustentar. Dizer que ela não se interessa pelo meu estudo e que era prostituta é cruel”15.

Em seguida pontua os olhares que aprisionam e desumanizam: “Meu pai puxa carroça, não

estudou, ele tem o olhar de muitos professores, ele não vê futuro em estudar, fi cou preso

no olhar[...]”16. E por fi m, insurgindo-se no meio do turbilhão da experiência da morte,

os sonhos insistem em aparecer, sonhos que precisam de luta para acontecerem. Contudo,

mesmo antevendo as difi culdades, o sonho humano e humanizante de “ser feliz” insiste,

apontando os potencias de resiliência17 do ser: “Agora que ela morreu tenho que lutar... É,

eu estudo, tenho sonhos, sabia! Ela morreu e os sonhos fi caram mais difíceis. Sonho simples,

apenas ser feliz”18.

Essas três histórias nos dão uma defi nição clara sobre os sentidos que se acumulam sobre

a experiência formativa do aprender a ser humano nas suas relações com o mundo. Uma

experiência marcada pelo contato com a morte e com a solidariedade. Em primeiro lugar,

a morte como a experiência das mudanças que ocorrem, constantemente, no próprio

processo de viver nossas vidas, desvelando-nos ao nos pôr em contato com o diferente, com

o estrangeiro, com essas “coisas estranhas” trazidas pelas correntezas da vida. Por outro lado,

a morte como tentativa frustrada e frustrante de eliminação da alteridade, de eliminação

do que chega à visão “de cima do viaduto”, desvelando a fragilidade de nossas máscaras

sociais. Em segundo lugar, surge a solidariedade como tentativa de ir

junto, “correndo o mesmo risco” (BOAL, 1996, p.19) e abrindo espaço

para novas expressões do ser, pois quem forma também está aprendendo

sobre sua própria humanidade.

Diante dessa experiência de contato com a morte e com a solidarie-

dade, na contemporaneidade, surgem duas opções: questionarmo-nos e

refl etirmos sobre o acontecimento, a fi m de obtermos formas de tratar a

“des-coberta” de nós mesmos; ou, simplesmente, “enterrarmos o morto”,

não encontrar nunca mais o “Virgílio” ou não mudarmos o destino do

“olhar” e continuarmos com a rotina rotineira de nossa cotidianidade,

anestesiada pelas crenças ingênuas e alimentadas pela fé perceptiva em um

mundo estático e fragmentado de nossa própria experiência subjetiva.

No entanto, acreditamos que, na formação enquanto aprender a ser, não

podemos simplesmente “enterrar o morto”, “esquecer Virgílio” ou

atravessarmos os “viadutos” antes de termos retirado dessas vivências

tudo aquilo que nos revele de nossa própria natureza, pois o trágico

da experiência vivida é o que permite a cada ser humano singular

dobrar-se sobre si mesmo, desvelando as máscaras ilusórias do medo e

da esperança no contato com o mundo, como nos propõe a tradição

da atenção/consciência do budismo (TRUNGPA, 1993). A tragicidade

do existir humano, encarado como experiência formativa, é o que nos

permite assumir a própria vida como um processo de crescimento,

mediante o abandono de nossos padrões repetitivos, abrindo-nos para

o vir-a-ser originário da condição humana.

Apesar de a educação moderna ter instaurado um abismo entre o

desenvolvimento, o conhecimento e a ação concreta, a lógica formativa

que toma o homem em sua multidimensionalidade une o saber à

experiência e faz dessa relação um caminho para o crescimento. É,

portanto, nesse contato com a experiência que se caracteriza todo o

processo formativo, que se manifesta a consciência incorporada como

educação holística ou integral, tecendo os saberes que foram separados

daquilo que nós somos. É aqui que a educação, compreendida como

conhecimento incorporado, manifesta uma ponte para a liberdade, des-

velando sentidos outros para o existir humano no mundo, despertando

o humano para o signifi cado mais profundo da realidade.

Loc. cit.13.

Diário de Pedro, 15 anos.14.

Ibidem.15.

Ibidem.16.

O termo resiliência é aqui utili-17. zado para indicar a presença de atributos que auxiliam o enfren-tamento de problemas, como a competência nas relações sociais, a capacidade de resolução de pro-blemas, a conquista de autonomia e o sentido ou propósito para a vida e o futuro (MUNIST et al., 1998; ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006; TISSERON, 2007).

Diário de Pedro, 15 anos.18.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA70 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 71

política, contudo o que estava errado era sua utilização, pois “não éramos capazes de seguir

o nosso próprio conselho”13, ou seja, havia uma desincorporação, em que o pensado não se

aproximava do vivido e fugia de se tornar carne quando confrontado com a morte.

A história do jovem Pedro, por sua vez, começa com uma tentativa de fazer emergir um Ser

segundo o reconhecimento daquilo que não se quer para si, a saber: a tentativa de torná-lo

Não-Ser ou uma “coisa objetifi cada”. Nesse sentido, o jovem nos diz: “As pessoas passam

pelo viaduto, olham para o Coque e pensam: ali moram marginais, prostitutas e ladrões. As

crianças criadas na carência, na falta de tudo, não têm futuro. Nosso destino está preso neste

olhar”. Indicando como o olhar de exclusão chega à escola pelos extremos da vitimização

(“pobrezinhos, vítimas”) ou do posicionamento de algoz (“marginais”), o jovem continua:

“Os professores da escola chegam com este olhar, ora querem salvar, somos os pobrezinhos,

as vítimas, ora nos enxergam como marginais. Não importa como trate, falta o olhar de

interesse, falta ver que somos humanos”14.

O “somos humanos” indica a busca por um reconhecimento, por uma formação inclusiva,

ao mesmo tempo que denuncia a presença de ações não humanizantes nos caminhos da

sua formação. A necessidade de pertencimento a uma dimensão humana mais ampla e

de resgate das experiências que o constituíram como “gente”, leva-o a desabafar: “Somos

gente, sabia! Minha mãe morreu, ela lavava roupa, às vezes cinco lavagens por dia para nos

sustentar. Dizer que ela não se interessa pelo meu estudo e que era prostituta é cruel”15.

Em seguida pontua os olhares que aprisionam e desumanizam: “Meu pai puxa carroça, não

estudou, ele tem o olhar de muitos professores, ele não vê futuro em estudar, fi cou preso

no olhar[...]”16. E por fi m, insurgindo-se no meio do turbilhão da experiência da morte,

os sonhos insistem em aparecer, sonhos que precisam de luta para acontecerem. Contudo,

mesmo antevendo as difi culdades, o sonho humano e humanizante de “ser feliz” insiste,

apontando os potencias de resiliência17 do ser: “Agora que ela morreu tenho que lutar... É,

eu estudo, tenho sonhos, sabia! Ela morreu e os sonhos fi caram mais difíceis. Sonho simples,

apenas ser feliz”18.

Essas três histórias nos dão uma defi nição clara sobre os sentidos que se acumulam sobre

a experiência formativa do aprender a ser humano nas suas relações com o mundo. Uma

experiência marcada pelo contato com a morte e com a solidariedade. Em primeiro lugar,

a morte como a experiência das mudanças que ocorrem, constantemente, no próprio

processo de viver nossas vidas, desvelando-nos ao nos pôr em contato com o diferente, com

o estrangeiro, com essas “coisas estranhas” trazidas pelas correntezas da vida. Por outro lado,

a morte como tentativa frustrada e frustrante de eliminação da alteridade, de eliminação

do que chega à visão “de cima do viaduto”, desvelando a fragilidade de nossas máscaras

sociais. Em segundo lugar, surge a solidariedade como tentativa de ir

junto, “correndo o mesmo risco” (BOAL, 1996, p.19) e abrindo espaço

para novas expressões do ser, pois quem forma também está aprendendo

sobre sua própria humanidade.

Diante dessa experiência de contato com a morte e com a solidarie-

dade, na contemporaneidade, surgem duas opções: questionarmo-nos e

refl etirmos sobre o acontecimento, a fi m de obtermos formas de tratar a

“des-coberta” de nós mesmos; ou, simplesmente, “enterrarmos o morto”,

não encontrar nunca mais o “Virgílio” ou não mudarmos o destino do

“olhar” e continuarmos com a rotina rotineira de nossa cotidianidade,

anestesiada pelas crenças ingênuas e alimentadas pela fé perceptiva em um

mundo estático e fragmentado de nossa própria experiência subjetiva.

No entanto, acreditamos que, na formação enquanto aprender a ser, não

podemos simplesmente “enterrar o morto”, “esquecer Virgílio” ou

atravessarmos os “viadutos” antes de termos retirado dessas vivências

tudo aquilo que nos revele de nossa própria natureza, pois o trágico

da experiência vivida é o que permite a cada ser humano singular

dobrar-se sobre si mesmo, desvelando as máscaras ilusórias do medo e

da esperança no contato com o mundo, como nos propõe a tradição

da atenção/consciência do budismo (TRUNGPA, 1993). A tragicidade

do existir humano, encarado como experiência formativa, é o que nos

permite assumir a própria vida como um processo de crescimento,

mediante o abandono de nossos padrões repetitivos, abrindo-nos para

o vir-a-ser originário da condição humana.

Apesar de a educação moderna ter instaurado um abismo entre o

desenvolvimento, o conhecimento e a ação concreta, a lógica formativa

que toma o homem em sua multidimensionalidade une o saber à

experiência e faz dessa relação um caminho para o crescimento. É,

portanto, nesse contato com a experiência que se caracteriza todo o

processo formativo, que se manifesta a consciência incorporada como

educação holística ou integral, tecendo os saberes que foram separados

daquilo que nós somos. É aqui que a educação, compreendida como

conhecimento incorporado, manifesta uma ponte para a liberdade, des-

velando sentidos outros para o existir humano no mundo, despertando

o humano para o signifi cado mais profundo da realidade.

Loc. cit.13.

Diário de Pedro, 15 anos.14.

Ibidem.15.

Ibidem.16.

O termo resiliência é aqui utili-17. zado para indicar a presença de atributos que auxiliam o enfren-tamento de problemas, como a competência nas relações sociais, a capacidade de resolução de pro-blemas, a conquista de autonomia e o sentido ou propósito para a vida e o futuro (MUNIST et al., 1998; ASSIS; PESCE; AVANCI, 2006; TISSERON, 2007).

Diário de Pedro, 15 anos.18.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA72 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 73

Após mais de 20 anos acompanhando os movimentos sociais em várias comunidades da

periferia do Recife19, continuo a me deparar com a busca de um signifi cado mais profundo

para a formação humana, a do outro e a nossa. Uma vez tendo sido afetado pelos múltiplos

contatos, não me canso de me espantar com um corpo “estranho” cravado de balas de um

adolescente, apesar do apelo anestesiante e alienante da mídia para naturalizar a violência

por intermédio da banalização e da exposição perversa. A minha experiência pessoal não

me permite apenas “enterrar o morto” e continuar meu trabalho de formação sem me

perceber como implicado. Os encontros com os “Virgílios” presentes nessas comunidades

sempre me inquietaram, pois me solicitavam “correr um risco”, romper com uma postura

de intelectual distanciado e me pôr de forma incorporada na experiência. E é “correndo

risco” que embarquei em uma viagem do aprender a ser.

APRENDER A SER COMO FATOR DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA

No “Relatório para a Unesco da Comissão Internacional Sobre Educação para o Século

XXI”, contidas no livro “Educação: um tesouro a descobrir”, Jacques Delors (2003),

aponta-se como principal conseqüência da sociedade do conhecimento a necessidade de

uma aprendizagem ao longo de toda a vida fundada em quatro pilares que são ao mesmo

tempo pilares do conhecimento e da formação humana. São eles: aprender a ser, aprender

a viver juntos, aprender a fazer, aprender a conhecer.

Neste texto exploraremos o aprender a ser como caminho de promoção da resiliência e de estratégias

de resistência frente à violência letal que se manifesta de forma epidêmica entre a juventude.

Na linguagem de Delors, uma educação do aprender a ser objetiva desenvolver a personalidade,

expandindo os seus potenciais de forma a poder cada vez mais usar a sua capacidade de

autonomia, de discernimento e de responsabilidade consigo e com o outro. Na linguagem

dos jovens cujas falas foram registradas em minha pesquisa de doutorado, esta educação

visa a “formação do ser humano”, “teria o papel de formar as pessoas”, pois seria “um jeito

de fazê-lo ser humano de verdade”, pois “vai mudar o ser humano”, tornado-o “alguém”,

pois “é o que nos forma, que vai ver como nós seremos, o que nós vamos vir a ser”. Enfi m,

é “um processo de desenvolvimento, em que a pessoa vai passando por várias etapas e a

cada tempo que vai passando por cada etapa da sua vida e da educação, ela vai adquirindo

conhecimentos e vai crescendo com esses conhecimentos”.

A idéia da educação como “ver como nós seremos, o que nós vamos vir a ser”, apresentada

por um dos jovens, aproxima-se da idéia de Faure (1974), que no relatório precursor ao de

Delors colocava como fi m da educação permitir ao “homem ser ele

próprio vir a ser”, ou seja construtor de seu próprio destino. Tanto as

idéias de Faure como as dos jovens estão infl uenciadas pelos conceitos

da fenomenologia, que põem na educação um processo de contínuo

inacabamento, no qual o processo de humanização tende a se ampliar

em espirais de avanços e recuos.

O texto de Delors indica-nos que a educação deve contribuir para o

desenvolvimento total da pessoa, espírito e corpo, inteligência, sen-

sibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade.

Assim, dentro da perspectiva do relatório, os seres humanos deveriam,

por meio da educação, ser capazes de agir de forma o mais humanizada

possível nas diferentes circunstâncias da vida. Para isso, cada um deveria

ser capaz de ter pensamentos autônomos e críticos, ou seja, assumindo

coerentemente seus caminhos e escolhas.

Nesse processo de aprender a ser, a necessidade de “conhecimento de si”

e “cuidado de si” (FOUCAULT, 1990, 2004) são fundamentais para se

contrapor aos processos de desumanização impostos pelo avanço da razão

instrumental, assim como permite ao indivíduo a possibilidade de continuar

seu processo de humanização, superando gradativamente as incongruências

e divisões através de um processo de transformação do ser, como podemos

perceber nas palavras de Policarpo Júnior (2006, p. 12):

No entanto, sem o exercício e apropriação da refl exão, da experiência

e contemplação, exercidas conjuntamente no que tange aos fenômenos

do interior humano, não se pode desenvolver aquela fi nalidade a que o

Relatório Jacques Delors se referiu como o “aprender a ser” (Delors,

2003, p. 99-102).

Quando a vida pessoal é vivida com sabedoria, a tendência é perceber

que de fato não há separação entre introspecção e ação no mundo.

Por meio da auto-refl exão, isto é, pelo exercício do diálogo interior,

os hábitos mentais e comportamentais, os sentimentos e emoções

podem se tornar progressivamente objeto da razoabilidade. Sem auto-

comiseração e inclemência, é possível que o indivíduo transforme seus

limites, fraquezas, medos, potencialidades e virtudes em algo familiar,

refl etindo sobre eles e passando a chamar pelo devido nome cada uma

de suas atitudes preponderantes, passando de fato a conhecê-las e a

discernir-lhes o sentido, não apenas vivendo como seu refém.

Em localidades como: Morro da 19. Conceição, Campo Tabaiares (ou Caranguejo Tabaiares), Vila de Santa Luzia.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA72 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 73

Após mais de 20 anos acompanhando os movimentos sociais em várias comunidades da

periferia do Recife19, continuo a me deparar com a busca de um signifi cado mais profundo

para a formação humana, a do outro e a nossa. Uma vez tendo sido afetado pelos múltiplos

contatos, não me canso de me espantar com um corpo “estranho” cravado de balas de um

adolescente, apesar do apelo anestesiante e alienante da mídia para naturalizar a violência

por intermédio da banalização e da exposição perversa. A minha experiência pessoal não

me permite apenas “enterrar o morto” e continuar meu trabalho de formação sem me

perceber como implicado. Os encontros com os “Virgílios” presentes nessas comunidades

sempre me inquietaram, pois me solicitavam “correr um risco”, romper com uma postura

de intelectual distanciado e me pôr de forma incorporada na experiência. E é “correndo

risco” que embarquei em uma viagem do aprender a ser.

APRENDER A SER COMO FATOR DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA

No “Relatório para a Unesco da Comissão Internacional Sobre Educação para o Século

XXI”, contidas no livro “Educação: um tesouro a descobrir”, Jacques Delors (2003),

aponta-se como principal conseqüência da sociedade do conhecimento a necessidade de

uma aprendizagem ao longo de toda a vida fundada em quatro pilares que são ao mesmo

tempo pilares do conhecimento e da formação humana. São eles: aprender a ser, aprender

a viver juntos, aprender a fazer, aprender a conhecer.

Neste texto exploraremos o aprender a ser como caminho de promoção da resiliência e de estratégias

de resistência frente à violência letal que se manifesta de forma epidêmica entre a juventude.

Na linguagem de Delors, uma educação do aprender a ser objetiva desenvolver a personalidade,

expandindo os seus potenciais de forma a poder cada vez mais usar a sua capacidade de

autonomia, de discernimento e de responsabilidade consigo e com o outro. Na linguagem

dos jovens cujas falas foram registradas em minha pesquisa de doutorado, esta educação

visa a “formação do ser humano”, “teria o papel de formar as pessoas”, pois seria “um jeito

de fazê-lo ser humano de verdade”, pois “vai mudar o ser humano”, tornado-o “alguém”,

pois “é o que nos forma, que vai ver como nós seremos, o que nós vamos vir a ser”. Enfi m,

é “um processo de desenvolvimento, em que a pessoa vai passando por várias etapas e a

cada tempo que vai passando por cada etapa da sua vida e da educação, ela vai adquirindo

conhecimentos e vai crescendo com esses conhecimentos”.

A idéia da educação como “ver como nós seremos, o que nós vamos vir a ser”, apresentada

por um dos jovens, aproxima-se da idéia de Faure (1974), que no relatório precursor ao de

Delors colocava como fi m da educação permitir ao “homem ser ele

próprio vir a ser”, ou seja construtor de seu próprio destino. Tanto as

idéias de Faure como as dos jovens estão infl uenciadas pelos conceitos

da fenomenologia, que põem na educação um processo de contínuo

inacabamento, no qual o processo de humanização tende a se ampliar

em espirais de avanços e recuos.

O texto de Delors indica-nos que a educação deve contribuir para o

desenvolvimento total da pessoa, espírito e corpo, inteligência, sen-

sibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade.

Assim, dentro da perspectiva do relatório, os seres humanos deveriam,

por meio da educação, ser capazes de agir de forma o mais humanizada

possível nas diferentes circunstâncias da vida. Para isso, cada um deveria

ser capaz de ter pensamentos autônomos e críticos, ou seja, assumindo

coerentemente seus caminhos e escolhas.

Nesse processo de aprender a ser, a necessidade de “conhecimento de si”

e “cuidado de si” (FOUCAULT, 1990, 2004) são fundamentais para se

contrapor aos processos de desumanização impostos pelo avanço da razão

instrumental, assim como permite ao indivíduo a possibilidade de continuar

seu processo de humanização, superando gradativamente as incongruências

e divisões através de um processo de transformação do ser, como podemos

perceber nas palavras de Policarpo Júnior (2006, p. 12):

No entanto, sem o exercício e apropriação da refl exão, da experiência

e contemplação, exercidas conjuntamente no que tange aos fenômenos

do interior humano, não se pode desenvolver aquela fi nalidade a que o

Relatório Jacques Delors se referiu como o “aprender a ser” (Delors,

2003, p. 99-102).

Quando a vida pessoal é vivida com sabedoria, a tendência é perceber

que de fato não há separação entre introspecção e ação no mundo.

Por meio da auto-refl exão, isto é, pelo exercício do diálogo interior,

os hábitos mentais e comportamentais, os sentimentos e emoções

podem se tornar progressivamente objeto da razoabilidade. Sem auto-

comiseração e inclemência, é possível que o indivíduo transforme seus

limites, fraquezas, medos, potencialidades e virtudes em algo familiar,

refl etindo sobre eles e passando a chamar pelo devido nome cada uma

de suas atitudes preponderantes, passando de fato a conhecê-las e a

discernir-lhes o sentido, não apenas vivendo como seu refém.

Em localidades como: Morro da 19. Conceição, Campo Tabaiares (ou Caranguejo Tabaiares), Vila de Santa Luzia.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA74 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 75

A aprendizagem de Ser, de tornar-se humano, como situa Gadotti (2000, p. 10), “não pode

ser apenas lógico-matemática e lingüística. Precisa ser integral”. Buscando desenvolver a

integralidade da pessoa:

[...] inteligência, sensibilidade, sentido ético e estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade,

pensamento autônomo e crítico, imaginação, criatividade, iniciativa. Para isso não se deve

negligenciar nenhuma das potencialidades de cada indivíduo (GADDOTTI, loc. cit).

Assim, ao pensar o humano jovem, deve-se considerar uma visão do humano o mais

abrangente possível, considerando-o como ser multidimensional e atravessado por múltiplas

“dimensões transversais”, tais como:

[...] relacional-social, a prático-laboral-profi ssional, a político-econômica, a comunicativa, a

sexual-libidinal e de gênero, a étnica, a estético-artística, a ética, a místico-mágico-religiosa, a

lúdica e a volitivo-impulsional-motivacional. (RÖHR, 2006, p. 17)

Na linguagem dos jovens, esta educação que integra as múltiplas dimensões do humano

“seria [...] uma abordagem total, uma abordagem holística mesmo, saber desenvolver os

aspectos do ser humano, os aspectos psíquicos, intelectuais e emocionais”. Um processo de

transformação com o objetivo de proporcionar uma visão mais ampla ao ser, sem deixar a

pessoa alienada com os problemas diários, problemas em geral, que a pessoa quando entra

nesse processo de formação, com a capacidade de desenvolver suas capacidades totais,

ele obtém uma visão mais ampla de mundo, dos problemas, da sociedade. Enfi m, “um

aperfeiçoamento integral em tudo, em casa, na escola, em todo lugar”.

Assim a educação, ainda dentro da perspectiva dos jovens, pode ser vista como uma integradora

dos vários potenciais humanos, tendo como meta “formar o aluno no seu intelecto, no seu

nível cognitivo, e em outras partes como lidar com o emocional, com outras pessoas, nas

suas casas”, ajudando-as a se “desenvolver mais, não só no aspecto de inteligência, também

na parte espiritual e social”.

Das refl exões acima, podemos perceber que o desenvolvimento de uma educação integral por

meio de amplo acesso ao “aprender a ser” só poderá ser atingido mediante um processo educacional

que valorize o indivíduo em sua totalidade. A valorização do indivíduo, por sua vez, implica a

necessidade do reconhecimento do outro, que não pode ser concebido a priori como objeto, o que

seria mais uma forma de opressão. E como “a solidariedade é uma forma de conhecimento que

se obtém por via do reconhecimento do outro, o outro só pode ser reconhecido como produtor

de conhecimento” (SOUZA SANTOS, 2000, p. 30), o que signifi ca um profundo respeito às

diversidades dos saberes, às múltiplas inteligências e às variações culturais.

APONTAMENTOS FINAIS

Para Pazzola (2002), na busca pelo desenvolvimento da capacidade de

adaptação, o indivíduo passa pelo autoconhecimento, pela descoberta

do senso de identidade e de sua espiritualidade. Essa visão de espírito

humano em conexão consigo mesmo, com a natureza e com o cosmos,

ratifi ca a mudança em relação ao pensamento científi co do século XX,

quando se mudou do enfoque analítico, que buscava o entendimento

das coisas através de seu isolamento e segmentação, passando-se ao

pensamento interdependente, que é abrangente.

Nesse cenário, o objetivo principal do trabalho de aprender a ser é a

melhoria dos padrões de pensamentos, sentimentos, palavras e ações,

afetando o comportamento dos indivíduos, que passam a ter uma noção

mais clara de sua identidade, e dos valores que necessitam desenvolver

para a busca de uma vida mais ecológica, ou mais “demasiadamente

humana”. Essa transformação brota do íntimo de cada um, na busca

de um contato maior consigo mesmo, com o outro e com o meio,

convidando o ser a posicionar-se compassivamente diante das várias

situações da vida.

Essa auto-observação dá o entendimento de como o indivíduo está se

relacionando com o seu meio, e a adequação dessa relação com o que

vem ocorrendo dentro de si, através da busca pela melhoria de seus

pensamentos e atitudes, em resposta efetiva e coerente aos estímulos

externos, com o cuidado em não partir para o extremo, causando a perda

da naturalidade, sempre levando em consideração os seus sentimentos

e não apenas a sua razão. (PAZZOLA, 2002, p.20).

Apesar das adversidades do momento, do papel que esteja sendo desempe-

nhado, das atividades que estejam sendo realizadas e dos recursos que a pessoa

tenha, há um espaço dentro de si20, onde ela tem a liberdade de ser o que

realmente é, que lhe serve como uma fonte para recarregar suas energias e

enfrentar a realidade, permitindo-lhe condições de estabelecer suas visões

de futuro, capazes de dar sentido aos momentos mais difíceis.

A busca pelo autoconhecimento e fortalecimento dos valores do ser

humano, como base para o desenvolvimento de sua força interior, é

capaz de ajudar o humano a superar as difi culdades que a vida apresenta.

A idéia de que o organismo 20. humano tende a um processo de autocura (física e psicológica) está presente nos trabalhos pioneiros de Maslow (1964), Rogers (1983) e mais recentemente no modelo terapêutico revolucionário da Francine Shapiro (2007).

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA74 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 75

A aprendizagem de Ser, de tornar-se humano, como situa Gadotti (2000, p. 10), “não pode

ser apenas lógico-matemática e lingüística. Precisa ser integral”. Buscando desenvolver a

integralidade da pessoa:

[...] inteligência, sensibilidade, sentido ético e estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade,

pensamento autônomo e crítico, imaginação, criatividade, iniciativa. Para isso não se deve

negligenciar nenhuma das potencialidades de cada indivíduo (GADDOTTI, loc. cit).

Assim, ao pensar o humano jovem, deve-se considerar uma visão do humano o mais

abrangente possível, considerando-o como ser multidimensional e atravessado por múltiplas

“dimensões transversais”, tais como:

[...] relacional-social, a prático-laboral-profi ssional, a político-econômica, a comunicativa, a

sexual-libidinal e de gênero, a étnica, a estético-artística, a ética, a místico-mágico-religiosa, a

lúdica e a volitivo-impulsional-motivacional. (RÖHR, 2006, p. 17)

Na linguagem dos jovens, esta educação que integra as múltiplas dimensões do humano

“seria [...] uma abordagem total, uma abordagem holística mesmo, saber desenvolver os

aspectos do ser humano, os aspectos psíquicos, intelectuais e emocionais”. Um processo de

transformação com o objetivo de proporcionar uma visão mais ampla ao ser, sem deixar a

pessoa alienada com os problemas diários, problemas em geral, que a pessoa quando entra

nesse processo de formação, com a capacidade de desenvolver suas capacidades totais,

ele obtém uma visão mais ampla de mundo, dos problemas, da sociedade. Enfi m, “um

aperfeiçoamento integral em tudo, em casa, na escola, em todo lugar”.

Assim a educação, ainda dentro da perspectiva dos jovens, pode ser vista como uma integradora

dos vários potenciais humanos, tendo como meta “formar o aluno no seu intelecto, no seu

nível cognitivo, e em outras partes como lidar com o emocional, com outras pessoas, nas

suas casas”, ajudando-as a se “desenvolver mais, não só no aspecto de inteligência, também

na parte espiritual e social”.

Das refl exões acima, podemos perceber que o desenvolvimento de uma educação integral por

meio de amplo acesso ao “aprender a ser” só poderá ser atingido mediante um processo educacional

que valorize o indivíduo em sua totalidade. A valorização do indivíduo, por sua vez, implica a

necessidade do reconhecimento do outro, que não pode ser concebido a priori como objeto, o que

seria mais uma forma de opressão. E como “a solidariedade é uma forma de conhecimento que

se obtém por via do reconhecimento do outro, o outro só pode ser reconhecido como produtor

de conhecimento” (SOUZA SANTOS, 2000, p. 30), o que signifi ca um profundo respeito às

diversidades dos saberes, às múltiplas inteligências e às variações culturais.

APONTAMENTOS FINAIS

Para Pazzola (2002), na busca pelo desenvolvimento da capacidade de

adaptação, o indivíduo passa pelo autoconhecimento, pela descoberta

do senso de identidade e de sua espiritualidade. Essa visão de espírito

humano em conexão consigo mesmo, com a natureza e com o cosmos,

ratifi ca a mudança em relação ao pensamento científi co do século XX,

quando se mudou do enfoque analítico, que buscava o entendimento

das coisas através de seu isolamento e segmentação, passando-se ao

pensamento interdependente, que é abrangente.

Nesse cenário, o objetivo principal do trabalho de aprender a ser é a

melhoria dos padrões de pensamentos, sentimentos, palavras e ações,

afetando o comportamento dos indivíduos, que passam a ter uma noção

mais clara de sua identidade, e dos valores que necessitam desenvolver

para a busca de uma vida mais ecológica, ou mais “demasiadamente

humana”. Essa transformação brota do íntimo de cada um, na busca

de um contato maior consigo mesmo, com o outro e com o meio,

convidando o ser a posicionar-se compassivamente diante das várias

situações da vida.

Essa auto-observação dá o entendimento de como o indivíduo está se

relacionando com o seu meio, e a adequação dessa relação com o que

vem ocorrendo dentro de si, através da busca pela melhoria de seus

pensamentos e atitudes, em resposta efetiva e coerente aos estímulos

externos, com o cuidado em não partir para o extremo, causando a perda

da naturalidade, sempre levando em consideração os seus sentimentos

e não apenas a sua razão. (PAZZOLA, 2002, p.20).

Apesar das adversidades do momento, do papel que esteja sendo desempe-

nhado, das atividades que estejam sendo realizadas e dos recursos que a pessoa

tenha, há um espaço dentro de si20, onde ela tem a liberdade de ser o que

realmente é, que lhe serve como uma fonte para recarregar suas energias e

enfrentar a realidade, permitindo-lhe condições de estabelecer suas visões

de futuro, capazes de dar sentido aos momentos mais difíceis.

A busca pelo autoconhecimento e fortalecimento dos valores do ser

humano, como base para o desenvolvimento de sua força interior, é

capaz de ajudar o humano a superar as difi culdades que a vida apresenta.

A idéia de que o organismo 20. humano tende a um processo de autocura (física e psicológica) está presente nos trabalhos pioneiros de Maslow (1964), Rogers (1983) e mais recentemente no modelo terapêutico revolucionário da Francine Shapiro (2007).

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA76 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 77

Essa força, defi nida como resiliência, não tem uma fórmula defi nida, uma receita, mas traz,

em sua essência, a introspecção, a harmonia entre razão e emoção, a harmonia entre corpo

e mente e a busca de transpor o hiato homem/mundo.

Em uma cultura de violência, as saídas saudáveis para os jovens se tornam cada vez mais

difíceis, pois há pouco espaço para se pensar projetos coletivos e de inclusão do outro, dentro

de uma perspectiva solidária e compassiva. Pensar fatores de promoção de resiliência indica

também pensarmo-nos dentro de um contexto mais amplo, como integrantes de uma teia

mais abrangente e nos vermos como “seres humanos”, e assim, no mínimo, sustentarmos

os direitos humanos básicos.

Propiciar vivências educativas ligadas à promoção de resiliência através do aprender a ser

constitui uma valiosa oportunidade de resgatar e/ou construir sentidos para a vida de

adolescentes e de suas famílias que se deparam cronicamente com situações de sofrimento.

Uma educação apoiada na idéia de aprender a ser manifesta uma ponte para a resiliência,

desvelando sentidos outros para o existir humano, despertando, assim, signifi cados mais

profundos para a existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Filosofi a e formação humana. 17 a 20 outubro, Recife, 2006, 1 CD-Room.

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RÖHR, F. Esclarecimento e reencarnação na “educação do gênero humano” de Gotthold

Ephraim Lessing: uma hipótese em torno da questão da meta da formação humana. III

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18:22:00.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA76 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 77

Essa força, defi nida como resiliência, não tem uma fórmula defi nida, uma receita, mas traz,

em sua essência, a introspecção, a harmonia entre razão e emoção, a harmonia entre corpo

e mente e a busca de transpor o hiato homem/mundo.

Em uma cultura de violência, as saídas saudáveis para os jovens se tornam cada vez mais

difíceis, pois há pouco espaço para se pensar projetos coletivos e de inclusão do outro, dentro

de uma perspectiva solidária e compassiva. Pensar fatores de promoção de resiliência indica

também pensarmo-nos dentro de um contexto mais amplo, como integrantes de uma teia

mais abrangente e nos vermos como “seres humanos”, e assim, no mínimo, sustentarmos

os direitos humanos básicos.

Propiciar vivências educativas ligadas à promoção de resiliência através do aprender a ser

constitui uma valiosa oportunidade de resgatar e/ou construir sentidos para a vida de

adolescentes e de suas famílias que se deparam cronicamente com situações de sofrimento.

Uma educação apoiada na idéia de aprender a ser manifesta uma ponte para a resiliência,

desvelando sentidos outros para o existir humano, despertando, assim, signifi cados mais

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Press, 1964.

PAZZOLA, A. A espiritualidade como base para a resiliência. Monografi a apresentada

à Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e Instituto LIBERTAS

– Consultoria e Treinamento, Pós-graduação em Latu Senso em Dinâmica de

Grupo, Recife- PE, 2002.

POLICARPO JÚNIOR, P. Sobre a Concepção de Formação Humana: um diálogo entre o

campo educacional e a tradição budista. III encontro de fi losofi a do norte e nordeste.

Filosofi a e formação humana. 17 a 20 outubro, Recife, 2006, 1 CD-Room.

ROGERS, C. R. Um jeito de ser. São Paulo: Ed. EPU, 1983.

RÖHR, F. Esclarecimento e reencarnação na “educação do gênero humano” de Gotthold

Ephraim Lessing: uma hipótese em torno da questão da meta da formação humana. III

encontro de fi losofi a do norte e nordeste. Filosofi a e formação humana. 17 a 20

outubro, Recife, 2006, 1 CD-Room.

SAMPAIO, S. A psicopedagogia como promovedora da resiliência. Publicado em 13/09/2005

18:22:00.

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA78 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 79

SHAPIRO, F. EMDR: desensibilização e reprocessamento através de movimentos oculares. Brasília: Nova Temática,

2007.

SLUZKI, W. Psicologia do adolescente. Uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1997. p. 41-42.

SOUZA SANTOS, B. de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora,

2000.

TRUNGPA, C. Além do materialismo espiritual. São Paulo: Cultrix, 1993.

VICENTE, C. M. Resiliência. Palestra proferida no Centro de Treinamento de Recursos Humanos de Ponte Formosa.

Espírito Santo, 1996.

A vida que a mídia não vê

JOÃO PEREIRA VALE NETO1

O presente trabalho está dentro das preocupações centrais do projeto de extensão Coque Vive3 do Departamento de Comunicação Social da UFPE. O projeto, que atua desde 2006 no bairro do Coque, tem como objetivo, nos últimos meses, a construção de uma rede de alianças simbólicas e reais com agentes socioculturais do bairro do Coque a fi m de realizar a transformação do estigma que cerceia o bairro como uma “comunidade violenta”. Entre estes agentes da rede, estão o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA) e o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), além da Biblioteca Popular do Coque, construída a partir da parceria dos dois agentes anteriores e da Igreja de São Francisco de Assis do Coque.

A infl uência de cada um desses agentes na formação da rede é sui generis: cada qual entra em confronto com parte boa parte dos estigmas aos quais o Coque vem sendo relacionado. Na verdade, boa parte das ações desses agentes está justamente em, a partir da motivação própria de cada um, fazer existir o Coque de “pertencimento”, para utilizar uma expressão bastante popular no NEIMFA. Assim, a Igreja de São Francisco de Assis traz consigo a luta histórica da Teologia da Libertação, na pessoa de Frei

É graduado em comunicação 1. social pela Universidade Federal de Pernambuco, onde atualmente cursa o Mestrado em Comuni-cação. É um dos fundadores e coordenadores do programa de extensão Coque Vive, e tem inte-resse especial em Comunicação e Educação, Linguagem, produção de sentidos e Mudança social.

HERSEY, J. 2. Hiroshima . São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.63.

O projeto vem tendo muitos 3. “nomes” nos últimos três anos: Filhas e Filhos do Coque (MINC/PROEXT Cultura 2007); Rede de Educomunicação Solidária (MEC/SESU 2006); Formação de Agentes de Mediação Sociocul-tural (MEC/SESU 2007); Estação Digital de Difusão de Conteúdos (PROEXT/2008), entre alguns outros. Genericamente, todas essas expressões são conectadas a uma outra: “Coque Vive”, que introduz uma contraposição com a manchete “Coque, uma favela que vive seus últimos dias de miséria (DP, 14.04.1985, Cidade – Caderno A, p.08)” e nasceu em uma sala de aula do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis na ocasião em que juntos, jovens do Coque e da UFPE, realizaríamos o primeiro circuito cultural divulgando os produtos que construímos em um ano de formação.

Na manhã de 09 de Agosto, às onze horas e dois minutos, a segunda bomba-

atômica foi lançada sobre Nagasaki. Os sobreviventes de Hiroshima demoraram

alguns dias para tomar conhecimento do fato, pois a rádio e a imprensa japonesa

estavam sempre extremamente cautelosas em relação à estranha armar.” 2

APRENDER A SER COMO UM DOS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA RESILIÊNCIA78 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 79

SHAPIRO, F. EMDR: desensibilização e reprocessamento através de movimentos oculares. Brasília: Nova Temática,

2007.

SLUZKI, W. Psicologia do adolescente. Uma abordagem desenvolvimentista. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1997. p. 41-42.

SOUZA SANTOS, B. de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora,

2000.

TRUNGPA, C. Além do materialismo espiritual. São Paulo: Cultrix, 1993.

VICENTE, C. M. Resiliência. Palestra proferida no Centro de Treinamento de Recursos Humanos de Ponte Formosa.

Espírito Santo, 1996.

A vida que a mídia não vê

JOÃO PEREIRA VALE NETO1

O presente trabalho está dentro das preocupações centrais do projeto de extensão Coque Vive3 do Departamento de Comunicação Social da UFPE. O projeto, que atua desde 2006 no bairro do Coque, tem como objetivo, nos últimos meses, a construção de uma rede de alianças simbólicas e reais com agentes socioculturais do bairro do Coque a fi m de realizar a transformação do estigma que cerceia o bairro como uma “comunidade violenta”. Entre estes agentes da rede, estão o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA) e o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), além da Biblioteca Popular do Coque, construída a partir da parceria dos dois agentes anteriores e da Igreja de São Francisco de Assis do Coque.

A infl uência de cada um desses agentes na formação da rede é sui generis: cada qual entra em confronto com parte boa parte dos estigmas aos quais o Coque vem sendo relacionado. Na verdade, boa parte das ações desses agentes está justamente em, a partir da motivação própria de cada um, fazer existir o Coque de “pertencimento”, para utilizar uma expressão bastante popular no NEIMFA. Assim, a Igreja de São Francisco de Assis traz consigo a luta histórica da Teologia da Libertação, na pessoa de Frei

É graduado em comunicação 1. social pela Universidade Federal de Pernambuco, onde atualmente cursa o Mestrado em Comuni-cação. É um dos fundadores e coordenadores do programa de extensão Coque Vive, e tem inte-resse especial em Comunicação e Educação, Linguagem, produção de sentidos e Mudança social.

HERSEY, J. 2. Hiroshima . São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.63.

O projeto vem tendo muitos 3. “nomes” nos últimos três anos: Filhas e Filhos do Coque (MINC/PROEXT Cultura 2007); Rede de Educomunicação Solidária (MEC/SESU 2006); Formação de Agentes de Mediação Sociocul-tural (MEC/SESU 2007); Estação Digital de Difusão de Conteúdos (PROEXT/2008), entre alguns outros. Genericamente, todas essas expressões são conectadas a uma outra: “Coque Vive”, que introduz uma contraposição com a manchete “Coque, uma favela que vive seus últimos dias de miséria (DP, 14.04.1985, Cidade – Caderno A, p.08)” e nasceu em uma sala de aula do Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis na ocasião em que juntos, jovens do Coque e da UFPE, realizaríamos o primeiro circuito cultural divulgando os produtos que construímos em um ano de formação.

Na manhã de 09 de Agosto, às onze horas e dois minutos, a segunda bomba-

atômica foi lançada sobre Nagasaki. Os sobreviventes de Hiroshima demoraram

alguns dias para tomar conhecimento do fato, pois a rádio e a imprensa japonesa

estavam sempre extremamente cautelosas em relação à estranha armar.” 2

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ80 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 81

Aloísio Fragoso, resgatando a imagem da “Igreja dos Pobres”, professada por Dom Hélder Câmara, entre outros. O NEIMFA, por sua vez, rompe o pensamento tradicional do que seriam as práticas sociais a partir de uma perspectiva ético-espiritual que atravessa todas as dimensões do ser cidadão; e o MABI traz a força política dos jovens do bairro organizados, inicialmente, em torno de um rock´n´roll crítico contra os “bons costumes” da nossa época.

Mas qual a contribuição da Universidade nessa pluralidade de agentes tão imersos em lutas sociohistóricas de seus locais de origem? Na posição de Universidade, na qual estamos, nos vemos dispostos a contribuir a partir da crítica social, valendo-se para isso de uma história de pensadores que vêm opinando, desconstruindo e reconstruindo o mundo das idéias. Estamos, portanto, dispostos a investigar os problemas, popularizar nossas descobertas e construir metodologias de ação efetivas para a transformação social.

Nossa contribuição no âmbito do projeto Coque Vive desde o seu início4 está relacionada aos estigmas que cercam o bairro. Mas o que antes seria uma contraposição direta ao maior estigma do bairro, a violência, a partir unicamente de uma “herança” social negativa do bairro na cidade do Recife, se tornou uma teia complexa de estigmas, alicerçada em outros discursos da cidade sobre ela mesma. Mergulhamos então, em um terreno fértil e denso de posições de “ordem” da sociedade neo-liberal sobre os pobres, entendemos, assim as variações possíveis de se abordar o Coque nos meios de comunicação: o lugar da carência, o lugar dos bandidos, o lugar do Governo5.

Aqui, é verdade, iremos aprofundar uma outra variação do estigma: não necessariamente o estigma ambiental, que transforma a área da Ilha de Joana Bezerra em escoadouro de esgotos e de péssimas qualidades de saneamento; nem tampouco o estigma visual que, a partir de uma grande quantidade de outdoors, desviam o olhar do motorista que trafega no viaduto; nem tampouco os estigmas das narrativas “populares” da violência, nos quais existe uma grande diversidade de exemplos sobre a violência no bairro do Coque. Nosso objetivo aqui é mais tópico: gostaríamos de entender por que, muito embora os jovens do Coque venham morrendo sistematicamente, suas mortes não parecem impactar ninguém fora seus amigos e familiares. Uma vez que a grande mídia possui o papel social de publicizar os acontecimentos, acontece um “esvaziamento” da morte desses jovens na mídia, construindo assim um novo estigma: o estigma da não-morte. Esse assunto nos é caro porque estamos nós mesmos imersos junto aos agentes socioculturais e estamos vendo os jovens morrerem. O que nos inquieta é justamente saber porque eles só parecem morrer para nós e não para os outros, como os Trestálios, animais míticos que só podem ser vistos por quem já viu a morte. Quem nunca a viu, acredita que as carruagens mágicas voam sozinhas, ignorando seus reais condutores.

Ao iniciar nossa investigação sobre o estigma da não-morte, vamos entendendo que, de maneira geral, a morte de jovens de periferia urbana vem ganhando, cada vez mais, conotações

de políticas de extermínio. Alguns autores como associam esse fenômeno a

uma nova guetifi cação à luz da política neoliberal (Wacquant, 2001; Oliveira

1996). Outros como Varjão (2008) vêem claramente o estigma racial como

um “passo” para a morte. Estamos, é verdade, repetindo há algum tempo

que os jovens – negros e pobres – estão morrendo cada vez mais.

Entre os homens jovens, o homicídio é claramente a primeira causa de

morte. Em um estudo realizado para as 27 capitais estaduais do país e

as 10 regiões metropolitanas tradicionais, se observa que os homicídios

de jovens entre 15 e 24 anos tiveram um dramático incremento de

88,6% nos últimos 10 anos, passando de 10.173 em 1993 para 19.188

em 2002. Entre os jovens assassinados, 93% eram rapazes e o aumento

nesse lapso foi de 74% entre negros e mulatos.6

Mas por que parece tão difícil evitar estas mortes? Parecemos, enquanto sociedade, caminhar em dois extremos: construímos discursos cada vez mais autoritários sobre a vida dos jovens das favelas ao passo que, na prática, eles continuam morrendo. Na verdade, nosso problema não é que eles morram. Os clamores da opinião pública para julgar essa juventude só se erguem para decidir sobre o direito de se armar para enfrentar uma sociedade cada vez mais violenta, como vimos em relação ao referendo do desarmamento e em relação aos crimes que a juventude “preta e pobre” comete contra os que não são pretos e pobres. Ao que tudo indica, se eles realizassem suas guerras internas e se destruíssem, tudo estaria em perfeita coesão.

Mas, eventualmente, essas mortes atingem os alvos “não-preferenciais”, os “inocentes” que estão transitando de maneira tranqüila na socie-dade dos “tranqüilos”. Nesse momento, percebemos que os gritos abolicionistas ainda não completaram sua missão e os pelourinhos emergem na tribuna da mídia e da opinião pública com muita facilidade. Como percebe Varjão (2008), até nossas bolhas serem invadidas pelos alienígenas da favela, nós, os herdeiros da civilização, começamos a uivar alertando nossos compatriotas da chegada da barbárie. “Na era da tecnologia da informação, os descendentes dos que habitavam as casas-grandes e os sobrados vivem em espécie de bolhas, enquanto os moradores das senzalas e dos “mucambos” amontoam-se em espaços minúsculos, “anti-higiênicos”, vazados, quase vãos”.7 Assim, vamos seguindo por grandes momentos

de prévia invisibilidade a qual só se faz visível quando a bolha estoura.

O projeto surgiu a partir do 4. jornal-laboratório Coque Vive, realizado por um convite de Ridivaldo Procópio, enquanto aluno do NEIMFA e integrante do MABI - ao sexto período do curso de Jornalismo da UFPE (2006.1)

Essas posições do Coque foram 5. relatadas inicialmente em Coque vive: uma investigação sobre o reper-tório sociohistórico de uma comunidade da periferia do Recife (PE) IN: Ju-ventudes do Nordeste do Brasil, da América Latina e do Caribe. Teresina: UFPI, 2009.

Juventud y cohesión social em 6. Iberoamérica – um modelo para armar. CEPAL. Chile: 2008.

VARJÃO, S. 7. Micropoderes, macro-violências. Salvador: EDUFBA, 2008. p.175

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ80 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 81

Aloísio Fragoso, resgatando a imagem da “Igreja dos Pobres”, professada por Dom Hélder Câmara, entre outros. O NEIMFA, por sua vez, rompe o pensamento tradicional do que seriam as práticas sociais a partir de uma perspectiva ético-espiritual que atravessa todas as dimensões do ser cidadão; e o MABI traz a força política dos jovens do bairro organizados, inicialmente, em torno de um rock´n´roll crítico contra os “bons costumes” da nossa época.

Mas qual a contribuição da Universidade nessa pluralidade de agentes tão imersos em lutas sociohistóricas de seus locais de origem? Na posição de Universidade, na qual estamos, nos vemos dispostos a contribuir a partir da crítica social, valendo-se para isso de uma história de pensadores que vêm opinando, desconstruindo e reconstruindo o mundo das idéias. Estamos, portanto, dispostos a investigar os problemas, popularizar nossas descobertas e construir metodologias de ação efetivas para a transformação social.

Nossa contribuição no âmbito do projeto Coque Vive desde o seu início4 está relacionada aos estigmas que cercam o bairro. Mas o que antes seria uma contraposição direta ao maior estigma do bairro, a violência, a partir unicamente de uma “herança” social negativa do bairro na cidade do Recife, se tornou uma teia complexa de estigmas, alicerçada em outros discursos da cidade sobre ela mesma. Mergulhamos então, em um terreno fértil e denso de posições de “ordem” da sociedade neo-liberal sobre os pobres, entendemos, assim as variações possíveis de se abordar o Coque nos meios de comunicação: o lugar da carência, o lugar dos bandidos, o lugar do Governo5.

Aqui, é verdade, iremos aprofundar uma outra variação do estigma: não necessariamente o estigma ambiental, que transforma a área da Ilha de Joana Bezerra em escoadouro de esgotos e de péssimas qualidades de saneamento; nem tampouco o estigma visual que, a partir de uma grande quantidade de outdoors, desviam o olhar do motorista que trafega no viaduto; nem tampouco os estigmas das narrativas “populares” da violência, nos quais existe uma grande diversidade de exemplos sobre a violência no bairro do Coque. Nosso objetivo aqui é mais tópico: gostaríamos de entender por que, muito embora os jovens do Coque venham morrendo sistematicamente, suas mortes não parecem impactar ninguém fora seus amigos e familiares. Uma vez que a grande mídia possui o papel social de publicizar os acontecimentos, acontece um “esvaziamento” da morte desses jovens na mídia, construindo assim um novo estigma: o estigma da não-morte. Esse assunto nos é caro porque estamos nós mesmos imersos junto aos agentes socioculturais e estamos vendo os jovens morrerem. O que nos inquieta é justamente saber porque eles só parecem morrer para nós e não para os outros, como os Trestálios, animais míticos que só podem ser vistos por quem já viu a morte. Quem nunca a viu, acredita que as carruagens mágicas voam sozinhas, ignorando seus reais condutores.

Ao iniciar nossa investigação sobre o estigma da não-morte, vamos entendendo que, de maneira geral, a morte de jovens de periferia urbana vem ganhando, cada vez mais, conotações

de políticas de extermínio. Alguns autores como associam esse fenômeno a

uma nova guetifi cação à luz da política neoliberal (Wacquant, 2001; Oliveira

1996). Outros como Varjão (2008) vêem claramente o estigma racial como

um “passo” para a morte. Estamos, é verdade, repetindo há algum tempo

que os jovens – negros e pobres – estão morrendo cada vez mais.

Entre os homens jovens, o homicídio é claramente a primeira causa de

morte. Em um estudo realizado para as 27 capitais estaduais do país e

as 10 regiões metropolitanas tradicionais, se observa que os homicídios

de jovens entre 15 e 24 anos tiveram um dramático incremento de

88,6% nos últimos 10 anos, passando de 10.173 em 1993 para 19.188

em 2002. Entre os jovens assassinados, 93% eram rapazes e o aumento

nesse lapso foi de 74% entre negros e mulatos.6

Mas por que parece tão difícil evitar estas mortes? Parecemos, enquanto sociedade, caminhar em dois extremos: construímos discursos cada vez mais autoritários sobre a vida dos jovens das favelas ao passo que, na prática, eles continuam morrendo. Na verdade, nosso problema não é que eles morram. Os clamores da opinião pública para julgar essa juventude só se erguem para decidir sobre o direito de se armar para enfrentar uma sociedade cada vez mais violenta, como vimos em relação ao referendo do desarmamento e em relação aos crimes que a juventude “preta e pobre” comete contra os que não são pretos e pobres. Ao que tudo indica, se eles realizassem suas guerras internas e se destruíssem, tudo estaria em perfeita coesão.

Mas, eventualmente, essas mortes atingem os alvos “não-preferenciais”, os “inocentes” que estão transitando de maneira tranqüila na socie-dade dos “tranqüilos”. Nesse momento, percebemos que os gritos abolicionistas ainda não completaram sua missão e os pelourinhos emergem na tribuna da mídia e da opinião pública com muita facilidade. Como percebe Varjão (2008), até nossas bolhas serem invadidas pelos alienígenas da favela, nós, os herdeiros da civilização, começamos a uivar alertando nossos compatriotas da chegada da barbárie. “Na era da tecnologia da informação, os descendentes dos que habitavam as casas-grandes e os sobrados vivem em espécie de bolhas, enquanto os moradores das senzalas e dos “mucambos” amontoam-se em espaços minúsculos, “anti-higiênicos”, vazados, quase vãos”.7 Assim, vamos seguindo por grandes momentos

de prévia invisibilidade a qual só se faz visível quando a bolha estoura.

O projeto surgiu a partir do 4. jornal-laboratório Coque Vive, realizado por um convite de Ridivaldo Procópio, enquanto aluno do NEIMFA e integrante do MABI - ao sexto período do curso de Jornalismo da UFPE (2006.1)

Essas posições do Coque foram 5. relatadas inicialmente em Coque vive: uma investigação sobre o reper-tório sociohistórico de uma comunidade da periferia do Recife (PE) IN: Ju-ventudes do Nordeste do Brasil, da América Latina e do Caribe. Teresina: UFPI, 2009.

Juventud y cohesión social em 6. Iberoamérica – um modelo para armar. CEPAL. Chile: 2008.

VARJÃO, S. 7. Micropoderes, macro-violências. Salvador: EDUFBA, 2008. p.175

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ82 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 83

Como afi rma Rato8, do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis, a morte dos jovens

assassinados que não são pretos e pobres são lembradas a partir de seus nomes: Tarcila Gusmão,

Maria Eduarda, Rafael Dubeux. Como seria possível chorar pela morte dos que moram

na favela se esses mortos “não tiveram seus nomes divulgados na TV ou em nenhum outro

jornal; a única divulgação que tiveram foi apenas somando com o número para contagem

da estatística”. O único nome que recebem é o de “trafi cante” e “alma sebosa” em um

programa policial local.

Nesse trabalho, nos interessa justamente esses grandes momentos de invisibilidade, quando

a opinião pública está preocupada com outros assuntos e a mídia imersa no seu trabalho

cotidiano. Gostaríamos de evidenciar, desse modo, que, à fora as questões socioculturais

citadas anteriormente, existem contribuições específi cas das mídias à invisibilidade da morte

desses jovens. Nosso aporte metodológico para compreender estas contribuições midiáticas

tem aporte na teoria semiótica do texto (Barros, 2007). A semiótica nos ajudará a partir da

proposição de um “percurso capaz de gerar sentido”, no qual iremos compreender algumas

notícias a partir da sua materialidade: como elas dizem o que dizem.

OBJETIVIDADE E APARATO POLICIAL

Na seguinte matéria9, perceberemos o primeiro desses efeitos: o imbricamento da voz do

jornalista, que narra a matéria (seu enunciador) com a voz de um de seus personagens

(um ator do discurso), no caso, o ator Polícia, construído na matéria. Varjão (2008) já havia

chamado atenção para o que acontece quando uma relação nesse nível de promiscuidade

acontece: o discurso da Polícia, responsável historicamente por reprimir os negros e pobres,

ganha uma força objetiva extraordinária ao se somar ao discurso do jornalismo, cuja maior

característica na era industrial é a sua “objetividade” informacional.

OLHO: Polícia fecha cerco no Coque

TÍTULO: Megaoperação aconteceu, ontem, nas proximidades do Fórum do Recife

Trinta e duas pessoas detidas, duas armas, um veículo roubado e uma moto com placa fria.

Este foi o saldo da megaoperação policial realizada, ontem pela manhã, no Coque, na Ilha de

Joana Bezerra. Batizada de Paz na Comunidade, a operação envolveu 221 policiais militares e

civis armados com metralhadoras e cães farejadores que ocuparam as ruas do bairro por volta

das 6h procurando prender assaltantes, trafi cantes e pessoas em atitudes suspeitas. O diretor de

Polícia Especializada, Gilvan Cavalcanti, disse que o local foi escolhido por conta das tentativas

de assalto ocorridas nas proximidades do Fórum do Recife.

Com um mandado de busca e apreensão itinerante, os policiais, acom-

panhados pelo chefe da Polícia Civil, Aníbal Moura, e do comandante

da PM, coronel Weldon Nogueira, tinham autorização para revistar

qualquer casa ou estabelecimento. Os policiais apreenderam a menor,

A.C.F.S., 15 anos, dentro do barraco de Luciano Barbosa da Silva,

39, o Índio, acusado de trafi car drogas. A menor foi encaminhada

para o DPCA. O ex-presidiário Jamesson Ribeiro da Silva, 38, que

cumpriu pena de três anos por tráfi co de drogas, também foi preso,

quanto tentava fugir pelo rio Capibaribe. Segundo a Polícia, ele estava

armado com uma espingarda calibre 12, carregada. O ex-detento da

PAI, Gleidson Soares Norberto, 30, andava pelas ruas sem alvará de

soltura e foi levado para a Delegacia de Roubos e furtos.

Foi apreendida também uma espingarda calibre 36. Embora não tenham

ocorrido prisões de criminosos procurados, o chefe de Polícia Civil

aprovou o desfecho da operação. “Essa será a primeira de outras grandes

operações programadas para a Região Metropolitana e Interior”, anun-

ciou. Apesar de assustados, os moradores aprovaram a ação. O açougueiro

Marivaldo Pedrosa, 40 anos, que trabalha no local há dez, confessou

sentir-se mais seguro com a presença dos policiais. “Deveriam fazer isso

toda semana”, comentou. (VIDA URBANA, P.09, 29.03.2003)

Existem, nos textos, três níveis: fundamental, narrativo e discursivo. Cada

nível, a exceção do primeiro, que surge da própria ação do sujeito que

construiu o texto, é subsumido pelo anterior. Assim, percebemos que

o nível fundamental do texto acima, sua maior síntese, é a oposição

Liberdade e Prisão. A partir desses dois pólos, o texto começa a ganhar

sentido: existe um sujeito que tem uma missão: capturar outro sujeito,

pô-lo em prisão. Esse é o percurso do sujeito que caracteriza justamente

o nível narrativo do texto. Geralmente, o sujeito possui adjuvantes, fatores

que lhe ajudam a realizar sua empreitada e, ao fi nal da sua aventura, ele

recebe uma sanção – positiva ou negativa – de quem o incumbiu da sua

missão. O nível discursivo por sua vez, como iremos ver, é o momento

em que o texto vai ganhando forma: sabemos que o sujeito é a Polícia,

que existem os “bandidos criminosos” que ela deseja capturar. Existem,

portanto, temas: ação policial, segurança e fi guras: ex-detentos, armas,

delegados que encorpam a narrativa do sujeito, ancorada como vimos

nos valores antagônicos primitivos do texto: liberdade e prisão.

No texto, sabemos que “Polícia tenta capturar criminosos no Coque”.

Nesse caso, o objeto de valor da Polícia, isto é, o objeto pretendido é

RATO. 8. Vamos dar nome aos núme-ros. IN: Zine Desclassifi cados ano 2, nº5, dezembro de 2008.

As notícias analisadas no artigo 9. foram obtidas a partir da pesquisa “Coque Vive: uma investigação do re-pertório sociohistórico de uma comuni-dade da periferia do Recife”, realizada em 2008, por jovens universitários e jovens do Coque, no âmbito do projeto de extensão Coque Vive (UFPE: DCOM/PPGCOM) e do Coletivo Latino Americano de Jovens Promotores de Juventude, um projeto da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Na pesquisa, foram inventariadas mil noticias sobre o Coque publicadas, entre 1974 e 2006, pelo jornal Diário de Pernambuco.

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ82 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 83

Como afi rma Rato8, do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis, a morte dos jovens

assassinados que não são pretos e pobres são lembradas a partir de seus nomes: Tarcila Gusmão,

Maria Eduarda, Rafael Dubeux. Como seria possível chorar pela morte dos que moram

na favela se esses mortos “não tiveram seus nomes divulgados na TV ou em nenhum outro

jornal; a única divulgação que tiveram foi apenas somando com o número para contagem

da estatística”. O único nome que recebem é o de “trafi cante” e “alma sebosa” em um

programa policial local.

Nesse trabalho, nos interessa justamente esses grandes momentos de invisibilidade, quando

a opinião pública está preocupada com outros assuntos e a mídia imersa no seu trabalho

cotidiano. Gostaríamos de evidenciar, desse modo, que, à fora as questões socioculturais

citadas anteriormente, existem contribuições específi cas das mídias à invisibilidade da morte

desses jovens. Nosso aporte metodológico para compreender estas contribuições midiáticas

tem aporte na teoria semiótica do texto (Barros, 2007). A semiótica nos ajudará a partir da

proposição de um “percurso capaz de gerar sentido”, no qual iremos compreender algumas

notícias a partir da sua materialidade: como elas dizem o que dizem.

OBJETIVIDADE E APARATO POLICIAL

Na seguinte matéria9, perceberemos o primeiro desses efeitos: o imbricamento da voz do

jornalista, que narra a matéria (seu enunciador) com a voz de um de seus personagens

(um ator do discurso), no caso, o ator Polícia, construído na matéria. Varjão (2008) já havia

chamado atenção para o que acontece quando uma relação nesse nível de promiscuidade

acontece: o discurso da Polícia, responsável historicamente por reprimir os negros e pobres,

ganha uma força objetiva extraordinária ao se somar ao discurso do jornalismo, cuja maior

característica na era industrial é a sua “objetividade” informacional.

OLHO: Polícia fecha cerco no Coque

TÍTULO: Megaoperação aconteceu, ontem, nas proximidades do Fórum do Recife

Trinta e duas pessoas detidas, duas armas, um veículo roubado e uma moto com placa fria.

Este foi o saldo da megaoperação policial realizada, ontem pela manhã, no Coque, na Ilha de

Joana Bezerra. Batizada de Paz na Comunidade, a operação envolveu 221 policiais militares e

civis armados com metralhadoras e cães farejadores que ocuparam as ruas do bairro por volta

das 6h procurando prender assaltantes, trafi cantes e pessoas em atitudes suspeitas. O diretor de

Polícia Especializada, Gilvan Cavalcanti, disse que o local foi escolhido por conta das tentativas

de assalto ocorridas nas proximidades do Fórum do Recife.

Com um mandado de busca e apreensão itinerante, os policiais, acom-

panhados pelo chefe da Polícia Civil, Aníbal Moura, e do comandante

da PM, coronel Weldon Nogueira, tinham autorização para revistar

qualquer casa ou estabelecimento. Os policiais apreenderam a menor,

A.C.F.S., 15 anos, dentro do barraco de Luciano Barbosa da Silva,

39, o Índio, acusado de trafi car drogas. A menor foi encaminhada

para o DPCA. O ex-presidiário Jamesson Ribeiro da Silva, 38, que

cumpriu pena de três anos por tráfi co de drogas, também foi preso,

quanto tentava fugir pelo rio Capibaribe. Segundo a Polícia, ele estava

armado com uma espingarda calibre 12, carregada. O ex-detento da

PAI, Gleidson Soares Norberto, 30, andava pelas ruas sem alvará de

soltura e foi levado para a Delegacia de Roubos e furtos.

Foi apreendida também uma espingarda calibre 36. Embora não tenham

ocorrido prisões de criminosos procurados, o chefe de Polícia Civil

aprovou o desfecho da operação. “Essa será a primeira de outras grandes

operações programadas para a Região Metropolitana e Interior”, anun-

ciou. Apesar de assustados, os moradores aprovaram a ação. O açougueiro

Marivaldo Pedrosa, 40 anos, que trabalha no local há dez, confessou

sentir-se mais seguro com a presença dos policiais. “Deveriam fazer isso

toda semana”, comentou. (VIDA URBANA, P.09, 29.03.2003)

Existem, nos textos, três níveis: fundamental, narrativo e discursivo. Cada

nível, a exceção do primeiro, que surge da própria ação do sujeito que

construiu o texto, é subsumido pelo anterior. Assim, percebemos que

o nível fundamental do texto acima, sua maior síntese, é a oposição

Liberdade e Prisão. A partir desses dois pólos, o texto começa a ganhar

sentido: existe um sujeito que tem uma missão: capturar outro sujeito,

pô-lo em prisão. Esse é o percurso do sujeito que caracteriza justamente

o nível narrativo do texto. Geralmente, o sujeito possui adjuvantes, fatores

que lhe ajudam a realizar sua empreitada e, ao fi nal da sua aventura, ele

recebe uma sanção – positiva ou negativa – de quem o incumbiu da sua

missão. O nível discursivo por sua vez, como iremos ver, é o momento

em que o texto vai ganhando forma: sabemos que o sujeito é a Polícia,

que existem os “bandidos criminosos” que ela deseja capturar. Existem,

portanto, temas: ação policial, segurança e fi guras: ex-detentos, armas,

delegados que encorpam a narrativa do sujeito, ancorada como vimos

nos valores antagônicos primitivos do texto: liberdade e prisão.

No texto, sabemos que “Polícia tenta capturar criminosos no Coque”.

Nesse caso, o objeto de valor da Polícia, isto é, o objeto pretendido é

RATO. 8. Vamos dar nome aos núme-ros. IN: Zine Desclassifi cados ano 2, nº5, dezembro de 2008.

As notícias analisadas no artigo 9. foram obtidas a partir da pesquisa “Coque Vive: uma investigação do re-pertório sociohistórico de uma comuni-dade da periferia do Recife”, realizada em 2008, por jovens universitários e jovens do Coque, no âmbito do projeto de extensão Coque Vive (UFPE: DCOM/PPGCOM) e do Coletivo Latino Americano de Jovens Promotores de Juventude, um projeto da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Na pesquisa, foram inventariadas mil noticias sobre o Coque publicadas, entre 1974 e 2006, pelo jornal Diário de Pernambuco.

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ84 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 85

justamente a prisão. Ela faz parte da intenção do sujeito, é o valor almejado por este. Vemos

claramente que há um percurso em questão: a polícia tenta por outrem em prisão. No

entanto, é importante percebermos que ela não consegue realizar sua missão. Mas o fato

dela não ter conseguido prender os criminosos não é algo negativo: ao contrário, parece ter

um “saldo positivo’. Por que será que ocorre essa sanção positiva ao sujeito Polícia? Vamos

prestar mais atenção ao nível discursivo.

O Sujeito Polícia caça outro sujeito (“criminosos do Coque”). Ele possui força (“armados”)

e onipotência (“autorização para revistarem qualquer casa”) porque este outro sujeito

(“criminosos do Coque”) está envolvido em tentativas de assalto [“nas proximidades do

Fórum do Recife”]. O sujeito Polícia quer cumprir sua missão e para isso realiza várias

apreensões: “uma menor, um ex-presidiário, um ex-detento e uma espingarda”. Mesmo

não conseguindo apreender o que, de fato, era o seu objetivo, o sujeito Polícia aprova a

operação (“o chefe da Polícia Civil aprovou o desfecho da operação”) e indicou que outras

acontecerão na Região Metropolitana do Recife e no interior. Além disso, sequencialmente,

o sujeito Polícia é respaldado por um sujeito morador do Coque (“açougueiro”) que afi rma

a necessidade de acontecerem mais vezes (“semanalmente”) operações semelhantes.

Dado seu caráter informativo, o jornalismo utiliza-se da terceira pessoa do singular, verbos

de citação e convoca atores para respaldar a descrição do fato narrado. Ele não instaura

o eu ou o tu no texto, antes instaura um “ele”, disfarçando, portanto, o eu do jornalista

que de fato narra o texto. Na Semiótica, quando se instaura um ator (ou um personagem,

na linguagem jornalístiuca) no texto, por exemplo, a Polícia, temos uma concretização

fi gurativa e temática do enunciador. Em outras palavras, os atores do texto surgem para que

o enunciador-jornalista “fale”. Da mesma forma ocorre com o jornalista: a objetividade

do texto ocorre no momento em que se “mascara” de onde o jornalista está enunciando.

Descobrimos, desse modo, porque a sanção aos policiais é positiva. Ela é positiva porque o

jornalista concorda plenamente com a operação, isto é, se coloca em um lugar da enunciação

que é bastante próximo dos policiais. É desse local que o jornalista constrói as falas do Chefe

da Polícia civil e do açougueiro, investindo sobre elas e não sobre outras. Mas que outras

falas ele poderia investir? Na voz por exemplo que interroga porque se realizaram trinta

e duas apreensões se estava claro que não foram encontrados os criminosos do Coque? Se

“duas armas, um veiculo roubado e uma moto com placa fria” estivessem relacionadas a

apreensão de trinta e duas pessoas, estaríamos, com certeza, nos remetendo a uma quadrilha.

Parece que vamos encontrando um desdobramento da real missão do sujeito Polícia: ele,

inicialmente, possuía a missão de prender os bandidos procurados, como não os encontrou,

apreendeu trinta e duas pessoas aleatórias que só têm em comum o fato de estarem no

Coque (por isso entendemos a manchete da matéria: “Polícia fecha cerco no Coque”). Na

verdade, dada a falta de dados para essas apreensões e a tributação do

“cerco ao Coque”, vamos entendendo que a missão da Polícia era

justamente realizar qualquer ação repressiva no bairro. Seu objeto real

não era ir de encontro aos criminosos, mas demonstrar seu poder de

repreender de maneira aleatória, indistinta. Não foram encontrados

nem “assaltantes, trafi cantes e pessoas em atitudes suspeitas.” Mas sim,

todos os que possuíam atitudes suspeitas: menores, ex-detentos (nunca

ex-bandidos) e armas se juntam no mesmo “balaio” de preconceitos.

Todos ancorados no saldo positivo da operação, sancionado positiva-

mente pelo jornalista. A voz da mídia se mistura a voz do policial: a

objetividade do texto é ancorada na objetividade da operação policial.

Vejamos alguns recursos que ilustram essa relação:

Quantifi cação das coisas e pessoas apreendidas: armas, veículos •

roubados, moto e trinta e duas pessoas detidas.

Escolha dos termos: “saldo da operação” possui uma conota-•

ção positiva, uma vez que está relacionado à crédito, à reserva

de recursos por parte da polícia. É interessante perceber que

saldo é o contrário do termo baixa, corrente na linguagem

beligerante para tratar dos que são mortos nas guerras.

Demonstração do poder policial associando-o à associação •

positiva entre os termos “Batizada” e “Paz na Comunidade”

Esse mesmo poder envolver dimensões técnicas e estraté-•

gicas, a saber: 221 policiais militares e civis, armados com

metralhadoras, cães farejadores que ocuparam o bairro por

volta das 06h. Segundo a matéria, a ação policial é justifi cada

como reação às tentativas de assalto ocorridas nas proximi-

dades do Fórum do Recife. Para tanto, é convocado um ator

discursivo (diretor de Polícia Especializada) que justifi ca a

ação. Há também um poder de “revide”, respaldado pelo

poder legal uma vez que o sujeito polícia possui: “mandado

de busca e apreensão itinerantes para revistar qualquer área

ou estabelecimento”.

Como podemos perceber, o efeito de objetividade do texto está em

consonância direta com o efeito de respaldo do sujeito Política por

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ84 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 85

justamente a prisão. Ela faz parte da intenção do sujeito, é o valor almejado por este. Vemos

claramente que há um percurso em questão: a polícia tenta por outrem em prisão. No

entanto, é importante percebermos que ela não consegue realizar sua missão. Mas o fato

dela não ter conseguido prender os criminosos não é algo negativo: ao contrário, parece ter

um “saldo positivo’. Por que será que ocorre essa sanção positiva ao sujeito Polícia? Vamos

prestar mais atenção ao nível discursivo.

O Sujeito Polícia caça outro sujeito (“criminosos do Coque”). Ele possui força (“armados”)

e onipotência (“autorização para revistarem qualquer casa”) porque este outro sujeito

(“criminosos do Coque”) está envolvido em tentativas de assalto [“nas proximidades do

Fórum do Recife”]. O sujeito Polícia quer cumprir sua missão e para isso realiza várias

apreensões: “uma menor, um ex-presidiário, um ex-detento e uma espingarda”. Mesmo

não conseguindo apreender o que, de fato, era o seu objetivo, o sujeito Polícia aprova a

operação (“o chefe da Polícia Civil aprovou o desfecho da operação”) e indicou que outras

acontecerão na Região Metropolitana do Recife e no interior. Além disso, sequencialmente,

o sujeito Polícia é respaldado por um sujeito morador do Coque (“açougueiro”) que afi rma

a necessidade de acontecerem mais vezes (“semanalmente”) operações semelhantes.

Dado seu caráter informativo, o jornalismo utiliza-se da terceira pessoa do singular, verbos

de citação e convoca atores para respaldar a descrição do fato narrado. Ele não instaura

o eu ou o tu no texto, antes instaura um “ele”, disfarçando, portanto, o eu do jornalista

que de fato narra o texto. Na Semiótica, quando se instaura um ator (ou um personagem,

na linguagem jornalístiuca) no texto, por exemplo, a Polícia, temos uma concretização

fi gurativa e temática do enunciador. Em outras palavras, os atores do texto surgem para que

o enunciador-jornalista “fale”. Da mesma forma ocorre com o jornalista: a objetividade

do texto ocorre no momento em que se “mascara” de onde o jornalista está enunciando.

Descobrimos, desse modo, porque a sanção aos policiais é positiva. Ela é positiva porque o

jornalista concorda plenamente com a operação, isto é, se coloca em um lugar da enunciação

que é bastante próximo dos policiais. É desse local que o jornalista constrói as falas do Chefe

da Polícia civil e do açougueiro, investindo sobre elas e não sobre outras. Mas que outras

falas ele poderia investir? Na voz por exemplo que interroga porque se realizaram trinta

e duas apreensões se estava claro que não foram encontrados os criminosos do Coque? Se

“duas armas, um veiculo roubado e uma moto com placa fria” estivessem relacionadas a

apreensão de trinta e duas pessoas, estaríamos, com certeza, nos remetendo a uma quadrilha.

Parece que vamos encontrando um desdobramento da real missão do sujeito Polícia: ele,

inicialmente, possuía a missão de prender os bandidos procurados, como não os encontrou,

apreendeu trinta e duas pessoas aleatórias que só têm em comum o fato de estarem no

Coque (por isso entendemos a manchete da matéria: “Polícia fecha cerco no Coque”). Na

verdade, dada a falta de dados para essas apreensões e a tributação do

“cerco ao Coque”, vamos entendendo que a missão da Polícia era

justamente realizar qualquer ação repressiva no bairro. Seu objeto real

não era ir de encontro aos criminosos, mas demonstrar seu poder de

repreender de maneira aleatória, indistinta. Não foram encontrados

nem “assaltantes, trafi cantes e pessoas em atitudes suspeitas.” Mas sim,

todos os que possuíam atitudes suspeitas: menores, ex-detentos (nunca

ex-bandidos) e armas se juntam no mesmo “balaio” de preconceitos.

Todos ancorados no saldo positivo da operação, sancionado positiva-

mente pelo jornalista. A voz da mídia se mistura a voz do policial: a

objetividade do texto é ancorada na objetividade da operação policial.

Vejamos alguns recursos que ilustram essa relação:

Quantifi cação das coisas e pessoas apreendidas: armas, veículos •

roubados, moto e trinta e duas pessoas detidas.

Escolha dos termos: “saldo da operação” possui uma conota-•

ção positiva, uma vez que está relacionado à crédito, à reserva

de recursos por parte da polícia. É interessante perceber que

saldo é o contrário do termo baixa, corrente na linguagem

beligerante para tratar dos que são mortos nas guerras.

Demonstração do poder policial associando-o à associação •

positiva entre os termos “Batizada” e “Paz na Comunidade”

Esse mesmo poder envolver dimensões técnicas e estraté-•

gicas, a saber: 221 policiais militares e civis, armados com

metralhadoras, cães farejadores que ocuparam o bairro por

volta das 06h. Segundo a matéria, a ação policial é justifi cada

como reação às tentativas de assalto ocorridas nas proximi-

dades do Fórum do Recife. Para tanto, é convocado um ator

discursivo (diretor de Polícia Especializada) que justifi ca a

ação. Há também um poder de “revide”, respaldado pelo

poder legal uma vez que o sujeito polícia possui: “mandado

de busca e apreensão itinerantes para revistar qualquer área

ou estabelecimento”.

Como podemos perceber, o efeito de objetividade do texto está em

consonância direta com o efeito de respaldo do sujeito Política por

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ86 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 87

parte do jornalista-enunciador do texto. Esse efeito, ao contrário, não ocorre com relação

aos moradores do bairro: há, nesse ponto, uma ligeira confusão: trinta e duas pessoas presas;

uma menor, uma arma, um veículo roubado...Qual foi o motivo preciso da prisão do ex-

presidiário e do ex-detento? O que justifi ca a apreensão de uma “menor” em um barraco?

São vozes que fi cam soltas, ainda mais quando perguntamos sobre o motivo da apreensão

das trinta e duas pessoas. O que, para os moradores do bairro, querem dizer, efetivamente,

essa ação? Por que apenas a voz do açougueiro, à qual é atribuída uma historicidade

(“trabalha no local há dez anos”) é fi gurativizada enquanto os familiares das trinta e duas

pessoas permanecem fora do discurso? Nesse ponto vemos que o recurso da objetividade se

estilhaça do ponto de vista do Coque e se reorganiza do ponto de vista do sujeito Polícia.

É nesse estilhaçamento que as vidas vão escorrer, como veremos.

O VALOR MORTE E O VALOR VIDA

Vamos agora analisar a construção do valor morte e valor vida em uma matéria no jornal.

Os valores, dentro da Semiótica, são os objetos que, desejados pelo sujeito, o motivam a

iniciar sua aventura, construindo a narrativa. Variam sempre os percursos do sujeito para

conquistar o seu valor. Como vimos na matéria anterior, pode acontecer de o sujeito não

conseguir realizar sua ação, mas mesmo assim receber a sanção positiva. Existe, portanto,

sempre diferenças no percurso narrativo, como existem variações muito grandes dos níveis

fundamentais aos níveis narrativos e destes aos discursivos. Se, por exemplo, dissermos: João

quer uma batata. Por querer uma batata, João foi ao mercado, por ir ao mercado, João foi

atropelado. Estabelecemos uma relação de perplexidade uma vez que “batata” “mercado”

são da mesma ordem de sentido enquanto “atropelamento” não. Como podemos ver, o

simples percurso de João pode ser visto, em seu nível fundamental, justamente no pólo

“vida” versus “morte”, no qual o desejo ocupa um lugar ambíguo de vida e morte ao

mesmo tempo. No discurso, podemos investir mais: veremos a ingenuidade de João em seu

último dia, escolhendo os legumes sem muita atenção e os sinais que poderia ter visto de

que iria morrer, os quais, todavia ignorou ou não entendeu. Com certeza, construiríamos

assim um discurso bastante dramático da morte de João. Mas vamos à matéria, na qual,

justamente, examinaremos o objeto de valor “vida” e “morte” no discurso jornalístico a

partir do percurso do sujeito J.A.C.O. assassinado no Coque.

MANCHETE: Adolescente assassinado no Coque

O estudante J.A.C.O. conhecido como Gustinho, 16 anos, foi assassinado com vários tiros, na

madrugada de ontem, na rua Miranópolis, no Coque, bairro de São José. O adolescente morreu

na calçada da escola Anjo Gabriel. Ontem pela manhã, as pessoas

estavam assustadas com a violência na comunidade. Na madrugada

da última segunda-feira, o desempregado Roberto Cardoso Filho, o

Caveirinha, 28, foi arrastado de dentro da casa dele e assassinado com

mais de seis tiros na rua Ibitinga. Segundo os moradores, em menos

de um mês já morreram oito pessoas no bairro. A Polícia acredita que

os crimes tenham relação com o tráfi co de drogas na área.

O vigilante Fernando Antônio Carneiro de Oliveira, 32, pai do me-

nor, contou que o fi lho saiu de casa por volta das 18h30 da última

quinta-feira. “Ele disse que iria para a escola e de lá para a casa da

namorada que fi ca aqui no bairro”, informou. Segundo Fernando, o

rapaz estudava no Colégio Municipal Joaquim Nabuco, na rua Imperial.

O vigilante declarou desconhecer os motivos pelo qual o fi lho tenha

sido assassinado e disse ainda que o rapaz não era usuário de drogas.

“Nunca vi J. fumando um cigarro de maconha. Se ele era viciado eu

não sabia”, garantiu,.

O delegado Colombo Sieber, da Delegacia de Afogados, comentou

que a equipe de investigação esteve no local para ouvir as testemunhas.

Segundo ele, os policiais receberam a informação de que a vítima

costumava praticar pequenos furtos na área e que também era usuário

de maconha. Por enquanto, a Polícia ainda não tem pistas do autor do

homicídio. (VIDA URBANA, P.04, 22.05.1999)

No nível fundamental vemos que há uma oposição mínima entre Vida

e Morte. Mas o percurso do sujeito em questão parece fazer o caminho

da Vida para a Morte de uma maneira muito pouco “dramática”. Não

há vozes que “pleiteiem” os cadáveres, nem uma indignação que seja

por um caminho muito simples: escola-morte. O sujeito Roberto

Cardoso Filho parecia, todavia, que estava sentado no sofá de casa

desfrutando da sua única ocupação: esperar, pacientemente, a morte

chegar. Ao que indica, objeto valor “vida” é muito pouco desejado

por esses sujeitos. Será?

A matéria traz à tona um certo jovem, conhecido por Gustinho, foi

assassinado em um determinados tempo e local. Logo depois, outro

sujeito, também é separado do valor vida. Os moradores são convocados

para dizer que já aconteceram oito crimes na área e, por fi m, a polícia

afi rma que “os crimes tem relação com o tráfi co de drogas na área”.

Em seguida, o jornalista-enunciador polemiza convocando dois atores:

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ86 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 87

parte do jornalista-enunciador do texto. Esse efeito, ao contrário, não ocorre com relação

aos moradores do bairro: há, nesse ponto, uma ligeira confusão: trinta e duas pessoas presas;

uma menor, uma arma, um veículo roubado...Qual foi o motivo preciso da prisão do ex-

presidiário e do ex-detento? O que justifi ca a apreensão de uma “menor” em um barraco?

São vozes que fi cam soltas, ainda mais quando perguntamos sobre o motivo da apreensão

das trinta e duas pessoas. O que, para os moradores do bairro, querem dizer, efetivamente,

essa ação? Por que apenas a voz do açougueiro, à qual é atribuída uma historicidade

(“trabalha no local há dez anos”) é fi gurativizada enquanto os familiares das trinta e duas

pessoas permanecem fora do discurso? Nesse ponto vemos que o recurso da objetividade se

estilhaça do ponto de vista do Coque e se reorganiza do ponto de vista do sujeito Polícia.

É nesse estilhaçamento que as vidas vão escorrer, como veremos.

O VALOR MORTE E O VALOR VIDA

Vamos agora analisar a construção do valor morte e valor vida em uma matéria no jornal.

Os valores, dentro da Semiótica, são os objetos que, desejados pelo sujeito, o motivam a

iniciar sua aventura, construindo a narrativa. Variam sempre os percursos do sujeito para

conquistar o seu valor. Como vimos na matéria anterior, pode acontecer de o sujeito não

conseguir realizar sua ação, mas mesmo assim receber a sanção positiva. Existe, portanto,

sempre diferenças no percurso narrativo, como existem variações muito grandes dos níveis

fundamentais aos níveis narrativos e destes aos discursivos. Se, por exemplo, dissermos: João

quer uma batata. Por querer uma batata, João foi ao mercado, por ir ao mercado, João foi

atropelado. Estabelecemos uma relação de perplexidade uma vez que “batata” “mercado”

são da mesma ordem de sentido enquanto “atropelamento” não. Como podemos ver, o

simples percurso de João pode ser visto, em seu nível fundamental, justamente no pólo

“vida” versus “morte”, no qual o desejo ocupa um lugar ambíguo de vida e morte ao

mesmo tempo. No discurso, podemos investir mais: veremos a ingenuidade de João em seu

último dia, escolhendo os legumes sem muita atenção e os sinais que poderia ter visto de

que iria morrer, os quais, todavia ignorou ou não entendeu. Com certeza, construiríamos

assim um discurso bastante dramático da morte de João. Mas vamos à matéria, na qual,

justamente, examinaremos o objeto de valor “vida” e “morte” no discurso jornalístico a

partir do percurso do sujeito J.A.C.O. assassinado no Coque.

MANCHETE: Adolescente assassinado no Coque

O estudante J.A.C.O. conhecido como Gustinho, 16 anos, foi assassinado com vários tiros, na

madrugada de ontem, na rua Miranópolis, no Coque, bairro de São José. O adolescente morreu

na calçada da escola Anjo Gabriel. Ontem pela manhã, as pessoas

estavam assustadas com a violência na comunidade. Na madrugada

da última segunda-feira, o desempregado Roberto Cardoso Filho, o

Caveirinha, 28, foi arrastado de dentro da casa dele e assassinado com

mais de seis tiros na rua Ibitinga. Segundo os moradores, em menos

de um mês já morreram oito pessoas no bairro. A Polícia acredita que

os crimes tenham relação com o tráfi co de drogas na área.

O vigilante Fernando Antônio Carneiro de Oliveira, 32, pai do me-

nor, contou que o fi lho saiu de casa por volta das 18h30 da última

quinta-feira. “Ele disse que iria para a escola e de lá para a casa da

namorada que fi ca aqui no bairro”, informou. Segundo Fernando, o

rapaz estudava no Colégio Municipal Joaquim Nabuco, na rua Imperial.

O vigilante declarou desconhecer os motivos pelo qual o fi lho tenha

sido assassinado e disse ainda que o rapaz não era usuário de drogas.

“Nunca vi J. fumando um cigarro de maconha. Se ele era viciado eu

não sabia”, garantiu,.

O delegado Colombo Sieber, da Delegacia de Afogados, comentou

que a equipe de investigação esteve no local para ouvir as testemunhas.

Segundo ele, os policiais receberam a informação de que a vítima

costumava praticar pequenos furtos na área e que também era usuário

de maconha. Por enquanto, a Polícia ainda não tem pistas do autor do

homicídio. (VIDA URBANA, P.04, 22.05.1999)

No nível fundamental vemos que há uma oposição mínima entre Vida

e Morte. Mas o percurso do sujeito em questão parece fazer o caminho

da Vida para a Morte de uma maneira muito pouco “dramática”. Não

há vozes que “pleiteiem” os cadáveres, nem uma indignação que seja

por um caminho muito simples: escola-morte. O sujeito Roberto

Cardoso Filho parecia, todavia, que estava sentado no sofá de casa

desfrutando da sua única ocupação: esperar, pacientemente, a morte

chegar. Ao que indica, objeto valor “vida” é muito pouco desejado

por esses sujeitos. Será?

A matéria traz à tona um certo jovem, conhecido por Gustinho, foi

assassinado em um determinados tempo e local. Logo depois, outro

sujeito, também é separado do valor vida. Os moradores são convocados

para dizer que já aconteceram oito crimes na área e, por fi m, a polícia

afi rma que “os crimes tem relação com o tráfi co de drogas na área”.

Em seguida, o jornalista-enunciador polemiza convocando dois atores:

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ88 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 89

o pai do rapaz e o delegado Colombo Sieber. O primeiro afi rma que este era um rapaz

comum: ia da escola para a casa da namorada e, portanto, não sabia porque o fi lho havia

sido assassinado. O enunciador acrescenta que o pai do rapaz não via o fi lho usando drogas,

mas que mesmo assim havia a chance dele realmente ser (é possível, segundo o texto,

que o pai não soubesse). Já a segunda fonte, o delegado, afi rma que possui testemunhas

do contrário: a vítima era usuário de maconha e realizava pequenos furtos. Sua morte é,

portanto, justifi cável. Mas e as outras?

As outras oito mortes, parecem, estão de acordo com a morte do adolescente. De fato, não

é apenas ele que está morto, também morre um outro sujeito e, segundo os moradores,

morrem já oito pessoas. O sujeito Polícia decifra as mortes: estão relacionadas ao tráfi co

de drogas, à maconha e aos pequenos furtos. Esses, para o autor, são as fi gurativizações

dos “valores-morte” que justifi cam o percurso desses sujeitos em direção à morte e não

à vida. Nesse sentido, esta afi rmação do sujeito polícia resolve a questão: eles já estavam

condenados, não há surpresa. Foi apenas uma impressão equivocada (a do pai do rapaz

assassinado) que pôde acreditar que o fi lho deveria estar vivo. Ao fi nal, ao se evidenciar que

o adolescente era usuário de drogas e um pequeno ladrão, sua morte volta a ser justifi cada

(talvez necessária?).

Temos, já no primeiro parágrafo, uma escolha interessante por parte do jornalista-enunciador

que denota o seu investimento no personagem principal. Como se sabe, jovens que não

tenham atingido os 18 anos devem ser protegidos de exposição pública em quaisquer

circunstâncias. Mesmo assim, o enunciador revela o apelido desse estudante. A intenção,

contudo, não é avisar aos seus amigos de colégio que ele está morto. A intenção, segundo

podemos perceber ao longo de várias matérias coletadas, é identifi cá-lo como tantos outros

jovens e adultos que possuem um nome “próprio” ao se envolverem em atividades ilícitas.

Temos assim, Luciano Barbosa da Silva, o Índio (29/03/2003), Adriano Taenga e Nêgo Bi

(22/02/2005), Edvaldo Idalino da Conceição, o Boboy (03/01/1998), entre tantos outros.

Na verdade, essa é a única justifi cativa para a morte do adolescente estar lado a lado com a

de Roberto Cardoso Filho, o Caveirinha. São esses apostos que os unem, juntamente com

suas aproximações do objeto de valor “morte” e suas fi gurativizações. É válido lembrar que,

de fato, não estamos falando dos sujeitos reais, mas das fi guras construídas pelo jornalista-

enunciador. Aos sujeitos reais nunca teremos acesso, somente conseguiremos acessá-los a

partir da construção que faz o texto.

E a questão que se coloca perante nós nessa matéria não é a morte do jovem. Paira no texto

uma constatação de que esses jovens morrem mesmo, sempre morreram, nunca houve um

momento anterior no qual eles detivessem a vida. É como, se na verdade, não houvesse

alguém ali. Um personagem que não é personagem, uma fi gura que

não é fi gura, um nome que não é nome.

Para se constituir um ator real, “vivo” na linguagem, é necessário um

posicionamento de “sopro” de vida. Esse posicionamento diz respeito a

um investimento semântico e sintático do valor vida, uma competência

(atributos para ação) e uma performance (realização da ação) para este

valor por parte do enunciador. Para se morrer é preciso já haver existido.

Vamos agora ver o caso de outro jovem, que, diferente de Gustinho,

conseguiu ainda sobreviver um pouco mais antes de ser “devolvido”

ao mundo dos mortos.

MANCHETE: Jovem é morto dentro de um posto de saúde

INTERTÍTULO: Coque

Diogo Rodrigues da Silva, 15 anos, foi morto com um tiro na cabeça

dentro do posto municipal de saúde Perilo Pernambucano, no Coque. O

crime aconteceu ontem, às 09h30, minutos antes da chegada dos soldados

da Polícia Militar, que fazem a patrulha no local. Diogo havia acabado de

sair de uma consulta odontológica e ia se encontrar com a mãe, Jucélia

Rodrigues da Silva. O crime chocou funcionários do posto.

“Ouvimos o barulho e saímos para ver. Estamos assustadas. Foi a

maior violência que já vi” disse uma enfermeira, que preferiu não se

identifi car por medo. O rapaz foi atingido no pátio, a menos de dois

metros da porta principal. “E se o posto estivesse cheio? Poderia ter

acontecido uma tragédia”, comentou outra enfermeira. Ninguém

admitiu ter presenciado a morte.

O chefe da Guarda Municipal, coronel José Ramos, disse que durante

o dia são feitas rondas no local. “A patrulha estava a caminho quando a

morte aconteceu. Foi um caso planejado e difi cilmente conseguiríamos

evitar”, afi rmou Ramos.

Há um mês Diogo foi baleado, vítima de um atentado. O rapaz levou

dois tiros no tórax e fazia curativos no posto. “Ele tinha voltado para

casa poucos dias atrás, mas estava sendo ameaçado”, disse a irmã Girlene

Rodrigues. Segundo o comissário Marcos Vieira, do Departamento de

Operações da Polícia Civil, a morte foi um acerto de contas. Diogo

é suspeito de participar do assassinato de um vigilante há dois meses.

(VIDA URBANA, P.02, 14/10/2003)

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ88 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 89

o pai do rapaz e o delegado Colombo Sieber. O primeiro afi rma que este era um rapaz

comum: ia da escola para a casa da namorada e, portanto, não sabia porque o fi lho havia

sido assassinado. O enunciador acrescenta que o pai do rapaz não via o fi lho usando drogas,

mas que mesmo assim havia a chance dele realmente ser (é possível, segundo o texto,

que o pai não soubesse). Já a segunda fonte, o delegado, afi rma que possui testemunhas

do contrário: a vítima era usuário de maconha e realizava pequenos furtos. Sua morte é,

portanto, justifi cável. Mas e as outras?

As outras oito mortes, parecem, estão de acordo com a morte do adolescente. De fato, não

é apenas ele que está morto, também morre um outro sujeito e, segundo os moradores,

morrem já oito pessoas. O sujeito Polícia decifra as mortes: estão relacionadas ao tráfi co

de drogas, à maconha e aos pequenos furtos. Esses, para o autor, são as fi gurativizações

dos “valores-morte” que justifi cam o percurso desses sujeitos em direção à morte e não

à vida. Nesse sentido, esta afi rmação do sujeito polícia resolve a questão: eles já estavam

condenados, não há surpresa. Foi apenas uma impressão equivocada (a do pai do rapaz

assassinado) que pôde acreditar que o fi lho deveria estar vivo. Ao fi nal, ao se evidenciar que

o adolescente era usuário de drogas e um pequeno ladrão, sua morte volta a ser justifi cada

(talvez necessária?).

Temos, já no primeiro parágrafo, uma escolha interessante por parte do jornalista-enunciador

que denota o seu investimento no personagem principal. Como se sabe, jovens que não

tenham atingido os 18 anos devem ser protegidos de exposição pública em quaisquer

circunstâncias. Mesmo assim, o enunciador revela o apelido desse estudante. A intenção,

contudo, não é avisar aos seus amigos de colégio que ele está morto. A intenção, segundo

podemos perceber ao longo de várias matérias coletadas, é identifi cá-lo como tantos outros

jovens e adultos que possuem um nome “próprio” ao se envolverem em atividades ilícitas.

Temos assim, Luciano Barbosa da Silva, o Índio (29/03/2003), Adriano Taenga e Nêgo Bi

(22/02/2005), Edvaldo Idalino da Conceição, o Boboy (03/01/1998), entre tantos outros.

Na verdade, essa é a única justifi cativa para a morte do adolescente estar lado a lado com a

de Roberto Cardoso Filho, o Caveirinha. São esses apostos que os unem, juntamente com

suas aproximações do objeto de valor “morte” e suas fi gurativizações. É válido lembrar que,

de fato, não estamos falando dos sujeitos reais, mas das fi guras construídas pelo jornalista-

enunciador. Aos sujeitos reais nunca teremos acesso, somente conseguiremos acessá-los a

partir da construção que faz o texto.

E a questão que se coloca perante nós nessa matéria não é a morte do jovem. Paira no texto

uma constatação de que esses jovens morrem mesmo, sempre morreram, nunca houve um

momento anterior no qual eles detivessem a vida. É como, se na verdade, não houvesse

alguém ali. Um personagem que não é personagem, uma fi gura que

não é fi gura, um nome que não é nome.

Para se constituir um ator real, “vivo” na linguagem, é necessário um

posicionamento de “sopro” de vida. Esse posicionamento diz respeito a

um investimento semântico e sintático do valor vida, uma competência

(atributos para ação) e uma performance (realização da ação) para este

valor por parte do enunciador. Para se morrer é preciso já haver existido.

Vamos agora ver o caso de outro jovem, que, diferente de Gustinho,

conseguiu ainda sobreviver um pouco mais antes de ser “devolvido”

ao mundo dos mortos.

MANCHETE: Jovem é morto dentro de um posto de saúde

INTERTÍTULO: Coque

Diogo Rodrigues da Silva, 15 anos, foi morto com um tiro na cabeça

dentro do posto municipal de saúde Perilo Pernambucano, no Coque. O

crime aconteceu ontem, às 09h30, minutos antes da chegada dos soldados

da Polícia Militar, que fazem a patrulha no local. Diogo havia acabado de

sair de uma consulta odontológica e ia se encontrar com a mãe, Jucélia

Rodrigues da Silva. O crime chocou funcionários do posto.

“Ouvimos o barulho e saímos para ver. Estamos assustadas. Foi a

maior violência que já vi” disse uma enfermeira, que preferiu não se

identifi car por medo. O rapaz foi atingido no pátio, a menos de dois

metros da porta principal. “E se o posto estivesse cheio? Poderia ter

acontecido uma tragédia”, comentou outra enfermeira. Ninguém

admitiu ter presenciado a morte.

O chefe da Guarda Municipal, coronel José Ramos, disse que durante

o dia são feitas rondas no local. “A patrulha estava a caminho quando a

morte aconteceu. Foi um caso planejado e difi cilmente conseguiríamos

evitar”, afi rmou Ramos.

Há um mês Diogo foi baleado, vítima de um atentado. O rapaz levou

dois tiros no tórax e fazia curativos no posto. “Ele tinha voltado para

casa poucos dias atrás, mas estava sendo ameaçado”, disse a irmã Girlene

Rodrigues. Segundo o comissário Marcos Vieira, do Departamento de

Operações da Polícia Civil, a morte foi um acerto de contas. Diogo

é suspeito de participar do assassinato de um vigilante há dois meses.

(VIDA URBANA, P.02, 14/10/2003)

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ90 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 91

Identifi camos o objeto-valor vida a partir do momento em que se evidencia que Diogo

havia acabado de sair de uma consulta médica e estava indo encontrar sua mãe (Jucélia).

Ele, Diogo, já havia sofrido um atentado antes (sua sobrevivência, a mãe e os cuidadoso

médicos são uma marca do valor-vida). Sua irmã é convocada para dizer que ele estava

sendo ameaçado. A Polícia diz que poderia ter chegado, mas não chegou. No entanto,

Diogo também retorna ao objeto de valor morte quando, ao fi nal da matéria, o enunciador

convoca o ator discursivo “Comissário Marcos Vieira”, do “Departamento de Operações

da Polícia Civil” para afi rmar que a morte foi um acerto de contas (previamente, outro

Guarda já havia dito: “difi cilmente conseguiríamos evitar”) porque o rapaz era “suspeito de

participar do assassinato de um vigilante há dois meses”. Assim, muito embora identifi quemos

a construção do valor vida, ele, mais uma vez, é superado pela morte.

A morte de Diogo, contudo, ainda é mais “polêmica” que as mortes anteriores, graças a um

investimento em temas (o encontro com a mãe, o atentado anterior, os cuidados consigo) e

atores (a irmã), ainda se pode sentir mais a sua morte, mesmo que o enunciador não consiga

sustentá-la até o fi m. Na literatura, quando um personagem cheio do valor vida desaparece,

seja por que motivo for, o leitor sente aquela perda, remói um pouco as páginas para trás, busca

reencontrá-lo. Logo, podemos considerar que para que seja compreendida que a vida se foi, é

necessário que ela tenha surgido antes. A antinomia vida-morte ocorre dessa forma. Quando

apenas uma delas surge, não sentimos, de fato, a importância e o sentido da outra.

O terror engolfou-o, ali deitado no chão, com aquele tambor fúnebre batendo em seu íntimo.

Doeria morrer? Todas as vezes que julgara ter chegado a hora e escapara, ele nunca realmente

pensara na morte em si: sua vontade de viver sempre fora muito maior que o seu medo de

morrer10.

Podemos perceber que os personagens não se tornam importantes por uma característica

“per si”. Eles só podem passar a existir no momento em que o autor posiciona-os da forma

como lhe convier, em um certo desejo ou demonstração de vida. Essa consideração vale

para qualquer cenário, seja em relatos sobre guerras atômicas, fábulas infanto-juvenis ou

textos jornalísticos.

Dessa premissa, nos perguntamos: quais as conseqüências que uma abordagem discursiva

que privilegie a morte contra a vida traz para os jovens “pobres e pretos”? Estamos ou não

lidando com uma morte simbólica sem igual que perpassa a construção dessa juventude nos

momentos de “invisibilidade” das mídias? E mais: a partir do momento em que essas jovens

se tornam “objetivadas” pelo discurso do sujeito Polícia mesclado ao discurso jornalista, não

ganha ares de uma política de extermínio sistemática? Como afi rma Cordeiro (2007):

A hierarquia dos assuntos na mídia não seria motivo de grande

preocupação, caso não houvesse uma dupla circunstância: o lugar

privilegiado ocupado pela mídia na hierarquia da sociedade e a natureza

do papel desempenhado pelos meios de comunicação na atualidade.

(...) Trata-se de uma esfera capaz de acusar a existência de algo a um

número incontável de indivíduos que, de outro modo, não teriam

acesso àquela informação.

No âmbito do projeto de extensão Coque Vive, estamos cada vez mais

instigados a construir plataformas de “desconstrução” de estigmas. Na

verdade, plataformas nas quais os sujeitos do bairro elaboram suas falas

e as retransmitem para o entorno a partir de diferentes meios: fanzines,

vídeos, músicas, grafi tes11. É importante, contudo, destacar que esses

projetos só fazem sentido na confrontação mesmo com as mídias. Seria

bastante injusto dizer que os sujeitos do bairro do Coque desconhecem

o valor de suas vidas e desvalorizam a “objetividade” do discurso da

Polícia. Na verdade, é quando os grandes meios surgem, com grandes

signifi cações, que vale a pena se munir de estratégias de contraposi-

ção para evidenciar a vida pulsante e os discursos multifacetados da

comunidade do Coque.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, D.L.P. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2007.

CORDEIRO, T. Prefácio. In: Micropoderes, macroviolências. VARJÃO, S. Salvador:

EDUFBA, 2008.

FIORIN, J.L. Em busca do sentido. Estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008

CEPAL. Juventud y cohésion social em Iberoamérica – um modelo para armar. Naciones

Unidas: Santiago do Chile, 2008.

OLIVEIRA, L. Neo-Miséria e Neo-Nazismo - Uma revisita à crítica à razão dualista.

Política Hoje, Recife (PE), v. 5, p. 100-122, 1996

ROWLING, J.K. 10. Harry Potter e as relíquias da morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.537.

Estamos em processo de fi naliza-11. ção da Estação e Estúdio digital Coque Vive, entre outras ações de valorização da comunicação para a vida. Mais informações podem ser obtidas em www.coquevive.org

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ90 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 91

Identifi camos o objeto-valor vida a partir do momento em que se evidencia que Diogo

havia acabado de sair de uma consulta médica e estava indo encontrar sua mãe (Jucélia).

Ele, Diogo, já havia sofrido um atentado antes (sua sobrevivência, a mãe e os cuidadoso

médicos são uma marca do valor-vida). Sua irmã é convocada para dizer que ele estava

sendo ameaçado. A Polícia diz que poderia ter chegado, mas não chegou. No entanto,

Diogo também retorna ao objeto de valor morte quando, ao fi nal da matéria, o enunciador

convoca o ator discursivo “Comissário Marcos Vieira”, do “Departamento de Operações

da Polícia Civil” para afi rmar que a morte foi um acerto de contas (previamente, outro

Guarda já havia dito: “difi cilmente conseguiríamos evitar”) porque o rapaz era “suspeito de

participar do assassinato de um vigilante há dois meses”. Assim, muito embora identifi quemos

a construção do valor vida, ele, mais uma vez, é superado pela morte.

A morte de Diogo, contudo, ainda é mais “polêmica” que as mortes anteriores, graças a um

investimento em temas (o encontro com a mãe, o atentado anterior, os cuidados consigo) e

atores (a irmã), ainda se pode sentir mais a sua morte, mesmo que o enunciador não consiga

sustentá-la até o fi m. Na literatura, quando um personagem cheio do valor vida desaparece,

seja por que motivo for, o leitor sente aquela perda, remói um pouco as páginas para trás, busca

reencontrá-lo. Logo, podemos considerar que para que seja compreendida que a vida se foi, é

necessário que ela tenha surgido antes. A antinomia vida-morte ocorre dessa forma. Quando

apenas uma delas surge, não sentimos, de fato, a importância e o sentido da outra.

O terror engolfou-o, ali deitado no chão, com aquele tambor fúnebre batendo em seu íntimo.

Doeria morrer? Todas as vezes que julgara ter chegado a hora e escapara, ele nunca realmente

pensara na morte em si: sua vontade de viver sempre fora muito maior que o seu medo de

morrer10.

Podemos perceber que os personagens não se tornam importantes por uma característica

“per si”. Eles só podem passar a existir no momento em que o autor posiciona-os da forma

como lhe convier, em um certo desejo ou demonstração de vida. Essa consideração vale

para qualquer cenário, seja em relatos sobre guerras atômicas, fábulas infanto-juvenis ou

textos jornalísticos.

Dessa premissa, nos perguntamos: quais as conseqüências que uma abordagem discursiva

que privilegie a morte contra a vida traz para os jovens “pobres e pretos”? Estamos ou não

lidando com uma morte simbólica sem igual que perpassa a construção dessa juventude nos

momentos de “invisibilidade” das mídias? E mais: a partir do momento em que essas jovens

se tornam “objetivadas” pelo discurso do sujeito Polícia mesclado ao discurso jornalista, não

ganha ares de uma política de extermínio sistemática? Como afi rma Cordeiro (2007):

A hierarquia dos assuntos na mídia não seria motivo de grande

preocupação, caso não houvesse uma dupla circunstância: o lugar

privilegiado ocupado pela mídia na hierarquia da sociedade e a natureza

do papel desempenhado pelos meios de comunicação na atualidade.

(...) Trata-se de uma esfera capaz de acusar a existência de algo a um

número incontável de indivíduos que, de outro modo, não teriam

acesso àquela informação.

No âmbito do projeto de extensão Coque Vive, estamos cada vez mais

instigados a construir plataformas de “desconstrução” de estigmas. Na

verdade, plataformas nas quais os sujeitos do bairro elaboram suas falas

e as retransmitem para o entorno a partir de diferentes meios: fanzines,

vídeos, músicas, grafi tes11. É importante, contudo, destacar que esses

projetos só fazem sentido na confrontação mesmo com as mídias. Seria

bastante injusto dizer que os sujeitos do bairro do Coque desconhecem

o valor de suas vidas e desvalorizam a “objetividade” do discurso da

Polícia. Na verdade, é quando os grandes meios surgem, com grandes

signifi cações, que vale a pena se munir de estratégias de contraposi-

ção para evidenciar a vida pulsante e os discursos multifacetados da

comunidade do Coque.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, D.L.P. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2007.

CORDEIRO, T. Prefácio. In: Micropoderes, macroviolências. VARJÃO, S. Salvador:

EDUFBA, 2008.

FIORIN, J.L. Em busca do sentido. Estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008

CEPAL. Juventud y cohésion social em Iberoamérica – um modelo para armar. Naciones

Unidas: Santiago do Chile, 2008.

OLIVEIRA, L. Neo-Miséria e Neo-Nazismo - Uma revisita à crítica à razão dualista.

Política Hoje, Recife (PE), v. 5, p. 100-122, 1996

ROWLING, J.K. 10. Harry Potter e as relíquias da morte. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p.537.

Estamos em processo de fi naliza-11. ção da Estação e Estúdio digital Coque Vive, entre outras ações de valorização da comunicação para a vida. Mais informações podem ser obtidas em www.coquevive.org

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ92 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 93

VALE NETO, J.P.V; SANTOS, R.L; SILVA, R.F.S. XAVIER, S.S, LIMA, G.V., SILVA, M.C.F. Coque vive: uma investigação

sobre o repertório sociohistórico de uma comunidade da periferia do Recife (PE) IN: Juventudes do Nordeste do Brasil,

da América Latina e do Caribe. Teresina: UFPI, 2009.

SILVA, R.F.S. Coque vive: Notícias. Inventário. Disponível na Biblioteca Popular do Coque

VARJÃO, S. Micropoderes, macroviolências. Salvador: EDUFBA, 2008.

WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

A guerra e os criminosos

RIDIVALDO PROCÓPIO1

Vou discorrer sobre um assunto que é tão discutido nos meios acadê-micos quanto nas esquinas das ruas, bares, rodas de amigos e, sobretudo, nos meios de comunicação de massa: a violência nas favelas, mais especifi camente a letalidade. O parêntese para mídia é pelo fato de ela ter um papel importante nessa refl exão. Este texto parte não de uma experiência acadêmica, mas de experiências e vivências compartilhadas dentro do Coque e do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), que existe há cerca de dez anos e do qual faço parte. Para fi ns de ser melhor compreendido, dividi-o em duas partes, não distintas, porém trabalhadas em perspectivas diferentes. A primeira apresenta um olhar “de fora”, sobre como percebemos o problema em si, em um nível geral. A segunda apresenta uma visão mais ligada à vida (e à convivência com a morte) dentro da comunidade.

De que forma as instituições de uma sociedade, juntamente com ela, tornam possível tramar e tecer silenciosamente um “projeto” que dá cabo da vida de milhares de pessoas, e essa prática passar como “despercebida”? É como a vida transforma-se em tabu e a morte deixa de sê-lo. Pela quantidade e pela forma das mortes de pessoas a cada dia, parece que existe “uma causa” pela qual muitos morrem e não há remorsos. Ou, segundo alguns afi rmam, trata-se de uma Guerra.

É um dos fundadores do Movi-1. mento Arrebentando Barreiras Invisíveis, que atua no bairro do Coque. Participa também do co-letivo Desclassifi cados, que publica fanzines divulgando refl exões a partir da ótica de moradores das periferias recifenses. Participou de várias formações no campo dos movimentos sociais, possuindo especial vínculo com as organi-zações sociais Neimfa e Etapas.

“Em que tens fé? Nisto: que é necessário determinar

de novo o peso de todas as coisas”. NIETZSCHE

A VIDA QUE A MÍDIA NÃO VÊ92 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 93

VALE NETO, J.P.V; SANTOS, R.L; SILVA, R.F.S. XAVIER, S.S, LIMA, G.V., SILVA, M.C.F. Coque vive: uma investigação

sobre o repertório sociohistórico de uma comunidade da periferia do Recife (PE) IN: Juventudes do Nordeste do Brasil,

da América Latina e do Caribe. Teresina: UFPI, 2009.

SILVA, R.F.S. Coque vive: Notícias. Inventário. Disponível na Biblioteca Popular do Coque

VARJÃO, S. Micropoderes, macroviolências. Salvador: EDUFBA, 2008.

WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

A guerra e os criminosos

RIDIVALDO PROCÓPIO1

Vou discorrer sobre um assunto que é tão discutido nos meios acadê-micos quanto nas esquinas das ruas, bares, rodas de amigos e, sobretudo, nos meios de comunicação de massa: a violência nas favelas, mais especifi camente a letalidade. O parêntese para mídia é pelo fato de ela ter um papel importante nessa refl exão. Este texto parte não de uma experiência acadêmica, mas de experiências e vivências compartilhadas dentro do Coque e do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI), que existe há cerca de dez anos e do qual faço parte. Para fi ns de ser melhor compreendido, dividi-o em duas partes, não distintas, porém trabalhadas em perspectivas diferentes. A primeira apresenta um olhar “de fora”, sobre como percebemos o problema em si, em um nível geral. A segunda apresenta uma visão mais ligada à vida (e à convivência com a morte) dentro da comunidade.

De que forma as instituições de uma sociedade, juntamente com ela, tornam possível tramar e tecer silenciosamente um “projeto” que dá cabo da vida de milhares de pessoas, e essa prática passar como “despercebida”? É como a vida transforma-se em tabu e a morte deixa de sê-lo. Pela quantidade e pela forma das mortes de pessoas a cada dia, parece que existe “uma causa” pela qual muitos morrem e não há remorsos. Ou, segundo alguns afi rmam, trata-se de uma Guerra.

É um dos fundadores do Movi-1. mento Arrebentando Barreiras Invisíveis, que atua no bairro do Coque. Participa também do co-letivo Desclassifi cados, que publica fanzines divulgando refl exões a partir da ótica de moradores das periferias recifenses. Participou de várias formações no campo dos movimentos sociais, possuindo especial vínculo com as organi-zações sociais Neimfa e Etapas.

“Em que tens fé? Nisto: que é necessário determinar

de novo o peso de todas as coisas”. NIETZSCHE

A GUERRA E OS CRIMINOSOS94 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 95

Porém, como pode ser uma guerra e ao mesmo tempo um fato/fatum2 normal? Ou seria

a guerra a fatalidade da banalidade dos mortos sem valor, por ser narrada com displicência

como uma guerra de “criminosos”?

Gostaria de agrupar algumas refl exões em torno de um binômio e três implicações: morte/

guerra – etiqueta, narcotráfi co e controle demográfi co. Será abordada principalmente a

ótica da mídia (e das cabeças desavisadas), partindo do pressuposto que ela é o carro chefe

que imprime as opiniões públicas no que concerne principalmente à letalidade, com seu

discurso sobre, que dissimula e busca substituir o discurso daquilo mesmo que está em questão,

impedindo o discurso de, e produzindo ainda o não discurso (a invisibilidade, implicações

políticas e sociais desdenhadas numa sociedade que resolve seus problemas a partir de quem

controla o status quo).

Seria importante investigar de que forma uma parcela da sociedade transfi gura-se de invisíveis

a agentes protagonistas de uma Guerra (de criminosos), ou seja, como a forma de encarar

a situação de assassinatos e drogas na favela criminaliza a comunidade. Pela quantidade e

qualidade das notícias que fazem referência ao que chamam de criminalidade, estas são mais

uma forma de induzir valores tanto para quem mora como para quem se relaciona de alguma

forma com o bairro, representando dada situação como se fosse função da moradia e classe

social, construindo um discurso demasiado dispéptico que tenta se impor como soberano,

mas que não passa de uma verdade absurda.

MORTE/GUERRA E NARCOTRÁFICO

Essa relação simplista simula taxativamente uma causa, um porquê, uma justifi cativa para o

assassinato nas favelas. Essa tendência de reportar os fatos conjugando os assassinatos ao

narcotráfi co não seria um amortecedor e legitimador do impacto das “devidas” mortes

dos “envolvidos com drogas”? Ou, que seja visto de outra perspectiva, uma transgressão

culminada com a perda da vida não tiraria a responsabilidade da segurança pública e o valor

do sujeito como pessoa que, agora, pela dita conduta, é um criminoso e por isso merece

mesmo morrer? (Em linguagem teológica a ovelha que estava desgarrada e sua escolha culminaram

no mal).

Como se sustenta a superfi cialidade das reportagens que tratam desse assunto? As noticias

são todas (ou quase todas) pré-prontas, só com algumas lacunas a serem preenchidas como

nome, endereço e possíveis outras evidências do caso em si, sem contextualização. Como

poderiam acontecer tantos casos com a mesma e única causa e não ter uma política que

sanasse facilmente um problema como esse? Talvez não seja, portanto, propriamente um problema, mas um tipo de solução, como se tudo fi zesse parte de um jogo: tráfi co e morte de favelados. Esses – já que estão acostumados a outras irregularidades, sujeitos que têm seus direitos negligenciados e escamoteados – serão os protagonistas responsáveis diretos pelos assassinatos e pelas vendas de drogas.

Infere-se assim que a “verdade” de que os populares são os responsáveis pelos crimes está estruturada numa visão unilateral, que criminaliza os que pouco podem ou acham que pouco podem modifi car o que lhes é imputado. Contudo tal “verdade” oculta outros envolvidos, como a corrupção na polícia e a indústria de armas com sua produção legítima e sua venda e circulação não devidamente controladas; tais fatores são pouco mencionados, mas têm um importante papel nisso tudo. Todavia, não é interessante que sejam expostos ou “punidos” (um em benefício particular e direto do Estado, e o outro para assegurar o patrimônio privado) – muito

embora devessem ser ambos excomungados ou expropriados.

MORTE/GUERRA E ETIQUETA

Esta relação parte de uma atitude política (com efeitos psicológicos) que visa reifi car e/ou demonizar o agressor ou agredido morador das favelas, partindo de estigmas e conceitos pré-estabelecidos, partilhados num nível simbólico. “O criminoso, o trafi cante, o bandido, o alma sebosa” – são rótulos nos quais se marca e diminui os sujeitos. Qual é o sentimento recorrente quando se escuta a palavra delinqüente, marginal, assassino, ladrão, etc.? Não é uma repugnância misturada como um alívio de não o ser? É importante refl etir sobre as conseqüências de tais rotulações. Criminalizam-se as pessoas nem sempre em si mesmas, de maneira explícita, mas associando-as ao que é censurável – o assassinato e a droga, por exemplo –, apresentando isso como se fosse algo inerente a elas (“coisa de quem mora na favela”).

O mais emergencial e que requer uma tomada de posição mais imediata é a realidade de que ser favelado (no sentido lato) e estar na condição de contraventor da ordem é ser o “demônio” em quem se pode praticar ou exercer o poder na sua forma mais bruta, ou segundo Foucault

Destino2.

A GUERRA E OS CRIMINOSOS94 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 95

Porém, como pode ser uma guerra e ao mesmo tempo um fato/fatum2 normal? Ou seria

a guerra a fatalidade da banalidade dos mortos sem valor, por ser narrada com displicência

como uma guerra de “criminosos”?

Gostaria de agrupar algumas refl exões em torno de um binômio e três implicações: morte/

guerra – etiqueta, narcotráfi co e controle demográfi co. Será abordada principalmente a

ótica da mídia (e das cabeças desavisadas), partindo do pressuposto que ela é o carro chefe

que imprime as opiniões públicas no que concerne principalmente à letalidade, com seu

discurso sobre, que dissimula e busca substituir o discurso daquilo mesmo que está em questão,

impedindo o discurso de, e produzindo ainda o não discurso (a invisibilidade, implicações

políticas e sociais desdenhadas numa sociedade que resolve seus problemas a partir de quem

controla o status quo).

Seria importante investigar de que forma uma parcela da sociedade transfi gura-se de invisíveis

a agentes protagonistas de uma Guerra (de criminosos), ou seja, como a forma de encarar

a situação de assassinatos e drogas na favela criminaliza a comunidade. Pela quantidade e

qualidade das notícias que fazem referência ao que chamam de criminalidade, estas são mais

uma forma de induzir valores tanto para quem mora como para quem se relaciona de alguma

forma com o bairro, representando dada situação como se fosse função da moradia e classe

social, construindo um discurso demasiado dispéptico que tenta se impor como soberano,

mas que não passa de uma verdade absurda.

MORTE/GUERRA E NARCOTRÁFICO

Essa relação simplista simula taxativamente uma causa, um porquê, uma justifi cativa para o

assassinato nas favelas. Essa tendência de reportar os fatos conjugando os assassinatos ao

narcotráfi co não seria um amortecedor e legitimador do impacto das “devidas” mortes

dos “envolvidos com drogas”? Ou, que seja visto de outra perspectiva, uma transgressão

culminada com a perda da vida não tiraria a responsabilidade da segurança pública e o valor

do sujeito como pessoa que, agora, pela dita conduta, é um criminoso e por isso merece

mesmo morrer? (Em linguagem teológica a ovelha que estava desgarrada e sua escolha culminaram

no mal).

Como se sustenta a superfi cialidade das reportagens que tratam desse assunto? As noticias

são todas (ou quase todas) pré-prontas, só com algumas lacunas a serem preenchidas como

nome, endereço e possíveis outras evidências do caso em si, sem contextualização. Como

poderiam acontecer tantos casos com a mesma e única causa e não ter uma política que

sanasse facilmente um problema como esse? Talvez não seja, portanto, propriamente um problema, mas um tipo de solução, como se tudo fi zesse parte de um jogo: tráfi co e morte de favelados. Esses – já que estão acostumados a outras irregularidades, sujeitos que têm seus direitos negligenciados e escamoteados – serão os protagonistas responsáveis diretos pelos assassinatos e pelas vendas de drogas.

Infere-se assim que a “verdade” de que os populares são os responsáveis pelos crimes está estruturada numa visão unilateral, que criminaliza os que pouco podem ou acham que pouco podem modifi car o que lhes é imputado. Contudo tal “verdade” oculta outros envolvidos, como a corrupção na polícia e a indústria de armas com sua produção legítima e sua venda e circulação não devidamente controladas; tais fatores são pouco mencionados, mas têm um importante papel nisso tudo. Todavia, não é interessante que sejam expostos ou “punidos” (um em benefício particular e direto do Estado, e o outro para assegurar o patrimônio privado) – muito

embora devessem ser ambos excomungados ou expropriados.

MORTE/GUERRA E ETIQUETA

Esta relação parte de uma atitude política (com efeitos psicológicos) que visa reifi car e/ou demonizar o agressor ou agredido morador das favelas, partindo de estigmas e conceitos pré-estabelecidos, partilhados num nível simbólico. “O criminoso, o trafi cante, o bandido, o alma sebosa” – são rótulos nos quais se marca e diminui os sujeitos. Qual é o sentimento recorrente quando se escuta a palavra delinqüente, marginal, assassino, ladrão, etc.? Não é uma repugnância misturada como um alívio de não o ser? É importante refl etir sobre as conseqüências de tais rotulações. Criminalizam-se as pessoas nem sempre em si mesmas, de maneira explícita, mas associando-as ao que é censurável – o assassinato e a droga, por exemplo –, apresentando isso como se fosse algo inerente a elas (“coisa de quem mora na favela”).

O mais emergencial e que requer uma tomada de posição mais imediata é a realidade de que ser favelado (no sentido lato) e estar na condição de contraventor da ordem é ser o “demônio” em quem se pode praticar ou exercer o poder na sua forma mais bruta, ou segundo Foucault

Destino2.

A GUERRA E OS CRIMINOSOS96 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 97

se referindo às prisões: onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas dimensões mais

excessivas e se justifi car como poder moral (FOUCAULT, 1979). Quem não sabe o que a polícia

faz nas favelas? Quem não sabe o que as pessoas (os que não têm condições de pagar um

advogado) têm que passar nas delegacias? Ou o mais explícito, embora não legítimo: o que

acontece nas prisões?

A rotulação tem conseqüências ainda sobre aqueles possivelmente “batíveis” ou “matáveis”,

associando-os por analogia aos “criminosos”, olhando-os como “criminosos em potencial”. São

esses a terem suas imagens impregnadas de valores pejorativos, sujeitados a um determinismo

para “a” criminalidade que terão que enfrentar, seja numa entrevista de emprego ou numa

abordagem policial; no cerne de ser um potencial perigoso pelas evidências sexo (homem),

cor (negra), moradia (favela), um sujeito sem direitos/poder, “suposto” criminoso que pode

ser tratado como tal sem maiores comprovações, no caso de uma abordagem policial.

MORTE/GUERRA E CONTROLE DEMOGRÁFICO

Está no não-discurso – ou tão claro que cega os ouvidos dos mais atentos. A morte social

dos pobres é um controle demográfi co que se apóia nas “leis” e nas representações reportadas

como se fosse algo natural. A morte coletiva, reservada aos pobres, é separada da morte

individual. A morte individualizada dos ricos vem para chocar, enquanto a dos despossuídos

de valor monetário faz parte da vida (CHIAVENATO, 1998). Essa formulação presente

na mídia acaba produzindo uma inculcação/internalização de que a morte nas favelas é

inerente, normal, que não há como mudar, pois é uma situação “transcendental” na qual

não se pode intervir, o que a naturaliza.

Existe algum interesse político que assegure o direito à vida numa sociedade? Sim. Existe

algum interesse para que “algo” não elida esse interesse? Sim. E se algo (alguém, ou algum

grupo) visto como “predatório” a esse interesse também requeresse seu direito à vida,

teria voz e vez? Não. E se não tem voz e vez (direito de ter direito) como é que fi ca? Não

entra em questão, ou é tirado do assunto em função de um “bem maior”. Sendo assim, a

sociedade tem direito à vida, porém uma parte muito signifi cativa dela, o “resto”, tem “os

mesmos direitos” assegurados pela inobservância dos mesmos aparelhos que dizem existir

para assegurá-los? Esse mesmo “resto” é devidamente controlado (há uma quantidade a ser

“tolerada”) pelos aparelhos jurídicos que não funcionam nas resoluções dos problemas de

segurança pública, no que diz respeito às impunidades, por exemplo. Não que punir levaria

ao não-crime, mas a própria possibilidade de este existir seja um crime demasiadamente

não punido. Ou seja, sempre aparecem novas formas de punição ao

condenado, ou ao futuro ou potencial condenado, porém formas que

impediriam os crimes de existirem não são suscitadas como políticas

de segurança (pelo menos não com tanta veemência), quer dizer, lazer,

educação, cultura e iniciativas próprias de cada comunidade.

O formato vigente claríssimo de política de segurança pública são as

ações ostensivamente repressivas ao público que “se mata”. E esse “se

matar” é a expressão que mais se impõe como “livre iniciativa”: as

pessoas, o “resto”, os favelados, “se matam”, e por isso não há como

intervir ou se preocupar. Assim a sociedade se comporta, sem se justifi car.

Aliás, nem acham que têm porque se justifi car - “eles mesmo não se

matam?”. E esse “autodestruir” é bastante lucrativo: são menos quantos

nas escolas, nos hospitais, nas previdências sociais e outras seguridades

estatais? Quantos presidiários a menos a sociedade terá que sustentar?

Quantos enfi m, não vão deixar de ser “sustentados pelo governo”, além

de deixar de ser possíveis ameaças ao conjunto da sociedade?

Enquanto concatenações são suscitadas, políticas experimentadas,

corpos vão sendo contados aos milhares, ou vão sendo redistribuídos

nos espaços que estão sendo confi gurados para que os novos cheguem,

mais adaptáveis, seja para sair ou para fi car docilmente segundo as

exigências da sociedade. Quer dizer, existe um controle quantitativo para

as pessoas que vivem nas favelas, e essa mesma prática serve tanto para

não irem hostilizar os “individuais”, como para fi carem (comodamente

empilhados) docilmente em seus lugares e não haver gastos públicos,

estamos numa sociedade de consumo e não do desperdício (para os

dispendiosos claro).

“E que seja dito mais uma vez: opiniões públicas preguiças privadas.” NIETZSCHE

Esses três binômios e suas implicações são questões que infl uenciam a

normalização, criminalização e as elucidações mal formuladas quanto às

questões da letalidade nas favelas. Do nosso ponto de vista, percebemos

que há uma lógica aí; há pessoas que se pode matar, ou se deixa matar, e

locais isolados para isso. Aqui, introduzir o conceito de Outro pode ajudar

a compreender isso. Uma refl exão interessante é a de Tannus Mucchail

A GUERRA E OS CRIMINOSOS96 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 97

se referindo às prisões: onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas dimensões mais

excessivas e se justifi car como poder moral (FOUCAULT, 1979). Quem não sabe o que a polícia

faz nas favelas? Quem não sabe o que as pessoas (os que não têm condições de pagar um

advogado) têm que passar nas delegacias? Ou o mais explícito, embora não legítimo: o que

acontece nas prisões?

A rotulação tem conseqüências ainda sobre aqueles possivelmente “batíveis” ou “matáveis”,

associando-os por analogia aos “criminosos”, olhando-os como “criminosos em potencial”. São

esses a terem suas imagens impregnadas de valores pejorativos, sujeitados a um determinismo

para “a” criminalidade que terão que enfrentar, seja numa entrevista de emprego ou numa

abordagem policial; no cerne de ser um potencial perigoso pelas evidências sexo (homem),

cor (negra), moradia (favela), um sujeito sem direitos/poder, “suposto” criminoso que pode

ser tratado como tal sem maiores comprovações, no caso de uma abordagem policial.

MORTE/GUERRA E CONTROLE DEMOGRÁFICO

Está no não-discurso – ou tão claro que cega os ouvidos dos mais atentos. A morte social

dos pobres é um controle demográfi co que se apóia nas “leis” e nas representações reportadas

como se fosse algo natural. A morte coletiva, reservada aos pobres, é separada da morte

individual. A morte individualizada dos ricos vem para chocar, enquanto a dos despossuídos

de valor monetário faz parte da vida (CHIAVENATO, 1998). Essa formulação presente

na mídia acaba produzindo uma inculcação/internalização de que a morte nas favelas é

inerente, normal, que não há como mudar, pois é uma situação “transcendental” na qual

não se pode intervir, o que a naturaliza.

Existe algum interesse político que assegure o direito à vida numa sociedade? Sim. Existe

algum interesse para que “algo” não elida esse interesse? Sim. E se algo (alguém, ou algum

grupo) visto como “predatório” a esse interesse também requeresse seu direito à vida,

teria voz e vez? Não. E se não tem voz e vez (direito de ter direito) como é que fi ca? Não

entra em questão, ou é tirado do assunto em função de um “bem maior”. Sendo assim, a

sociedade tem direito à vida, porém uma parte muito signifi cativa dela, o “resto”, tem “os

mesmos direitos” assegurados pela inobservância dos mesmos aparelhos que dizem existir

para assegurá-los? Esse mesmo “resto” é devidamente controlado (há uma quantidade a ser

“tolerada”) pelos aparelhos jurídicos que não funcionam nas resoluções dos problemas de

segurança pública, no que diz respeito às impunidades, por exemplo. Não que punir levaria

ao não-crime, mas a própria possibilidade de este existir seja um crime demasiadamente

não punido. Ou seja, sempre aparecem novas formas de punição ao

condenado, ou ao futuro ou potencial condenado, porém formas que

impediriam os crimes de existirem não são suscitadas como políticas

de segurança (pelo menos não com tanta veemência), quer dizer, lazer,

educação, cultura e iniciativas próprias de cada comunidade.

O formato vigente claríssimo de política de segurança pública são as

ações ostensivamente repressivas ao público que “se mata”. E esse “se

matar” é a expressão que mais se impõe como “livre iniciativa”: as

pessoas, o “resto”, os favelados, “se matam”, e por isso não há como

intervir ou se preocupar. Assim a sociedade se comporta, sem se justifi car.

Aliás, nem acham que têm porque se justifi car - “eles mesmo não se

matam?”. E esse “autodestruir” é bastante lucrativo: são menos quantos

nas escolas, nos hospitais, nas previdências sociais e outras seguridades

estatais? Quantos presidiários a menos a sociedade terá que sustentar?

Quantos enfi m, não vão deixar de ser “sustentados pelo governo”, além

de deixar de ser possíveis ameaças ao conjunto da sociedade?

Enquanto concatenações são suscitadas, políticas experimentadas,

corpos vão sendo contados aos milhares, ou vão sendo redistribuídos

nos espaços que estão sendo confi gurados para que os novos cheguem,

mais adaptáveis, seja para sair ou para fi car docilmente segundo as

exigências da sociedade. Quer dizer, existe um controle quantitativo para

as pessoas que vivem nas favelas, e essa mesma prática serve tanto para

não irem hostilizar os “individuais”, como para fi carem (comodamente

empilhados) docilmente em seus lugares e não haver gastos públicos,

estamos numa sociedade de consumo e não do desperdício (para os

dispendiosos claro).

“E que seja dito mais uma vez: opiniões públicas preguiças privadas.” NIETZSCHE

Esses três binômios e suas implicações são questões que infl uenciam a

normalização, criminalização e as elucidações mal formuladas quanto às

questões da letalidade nas favelas. Do nosso ponto de vista, percebemos

que há uma lógica aí; há pessoas que se pode matar, ou se deixa matar, e

locais isolados para isso. Aqui, introduzir o conceito de Outro pode ajudar

a compreender isso. Uma refl exão interessante é a de Tannus Mucchail

A GUERRA E OS CRIMINOSOS98 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 99

(2004), a qual afi rma que pode-se entender o outro em seu sentido estrito: “aquilo que dentro

do quadro de uma cultura a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simultaneamente

interna e estrangeira(...); aquilo que pertence à nossa cultura (...), mas é constantemente

ameaçado de submissão aos critérios do ‘mesmo’, precisamente porque é ameaçador; aquilo

que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser, portanto, excluído (para

conjurar o perigo interior), encerrando-o porém (para o reduzir a alteridade)”.

Ou seja, não se pode afi rmar de maneira alguma que há pessoas e locais aos quais se possam

admitir legalmente infrações delituosas, independentemente de geografi a ou classe. Mas nos

bairros de periferia, onde sujeitos são enclausurados, seja por descaso e interesses políticos, seja

lá qual for o interesse-poder-valor que esteja agindo diretamente ou ofuscando o entendimento

para melhores análises, o fato é que “forças” sempre estão agindo para que seja banalizada a

morte nos locais de moradia de pessoas que tem um perfi l “diferente”. As pessoas que não

se enquadram pelo seu perfi l de moradia e de renda (com outros “agravantes” históricos

como cor de pele) se caracterizam como esse Outro interno à sociedade.

“Necessitamos de uma crítica dos valores morais e, antes de tudo, deve-se discutir o valor desses valores, e por isso é totalmente necessário conhecer as condições e os ambientes em que nasceram, em favor dos quais se desenvolveram e nos quais se deformaram.” NIETZSCHE

Um percurso histórico e político é necessário para chegar até esse “deixar” matar/morrer. Histórico

porque a situação, tal como está, é proveniente do paradigma vigente do que seja o normal/

sociável às demandas, dando assim continuidade ao sistema; político porque houve mecanismos,

práticas, saberes para ser o que é hoje. Isto é, as relações que se estabelecem de hierarquias do que

seja valoroso, verdadeiro, salutar, normal; segmentos que possuam direito legítimo ao uso da força;

de lei; que todos somados são “peças de jogos” políticos e ideológicos.

Não custa lembrar o que eu li numa capa de jornal o ano passado: “Casa Forte sofre com a

violência”. Casa Forte é um bairro de Pernambuco que não possui estigma de violento (como

acontece com o Coque, por exemplo) e sim status de bairro nobre, por isso a reportagem

não cunhou o que chama de Guerra, mas sim que sofre com a violência. Quando a situação

é a mesma em bairros pobres, não obstante, foi outra coisa, embora seja o mesmo fato que

acontece nas favelas, mas nestas talvez haja um “segredo” que seja sui generis. E tal segredo

não passa de um “enquadramento”; não passa de uma forma de pensar perversa que diz: “essa

situação é a sobrevivência dos mais competentes; se você que não conseguiu se enquadrar e

ainda quer causar danos a outrem, não merece estar nos melhores dos mundos possíveis”.

O discurso hegemônico formula uma “teoria” que fundamenta a suposta Guerra, limitando-a

só às favelas, sem reconhecer que é um problema do todo, de toda a sociedade. A mídia

recorre a essas inferências apressadas e sensacionalistas, e as utiliza

para formatar suas teorias-título – reportagens que se limitam a dar

explicações que não passam do título – baseadas nesse discurso pré-

pronto, generalizante, que ajuda apenas a criar um clima de pânico geral.

Freqüentemente se transferem leituras lidas ao contexto do Rio de

Janeiro e São Paulo para interpretar a realidade de outros lugares, o que

gera problemas, pois a pressa e a pouca responsabilidade na abordagem

apenas servem pra retroalimentar o estado de coisas.

É mais fácil e cômodo forjar um público, um bode expiatório que se

qualifi ca como objeto a ser descartado e devidamente rotulado para que

não possa sair da vista das políticas de segurança; caracterizados com os

estereótipos “especializados” de quem são os criminosos (onde moram,

renda, sexo, idade, cor da pele, modo de se vestir) e que “produzem” a

questão da insegurança (com uma grave lacuna explicativa, como não há

meio de retrucação, já que a seta da verdade vai de quem fala para quem

ouve); das estatísticas que vêm engordando os números do IML e do

possível medo de se alastrar para a vida comedida burguesa. Nessas abor-

dagens fi cam ausentes explicações históricas, socioeconômicas e culturais,

que quando aparecem é apenas para reforçar e justifi car o mecanismo do

estigma. Mal recebem espaço as formulações que apontem alternativas

reais e comprometidas à situação de descaso para com educação, saúde,

lazer, cultura, segurança e outros bens sociais. Como resultado desse jogo

(jogo não, embasamento teórico), está formado o discurso da Guerra.

Porém, tenho outra hipótese para interpretar esse combate. Não como

se induz a pensar, como uma guerra propriamente dita, pois para isso

não há parâmetros que comprovem esse estado, a não ser talvez os

números. Mas se pode pensar “a” guerra não como um símbolo criado

que quer se impor como representante da “realidade” e que não se

deve levar a sério, e sim trabalhar com outra perspectiva.

Digamos que as formas mais recorrentes de abordagem: tráfi co, crimi-

nosos, bandidos, disputas de território e outros elementos de mesma

natureza restrita, podem ser vistos como uma forma arcaica de ataque

antes do confl ito frontal ou para evitá-lo, como técnica de enfraque-

cimento do oponente. Forma embasada e disfarçada, para me utilizar

de uma lógica nietzscheana, em um autodeclarado ideal de tornar a

A GUERRA E OS CRIMINOSOS98 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 99

(2004), a qual afi rma que pode-se entender o outro em seu sentido estrito: “aquilo que dentro

do quadro de uma cultura a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simultaneamente

interna e estrangeira(...); aquilo que pertence à nossa cultura (...), mas é constantemente

ameaçado de submissão aos critérios do ‘mesmo’, precisamente porque é ameaçador; aquilo

que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho, a ser, portanto, excluído (para

conjurar o perigo interior), encerrando-o porém (para o reduzir a alteridade)”.

Ou seja, não se pode afi rmar de maneira alguma que há pessoas e locais aos quais se possam

admitir legalmente infrações delituosas, independentemente de geografi a ou classe. Mas nos

bairros de periferia, onde sujeitos são enclausurados, seja por descaso e interesses políticos, seja

lá qual for o interesse-poder-valor que esteja agindo diretamente ou ofuscando o entendimento

para melhores análises, o fato é que “forças” sempre estão agindo para que seja banalizada a

morte nos locais de moradia de pessoas que tem um perfi l “diferente”. As pessoas que não

se enquadram pelo seu perfi l de moradia e de renda (com outros “agravantes” históricos

como cor de pele) se caracterizam como esse Outro interno à sociedade.

“Necessitamos de uma crítica dos valores morais e, antes de tudo, deve-se discutir o valor desses valores, e por isso é totalmente necessário conhecer as condições e os ambientes em que nasceram, em favor dos quais se desenvolveram e nos quais se deformaram.” NIETZSCHE

Um percurso histórico e político é necessário para chegar até esse “deixar” matar/morrer. Histórico

porque a situação, tal como está, é proveniente do paradigma vigente do que seja o normal/

sociável às demandas, dando assim continuidade ao sistema; político porque houve mecanismos,

práticas, saberes para ser o que é hoje. Isto é, as relações que se estabelecem de hierarquias do que

seja valoroso, verdadeiro, salutar, normal; segmentos que possuam direito legítimo ao uso da força;

de lei; que todos somados são “peças de jogos” políticos e ideológicos.

Não custa lembrar o que eu li numa capa de jornal o ano passado: “Casa Forte sofre com a

violência”. Casa Forte é um bairro de Pernambuco que não possui estigma de violento (como

acontece com o Coque, por exemplo) e sim status de bairro nobre, por isso a reportagem

não cunhou o que chama de Guerra, mas sim que sofre com a violência. Quando a situação

é a mesma em bairros pobres, não obstante, foi outra coisa, embora seja o mesmo fato que

acontece nas favelas, mas nestas talvez haja um “segredo” que seja sui generis. E tal segredo

não passa de um “enquadramento”; não passa de uma forma de pensar perversa que diz: “essa

situação é a sobrevivência dos mais competentes; se você que não conseguiu se enquadrar e

ainda quer causar danos a outrem, não merece estar nos melhores dos mundos possíveis”.

O discurso hegemônico formula uma “teoria” que fundamenta a suposta Guerra, limitando-a

só às favelas, sem reconhecer que é um problema do todo, de toda a sociedade. A mídia

recorre a essas inferências apressadas e sensacionalistas, e as utiliza

para formatar suas teorias-título – reportagens que se limitam a dar

explicações que não passam do título – baseadas nesse discurso pré-

pronto, generalizante, que ajuda apenas a criar um clima de pânico geral.

Freqüentemente se transferem leituras lidas ao contexto do Rio de

Janeiro e São Paulo para interpretar a realidade de outros lugares, o que

gera problemas, pois a pressa e a pouca responsabilidade na abordagem

apenas servem pra retroalimentar o estado de coisas.

É mais fácil e cômodo forjar um público, um bode expiatório que se

qualifi ca como objeto a ser descartado e devidamente rotulado para que

não possa sair da vista das políticas de segurança; caracterizados com os

estereótipos “especializados” de quem são os criminosos (onde moram,

renda, sexo, idade, cor da pele, modo de se vestir) e que “produzem” a

questão da insegurança (com uma grave lacuna explicativa, como não há

meio de retrucação, já que a seta da verdade vai de quem fala para quem

ouve); das estatísticas que vêm engordando os números do IML e do

possível medo de se alastrar para a vida comedida burguesa. Nessas abor-

dagens fi cam ausentes explicações históricas, socioeconômicas e culturais,

que quando aparecem é apenas para reforçar e justifi car o mecanismo do

estigma. Mal recebem espaço as formulações que apontem alternativas

reais e comprometidas à situação de descaso para com educação, saúde,

lazer, cultura, segurança e outros bens sociais. Como resultado desse jogo

(jogo não, embasamento teórico), está formado o discurso da Guerra.

Porém, tenho outra hipótese para interpretar esse combate. Não como

se induz a pensar, como uma guerra propriamente dita, pois para isso

não há parâmetros que comprovem esse estado, a não ser talvez os

números. Mas se pode pensar “a” guerra não como um símbolo criado

que quer se impor como representante da “realidade” e que não se

deve levar a sério, e sim trabalhar com outra perspectiva.

Digamos que as formas mais recorrentes de abordagem: tráfi co, crimi-

nosos, bandidos, disputas de território e outros elementos de mesma

natureza restrita, podem ser vistos como uma forma arcaica de ataque

antes do confl ito frontal ou para evitá-lo, como técnica de enfraque-

cimento do oponente. Forma embasada e disfarçada, para me utilizar

de uma lógica nietzscheana, em um autodeclarado ideal de tornar a

A GUERRA E OS CRIMINOSOS100 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 101

humanidade (a favela, nesse caso) melhor. Chamar alguém de criminoso é mais uma forma de debilitá-lo, torná-lo doente e talvez o único meio de enfraquecê-lo. E outro motivo, como a conseqüência da generalização de rótulos pejorativos, é mais um item negativo no que diz respeito à concorrência para ter um cargo no mercado de trabalho.

Talvez esse grupo seja temido por uma progressiva e maior concorrência com a elite, tão temerária de perder espaço em cargos públicos, mercado, e que pode ser ainda pior para eles, como exemplo a ocupação das terras (como o caso dos sem-terras e sua criminalização simbólica e efetiva). Essa guerra, sim, nesse nível de dominação, é travada à base de muita

tecnologia e pouca visibilidade.

“Liberalismo não é uma ideologia, é sim uma tecnologia de poder.”FOUCAULT/ ALEXANDRE FREITAS

A própria mídia representa a dizimação lenta e periódica dos moradores das favelas e

conseqüentemente o prelúdio da derrubada dos espaços populares como objeto descartável

que não merece maiores atenções. O que se usa como justifi cativa é a própria situação de

pobreza em que os indivíduos se encontram, além do que o discurso hegemônico se encar-

regou de cunhar como algumas verdades: a guerra e os criminosos. Ou seja, criminalizando

todos aqueles que estão à margem, ao lado, excluídos, não devidamente socializados ou sem

condições para tal; os que supostamente não se adaptaram a dada circunstância (e como

poderia um ser que está à margem, sem que lhe sejam oferecidas as devidas condições,

competir com outro que já faz parte do processo, já está devidamente incluído?) os que

estão fadados a serem guerrilheiros de uma “guerra” de envolvidos com o tráfi co de drogas ou

de brigas entre gangues.

O domínio de veracidade que a mídia possui e sua possibilidade de instituir uma interpretação

de um problema social e fazer “todo mundo” acolher é uma coisa que defi nitivamente

precisa ser repensada ou monitorada, possível apenas quando a sociedade civil (e não apenas

os empresários) tiver direito/poder efetivo sobre as questões da comunicação no Brasil, é

claro. Não que a mídia seja o pivô dos problemas, mas por estar dentro do regime social de

produção da verdade (FOUCAULT, 2006), por ser mediadora e quase formada da opinião

pública, é estrategicamente importante refl etir sobre as verdades que anda produzindo e

suas conseqüências sociais.

Por fi m, temos alguns bons problemas: as verdades criadas pela mídia, formadas e aceitas

“hegemonicamente”; o valor das pessoas pesadas monetariamente, o que se exerce pela lógica

do mercado; e as implicações desses dois problemas anteriores, cujos responsáveis ninguém

aponta, ou o responsável é ninguém, o que equivaleria dizer que todos o são. Porém, aqui

não se trata de problemas como colocar o lixo no lixo, diminuir o

consumo de CO2, utilizar materiais descartáveis, aumentar ou diminuir

o consumo de bens duráveis. Aqui é um problema que tem que ser

encarado e superado de pessoas para pessoas, e não como vem sendo

feito: de normais para anormais, de socializados para animalizados;

contendo, empilhando, rotulando, dominando, amedrontando, punindo

de diversas formas e por fi m... matando.

HÁ VIDA ALÉM DA MORTE NAS FAVELAS

Morar no Coque, como talvez em outras favelas de Pernambuco, é

quem sabe estar no meio de várias possibilidades impostas e arbitrárias

de ser e estar. Como a fi nalidade do presente texto é trabalhar a questão

da letalidade, tentarei discorrer sobre como é possível “estar/viver” a

partir do tema em questão.

As problemáticas que dizem respeito ao tema na comunidade vêm sendo

resolvidas pelos moradores pelo poder do cada um se segurar no seu lugar

(trabalho, casa) ou rearranjar-se em outro. Enquanto o “mundo” quer que

a favela seja isso ou aquilo, ela, numa dinâmica não programada (por

paradoxal que possa parecer), se reformula e tenta se adaptar sempre

que pressões surgem. Por mais prosaico que pareça: uma pessoa diz a

um policial “sim senhor” quando a situação pediria outra coisa; uma

mãe mal estudou numa escola mas manda seus fi lhos para lá também

(talvez no raciocínio “não presta, mas é necessário”); diariamente n

pessoas vão ao posto médico às quatro horas da manhã para serem

medicadas; crianças dividem uma praça com porcos e cavalos para

“empinar” suas “chalopinhas”; ou ainda, para conseguir um emprego

as pessoas “mudam” de endereço (pois a comunidade está impregnada

por um estigma de violência).

Tais situações, por mais “corriqueiras” que pareçam, mostram que

no mínimo há outras realidades na favela e muito diferentes daquelas

reportadas pelos meios de comunicação de massa. Estes tentam tornar

banal o valor das pessoas que morrem assassinadas e criminalizar o

espaço onde elas estão inseridas. E não se dão conta de que mesmo

A GUERRA E OS CRIMINOSOS100 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 101

humanidade (a favela, nesse caso) melhor. Chamar alguém de criminoso é mais uma forma de debilitá-lo, torná-lo doente e talvez o único meio de enfraquecê-lo. E outro motivo, como a conseqüência da generalização de rótulos pejorativos, é mais um item negativo no que diz respeito à concorrência para ter um cargo no mercado de trabalho.

Talvez esse grupo seja temido por uma progressiva e maior concorrência com a elite, tão temerária de perder espaço em cargos públicos, mercado, e que pode ser ainda pior para eles, como exemplo a ocupação das terras (como o caso dos sem-terras e sua criminalização simbólica e efetiva). Essa guerra, sim, nesse nível de dominação, é travada à base de muita

tecnologia e pouca visibilidade.

“Liberalismo não é uma ideologia, é sim uma tecnologia de poder.”FOUCAULT/ ALEXANDRE FREITAS

A própria mídia representa a dizimação lenta e periódica dos moradores das favelas e

conseqüentemente o prelúdio da derrubada dos espaços populares como objeto descartável

que não merece maiores atenções. O que se usa como justifi cativa é a própria situação de

pobreza em que os indivíduos se encontram, além do que o discurso hegemônico se encar-

regou de cunhar como algumas verdades: a guerra e os criminosos. Ou seja, criminalizando

todos aqueles que estão à margem, ao lado, excluídos, não devidamente socializados ou sem

condições para tal; os que supostamente não se adaptaram a dada circunstância (e como

poderia um ser que está à margem, sem que lhe sejam oferecidas as devidas condições,

competir com outro que já faz parte do processo, já está devidamente incluído?) os que

estão fadados a serem guerrilheiros de uma “guerra” de envolvidos com o tráfi co de drogas ou

de brigas entre gangues.

O domínio de veracidade que a mídia possui e sua possibilidade de instituir uma interpretação

de um problema social e fazer “todo mundo” acolher é uma coisa que defi nitivamente

precisa ser repensada ou monitorada, possível apenas quando a sociedade civil (e não apenas

os empresários) tiver direito/poder efetivo sobre as questões da comunicação no Brasil, é

claro. Não que a mídia seja o pivô dos problemas, mas por estar dentro do regime social de

produção da verdade (FOUCAULT, 2006), por ser mediadora e quase formada da opinião

pública, é estrategicamente importante refl etir sobre as verdades que anda produzindo e

suas conseqüências sociais.

Por fi m, temos alguns bons problemas: as verdades criadas pela mídia, formadas e aceitas

“hegemonicamente”; o valor das pessoas pesadas monetariamente, o que se exerce pela lógica

do mercado; e as implicações desses dois problemas anteriores, cujos responsáveis ninguém

aponta, ou o responsável é ninguém, o que equivaleria dizer que todos o são. Porém, aqui

não se trata de problemas como colocar o lixo no lixo, diminuir o

consumo de CO2, utilizar materiais descartáveis, aumentar ou diminuir

o consumo de bens duráveis. Aqui é um problema que tem que ser

encarado e superado de pessoas para pessoas, e não como vem sendo

feito: de normais para anormais, de socializados para animalizados;

contendo, empilhando, rotulando, dominando, amedrontando, punindo

de diversas formas e por fi m... matando.

HÁ VIDA ALÉM DA MORTE NAS FAVELAS

Morar no Coque, como talvez em outras favelas de Pernambuco, é

quem sabe estar no meio de várias possibilidades impostas e arbitrárias

de ser e estar. Como a fi nalidade do presente texto é trabalhar a questão

da letalidade, tentarei discorrer sobre como é possível “estar/viver” a

partir do tema em questão.

As problemáticas que dizem respeito ao tema na comunidade vêm sendo

resolvidas pelos moradores pelo poder do cada um se segurar no seu lugar

(trabalho, casa) ou rearranjar-se em outro. Enquanto o “mundo” quer que

a favela seja isso ou aquilo, ela, numa dinâmica não programada (por

paradoxal que possa parecer), se reformula e tenta se adaptar sempre

que pressões surgem. Por mais prosaico que pareça: uma pessoa diz a

um policial “sim senhor” quando a situação pediria outra coisa; uma

mãe mal estudou numa escola mas manda seus fi lhos para lá também

(talvez no raciocínio “não presta, mas é necessário”); diariamente n

pessoas vão ao posto médico às quatro horas da manhã para serem

medicadas; crianças dividem uma praça com porcos e cavalos para

“empinar” suas “chalopinhas”; ou ainda, para conseguir um emprego

as pessoas “mudam” de endereço (pois a comunidade está impregnada

por um estigma de violência).

Tais situações, por mais “corriqueiras” que pareçam, mostram que

no mínimo há outras realidades na favela e muito diferentes daquelas

reportadas pelos meios de comunicação de massa. Estes tentam tornar

banal o valor das pessoas que morrem assassinadas e criminalizar o

espaço onde elas estão inseridas. E não se dão conta de que mesmo

A GUERRA E OS CRIMINOSOS102 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 103

sob condições adversas as pessoas continuam a viver suas vidas. Pessoas estão trabalhando; estão procurando, por mais difíceis que sejam as condições, por melhorias de vida; freqüentando a escola – embora sem ter maiores expectativas –; desfrutando de seu lazer mesmo sem espaços apropriados; e (o que acho uma das piores estratégias possíveis) chegando a negar onde moram (que implica uma boa parte do que lhes caracteriza como pessoa) para conseguir um trabalho.

A partir de duas palavras – a selva e o mercado – gostaria de descrever um pouco de como é viver com a violência letal no Coque. A primeira diz muito do que se imagina e acontece no cotidiano do Coque, e os poderes ditos legítimos ou não, que são aqui praticados. O poder que é exercido pelos responsáveis diretos da segurança pública na favela não parece que é empregado como se eles fossem domadores ou caçadores de animais? No imaginário do Recife e da própria favela as pessoas são representadas da seguinte maneira: quando morto, o morador é rotulado sem maiores repulsas de “abatido”; pela quantidade, perdem seus nomes e começam a ser “numerifi cados”. Esse paradigma de se trabalhar na ótica de que a favela é uma selva propaga a idéia de que nela impera a lei do mais forte/armado, o que se refl ete diretamente nas atitudes dos moradores e em quem trabalha ou passa pelas proximidades ou áreas que têm uma infl uência direta ou indireta. E, por fi m, no que diz respeito à selva, essa indução de viver sob a representação de ser o violento ou o próximo vitimado pode ser a regra, mas o ser de fato, em função disso, não é a lei, como se é direcionado a pensar.

A selva/favela, no entanto, supostamente tem uma coisa que deveria “normalizar” e “incluir” os indivíduos num coletivo mais amplo e a ter uma relação mais amistosa com a sociedade em geral: o consumo. Será mesmo? É no mercado que as pessoas, não só na favela como na maioria dos lugares, começam a dizer “eu existo” (por conseqüência de um “eu tenho”). Porém, quem não tem como consumir, não existe? Estará na selva? E quem está na selva não acharia que consumindo determinado produto estaria “socializado”? Sim! Não é difícil constatar que nas famosas brigas de gangue há sempre uma briga simbólica de quem tem mais, sejam armas, roupas ou o que der alguma aparente ostentação por algum produto vigente do mercado. Esse ter para ser é uma arte de subserviência a uma lógica de exploração (no caso, os consumidores hiperestimulados são os explorados) que gera disputa e discórdia.

O empreendimento do mercado é uma das grandes agressões atuais, principalmente quando vende a violência e banaliza. Os crimes que acontecem nas comunidades foram transformados em produto de venda. Mas se os conceitos associados a esse simples comércio (de “informação”, por exemplo) forem matar, ou ter indiscriminadamente? Se esse comércio propaga que fulano matou para não morrer, ou um outro roubou para não ser tachado de “comédia”, transformando esses sujeitos em protagonistas de um grande espetáculo lucrativo? E se a partir disso se construir a impressão de que essa é a “única” forma desses sujeitos se verem na mídia? Tais agravantes, quando

acontecem, de quem é responsabilidade? Quem será suscetível de sanções e punições?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIAVENATO, Júlio José. A morte: uma abordagem sociocultural. São Paulo: Moderna,

1998.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

__________________.A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2006

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Escala, 2006.

__________________.Humano, demasiado humano. São Paulo: Escala, 2006.

__________________.Genealogia da moral. São Paulo: Escala, 2008.

MUCCHAIL, Tannus. Foucault Simplesmente. Textos reunidos. São Paulo: Loyola,

2004.

A GUERRA E OS CRIMINOSOS102 REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 103

sob condições adversas as pessoas continuam a viver suas vidas. Pessoas estão trabalhando; estão procurando, por mais difíceis que sejam as condições, por melhorias de vida; freqüentando a escola – embora sem ter maiores expectativas –; desfrutando de seu lazer mesmo sem espaços apropriados; e (o que acho uma das piores estratégias possíveis) chegando a negar onde moram (que implica uma boa parte do que lhes caracteriza como pessoa) para conseguir um trabalho.

A partir de duas palavras – a selva e o mercado – gostaria de descrever um pouco de como é viver com a violência letal no Coque. A primeira diz muito do que se imagina e acontece no cotidiano do Coque, e os poderes ditos legítimos ou não, que são aqui praticados. O poder que é exercido pelos responsáveis diretos da segurança pública na favela não parece que é empregado como se eles fossem domadores ou caçadores de animais? No imaginário do Recife e da própria favela as pessoas são representadas da seguinte maneira: quando morto, o morador é rotulado sem maiores repulsas de “abatido”; pela quantidade, perdem seus nomes e começam a ser “numerifi cados”. Esse paradigma de se trabalhar na ótica de que a favela é uma selva propaga a idéia de que nela impera a lei do mais forte/armado, o que se refl ete diretamente nas atitudes dos moradores e em quem trabalha ou passa pelas proximidades ou áreas que têm uma infl uência direta ou indireta. E, por fi m, no que diz respeito à selva, essa indução de viver sob a representação de ser o violento ou o próximo vitimado pode ser a regra, mas o ser de fato, em função disso, não é a lei, como se é direcionado a pensar.

A selva/favela, no entanto, supostamente tem uma coisa que deveria “normalizar” e “incluir” os indivíduos num coletivo mais amplo e a ter uma relação mais amistosa com a sociedade em geral: o consumo. Será mesmo? É no mercado que as pessoas, não só na favela como na maioria dos lugares, começam a dizer “eu existo” (por conseqüência de um “eu tenho”). Porém, quem não tem como consumir, não existe? Estará na selva? E quem está na selva não acharia que consumindo determinado produto estaria “socializado”? Sim! Não é difícil constatar que nas famosas brigas de gangue há sempre uma briga simbólica de quem tem mais, sejam armas, roupas ou o que der alguma aparente ostentação por algum produto vigente do mercado. Esse ter para ser é uma arte de subserviência a uma lógica de exploração (no caso, os consumidores hiperestimulados são os explorados) que gera disputa e discórdia.

O empreendimento do mercado é uma das grandes agressões atuais, principalmente quando vende a violência e banaliza. Os crimes que acontecem nas comunidades foram transformados em produto de venda. Mas se os conceitos associados a esse simples comércio (de “informação”, por exemplo) forem matar, ou ter indiscriminadamente? Se esse comércio propaga que fulano matou para não morrer, ou um outro roubou para não ser tachado de “comédia”, transformando esses sujeitos em protagonistas de um grande espetáculo lucrativo? E se a partir disso se construir a impressão de que essa é a “única” forma desses sujeitos se verem na mídia? Tais agravantes, quando

acontecem, de quem é responsabilidade? Quem será suscetível de sanções e punições?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIAVENATO, Júlio José. A morte: uma abordagem sociocultural. São Paulo: Moderna,

1998.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

__________________.A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2006

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Escala, 2006.

__________________.Humano, demasiado humano. São Paulo: Escala, 2006.

__________________.Genealogia da moral. São Paulo: Escala, 2008.

MUCCHAIL, Tannus. Foucault Simplesmente. Textos reunidos. São Paulo: Loyola,

2004.

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE 105

OBSERVATÓRIO DE FAVELAS

COORDENAÇÃO GERAL

Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz Barbosa

COORDENAÇÃO EXECUTIVA

Elionalva Sousa e Silva Erasmo CastroFernando Lannes Fernandes

COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL

Marianna AraujoVitor Monteiro de Castro

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDA • RECIFE

ORGANIZAÇÃO DA PUBLICAÇÃO

Fernando Lannes FernandesAna Flavia FerrazAna Carolina Senna

EQUIPE

COORDENAÇÃO

Raquel Willadino Andréa Rodriguez

SUPERVISÃO TÉCNICA

José Lopes da CunhaAna Flavia Ferraz

AVALIAÇÃO E MONITORAMENTO

Solange Dacach

Amanda Senna Ana Carolina Senna Ana Flavia Ferraz Valéria Albuquerque

PARCERIA

Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Patrícia Oliveira

C R É D I T O S

REDES D

E VALO

RIZAÇÃ

O D

A VID

A R

ECIFE

REDES DE VALORIZAÇÃO DA VIDAR E C I F E

observatório de favelas

O Observatório é uma organização social de pesquisa, consultoria e ação pública dedicada à produção de conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e os fenômenos urbanos. Foi criado em 2001, e em 2003 tornou-se uma organização da sociedade civil de interesse público (oscip), com sede na Maré, Rio de Janeiro.

É missão do Observatório de Favelas elaborar conceitos, projetos, programas e práticas que contribuam na formulação e avaliação de políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades sociais. Para isso, o Observatório atua em três áreas distintas: Comunicação e Cultura, Desenvolvimento Territorial e Direitos Humanos.

Para o Observatório, Direitos Humanos são parâmetros éticos, jurídicos e políticos, construídos por lutas sociais emancipatórias. É a partir dessa concepção que o Observatório de Favelas busca desenvolver seus projetos e propor metodologias que sirvam de exemplo para a redução da violência e contribuam para a valorização da vida.

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