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Regionalismo, historiografia e memória: Sepé Tiaraju em dois tempos Resumo. O artigo explora o modo como diferentes processos e atores laboram a formalização de memórias coletivas, focalizando especificamente as relações entre regionalismo e identidade nacional no Rio Grande do Sul. Retomando posições divergentes quanto ao “peso” das Missões na configuração da memória local, examina formas oficiais e subterrâneas de representação da ancestralidade gaúcha. Ambas se encontram vinculadas a um discurso regionalista patenteado, de um lado, pela ação do Estado em suas relações com os intelectuais e, de outro, por sujeitos identificados com a arte popular e com o tradicionalismo. Finalmente, chama a atenção para as relações de interdependência entre História e memória, observando que o conhecimento acerca das arenas de luta pelo controle da cultura e dos imaginários permite recolocar a questão dos estilos de construção historiográfica, relacionando-as à identidade social do historiador. Palavras-chave: Memória. Historiografia. Regionalismo. Rio Grande do Sul. *Letícia Borges Nedel é Mestre em História Social pela UFRJ e Doutoranda em História na UnB. Este texto aborda parte do processo de construção de uma memória histórica nacional para o Rio Grande do Sul, examinando duas variantes de um discurso regionalista que é patenteado e veiculado, de um lado, pela ação do Estado em suas relações com Letícia Borge Nedel* Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.347-389, jan./dez. 2004

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Regionalismo, historiografia

e memória:

Sepé Tiaraju em dois tempos

Resumo. O artigo explora o modo como diferentes processos e atores laboram aformalização de memórias coletivas, focalizando especificamente as relações entreregionalismo e identidade nacional no Rio Grande do Sul. Retomando posiçõesdivergentes quanto ao “peso” das Missões na configuração da memória local,examina formas oficiais e subterrâneas de representação da ancestralidade gaúcha.Ambas se encontram vinculadas a um discurso regionalista patenteado, de umlado, pela ação do Estado em suas relações com os intelectuais e, de outro, porsujeitos identificados com a arte popular e com o tradicionalismo. Finalmente,chama a atenção para as relações de interdependência entre História e memória,observando que o conhecimento acerca das arenas de luta pelo controle da culturae dos imaginários permite recolocar a questão dos estilos de construçãohistoriográfica, relacionando-as à identidade social do historiador.Palavras-chave: Memória. Historiografia. Regionalismo. Rio Grande do Sul.

*Letícia Borges Nedel é Mestre em História Social pela UFRJ e Doutoranda em

História na UnB.

Este texto aborda parte do processo de construção de umamemória histórica nacional para o Rio Grande do Sul, examinandoduas variantes de um discurso regionalista que é patenteado eveiculado, de um lado, pela ação do Estado em suas relações com

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os intelectuais e, de outro, por sujeitos identificados com a culturapopular e com o tradicionalismo. A análise envolve uma espécie de“geopolítica” da memória local, na qual se tentam entrever questõesligadas à renovação de métodos, abordagens e objetos que a Históriavem experimentando nas últimas décadas. Essa renova-ção tem sidoreivindicada por diferentes linhas de pesquisa que tomam, entreoutros temas, os processos identitários por objeto de análise.

Neste caso, trata-se de explorar a dinâmica segmentar e confli-tuosa pela qual uma forma de pertencimento territorial inscrita naordem das relações metonímicas – ou seja, de uma alteridade que seestabelece na relação parte-todo – é integrada aos quadros de umacultura nacional que lhe precede e dá sentido. A região, aquientendida como classificação derivada de um processo anterior deunificação política, depende, como outras unidades de singularizaçãocultural, da organização da experiência em um relato encadeado,capaz de oferecer um sentido de ancestralidade, isto é, decontinuidade e coerência entre passado e presente.1 Tendo esse pres-suposto em vista, três interrogações vão pontuar a reflexão. Consi-derando o lugar ocupado pela operação histórica2 em nossa sociedade,a primeira questão interroga sobre como o desenvolvimento dadisciplina contribuiu para a formalização de modelos consensuaisem torno do passado e demais aspectos constitutivos da regionalidadesulina. A segunda questão indaga sobre os limites dessa memóriaalimentada pela prática historiográfica, ao considerar a concorrênciaentre os intelectuais e outros agentes também envolvidos com aenunciação do discurso identitário, mas atuantes do lado de foradas instituições. A última questão inquire sobre o modo como oshistoriadores de hoje devem lidar com as interconexões entre Históriae memória e quais as tensões resultantes desse cruzamento. Em outraspalavras, é lícito reduzir o discurso histórico a uma entre outraspráticas mediadoras do passado – como o mito por exemplo –, ou adisciplina mantém uma relação específica com o referente que nosautoriza a classificá-la numa categoria à parte?

Essas questões serão elucidadas em um plano narrativo,cumprindo a meta comum a todo historiador de contar uma história,

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com seus impasses e desenlaces, para dali extrair algum resultadoteórico. O corpus documental é formado por dois textos de naturezasdiferentes, um historiográfico, outro poético. O primeiro é umparecer fornecido ao Governo do estado pelo Instituto Histórico eGeográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) em 1955. O segundotexto traz a transcrição de uma payada, algo situado entre a músicae a poesia gauchescas, e que portanto envolve práticas encenadasnum espaço social onde a oralidade detém um papel privilegiado detransmissão de saberes e valores. A payada em questão, intituladaDefeito, caracteriza-se pelos versos de teor agressivo, expressamentedirigidos à academia histórica. Eles foram compostos por um artistaque, sem nunca ter usufruído do estatuto de intelectual, deixou suamarca no imaginário regional com uma obra que concebe um RioGrande do Sul feito à imagem e semelhança das Missões,3 tendocomo âncoras a presença indígena guarani e a experiência jesuítica.O autor do poema é o autodenominado “payador indomado”, NoelFabrício Borges da Cunha, mais conhecido por Noel Guarany,compositor e intérprete que, além de reivindicar a herançamissioneira para os habitantes do estado, retrata o herói civilizadorgaúcho como tipo humano originário (autóctone) de um territóriomais antigo que o Brasil, não só contíguo ao Prata, mas integrado aele.

Os dois textos, apesar de distantes vinte anos um do outro,remetem, de forma mais ou menos explícita, a um fato preciso,ocorrido em Porto Alegre em meados dos anos 1950 e que ficoumarcado na lembrança de todos os intelectuais ativos ou em iníciode carreira daquela época. Trata-se do “caso Sepé”, uma das tantaspolêmicas que dividiram o Instituto Histórico e Geográfico do RioGrande do Sul (IHGRS) entre 1945 e 1955. O debate públicoaberto por dois reconhecidos sócios – Moysés – Velhinho eMansuetto Bernardi, julgava a conveniência em se erguer ummonumento aos 200 anos de morte do guarani reduzido SepéTiaraju, completados em fevereiro de 1956. Na contenda, à qual sejuntaram outros historiadores, aparecem duas posições divergentesquanto ao “peso” das Missões na configuração da memória oficial

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sul-rio-grandense, bem como à pertinência de integrar esse períodocontroverso de formação do estado aos quadros da história local.

Em vista dos argumentos lançados nas alegações e acusaçõesmútuas, e atentando à posição legitimada (e legitimadora) do IHGRSenquanto foro privilegiado de produção historiográfica no estado,este trabalho vai inscrevê-lo na “problemática dos lugares”,desenvolvida por Pierre Nora4 no clássico Les Lieux de Mémoire,publicado pela Gallimard entre 1984 e 1992. Seguindo alguns dosprincípios enunciados por esse e outros autores, que não caberiaenumerar de antemão, a discussão em torno do papel cabido a Sepéservirá de porta de entrada para se pensar a relação recíproca mantidaentre História e memória na elaboração de certas propriedades“típicas” e supostamente congênitas da região em frente à formaçãonacional brasileira e às demais partes do conjunto. Veremos que, nocaso em questão, essa relação foi pautada por homens para quemera dever de ofício oferecer um diagnóstico preciso da “origem” –portuguesa ou espanhola? – do Rio Grande do Sul.

Regionalismo à gaúcha

As finalidades que, nessa época, presidiam o exercíciohistoriográfico remetem a uma concepção de “ciência” situada a meiocaminho entre a pedagogia cívica e a detecção – através de técnicasdocumentárias regradas coletivamente – de “leis gerais” pelas quaisse poderia prever a evolução histórica de uma nação, “preparando-a” para o futuro.5 Como assinalou Ricardo Benzaquém de Araújo,essa dupla exigência de objetividade e de entusiasmo patrióticofuncionou como

uma criativa e permanente fonte de tensões no interiorda historiografia, não só gerando acusações, ora de“partidarismo”, ora de falta de originalidade, mastambém propiciando um instigante debate acerca dascondições em que se produz a história na modernaacepção do termo” (Araújo, 1988, p.32).

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A primeira coisa a notar então é que, para além das discor-dâncias entre os envolvidos na discussão, os marcos referenciais daformação do estado figuravam como uma conjunção de “fatoshistóricos” e “condições naturais” que determinariam a priori odestino político e moral de seus habitantes. Sobre isso, já foi bemressaltado o engajamento das elites culturais na criação do gaúchoheróico, ícone de uma identidade marcada pela permanente “tensãoentre autonomia e integração”,6 em que a fronteira desempenha umpapel crucial no enquadramento cultural da região. De fato, desde oséculo XIX, o Rio Grande do Sul costuma ser retratado como umterritório de diferença substantiva em relação às demais regiõesbrasileiras. Encarada pelos políticos e letrados da “província” oracomo um trunfo, ora como uma desvantagem, essa pré-noção écertamente conseqüência lógica de um paradoxo inicial: o de que aregião, entendida como elo primário de identificação entre oindivíduo e a nação, apela, no caso rio-grandense, a uma unidade“de origem” que ultrapassa em muito as fronteiras políticas doterritório nacional. Apesar de se definirem tardiamente, tais limitesnão invalidam as experiências compartilhadas pelos habitantes doestado finalmente conquistado pelo continental império portuguêsem 1801 e os da porção espanhola do império “fragmentado” emrepúblicas nas guerras de independência.

Assim, se é verdade que o passado não se impõe ao historiadorpor si mesmo, mas, pelo contrário, é investigado em função dasperguntas elaboradas desde o presente, a insistência com que certasquestões foram e continuam sendo formuladas no Rio Grande doSul é significativa. A amplitude e a recorrência com que opertencimento local foi estrategicamente acionado entre diferentesgrupos e esferas da vida social e a ampla penetração atual dessediscurso na mídia e nas instituições de governo, além da freqüênciacom que se realizam os debates e ressignificações de noções como“gaúcho”, “região”, “fronteira”, “caudilho” etc., levaram RubenOliven (1989, p.13) a definir o Rio Grande como “um caso deregionalismo bem-sucedido”. Vale notar, desde já, que um “sucesso”desse tipo será sempre tão relativo e transitório quanto forem a

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extensão e duração dos consensos firmados em torno dos critériosdefinidores do “gaúcho originário”, – donde se conclui, preliminar-mente, estarmos lidando aqui com memórias em disputa.

Já não se fazem memórias como antigamente

Esse tema da memória tem uma trajetória recente no campode investigação histórica. Nas ciências sociais, Maurice Halbwachs(1877-1945) foi quem primeiro se apropriou dela como um objetoespecífico de estudos. Resgatando-a da Psicologia do início do século,ele investigou a maneira como uma memória coletiva enraíza-se eliga-se às comunidades sociais, mostrando que a lembrança podefuncionar como instrumento de integração do indivíduo à família,ao grupo e à sociedade global.7 Suas obras – Les Cadres Sociaux de laMémoire (1925) e La Mémoire Collective (1950) –, além de situarempela primeira vez a questão onde ela figura de fato, isto é, no terrenoda linguagem, propuseram o abandono das abordagens até entãoconduzidas pela psicologia individual, que investia nas correlaçõesentre memória-mnemotecnia, ou memória-mimese.8 Contraria-mente, em Halbwachs, a memória deixa de ser pensada como umafaculdade reprodutora ou deformante de uma realidade conscienteou não; ali, ela não é mais o “espelho deturpador” da realidade,como disse Jean Pierre Rioux (1997, p.337), mas elemento cons-tituído e instituidor do real, figurando como um fator transformadorna evolução histórica de uma sociedade.

No que diz respeito ao campo de reflexão da história, entre ascondições de possibilidade da emergência dos “Lugares de memória”como objeto de análise estão, segundo Pierre Nora (1997, p.4699),de um lado, o “retorno reflexivo” da disciplina sobre si mesma e, deoutro, o fim de uma tradição de memória, determinado pelapassagem de “uma consciência nacional unitária a uma consciênciade si” individualista, psicologizada, privativa e patrimonial. Na esteirado pós 2ª Guerra, Guerra Fria, queda do socialismo real e adventodo que se chegou a chamar “fim das utopias” e “crise da história”, adesconfiança para com as antigas promessas do progresso científico

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e a percepção de um tempo acelerado pela mídia e os avanços tec-nológicos promoveram o giro que teria levado a disciplina a sedesidentificar com o próprio passado, fazendo de si mesma umcampo de experimentação e análise.9 Desabrigada do regime deverdade inquestionável que lhe servira de refúgio no século XIX,sem poder mais apostar na coincidência entre o discurso histórico eseu referente,10 a “ciência magistra” abandona sua vocação cívico-pedagógica em prol de um olhar autocrítico, que se desloca da“nação” para a sociedade.

As histórias resultantes dessa revolução epistemológica têm emcomum o projeto de romper o contrato de verdade baseado numatemporalidade linear e compartilhada, no qual o futuro pareciaprevisível, já que “prenunciado” pelo passado. Curiosamente, nomomento em que se passa a considerar a defasagem entre o passadoe o conhecimento acerca dele, vê-se reforçado o interesse doshistoriadores pelo arquivo. Este, junto com a noção de documento,tem alargada sua concepção para alcançar o léxico dos atores. Assim,já nos anos setenta, pesquisas baseadas no método da história oralmostravam o caráter potencialmente opressor da memória nacionale, ao lado dela, a coexistência de temporalidades autônomas econcorrentes no tecido social.11 Notada a importância da experiênciae o imperativo dos sujeitos sobre o trabalho da rememoração, abria-se também, para os historiadores, a possibilidade de identificar, nassociedades, o modo como memórias conflitantes são geradas emuma “permanente interação entre o vivido, o aprendido e otransmitido” (Pollak, 1989, p.9). Surge daí uma outra história,povoada por problemas e grupos humanos até então negligenciadospela tradição acadêmica.

Dessas considerações, procede a escolha de se trabalhar com apayada de Noel Guarany como um contraponto ao textohistoriográfico. Até porque, sendo Defeito uma peça composta “emhonra” de uma memória “antiacadêmica” (missioneira), além deilustrar parâmetros alternativos de conformação de umaancestralidade específica para o Rio Grande, ela exibe também ascontradições inerentes ao discurso identitário. Vale dizer que,

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operando numa dimensão macro, o pertencimento faz-senecessariamente no sentido da incorporação e exclusão simultâneasde práticas e personagens sociais específicos. Essa dimensão seletivaé tão necessária à construção das identidades territoriais, que ErnestRenan (1997, p.13-15) chegou a inscrevê-la na própria definiçãoda nacionalidade, ao afirmar que

L’oubli, et je dirai même l’erreur historique, sont unfacteur essentiel de la création d’une nation, et c’estainsi que le progrès des études historiques est souventpour la nationalité un danger. L’investigationhistorique, en effet, remet en lumières les faits deviolence que se sont passés à l’origine de toutes lesformations politiques [...] L’unité se fait toujoursbrutalement [...] Or l’essence d’une nation est quetous les individus aient beaucoup de choses encommun, et aussi que tous aient oublié bien deschoses.

Sem perder de vista a demonstração, pelas investigações sobrecontramemórias, de que aparentes “esquecimentos” podiam seconstituir, na verdade, em formas de resistência à história oficial(Pollak, 2000), o projeto de Pierre Nora volta a apostar nas instânciasinstitucionais de produção de lembranças feitas para seremlargamente partilhadas. Com esse objetivo, a equipe de autoresreeditou, no estudo da memória nacional francesa, uma históriapolítica definida, segundo o organizador, em sua extensão maisarrojada, porque dimensionada pelo simbólico:12

O caminho está aberto a toda uma outra história: nãomais os determinantes, mas seus efeitos; não mais asações memorizadas nem mesmo comemoradas, maso rastro de suas ações e o jogo das comemorações;não os acontecimentos por eles mesmos, mas suaconstrução no tempo, o apagamento e ressurgência

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de suas significações. Não o passado tal como sepassou, mas seus reempregos sucessivos, não atradição, mas a maneira como ela se constituiu etransmitiu (Nora, 1992a, p.24).

O trecho citado de certa forma antecipa o itinerário daargumentação aqui desenvolvida. Ela parte da convergência havidaentre o nascimento de uma disciplina e a gênese do Estado nacional,para entender a emergência, no esteio da chamada “viradalingüística”, de tantos “novos velhos” objetos, como a história política,a biografia, a narrativa, o sujeito, o acontecimento, etc. Sob esseaspecto, a longevidade do tipo de História inaugurado sob um regimede diversificação de suportes materiais da memória, posto em práticano Brasil desde a criação do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro – IHGB – em 1838, testemunha a “intimidade” estreitaque antecedeu a atual “incompatibilidade de gênios” (Rioux, 1997)entre mãe e filha, Mnemósine e Clio.13

De certa forma, essa incompatibilidade é traída pelo própriodeslocamento semântico que nos permite, hoje, chamar memorialistasaos que até ontem eram reputados historiadores. Contudo, se éverdade que a História deixou de ser a colecionadora das relíquiasnacionais, ela se obriga a admitir ter, com a memória, uma relaçãode estreita interdependência. Compreender as práticas mediadorasdo passado como instâncias de luta pelo controle da cultura permite-nos retrilhar os caminhos que levaram a determinados estilos deconstrução historiográfica, colocando sob escrutínio a própriaidentidade social de seus artífices. Mais ainda quando situamos anarrativa, que é o modo operacional por excelência da escritahistórica, no quadro social de regulação da amnésia, pois, comobem advertiu Marc Ferro (1989, p.59), “o esquecimento não tem omesmo estatuto segundo proceda do trabalho do historiador ou dosdiferentes espaços da memória nas sociedades”.

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A “região” em disputa

Tomar a principal arena de discussão historiográfica do estadocomo “lugar” da memória histórica sul-rio-grandense pode bemdemonstrar a existência de uma polifonia de tempos dentro daprópria disciplina. Isso porque, em linhas gerais, enquanto em outraspartes os anos cinqüenta marcaram a chegada de parâmetros de inves-tigação que colocaram o marxismo no horizonte analítico de proble-mas como urbanização, subdesenvolvimento e desigualdade socialdo País, no Rio Grande do Sul, o modelo de referência encon-trava-se ainda estreitamente vinculado ao projeto historiográfico lançadono século anterior, pela padroeira das academias de eruditos no Brasil.

A história sistematizada pelo IHGB (sobretudo a contar de1849-50) havia servido para conferir o sentido de continuidadenecessário a um passado “nacional” definido retroativamente.Delimitando seus “contornos” em bases substancialistas – ecumprindo à risca o check list identitário14 geográfico, étnico,histórico e folclórico que materializa a diacrise com um “outro”–, aselites políticas responsáveis por esse projeto buscavam inserir o Paísna cadeia civilizadora das nações ocidentais. Tratava-se de fixar, parao Brasil, uma raiz branca e européia, presumidamente confirmadapor uma independência não traumática. Vale notar que o IHGB foitambém o lugar onde primeiro se operou a fusão semântica entreprovíncia e fronteira, estratégia discursiva tornada recorrente noregionalismo gaúcho. Contemplada por uma memória pragmática edeclaradamente elitista, na qual o papel do Estado central constitui-se no fio condutor da história do Brasil (cf. Guimarães, 1988, p.9),essa fórmula específica de apreensão das “regiões” tomava-as poralvo de vigilância e controle permanentes, ou por se constituíremem espaço de estranhamento interno – caso da clássica oposiçãointerior x litoral e da imposição de missões civilizadoras às populaçõesindígenas –, ou por estarem diretamente vinculadas à questão dasoberania do território. O Rio Grande de São Pedro encarna, dentrodesse modelo fundador de um saber adequado às necessidades decentralização administrativa e de homogeneização das elites políticas

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imperiais, o espaço limítrofe com um “outro” que é definido, comobem indicou Manoel Salgado Guimarães (1988, p.7), a partir docritério “das diferenças quanto às formas de organização do Estado.”De acordo com esse postulado, são acusados, internamente, osímpetos desagregadores e a “imaturidade política” das elitesperiféricas, ao passo que “os inimigos externos do Brasil são repre-sentados pelas repúblicas latino-americanas [...] corporificando aforma republicana de governo, ao mesmo tempo, a representaçãoda barbárie” (id., ibid.).

A adaptação do passado local aos parâmetros de leitura da naçãofoi complexa e demorada. De fato, não passaram despercebidas asdificuldades intrínsecas à fundamentação histórica de uma identidaderegional apta à competição política com as outras unidadesfederativas, em se tratando de um estado tardiamente integrado aoslimites do Brasil e, ainda por cima, limítrofe com os “maus exemplos”de fragmentação dos estados nacionais vizinhos.imperiais, o espaçolimítrofe com um “outro” que é definido, como bem indicou ManoelSalgado Guimarães (1988, p.7), a partir do critério “das diferençasquanto às formas de organização do Estado.” De acordo com essepostulado, são acusados, internamente, os ímpetos desagregadorese a “imaturidade política” das elites periféricas, ao passo que “osinimigos externos do Brasil são representados pelas repúblicas latino-americanas [...] corporificando a forma republicana de governo, aomesmo tempo, a representação da barbárie” (id., ibid.).

A adaptação do passado local aos parâmetros de leitura da naçãofoi complexa e demorada. De fato, não passaram despercebidas asdificuldades intrínsecas à fundamentação histórica de uma identidaderegional apta à competição política com as outras unidadesfederativas, em se tratando de um estado tardiamente integrado aoslimites do Brasil e, ainda por cima, limítrofe com os “maus exemplos”de fragmentação dos estados nacionais vizinhos.

Embora a consagração de instituições e grupos destinados aessa tarefa guarde uma estreita vinculação com o processo deespecialização da pesquisa, sua história começa antes da criação efetivade um Instituto Histórico e Geográfico em 1920. Na verdade, o

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despertar para a particularidade cultural sulina emergiu na fendadas lutas partidárias do entresséculo XIX-XX, quando foramformuladas, no jornalismo político, as grandes questões sobre asquais os historiadores se debruçariam até pelo menos os anos 60.Proclamada pelos jovens abolicionistas e republicanos num momentode crise e de transformações profundas na matriz econômica daprovíncia, a denúncia federativista – expressa em 1870 nos termos“Centralização = Desmembramento; Descentralização = Unidade”– foi transferida, nas primeiras décadas do século seguinte, para aagenda cultural. Traduzido em bandeira de descentralizaçãointelectual do País, o lema abasteceu um mercado de bens culturaisregionais, incrementando uma tradição histórico-literária específicana qual se projetaram as linhagens locais de reconhecimentointelectual (cf. Nedel, 1999).

Por motivos que não caberiam nas dimensões deste texto, etendo eles já sido expostos em outra oportunidade, em lugar do queIeda Gutfreindt (1989, 1995, p.148-152) chamou de platinismo elusitanismo,15 preferimos assinalar, nessa tradição, a presença de umatensão permanente entre dois registros sob os quais as elites culturaisdefinem a posição-limite do estado no concerto nacional. O primeirodeles privilegia a identificação de um sujeito folk – herói anônimo eautóctone – associado ao mundo rural, à condição de rebaixamentosocial e à intimidade com o meio físico. Compreende a delimitaçãoda singularidade do Rio Grande em rota de aproximação crescentecom a gauchesca platina, através da exploração literária da linguagem“dialetal” da fronteira, sobretudo a partir dos anos vinte. Já sob osegundo registro, ligado à história alimentada pelas pesquisasgenealógicas e “descobertas” documentais, o foco de atenção desvia-se do terreno da linguagem e dos costumes para o da geopolítica,mais precisamente para as marchas e contramarchas de Portugal eEspanha sobre o Rio Grande de São Pedro.

No primeiro caso, as hierarquias de autores organizam-se emtorno do cânone literário regionalista,16 por sua vez valorado na tensãoconstitutiva do mérito artístico, ou seja, situado entre a inovação e arepetição de modelos estéticos consagrados. No segundo caso, o

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critério de “autenticidade” das narrativas tem procedência diversa.O juízo repousa, para todos os efeitos, em um domínio diagnósticodefinidor da “verdade extraída” de registros oficiais, relativos a eventose personagens que sintetizariam a contribuição gaúcha para aconstrução do Estado brasileiro. Desse modo, e diferentemente daênfase singularizante da literatura, a vinculação pragmática da matrizhistórica com o campo institucional é mais imediata, expressando-se tanto na recolha das efemérides quanto no conteúdo dos relatos.A região é ali submetida às percepções do centro: as monografiasesquadrinham o território, sua população, o surgimento das cidades,a origem dos topônimos, a especialização econômica, semprebuscando inscrever a região na história nacional. Vale dizer que,contrariamente à experiência platina, no Brasil o gaúcho retratadopela História confunde-se com o agente da conquista, associaçãoque obscurece o presumido caráter “anônimo” e “espontâneo” desuas criações.17 Deslocado da estância para a caserna, o heróicivilizador desvincula-se do estereótipo do bom selvagem, passandoa constar no rol nominado e nobiliárquico dos desbravadores luso-brasileiros, e não raro republicanos, que povoam o panteão políticolocal.

Entre a ascensão e a deposição de Getúlio Vargas, os padrõesdescritivos da gênese regional propostos pelo IHGRS repousaramna estrita federalização do projeto historiográfico elaborado pelosnotáveis do IHGB. Mesmo após a entrada de referenciais culturalistasde análise – o que viria a acontecer só na década de 1950 –, oshistoriadores trataram de conciliar o ideário republicano aosenunciados dos eruditos do Império, revertendo a pecha de estadolimítrofe com a “barbárie” castelhana em condição de sentinela dafronteira austral da “América Portuguesa”. Sob esse critério, a teseseparatista da Revolução Farroupilha chegou a ser, nas palavras deMoysés Velhinho, “arquivada”, após ter sua interpretaçãoconvencionada pelo Congresso promovido pelo IHGRS em alusãoao Centenário Farroupilha, em 1935. Desde então, os historiadorestodos se referiam a ela de um mesmo modo: como uma revolta deinspiração republicana e liberal, em defesa da integridade moral de

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um Império desatento às necessidades da província. Sujeitadas asregras da disciplina à observância das fronteiras nacionais, o “lugarde origem”, “berço histórico” do Rio Grande do Sul, também foirigorosamente fixado em um calendário oficial de efemérides.Evidentemente ele coincidia com o início da ocupação do territóriopelos portugueses (fundação da cidade de Rio Grande, com aconstrução do forte de Jesus Maria José em 1737), em lugar daexperiência jesuítica que a antecedera. Sob a vigilância da “academia”,a história missioneira deixava de dizer respeito à formação do estado.

Nos anos cinqüenta, não obstante o exercício intelectualpermanecer incontestavelmente legitimado pela pedagogia cívica, odiagnóstico cultural da região passou a ser debatido no ir e vir deduas posições contrastantes, sustentadas pelos memorialistasformados à luz dessa história historicista. Para autores como SouzaDocca, Othelo Rosa e Moysés Vellinho, o objeto exclusivo da“história regional” era a participação gaúcha na construção do Estadobrasileiro, consubstanciada no heroísmo “documentalmente com-provado” de tropeiros desbravadores e próceres republicanos. Contrá-rios à diversificação do acervo documental da disciplina, esse grupode autores justificava, como a maioria dos de então, a antiga idéiada especificidade do Sul em relação ao restante do Brasil, vinculando-a mais ao papel desempenhado na conquista armada de um territórioem disputa do que às criações “anônimas” de uma cultura singular.

Enquanto isso, outros autores, adversários permanentes eeventualmente aliados táticos dos primeiros, defendiam adiversificação relativa dos temas de pesquisa. Sob influência doculturalismo norte-americano em voga (aqui mediado pela obrafundadora de Gilberto Freyre),18 incorporavam o linguajar, acontribuição étnica de negros e indígenas, seus costumes e suareligiosidade a um quadro de objetos compartilhado pela História eo Folclore. Declaradamente “convertidos” ao “popular”, ou por suasligações com as vanguardas literárias modernistas de São Paulo eRecife, ou por seu apreço à temática e aos mestres da gauchescaplatina, para eles, a afirmação das heterogeneidades regionais era acondição mesma de apreensão (e de manutenção) da unidade

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brasileira. Esse vetor de maior abertura, tanto à diversidade internada região quanto à admissão da reciprocidade cultural do Rio Grandecom os vizinhos, contribuiu para o entrincheiramento de nomescomo Dante de Laytano, Manoelito de Ornellas e Walter Spalding,entre outros, em torno do Museu Julio de Castilhos e da ComissãoEstadual de Folclore (ambos chefiados por Laytano), já que, nodomínio da História, as regras continuavam ditadas pela alaadversária dentro do IHGRS.19

Concomitante à massificação do tradicionalismo e aodesdobramento de uma série de práticas rituais e comerciais de baseidentitária, a passagem do folclore “literário” ao folclore “científico”acompanhou então a revisão das interpretações canônicas da regiãoentre os eruditos locais. Propondo uma comunicação mais assíduacom intelectuais conhecidos no centro do País (entre eles, GilbertoFreyre, Renato Almeida, Roger Bastide, Melville Herkowits), o atoresenvolvidos com o revisionismo que tomou conta da produção escritada época observavam a má posição do estado em vista de outrosmercados culturais regionais. Para eles, o principal adversário já nãoera tanto o centro, mas o Nordeste – cujos representantes haviam secolocado na ponta do processo de elaboração de bens simbólicosnacionais. Com o fim do Estado Novo, a ordem era inserir o RioGrande nos quadros de uma cultura brasileira elaborada segundo alinha de representação regionalizada lançada dos anos vinte e quehavia sido encampada pelo governo em pleno processo de retomadada centralização política entre os anos 1930-1945.20

A retomada “científica” da herança modernista pelos histo-riadores, adaptada ao contexto de questionamento da autoridadeda História por uma nova geração de sociólogos universitários,representou, para uma parcela dessa intelectualidade periférica, umconvite à atualização da história que vinham praticando. Aatualização contemplava a descrição das regiões a partir da cultura ede novas fontes (como a tradição oral) produzidas por grupos que atradicional história política e diplomática não comportava. O desvioda atenção para esferas informais da vida social oferecia então, aosanalistas, uma via privilegiada de reconstituição dos elos de

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continuidade entre presente e passado, sujeito e objeto, região enação. Empresa ao mesmo tempo “científica” e patrimonial, aelaboração de “história social e até íntima” da nação, baseada nacrônica regional, cotidiana e familiar de um “passado mais próximode todos nós”,21 afiançava esse diagnóstico integrador, aparecendotambém como a condição necessária para que a nação superasse oestatuto de mero fato geográfico e se entranhasse afetivamente namemória de seus habitantes.

O “caso Sepé”

Nos anos 50, as tensões entre essas duas formas de configuraçãoda regionalidade repercutiam com força, ultrapassando os murosdo Instituto e mobilizando a opinião pública em geral através daimprensa, da publicação em série de obras que firmavam posição nadiscussão e de manifestos assinados por intelectuais dissidentes, emrepúdio à ação da Comissão de História do Instituto. O affairecomeçou com um parecer, encomendado ao final de 1955 peloGovernador Ildo Meneghetti. Pelo documento, a instituição deveriase pronunciar a respeito do pedido feito ao governo por um oficialdo exército, o Major João Carlos Nobre da Veiga, de mandar erguer,no município de São Gabriel, um monumento em homenagem aosduzentos anos de morte do índio guarani Sepé Tiaraju,22 corregedorda redução de São Miguel e mártir da Guerra Guaranítica. Mas oque era para ser só mais um dos tantos documentos diagnósticosencomendados àquele órgão pelo governo23 transformou-se nodesencadeador de um verdadeiro fato de opinião, repleto de agravospessoais e de efeitos adversos ao próprio Instituto.

No pedido, o major Nobre da Veiga justificava sua demandamostrando o sentido exemplar que uma homenagem ao heróidesaparecido “em holocausto à pátria” teria, na medida em que seestaria louvando, na pessoa dele, “o passado de lutas, glórias esacrifícios” de todo o “povo gaúcho”. A proposta foi fundamentadaem duas alegações: primeiro, a de que

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Ao que tudo indica, era este verdadeiro brasileiro, naacepção pura da palavra, o principal chefe dosguaranis, na resistência heróica que estes ofereceramao cumprimento dos artigos do Tratado de Madrid,assinado por portugueses e espanhóis, em 13 de janeirode 1750. [Segunda:] este índio simboliza na singelezada sua vida, na pobreza de seus recursos materiais eno incomparável devotamento patriótico, o valorpessoal do brasileiro, que em todas as épocas de suahistória, sempre se opôs à sanha incoercível de seusadversários [...].24

O documento expedido em resposta pela Comissão de Históriaavaliava o mérito dessas justificativas segundo o que julgava ser apertinência das memórias de Sepé e do território por ele representado– as Missões – aos “gaúchos brasileiros” de então. Nessa avaliação, jáde saída advertia para a dificuldade de “opinar sobre o brasileirismode um indígena que tinha um sentido de Pátria, e que se afirmouem luta contra os portugueses.” (apud Bernardi, 1980a, p.140).Tendo um “sentido de pátria”, e de pátria que não era portuguesa,Tiaraju não poderia encarnar o patriotismo do gaúcho brasileiro,pelo simples fato de que, para a Comissão de História do Instituto,o Rio Grande do Sul estava representado nas guerras de demarcaçãopela parte futuramente beneficiada com a integração do território.Nas palavras dos três signatários – e dos demais membros queaprovaram o documento em assembléia ordinária –, a improcedênciado pedido era cristalina, já que Sepé, sendo súdito de Espanha, sópodia ser inimigo do lado (pelo menos posteriormente) brasileiroda contenda: o lado português.

Reagindo contra as estipulações do tratado de Madrid– cuja justiça ou injustiça não é o momento deconsiderar – Sepé somente poderia ter em vista aintegridade territorial da chamada “Província doParaguai”, a que pertenciam os sete povos das Missões:defendia, portanto, em última análise, a Coroa

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espanhola [...] A conclusão parece-nos irretorquível:não só é inaceitável o “brasileirismo” de Sepé, comoainda não é admissível encará-lo como uma expressãodo sentimento, das tendências, dos interesses, da almacoletiva, enfim, do povo gaúcho, que se estavaformando ao signo da civilização portuguesa (idem).

Na argumentação, os historiadores também aproveitaram paracondenar uma série de mitificações em torno desse herói indígenajá promovido a santo e a motivo folclórico, o que lhe alterava osignificado, desfigurando a “personalidade real”, única relevante àluz da ciência histórica e digna de sua “exegese”. Sugeriam então,em substituição a Sepé, que se desse um título a Rafael PintoBandeira, apelidado “o fronteiro do sul” (ibid., p.141) por ter ajudadoa despertar no Rio Grande a consciência de autodefesa a partir daresistência à invasão espanhola de 1763:

Quando lemos que Sepé foi “o Primeiro CaudilhoRio-grandense” a nós mesmos perguntamos que noçãoele poder ter do Rio Grande do Sul, e se nos serálícito praticar a grave injustiça de conferir-lhe umtítulo a que tem inconcusso e líquido direito umRafael Pinto Bandeira, o fronteiro do sul, que delineouas nossas fronteiras e que, com seu ingente esforçocriou e consolidou esse Rio Grande do Sul, que Sepévalentemente combateu, opondo-se quanto pôde, aodestino histórico de sua inclusão na civilização lusitanae no Brasil? (idem).

Assim, os historiadores de então, contrários ou não a Sepé,restringiam a relação do discurso histórico com o referente aorefinamento da crítica documental externa, calcando-a na exatidãocronológica dos fatos e na autenticidade das fontes oficiais. Enquantoo heroísmo de Sepé era destituído de significação histórica eprincipalmente de qualquer valor simbólico integrador, o de PintoBandeira podia, pelo contrário, ser situado no solo do rigor científico,

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tendo a seu favor, como demarcadora dessa diferença, a existênciade um documento “autêntico”, “valioso” e “comprobatório” (apudBernardi, 1980a, p.140). Com esse argumento, a erudiçãodocumentária subtraía Sepé do capital nacional da história gaúcha,deslocando-o para o terreno incerto das lendas e das superstições.

Mas o Major não estava sozinho, e, imediatamente, outroseruditos vieram em socorro de seus motivos e de encontro aosargumentos da Comissão. O primeiro a fazê-lo, e talvez o maisenérgico dos que o fizeram, foi Mansuetto Bernardi, que passoutodo o ano seguinte se confrontando publicamente com MoysésVelhinho.25 A essa altura, Mansuetto Bernardi era, tanto quantoVelhinho, uma personalidade célebre na vida cultural e política doestado.26 Mais do que isso, ele era um velho interessado no assuntoSepé. Ainda quando pleiteava uma vaga de sócio no Instituto, em1926, fizera uma palestra no Museu Julio de Castilhos (a convite deseu diretor, Alcides Maya), intitulada O Primeiro Caudilho Rio-Grandense, quando procurou confirmar a tese de que o primeirocaudilho do Rio Grande do Sul, ao menos “cronologicamente, foi ocacique Sepé Tiaraju, que nasceu e viveu, combateu e morreu noterritório dos Sete Povos das Missões, na época pré-açoriana.”(Bernardi, 1980a, p.17). Sem entabular uma conceituação precisado “caudilhismo” (como mais tarde se tornaria hábito, ainda que demaneira invertida entre os historiadores do Prata e do Rio Grandedo Sul), Mansueto louvava a audácia e o patriotismo do índio que,sem o apoio dos missionários, dirigira a resistência indígena aoconfisco dos bens e terras em que viviam e viveram seus ancestraispor 150 anos. Após descrever a atuação “bravia” de Sepé na guerrade demarcação, relatava ainda sua “ressurreição” lendária como“protomártir civil das Missões” (Bernardi, 1980a, p.28),documentada pela poesia gauchesca e pela tradição oral, nas quaisaparecia canonizado como São Sepé e abençoado pelo “lunar”.

Na semana do Bicentenário, Bernardi (1980b, p.37) publicou,no Correio do Povo, um manifesto no qual se mostrava indignadocom o fato de, sendo membro antigo da Associação, ver-sedesautorizado por ela.27 Além disso, recorreu a outros sócios para

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forçar uma retratação dos responsáveis pelo parecer, liderou acampanha pelo monumento e, ainda naquele ano, convenceu o Padrejesuíta Luiz Gonzaga Jaeger, especialista em Missões e em Companhiade Jesus, a manifestar publicamente sua inconformidade com avotação (seu voto tinha sido o único “sim, com restrições” na reuniãoque aprovou o parecer por sete a zero) e a fazer um mea-culpa emfrente aos pares, lançando sua réplica à Comissão na assembléiaseguinte.28 Meses mais tarde, Bernardi ainda encabeçava uma listade vinte e um sócios que, num contraparecer entregue ao Gover-nador, desautorizavam a Comissão de História.29

O contra-ataque não só não tardou, como se prolongoubastante, sob as penas de Moysés Velhinho e de Othelo Rosa. Nãobastasse Bernardi tentar habilitar a memória de um líder que, tendolutado contra os exércitos de Portugal (e Espanha, diga-se depassagem), podia ser considerado “traidor” do Rio Grande, fazerisso associando-o com o caudilhismo, fenômeno que o Institutosempre se empenhara em restringir aos ditadores platinos, eraultrapassar os limites canônicos da História.30

Durante anos, continuaram sendo lançados argumentos eprotestos pelos jornais que poderiam continuar sendo expostos atéa exaustão. Mas, nos limites de que dispomos, gostaríamos agora dedestacar alguns aspectos presentes no debate, antes de entrar naposição de Noel Guarany. O primeiro deles é o de que, além daregião, a figura do “gaúcho heróico” foi o objeto maior de disputa,já que sua ressemantização e reabilitação moral eram as precondiçõesdo próprio uso gentílico. O segundo aspecto é o de que, apesar detodas as aparentes discordâncias entre os “leitores” eruditos domonumento a Sepé, é notável o acordo dos historiadores quanto ànecessidade de obedecerem a preceitos de cientificidade,condicionando o exercício da pedagogia cívica às “descobertas”documentais. De um lado, pressupunham o entendimento do objetocomo uma realidade externa à problemática levantada pelohistoriador – e, por isso, a condição geopolítica do estado, suasituação de fronteira, pôde ser tomada ao mesmo tempo como um“fenômeno” e como “chave explicativa” do passado. De outro lado,

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essa história-memória, preocupada que estava em edificar um caráterinato para a região, buscava também identificar os heróis fundadores,e nisso residiu a polêmica de 1955. Daí outro aspecto fundamental:o de que, nessa construção seletiva, afetiva, performativa ecompetitiva de atributos do gaúcho (e por extensão de todos os sul-rio-grandenses), houvesse a estratégia comum de “resgatar” diferentespontos no mapa regional, conferindo-lhes cargas desiguais dehistoricidade. Nesse sentido, fica claro que o “rigor comprobatório”das fontes escritas servia tanto para fundamentar uma total ausênciade objetividade de parte do historiador – ou melhor, umaobjetividade totalmente delegada ao documento –, quanto umatradição disciplinar cuja função devia ser a de arbitrar a transmissãodos valores patrióticos, garantindo a liderança e a legitimidade doRio Grande no concerto da federação. Sob esse pressuposto, a regiãoconstava, nas formulações históricas desde Bernardi até Velhinho,como o elemento precursor da nacionalidade. Ela surgia comovínculo natural primário, não apenas anterior ao vínculo nacional,mas responsável direto pela construção ou pela quebra dessa unidade.Dadas essas condições, suprimir a presença indígena e missioneirana memória era o jeito de apagar a ingerência espanhola na históriaregional, ou seja, o passado era lido e reescrito de trás para frente.

O discurso das origens – essa “forma profana da narrativamitológica” (cf. Nora, 1997, p.34) – formou o repertório dosclássicos publicados no Rio Grande do Sul, e a dramaticidade comque os autores tentaram resolver a ambigüidade identitária do estadotalvez só seja comparável ao bem conhecido dilema racial brasileiro.O teor obsessivo dessa busca sugere que são os termos sob os quaisos estudiosos da história concebem o objeto e a operação quepretende dar conta dele que determinam a natureza das relaçõesentre seu trabalho e a função celebradora da memória. Se, comoquer Nora, a vigilância comemorativa é o que perfaz a verdade damemória institucionalizada, ela também sustentou a legitimidadeprofissional dos historiadores no Rio Grande do Sul. Sob esse aspecto,as dissensões entre as vertentes não dizem respeito somente àatribuição de uma função socializante para as narrativas, mas a

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contextos específicos de luta pela abertura e reconhecimento públicode espaços próprios de atuação dos intelectuais.

Enquanto “guardiães” da memória regional, os historiadorescontaram com o direito de enquadrar os significados extraídos deum passado que era, ao mesmo tempo, inventado e inventariado e,portanto, um meio eficaz de legitimação de poderes. Precisamentenesse ponto, revela-se o proveito de uma história dos lugares emque se refugia o passado da disciplina histórica. Esse objeto novopode bem manifestar o campo de possibilidades metodológicas emque se vem atuando, no cruzamento entre as novas linhas de pesquisae uma história das representações, em que o cultural não existe perse, mas é social e concretamente instituído.31 Em outras palavras, seo estudo das práticas mediadoras do passado sugere a necessidadede uma história social de seus sujeitos mediadores, essa última análisehá de mostrar que a história contada nas instituições diretamenteencarregadas de sua produção é função, também, das lutas travadasentre os “profissionais do enquadramento” da memória.32

Vale então inserir, na análise da controvérsia de Sepé, um dadoque diz respeito ao estado de forças na competição entre os inte-lectuais da História e outros agentes mediadores, sobretudo ostradicionalistas, que aparecem com força no processo de“transbordamento” da memória gaúcha nos anos cinqüenta. Enquan-to a linha interpretativa de Velhinho e Rosa prescrevia o passadoregional como o capítulo militar da história brasileira, a posiçãocontrária – representada por Bernardi e, mais ainda, pelo grupo queo apoiava (historiadores-folcloristas, como Dante de Laytano e WalterSpalding) – investia na memória “local” (cf. Gasnier, 1997, p.3423-3478), abrigada nos costumes e no folclore. Tributária dos próceresdas literaturas romântica e modernista, coletora não só dosdocumentos oficiais, mas do passado “presentificado” pela tradiçãooral, essa memória ativista sugeria uma relativa variação de temasem relação ao repertório clássico da historiografia, sobretudo porqueo local ali se fazia representar por um novo sujeito histórico, pelo“guardião” de um passado vivenciado na prática: o “povo”, únicoelemento capaz de revelar o “substrato psíquico” da província.

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Assim, nem a organicidade da historiografia ocupada com asorigens, nem a correlação das versões históricas com os posicio-namentos políticos dos autores devem ofuscar o aspecto litigioso danormalização do passado no Rio Grande do Sul. O patrulhamentoexercido pelo Instituto confirma o caráter sedicioso da identidadelocal, que nunca partiu de um consenso apriorístico quanto aos seusatributos. Pelo contrário, a prática hoje corrente de representar oestado pelas alegorias “típicas” de um território singular, mas radi-calmente integrado ao conjunto das demais especificidades regionaisque constituem a pluralidade indivisível como um traço próprio“da” cultura nacional, foi construída à custa de reformulações perió-dicas e de acirradas disputas por prestígio e autoridade intelectuais.Sob a roupagem do rigorismo documental das análises, estava emjogo, nas discussões, não apenas a “validade” científica ou a grandezamoral das interpretações, mas a legitimidade em se constituíremseus autores como “porta-vozes” da região.

Fora dos meios institucional e acadêmico, essa legitimidade,se não chegou a ser questionada pelo Movimento Tradicionalistacomo um todo, foi duramente atacada por um jovem intérprete,também crítico do próprio tradicionalismo, que preferia, porquestões sobre as quais não caberia falar agora, denominar-se nativistae que, como ele, se mostrava preocupado com a erosão dos costumesantigos.

O autor, “mais brabo do que mutuca”33

Gaúcho missioneiro, nascido “na Bossoroca” (entãopertencente ao município de São Luiz Gonzaga) em 1941, NoelGuarany profissionalizou-se em 1962, após viajar pelo Paraguai,Argentina e Uruguai. Revendo a própria trajetória, o intérpreteconfere um sentido iniciático a essa viagem (“antes eu cantava atroco de canha”) (Noel..., 1977). Segundo ele, a experiência foi aresponsável pela troca de seu repertório, até então formado por tangose boleros, por um outro, afinado com a milonga, a chimarrita e ostemas folclóricos gauchescos. Após a viagem, Noel também passou

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a reclamar para si uma imagem de erudito e pesquisador da músicamissioneira. Em entrevista concedida nos anos 70, pouco apóscancelado, pela censura, o show que faria em companhia de nomescomo Milton Nascimento, Chico Buarque, MPB4 e Nara Leão,Guarany repontava essa auto-identificação estreita entre vida e obra,comum quando se trata da arte engajada no proselitismo identitário:

Quando eu quis cantar as Missões e não sabia poronde começar, fui até Assunção, no Paraguai, e de láfui descendo pelos campos, pelos meios ruraisparaguaios. Depois entrei na Argentina, estive emMisiones, de lá a Corrientes, depois Santa Fé, ondeexiste muito índice de música guaranítica. De SantaFé passei à fronteira do Uruguai, cuja música emmuitos casos assemelha-se à paraguaia. Mas aqui noRio Grande do Sul não havia autoridade musicalnenhuma, a não ser o Barbosa Lessa, que temconhecimento de causa, mas não tinha intérpretes parasuas músicas. Então, dentro da poesia do BarbosaLessa, do Jayme Caetano Braum e do Aureliano deFigueiredo Pinto, encontrei condições de cantar asMissões, e de agüentar no osso do peito, dizer: “essaaqui é a música missioneira” (idem).

Em 1983, Noel Guarany abandonou com alarde a cena artística(Noel..., 1983), retornando, anos mais tarde, não menos indignado,dizendo-se

[...] cansado dessa situação de país subdesenvolvido,onde é preciso passar por mil peripécias culturais. Souum especialista em folclore missioneiro, mas nuncame chamaram para falar sobre isso. Preferem outrosbobalhões por razões políticas. O Brasil é um paíscomandado por mentecaptos (Guarany apud Etelvein,1988).

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Morto em 1997, aos 56 anos, Guarany é, de fato, um dosnomes menos celebrados publicamente pelo MTG. Ao contráriode Jayme Caetano Braum, Barbosa Lessa, Antônio Augusto Fagundese Paixão Cortes, por exemplo, ele não tem CTG batizado com seunome, nunca trabalhou para o Estado nem administrou qualquerdas instituições fundadas no esteio da proliferação de CTGs nosanos 50, embora tenha sido reconhecido como um dos grandesnomes da gauchesca (gênero que inclui composições argentinas euruguaias, além de rio-grandenses) por críticos do centro do País,como Maurício Kubrusly e José Ramos Tinhorão.

O Defeito em questão

A payada Defeito34 figura como uma espécie de libelo tardiocontra a versão histórica oficial defendida pelos pareceristas doIHGRS. Organizada em duas partes, tem a primeira estruturadacomo um desafio recitado, ao longo do qual a referência ao carátersuspeito e ilícito do discurso acadêmico sobre a cultura é umaconstante. Já a segunda parte é cantada em ritmo milongueiro,propondo os fundamentos do culto às tradições missioneiras edelegando ao “payador indomado” a missão de manifestá-las, detransmiti-las e de zelar por sua integridade. As páginas seguintestrazem o poema na íntegra.

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Existem falsos professoresDe canudos mal-havidos,Chacais da literaturaLordecos, subnutridosDe gestação duvidosaForam neste mundo parido.Do rincão da BossorocaDa São Luiz à academiaLá das MissõesOriental pátria,Folclore e poesiaPatriotismo hereditárioPayador por dinastiaQue academia bagualBarbaresca e secularRegada com sangue e suorPlanta-se pátria pra darNativismo é recompensa,Folclore, pra replantar.Nesse mundo legendárioExponho todo o atavismoMisto de um grito de guerraRessonâncias de lirismoRebatendo aos quatro ventos

Supérfluos proselitismosDos ateus da realidadeDescrentes do autoctonismo.Regionalismo não faloSó em termos continentinosDe oceano para oceanoDo Caribe ao muro andino,Meu povo só tem fronteirasMarcadas pelo destino.Nos alfarrábios da históriaAtenienses e espartanosBanharam de sangue a terraEntre gregos e troianos– Nós aqui, os missioneiros,Com lusos e castelhanos.Ficou ruínas em AtenasE ficou ruínas aquiRegistro maquiavélicoDa minha pátria guarani– Por que tombou TiarajúE o guapo Guacurari.Aí está reles gringosDe canudinho suspeito:O teu falso paramento

Defeito

Noel Guarany

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A monge não dá direito.– Direitos, só eu que tenhoDou sursis ao meu defeito.Ah, payador indomadoSempre a lutar contra o ventoA pátria é um fundamentoUm grito no descampado.É um eco renovadoNa garganta da querênciaDesafiando a prepotênciaQue quer ditar os valores,Mas a estes ditadoresNão chamamos de excelência.Nasci no centro dos ventosNo barro das oraçõesMeu destino são raízesQue brotam das Reduções– Onde o canto é a voz da pátriaMisteriosa das Missões.Por isso, a bem da históriaHei de cantar altaneiroDizendo verdades cruasNo meu estilo campeiro– Quando o Rio Grande nasceuJá existia um missioneiro.

Assim erguemos a pátriaComo quem ergue um altarE a guardamos sagradaNo viver e no cantarAs legendas missioneirasQue jamais hão de mancharÉ um dever dos payadoresZelar o bem da verdadeCom a garganta nos tentosE um rasgo de eternidadeE seguir cruzando o mundo– Escravos da liberdade.Como disse Martín Fierro– O cantor, legenda e glóriaQue deixou para o porvirSalmos da crioula história– Saibam que esquecer o ruimTambém é se ter memória.E vou calando a guitarra– A deusa da pulperiaQue me acompanha gaudériaNas minhas andanças braviasFecundando a pampa grande– alma, garra e melodia

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Vê-se que, de saída, o payador evidencia um endereçopreviamente determinado para a contundência dos seus versos,expondo, em tom de denúncia, a existência de “falsos professores,os chacais da literatura.” Através dessa referência velada ao críticoliterário Moysés Velhinho, o autor também reclama, para quem“vive” cotidianamente a tradição, a autoridade última em designaras raízes culturais do gaúcho: nesse caso, presume-se que a históriapertença a quem a carrega na memória, integrando o “hoje” ao mundolegendário (o processo histórico vivido como recordação) que lhe dásentido.

A natureza desse argumento permaneceria opaca se não sesoubessem as razões pelas quais o autor decidiu optar pelo acentodiacrítico. Essas razões evidentemente ultrapassam em muito oterreno da “criatividade artística”, que é socialmente condicionadae, por isso mesmo, acionada num jogo de oposições que privilegiadeterminados cenários e personagens em detrimento de outros. Àluz do conhecimento histórico, o poema torna-se então documento,dado material e base de análise de um problema de hegemoniacultural que deve ser integrado à história política e social rio-grandense.

A payada mistura presente e passado num tempo mítico (aoinvés de progressivo, repetitivo), eliminando as fronteiras políticase privilegiando referenciais históricos e geográficos capazes decaracterizar a cultura rio-grandense numa matriz local vinculada aoPrata. As âncoras do passado indiviso são os pontos de ligação coma “outra banda”, como o limite “natural” do rio Uruguai, a experiênciajesuítica dos Sete Povos, a presença indígena, o contrabando de gado,os “xibeiros” e caudilhos de parte a parte envolvidos nas revoluçõesFarroupilha, Federalista e Cisplatina, como David Canabarro,Aparicio e Gumercindo Saraiva, Silveira Martins e Andresito Artigas.

Noel Guarany, ocupado em localizar a experiência missioneiracomo berço gerador do gaúcho, na estrofe “Do rincão da Bossoroca/Da São Luiz à academia/Lá das Missões/Oriental pátria, folclore epoesia/Patriotismo hereditário/Payador por dinastia”, começa poranunciar a própria procedência, reclamando desde já a autoridade

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de “filho da terra” para se pronunciar em nome dela. Simultanea-mente, ele afirma o vigor e o valor da academia autóctone (numaespécie da paródia à popular “escola da vida”), forjada pela históriasangrenta das Missões. A academia então seria vigorosa porqueinstalada na memória, herdada, presentificada e atualizada pelospayadores.

Nos versos seguintes, a referência ao universal, representadapela guerra de Tróia, coloca o passado das Missões em pé de igualdadecom os acontecimentos mais “nobres” da tradição ocidental. Ambasas guerras – guaranítica e ateniense – são entendidas como alvorecerda história. O uso do termo “alfarrábios” é aqui significativo, porquereclama o valor pela antigüidade e toma a experiência jesuítica comomarco inicial de ocupação do RS – o que fora tradicionalmentenegado pelos historiadores.

A presença indígena é nobilitada, tanto pela figura de SepéTiaraju, quanto pela evocação de um herói platino sob o pseudônimoGuarany (Andresito Artigas é o “guapo Guacurari, índio reduzidoem São Borja e adotado por José Artigas). Desse modo, a filiaçãoétnica torna-se parte da condição heróica: o próprio autor da poesiaauto-intitula-se “Guarany”; ele, a pátria e os missioneiros; os inimigossão os lusos e os castelhanos. Assim, o que havia sido pejorativamentenomeado pela ala documentarista do Instituto como “ruínas” e“lendas” é revertido em emblema: as ruínas, que seriam sinônimode insignificância cultural, transformam-se em testemunho materialdo passado, e as lendas, o terreno fértil que permite a transmissãoda memória entre as gerações.

Os dois últimos versos da estrofe, “Nesse mundo legendário/exponho todo o atavismo/Misto de um grito de guerra/Ressonânciasde lirismo/Rebatendo aos quatro ventos/Supérfluos proselitismos/Dos ateus da realidade/Descrentes do autoctonismo”, exprimem umdos fundamentos essenciais ao discurso ancestral: o de operar sobreuma identificação consentida ou, pelo menos retrospectivamente –como disse Dukheim a propósito da religião –, sobre “uma ilusãobem fundamentada” (apud Bourdieu, 1989, p.121). O seu poderde realização efetiva está no reconhecimento pelo grupo da verdade

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imaginada, e tanto Noel Guarany quanto os alvos de sua denúnciaentendem essa realidade como um dado natural, uma verdadeapriorística.

Ao mesmo tempo, independentemente do sentido dado peloautor aos versos da mencionada estrofe, eles colocam, sob asexpressões “ateus da realidade” e “descrença no autoctonismo”, umproblema enfrentado durante muito tempo pelas análises das lutasde representação. Apenas muito recentemente foi possível perceber-se o caráter performativo dos discursos de construção de identidades,isto é, o poder que a “crença coletiva tem de criar, pela sua energiamobilizadora [as “ressonâncias de lirismo”], as condições de suaprópria realização” (Bourdieu, 1989, p.121).

Nos versos “Regionalismo não falo/Só em termoscontinentinos –:/De oceano para oceano/Do Caribe ao muroandino/Meu povo só tem fronteiras/Marcadas pelo destino./Ah,payador indomado/Sempre a lutar contra o vento/A pátria é umfundamento/Um grito no descampado./É um eco renovado/Nagarganta da querência/Desafiando a prepotência/Que quer ditar osvalores/Mas a estes ditadores/Não chamamos de excelência.”, o autorenuncia as fronteiras da região: a pátria como “um fundamento”,um “eco renovado”, supõe a perpetuação da unidade passada pelamemória presente – missão do mediador/payador. O regionalismoparte não de “termos continentinos” (ou seja, a banda de cá do rioUruguai), mas das “fronteiras marcadas pelo destino”, pela história.

A região delineada por Noel Guarany supõe, portanto, umaaproximação radical com os países platinos (o que se expressa tambémno vocabulário empregado no poema, repleto de termos adaptadosao português, ou transpostos do castelhano). O recurso serve parareforçar sua identificação de payador afinado com as linhagenscelebrizadas de folcloristas argentinos. Por conta disso, o jogo deoposições desloca-se da contraposição portugueses versus espanhóis,Brasil versus Argentina e Uruguai – segundo as tradicionais versõeshistoriográficas do IHGB e IHGRS – para guaranis versus lusos ecastelhanos, ou ainda missioneiros versus “reles gringos”.

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A oposição campo versus cidade está referida, neste caso, à lógicainterna da “província” (o RS). Como a disputa se dá pela definiçãodos termos originais do suposto caráter regional, e a contenda ocorreentre um leigo e as autoridades intelectuais do estado, não se trataaqui de opor o estado como um todo à capital do País, mas decontrapor o interiorano (sintetizado na figura típica do gaúcho) aos“almofadinhas” da capital.35 Ao mesmo tempo, a figura idealizadado gaúcho libertário é conformada como antítese do colono servil eroceiro, os “reles gringos”. Noel encobre, dessa forma, todas asalteridades internas, como a presença de imigrantes alemães eitalianos nas Missões e a prática simultânea da atividade pastoril e ada agricultura familiar na região. Preocupado em identificar asMissões com a origem do gaúcho, ele unifica o pampa – conformaçãotopográfica limitada à fronteira sul e oeste do estado.

O uso situacional das classificações e dos estigmas é um bomindício de que as formas de solidariedade produzidas, partilhadas edisputadas pelos indivíduos em sociedade são muitas, o que impugnaa hipótese de que a nacionalidade ou mesmo a identidade regionalimponham-se como princípio básico de classificação entre oshomens. Na verdade, categorias múltiplas e transterritoriais, comoas identidades geracional, religiosa e de classe, não são excludentesentre si; cada uma delas é, pelo contrário, acionada em circunstânciasdiferentes com vistas à satisfação de interesses específicos de gruposdeterminados, em circunstâncias também determinadas. É a próprialógica segmentar do pertencimento o elemento que confere suaeficácia às classificações de origem, uma vez que, ao serem acionadas,elas mascaram as demais diferenças.

Na segunda parte do poema, o autor muda de interlocutor,dirigindo-se apenas indiretamente à Academia. Ele passa a privilegiar,primeiro, a evocação de seus próprios atributos de menestrel. Aquiele se dirige prioritariamente ao grupo do qual se alça a porta-voz, eisso é fundamental na medida em que constitui um mecanismo amais de exclusão da autoridade do IHGRS sobre as Missões,fundamentando o sentido manifesto do poema. Por sua vez, omanifesto – veículo privilegiado de demarcação das posições nas lutas

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de representação – ao unificar identidades, alçando o grupo àexistência social, tanto diante de outros grupos quanto de si mesmo.Pela objetivação verbal da existência do grupo, ele dá a partida àmobilização pelo direito ao reconhecimento da diferença (Bourdieu,1989, p.118). Não obstante, a eficácia das palavras dependerá, nestecomo em qualquer caso, do reconhecimento da autoridade de quemfala pelo grupo ao qual se dirige. Por isso é que o autor inicia acanção pela demonstração de sua própria origem, antes mesmo defalar em nome daqueles que quer representar, atestando assim alegitimidade do discurso para o próprio grupo em nome do qual seexpressa.

Finalizando, é necessário salientar o sentido imaginário do“grupo” a que se dirige o poeta. A ênfase da obra está toda emfundamentar sua existência pela ancestralidade: seja o missioneiroagricultor, peão, imigrante, ou qualquer outro, ele participa do“grupo” na medida em que herda o passado regional. O “dever dopayador”, para Guarany, é justamente transmitir essa herança depertencimento. Aos que consideram a reprodução de uma unidadeimaginária como sinônimo de ilusão histórica, faltaria saber que teruma identidade própria não é apenas ver-se a si mesmo, mas sersocialmente reconhecido enquanto tal.

Considerações finais

Após tantos jogos semânticos, talvez haja tempo para umapergunta retórica: afinal, o que é a memória? Uma resposta provisóriadiria que ela é o tanto de passado que permanece no presente. Comoo texto tentou demonstrar, porém, esse passado não se mantém vivocomo uma espécie de precipitação (no sentido que a química dápara a palavra) da experiência em nossa consciência através do tempo.Fosse assim, não teríamos memórias herdadas e aprendidas nopróprio processo de socialização pelo qual passamos ao longo davida. Na verdade, a presentificação do passado depende de umtrabalho ativo de rememoração que, além de inventivo e seletivo, épolítico porque regido pela interação entre atores e grupos situados

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em posições freqüentemente desiguais na escala social. Por outrolado, trabalhar sobre os usos sociais do passado representa, para ohistoriador, uma espécie de confronto consigo mesmo. Isso porque,seja numa abordagem mais etnológica das cosmologias elaboradaspor sociedades ágrafas, seja numa abordagem mais política, centradanas instituições ou na dimensão simbólica da violência exercida peloEstado, o tema traz consigo necessariamente a interrogação inversasobre o estatuto disciplinar da História, posto que, quando sepergunta o que é a memória, está-se perguntando, indiretamente, oque as distingue a ponto de uma tornar-se objeto da outra.

Como foi mencionado, já não é mais atribuição da disciplinaregistrar os fatos marcantes da epopéia nacional. O que uma Históriacontemporânea da memória pretende é avaliar a repercussão socialde determinados acontecimentos e a dinâmica com que sãoproduzidas essas repercussões, situando o problema em umadeterminada duração. Sem se dar por vencida pela autoridade daexperiência, como quer Guarany, ou se contentar com descreverpor não poder explicar, o objetivo de uma tal análise será, comodisse Jean Pierre Rioux, fecundar a tensão fulcral deste debate, queé a defasagem existente entre o instituído e o vivido, cuja avaliaçãoé um dever de ofício para o historiador.36

De acordo com a sugestão desse autor, inserida em uma históriasocial da cultura, o escrutínio da memória conduz a aplicar as regrasmais “positivas” do metier de historiador, aquelas que objetivam esocializam o tempo, contado e recortado numa narrativa. Contudo,essa operação só ganha consistência epistemológica na medida emque se reconciliar com o fato de ser, como sua própria matéria deanálise, um modo socialmente regulado de apropriação do passado.É ao preço de se haver com o compartilhamento da linguagem entresi e seus objetos que uma história da memória institucional vai revelarsua potencialidade heurística, consciente de que o passado é sempremediado e de que o tempo não é uma dimensão unívoca da realidade,mensurada pelo relógio ou pelos sentidos. Ele é, a um só tempo, osubstrato ontológico da história e uma escolha do historiador, razão

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pela qual essa escrita tomará sempre – na função evocatória danarrativa, na percepção do efêmero e da alteridade que ela trazconsigo – uma coloração emotiva. Em suma, a intensidade afetivaprópria de todo discurso acerca do ausente torna plástico o trabalhodo historiador, fazendo do seu texto um portador de memóriapotencial.

Regionalism, historiography and memory: SepéTiaraju in two turns

Abstract. The paper explores the way as different processes and actors work oncollective memories, focusing specifically on relations between regionalism andnational identity at Rio Grande do Sul. Retaking opposed positions referring tothe “weight” of the Missões in the local memory, it examines official and alternativerepresentations of gaucho traditions. Both are linked to a regional discourse,endorsed by State’s action in its relations with intellectuals on one hand, and onthe other hand by citizens identified with popular art and traditionalism. Finally,this text points out the interdependence relations between History and Memory,considering that the knowledge of the struggles for controlling cultural identitiesallows to place the issue of social identity of historians, and their differentshistoriographic styles.Keywords: Memory. Historiography. Regionalism. Rio Grande do Sul.

Notas

1“[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tantoindividual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamenteimportante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou deum grupo em sua reconstrução de si.” (Pollak, 1992, p. 204).2 A História como uma operação, segundo o conceito formalizado por Michel deCerteau, é o resultado da combinação entre um lugar social (uma profissão, ummeio), uma prática, isto é, os procedimentos de análise e as regras que lhe conferemum caráter disciplinar, e uma escrita (o texto histórico). Com esse pressuposto,Certeau ressalta o caráter institucional, o jogo de forças sociais e as regras decomposição ocultas na escrita histórica, permitindo integrar “a” História à realidadesocial enquanto atividade humana, enquanto prática (Certeau, 1982, p.66).3 A região das Missões – cujo nome deriva das reduções de índios guaraniscatequizados pelos jesuítas a serviço da coroa espanhola a partir do século XVII –ocupa a parte noroeste do estado, entre a fronteira com a Argentina e com os

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campos de cima da serra, correspondendo à área banhada pelos rios Ijuí, Ibicuí,até o Jacuí. Essa região, de onde se repeliram ataques bandeirantes no século XVI,permaneceu em litígio entre espanhóis e portugueses desde 1750, e só foipermanentemente ocupada pelos últimos em 1801, com o Tratado de Badajoz.4 O problema dos lugares institucionais de memória é o objeto particularmentetrabalhado pela análise da construção da memória nacional francesa, na coleçãode sete volumes organizados por Pierre Nora entre 1984 e 1992, publicados pelaEditora Gallimard. Algumas citações serão referidas à edição in quarto, em trêsvolumes publicados em 1997 pela mesma Editora.5 A fusão de pressupostos evolucionistas com o adágio ciceronianista da históriamagistra vitae formam o eixo em torno do qual Lindolfo Collor, em discurso deabertura à cerimônia de fundação do IHGRS, sintetizou as relações da históriacom outros saberes, definindo suas finalidades: “[...] como a história érigorosamente uma ciência de observação em que se resumem todas as outras, asua sistematização não será possível sem um estudo constante dos fatos que nelase concatenam, de sorte a se irem estabelecendo em leis todos os fenômenos quese ligam entre si por circunstâncias invariáveis de semelhança, coexistência ousucessão. O estudo da história tem, pois, uma dupla e convergente finalidade: –Visto por um prisma restrito, dá às sociedades que o praticam a possibilidadesempre renovada de melhor preparar o futuro pelo conhecimento do passado, aopasso que, de um ponto de vista mais amplo e geral, concorre para a fixaçãosistemática das leis que regem o gradual desenvolvimento da humanidade, tantomoral como material.” (Collor, 1921, p.4-5).6 Rubem Oliven (1992) assinala que, nas atualizações da auto-representaçãoregional, as peculiaridades históricas do estado sustentaram, de um lado, a ênfasena fragilidade dos laços mantidos com o resto do país e, de outro, o meio deafirmação da brasilidade do Rio Grande.7 Ver Lins de Barros (1989, p. 30).8 Em resposta à psicologia de Bergson, Halbwachs (2002) argumenta, no iníciode Le Cadres Sociaux de la Mémoire, não haver razão para “[...] perguntar-se ondeestão as lembranças, onde elas se conservam, se no meu cérebro ou em qualquercanto de meu espírito onde só eu teria acesso, pois que elas me vêm do exterior, eporque os grupos aos quais pertenço oferecem-me a cada instante os meios de asreconstruir”.9 Para autores como Pierre Nora e Jacques Le Goff, a desidentificação traduz onascimento de uma “consciência historiográfica” na disciplina: “alguma coisafundamental se inicia quando a história começa a fazer sua própria história. Onascimento de uma preocupação historiográfica [...] interrogando-se sobre seusmeios materiais e conceituais, sobre os procedimentos de sua própria produção eas etapas sociais de sua difusão, sobre sua própria constituição em tradição, toda ahistória entrou em sua idade historiográfica, consumindo sua desidentificação

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com a memória. Uma memória que se tornou, ela mesma, objeto de uma históriapossível.” (Nora, 1997, p.28). Jacques Le Goff (1992, p.542), citando FrançoisFuret, designa uma “revolução da consciência historiográfica” que desloca o própriofazer histórico da periferia para o centro do debate, ao afirmar que, no séculoXIX, “ao princípio era o documento; hoje, ao princípio é o problema”.10 Cf. a “epistemologia da coincidência”, referida por Roger Chartier em À Beirada Falésia (2002, p. 13).11 Michael Pollak foi um dos primeiros autores a ressaltar a opressão de memóriasoficiais sobre agentes que viveram experiências largamente apropriadas pelo estadoNacional. Em estudo sobre o silenciamento público e a formalização de uma“memória subterrânea” entre ex-deportados judeus, mostrou que “No momentodo retorno do reprimido, não é o autor do ‘crime’ [a Alemanha] que ocupa oprimeiro lugar entre os acusados, mas aqueles que, ao forjar uma memória oficial,conduziram as vítimas da história ao silêncio e à renegação de si mesmas.” Omesmo autor adverte que “Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenosde dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memóriassubterrâneas [...] não remete forçosamente à oposição entre Estado dominante esociedade civil. Encontramos com mais freqüência esse problema nas relaçõesentre grupos minoritário e sociedade englobante.” (Pollak, 1989, p. 5).12 Segundo o autor, “é nesta dimensão simbólica, a menos estudada e talvez a maisnova, que se situa hoje a reinterrogação do político pela historia, pela filosofia,pelo direito e pela literatura” (Nora, 1992b, V. II, p. XXI). Vale destacar que,neste caso, colocar o problema que define a construção do objeto nos termos deum determinado nível de realidade não implica considerar instânciashierarquicamente dispostas entre o que seria a realidade (“objetiva”) e asrepresentações da realidade (“subjetivas”), mas em afirmar a equivalência dos objetosdo conhecimento com respeito à adoção de uma determinada perspectiva de análise.Cf. Chartier (1990, p.73-80).13 A expressão é de Rioux (1997, p. 327).14 Em La Creation des Identités Nationales, Anne-Marie Thiesse (1999, p.207)propõe a análise, em meio ao processo de criação das identidades nacionaiseuropéias, dos esforços intelectuais empreendidos para provar a existência concretada nação. Deslocando a ênfase do inventário de atributos ancestrais para osmecanismos e veículos de sua construção e disseminação, a autora ressalta o trabalhode observação mútua intrínseco à criação de check lists identitários, acrescentandoque “é preciso de tudo para criar um mundo, mas a lista dos ingredientes necessáriosà representação de uma identidade nacional é bem delimitada”.15 Críticas à metodologia aplicada na formulação desses conceitos poderão serencontrados em Nedel (1999, p. 22 et passim, 2004).16 Este cânone concentrou sobre si praticamente toda a prosa de ficção produzidano estado até os anos 50 e teve, no conto – que, até os anos 30, era o gênero deiniciação, dando lugar em seguida ao romance social –, sua expressão preferencial.

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17 Cesar Guazzeli (2001/2002, p.58) mostra bem como, do processo de regeneraçãopletórica do gaúcho no Uruguai, Argentina e Brasil, saíram gêmeos bivitelinos,gerados no fundo comum da paisagem fronteiriça: “Guardadas as proporções –nos países de fala castelhana o gaúcho esteve relacionado à defesa de lo nuestrocontra o estrangeiro, e no Rio Grande assumiu o papel de ‘sentinela avançada’ doBrasil –, [enquanto] dos dois lados da fronteira assumiu característicasestereotipadas que diziam respeito à liberdade, força, orgulho, rudeza, reunindoas melhores qualidades do trabalhador rural às do guerreiro que defende as justascausas, como independência, república, federalismo e nacionalidade.”18 Sobre a entrada desses referenciais no Rio Grande do Sul, ver Nedel (1999, cap.IV).19 A Comissão, criada em 1948 e oficiosamente sediada no Museu Julio deCastilhos, era a representante oficial gaúcha da Comissão Nacional de Folclore(CNFL), vinculada ao Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro. Suaorganização em 1947, como parte da convenção internacional de criação daUNESCO, representou a partida rumo a um enérgico esforço em prol dainstitucionalização dos estudos de Folclore no Brasil, projeto disciplinar defendidoem um momento estratégico e intermediário dentro do desenvolvimento dasCiências Sociais. Ver Nedel (1999) e Vilhena (1997).20 Nas décadas de trinta e quarenta, consagra-se, no Brasil, o parâmetro regionalistade composição literária e pictórica da cultura nacional, que havia sido lançadopelos modernismos. Como ressaltou Heloísa Pontes, as experiências culturais devanguarda do decênio anterior perdem, desde aí, a marca original de transgressão,sofrendo um processo de “normalização” (Pontes, 1988, p.58). No mesmo período– marcado pelo desenvolvimento do mercado interno de bens culturais e o chamado“boom” das atividades relacionadas ao livro – as grandes editoras, seus catálogos eos anuários brasileiros de Literatura formariam, juntamente com o Estado, umaarena privilegiada de delineamento dos contornos regionais do mapa brasileiro,assim como da identidade social dos escritores. Segundo Gustavo Sora, elesmediarão uma competição intelectual “[...] marcada pelo problema da unidadeentre as unidades da federação. Literatura ou interpretações das regiões eram osprodutos que mediavam [a] disputa entre intelectuais de diferentes rincões dopaís pela imposição de ‘tipos humanos’ e ‘tradições genuinamente brasileiras’.”(Sorá, 1998, p. 248).21 Tais sugestões constam no “Prefácio” de Gilberto Freyre à coletânea Região eTradição, publicada em 1940.22 Ali, em 7 de fevereiro de 1756, três dias antes da famosa “Batalha de Caibaté”– desfecho trágico da guerra –, Sepé foi abatido numa escaramuça pelo governadorde Montevidéu, José Joaquim Viana, membro das forças espanholas de demarcaçãodas Missões. Tiaraju havia sido um dos principais líderes da resistência à entregadas Reduções, de seus bens e terras aos portugueses e à transferência compulsória

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de toda a população reduzida para terras de Espanha, sem direito a levar consigoquaisquer bens.23 Os pareceres históricos do Instituto eram usados na elaboração do calendáriofestivo regional, na construção de obras e monumentos, na liberação de verbaspara compras de acervo a museus locais e na confecção dos símbolos oficiais dospoderes públicos. Exemplo disso foram as encomendas do escudo da prefeitura dePorto Alegre, cuja data de fundação, depois de intensa discussão entre oshistoriadores, acabou trocada de 1740 para 1772. Especificamente quanto aocaso Sepé, o parecer do Instituto, a réplica apresentada na assembléia seguinte emuitos manifestos de historiadores, folcloristas e tradicionalistas estão reproduzidosnos apêndices da chamada “Obra Completa” de Mansuetto Bernardi, escrita em1957 e toda ela dedicada ao assunto. Ver Bernardi (1980). Uma análise, sob outroponto de vista, dessa discussão pode ser encontrada em Gutfreind (1989, p. 200e seguintes).24 Parecer da Comissão de História do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grandedo Sul Contra Sepé Tiaraju (Bernardi, 1980, p. 139).25 Moysés Velhinho foi um estudioso da literatura e da história dos mais atuantese controversos do Rio Grande do Sul. Iniciou sua carreira como crítico literário, jáprotagonizando polêmicas quando, em meados de 1925, sob o pseudônimo dePaulo Arinos, travou debate na imprensa com Rubens de Barcellos a propósito daobra de Alcides Maya. Participou dos preparativos da Revolução de 30, ao lado deOswaldo Aranha, e, após a vitória, seguiu para o Rio de Janeiro, a fim de exercera função de chefe de seu gabinete no Ministério das Relações Exteriores. Retornouum ano depois para Porto Alegre, onde continuou militando na imprensa partidárianos jornais Jornal da Manhã e A Federação, órgão do Partido Republicano Liberal,sucessor do PRR. Foi deputado estadual por esse partido de 1935 a 37. Ingressouno IHGRS em 1949.26 Membro do IHGRS desde 1927, foi Intendente Municipal de São Leopoldo,diretor da Livraria do Globo entre 1918 e 1930, fundador da famosa Revista doGlobo, amigo de Alcides Maya e líder influente do chamado “grupo da Livraria”.Além disso, já tinha sido diretor de escola, funcionário da Secretaria do Interiordo RS e partícipe da campanha revolucionária de 30, sendo chamado por Vargaspara dirigir a Casa da Moeda, entre 1930 e 1938.27 O Manifesto foi publicado pelo Correio do Povo, de Porto Alegre, em 5.2.1955.28 Na réplica, transparece o “remorso” do Pe. Luiz Gonzaga Jaeger ao falar dosmotivos que o teriam levado a refutar a Comissão e o próprio voto: “ia-se meagravando no espírito a nítida sensação de se haver cometido uma flagrante injustiçacontra um índio altamente benemérito do nosso velho Rio Grande, que dera asua vida por uma causa das mais nobres e que deveria sair a defendê-lo”. LuizGonzaga Jaeger, Refutação do Parecer da Comissão de História (apud Bernardi,1980b, p. 146).

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29 O contraparecer leva o título de Pá de Cal sobre o Assunto Sepé. Nele, historiadoresligados aos estudos de folclore, como Dante de Laytano e Walter Spalding, emilitares, como De Paranhos Antunes e Henrique Oscar Wiedespahn, aliados eamigos de Dante de Laytano, posicionam-se ao lado de Bernardi, identificandoem Sepé, entre outros valores, o de ter sido um gaúcho “muito mais brasileiro –não no sentido político e moderno do vocábulo, mas no sentido etnogênico eracial do que os mais velhos rio-grandenses, pois estes descendem de lusitanosaqui aportados, no máximo há 230 anos, ao passo que ele provinha de uma ‘nação’aqui radicada ‘desde o tempo do dilúvio” (Cf. Bernardi, 1980b, p. 171).30 Nos cadernos culturais do Correio do Povo, encontra-se, dois anos após, ainda acontinuidade da polêmica, sucedendo-se artigos pró ou contra o Monumento.Ver, a título de exemplo, as posições de Castro (1957, p. 8) e Ferreira Filho (1957,p. 13). Também é notável, quanto à longevidade da discussão, o fato de que,quase dez anos mais tarde, Moysés Velhinho (1964) retome sua posição e amplieos argumentos contra Bernardi e Teschauer ao publicar Capitania d’El Rey: aspectospolêmicos da formação rio-grandense.31 Neste caso, em consonância com Roger Chartier, à ”representação” devem-seatribuir três sentidos simultâneos: um primeiro, inspirado nas críticas de Durkheime Mauss às filosofias apriorista e empirista da consciência, de esquemas partilhadosde percepção e de juízo herdados, que corresponderiam à própria incorporaçãono indivíduo da estrutura social – “as configurações intelectuais múltiplas, atravésdas quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”. Osegundo sentido diz respeito à construção dinâmica dos significados, quecorresponde ao processo de luta pela imposição das identidades sociais: “as práticasque visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria deestar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição”. Por último,o sentido mais cênico da palavra tem a ver com a “apresentação” da identidadesocial – “as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns‘representantes’ (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visívele perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade” (Chartier, 1990,p. 23).32 “O trabalho de enquadramento da memória alimenta-se do material fornecidopela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a umsem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas demanter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpretaincessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro.”(Pollak, 1989, p. 9-10).33 Expressão empregada pelo poeta Jayme Caetano Braum nos versos deapresentação de Noel Guarany no disco Quatro troncos missioneiros (Rio de Janeiro,CBS, s/d): “[...] Noel Guarany/Tropeando desde guri/Nunca cai em arapuca/Mais brabo do que mutuca/Vem do berço de Sepé/Andou morando em Bagé/NaBaixada do Manduca”.

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34 O poema foi transcrito do disco Alma, Garra e Melodia. Coleção Música Populardo Sul, Rio de Janeiro: Copacabana; FINEP, 1981.35 É recorrente, na obra de Noel Guarany, a referência pejorativa aos centros urbanosde formação intelectual: além da alusão aos “canudos mal-havidos” dos professoresde Porto Alegre, em outras poesias, ele constrói personagens que vão “comprarcanudos em Pelotas”. A constância dessas referências, se guarda alguma relaçãocom o baixo grau de instrução formal do poeta, remete mais à tradição gauchescade Martin Fierro, na qual a formação na “escola da vida” distingue o gaucho dosfilhos ilustrados de estancieiros cosmopolitas.36 “O historiador da memória deve viver e ultrapassar [...] uma tensão fecundamas lancinante e seguidamente incômoda: o esquartejamento, constitutivo dodomínio cultural, entre o instituído e o vivido: entre, de uma parte, as memóriasnacionais em contínuo, autárquicas, comemoradas, auto-satisfeitas, ensinadas paraserem partilhadas e, de outra parte, as memórias particulares, comunitárias ou‘multiculturais’, soltas ao vento e muito ao sabor de um tempo deslocado.” (Rioux,1997, p.327).

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