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Indústria Cultural O ntem dei com uma notícia rara: na sexta- -feira da Paixão e durante a encenação da crucificação, em Nova Hartz-RS, depois do episódio em que o soldado romano abre o peito de Cristo com sua lança, um homem subiu no palco com um capacete na mão e, literalmen- te, desceu porrada sobre o soldado romano[1]. Imediatamente, lembrei das ruas da infância e da adolescência, na Semana Santa, quando in- variavelmente eu fazia o papel da mãe de João e Tiago, mulher de Zebedeu[2]. Lembro da túnica e das sandálias, da emoção, da “grande sacada” da montagem: a cena congelada enquanto um Jesus de língua presa dizia a famosa frase que SOBRE A MEMÓRIA TRÁGICA Reflexão de Domingo de Aleluia anuncia seu destino: “Ora, chegou o dia dos pães ázimos”[3], e o difícil era controlar o riso e me manter “congelada”. Lembro da imensa tristeza pelo inevitável que “ia” acontecer. Poucos anos depois, quando meu sentimen- to religioso arrefeceu, comecei a ter um sonho recorrente: estava, num curioso anacronismo, na ilha de Prinkipo, visitando León Trotsky; esbaforida, descia uma escada e tentava alertar Natália Sedova do iminente atentado contra seu companheiro; ela estava ocupada demais para prestar atenção e o assassinato era perpetrado com anos de antecipação, ainda na Turquia. Muitos anos depois (peço desculpas pelo salto elíptico), me debruço sobre a memória das ditaduras do Cone Sul. A desgraça nos visita uma e outra vez como representação do passado, como relato trágico contra cujo desenlace nada podemos fazer. A luta contra o ocultamento, que os vencedores tentaram, captura grande parte das nossas energias O AUTOR DESSA AÇÃO PARECE NOS SUGERIR QUE A REPRESENTAÇÃO TRÁGICA PRECISA SER SUPERADA PELA AÇÃO EFETIVA. EM LUGAR DE NOS CONFORMAR COM O RITUAL MEMORIALÍSTICO, É PRECISO MUDAR A HISTÓRIA © Thinkstock 40 SILVIA BEATRIZ ADOUE UNESPCIÊNCIA | JUNHO 2018

Reflexão de Domingo de Aleluia - unespciencia.com.br · da sedução hipnótica da representação trágica, como um convite a romper o círculo vicioso da repetição. A representação

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Indústria Cultural

Ontem dei com uma notícia rara: na sexta- -feira da Paixão e durante a encenação da

crucificação, em Nova Hartz-RS, depois do episódio em que o soldado romano abre o peito de Cristo com sua lança, um homem subiu no palco com um capacete na mão e, literalmen-te, desceu porrada sobre o soldado romano[1].

Imediatamente, lembrei das ruas da infância e da adolescência, na Semana Santa, quando in-variavelmente eu fazia o papel da mãe de João e Tiago, mulher de Zebedeu[2]. Lembro da túnica e das sandálias, da emoção, da “grande sacada” da montagem: a cena congelada enquanto um Jesus de língua presa dizia a famosa frase que

SOBRE A MEMÓRIA TRÁGICA

Reflexão de Domingo de Aleluiaanuncia seu destino: “Ora, chegou o dia dos pães ázimos”[3], e o difícil era controlar o riso e me manter “congelada”. Lembro da imensa tristeza pelo inevitável que “ia” acontecer.

Poucos anos depois, quando meu sentimen-to religioso arrefeceu, comecei a ter um sonho recorrente: estava, num curioso anacronismo, na ilha de Prinkipo, visitando León Trotsky; esbaforida, descia uma escada e tentava alertar Natália Sedova do iminente atentado contra seu companheiro; ela estava ocupada demais para prestar atenção e o assassinato era perpetrado com anos de antecipação, ainda na Turquia.Muitos anos depois (peço desculpas pelo salto elíptico), me debruço sobre a memória das ditaduras do Cone Sul. A desgraça nos visita uma e outra vez como representação do passado, como relato trágico contra cujo desenlace nada podemos fazer. A luta contra o ocultamento, que os vencedores tentaram, captura grande parte das nossas energias

O AUTOR DESSA AÇÃO PARECE NOS SUGERIR QUE A REPRESENTAÇÃO TRÁGICA PRECISA SER SUPERADA PELA AÇÃO EFETIVA. EM LUGAR DE NOS CONFORMAR COM O RITUAL MEMORIALÍSTICO, É PRECISO MUDAR A HISTÓRIA

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para não esquecer o que aconteceu. Mas a reivindicação de nossos heróis trágicos não deixa de nos levar a um certo apaziguamento. A substituição da luta por justiça, pela luta pela memória. E os massacres continuam se acumulando como camadas geológicas.

Recentemente, as mídias hegemônicas tenta-ram creditar a execução de Marielle Franco no Rio de Janeiro na conta geral “da violência”[4]. Mesmo assim, depois desse esforço frustrado, o episódio é encapsulado pelas mesmas mí-dias, e isolado da sua causalidade. Enquanto a história da Marielle vira ícone internacional, os massacres se sucedem: o mesmo território, os mesmos executores, os mesmos mandantes, as mesmas determinações[5].

Também na Palestina ocupada, uma no-va carnificina acontece e, em plena Semana Santa, as tropas israelenses matam 16 jovens se manifestando[6], utilizando a justificativa moral de um outro massacre também recordado

Silvia Beatriz Adoue é professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

REFERÊNCIAS

[1] Ver <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/homem-invade-encenacao-da-paixao-de-cristo-e-agride-soldado-romano-com-capacete-em-nova-hartz-no-rs.ghtml>. Acessado em: 1/4/2018, às 14:07.

[2] Mateus (10:2).

[3] Lucas (22:7).

[4] Ver <http://contrahegemoniaweb.com.ar/la-ejecucion-de-marielle-quien-como-por-que/>. Acessado em: 1/4/2018, às 15:37.

[5] Ver <https://g1.globo.com/google/amp/https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/mortos-em-chacina-davam-aulas-para-criancas-de-8-a-10-anos-em-area-comum-onde-foram-mortos-em-marica-no-rj.ghtml?__twitter_impression=true> e <https://extra.globo.com/casos-de-policia/morador-morto-na-rocinha-comia-em-marmita-quando-foi-baleado-no-rosto-22514563.html>. Acessados em: 1/4/2018, às 15:43.

[6] Ver <http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/03/30/palestina-el-ejercito-de-israel-asesina-a-7-palestins-y-deja-cientos-de-herids-en-la-frontera-con-gaza/>. Acessado em: 1/4/2018, às 15:52.

[7] <https://oglobo.globo.com/mundo/policia-investiga-antissemitismo-em-assassinato-de-idosa-em-paris-22528192>. Acessado em: 1/4/2018, às 15:56.

simultaneamente em Paris, após assassinato antissemita contra sobrevivente dos campos de concentração nazistas[7].

O círculo neurótico nos aprisiona. Mas eis que vem um cara, do nada, provavelmente sem qualquer vínculo com esta reflexão (ou sim, nada posso afirmar, ele se desculpou, foi um surto, nada lembra do acontecido), e nos tira da sedução hipnótica da representação trágica, como um convite a romper o círculo vicioso da repetição. A representação trágica precisa ser superada pela ação efetiva, parece nos sugerir. Em lugar de nos conformarmos com o ritual memorialístico, é preciso mudar a história.

41JUNHO 2018 | UNESPCIÊNCIA